revista jurídica do curso de direito do iesplaniesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf ·...

129
Ano I - N 0 01 Jul./ Dez. 2011 Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN

Upload: phamkhuong

Post on 13-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

Ano I - N0 01Jul./ Dez. 2011

Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN

Page 2: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

JurisPlan - Revista Jurítica do Curso de Direito. Instituto de Ensino Superior Planalto- Faculdades Planalto.

Instituto de Ensino Superior PlanaltoBrasília, DF

Dezembro de 2011

Page 3: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

A Revista JURISPLAN é uma publicação semestral do Instituto de Ensino Superior Planalto IESPLAN.

SEPS AV. W5 Sul EQ 708/907 Lote BAsa Sul - Brasília - DF (61) 3442-6000WWW.iesplan.br

Mantenedor: Centro de Estudos Superiores Planalto Diretor-Geral: Prof. Reinaldo Hermedo PoerschDiretor-Administrativo: Profª. Christy Vieira Hutchison da Silva Diretor Acadêmico: Prof. José Leopoldino das Graças Borges Secretária Geral: Danielle Corrêa Wan-MeyCoordenador do Curso de Direito: Prof. Julio Cesar Fonseca Mollica

CONSELHO EDITORIALDaniel Ivo Odon, Danilo da Costa Ribeiro, Jacques Salomon Crispim Soares Pinto, Roberto da Gama Cidade, Sessuana Crysthina Polanski Paese, Sinval Lucas de Souza Filho e Walter Eduardo Maranhão Bressan

EXPEDIENTE Organização: Daniel Ivo Odon e Sessuana Crysthina Polanski PaeseProjeto da Revista: Daniel Ivo Odon, Danilo da Costa Ribeiro, Jacques Salomon Crispim Soares Pinto, Roberto da Gama Cidade, Sessuana Crysthina Polanski Paese e Walter Eduardo Maranhão BressanProjeto Gráfico – Vitor José de Andrade JúniorRevisão: Jacques Salomon Crispim Soares PintoEditoraçao Eletrônica: Francisco OliveiraParticipação: CADir – Centro Acadêmico de Direito

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui

violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998 )

JurisPlan: revista eletrônica do curso de Direito. Instituto de Ensino Superior Planalto- Facul-dades Planalto. Departamento de Direito. – v.1, n.1 (2012)- . - Brasília: Editora, 2012. v. Semestral Resumo em português e inglês. A partir de fevereiro de 2012, disponível no portal em: http://www.iesplan.br Inclui Bibliografia e Índice

1. Direito. 2. Doutrina. 3. Legislação. I. Instituto de Ensino Superior Planalto. Departa-mento de Direito.CDU: 34(05)

IESPLAN Editora

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não expressam, necessariamente, a posição desta Revista.

Page 4: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

3

Revista Jurisplan - 2012

PREFÁCIO

A presente obra é o primeiro fruto de um sonho que se concretizou através da união de esforços de diversos pesquisadores e colaboradores, docentes e discentes, con-firmando o interesse geral na pesquisa científica e na atualização acadêmica.

Os temas estudados nesta edição transitam por diversas áreas do Direito, tendo como uma de suas grandes marcas a multidisciplinaridade, sem, contudo, dar menos importância à inter e à transdisciplinaridade, ao tratar de temas de relevante contexto social, histórico e antropológico. Afinal, a Ciência do Direito estudada sem as bases da sociologia, da antropologia e da história, não passa de ciência vazia, sem alma e sem rumo.

Assim, a leitura da presente obra trará ao leitor, além do prazer em adquirir no-vos conhecimentos, uma visão científica de determinados fenômenos sociais, nacionais e internacionais, que o ajudarão a entender não apenas o Direito, mas também a própria evolução humana.

Boa leitura!

Julio Cesar Fonseca Mollica

Page 5: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

4

Revista Jurisplan - 2012

APRESENTAÇÃO

Caro leitor,

Esta é a primeira edição da Revista JurisPlan que nasce com o compromisso da Faculdade IESPLAN com uma formação sólida e crítica na área do direito, seja na sua dimensão humanística ou mesmo técnica, voltada para a importância da pesquisa. Igualmente, o lançamento deste periódico representa a consagração do protagonismo do ambiente acadêmico, da importância do direito como ciência social aplicada e uma conquista para implementação do avanço científico desta instituição de ensino.

A revista possui conteúdo multidisciplinar da área jurídica e esta primeira edição traz artigos elaborados por profissionais do Direito que compõem conjunta ou isoladamente a vida pública, militância privada e o meio acadêmico. Há também a con-tribuição de artigos de alunos com os respectivos orientadores referentes aos Trabalhos de Conclusão de Curso que se destacaram tanto por sua perspicácia temática, como pela exitosa pesquisa realizada, celebrando com primazia o encerramento do curso de graduação, o primeiro passo para a imersão científica.

O trabalho de escolha deste Conselho Editoral teve como foco de análise o conteúdo técnico dos trabalhos escolhidos além da estrita observação das regras da As-sociação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, nomeadamente as NBRs 6021:2003 e 6022:2003 e as pertinentes do CB-14 daquela instituição. Foram, então, selecionados seis artigos para esta primeira tiragem, sendo dois deles oriundos de alunos da IES-PLAN juntamente com seus professores orientadores.

Dois artigos foram selecionados com a temática transfronteiriça, mostrando um pouco das inquietutes da sociedade internacional que, no mundo globalizado em que vivemos, não podem passar desapercebidas pela comunidade científica. São eles: “O Estado de Exceção no Constitucionalismo Pós-terrorismo”, elaborado pelo Procurador e Mestre em Direito, Daniel Ivo Odon; e “Processos Integracionistas dos Blocos Eco-nômicos, Livre Circulação de Trabalhadores e sua Seguridade Social: análise compa-rada União Européia e Mercosul”, elaborado pelo Advogado e Doutorando em Direito, Antonio Raimundo Pereira Neto, profissional também dedicado ao magistério na Bahia

Page 6: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

5

Revista Jurisplan - 2012

que traz valorosa contribuição movido pela crença do intercâmbio de conhecimentos e produção científica.

Na capilaridade do Direito Brasileiro, foram selecionados os trabalhos identi-ficados com distintos setores públicos, sendo o “Lei Maria da Penha, Audiência de Re-tratação e Necessidade de Dupla Vitimização”, elaborado pela Advogada e Professora, Érika Bueno Muzzi, trazendo rico conhecimento empírico da aplicação da Lei Maria da Penha na rotineira processualística brasileira em consonância com o postulado má-ximo da dignidade da pessoa humana, assunto, por sinal, em constante exposição na mídia pelo seu alcance social direto e constante; e “Por Onde Passa a Desigualdade? Um Panorama Estrutural”, elaborado pelo Professor Doutor José Bittencourt Filho, que empreende um enfoque metodológico científico à relação entre o acesso à justiça e os direitos fundamentais.

Por fim, estão aqui publicados os trabalhos que representam pesquisas reali-zadas pelo corpo docente do IESPLAN na construção dos trabalhos de conclusão da graduação. Mereceram destaque, portanto, “O Direito à Saúde e a Cláusula da Reserva do Financeiramente Possível”, elaborado pela bacharela Sulien Barbosa Rodrigues com orientação do Professor Mestre Daniel Ivo Odon, que atribui um olhar jurídico-cientí-fico à infindável batalha da efetividade do serviço público de saúde em contraste com suas restrições de recursos; e a resenha da obra “Tribunal de Nuremberg (1945-1946): a gênese de uma nova ordem no Direito Internacional”, elaborada pela bacharela Rosile-ne Soares Silva com orientação do Professor Roberto da Gama Cidade, que reproduz os memoráveis fatos ocorridos no maior julgamento de matriz internacional que a história da humanidade denuncia.

Tenham todos uma ótima leitura e até a próxima edição!!!

Daniel Ivo Odon Jacques Salomon Crispim Soares Pinto

Sessuana Crysthina Polanski Paese

Page 7: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

6

Revista Jurisplan - 2012

SUMÁRIOContents

PROCESSOS INTEGRACIONISTAS DOS BLOCOS ECONÔMICOS, LIVRE CIRCULAÇÃO DE TRABALHADORES E SUA SEGURIDADE SOCIAL: ANÁLISE COMPARADA UNIÃO EUROPÉIA E MERCOSUL. Antonio Raimundo Pereira Neto.............................................................................pág. 7

O ESTADO DE EXCEÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO PÓS-TERRORISMO. Daniel Ivo Odon....................................................................................................pág. 26

LEI MARIA DA PENHA, AUDIÊNCIA DE RETRATAÇÃO E NECESSIDADE DE DUPLA VITIMIZAÇÃO. Erika Bueno Muzzi ...............................................................................................pág. 47

POR ONDE PASSA A DESIGUALDADE? UM PANORAMA ESTRUTURAL. José Bittencourt Filho............................................................................................pág. 68

TRIBUNAL DE NUREMBERG (1945-1946): A GÊNESE DE UMA NOVA ORDEM NO DIREITO INTERNACIONAL. Rosilene Soares Silva e Roberto da Gama Cidade................................................pág. 94

O DIREITO A SAÚDE E A CLÁUSULA DA RESERVA DO FINANCEIRAMENTE POSSÍVEL. Daniel Ivo Odon e Sulien Barbosa Rodrigues....................................................pág. 105

Page 8: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

7

Revista Jurisplan - 2012

PROCESSOS INTEGRACIONISTAS DOS BLOCOS ECONÔMICOS, LIVRE CIRCULAÇÃO DE TRABALHADORES E SUA SEGURIDADE

SOCIAL: ANÁLISE COMPARADA UNIÃO EUROPÉIA E MERCOSUL.

Antonio Raimundo Pereira Neto

RESUMO

O objetivo deste artigo de revisão curta é apreciar as interações que ocorrem dentro dos processos integracionistas dos blocos econômicos, em torno da livre circulação de trabalhadores e sua seguridade social, a partir da hipótese de que sem esta liberdade não se pode cogitar a integração de um bloco econômico, entro dos ambientes da União Européia e do Mercosul. Trata-se de uma pesquisa exploratória realizada por revisão bibliográfica e documental no ambiente das cinco liberdades fundamentais do processo integracionista de qualquer bloco econômico, fundamentadas teoricamente pelos cons-titucionalistas norte-americanos, com base na free-comerce clause de sua constituição. Foi realizada também uma análise comparativa para comprovar que a União Européia já evoluiu nesta compreensão, tanto que já construiu diversos dispositivos legais que tornam concreta a livre circulação de trabalhadores. De outro lado, o mesmo fato não ocorre com o Mercado Comum do Sul, circunstância que tem atravancado ainda mais o surgimento de um verdadeiro mercado comum no cone sul. Conclui o artigo que o cone sul, guardadas as peculiaridades regionais, deve se espelhar nas diretivas e políticas im-plementadas pela União Européia no que tange à livre circulação de trabalhadores, pois somente assim poder-se-á chegar ao almejado estágio de um mercado comum do sul.

Palavras-chave: MERCOSUL. União Européia. Livre circulação de trabalhadores.

1. INTRODUÇÃO.

As relações de comunidade ou de comunhão se caracterizam porque têm uma união ou unidade comum, um mesmo centro de referência; se predicam e se implicam na participação que se tem de um interesse compartilhado, como partes de um todo, fruto da convergência de interesses.

A organização institucional de blocos econômicos é um efeito direto deste de-sejo de relações comunitárias. Todavia, uma verdadeira integração comunitária só po-derá ganhar vida e tornar-se realidade através dos caminhos indicados pelo Direito Co-munitário, o qual tem a nobre função de promover a integração dos Estados-membros que formam o bloco.

A formação de um mercado comum é vista como uma solução (GRANILLO OCAMPO, 2007, p. 15), uma estratégia razoável e equitativa para enfrentar problemas comuns. Não se trata de fórmulas de especulação retórica, senão da modificação de fa-

Page 9: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

8

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

cetas do mundo através de processos de integração regional. Contudo, o comunitarismo regional necessita de um pensamento político que não se limite ao aspecto puramente econômico, mas também aos problemas sociais dos Estados-membros.

A formação de um mercado comum é missão que cabe ao direito comunitário, que deve conseguir aquilo que, durante séculos, a força resultante de guerras não logrou êxito, ou seja, uma integração assentada no livre arbítrio, com vistas a um futuro pere-ne; uma unificação baseada em direitos e garantias fundamentais, como a liberdade e a igualdade, as quais deverão ser preservadas e concretizadas pelo direito comunitário.

A integração regional, para ser alcançada, deve tornar efetivas as cinco liber-dades fundamentais: livre circulação de trabalhadores, mercadorias, capitais, liberdade de concorrência e liberdade de estabelecimento. Estas cinco liberdades fundamentais foram fundamentadas teoricamente pela primeira vez através dos constitucionalistas norte-americanos, com base na free-comerce clause de sua constituição. (BATISTA, 1994, p.17-18)

A livre circulação de mercadorias faz com que dentro das fronteiras do bloco econômico as mercadorias possam circular sem que tenham de atravessar as fronteiras alfandegárias.

A liberdade de estabelecimento faculta ao empreendedor instalar-se onde quer que deseje, no interior do bloco econômico, quer para a produção, quer para armazena-gem, quer para a venda de seus produtos.

A livre circulação de capitais implica na supressão das restrições aos movimen-tos de capitais pertencentes às pessoas residentes nos Estados-membros, bem como a abolição das discriminações de tratamento em razão da nacionalidade ou de residência das partes ou do lugar do investimento. (SILVA, 1999, p. 69-70)

A liberdade de concorrência submete todos os produtores às mesmas regras de natureza econômica, administrativa, fiscal, política e social, isto é, todos se sujeitam a uma disciplina jurídica e a encargos idênticos que vão incidir da mesma forma nos produtos de sua empresa.

Apesar da notória importância das quatro liberdades fundamentais acima cita-das para o florescimento do processo integracionista entre blocos econômicos, esta pes-quisa não possui o objetivo de tratar das mesmas, mas tão somente da quinta liberdade fundamental: A livre circulação de trabalhadores.

Com a livre circulação de trabalhadores garante-se ao cidadão comunitário o direito de buscar emprego e estabelecer-se com sua família em qualquer Estado-mem-bro.

O trabalhador comunitário não poderá sofrer discriminações que o mantenham em condições inferiores aos trabalhadores nacionais, estendendo-se ao mesmo os di-reitos sociais inerentes aos trabalhadores nacionais, tais como seguro-desemprego e benefícios previdenciários.

Sem livre circulação da mão de obra, não se pode cogitar processo integracio-nista, razão pela qual, esta pesquisa destina-se a analisar comparativa e criticamente em que estágio evolutivo encontra-se esta liberdade fundamental, tanto na União Européia, quanto no Mercosul.

Page 10: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

9

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

De saída, deixamos claro que estamos a defender o processo de integração regional, que é diferente do processo de cooperação regional. É que enquanto este tem em mira diminuir a discriminação entre os Estados-partes, aquele compreende medidas destinadas a suprimir a discriminação (diferença quantitativa, portanto). Na coopera-ção cada país possui objetivos próprios, que lograrão êxito mais facilmente mediante o trabalho conjunto com outro país ou outros países que também perseguem objetivos próprios. A integração, por seu turno, implica a transformação dos objetivos individuais de cada país em um objetivo único para o conjunto (diferença qualitativa).

2. UMA ANÁLISE SOBRE A UNIÃO EUROPÉIA.

2.1. A livre circulação de trabalhadores na União Européia.

Como vimos de ver, a livre circulação de trabalhadores é um dos princípios fundamentais do processo integracionista, sendo considerada uma das chamadas liber-dades fundamentais, sem as quais se torna impossível falar-se em processo de integra-ção a partir do estágio de Mercado Comum.

Não é por acaso que o Tratado que instituiu a União Européia, assinado em Maastrich (Luxemburgo), na sua Parte I, artigo 3º, alínea “c”, dispõe que para alcançar sua finalidade de ser um mercado comum, entre outros pressupostos, requer-se “um mercado interno caracterizado pela abolição, entre os Estados-membros, dos obstáculos à livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais.”(UNIÃO EU-ROPÉIA, 2006, grifo nosso)

A livre circulação de pessoas é expressão que engloba não só o trânsito de trabalhadores, mas também os movimentos migratórios de prestadores de serviços e de estabelecimentos empresariais. (DUARTE, 1992, p. 69-70)

Neste ponto, por oportuno, vale informar que o conceito de empregado no âm-bito da União Européia é o mesmo utilizado por nós, considerando-se, portanto, em-pregado aquele que firma contrato personalíssimo (pessoalidade) para prestar serviços durante certo tempo em atividade fim (não eventual), em favor de outra pessoa e sob sua direção (subordinação jurídica), pelo qual recebe uma remuneração (onerosidade).

Historicamente, o telos motivador da criação da Comunidade Européia sempre esteve baseado no desejo de livre circulação de mercadorias (e não de pessoas) entre os Estados-membros, sendo que esta circulação seria protegida por uma tarifa aduaneira comum.

Assim, o empregado, inicialmente, era visto sob um prisma predominantemen-te mercantilista e as políticas sociais estavam subordinadas às políticas econômicas, “em uma perspectiva de passividade”. (BARROS, 2009, p. 1325-1326)

Buscando ultrapassar esta visão tacanha, ocorreu na União Européia uma im-plantação progressiva de políticas voltadas para efetivação do que já constava no re-

Page 11: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

10

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

trocitado artigo 3º, alínea “c”, ou seja, um mercado interno caracterizado pela livre circulação de pessoas.

Tais políticas tinham por escopo demonstrar que o processo de livre circulação de trabalhadores subordinados implica a não discriminação dos mesmos, em razão da sua nacionalidade, o que, inclusive, é considerado um direito fundamental nas socie-dades mais avançadas. Garantia-se, outrossim, o direito de preferência ao trabalhador originário da comunidade, no momento do acesso ao emprego, em relação aos trabalha-dores provenientes de terceiros Estados.

Mas não é só, como condição do pleno exercício do princípio da livre circu-lação, outras medidas foram implementadas. É o caso do direito de residência, não só em relação aos trabalhadores, bem como quanto aos seus familiares (op. cit, p. 1326). Ressalte-se, ademais, ser assegurado o direito de permanência no território do Estado-membro, mesmo depois de o trabalhador, que ali exerceu uma atividade laboral, ter sido dispensado.

Esses mesmos incentivos aos movimentos migratórios de mão de obra também eram voltados de forma específica ao jovem, consoante se infere do artigo 41º do mul-ticitado Tratado, ex vi: “Os Estados-Membros devem fomentar, no âmbito de um pro-grama comum, o intercâmbio de jovens trabalhadores.” (UNIÃO EUROPÉIA, 2006)

O fato é que, atualmente, um dos principais objetivos da Comunidade Européia é tornar real o princípio da livre circulação de pessoas e, consequentemente, de traba-lhadores. Raúl Granillo Ocampo (2007, p. 320) é do mesmo pensar quando afirma que

La libre circulación de personas es uno de los objetivos de las Comu-nidades Europeas, constituyendo quizás la principal manifestación del principio de no discriminación entre los ciudadanos de los Estados miem-bros. Además, todas las líneas de trabajo futuro de la Unión, en especial la concreción definitiva de la Europa de los ciudadanos, pasan sin lugar a dudas por una mayor e mejor circulación de personas, como requisito previo esencial del sentimiento comunitario.

Qualquer cidadão de um país comunitário se beneficia no território de outro, dos mesmos direitos que regem o acesso ao emprego dos nacionais deste e devem elimi-nar-se as disposições jurídicas ou as práticas administrativas de um Estado que limitem o acesso e a permanência no emprego de outros cidadãos comunitários, ou que subme-tam estes a exigências mais gravosas que as erigidas para seus nacionais.

Sobressai de tudo isso um princípio fundamental reconhecido em distintas oportunidades pelo Tratado de Maastrich e ressaltado pelo Tribunal de Justiça da União Européia: o princípio da igualdade de tratamento. Este princípio significa que nenhum trabalhador comunitário pode ser objeto de discriminação alguma quando exerça uma atividade remunerada em outro Estado-membro da comunidade.

Calha registrar que o direito à livre circulação de empregados, como qualquer outro direito, não é absoluto, comportando exceções. Estas ressalvas estão, basicamente, restritas às razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, conforme artigo

Page 12: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

11

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

39º, do Tratado que instituiu a União Européia. Exemplificativamente, podemos citar a ocupação de empregos relevantes na Administração Pública dos Estados-membros, tais como diplomacia, polícia, magistratura e outros cujo exercício vise à salvaguarda de interesses gerais do país.

Outra questão relevante neste contexto é a do reconhecimento de diplomas e títulos. Estamos a falar da constatação de que, a plena realização do princípio da liber-dade de circulação de pessoas e, de maneira especial, dos profissionais liberais, ou de quaisquer profissões regulamentadas, depende em grande parte da possibilidade assegu-rada a tais cidadãos, originários de quaisquer Estados-membros, poderem exercitar em outro Estado, as respectivas atividades para as quais estejam habilitados em condições de igualdade.

Este fato, pela sua importância, mereceu previsão tanto no plano do direito ori-ginário, quanto no plano do direito derivado, tanto que, no âmbito da União Européia, o sistema geral de reconhecimento de diplomas foi introduzido pela Diretiva nº 89/48/CEE, que em seu artigo 3º estatui que (EL CONSEJO DE LAS COMUNIDADES EU-ROPEAS , 1988, p. 5):

Cuando, en el Estado miembro de acogida, el acceso o el ejercicio de una profesión regulada estén supeditados a la posesión de un título, la autori-dad competente no podrá denegar a un nacional de otro Estado miembro el acceso a dicha profesión o su ejercicio en las mismas condiciones que a sus nacionales, alegando insuficiencia de cualificación: a) si el solicitante está en posesión del título prescrito por otro Estado miembro para acceder a dicha profesión o ejercerla en su territorio, y lo ha obtenido en un Estado miembro, o b) si el solicitante ha ejercido a tiempo completo dicha profesión durante dos años en el curso de los diez años anteriores en otro Estado miembro que no regule esta profesión, según lo dispuesto en la letra c) del artículo 1 y en el párrafo primero de la letra d) del mismo artículo, estando en posesión de uno o varios títulos de formación: - que hayan sido expedidos por una autoridad competente en un Estado miembro designada con arreglo a las disposiciones legales, reglamenta-rias o administrativas de dicho Estado; - que acrediten que el titular ha cursado con éxito un ciclo de estudios postsecundarios de una duración mínima de tres años, o de una dura-ción equivalente a tiempo parcial en una universidad, en un centro de enseñanza superior o en otro dentro del mismo nivel de formación de un Estado miembro y, en su caso, que ha cursado con éxito la formación pro-fesional requerida, además del ciclo de estudios postsecundarios, y - que le hayan preparado para el ejercicio de dicha profesión.

Esta diretiva tem sido efetiva no âmbito da União Européia, tanto que quando algum Estado-membro a desrespeita, obstando o reconhecimento de diplomas dos cida-dãos europeus, o próprio Parlamento da União Européia impõe sanções e requer pedido de explicações para a negativa de reconhecimento aos diplomas.

Temos notícia de interessante situação real, onde o Sr. José Anton Sempere, de nacionalidade espanhola, teve negado pela Espanha o reconhecimento do seu diploma

Page 13: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

12

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

de engenheiro civil obtido na Itália. Motivo pelo qual, o referido cidadão europeu peti-cionou ao Parlamento Europeu informando que as autoridades espanholas recusavam-se a proceder ao reconhecimento do seu diploma de engenharia civil, em notório des-cumprimento do quanto disposto na Diretiva nº 89/48/CEE.

Em resposta ao Sr. José Anton Sempere, o Parlamento Europeu (2004) con-cluiu que:

Ora, nos termos do artigo 3º da Directiva 89/48/CEE, os cidadãos comu-nitários que possuam o diploma exigido num outro Estado-Membro para aceder a uma profissão têm o direito, no Estado-Membro de acolhimento “[... a] o acesso a essa profissão ou [a]o seu exercício, nas mesmas con-dições que os seus nacionais”. Por conseguinte, a subordinação das con-dições de exercício da profissão, e particularmente das condições de pro-moção interna no sector público, à concessão de equivalência académica do diploma poderia ser contrária à Directiva 89/48/CEE. A Comissão re-cebeu uma queixa do peticionário, assim como de dez outras pessoas, às quais lhes foi igualmente negado o pedido de reconhecimento com base na Directiva 89/48/CEE por parte do Ministério das Obras Públicas espa-nhol. Por consequência, os serviços da Comissão irão propor à Comissão que inicie a primeira fase do processo previsto no ex-artigo 226º contra a Espanha, por aplicação incorrecta da Directiva 89/48/CEE.

2.2. A seguridade social na União Européia.

A seguridade social constitui, também, aspecto de extraordinária relevância no contexto da realização efetiva do princípio da livre circulação de trabalhadores.

Com efeito, o princípio formal da liberdade de locomoção dos trabalhadores se esvazia se não tiver o concomitante respaldo da previdência social uniformizada, como referido pelo artigo 42 do Tratado que institui a União Européia, visando à instituição de sistema comunitário que assegure os direitos daí decorrentes aos trabalhadores mi-grantes e seus dependentes. (CASELLA, 1994, p. 94)

A circulação de trabalhadores tem como corolário lógico a necessidade do esta-belecimento de um regime de seguridade social favorável para os trabalhadores migran-tes. É por isso que o artigo 42 do Tratado de Roma estabelece a idéia básica que consiste em se evitar que a seguridade social, que funcione num quadro territorial fechado, não seja um freio ou um obstáculo à livre circulação.

Pela importância capital do já citado artigo 42 do Tratado de Roma, importa citá-lo:

Artigo 42º - O Conselho, deliberando nos termos do artigo 251º, tomará, no domínio da segurança social, as medidas necessárias ao estabelecimen-to da livre circulação dos trabalhadores, instituindo, designadamente, um sistema que assegure aos trabalhadores migrantes e às pessoas que deles dependam: a) A totalização de todos os períodos tomados em consideração pelas di-versas legislações nacionais, tanto para fins de aquisição e manutenção do direito às prestações, como para o cálculo destas;

Page 14: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

13

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

b) O pagamento das prestações aos residentes nos territórios dos Estados-Membros.

No mesmo sentido encontramos outras disposições legais no Tratado, é o caso do artigo 137, alínea ‘c’, que prescreve que um dos objetivos da União Européia é pro-mover a segurança social e proteção social dos trabalhadores, bem como incentivar a cooperação entre os Estados-Membros para a facilitação e coordenação das suas ações nos domínios da política social, especialmente a segurança social dos trabalhadores.

Podemos concluir, destarte, ainda que superficialmente, que os elementos basi-lares do sistema de seguridade do trabalhador migrante da União Européia está assen-tado em três pontos principais.

O primeiro trata da acumulação e totalização dos períodos de aquisição cum-pridos sob a legislação de dois ou mais Estados-membros, princípio este ao qual se recorre somente no caso de a legislação nacional não garantir ao trabalhador o direito à prestação por causa da ausência do requisito do período mínimo de contribuição que lhe daria direito ao benefício previdenciário.

O segundo cuida do direito à exportação das prestações de seguridade social, ou seja, o pagamento destas aos trabalhadores no local de sua residência, independente-mente do Estado-membro um cujas instituições tenham sido efetuados os depósitos. O Estado que deverá desembolsar as prestações é o da última residência, que será reem-bolsado pelos demais Estados pelos períodos que os trabalhadores tenham ali residido e prestado suas atividades laborais. (MELGAR, MORENO y NAVARRO. 1994, p.87)

O terceiro e último estatui que estas disposições aplicam-se não só aos traba-lhadores, mas também aos seus familiares, vez que a instituição de um sistema de uni-cidade normativa sobre previdência social vem sendo elaborado tendo em vista também por causa das pessoas que porventura dependam do trabalhador.

3. UMA ANÁLISE SOBRE O MERCOSUL.

3.1. A livre circulação de trabalhadores no MERCOSUL.

Diversamente do que ocorre na União Européia, a questão da livre circulação de trabalhadores não consta de forma explícita entre as normas eu instituíram o Merco-sul. Entretanto, é corrente a interpretação doutrinária de que tal princípio é decorrência lógica do que consta no artigo 1º do Tratado de Assunção ao mencionar “A livre circula-ção de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da elimi-nação dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida [...].” (BRASIL, 1991, p. 1, grifo nosso). É, ainda, da própria essência da pretendida implantação de um verdadeiro Mercado Comum.

Note-se que no atual estágio de União Aduaneira, o MERCOSUL apresenta

Page 15: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

14

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

certas imperfeições a serem sanadas no decorrer do processo evolutivo. A doutrina tem entendido que o MERCOSUL somente estará devidamente aperfeiçoado na medida em que garantir a livre circulação dos fatores de produção, representados por capital e tra-balho. E mais, Chiarelli (1997, Vol. 1, p. 155) tem entendido que:

A evolução do transitório estágio do MERCOSUL – Zona de Livre Co-mércio Parcial, uma vez que há, até o momento, rol (reduzido) de produ-tos considerados sensíveis, que detêm tratamento privilegiado no tráfego intracomunitário, combinado com uma União Aduaneira imperfeita, já que não dispensa tratamento tarifário absolutamente linear no relaciona-mento extracomunitário – para consolidação do Mercado Comum, depen-de do direito de ir e vir de bens, serviços e trabalhadores.

O conceito de empregado, nos ordenamentos jurídicos dos países que com-põem o Mercosul, não incorrem em qualquer discrepância (assim como no âmbito da União Européia): é a relação de trabalho intuitu personae, subordinada a um emprega-dor, mediante remuneração, de forma habitual, existindo, então vinculo de emprego. Da mesma forma, os países integrante do MERCOSUL reconhecem a figura do trabalhador autônomo, assim considerado aquele que presta serviços por conta própria, sem o liame da subordinação. E essas identidades conceituais são de vital importância para facilitar a livre circulação de mão de obra e, consequentemente, alavancar o processo integracio-nista do Mercado Comum do Sul.

Segundo Barros Júnior (1997, Vol. 1, p. 182) a criação de um mercado comum de trabalho depende do preenchimento de alguns requisitos, a saber: a) favorecer a liberdade de acesso de trabalhadores de um Estado-membro aos postos de trabalho de outros Estados-membros; b) garantir um tratamento paritário em relação do trabalhador dispensado tanto quanto aos trabalhadores do lugar onde o serviço tenha sido prestado; c) manter uma disciplina previdenciária durante e após a cessação do trabalho.

Não podemos olvidar ainda que alguns aspectos da livre circulação de traba-lhadores trarão consigo a necessidade de modificação de alguns dispositivos de nossa Constituição Federal. Como exemplo, entendemos que algumas liberdades deverão ser estendidas às pessoas dos demais Estados-partes que compõem o bloco sul regional, é o caso da liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão atendidas às qualificações profissionais que a lei estabelecer, ou então da liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. (artigo 5º, inciso XV da Carta Magna).

Importa esclarecer que, segundo nosso entendimento, o espírito da Lex Legum é plenamente compatível com o processo integracionista, afinal um dos Princípios Fun-damentais da República Federativa do Brasil, consoante seu artigo 4º, parágrafo único, consiste justamente em buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

A livre circulação de trabalhadores requer igualmente a revisão de nossa le-gislação infraconstitucional, pois esta se encontra divergente, em alguns pontos, desta

Page 16: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

15

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

necessidade de implementação de Mercado Comum. Segundo Nascimento (1997, p. 453), dentre os diversos aspectos que demandam uma nova regulamentação, incluem-se, exemplificativamente:

[...] as novas categorias de ingresso de trabalhadores no país, condições de admissão, procedimentos e requisitos exigidos, prazos de permanên-cia, proibições e causas de deportação, expulsão ou extradição, atividades permitidas ou proibidas, exigências formais para obter permanência, pro-gramas de incentivo ao ingresso de imigrantes com capital, sanções para estrangeiros clandestinos, punições ao empregador que tiver a seu serviço um trabalhador clandestino, fronteiriços, transferência de pessoal pelas empresas com atividades em mais de um país, por tempo determinado e indeterminado, questões cuja enumeração revela a complexidade das medidas que devem ser definidas.

Não podemos olvidar outro ponto fundamental para propiciar a tão decantada

livre circulação de trabalhadores, qual seja a validação de diplomas e títulos emitidos pelos Estados-partes.

Foi pensando nisto que, no ano de 1991, os países membros do Mercosul as-sinaram um Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício e Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do Mercosul (BRASIL, 2005).

Este acordo parte do pressuposto que a educação tem papel fundamental na consolidação do processo de integração regional e que o intercâmbio acadêmico entre as instituições de ensino do bloco mostra-se como um mecanismo eficaz para a melho-ria da formação e capacitação científica, tecnológica e cultural dos Estados-partes, tudo isso sem perder de vista a necessidade de salvaguardar os padrões de qualidade vigentes em cada país.

O presente acordo denota um importante passo para a integração do bloco sul regional, haja vista que facilita a validação de títulos e graus universitários entre os cidadãos dos Estados-partes do MERCOSUL, desde que os referidos títulos estejam em conformidade com a legislação do país emissor. É o que se infere dos artigos 1º e 3º do Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício e Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do MERCOSUL (BRASIL, 2005):

Artigo Primeiro: Os Estados Partes, por meio de seus organismos compe-tentes, admitirão, unicamente para o exercício de atividades de docência e pesquisa nas instituições de ensino superior no Brasil, nas universidades e institutos superiores no Paraguai, nas instituições universitárias na Argen-tina e no Uruguai, os títulos de graduação e de pós-graduação reconheci-dos e credenciados nos Estados Partes, segundo procedimentos e critérios a serem estabelecidos para a implementação deste Acordo. Artigo Terceiro: Os títulos de graduação e pós-graduação referidos no ar-tigo anterior deverão estar devidamente validados pela legislação vigente nos Estados Partes.

Não obstante o avanço consistente na promulgação do acordo acima suscitado, calha registrar que o mesmo peca por ser demasiadamente restrito. Os países compo-

Page 17: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

16

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

nentes do bloco perderam a excelente oportunidade de propiciarem um avanço muito maior para a integração sul regional. É que este acordo dirige-se tão somente à docên-cia, aos professores, nada mais.

Somos obrigados a relatar que mais uma vez a União Européia encontra-se léguas à frente do MERCOSUL, visto que aquele bloco, por meio da Diretiva nº 89/48/CEE, instituiu um sistema geral de reconhecimento de diplomas voltado aos profissio-nais liberais, ou de quaisquer profissões regulamentadas, e não somente para docentes, sendo, portanto, muito mais amplo.

Além do mais, algumas instituições dos Estados-membros parecem não ter entendido a importância da implementação de um Mercado Comum pela via da livre circulação de trabalhadores. Dizemos isto porque muitas faculdades, brasileiras, por exemplo, não tem aceitado de forma pacífica os títulos e graus universitários adquiridos por brasileiros nos países membros do MERCOSUL, fato este que tem obstado o pro-cesso integracionista.

Esta conduta, adotada por algumas universidades, é ilegal, diante da ratificação pelo ordenamento jurídico nacional do Acordo de Admissão de Títulos e Graus Univer-sitários para o Exercício e Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do MERCOSUL. Inobstante isto, muitas universidades continuam negando o reconhecimento de graus universitários obtidos no MERCOSUL, forçando, em face desta conduta antijurídica, muitos brasileiros a recorrerem às vias judiciais, conforme constata-se na ementa dos acórdãos abaixo colacionados:

ENSINO. CURSO DE DOUTORADO EM UNIVERSIDADE ESTRAN-GEIRA. VALIDAÇÃO DO DIPLOMA. REGISTRO APENAS PARA FINS DE DOCÊNCIA. TEMPESTIVIDADE DO APELO. É de se reco-nhecer a tempestividade do apelo, em razão dos autos terem sido afasta-dos do cartório em duas oportunidades, sendo que, do contrário, poder-se-ia prejudicar o trabalho desenvolvido pela parte apelante. Tratando-se de revalidação como registro apenas para fins de docência, é de se prestigiar o Acordo Internacional, haja vista o depósito de sua ratificação expressa pelos países participantes. (STJ, Resp. nº 1.126.731 - PR - 2009/0042475, Min. Hermam Benjamin). (BRASIL, 2009)EMBARGOS INFRINGENTES. RECONHECIMENTO DE CURSO DE DOUTORADO APENAS PARA FINS DE DOCÊNCIA. DESNECESSI-DADE DE REVALIDAÇÃO. POSSIBILIDADE. É possível o registro de título de curso de doutorado apenas para fins de docência de forma automática, sendo desnecessário o processo de revalidação, imprescindí-vel apenas a comprovação do depósito de ratificação expressa pelos paí-ses participantes do Acordo Internacional. (TRF 4ª, Bem. Infringentes nº 2008.70.00.009800 - PR. Rel.: Juiz Federal Hermes S da Conceição Jr). (BRASIL, 2008)

Para que o MERCOSUL avance no sentido da livre circulação de trabalhado-res, acreditamos que, guardadas as peculiaridades regionais, cabe lançar o olhar para as políticas e legislações que vem sendo implantadas no âmbito da União Européia, tais como: igualdade tratamento entre os trabalhadores, sem qualquer tipo de discriminação

Page 18: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

17

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

em razão da sua nacionalidade; garantia de preferência aos trabalhadores do MERCO-SUL, desde que em igualdade de condições técnicas, em detrimento dos trabalhado-res de terceiros Estados; direito de residência garantido não só aos trabalhadores, mas também aos seus familiares; e a instituição de um sistema geral de reconhecimento de diplomas.

Podemos dizer que a ordem jurídica vigente no MERCOSUL, assim como as práticas administrativas próprias dos Estados-membros, não correspondem propriamen-te ao que tem sido apregoado pelo Direito Internacional, nem há alcançado a evolução própria do Direito Comunitário. Encontra-se em uma situação intermediária, própria do direito da integração primário, em florescimento.

3.2. A seguridade social no MERCOSUL.

Fábio Zambitte Ibrahim (IBRAHIM, 2007, p. 9) define a seguridade social:

[...] como a rede protetiva formada pelo Estado e particulares, com contri-buições de todos, incluindo parte dos beneficiário dos direitos, no sentido de estabelecer ações positivas no sustento de pessoas carentes, trabalha-dores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um padrão mínimo de vida.

Este conceito é suficiente para demonstrar a relevância da matéria, em se tra-tando de processo integracionista que pretende a livre circulação de pessoas e a garantia de direitos ao trabalhador migrante, o que é objeto do tópico em estudo. Não resta dúvida que livre circulação e direito à Seguridade Social do trabalhador são assuntos conexos e estão estritamente vinculados.

O tema sempre mereceu atenção dos organismos internacionais, tendo a re-solução nº 159/1990 da Assembléia Geral das Nações Unidas aprovado a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Trabalhadores Migrantes e de seus familiares, sendo considerado trabalhador toda pessoa que vá realizar, realize ou tenha realizado uma atividade remunerada num Estado do qual não seja nacional.

No mesmo passo, a Organização Internacional do Trabalho não ficou para trás, tanto que por meio da Convenção nº 102/52 (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1952) estabeleceu normas mínimas sobre a seguridade social. Esta convenção inovou no plano internacional em face da sua proposta de definir de forma generalista a seguridade social, de tal forma que cada Estado do globo pudesse ser alcançado, mesmo diante das peculiaridades de cada um deles. Comungando do enten-dimento aqui esposado, Nicolas Valticos (1977, p. 359):

Enquanto cada uma das convenções anteriores tratava de uma ramo par-ticular dos seguros sociais e de um grande setor da atividade econômica (indústria ou agricultura, por exemplo), a Convenção nº 102 tomou por base o princípio de um sistema geral de seguridade social que englobasse o conjunto das eventualidades e das prestações e se ampliasse gradual-mente a toda a população.

Page 19: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

18

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

Apesar do aludida importância do assunto, um simples deitar de olhos sobre o Tratado de Assunção, que instituiu o MERCOSUL, é bastante para perceber que a seguridade social não foi regulada de forma efetiva pela mesmo, possuindo no máximo referências vagas, como é o caso do topoi justiça social, ou então, e essa é a melhor refe-rência que podemos encontrar, a instituição de um subgrupo de trabalho com o objetivo de debater as Relações de trabalho, emprego e seguridade social.

Em que pese esta constatação, afigura-nos importante destacar que existem di-versos protocolos, convênios e acordo no âmbito do América do Sul que antecedem a própria criação do MERCOSUL e que ainda encontram-se vigentes, como é o caso do Protocolo sobre Relações de Trabalho e Previdência Social Brasil-Paraguai (Itaipu) e do Acordo de Previdência Social Brasil-Uruguai.

O Protocolo sobre Relações de Trabalho e Previdência Social Brasil-Paraguai (Itaipu) (BRASIL, 1974), estabelece normas jurídicas aplicáveis aos trabalhadores con-tratados em Itaipu, independentemente de sua nacionalidade.

O Acordo de Previdência Social Brasil-Uruguai (BRASIL, 1980), que está consubstanciado no Decreto nº 85.248/1980, deverá ser executado pelas instituições previdenciárias de ambos os países, assim como deverá ser aplicado aos trabalhadores uruguaios residentes no Brasil e aos brasileiros residentes no Uruguai, possuindo ambos os mesmo direitos e obrigações dos nacionais.

Com o desiderato de harmonizar e coordenar as políticas sobre a legislação previdenciária no âmbito do MERCOSUL, Dromi, Ekmekdjian, e Rivera (1995, pp. 468), defendem a instituição dos seguintes princípios: a) igualdade de tratamento entre os cidadãos dos Estados-membros; b) conservação dos direitos em curso de aquisição; c) critério “pro rata temporis”, para distribuir a carga de benefícios de forma proporcio-nal ao período em que o trabalhador tenha permanecido em cada país; d) conservação dos direitos adquiridos independentemente da mudança de residência; e) colaboração administrativa entre as instituições administrativas dos diversos países; f) e a proibição de acumulação de benefícios, exceto se de regimes voluntários.

Mais uma vez, entendemos que a experiência da União Européia deverá servir de parâmetro para a evolução legislativa e principiológica do Mercado Comum do Sul. É cabível relembrar do sistema europeu: a) unicidade legislativa por ocasião de determi-nar a legislação material aplicável a respeito de seguridade social; b) não discriminação por razão da nacionalidade; c) exportação de prestações; d) acumulação de prestações; e) totalização dos períodos cotizados.

Page 20: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

19

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

4. O DUMPING SOCIAL ENQUANTO ENTRAVE À LIVRE CIRCULAÇÃO DE TRABALHADORES.

Uma das questões frequentemente levantadas quando se discute o problema do impacto da integração econômica sobre as relações de trabalho é o do chamado “dum-ping” social.

Nas acertadas palavras de Sérgio Pinto Martins (2007, p. 1-2):

A expressão dumping social passou a ser mais usada durante a rodada do Uruguai, em que se discutiram custos de mão de obra. No dumping social as empresas procuram obter competitividade de seus produtos, mediante diminuição de condições ou de direitos trabalhistas dos empregados, com a finalidade de colocar o produto mais barato no mercado.

Num sentido amplo, busca-se atribuir à terminologia o sentido de uma grave violação aos direitos sociais, notadamente aqueles de viés trabalhistas, tais como pa-gamento de salários diminutos e precariedade das condições de labor, vez que estas infrações tornam-se uma arma de redução de custos que aumentam a competitividade no mercado comum.

A possibilidade de dissonâncias nos ordenamentos jurídicos e respectivas car-gas sociais poderão provocar, em nome da competitividade, a transferências de em-presas de um Estado para outro em busca de mão de obra mais em conta; ou mesmo a circulação de trabalhadores procurando Estados com maiores proteções sociais e me-lhores salários e, finalmente, não se descarte a possibilidade de governos serem levados a permitir, ou até mesmo incentivar práticas de rebaixamento de padrões trabalhistas fundamentais como estratégia de atração de novas empresas. A situação, de certa forma, em muito se assemelha à indesejável guerra fiscal, disputa predatória e inconseqüente entre governos que cortejam a instalação de empresas em seus respectivos territórios, em detrimento de outros.

Acreditamos que, em quaisquer dos casos, uma possível solução seria a har-monização de normas, que, por óbvio não se confunde com unificação, hipótese invi-ável, pelo menos em sede de relações de trabalho. No que se refere ao MERCOSUL, o Tratado de Assunção prevê, em seu artigo 1º, “o compromisso dos Estados-partes de harmonizar suas legislações nas áreas pertinentes.”

Dromi, Ekmekdjian, e Rivera (1995, p. 470-471) possuem posição doutrinária no mesmo sentido da que estamos defendendo, pois defendem que a unificação é prati-camente impossível, ao passo que a harmonização, por ser uma solução intermediária, é recomendável, senão vejamos:

O direito do trabalho tem uma característica específica, uma evolução histórica, legislativa, jurisprudencial e, em cada país alcança graus de

Page 21: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

20

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

desenvolvimento distintos. Tudo aparece, pois, como obstáculo para a pretendida unificação. A unificação constituiria um grau máximo de uni-formização: absoluta igualdade de cargas sociais nos diferentes países.

A propósito, a harmonização legislativa foi justamente a via seguida pela União dos Estados Europeus, onde as normas comuns são assentadas, precipuamente, em di-retrizes sobre temas específicos (despedidas coletivas, proteção de créditos trabalhistas, seguridade e higiene do trabalho, igualdade de tratamento entre homens e mulheres), deixando livres os países membros no que tange à determinação de regras específicas para a maior parte das questões.

5. CONCLUSÃO.

Como foi apreciado, a criação efetiva de um mercado comum, quer na União Européia, quer no MERCOSUL, passa necessariamente pela possibilidade de livre cir-culação de trabalhadores entre os Estados-membros.

Ocorre que a abertura das fronteiras dos países componentes do bloco regional não pode dar-se abruptamente, porque pressupõe, a nosso ver, uma certa uniformização da carga social trabalhista disposta no ordenamento laboral de cada um dos Estados-membros, sob pena de dar-se lugar ao detestável dumping social.

Em tal contexto, cabe aos candidatos ao mercado comum a promulgação de uma Carta Social, que representa a declaração formal, por meio da qual se promulgam determinados direitos de nível comunitário, reconhecendo-se alvos ou objetivos deline-ados a serem alcançados em relação aos aspectos trabalhista ou social.

Os europeus produziram as mais importantes Cartas Sociais existentes até o momento, quais sejam a Carta Social de Turim, de 1961, e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989.

A Carta Social de Turim contém uma completa relação dos direitos sociais: direito ao trabalho e a condições laborais equitativas; à sindicalização e negociação coletiva; à proteção de menores e mulheres no trabalho; à formação profissional; à pro-teção da saúde; à seguridade social, etc.

A outra, denominada Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, aprovada no Conselho Europeu de Stratsburgo, constitui-se uma declaração política que possui normas programáticas, sendo, destarte, desprovida de obrigatoriedade jurídica, mas que nem por isso perde sua importância, até porque seu peso político no espaço social europeu impressiona.

Entre os diversos considerandos desta carta, destaca-se o objetivo de consagrar e concretizar os progressos realizados no âmbito social, pela ação dos estados-mem-bros, assim como de garantir, em níveis adequados, o desenvolvimento dos direitos sociais dos trabalhadores da Comunidade Européia.

Diante das já citadas Cartas Sociais existentes na União Européia, assim como

Page 22: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

21

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

das diversas disposições legais existentes no tratado institutivo desta comunidade, a relembrar: igualdade tratamento entre os trabalhadores, sem qualquer tipo de discri-minação em razão da sua nacionalidade; garantia de preferência aos trabalhadores do bloco regional, desde que em igualdade de condições técnicas, em detrimento dos traba-lhadores de terceiros Estados; direito de residência garantido não só aos trabalhadores, mas também aos seus familiares; e a instituição de um sistema geral de reconhecimento de diplomas. Reconhecemos a existência de um real mercado comum.

De outro lado, não conseguimos vislumbrar a mesma conclusão em relação ao Mercosul. É que este bloco deixa a desejar não só em relação aos dispositivos legais comunitários, mas também em relação a normas com caráter programático, o que de-monstra inexistir firme intenção, ao menos por enquanto, de propiciação de uma livre circulação de trabalhadores.

Nem mesmo uma Carta Social que almeje harmonizar normas de caráter traba-lhista existe no MERCOSUL. Aspecto fático que destoa daquilo que vem sendo defen-dido por alguns estudiosos do assunto, os quais tem preconizado para o MERCOSUL a adoção de uma Carta Social, como é o caso de Oscar Ermida URIARTE (1996, p. 71-72)

É necessário pontuar que as lideranças sindicais do cone sul têm insistido na promulgação desta Carta Social, a qual seria baseada nas principais convenções da Or-ganização Internacional do Trabalho, entretanto, até o momento esta iniciativa não ob-teve aceitação dos Estados-partes envolvidos.

Nesta análise comparativa entre a União Européia e o MERCOSUL, sob o prisma da livre circulação de trabalhadores, somos levados a arrematar que o cone sul, guardadas as peculiaridades regionais, deve se espelhar nas diretivas e políticas imple-mentadas pela União Européia no que tange à livre circulação de trabalhadores, pois somente assim poder-se-á chegar ao almejado estágio de um mercado comum do sul.

Em remate, nas palavras de Domínguez y Rosário (2006, p. 254):

Es de interés para nuestra región tener en cuenta la orientación del mo-delo europeu, que constituye poder político sobre bases no se limitan a las de la economía de mercado sino que parten del respeto a la libertad, la democracia, los derechos humanos, las libertades fundamentales y el Estado de Derecho (art. 6 del Tratado de la Unión Europea), lo que per-mite generar mayor cohesión social y bienestar general.

INTEGRATIONIST PROCESSES OF ECONOMIC BLOCS, FREE MOVEMENT OF WORKERS AND THEIR SOCIAL SECURITY: COMPARATIVE ANALYSIS OF THE EUROPEAN UNION AND MERCOSUR.

Page 23: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

22

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

ABSTRACTThe aim of this short review is to assess the interactions that occur within the integratio-nist processes of economic blocks around the free movement of workers and their social security, on the assumption that without this freedom cannot contemplate the integra-tion of an economic block, enter the environments of the European Union and Merco-sur. This is an exploratory research conducted by a literature and document review in the environment of the five freedoms of the integration process of any economic bloc, theoretically founded by North American constitutionalists, based on free-commerce clause of its constitution. Was also carried out a comparative analysis to prove that the European Union has come into this understanding, both already built several provisions that make concrete the free movement of workers. On the other hand, the same fact does not occur with the Mercosul, a circumstance that has even more cluttered the emergence of a genuine common market in the southern cone. The article concludes that the Sou-thern Cone, saved the regional peculiarities, must reflect the policies implemented by the European Union regarding the free movement of workers, for only thus will be able to reach the desired stage of a common market in the south.

Keywords: Mercosur. The European Union. Free movement of workers.

REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5ª ed. ver. ampl. São Paulo: LTr, 2009.

BARROS JÚNIOR, Cássio Mesquita. Circulação de trabalhadores no Merco-sul. In: Temas de integração com enfoques no Mercosul. Obra coletiva coordenada por Carlos Alberto Gomes Chiarelli. São Paulo: LTr, 1997, Vol. I, pp. 182.

BATISTA, Luiz Olavo. Impacto do Mercosul sobre o sistema legislativo brasi-leiro. In: Mercosul: das negociações à implantação. Obra coletiva organizada por: Luiz Olavo Batista, Araminta de Azevedo Mercadante, Paulo Borba Casella. São Paulo: LTr, 1994.

BRASIL. Congresso. Senado Federal. Decreto nº 74.431, de 19 de agosto de 1974. Promulga o Protocolo sobre Relações de Trabalho e Previdência Social Bra-sil - Paraguai. Disponível em < http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=74431&tipo_norma=DEC&data=19740819&link=s > Acesso em Acesso em 06 Jul. 2011.

BRASIL. Congresso. Senado Federal. Decreto nº 85.248, de 13 de outubro de 1980. Promulga o Acordo de Previdência Social entre o Governo da República Federa-

Page 24: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

23

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

tiva do Brasil e o Governo da República Oriental do Uruguai. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=85248&tipo_norma=DEC&data=19801013&link=s>. Acesso em 06 Jul. 2011.

BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Tratado Mercosul. 1991. Dispo-nível em http://www2.mre.gov.br/dai/trassuncao.htm. Acesso em: 06 Jul. 2011.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Decreto Nº 5.518, de 23 de Agosto de 2005. Promulga o Acordo de Admissão de Títulos e Graus Universitários para o Exercício de Atividades Acadêmicas nos Estados Partes do Mercosul. Dispo-nível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5518.htm>. Acesso em 06 Jul. 2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos Infringentes nº 2008.70.00.009800-1/PR. Relator : Juiz Federal Hermes S da Conceição JR. Reconhe-cimento de Curso de Doutorado apenas para fins de docência. Desnecessidade de re-validação. Possibilidade. Disponível em < http://www.iunib.com/arquivos/STJ_Julga-do_FavorAvel.pdf>. Acesso em 06 Jul. 2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 1.126.731 - PR (2009/0042475-3). Relator : Ministro Herman Benjamin. Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, “a”, da Constituição da República, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assim ementado (fl. 382). Disponível em < http://www.iunib.com/arquivos/STJ_Julgado_FavorAvel.pdf>. Acesso em 06 Jul. 2011.

CASELLA, Paulo Borba. Comunidade européia e seu ordenamento jurídico. 1ª ed. São Paulo: LTr, 1994.

CHIARELLI, Matteo Rota. A livre circulação de trabalhadores. In: Temas de integração com enfoques no Mercosul. Obra coletiva coordenada por Carlos Alberto Gomes Chiarelli. São Paulo: LTr, 1997, Vol. I.

DOMÍNGUEZ, Moya; ROSÁRIO, Maria Teresa del. Derecho de la Integraci-ón. 1ª ed. Buenos Aires: Ediar, 2006.

DROMI, Roberto; EKMEKDJIAN, Miguel; RIVERA, Júlio. Derecho comu-nitário – sistemas de integración – regimen del Mercosur. Buenos Aires: Ed. Ciudad Argentina, 1995.

DUARTE, Maria Luísa. A liberdade de circulação de pessoas e a ordem pública no direito comunitário. Coimbra: Coimbra, 1992.

El Consejo de Las Comunidades Europeas. Directiva 89/48/CEE del Con-

Page 25: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

24

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

sejo, de 21/12/1988. Disponível em < http://www.reicaz.es/textosle/ue/direc-tiv/19890048/19890048.htm>. Acesso em 04 Jul. 2011.

GRANILLO OCAMPO, Raúl. Derecho público de la integración. 1ª ed. Bue-nos Aires: Ábaco de Rodolfo Depalma, 2007.

IBRAHIM, Fábio Zambite. Resumo de direito previdenciário. 8ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007

MARTINS, Sergio Pinto. Globalização e Emprego. Jornal Carta Forense. 2 de abril de 2007. Disponível em < http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=722>. Acesso em 07 Jul. 2011.

MELGAR, Alfredo Montoya; MORENO, Jesús M. Galiana; NAVARRO, An-tonio V. Sempere. Derecho social europeu. Madrid: Tecnos, 1994.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Mercosul e direito do trabalho. In: Merco-sul, seus efeitos jurídicos, econômicos e políticos nos Estados-membros. Obra coleti-va organizada por Maristela Basso. Porto Alegre: Livraria do advogado editora, 1997, pp.453.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (Escritório no Bra-sil). Convenção n. 102. Aprovada na 35ª reunião da Conferência Internacional do Tra-balho (Genebra — 1952). Normas Mínimas da Seguridade Social. Disponível em: < http://www.oit.org.br/node/468> Acesso em 06 Jul. 2011.

PARLAMENTO EUROPEU. 20 de Out. de 2004. Comunicado aos Membros. disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2004_2009/documents/cm/544/544084/544084pt.pdf>. Acesso em 04 Jul. 2011.

SILVA, Roberto Luiz. Direito comunitário e da integração. Porto Alegre: Sín-tese, 1999.

União Européia. Versão consolidada do Tratado da União Européia. Jornal Ofi-cial da União Européia. 29 de dez de 2006. PT. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/pt/oj/2006/ce321/ce32120061229pt00010331.pdf. Acesso em 03 Jul. 2011.

URIARTE, Oscar Ermida. Mercosur y derecho laboral. Montevidéo: Fundaci-ón de Cultura Universitária, 1996.

VALTICOS, Nicolas. Derecho internacional del trabajo. Madrid: Tecnos, 1977.

Page 26: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

25

Processos Integracionistas Dos Blocos Econômicos, Livre Circulação De Trabalhadores E Sua Seguridade Social: Análise Comparada União Européia E Mercosul.

Antonio Raimundo Pereira Neto - Professor de Direito do Trabalho e Direito Civil da UNIME, Bahia, Brasil. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidad del Museo Social Argentino. Integrante da turma ANAMAGES 07 e Membro da Academia de Letras Ju-rídicas do Sul da Bahia-ALJUSBA. Endereço postal: Av. Cinquentenário, 1379, Térreo, Centro, Itabuna, Bahia, C.E.P.: 45.600-006. Eletrônico: [email protected]

Page 27: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

26

Revista Jurisplan - 2012

O ESTADO DE EXCEÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO PÓS-TERRORISMO

Daniel Ivo Odon

RESUMOEste artigo de revisão curta tem por propósito apresentar a relação paradoxal existente entre o avanço da sociedade internacional e seus novos grilhões com a tentativa por parte de alguns Estados de recrudescer a envergadura atribuída aos Direitos Humanos em época de crise. A metodologia usada foi uma revisão bibliográfica e documental nas principais decisões sobre o assunto e na jurisprudência pertinente. O horizonte teóri-co acompanha as principais teorias sobre terrorismo e atos de exceção, iluminando os recentes acontecimentos que mudaram a história do mundo. Conclui o trabalho que é missão da sociedade internacional, aberta, paritária e descentralizada, alcançar uma es-tabilidade entre o estado de exceção e o terrorismo, e, valendo-se dos operadores do Di-reito, tentar incessantemente reunir o que abruptamente se separou, o Estado e o Direito.

Palavras-chave: Estado de Exceção. Terrorismo. Estado. Direito.

1. INTRODUÇÃO.

O Direito Internacional substancialmente se desenvolveu com o fim do feuda-lismo na Europa que, com o surgimento dos Estados soberanos, fez surgir a necessidade de normas internacionais para pautar a relação entre eles. O direito internacional, por-tanto, emergiu da vontade dos Estados em relacionarem-se.

Porém, assim como em todo ramo do Direito, o Direito Internacional foi evo-luindo ao longo do tempo e, para atender à marcha do processo civilizatório, o vo-luntarismo do Direito Internacional foi progressivamente perdendo seu espaço para o instituto da cooperação, que passou a conduzir as relações internacionais de forma in-tegral a partir do final do século XX. Consoante anunciado de Norberto Bobbio (2007), o Direito como um todo sofreu grande estruturação no século XX, deixando à cargo do século XXI a missão de lhe conferir funcionalidade.

O Direito Internacional contemporâneo, por conseguinte, se encontra em fran-ca expansão. A sociedade internacional atual é vista como universal, aberta, paritária e descentralizada, caracteres inexistentes até a metade do século passado, onde os prota-gonistas do Direito Internacional eram apenas 43 Estados (21 americanos, 21 europeus e 1 asiático, o Japão), pois nessa época somente se consideravam atores os Estados tidos como civilizados. (GUERRA, 2010)

Page 28: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

27

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

Diferentemente de outrora, estas novas feições impedem o absoluto exercício do voluntarismo e mitigam a soberania dos Estados em prol do cooperativismo. Do mesmo modo, a evolução do Direito Internacional tem gerado cada vez mais a necessi-dade da institucionalização, isto é, a criação de instituições capazes de reger as relações entre os Estados de modo pacífico, hoje representadas pelas organizações e tribunais internacionais. (SIMPSON, 2004)

O presente trabalho busca mostrar a relação paradoxal existente entre o avanço da sociedade internacional e seus novos grilhões com a tentativa por parte de alguns Estados de recrudescer a envergadura atribuída aos Direitos Humanos em época de crise. Nestas situações, o Estado e o Direito entram em franca oposição, entoando um processo histórico-civilizatório marcado pela guerra e pelo temor.

A perspectiva do presente trabalho leva em consideração os ataques terroristas iniciados a partir de 11 de setembro de 2001 e suas conseqüências. Este trágico evento propiciou, de maneira reacionária e atemorizada, o direcionamento de uma parcela de Estados para uma política de segurança que suprime direitos conferíveis ao grupo social tido como inimigo como árabes e muçulmanos.

Ocorre que a atual guerra ao terror1 não possui tempo nem espaço definido e se mostra, a cada dia, mais descentralizada e globalizada. Então, este cenário de anormali-dade vem se consolidando num estado de exceção permanente (ZBAR, 2008, p 26-32). Diante da ameaça de dissolução das estruturas públicas, tem-se readaptado a teoria de Carl Schmitt sobre estado de exceção, em que o soberano decide sobre os meios neces-sários ao restabelecimento da normalidade.

Diferentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos e as Cortes Internacio-nais de Direitos Humanos vêm paulatinamente sopesando valores jurídicos que enal-tecem, um mínimo que seja, o Estado de Direito em momentos de crise. Esta constan-te tensão entre Estado e Direito, balizada pelo apreço doutrinário-científico de Carl Schmitt e Giorgio Agamben, constitui a temática do presente trabalho. Sem pretensão de se trazer uma solução à instabilidade político-jurídica que se apresenta no ambien-te internacional, primou-se por buscar elementos fáticos atuais que servem de insumo conceitual para o estudo do constitucionalismo temperado pelo estado de exceção na era moderna.

2. O ESTADO DE EXCEÇÃO SEGUNDO CARL SCHMITT.

A Teoria do Estado de Exceção lançada por Carl Schmitt ocupou o espaço cons-titucional criado pela Constituição de Weimar de 1919, na Alemanha. Aquele diploma constitucional surgiu no ordenamento jurídico alemão com o intuito de reestruturar e reerguer um Estado que foi destruído pela derrota obtida na Primeira Guerra Mundial.

1 A chamada “Guerra ao Terror” parece ter sido introduzida forçosamente no Ordenamento Jurídico, graças ao empenho das grandes potências desejosas em combater o crime usando seus poderosos arsenais bélicos. (LUCENA, 2008, p. 12).

Page 29: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

28

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

No pós-guerra, as instituições alemãs estavam esmigalhadas, boa parte da po-pulação masculina dizimada, havia grande quantidade de soldados feridos que depen-diam do sistema de saúde público, o sistema de ensino estava se recuperando do tempo perdido pela guerra, não havia oportunidades de trabalho para todos porque o setor privado estava despedaçado, não havia moradia para todos. Assim, a Constituição de Weimar nasceu dotada de substanciais programas sociais, incumbindo o Chefe do Es-tado da notável missão de administrar o país e resgatá-lo, dando-lhe, por esta razão, grandes poderes. (WEITZ, 2007)

Em 1933 a Alemanha estava completamente recuperada e, o art. 48 da Consti-tuição de Weimar que dava amplos poderes e plena liberdade para o Chefe do Executivo conduzir o Estado, foi reinterpretado como forma de fomentar o sentimento crescente no povo alemão: a homogeneização da sociedade pela raça ariana e implantação do regime totalitário pelo Chefe de Estado, o Fuhrer, paralelamente ao fascismo que domi-nava na Itália pelas mãos de Mussolini. (GELLATELY, 2007)

O eminente jurista que permeou o constitucionalismo alemão com interpre-tações condizentes com a ideologia nazista foi Carl Schmitt. Sua doutrina enxerga o estado de exceção como meio adequado à definição jurídica de soberania. Isto porque o estado de exceção se apresenta em situação de ameaça à unidade política do Estado – com risco à sua própria existência – que compele, pela sistemática lógico-jurídica, à tomada de decisão por um soberano acerca da suspensão do Direito enquanto ferramen-ta política à autoconservação do Estado. Toda ordem, por conseguinte, repousa em uma decisão – por isso chamada de decisionismo jurídico (SCHMITT. 2009, p. 108-134 ).

A partir do conceito político de Schmitt (ibid), entender o Estado como unidade política significa entendê-lo como unidade pacificada por meio do político. O objetivo do Estado é produzir dentro do seu território uma pacificação completa, pressuposto ne-cessário para a vigência do Direito. Logo, o Estado, como unidade política, e enquanto existir como tal, tem a capacidade para determinar por si mesmo quem é amigo e quem é inimigo – compreendido não como um oponente pessoal, mas como um adversário público, que desafia a existência da unidade política, traduzindo-se numa ameaça real à existência continuada do povo concreto (BERCOVICI, 2004, p. 70).

Seguindo esta concepção, o sentido concreto da controvérsia sobre soberania se dá sobre aquele que decide, em caso de conflito, em que consiste o interesse público e do Estado, a segurança e a ordem pública – para ele, a soberania não consiste no mo-nopólio da coerção ou da dominação, mas da decisão.

Deste modo, definir soberania como decisão sobre o estado de exceção signifi-ca dizer que o ordenamento está à disposição de quem decide. O soberano, assim, está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico, pois ao utilizar o seu poder de suspender a validade do direito – cuja determinação positiva encontra-se na própria Constituição, coloca-se legalmente fora da lei (ibid, p. 65-67).

Ademais, ao conferir a competência de suspensão do Direito ao soberano, a Constituição o faz sem lhe impor qualquer controle sobre suas ações e sem partilhar o poder de decisão sobre a ocorrência do extremus necessitatis casus e o que se deve fazer para saná-lo. Defende, por isso, que a ordem jurídica, como toda ordem, repousa em

Page 30: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

29

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

uma decisão e não em uma norma. Então, ao suspender o Direito para que o Estado permaneça, o soberano adquire

poder ilimitado, tendo em vista que suas decisões refletem uma situação excepcional a qual a ordem jurídica não oferece resposta. Contudo, subsiste no Estado uma ordem, ainda que não uma ordem jurídica – o que distingue o estado de exceção da anarquia e do caos. A simples existência do Estado passa a manter uma supremacia sobre a valida-de da norma jurídica (SCHMITT, 2006).

O estado de exceção, para Schmitt (Ibid), existe para criar a situação na qual o direito pode valer. A exceção é o caso excluído da norma geral, mas não está fora da relação com a norma (BERCOVICI, 2004, p. 66). A norma se aplica à exceção desapli-cando-se, reiterando-se desta, afinal a situação de emergência permanece acessível ao conhecimento jurídico. Ambos os elementos – norma e decisão – mantêm-se no âmbito jurídico.

Há, portanto, uma distinção entre a norma e sua aplicação: a aplicação da nor-ma é suspensa, mas a norma, enquanto tal permanece (BERCOVICI, 2004, p. 67). É uma força de lei sem lei. No caso da exceção, o Estado suspende o direito em virtude de um direito de autoconservação. (ibidem)

Schmitt (2006, p. 11-16) sabe perfeitamente que o estado de exceção, enquanto realiza a suspensão de toda ordem jurídica, parece escapar a qualquer consideração de direito, de modo que um estado de exceção regulamentado por lei se traduziria numa ficção. No entanto, é fundamental que haja a garantia de uma relação entre o estado de exceção e a ordem jurídica, ou seja, o projeto ditatorial implica a referência a um contexto jurídico.

Neste contexto que Schmitt (ibidem) afirma que o soberano tem o monopólio da decisão última, no que residiria a essência da soberania do Estado, pois tal decisão sacramentaria a existência ou não da situação de normalidade. O soberano é o garan-tidor da situação na sua completude, o que enaltece a natureza da soberania estatal, definida juridicamente não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como mo-nopólio decisório (PARDO, 2007, p. 25-28) uma vez que seus termos convergem-se ao âmago da autoconservação do Estado.

A teoria schmittiana propõe, portanto, uma articulação paradoxal entre o estado de exceção e a ordem jurídica. O que deve ser inscrito no direito é algo essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica. Esta é a leitura realizada por Agamben (2004, p. 54) quando se defronta com a passagem de Sch-mitt (2006, p. 13) que diz que “o estado de exceção é sempre algo diferente da anarquia e do caos e, no sentido jurídico, nele ainda existe uma ordem, mesmo não sendo uma ordem jurídica”.

O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar possível a aplicação, no sentido de que para aplicar uma norma é preciso suspender sua aplica-ção. Introduz no direito um espaço anômico para tornar possível a normatização efetiva do real por meio do soberano, com força de lei, mas sem lei.

Nesta acepção, os elementos constitucionais que afetam a unidade política do Estado, limitando-o, como os direitos fundamentais, a separação de poderes e o Estado

Page 31: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

30

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

de Direito, não são políticos, pois relativizam a unidade do Estado em benefício de inte-resses individuais (BERCOVICI, 2004, p. 76). Um regime constitucional não sobrevive aos ataques se não forem retirados de seus inimigos as proteções jurídicas constitucio-nalmente asseguradas.

O posicionamento de Schmitt, entretanto, serviu de projeto justificador da di-tadura (extra) constitucional adotada por Hitler. Em boa parte de sua carreira, sustentou que o Chefe de Estado da República de Weimar era o guardião da Constituição, caben-do-lhe o manejo dos poderes totalitários a qualquer preço.

No campo internacional, esta mudança de política passou imune, pois o Direito Internacional era elitista - somente 43 Estados ditos civilizados dialogavam - e restrito, isto é, somente alguns Estados eram considerados sujeitos do Direito Internacional e cabia a eles ditar sua regência sobre os direitos individuais fundamentais sem qualquer interferência externa (POSSE, 1990, p. 46-47).

3. A JURISPRUDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS NO ESTADO DE EXCEÇÃO.

No século da estruturação do Direito, os Estados Unidos criaram jurisprudên-cias com reflexos transfronteiriços que esboçaram os traços característicos de uma teoria do Estado de Exceção, semelhante àquela idealizada pelos alemães no Estado Nazista.

A teoria do Estado de Exceção surge no mundo jurídico para responder às se-guintes indagações: a Constituição e os direitos nelas consagrados efetivamente prote-ge, ou não, tanto na guerra como em tempo de paz, todas as classes de homens a toda hora e sob todas as circunstâncias? Durante o período de guerra, pode, ou não, o clamor de um povo exaltado e as pretensas necessidades militares do governo chancelar a sus-pensão de direitos humanos?

Na linha histórica dos Estados Unidos, há momentos em que essas indagações foram tratadas pela Suprema Corte ao decidir o destino de três jovens americanos de descendência japonesa em meados da Segunda Guerra Mundial. Foram eles Gordon Hirabayashi, Minoru Yasui e Fred Korematsu.

Logo após o ataque do Império Japonês à Pearl Harbor, o Presidente Franklin Roosevelt editou, em 19 de fevereiro de 1942, a Executive Order 9066, ato normativo da seara do Executivo2 , que autorizava a Secretaria de Guerra designar zonas militares que sofreriam exclusões de quaisquer ou todas as pessoas. Inicialmente, executaram-se ordens de exclusão que se traduziam em toque de recolher noturno para as pessoas des-cendentes de japoneses e, meses depois, boa parte de americanos-japoneses que vivia na costa oeste do país estavam agrupados em centros de realocação, que, na opinião de Irons (1990), consistia no eufemismo do governo para os campos de concentração cria-

2 A Executive Order é privativa do Presidente da República e nasce com força de lei ou a ela equiparada, sendo utilizada em casos urgentes. (SOUTO, 2008, p. 93)

Page 32: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

31

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

dos pelos Estados Unidos durante a guerra. Inclusive, foram igualmente considerados como campos de concentração pelos governadores, procuradores estaduais e oficiais do Exército dos Estados da costa oeste do país quando se reuniram para planejar e opera-cionalizar o internamento (IRONS, 1993).

Estes campos de isolamento aprisionaram, por três anos, em barracas de pape-lão, estábulos, rodeados por arames farpados e vigiados por soldados armados, mais de 120 mil pessoas, sendo sua maioria constituída de cidadãos americanos de descendência japonesa que, por sinal, nunca foram acusados de crime algum. As afinidades raciais dos americanos-japoneses bastavam para uma presunção de deslealdade para com a nação estadunidense, ao subterfúgio da necessidade militar.

Neste cenário, três jovens cidadãos americanos, de descendência japonesa, re-solveram desafiar as ordens militares e levar o debate da constitucionalidade do con-finamento à Suprema Corte dos Estados Unidos. Todos perderam suas pretensões de liberdade na primeira e segunda instância.

Nos casos de Hirabayashi e Yasui, apreciados pela Corte em 1943, cristalizou-se o entendimento de que o perigo de espionagem e sabotagem pelos americanos-japo-neses mitigou o compromisso constitucional de proteção igualitária a todos os cidadãos. Assim, os fatos e circunstâncias relevantes à defesa nacional justificam a segregação dos americanos de determinada descendência.

Digno de registro o apontamento dissidente do Justice3 Frank Murphy no jul-gamento de Hirabayashi ao ponderar que as restrições impostas aos americanos-japone-ses guardavam triste semelhança com o tratamento atribuído aos judeus na Alemanha. Contudo, convencido pelos seus pares a manter uma unidade de pronunciamento devido ao período de guerra e com o receio de ser o único voto vencido no debate constitucio-nal, alterou sua dissidência para concordância, em que pese ter preservado em suas ra-zões, a comparação dos americanos-japoneses com os judeus alemães (IRONS, 1990).

No final do ano de 1944, o caso Korematsu foi definitivamente julgado pela Suprema Corte. O Justice Hugo Black, naquela ocasião, sustentando a licitude e man-tença do confinamento, argumentou que Fred Korematsu foi aprisionado por causa da guerra com o Japão e a urgência militar exigia que todos os cidadãos de descendência japonesa fossem segregados em campos de isolamento até passar a situação de perigo. Privações, acrescentou, fazem parte da guerra, que nada mais é do que uma aglutinação de privações.

Neste julgamento, no entanto, o Justice Frank Murphy decidiu não mais apoiar a exclusão dos japoneses, como tinha feito no caso Hirabayashi. No seu posicionamen-to dissidente, então, registrou que a retirada dos americanos-japoneses de seus lares ultrapassou a fronteira da constitucionalidade e atingiu o abismo do racismo. Asseverou que as justificativas governamentais para o confinamento baseiam-se em informações insubsistentes, meias-verdades e insinuações que, durante anos, têm sido fomentadas em desfavor dos americanos-japoneses por pessoas preconceituosas, razão pela qual discordou do que estava se tornando uma legalização do racismo.

3 Justice é a nomenclatura dada aos Ministros da Suprema Corte Norte-americana.

Page 33: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

32

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

No caso Korematsu, a dissidência do Justice Murphy foi acompanhada por outros dois colegas, Owen Roberts e Robert Jackson que, na sua fundamentação, acen-tuaram que a maioria validava naquela oportunidade o princípio da discriminação racial ao subterfúgio da necessidade militar. A Corte, em dezembro de 1944, todavia, emitiu a decisão final que validava o confinamento e atos de exclusão por emergirem de um estado de guerra contra o Japão e por basearem-se no legítimo temor militar de invasão da costa oeste do país por forças hostis (HALL, 2005, p. 1063-1064).

Somente em 1983 que uma comissão designada pelo Congresso reconhece que os americanos-japoneses sofreram uma grave injustiça, produzida por preconceito ra-cial, histeria provocada pela guerra e falta de liderança política. Buscando uma repara-ção, o Congresso concedeu a cada sobrevivente dos campos de internação uma quantia de vinte mil dólares, além da reversão das condenações judicialmente imputadas. Em 1988, o Presidente Ronald Reagan proferiu um pedido nacional de desculpas pelos três anos que ficaram aprisionados em campos de isolamento, sem qualquer direito e digni-dade (SOUTO, 1990, p. 47-49).

4. CONTEXTO PÓS SEGUNDA GUERRA MUNDIAL.

Após as lições extraídas do holocausto e, em menor proporção, da reação norte-americana aos japoneses, a comunidade internacional chegou a uma inexorável con-clusão: a sociedade internacional e o Direito precisavam mudar. Ao final da Segunda Guerra Mundial se cristaliza uma crença inabalável de que os governos por si mesmos não são capazes de salvaguardar os direitos humanos, que passam a exigir garantias internacionais (DESIMONE, 2009, p. 35).

Com isso, os Estados perdem a prerrogativa de isoladamente interpretar as nor-mas internacionais em nome da cooperação e permitem a imediata universalização e abertura da sociedade internacional. Na criação da ONU, em 1945, houve a pronta adesão de 51 Estados com a quebra do critério de civilização e hoje se acumulam 192 Estados-partes. Ao mesmo tempo, autoriza-se o surgimento de novos atores (organiza-ções internacionais, o próprio indivíduo e outros) no cenário internacional que passam a participar ativamente das relações externas (efeito da descentralização), inclusive de forma paritária com os Estados (SIMPSON, 2004, p. 157).

Na mesma linha, o Direito mudou. Neste ponto, o emblemático caso do Tribu-nal de Nuremberg, criado para julgar os crimes contra a humanidade no período do Ho-locausto, teve relevante participação. Este Tribunal Internacional foi criado pelo Acordo de Londres de 1945/46 e compôs-se da França, Estados Unidos, Reino Unido e a vetusta União Soviética, com o fito de processar e julgar os grandes criminosos de guerra (na-zistas) do Eixo Europeu (GONÇALVES, 2004, p. 59-62).

Antes da Segunda Guerra Mundial o Direito era predominantemente bidimen-sional (modelo adotado por Hans Kelsen na Teoria Pura do Direito), isto é, regulava-se estritamente entre fato e norma, a consagrada dura lex, sed lex dos ordenamentos de

Page 34: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

33

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

linhagem genética romano-germânica. Não obstante, no mundo acadêmico já se falava sobre uma terceira dimensão – o valor – como forma de refinamento da Teoria do Di-reito, conforme Reale (1994, p. 118), que, em 1940, na sua cátedra, inaugurou a aborda-gem da tridimensionalidade - fato, valor e norma – elementos indissociáveis.

Entretanto, foi na edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e no julgamento de Nuremberg que a tridimensionalidade expandiu e indiscuti-velmente passou a nortear epistemologicamente o Direito. Tratava-se de um momento de exortação moral, da necessidade de se cristalizar um sistema de valores universal. Ato contínuo foram editadas as Convenções regionais de Direitos Humanos, sendo a Européia em 1950, a Americana em 1969 e a Africana em 1981, cada uma com seu Tribunal correlato.

A interpretação e aplicação dos direitos humanos, por conseguinte, passou a ser tarefa dos Tribunais internacional, não mais de forma centralizada pelos Estados. Ade-mais, franqueou-se a participação argumentativa sobre estes direitos a todos os perso-nagens de Direito Internacional, angariados pela universalidade e abertura da sociedade internacional.

Isto contribuiu imensamente para o direito tornar-se cada vez mais um ins-trumento de mudança planificada da realidade em inúmeros detalhes. Acrescentou-se ao jurista a tarefa de promover o progresso jurídico, criticando as normas vigentes e meditando sobre suas diretrizes para sua reelaboração gradual, apontando as reformas devidas e oportunas (SICHES, 1965, p. 09). Com isso, admite-se um Direito estável sem ser estático, e dinâmico sem ser frenético.

Por esta razão que Bobbio (2004, p. 45-81) considerou o século XX como a Era dos Direitos. Neste século se erigiu toda uma estrutura do Direito que, na profecia daquele jusfilósofo, sofreria seu grande desafio no século subsequente, onde se perscru-taria toda a funcionalidade do edifício do Direito arduamente erguido.

5. UMBRAL DO SÉCULO XXI.

O Século XXI, no entanto, começa de modo trágico. No dia 11 de setembro de 2001, extremistas muçulmanos colidem aviões no World Trade Center e no Pentágono, causando a morte de aproximadamente três mil pessoas. Este episódio é o suficiente para fazer os Estados Unidos iniciarem uma caçada desenfreada contra os terroristas, desencadeando uma guerra contra o terrorismo sem precedentes.

O Congresso estadunidense edita o Authorization for Use of Military Force (AUMF) – traduzido - Autorização para Uso de Força Militar - duas semanas após o fatídico 11 de setembro, que confere ao Presidente dos Estados Unidos a qualidade de Chefe das Forças Armadas (Comander-in-Chief). Subsequentemente, em 24 de outubro

Page 35: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

34

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

de 2001, o Senado decreta o USA Patriot Act, de sigla USA PATRIOT4 , do qual se ex-traem diversas providências, tal como o fortalecimento da segurança doméstica contra o terrorismo. Seu quorum de aprovação foi de 98-1 e somente o senador de Winsconsin, Russell Feingold, votou contra (COLE, 2008, p. 79).

O USA Patriot Act aumenta consideravelmente os poderes de vigilância do governo federal ao mesmo tempo em que enfraquece o controle judicial sobre estes poderes, causando uma fricção na harmonia do checks and balances (sistema de freios e contrapesos) (HENNEBEL e WAEYENBERGE, 2009, p. 208-215). Franqueia ao FBI, ainda, escutas e gravações telefônicas, acesso pleno aos registros bibliotecários de quaisquer indivíduos sem necessidade de mínima indicação de seu envolvimento em atividades terroristas. O governo igualmente pode, sem prévia autorização judicial ou contraditório, congelar todos os recursos e ativos de qualquer pessoa de sua escolha, física ou jurídica, bastando apenas a notificação de que está sob investigação, o que permitiu a administração Bush fechar diversas entidades mulçumanas de caridade no território norte-americano.

Além do fato de permitir diversas modalidades de abusos e arbitrariedades, o USA Patriot Act, nas suas disposições, estabelece que todas as condutas de cunho inves-tigativo praticadas sob sua égide são secretas. Assim, é literal e praticamente impossível um abuso cometido vir à tona. Ademais, em 2002, o governo emitiu um memorando concedendo carta branca à CIA no uso de severas táticas coercitivas nos interrogatórios, sob o argumento de que o Presidente não pode ser constitucionalmente impedido de permitir torturas em tempos de guerra. Enquanto Chefe das Forças Armadas (Coman-der-in-Chief), nenhuma lei poderia restringir-lhes as ações de guerra. As evidências extraídas dos interrogados eram obtidas por privação do sono, exposição a calor e frio extremo, humilhação sexual, indução de afogamento e outros métodos (GOLDSMITH, 2007, p. 141-176).

Passadas sete semanas do atentado, havia 1.182 “suspeitos terroristas” detidos pelo governo e, no primeiro ano de investigação, mais de 700 estrangeiros foram captu-rados e colocados em detenção preventiva, sem qualquer acusação criminal. No período de 2003 a 2005, houve mais de 140 mil medidas de segurança nacional que correspon-diam à quebra de sigilos telefônicos, bancários, religioso, de correspondência, dentre outros. Todas essas medidas forram adotadas sem qualquer necessidade de suporte pro-batório mínimo acerca da materialidade do fato ou indícios de autoria, tampouco com autorização judicial (COLE, 2008, p. 10; 65-68).

Nota-se, então, que foi esta concepção de estado de exceção que a adminis-tração Bush decidiu por aplicar e defender, reproduzindo o posicionamento político (diante de crises) adotada pela administração de Roosevelt quanto aos descendentes de japoneses. O estado de exceção passa a ser interpretado como uma lacuna no direito pú-blico que deve ser remediada pelo Poder Executivo, definindo um estado de emergência seletivo (IGNATIEFF, 2004, p. 25-26). Política que muito se assemelha ao totalitarismo

4 Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terro-rism – cuja tradução literal é: Unindo e Fortalecendo a América pelo Provimento de Ferramentas Apropriadas Exigidas para a Interceptação e Obstrução do Terrorismo.

Page 36: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

35

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

moderno, pois busca a eliminação de adversários públicos e daqueles que não se inte-gram ao sistema – adequando-se ao esboço conceitual de inimigo de Schmitt.

Assim como Schmitt serviu de sustentáculo jurídico às medidas políticas de Hitler, Bush também possui juristas que defendem a constitucionalidade e licitude da linha política seguida pelo governo norte-americano. Seu mais proeminente doutrinador é Richard Posner – o maior expoente do movimento Law and Economics – que parte na defesa de que o direito implementa opções e orientações econômicas com expectativas em relação ao futuro ao invés de se orientarem com base nos arrependimentos do pas-sado. Enquanto juiz da US Court of Appeals do 7º Circuito, propugna que as decisões judiciais devem visar resultados econômicos de forma a maximizar as riquezas, paten-teando um espectro instrumental do direito (GODOY, 2005, p. 60).

Para Posner (2006), a Constituição, desde 11 de setembro de 2001, foi modifi-cada substancialmente no tocante a sua linguagem diante da realidade atual. Desta for-ma, entende que as medidas antiterroristas adotadas pela administração Bush, inclusive as táticas coercitivas de interrogatório, incomunicabilidade do detento, invasão de pri-vacidade e quebras de sigilos sem autorização judicial, detenção preventiva por tempo indeterminado e perseguição étnica, estão amparadas pela nova leitura constitucional que o momento exige (ibidem).

Este descortinamento dos direitos humanos pelos Estados Unidos e aliados (Reino Unido e Espanha, por exemplo) associado à aparente inércia da ONU, tem se-dimentado um Direito de Exceção Internacional que desafia sobremaneira o alicerce do Direito Internacional Moderno (GARBIRAS et MORÁN, 2007, p. 42-43). Neste contexto, a guerra acabou se estendendo no planeta, alcançando Madrid, em 2004, e Londres, em 2005, além do Afeganistão, invadido ainda em 2001, e o Iraque, em 2003.

Todavia, não contavam os Estados Unidos e seus aliados que sua campanha bélica encontraria tanta resistência e oposição no panorama internacional. Ora, a so-ciedade internacional não é mais a mesma dos tempos de Roosevelt, onde os Estados voluntariamente ditavam as regras e todos acatavam. Pelo contrário, agora a sociedade internacional é plurisubjetiva e seus novos personagens possuem igualdade de partici-pação nas relações externas e, sobretudo, os indivíduos e organizações internacionais contam com advogados e operadores do Direito que atuam órgãos de oxigenação do Direito Internacional5 e incrementação dos Direitos Humanos.

Todos os casos notórios que envolviam prisioneiros considerados terroristas tiveram ampla participação dos advogados como operadores do Direito, sejam atuando em defesa de organizações internacionais humanitárias, sejam por meio de representa-ção pessoal do detento. Talvez se os advogados e organizações internacionais não ti-vessem se mobilizado e atuado incisivamente como ocorreu, com adição das feições de paridade e de descentralização de opinião da sociedade internacional, os desfechos so-bre os destinos daqueles prisioneiros teriam sido diferente, tal qual no passado recente.

Esta hipótese não se avulta tão absurda quando se traz à baila a teoria do Direito Penal do Inimigo, vislumbrada pelo jurista alemão Günther Jakobs em 2002 e 2003. Em

5 Considerar o progresso preconizado por Luis Recanses Siches e Miguel Reale.

Page 37: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

36

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

essência, esta teoria fundamenta que o Direito Penal deixa de ser uma reação da socie-dade ao fato criminoso praticado por um indivíduo para torna-se uma reação contra o inimigo do Estado (JAKOBS, 2009).

Após os atentados terroristas de New York (2001), Madrid (2004), e Londres (2005), houve um Congresso na Alemanha e Jakobs (ibidem) defendeu a existência da Terceira velocidade do Direito Penal Internacional, o chamado Direito Penal do Ini-migo, que passa a ser encarado como um direito penal de guerra. Assim, surge como uma postura teórica na dogmática penal que justifica a existência de um direito penal e processual penal sem garantias, conforme adotado no regime totalitário nazista.

Nestes termos, são características do Direito Penal do Inimigo: a) antecipação da punibilidade com a tipificação de atos preparatórios - ordenamento jurídico-penal prospectivo, segundo doutrina espanhola; b) criação de tipos de mera conduta e perigo abstrato - afinal o combate não é sobre a subsunção da norma penal, mas sobre o perigo, flexibilizando-se o princípio da legalidade; c) desproporcionalidade das penas - os espa-nhóis classificam como medida de segurança, tendo em vista sua indeterminabilidade, pois só cessará quando inexistir o perigo da soltura; d) legislações que se autodeno-minam de leis de luta ou combate6 ; e) restrições de garantias penais e processuais - o inimigo não é um sujeito de direito, pois perde o status de pessoa ao ser classificado ini-migo; e f) regime penitenciário diversificado, especificamente criado para este público.

Estes novos contornos que permeiam a sociedade internacional têm gerado um novo cenário que consensualmente ainda não possui solução. Por mais incoerente que possa parecer, mesmo após a tridimensionalização do Direito e da evocação moral pelas Cartas de Direitos Humanos, os Estados – sujeitos primários do Direito Internacional – têm paulatinamente conferido sustentabilidade a esta doutrina, de modo a atribuir, com relação aos direitos humanos, não mais problemas em fundamentá-los, mas sim em protegê-los.

Na Colômbia, o Presidente editou o Decreto nº 1900/2002, considerado cons-titucional pela Suprema Corte Colombiana7 , que adota o Direito Penal do Inimigo para as organizações criminosas. Na Alemanha, em 15/02/2006, o Tribunal Constitucional Alemão, no caso 1BvR 357/05, julgou inconstitucional a Lei de Segurança Aérea que permitia a derrubada de aviões com terroristas como forma de salvar vidas. Aquela Cor-te Constitucional inadmitiu a lei por estimá-la violadora do direito à vida e à dignidade da pessoa humana.

A comunidade internacional ainda não chegou a um consenso, mas os Estados que querem implementar sua política bélica de eliminação já não encontra mais tanta tranquilidade de atuação como antes. A plurisubjetividade do Direito Internacional, ob-tida pela expansão e abertura conquistada no período pós-Segunda Guerra Mundial, tem franqueado rico debate acerca da proteção dos Direitos Humanos, tal como ocorrido nos famosos cases (HALL, et al., 2005, p. 260) de Hamdi et al v. Rumsfeld, Secretary of

6 Considerar como exemplo o USA Patriot Act, Lei antiterrorista inglesa, de 2001, que foi sentenciada pela Câ-mara dos Lordes em dezembro de 2004 e permite a detenção governamental por tempo ilimitado de estrangeiro suspeito de terrorismo.

7 A sentença C-939/2002, de 31/10/02, Rel Magistrado Eduardo M. Lynett.

Page 38: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

37

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

Defense, 547 U.S. 507 (2004), Hamdan v. Rumsfeld, Secretary of Defense, et al, 548 U.S. 557 (2006), Boumediene et al v. Bush, President of USA. 553 U.S. 723 (2008) e A. and Others v. The United Kingdom, Application nº 3455/20058 .

Neste particular, vale o apontamento de Inocêncio Coelho de que a expansão do horizonte hermenêutico dá azo ao enriquecimento de perspectivas, aumentando, re-flexamente, a capacidade de análise e persuasão do intérprete-aplicador. Porém, alerta que, para ser legítimo há de ser racional, objetivo e controlável, pois nada se coaduna menos com a idéia de Estado de Direito do que a figura de um oráculo despótico pairan-do acima da lei (COELHO, 2007, p. 32-33).

Na idéia moderna de Estado, não o Estado, mas o Direito deve ter o poder e sua manifestação válida somente pode se dar por meio da promulgação de uma nor-ma jurídica, como forma, inclusive, de proteção dos direitos humanos em situações de emergência, onde, normalmente, acontecem graves abusos. É no vazio (anomia) onde ocorre a decisão arbitrária que repugna o próprio Estado de Direito (HENNEBEL et VANDERMEERSCH, 2009, p. 69).

Não há dúvidas de que o estado de exceção realmente constitui um ponto de desequilíbrio entre direito público e fato político. De um lado se encontram os direitos fundamentais e de outro a defesa do Estado e das instituições democráticas. É justa-mente nesta zona grise em que reside o direito público e o fato político que Giorgio Agamben desenvolve sua percepção sobre o estado de exceção.

6. GIORGIO AGAMBEN E O ESTADO DE EXCEÇÃO.

A ditadura constitucional esculpida por Schmitt acabou se tornando, de fato, um paradigma de governo. A partir do momento em que o regime democrático, com seu complexo equilíbrio de poderes, é concebido para funcionar em circunstâncias normais, em tempos de crise o governo empreende medidas necessárias para neutralização do pe-rigo e restauração da normalidade. Esta alteração implica, inevitavelmente, um governo mais forte e poderoso e um sistema de direitos individuais reduzidos e enfraquecidos.

O que se vê nos Estados Unidos é exatamente a tentativa de um Judiciário alijado do seu papel participativo das decisões políticas do Estado. No entanto, como bem alerta Michael Ignatieff (2004, p. 52), o mecanismo checks and balances existe justamente para prevenir a sociedade de um Executivo atemorizado, onde a regra dos precedentes - stare decisis - contribui para a ruptura do paradigma schmittiano.

Giorgio Agamben9 inicia sua proposição definindo que, no estado de exceção, o que está em jogo é a significação jurídica de uma esfera de ação essencialmente ex-trajurídica. Estabelece duas premissas: o direito deve coincidir com a norma; e o direito excede a norma. Mas já dita como sofisma a existência de uma esfera da ação humana

8 Foi julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos em 19/02/2009.9 Jusfilósofo italiano que, inclusive, era professor na Universidade de New York e renunciou ao cargo em protes-

to à política de segurança adotada pelo governo dos Estados Unidos.

Page 39: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

38

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

que escape totalmente ao direito. (AGAMBEN, 2004, p. 24)Schmitt afirmava que é próprio do estado de exceção a suspensão – total ou

parcial – do ordenamento jurídico e, por esta razão, não poderia estar compreendido na ordem legal, afinal como poderia uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? No entan-to, Agamben entende que o estado de exceção não é nem exterior nem interior; não se trata de questão topográfica. O problema de sua definição diz respeito a uma “zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam” (AGAMBEN, 2004, p. 39).

A suspensão da norma não significa necessariamente na sua abolição, do mes-mo modo que a zona de anomia instaurada pelo estado de exceção não é – ou não pretende ser – destituída de relação com a ordem jurídica. Longe de ser uma lacuna normativa, o estado de exceção apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordenamento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e sua aplicabilidade à situação normal (ibidem, p. 40-49).

O estado de exceção moderno é, ao contrário do que fora defendido por Sch-mitt, uma tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona de indiferenciação em que fato e direito intercomunicam-se.

Nestes termos, direito e anomia mostram sua distância e, coetaneamente, sua secreta solidariedade. Seria como se o universo do direito se apresentasse como um campo de forças percorrido por duas tensões conjugadas e opostas: uma que vai da norma à anomia e outra da anomia à norma.

Decorre daí o duplo paradigma que marca o campo do Direito com uma ambi-güidade essencial. De um lado, a tendência normativa em sentido estrito, cuja pretensão é de transformar-se num sistema de normas em plena conexão com a vida (seria o es-tado perfeito de Direito em que tudo é regulado por norma). Do outro lado, a tendência anômica que deságua no estado de exceção tendo como idéia o soberano como lei viva, no qual uma força de lei, sem lei, age como pura inclusão da vida (AGAMBEN, 2004, p. 110-111).

O sistema jurídico definido por Agamben, então, mostra-se como uma estrutu-ra dupla, formada por dois elementos heterogêneos e, ao mesmo tempo, coordenados, que ligam norma e anomia, lei e estado de exceção, bem como garantem também a relação entre o direito e a vida. Um elemento é normativo e jurídico em sentido estrito, enquanto o outro é anômico e metajurídico. O estado de exceção é, por conseguinte, o dispositivo que deve, em última medida, articular e manter juntos os dois elementos da máquina jurídico-política, instituindo um liminar de indecidibilidade entre anomia e norma, vida e direito. Ele se funda, assim, na ficção essencial pela qual a anomia ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida (ibidem, p. 130).

Os atos praticados pela administração Bush correspondem a ações sem relação com o direito, tudo sob a égide de normas, como o USA Patriot Act, Military Comis-sions Act, Detainee Treatment Act, dentre outros, sem relação com a vida. Não há dúvi-da, aliás, que, atualmente, a urgência do estado de exceção atingiu um desdobramento mundial. O aspecto normativo do direito tem sido impunemente eliminado e confronta-

Page 40: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

39

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

do por uma violência governamental que ignora no âmbito externo o direito internacio-nal e produz no âmbito interno um estado de exceção permanente.

No campo das tensões de nossa cultura, esclarece Agamben, duas forças opos-tas entram em ação: uma que institui e que põe e outra que desativa e depõe. O estado de exceção constitui, neste sentido, o ponto de maior tensão dessas forças e, concomi-tantemente, aquele que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torná-las indiscerníveis (AGAMBEN, 2004, p. 132). Viver sob o estado de exceção significa, portanto, buscar separar cada vez mais as duas forças; tentar incessantemente interromper o funciona-mento da máquina estatal que está levando o Ocidente para a guerra civil mundial, com a certeza, entretanto, de que “o desencanto não restitui o encantado a seu estado original: segundo o princípio de que a pureza nunca está na origem, ele lhe dá somente a possibilidade de aceder a uma nova condição” (ididem, p. 133).

Este desencanto sobre a fragilidade que circunda a garantia dos Direitos Huma-nos só nos permite ascender para a nova condição de luta para sua afirmação e proteção. Afinal, como bem lecionou Norberto Bobbio, até entre os chamados direitos funda-mentais temos os que não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados para determinada categoria de pessoas, pois constituem um núcleo mínimo de direitos arrai-gados ao ser humano (BOBBIO, 2004, p. 40).

Logo, se traduz inconciliável com o Estado de Direito Moderno a idéia da abstenção completa de direitos humanos, a negação do indivíduo como ser humano, a inexistência de direito a direitos. Este legado nos remonta a idéia do oráculo que paira sobre a lei, sobre o Direito. No Direto Moderno, pelo contrário, a funcionalidade da estrutura jurídica montada nos propõe a figura do Estado soberano cuja soberania não se exerce de forma absoluta, mas relativizada. O Estado limita os direitos e é limitado pelos direitos.

A humanidade enfrenta crises decorrentes de abusos no exercício de direitos, convulsões internas, guerras, situações que exigem uma sistemática de emergência para o restabelecimento da normalidade, para a defesa das instituições e do Estado. Ata-ques terroristas justificam a restrição de liberdades apenas demonstrando que, com isso, fortalece-se a segurança. Portanto, defende Michael Ignatieff, é lícito deter suspeitos e mantê-los presos sem julgamento até que se descubra a natureza do risco que repre-sentam. Entretanto, ressalta, devem os detidos, ao mesmo tempo, ter direito a defensor constituído e à revisão judicial sobre sua detenção, uma vez que um Estado Democráti-co de Direito tolera as restrições de direitos estritamente necessárias e por um período de tempo determinado (é o núcleo mínimo de direitos preconizado por Bobbio). Ne-nhum “buraco negro constitucional” pode se desenvolver sob o argumento da guerra contra o terror (IGNATIEFF, 2004, p. 29-30).

Nesta senda que José Afonso da Silva professa que o Constitucionalismo con-temporâneo apregoa ser o estado de exceção norteado por dois princípios reitores, o da necessidade e da temporariedade. Sem que se verifique a necessidade, o estado de exceção configurará situação de arbitrariedade e sem fixação de tempo limitado para a vigência da situação de (legalidade) extraordinária, o estado de exceção transforma-se em ditadura (SILVA, 2007, p. 761-762).

Page 41: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

40

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

7. CONCLUSÃO.

Hoje em dia, nas situações de anormalidade, é objeto constante de preocupação a conciliação da eficiência do Estado com a preservação dos direitos fundamentais da pessoa humana. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nesta esteira, têm levantado questionamentos acerca dos regramentos de direito em situações de emer-gência.

Desde o ataque terrorista, o Poder Executivo tem sustentado que o Presidente possui poderes unilaterais e insuscetíveis de controle na condução da guerra, não apenas contra aqueles que atacaram os Estados Unidos naquela data, mas contra toda organi-zação terrorista do planeta. Argumenta-se, ainda, que o Presidente, enquanto chefe das forças armadas - commander in chief -, possui exclusiva autoridade na escolha dos mo-tivos e métodos utilizados contra o inimigo, ainda que isso se traduza em ações ilegais. Esta moderna acepção da doutrina do the king can do no wrong é chamada por David Cole de “a doutrina Bush” (COLE, 2008, p. 49).

A propósito, é válido trazer a lume a analogia mencionada por Vieira (1999, p. 20) entre o mecanismo de autovinculação adotado por Ulisses (personagem da obra de Homero, Odisséia) e os tradicionais mecanismos constitucionais de pré-comprometi-mento. Nesta passagem literária, Ulisses é alertado por Circê dos perigos que enfrentará em sua viagem de retorno para casa: a morte o aguardava, com sua tripulação, caso ouvissem as assustadoras vozes das Sereias. Ao ouvi-las, os homens se fascinam e têm suas embarcações lançadas contra as rochas. Seguindo o conselho de Circê, Ulisses ordena seus homens a taparem seus ouvidos com cera e para que o amarrem ao mastro do navio para que dali não possa sair. Com as mãos atadas, Ulisses consegue passar ao largo dos rochedos e ouvir o canto das sereias sem sucumbir à sua sedução.

A conduta de Ulisses é freqüentemente citada para auxiliar a compreensão da lei e dos direitos como estratégia de pré-comprometimento. Tal como Ulisses, que deli-beradamente amarrou-se ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das sereias, os Estados democráticos se pré-comprometem a respeitar os direitos fundamentais cientes de que nessa jornada se depararão com momentos nos quais ficarão seriamente tentados a restringi-los ou suprimi-los. O compromisso de Ulisses se deu antes da chegada da tentação, pois, quando esta chega, já é tarde demais.

Na concepção schmittiana, esta metáfora de Ulisses não faz o menor senti-do. Nenhum regime poderia conceber a conduta de se amarrar no mastro e tampar os ouvidos com cera caso a embarcação do Estado estivesse sendo invadida por piratas. Deveria Ulisses se desamarrar e, juntamente com sua tripulação, combater a invasão.

Porém, os direitos de um povo são como as ceras de ouvido de Ulisses: ins-trumentos da razão construídos em momentos de tranqüilidade para imperar sobre as tentações nos momentos de perigo. O terrorismo aparece como um teste supremo da habilidade de uma sociedade liberal na preservação de seus pré-comprometimentos (IGNATIEFF, 2004, p. 31).

Page 42: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

41

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

Um ponto interessante que surge é que o Justice David Davis, quando do jul-gamento do caso Ex Parte Milligan, 71 U.S. 2 (1866), em meados do século XIX, já esboçava uma compreensão de estado de exceção moderna. Naquela ocasião, registrou que não o Estado, mas o Direito deve ter o poder; a anomia permite a arbitrariedade e o despotismo que, por sua vez, repugna o próprio Estado de Direito. Para Irons (2006, p. 188-189):

Constituição não tem sua eficácia suspensa em momentos de emergên-cia; a suspensão dos direitos constitucionais nos momentos que reque-rem grandes exigências do governo gera o despotismo sob o falso manto da necessidade, uma vez que a Constituição traz consigo as provisões normativas adequadas às situações imprescindíveis a sua preservação e existência10.

Este julgado antecede a própria doutrina de Schmitt, cuja gênese ocorreu por volta durante a década de 1920. Isto é, no século anterior, a Suprema Corte dos Estados Unidos já se pronunciava acerca do que hoje constitui a concepção moderna de estado de exceção, principalmente após os eventos da Segunda Guerra Mundial, que alçou os direitos humanos ao patamar de referencial e paradigma ético de aproximação do direito à moral.

No mesmo caminho, James Madison, um dos notáveis constituintes originários (founding fathers), vislumbrou, no final do século XVIII, no interstício entre a promul-gação da Constituição e o Bill of Rights, a premente necessidade de se ter uma carta de direitos de estatura constitucional. Embora inicialmente fosse contrário a esta idéia, em correspondências emitidas a Thomas Jefferson, mostrou seu convencimento de que o reforço judicial dos direitos era uma das precauções auxiliares contra a tirania (TRIBE, 2007, p. 1) justamente no contexto em que o soberano, na doutrina de Schmitt, se sobre-põe ao Direito e conduz o Estado.

Ora, realmente é difícil manter-se fiel a um ideário de direitos como pré-com-promissos quando o Estado Democrático está sob ameaça. Todavia, os direitos expres-sam o reconhecimento de que se deve firmar um compromisso fulcrado nos valores da igualdade e dignidade em tempos de calma e paz para que haja a segurança, como Ulisses, de não sucumbir nos tempos de perturbação e guerra. Assim, a defesa do Estado passa a ser a defesa desses compromissos constitucionais.

Os direitos humanos independem de condutas, circunstâncias, cidadania ou ín-dole moral. Até mesmos os terroristas possuem direitos que não podem ser negados. Uma sociedade liberal está umbilicalmente comprometida a respeitar os direitos daque-les que não mostram respeito aos direitos de ninguém do mesmo modo como deve tratar com humanidade aqueles que se comportam de maneira desumana. É este compromisso de observar suas obrigações, mesmo quando não há reciprocidade, que caracteriza uma sociedade civilizada pelo império da lei.

Neste sentido, os normativos editados pelo Congresso após o evento de 11 de setembro atribuem poderes ao presidente dos Estados Unidos que buscam anular 10 Esta argumentação consta do voto do Justice David Davis no caso Ex Parte Milligan, 71 U.S. 2 (1866).

Page 43: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

42

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo seres juridicamente ino-mináveis e inclassificáveis. Não são prisioneiros de guerra, consoante a Convenção de Genebra, tampouco são acusados segundo as leis estadunidenses: são apenas “inimigos combatentes” que se traduzem em objetos de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal, mas também quanto a sua própria natureza, porque totalmente ilegal e sem controle judiciário (AGAMBEN, 2004, p. 14).

Sem muito brilho, a administração Bush aplicou e defendeu uma doutrina de estado de exceção (seletivo) que remonta a teoria schmittiana, relembrando a triste his-tória dos descendentes de japoneses no período da guerra (Vide casos Hirabayashi v. United States, 320 U.S. 81 (1943), Yasui v. United States, 320 U.S. 115 (1943) e Kore-matsu v. United States, 323 U.S. 214 (1944)) – visão política inquestionavelmente con-trária aos interesses de proteção e promoção dos direitos humanos. A mesma história, por sinal, mostra nos dias atuais a erronia cometida pelo governo Roosevelt, admitida inclusive pelos Estados Unidos por meio de pedido nacional de desculpas e pagamento de indenizações compensadoras do avassalamento dos direitos humanos daquela etnia (SOUTO, 2008, p. 110-112; e IRONS, 2006, p. 361-364).

Dos 82 mil árabes e muçulmanos de nacionalidade estrangeira que foram regis-trados pelo governo estadunidense após o 11 de setembro, oito mil foram interrogados pelo FBI e mais de cinco mil foram presos preventivamente sob os auspícios do AUMF e USA Patriot Act. Destes, atualmente, nenhum possui condenação criminal pela práti-ca de terrorismo. Consoante David Cole, esta foi uma das mais agressivas campanhas nacionais de perseguição étnica desde a Segunda Guerra Mundial (COLE, 2008, p. 91).

Contudo, o grupo aliado aos Estados Unidos continua acreditando que podem derrotar o terrorismo simplesmente declarando guerra contra ele, despachando tropas pelo globo e tratando prisioneiro de forma severa. Por outro lado, a realidade tem de-monstrado que este conflito não é combatível por métodos militares tradicionais, pois não existe território a conquistar, terras a ocupar e o alvo está em constante movimento e crescimento.

Destarte, no estado de exceção permanente que fora instaurado nos Estados Unidos (onde não há limite temporal e espacial definidos, uma vez que o terrorismo é uma ameaça descentralizada e globalizada), o que passa a estar em questão são os próprios conceitos de Estado e de Direito. É missão da sociedade internacional, agora universal, aberta, paritária e descentralizada, alcançar uma estabilidade entre esses dois pilares, valendo-se dos operadores do Direito, cada vez mais difundidos e com a nobre função de realizar o progresso jurídico fulcrado nos ideais de justiça e humanidade que se colhem na consciência humana e derivam do processo civilizatório da sociedade, isto é, tentar incessantemente reunir o que abruptamente se separou (Estado e Direito).

Page 44: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

43

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

THE STATE OF EXCEPTION IN THE POST TERRORISM CONSTITUTIONALISM.

ABSTRACTThis short review article aims at the present paradoxical relationship between the ad-vancement of international society and its new bonds with the attempt by some states on the upside given the scope for human rights in times of crisis. The methodology used was a literature and document review over the main decisions on the subject and the relevant case law. The theoretical horizon follows major theories of terrorism and acts of exception, illuminating the recent events that changed the history of the world. Concludes the work that the mission of the open, equal and decentralized international society is to achieve stability in the state of emergency and terrorism using the operators of the law, relentlessly trying to gather the abruptly separated, State and law.

Keywords: State of Exception. Terrorism. State. Right.

REFERÊNCIAS

ACKERMAN, Bruce. Before the Next Attack: Preserving Civil Liberties in an Age of Terrorism. New Haven: Yale University Press, 2006.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Bointempo, 2004.

BALESTRA, Ricardo R. Decrecho Internacional Privado – Parte General. 2ª edición. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. Rio de Janeiro: Azougue, 2004.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Regina Lyra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

______. Da Estrutura à Função – Novos Estudos de Teoria do Direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007.

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3ª edição. São

Page 45: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

44

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

Paulo: Saraiva, 2007.

COLE, David. Justice at War: the men and ideas that shaped America’s war on terror. New York: New York Review of Books, 2008.

DESIMONI, Luis María. Los Derechos Humanos y La Guerra Contra el Terror. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2009.

GARBIRAS, Alberto Ramos et MORÁN, John Jairo Cárdenas. Terrorismo, Globalización y Estados Nación. Santiago de Cali: Universidad Libre, 2007.

GELLATELY, Robert. Lenin, Stalin and Hitler – The Age of Social Catastro-phe. New York: Alfred A. Knopf, 2007.

GIFIS, Steven H. Law Dictionary. 5ª edition. New York: Barron’s Educational Series, 2003.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito nos Estados Unidos. Barueri: Manole, 2004.

______. Introdução ao Movimento Critical Legal Studies. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005.

GOLDSMITH, Jack L. The Terror Presidency: law and judgment inside the Bush administration. New York: W.W. Norton & Company, Inc., 2007.

GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946 – A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

GUERRA, Sidney. Curso de Direito Internacional Público. 5ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

HALL, Kermit L; ELY JR., James W and GROSSMAN, Joel B. The Oxford Companion to the Supreme Court of the United States. 2ª edition. New York: Oxford University Press, 2005.

HENNEBEL, Ludovic et VANDERMEERSCH, Damien. Juger le Terrorisme Dans L’État de Droit. Bruxelles: Bruylant, 2009.

HENNEBEL, Ludovic et WAEYENBERGE, Arnaud Van. Exceptionnalisme Américain et Droits de L’Homme. Paris: Dalloz, 2009.

IGNATIEFF, Michael. The Lesser Evil: political ethics in an age of terror. New

Page 46: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

45

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

Jersey: Princeton University Press, 2004.

IRONS, Peter. A People’s History of the Supreme Court: the men and women whose cases and decisions have shaped our Constitution. New York: Penguin Group, 2006.

______. Justice at War: The Story of the Japanese-American Internment Cases. California: University of California Press, 1993.

______. The Courage of Their Convictions: Sixteen Americans Who Fought Their Way to the Supreme Court. New York: Penguin Group, 1990.

JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Trad. Luiz Moreira et Eugênio Pacelli de Oliveira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

KLUWER, Wolters. Constitutional Law: Casenote Legal Briefs. 16ª edition. New York: Aspen Publishers, 2008.

LUCENA, Gustavo Carvalho Lima de. 2008. A recepção da chamada “guerra ao terror” pelo ordenamento jurídico internacional. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/22504-22506-1-PB.pdf > Acesso em: 11 de out de 2011. Busca Legis.ccj.ufsc.br.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5ª edição. São Paulo: RT, 2011.

PARDO, Carlos A. Fernández. Carl Schmitt en la Teoría Política Internacional. Buenos Aires: Biblos, 2007.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacio-nal. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007.

POSNER, Richard. Not a Suicide Pact: The Constitution in a Time of National Emergency. New York: Oxford University Press, 2006.

POSSE, Moncayo Vinuesa Gutiérrez. Derecho Internacional Público. Buenos Aires: Zavalia, 1990.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Sa-raiva, 1994.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

Page 47: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

46

O Estado De Exceção No Constitucionalismo Pós-Terrorismo

______. Teoría de La Constitución. Tradución de Francisco Ayala. Madrid: Alianza Universidad Textos, 2009.

SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofia Del Derecho. 3ª edição. México: Editorial Porrua SA, 1965.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª edição. São Paulo: Malheiros, 2007.

SIMPSON, A. W. Brian. Human Rights and the End of Empire – Britain and the Genesis of the European Convention. New York: Oxford University Press Inc., 2004.

SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

TRIBE, Laurence; e DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Trad. Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

UNITED STATES OF AMERICA. The National Security Strategy of the Uni-ted States of America. September 2002.

______. Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism (USA PATRIOT ACT) Act of 2001. 107th Congress, 1st Session, H.R. 3162. October 24, 2001.

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça. São Paulo: Malheiros, 1999.

WEITZ, Eric D. Weimar Germany – Promises and Tragedy. New Jersey: Prin-ceton University Press, 2007.

ZBAR, Agustín. Terrorismo Internacional y Derechos Humanos – Apuntes para una Legislación Antiterrorista. Buenos Aires: Fundación Abravanel, 2008.

ZELENY, Jeff. Democrats Hope to Expand Rights at Guantánamo. The New York Times, New York, June 06, 2007.

Daniel Ivo Odon - Procurador da Conab, Professor de Teoria do Direito na Universi-dade de Brasília (UnB) e de Direito Internacional Público na Faculdade Planalto (IES-PLAN/DF), Membro da International Association of Constitutional Law, Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e Doutorando em Ciencias Jurídicas y Sociales na Universidad del Museo Social Argentino, em Bue-nos Aires-Argentina. Endereço postal: postal: SGAS 901, Bloco A, Edifício Conab, Brasília-DF, 70.390-010; Endereço Eletrônico: [email protected].

Page 48: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

47

Revista Jurisplan - 2012

LEI MARIA DA PENHA, AUDIÊNCIA DE RETRATAÇÃO E NECESSIDADE DE DUPLA VITIMIZAÇÃO

Erika Bueno Muzzi

RESUMOEste trabalho é um artigo de revisão curta cujo objetivo geral é analisar a necessidade da designação da audiência de retratação, ou de ratificação, exigida pela Lei 11.340/06 em seu artigo 16, para todas as vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher que noticiam crimes na delegacia de polícia civil e a eventual vitimização secundá-ria que ocorre neste expediente. Trata-se de uma pesquisa exploratória realidada com revisão bibliográfica e documental nas perspectivas que circundam a Lei 11.340, que dispõe sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, mais especificamente sobre os aspectos da audiência de retratação, em especial, a sua necessidade e a even-tual vitimização secundária que dela possa decorrer. Conclui o trabalho que, a despeito de a mulher brasileira, até por questões culturais, chegar a considerar normal viver anos seguidos suportando as ameaças e agressões, e serem tentadas a perdoar, dar outra chance, a sua vontade deve ser respeitada, principalmente considerando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-Chave: Lei Maria da Penha. Audiência de Retratação. Necessidade de desig-nação da audiência de retratação. Necessidade só de proteção. Vitimização secundária.

1. INTRODUÇÃO.

O tema do presente estudo é a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), em parti-cular, a inovação trazida pelo seu artigo 16 que dispõe sobre a audiência especialmente designada para eventual renúncia à representação da vítima nos crimes que se proces-sam mediante ação penal pública condicionada à representação.

Essa lei inovou ao criar uma hipótese de dificultar a renúncia ou retratação da representação anteriormente realizada pela vítima, determinando que, o exercício desse direito só fosse admitido em audiência especialmente designada para este fim, ou seja, a audiência de retratação.

É cediço que a violência doméstica e familiar contra a mulher é um problema social no Brasil que refletiu na edição Lei Maria da Penha em 07 de agosto de 2006.

Inobstante o surgimento do estatuto que, conforme já mencionado, criou me-canismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos

Page 49: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

48

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

termos § 8º, do artigo 226 da Constituição Federal, percebe-se que, a preocupação ex-cessiva em tutelar a mulher resultou em disposições de difícil aplicação ou de pratici-dade questionável.

O conforme artigo 25 do Código Penal, não modificado pela Lei 11.340/06, a representação é irretratável depois de oferecida a denúncia.

Ocorre que o artigo 16 da Lei 11.340/06 prevê que:

Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Assim, o objetivo geral do presente artigo é analisar a necessidade da desig-nação da audiência de retratação, ou de ratificação, exigida pela Lei 11.340/06 em seu artigo 16, para todas as vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher que noticiam crimes na delegacia de polícia civil e a eventual vitimização secundária que ocorre neste expediente.

Para tanto, os objetivos específicos são analisar o contexto histórico em que foi editada a Lei 11.340/2006, verificar as alterações penais processuais criadas pela Lei Maria da Penha, analisar a audiência de retratação criada pelo seu artigo 16, verificar a impropriedade terminológica utilizada pela lei ao dispor sobre a audiência de retratação como sendo renúncia, analisar as formas de violência doméstica e familiar, conceituar e analisar a vitimização secundária da mulher na Lei em estudo, à luz da Criminologia Moderna, cotejar e analisar os pontos positivos e negativos relacionados à designação de audiência de retratação para as vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher e, por fim, concluir de que modo essa audiência poderia gerar uma vitimização secundária das mulheres protegidas por esse estatuto, à luz da criminologia.

A metodologia usada foi uma revisão bibliográfica e documental em um con-junto de doutrinas e artigos sobre o assunto proposto, além de julgados e outros docu-mentos, tais como revistas e sites da internet, para fundamentar a estrutura do presente trabalho, resultando assim, uma análise crítica e reflexiva sobre o tema.

Por todo o exposto, justifica-se este trabalho pela importância real do tema, em especial se se considerar que as estatísticas mostram que algo precisa ser feito para estancar a condição de verdadeira calamidade pública que assume a violência contra a mulher em nosso país e, impedir que o processo penal se torne um fim em si mesmo, vitimizando novamente a ofendida.

Page 50: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

49

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

2. CONTEXTO HISTÓRICO QUE ANTECEDEU A EDIÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA.

A Lei 11.340 foi editada em 07 de agosto de 2006 e logo foi nominada popular-mente como Lei Maria da Penha.

O diploma legal em estudo corresponde à uma resposta do Brasil à condenação pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Ame-ricanos ante a omissão do Brasil nos casos de violência contra a mulher.

Na verdade, a lei é associada ao caso real vivenciado pela cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que, sofreu duas tentativas de homicídio perpetradas pelo seu ex-marido Marco Antônio Herredia Viveiros.

Na primeira tentativa de homicídio, ocorrida em 1983, seu marido, sob o pálio de um suposto assalto na residência do casal, efetuou um disparo de arma de fogo pelas costas de Maria da Penha enquanto esta dormia.

Em função desta primeira tentativa de homicídio, Maria da Penha ficou para-plégica, tendo comprometidas as funções motoras e sensoriais de seus membros infe-riores.

Ainda assim, alguns dias após a frustração da primeira intentada, Marco Antô-nio Herredia efetuou nova investida contra a esposa ao empurrá-la da cadeira de rodas e tentar matá-la por eletrocução.

Em razão dos acontecimentos narrados, Marco Antônio Herredia Viveiros foi submetido ao julgamento em plenário do júri em 1991, tendo sido condenado a 8 anos de prisão.

Entretanto, tal julgamento foi anulado e, em novo júri realizado, foi fixada ao réu a pena de 10 anos e seis meses de prisão, tendo o juiz concedido a Marco Antônio Herredia Viveiros o direito de recorrer em liberdade.

Com essa possibilidade, o ex-marido de Maria da Penha só foi recolhido à pri-são em 2003, tendo cumprido, efetivamente, apenas 2 anos de prisão.

Considerando a morosidade processual da justiça brasileira, bem como a insu-ficiente resposta estatal atribuída a Marco Antônio Herredia no caso Maria da Penha, a vítima, juntamente com o Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e com o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLA-DEM), ofereceram denúncia junto a um dos órgãos de Consulta da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O processo tramitou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e, ao final, o Brasil foi responsabilizado pela omissão e retardamento do cumprimento das normas relativas à violência doméstica contra as mulheres.

Cinco anos após a decisão que responsabilizou o Brasil no caso Maria da Pe-nha, foi editada a lei 11.340/06.

Page 51: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

50

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

3. ALTERAÇÕES PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS TRAZIDAS PELA LEI MARIA DA PENHA.

A lei em comento trouxe uma série de inovações procedimentais e materiais no campo penal e processual penal, dentre as quais merecem destaque a exclusão da incidência da lei 9.009/95, a instituição de medidas cautelares diversas da prisão (me-didas protetivas), a inclusão de uma nova hipótese de prisão preventiva e a necessidade de audiência específica para a retratação da vítima nos crimes de ação penal pública condicionada à representação.

3.1. Análise de cada uma dessas principais inovações.

O artigo 41 da lei 11.340/06 dispõe que “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

Percebe-se que, prima facie, a lei excluiu a incidência da disposições referentes aos Juizados Especiais Criminais quando o crime envolver violência doméstica e fami-liar contra a mulher.

Pela interpretação literal da norma, chegar-se-ia à conclusão de que aos crimes praticados em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher é vedada a aplicação dos institutos despenalizadores1 , bem como constatar-se-ia que, ao contrário do que determinou a lei 9.099/95, a lesão corporal leve seria crime que se processa me-diante ação penal pública incondicionada.

Diante deste cenário, a jurisprudência e a doutrina tem interpretado o artigo no sentido de não se possível generalizar a vedação, cabendo ao judiciário se manifestar sobre a eficácia da lei. Isso porque ambas as leis (Lei 9.099/95 e Lei 11.340/06), são constitucionais e estão no mesmo patamar de hierarquia e a constitucionalidade da Lei Maria da Penha não implica necessariamente a proibição de todas as normas processu-ais previstas no diploma dos Juizados Especiais Criminais.

Em julgado recente, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou no sentido de reconhecer que a vedação do artigo 41 da Lei 11.340 se refere apenas aos institutos despenalizadores supracitados, conforme se verifica da ementa abaixo transcrita:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. LEI MARIA DA PENHA. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA.NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA.1. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é compatível com o instituto da representação, peculiar às ações penais públicas condicionadas e, dessa

1 Os institutos despenalizadores são a transação penal, a suspensão condicional do processo e a composição dos danos civis.

Page 52: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

51

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

forma, a não aplicação da Lei 9.099, prevista no art. 41 daquela lei, refere-se aos institutos despenalizadores nesta previstos, como a composição ci-vil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

2. O princípio da unicidade impede que se dê larga interpretação ao art. 41, na medida em que condutas idênticas praticadas por familiar e por ter-ceiro, em concurso, contra a mesma vítima, estariam sujeitas a disciplinas diversas em relação à condição de procedibilidade.3. A garantia de livre e espontânea manifestação conferida à mulher pelo art. 16, na hipótese de renúncia à representação, que deve ocorrer perante o magistrado e representante do Ministério Público, em audiência espe-cialmente designada para esse fim, justifica uma interpretação restritiva do art. 41 da Lei 11.340/06.4. O processamento do ofensor, mesmo contra a vontade da vítima, não é a melhor solução para as famílias que convivem com o problema da violência doméstica, pois a conscientização, a proteção das vítimas e o acompanhamento multidisciplinar com a participação de todos os envol-vidos são medidas juridicamente adequadas, de preservação dos princí-pios do direito penal e que conferem eficácia ao comando constitucional de proteção à família.5. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal 1.320/09 em curso na 2ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.(HC 157.416/MT, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/04/2010, DJe 10/05/2010)

Na linha do julgado citado, a jurisprudência majoritária entende que o princípio da unicidade impede que se dê larga interpretação ao art. 41, na medida em que condu-tas idênticas praticadas por familiar e por terceiro, em concurso, contra a mesma vítima, estariam sujeitas a disciplinas diversas em relação à condição de procedibilidade.

Ademais, a garantia de livre e espontânea manifestação conferida à mulher pelo art. 16, na hipótese de renúncia à representação, que deve ocorrer perante o Magis-trado em audiência especialmente designada para esse fim, justifica uma interpretação restritiva do art. 41 da Lei em estudo.

Outra inovação foram as medidas cautelares diversas da prisão. A lei 11.340 trouxe ao juiz a possibilidade de, em substituição à prisão, determinar, de forma autôno-ma ou cumulativa, as medidas cautelares expostas no artigo 319 do Código de Processo Penal que assim dispõe:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado perma-necer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela per-manecer distante;

Page 53: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

52

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja con-veniente ou necessária para a investigação ou instrução;.V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quan-do o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; [ ... ]VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes pratica-dos com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o compareci-mento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;.IX - monitoração eletrônica.

3.2. Medidas protetivas de urgência.

Essas medidas cautelares foram nominadas de Medidas Protetivas de Urgência e estão disciplinadas no Capítulo II da lei em estudo, onde há a previsão de que serão concedidas pelo juiz ante o pleito realizado pelo Ministério Público ou pela ofendida.

Especificamente na lei 11.340/06, as medidas protetivas são divididas em dois grandes grupos. No primeiro grupo encontram-se as medidas de urgência que obrigam o agressor, donde se destacam a possibilidade de suspensão da posse ou restrição do porte de armas, o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida e proibição de aproximação e contato – estas duas largamente utilizadas na prática -, restrição de suspensão de visitas aos menores dependentes, prestação de alimentos pro-visórios ou provisionais.

O outro grupo de medidas protetivas de urgência é formado por aquelas deter-minadas à ofendida, como o encaminhamento a programas de proteção ou a tratamentos psicossociais.

Tal instrumento, inovador quando da edição da Lei 11.340/06, se mostrou tão adequado à situação atual do sistema carcerário, bem como aos objetivos da cautelarida-de, que foi introduzido no Código de Processo Penal, por intermédio da lei 12.403/2011, abrindo espaço para a sua aplicação não só nos casos de violência doméstica, mas diante de qualquer prática delituosa, desde que conveniente e adequado ao caso concreto.

A terceira inovação a ser destacada, conforme mencionado no início desta se-ção é a introdução de mais uma hipótese para a decretação da prisão preventiva com a inserção do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, que tem a seguinte redação:

Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:(omissis)IV – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher,

Page 54: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

53

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas prote-tivas de urgência.

O objetivo da inserção de tal dispositivo foi assegurar a eficácia das medidas protetivas de urgência deferidas em sede de ações envolvendo violência doméstica con-tra a mulher, evitando seu descrédito.

Entretanto, tal dispositivo também teve sua redação alterada pela lei 12.403/11, diploma alterador do Código de Processo Penal.

Com a alteração, que passou a viger em 04 de julho de 2011, após sessenta dias de vacatio legis, o artigo 313, em seu inciso II, passou a ter a seguinte redação:

Art. 313. Nos termos do artigo 312 deste Código, será admitida a decre-tação da prisão preventiva:(omissis)III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para ga-rantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Portanto, foi estendida a proteção a todos aqueles que se mostram em relação de vulnerabilidade latente e em grau máximo de situação de desigualdade material pe-rante os ofensores.

Tal alteração era inexorável diante da ampliação do campo de aplicabilidade das medidas protetivas cautelares, com a edição da lei 11.403/11.

Por fim, a lei criou um modo de dificultar a renúncia ou retratação da represen-tação anteriormente realizada pela vítima, determinando que, o exercício desse direito só fosse admitido em audiência especialmente designada para este fim, ou seja, a audi-ência de retratação, nos termos do artigo 16 da lei 11.340.

Esta inovação, por ser objeto do presente estudo, está apresentada de forma pormenorizada a seguir.

4. A AUDIÊNCIA DE RETRATAÇÃO CRIADA PELA LEI 11.340/06 E SUA IMPROPRIEDADE TERMINOLÓGICA.

O artigo 16 da lei 11.340/06 assim dispõe:

Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

O legislador diferenciou o exercício do direito de retratação nos crimes que

Page 55: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

54

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher exigindo que seja designada audiência especial para tal fim.

Antes de se adentrar nos aspectos relacionados à audiência propriamente dita, mister destacar a discussão a respeito de suposta impropriedade terminológica do legis-lador – como varias outras ao longo da lei – ao mencionar o termo renúncia.

Etimologicamente, renunciar, palavra derivada do latim, significa revogar, abandonar, desistir de (aquilo que se tem direito), abdicar, resignar.

Nesse sentido, discute a doutrina se, tecnicamente, não seria correta a utiliza-ção do termo retratação.

Sustenta-se que o correto seria a utilização do termo renúncia à representação tão somente na hipótese em que a ofendida deixasse de exercitar o seu direito à repre-sentação.

Entretanto, tendo a vítima representado, já não se mostra mais técnica a utiliza-ção do termo renúncia, haja vista que esta é “a abdicação do ofendido ou de seu repre-sentante legal do direito de promover a ação penal privada”, conforme ensina Damásio de Jesus (ano, p. ), quando afirma que “Se a vítima exerceu o direito de representar, não abdicou do mesmo”.

Ademais, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, bem como a doutrina são pacíficas no sentido de que a representação não depende de nenhum outro ato para produzir seus efeitos jurídicos, bastando somente a notícia do fato junto à autoridade policial.

Tem-se que a representação feita perante a Autoridade Policial tem plena va-lidade jurídica. Entendimento em sentido contrário seria admitir que o Estado violasse o direito da vítima de ver o fato, em tese delituoso, ser examinado pelo Judiciário, configurando violação direta ao princípio constitucional insculpido no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição da República, que assim dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer nature-za, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(omissis)XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

Por estas razões, a representação não tem formalidade expressa em lei, sendo a autorização processual da vítima ao Estado para a persecução penal.

De todo modo, para fins de melhor compreensão, Porto (2011) esclarece que:

o legislador cercou esta decisão de garantias como a exigência de que a desistência ocorra em presença do juiz e seja ouvido o Ministério Público. Ademais, o direito de decidir sobre representar ou não pressupõe a pos-sibilidade de conciliação civil, o que, seguramente, atende a interesses da vítima, nem sempre sediados na exclusiva punição criminal do seu agressor, mas, fundamentalmente atrelados ao interesse reparatório dos

Page 56: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

55

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

danos sofridos, inclusive aqueles de caráter moral que, segundo afirma a doutrina da responsabilidade civil extramaterial, têm evidente caráter punitivo e pode importar em severa punição ao agressor. Outrossim, o art. 17 da nova Lei manifesta a preocupação do legislador com punições insuficientes nos crimes em questão.

Por outro lado, acerca da inovação legislativa da audiência de retratação, Ca-bette (2006), se manifesta nos seguintes termos:

Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, derrogado o artigo 25 do CPP, para alongar o tempo para a retratação (jamais re-núncia), teria o legislador criado uma nova formalidade processual antes do recebimento da denúncia, qual seja, a oitiva da vítima para que se manifeste quanto à eventual retratação da representação anteriormente ofertada.

Independentemente do nome atribuído pelo legislador, certo é que a audiência prevista no artigo 16 da Lei 11.340/06 diz respeito, claramente, ao procedimento a ser adotado quando a vítima exerce o seu direito de renunciar à representação contra o ofensor.

Assim, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, e em se tra-tando de crime cuja ação penal dependa de representação da vítima, como por exemplo, o crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, após ter noticiado o delito perpetrado por seu companheiro, esposo, etc., a vítima não poderá mais se retratar da representação por mera manifestação perante a autoridade policial.

Neste caso, tendo a vítima manifestado, por qualquer modo, interesse em re-nunciar ao seu direito de representar, deve o magistrado, quando tomar conhecimento dos fatos, designar audiência para oitiva da vítima, ouvindo-se o Ministério Público.

Tal audiência se justifica exatamente por se tratar de caso de violência domés-tica, que foi praticada dentro dos limites da afetividade da vítima, que pode renunciar tanto por seu afeto pelo agressor, tanto por estar subjugada à vontade do mesmo. A audi-ência prevista no artigo 16 da Lei 11.340/06 representa mais um mecanismo de proteção à vítima, podendo-se avaliar se a renúncia é mesmo de sua livre vontade.

5. ASPECTOS POLÊMICOS SOBRE A DESIGNAÇÃO DA AUDIÊN-CIA DE RETRATAÇÃO.

Nesse passo Nucci (2009) questiona a praticidade desta audiência na medida em que,

não é incomum que mulheres, quando o crime depende de representação (ex. ameaça), registrem ocorrência na delegacia de polícia, apresentem re-presentação e, depois, reconciliadas com seus companheiros ou maridos, busquem a retratação da representação, que, alguns autores denominam de renúncia evitando-se, com isso, o ajuizamento da ação penal ou segui-

Page 57: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

56

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

mento para a transação quando viável.

E continua dispondo no sentido de que o objetivo da lei, ao instituir tal audi-ência foi o de “atingir um maior grau de solenidade e formalidade para o ato, portanto, busca-se alcançar maior grau de conscientização da mulher.” Nucci (2009)

Afirma ainda Nucci (2009) que a excepcionalidade da audiência de retratação deve ser designada tão somente quando a mulher manifestar desejo de se retratar da representação.

Neste sentido, alerta Cunha (2008) que várias são as conseqüências práticas de tal designação sem indicação alguma por parte da vítima de que queira se retratar.

Primeiramente, a vítima pode, por absoluta falta de crença de que a justiça poderá lhe socorrer, vista a morosidade dos atos processuais, desistir do processo e se conformar em continuar sua vida muitas vezes ainda na companhia de seu agressor.

Outra hipótese bastante comum é que a vítima já tenha se reconciliado com o agressor, já o perdoou por mais um deslize, e prefira continuar vivendo o martírio que já faz parte de sua vida, sem que a justiça concorra para uma efetiva mudança de vida e melhoria da qualidade de vida de seus jurisdicionados.

Por essa razão,

A audiência de retratação, prevista no art. 16 da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) depende de prévia manifestação da parte ofendida, antes do recebimento da denúncia, a demonstrar sua intenção de retratar-se, seja por meio de autoridade policial seja diretamente no fórum. Brasil (2011)

Desta feita, em não ocorrendo esta manifestação, o autor do ilícito não tem direito a esta audiência.

Tem-se discutido se a nova lei compromete o efetivo exercício de representa-ção da vítima, pois apenas depois de oferecida a denúncia pelo Ministério Público é que o Juiz, antes de deliberar sobre seu recebimento, designa a audiência especial a que se refere o artigo 16 da Lei 11.340/06.

Todavia, alguns autores sustentam que a intenção do legislador foi ratificar a vontade negativa da vítima perante o juiz, em audiência designada para tal fim, ex-cepcionando o art. 25 do Código de Processo Penal e o art. 102 do Código Penal, que impedem a retratação após o oferecimento da denúncia.

Na prática, quanto ao comparecimento das vítimas na audiência judicial de retratação, tem-se observado que muitas delas deixam de comparecer por demonstrar desinteresse no feito.

Todavia, a ausência da vítima nessa fase processual tem gerado entendimentos divergentes nos Tribunais Pátrios, uns, defendendo que sua ausência representa retrata-ção tácita, outros, no sentido de prosseguir com a ação penal mesmo.

A título de exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no sentido de extinção da punibilidade diante do não comparecimento da ofendida em audiência preliminar, assim se manifestou:

Page 58: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

57

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPO-RAL LEVE. ART. 129, § 9º, DO CPB. RETRATAÇÃO TÁCITA DA REPRESENTAÇÃO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. O não compa-recimento da ofendida na audiência preliminar demonstra falta de inte-resse na possível punição do agressor, constituindo retratação tácita da representação, o que também foi revelado pela conduta posterior, quando declarou em juízo sobre a pacificação dos conflitos familiares. PROVIDA A APELAÇÃO. UNÂNIME.

Já em sentido contrário, o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios define que:

HÁBEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE AMEAÇA EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CON-TRA A MULHER. RECEPÇÃO DA DENÚNCIA SEM AUDIÊNCIA PRÉVIA PARA RATIFICAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DA VÍTIMA. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. NULIDADE NÃO RECONHECIDA. ORDEM DENEGADA.1 a audiência prévia de que trata o art. 16 da lei 11.343/2006 não é obri-gatória no processo e julgamento de crimes que também configurem violência doméstica e família. o procedimento só se justifica quando há pedido expresso ou indícios de que a vítima queira se retratar antes do recebimento da denúncia.2 não há nulidade se a ação penal por crime de ameaça prossegue normal-mente sem a intimação da ofendida para ratificar a representação colhida perante a autoridade policial.3 ordem denegada.

Apesar de não haver uniformidade na jurisprudência, não se deve esquecer que o interesse da Lei 11.340/06 é a proteção da mulher.

Assim, a ausência da ofendida na audiência preliminar demonstra a sua falta de interesse na possível punição do agressor, constituindo retratação tácita da represen-tação.

Portanto, insistir na continuidade do feito, mesmo com a ausência da vítima, seria adotar uma medida que iria de encontro aos seus interesses e tendentes a revigorar situações que se encontram pacificadas na entidade familiar, constituindo-se em verda-deira dupla vitimização.

Em sentido contrário, Porto (2008), concorda com a determinação da audiên-cia de retratação entendendo que “o legislador cercou esta decisão de garantias como a exigência de que a desistência ocorra em presença do juiz e seja ouvido o Ministério Público.”

De tal modo, a designação sem restrição, conforme restará discutido neste tra-balho, pode se mostrar como modo de vitimizar novamente a mulher.

Page 59: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

58

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

6. FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR.

Conforme bem explicitado pelo diploma legal em estudo, as formas de violên-cia doméstica não se restringem apenas àquelas já conhecidas do direito penal.

Em publicação da Escola Superior do Ministério Público da União, Morato e Santos (2009) destacam que os seguintes elementos, entre outros, são considerados para a definição de violência contra a mulher:

a) a natureza dos atos de violência, ou seja, as formas de violência a serem incorporadas (seja a violência física, a violência verbal ou psico-lógica e a violência sexual)b) o caráter que define o ato de violência, ou seja, se este expressa ou não exercício de poder, força ou coerção;c) o âmbito onde acontece a situação de violência, se o agressor e a agredida compartilham o mesmo domicílio;d) a relação entre as pessoas implicadas na situação de violência, ou seja, deve-se considerar o vinculo de parentesco ou a relação íntima atual ou anterior. Nesse sentido, incluem-se o (ex) marido, o (ex) cônjuge, o (ex) parceiro, o (ex) namorado.

Observa-se da redação do artigo 7º da Lei 11.340/06 que as formas de violência doméstica são amplas, verbis:

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, cons-trangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause pre-juízo à saúde psicológica e à autodeterminação;III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constran-ja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimô-nio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direi-tos sexuais e reprodutivos;IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que con-figure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos

Page 60: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

59

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas neces-sidades;V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Sandra Rizo (2009), que há mais de 26 anos atua junto às vítimas de violência doméstica e familiar, observa que existem três fases distintas na violência doméstica.

A primeira fase é o momento em que o agressor, nervoso, agride verbalmente a vitima, através de insultos. Neste momento, a agressão ainda é basicamente verbal.

Em segundo estágio, o agressor descarrega todas suas tensões e usa a violência para reprimir, controlar, submeter a vitima e exigir obediência. Nessa fase são comuns as vias de fato, as lesões corporais e todo tipo de violência física além das ameaça.

Posteriormente, vem a terceira fase, sendo o período de calma, quando o agres-sor promete mudar e promete nunca mais agredir.

Essas fases se revezam e se agravando a cada novo ciclo de ocorrências.

7. VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA – CONCEITUAÇÃO CRIMINOLÓGICA.

Foi Garófalo quem, no fim do século XVIII, apresentou um trabalho sobre a vítima do delito, dando início ao estudo de uma nova eficiência, hoje de grande impor-tância para o direito, qual seja, a vitimologia.

É cediço que, desde a origem do direito penal, deu-se uma importância muito grande ao criminoso – deliquente – e a pena, esquecendo-se da vítima. Por essa razão, o estudo da vitimologia é bastante recente.

Um exemplo dessa moderna tendência é a inserção do comportamento da víti-ma como uma circunstancia judicial para fins de aplicação da pena. Assim, ao aplicar a pena, nos termos do artigo 59 do Código Penal, o juiz deverá observar não só a culpa-bilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstancias e as conseqüências do crime, mas também o comportamento da vítima.

A vitimologia é definida como estudo da vítima, ela analisa a personalidade da vítima, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer do se sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimi-zador.

Segundo Fernandes e Fernandes (1995),

malgrado, o criminoso seja o ponto principal na apuração do fato delituo-so, urge, mercê do fato concreto, analisar também a possibilidade de culpa da vítima ou de sua participação inconsciente no crime, circunstância em que o ilícito poderia inexistir ou assumir inexpressivo significado.

Page 61: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

60

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

Conforme leciona Calhau (2006), ao contrário do aspecto racional, a vítima criminal sofre danos psíquicos, físicos, sociais e econômicos adicionais, em razão da reação formal e informal devida ao fato.

Por essa razão, o ressalta-se que não são poucos aqueles autores a afirmar que essas reações – formal e informal – trazem mais danos efetivos à vítima do que o pre-juízo derivado do crime praticado anteriormente, chamado pela doutrina de vitimização primária.

Nesse sentido, a sobrevitimização, também chamada de dupla vitimização ou vitimização secundária é o sofrimento adicional que a dinâmica da Justiça Criminal (Ministérios Públicos, Poder Judiciário, Polícia), com suas falhas de procedimentos, bem como com suas mazelas naturais, provoca normalmente na vítima.

Isso pode ser retratado, por exemplo, com o descaso com que são tratadas as ví-timas na fase da investigação criminal. Há, não raras vezes, tratamentos de desconfiança daqueles que perquirem o crime, em especial naqueles de cunho sexual e de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Também cumpre destacar que, de uma forma geral, como destaca Dourado (apud MATTOS, 2006), a própria sociedade não se preocupa em amparar a vítima, chegando a, nos casos de violência domestica, incentivar à manutenção do anonimato.

Esse comportamento social, em que pese não se tratar do cerne deste artigo, implica na tão evitada cifra negra, sendo esta, o grupo formado pela quantidade consi-derável de crimes que não chegam ao conhecimento do sistema penal.

A título de complementação, a doutrina discute até a existência de uma vitimi-zação terciária. De tal modo, essa cifra negra é uma das responsáveis pela questionável falta de legitimidade do sistema penal vigente no Brasil, considerando que apenas uma quantidade ínfima de crimes chegam, efetivamente, ao conhecimento do Poder Público.

Retomando a questão da vitimização secundária,

Critica-se a pressuposição de papeis de gênero de maneira dualista e fixa, em que os homens são vistos como algozes e as mulheres como vítimas. Embora a dualidade vítima-algoz facilite a denúncia da violência, Grogori aponta para os limites da visão jurídica dessa dualidade. “existe alguma coisa que recorta a questão da violência contra as mulheres que não está sendo considerada quando ela é lida apenas como ação criminosa e que exige punição. (GREGORI, 1993, apud SANTOS; IZUMINO, 2005, p. 6-7, apud MORATO, ano; CAMPOS, 2009, p.23.

8. DA VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA NA LEI 11.340/06.

Desde a Grécia antiga já se considerava que a maior qualidade da mulher era servir ao homem. De tal modo, como sinaliza Bacila (ano), o estigma da mulher sina-lizou em quase todos os tempos que a mulher é um ser inferior, um ser impuro, com cérebro pequeno, pervertida moralmente e sujeitas às imundices que a sujariam para

Page 62: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

61

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

sempre.A partir de meados da década de 70, a moderna criminologia vem criticando a

posição original conferida à vítima no processo penal.Em especial com relação às mulheres, o tratamento dado a elas por parte do

sistema de Administração da Justiça é ponderado pela Criminologia Feminista.A criminologia feminista entende que o sexo é uma das variáveis que mais

influenciam na vida pessoal dos indivíduos. Assim, ser homem ou ser mulher afeta di-retamente nas opções que uma pessoa pode fazer em sua vida e também sua ocupação cotidiana, bem como os controles informais a que é submetida.

Esse ramo da Criminologia insistiu, em especial, nas diferenças de tratamento que podem receber mulheres e homens no sistema de Administração da Justiça.

Isso se reflete no fato de que, não raras vezes, as mulheres teriam comporta-mentos machistas no sentido de se apresentarem como pessoas desprotegidas e desfavo-recidas que deveriam ser julgadas com menor rigor que seus companheiros. (MAÍLLO, ano)

O processo penal formal exclui de seu âmbito o conflito entre a vítima e o autor, fazendo invisível esse conflito, despersonalizando a vítima, impedindo o contato pessoa entre a vítima e o autor.

De tal modo, o processo penal tradicional não persegue os anseios das vítimas nem a reparação do dano do delito.

Entretanto, a moderna criminologia está introduzindo inovações, em especial no que tange o modelo de vingança institucional, reconhecendo à vítima seu papel de ator principal, dando-lhe, inclusive, voz ativa na busca da reparação dos danos. Nesse sentido, a moderna criminologia reconheceu que a vítima não tem necessidade só de proteção, mas também de participação. Assim, ouvir os desejos da vítima implica tam-bém em uma maior democratização do sistema penal.

Não é concebível que a vítima, além, de alvo do delito, seja também vítima da intervenção do sistema legal, sofrendo prejuízos reais e graves.

As instancias formais de controle social destinam-se a evitar a vitimização pri-mária. No momento em que produzem a vitimização secundária, trazem uma sensação de desamparo e frustração maior do que a vitimização primária.

A vitimização secundária causa também uma grave perda de credibilidade das instancias formais de controle social e a vítima não encontra resposta para seus anseios.

Na vivencia dos casos de violência de doméstica e familiar contra a mulher, não são raros os casos em que as vítimas choram, se desesperam, e se retratam da representação em crimes de lesão corporal leve e, mesmo assim, o Ministério Público oferece denúncia.

Por outro lado, conforme destacado neste trabalho, após a representação reali-zada na delegacia de polícia, mesmo sem demonstrar interesse em eventual retratação, são designadas audiências para tal ato sob o argumento da prevenção geral, ignorando os anseios das vítimas e vitimando-as novamente.

De conseguinte, consoante magistério de Cunha (2008, p. 113-114),

Page 63: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

62

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

na esmagadora maioria das vezes, se percebe a rápida reconciliação en-tre os envolvidos, servido o processo penal apenas para perturbar a paz familiar, quando a finalidade do aplicador da lei deve ser, sempre, a pre-servação da família... .

Resta adequada, sem dúvida, a colocação de Porto (2008, p. 3), quando adverte:

a mulher vítima de violência doméstica sofrerá pressão para desistir da representação oferecida e que, dependendo de sua condição econômica ou social esta pressão poderá exercer acentuada influência em sua decisão, não é menos certo asseverar que a Lei 11.340/06 também visa minimizar ou eliminar por completo esta constelação de fatores perversos que lhe diminuem a liberdade de escolha, criando condições propícias para uma decisão mais livre por parte da vítima, e o faz ao estabelecer importantes medidas protetivas que obrigam o agressor (arts. 22 e 23) e que benefi-ciam diretamente a ofendida (art. 24), além das garantias de transferência no serviço público e manutenção do vínculo empregatício (art. 9º, § 2º, I e II).

A audiência exigida pela Lei é obrigatória, não podendo ocorrer a manifesta-ção sem a devida formalidade legal. Pretende a lei evitar outras influências, tais como pressão social, familiar ou até do próprio agressor, que venham a camuflar a verdadeira vontade da vítima, servindo como mais uma forma de violência (psicológica).

o direito de decidir sobre representar ou não pressupõe a possibilidade de conciliação civil, o que, seguramente, atende a interesses da vítima, nem sempre sediados na exclusiva punição criminal do seu agressor, mas, fundamentalmente atrelados ao interesse reparatório dos danos sofridos, inclusive aqueles de caráter moral que, segundo afirma a doutrina da res-ponsabilidade civil extramaterial, têm evidente caráter punitivo e pode importar em severa punição ao agressor.

Sobre a possibilidade de se submeter a ofendida à uma dupla vitimização, Sil-veira (2008) se manifesta entendendo que:

É dentro dessa realidade de neutralização, que a vítima sofre duas viti-mizações: a primária decorrente do próprio crime, e a secundária, resul-tante do modo como é maltratada pelo sistema legal, cujo formalismo, criptolinguagem, burocracia e até mesmo aviltamento por descrédito, tornam-na mais um objeto do que um legítimo sujeito de direitos. Esta nefasta realidade distancia em muito a meta de trazer a vítima para dentro do sistema, ressocializando-a e reparando o dano sofrido, de forma mais pronta e solidária.

Por fim, Souza e Fonseca (2006, p. 4) lecionam que:

Na sociedade atual percebe-se a decisão das vítimas de minimizar ou es-conder episódios violentos. Mesmo que a denúncia terá como conseqüên-

Page 64: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

63

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

cia a estigmatização da mulher como fraca e incapaz de reagir, além de tumultuar a vida familiar e atiçar o conflito. Em outras palavras, nota-se uma dupla vitimização das mulheres: para evitar a segunda vitimização pela sociedade e pelas agências estatais, elas preferem aceitar a primeira vitimização.

9. CONCLUSÃO.

Por todo o exposto, conclui-se que a vontade da vítima deve ser respeitada por uma série de razões.

Primeiramente, o respeito à vontade da vítima está relacionada diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Pela simples e objetiva razão de ser a vontade da vítima a expressam mais imanente de sua dignidade como ser humano.

Ademais, a Lei 11.340/06 foi criada primordialmente para dotar as mulheres vítimas de violência de gênero e/ou doméstica de direitos e instrumentos de natureza social de cunho de saúde pública, além de instrumentos jurídicos, que possibilitem a sua proteção de maneira eficaz, proteção essa que o Estado se negou disponibilizar à mulher que deu nome à Lei, a Senhora Maria da Penha, diante dos reiterados fatos graves contra ela perpetrados.

No entanto, em nome dessa assistência, o referido diploma legal não pode ser utilizado contra as próprias mulheres, passando por cima de suas próprias vontades e causando-lhes vitimização secundária.

De tal modo, somente após a manifestação dessa vontade da vítima, o juízo deverá designar a audiência para sanar as dúvidas sobre a continuidade da ação penal.

É cediço que a reconciliação do casal é sempre fator positivo, mas não pode mais significar o silêncio da justiça naquele caso.

As estatísticas são alarmantes ao nos informar o alto índice de reincidência. A mulher brasileira, até por questões culturais, chega a considerar normal viver anos seguidos suportando as ameaças e agressões, e são tentadas a perdoar, dar outra chance, mesmo que saibam, no seu íntimo, que as agressões são parte da rotina da família.

MARIA DA PENHA LAW, DISCLAIMER OF HEARING AND NEED TO DOUBLE VICTIMIZATION.

ABSTRACTThis work is a review article whose general objective is to analyze the need for designa-tion of the hearing to withdraw, or ratification, as required by Law 11.340/06 in article

Page 65: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

64

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

16, for all victims of domestic violence against women who report crimes to the police and civilian police any secondary victimization that occurs in this record. This is an exploratory research realized upon a bibliographic and documental review aout the the perspectives surrounding the Law 11-340, which states on domestic violence against women, more specifically on aspects of the hearing to withdraw, in particular, their need and possible secondary victimization that may result from it. Concludes the work, des-pite the Brazilian woman, even for cultural reasons, come to consider normal living ye-ars in a row supporting the threats and attacks, and be tempted to forgive, give it another go, your will must be respected, especially considering the principle of human dignity.

Keywords: Law Maria da Penha. Hearing Disclaimer. Need to withdraw the designation of the hearing. Only need protection. Secondary victimization.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. É desnecessária designação de audiên-cia para retratação na Lei Maria da Penha. Texto enviado ao JurisWay em 9/10/2010. Disponível em < http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4823>. Acesso em 25.07.2011

BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos. Ed. Lúmen Júris, 2008.

BRASIL, Rebeca Ferreira. Violência Contra a Mulher Cearense: Desafio da Vitimologia. Disponível em: < http://copodeleite.rits.org.br/apc-apatriciagalvao/home/violenciacontraamulhercearenserebecabrasil.doc>. Acesso em 28 ago. 2011.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Anotações críticas sobre a lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 1146, 21 ago. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8822>. Acesso em: 10 Abr. 2011.

CUNHA, Rogério Sanches. Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), comentada artigo por artigo. 2. ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia. Ed. Impetus. 2006.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Page 66: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

65

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

FERNANDES Newton e FERNANDES Valter. Criminologia Integrada. 1ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1995.

JESUS, Damásio E. de. Código de Processo Penal Anotado. 24ª Ed. São Paulo. Saraiva, 2010.

MAÍLLO, Alfonso Serrano. Introdução à Criminologia. Ed. Revista dos Tri-bunais. 2007.

MATTOS, Taciano de Jesus. O homicídio passional como manifestação narci-sista: a qualificação do crime passional por motivo torpe. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8113>. Acesso em: 12 set. 2011

MOLINA, Antonio García-Pablos. Criminologia. 3ª. Ed., Tradutor: Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2010.

MORATO, Alessandra Campos; SANTOS, Claudiene; RAMOS, Maria Eve-line Cascardo; e LIMA, Suzana Canez da Cruz. Análise da relação sistema de justiça criminal e violência doméstica contra a mulher; a perspectiva de mulheres em situação de violência e dos profissionais responsáveis por seu acompanhamento. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais. 2009.

PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de Processo Penal. 13ª Ed. São Paulo. Ed. Lumen Júris, 2010.

PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações Preliminares à Lei 11.340/06. 20 mar. 2008. Disponível em http://www.mp.rs.gov.br/areas/criminal/arquivos/ lei-11340pedrorui.doc. Acesso em: 02 abr. 2011.

RIZZO, Sandra. Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. 2009. Editora Auriverde.

RIZZO, Sandra. A violência doméstica afeta a todos os setores da sociedade. Disponível em http://wwwsandrarizo.blogspot.com/2010/05/violencia-domestica-e-familiar.html.

SILVEIRA, Laís Maria Costa. O Ministério Público e os 20 da Constituição da

Page 67: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

66

Lei Maria Da Penha, Audiência De Retratação E Necessidade De Dupla Vitimização

República. [entre 2008 e 2010]disponível em: www.mp.mg.gov.br/portal/public/inter-no/arquivo/id/3980. Acesso em 08.07.2011

SOUZA, João Paulo de Aguiar Sampaio; FONSECA, Tiago Abud da. A apli-cação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim do IBCCrim, n. 168, Nov. 2006,.

SUMARIVA Gracieli Firmino da Silva. Lei Maria da Penha e as medidas protetivas da mulher. Disponível em < http://jusvi.com/artigos/24411 >. Acesso em 08.07.2011

Erika Bueno Muzzi - Pós-graduada pela Escola da Magistratura do Distrito Federal e Territórios. Atualmente é professora orientadora Núcleo de Práticas Jurídicas da União Pioneira de Integração Social – UPIS, Professora de Direito Tributário da Faculdade Iesplan e advogada da Bueno Monteiro Advogados Associados. Endereço postal: SEPS 708/907 Lote B, Faculdade IESPLAN, Coordenação de Direito, Brasília – DF. Endereço eletrônico: [email protected]

Page 68: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

67

Revista Jurisplan - 2012

POR ONDE PASSA A DESIGUALDADE? UM PANORAMA ESTRUTURAL

José Bittencourt FilhoRESUMONa correlação entre acesso à justiça e direitos fundamentais existe uma perspectiva de sociedade brasileira pressuposta configurando uma espécie de ‘pensamento único’ na cultura jurídica contemporânea. O presente artigo de revisão curta pretende reiterar quanto à necessidade de um novo direcionamento para os estudos jurídicos, baseado na interdisciplinaridade voltada para a busca da relação entre o acesso à justiça e os direitos fundamentais. A metodologia usada foi uma revisão bibliográfica e documental sobre um contexto temático multidisciplinar envolvendo os horizontes teóricos dos as-pectos humanísticos, de fatores estruturais do Estado-Nação, da chamada nova ordem e da questão do indivíduo, dentro de um novo cenário que apresenta na realidade atual. Conclui o trabalho sobre a necessidade de um empenho interdisciplinar no qual as ci-ências do social devem desempenhar um papel de destaque na descrição, compreensão, e interpretação do perfil da sociedade brasileira atual, assim como do quadro estrutural do capitalismo globalizado.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Sociologia jurídica. Acesso à justiça. Globali-zação.

1. INTRODUÇÃO.

Portanto, mesmo havendo sociedade sem direito, posição marcadamen-te minoritária entre os juristas, não se afirma a possibilidade de direito sem “sociedade”, esta palavra compreendida no sentido básico de mais de uma pessoa convivendo em algum mesmo lugar simultaneamente, segun-do determinadas regras. Um conceito acompanha o outro (ADEODATO, 2006).

É quase um truísmo dizer que os pintores e fotógrafos quanto captam e pro-duzem as imagens utilizam um criterioso contraste de luz e sombra, de modo a desta-car aquilo que desejam e encobrir o que consideram menos importante numa imagem específica que decidem transmitir. Muito são os enfoques possíveis dos fenômenos de que cuidam as ciências sociais. A dinâmica social é tamanha que não só é impossível esgotá-la numa única abordagem, tampouco na escolha de um fenômeno, e nem mesmo numa combinação deles.

Page 69: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

68

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

Neste breve ensaio pretende-se destacar um aspecto diretamente ligado tanto à metodologia da ciência quanto na prática jurídicas, qual seja, a visão de sociedade embutida ou pressuposta na perspectiva que formula os pressupostos e ilumina os pro-cedimentos. Em outras palavras, busca-se contemplar a relação entre teoria e prática no Direito, tomando como objeto justamente o eixo temático da presente publicação – a correlação que pode ser estabelecida entre o acesso à justiça e os direitos fundamentais.

Na verdade, acesso à justiça é uma expressão que comporta um elevado grau de complexidade, na proporção que existe para determinar finalidades básicas do sistema jurídico, ou seja, o sistema por meio do qual os cidadãos e cidadãs podem reivindicar seus direitos e/ou solucionar litígios sob os auspícios do Estado. Por princípio deve ser considerado que esse sistema deve ser igualmente acessível a todas as pessoas e, acima de tudo, deve produzir resultados – individual e socialmente – justos. Portanto, o acesso à justiça seria um elemento constitutivo da identidade do Estado de Direito, e um fator fundante e essencial para a concretização do Estado Democrático de Direito. E isto em virtude de que o acesso à justiça possui o condão de garantir a concretização de um princípio básico da arquitetura democrática – a isonomia. Se todas as pessoas são iguais perante a lei, a administração e a aplicação da justiça podem e devem tornar-se instrumentos eficazes no combate à desigualdade.

Contudo, sabe-se que no plano da prática não é assim que acontece. A desigual-dade social impõe uma seletividade que não será banida apenas pela descentralização jurisdicional, pela alternância de procedimentos, nem expedientes similares, direciona-dos apenas para a ampliação da eficiência e da eficácia na administração e na aplicação do direito. Não se pode confiar numa solução intramuros, posto que, em primeiro lugar “... o sistema jurídico não pode ser visto como bastante em si mesmo.

“A crença na plenitude do ordenamento não é, assim, uma questão lógica, mas somente um ideal” (SOUZA, 2005, p. 191). E em segundo, faz-se mister reconhecer que os contornos e a trajetória da desigualdade social estão em pleno refazimento, segundo um enredo sutil no qual atuam gigantes forças externas. Para tanto, o concurso das ciên-cias do social torna-se imprescindível, uma vez que a moderna burocracia nos quadros da dominação racional, altera as formas pelas quais o homem se ocupa o seu objeto de estudo. O pensamento instrumental, voltado à consecução das finalidades traçadas pelo Estado intervencionista torna cada vez mais tênue a linha divisória entre ciência e aplicação. São os corpos de especialistas, a serviço de uma determinada finalidade, que detêm o monopólio da produção cultural legítima.

A reflexão científica do direito é, contudo, tardia. Isto explica a razão por que o jurista, na tentativa de emancipar o direito em relação aos saberes empíricos e especu-lativos, procurar traçar um corte entre ciência e realidade, no que se revela uma forma de idealismo. Tal circunstância, paradoxalmente, dotou o pensamento jurídico de um alto grau de operacionalidade, ao permitir que os atores sociais, ignorando aquilo que as categorias e demais elaborações jurídicas têm de arbitrário, atuem como uma espé-cie de cumplicidade no processo de domesticação ao qual eles próprios se submetem (SOUZA, 2005, p. 277)

Por tudo isso, cabe a advertência quanto à tendência de se recorrer à sociologia

Page 70: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

69

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

geral e jurídica apenas como um receituário que se consulta em situações de “emergên-cia”, visto que tal atitude, além de reduzi-la, torna o próprio Direito, na qualidade de uma ciência, carente de um dos seus elementos mais fundamentais: a compreensão do social como base para a implantação da Justiça. A par disso é prudente rechaçar a falsa alternativa entre direito como ideologia ou como ciência. Dizer que o direito é uma ide-ologia é perder de vista tanto a lógica quanto o efeito específico do direito.

É oportuno também descartar a visão ingênua que pretende o direito como uni-versal, quer como ciência, quer como sistema de normas. O fundamento do direito se encontra unicamente na história, na história das sociedades humanas, e isso não aniquila suas pretensões de universalidade. Este sistema de normas autônomas que é o Direito, não caiu do céu, nem surgiu dotado de uma racionalidade universal, posto que é um produto de demandas sociais e, com freqüência, um instrumento nas mãos das classes dominantes e dirigentes.

O presente ensaio pretende lidar com fundamentos. Não apresenta soluções, nem sequer encaminhamentos práticos, ele apenas articula um conjunto de reflexões que deverão ser consolidadas pelos próprios leitores, a par das demais contribuições que esta publicação teve a o privilégio de reunir. Para tanto, buscou-se traçar contorno atual das causas do quadro da desigualdade socioeconômica, responsável por um novo regime de divisão social do trabalho, e de um novo panorama da estratificação social na sociedade brasileira e terceiromundista.

Fez-se por meio de um cotejo temático, que se reitera ao longo do trabalho, entre a demanda humanística e a antropologia filosófica inerente, a noção de dignidade intrínseca da pessoa humana, um quadro estrutural e conjuntural (a título de pano de fundo); e o papel do indivíduo, que informam uma discussão metodológica crítica acer-ca do pensamento e da prática vigentes do Direito; e tudo isso tomando como referência o tema axial, o acesso à justiça e aos direitos fundamentais.

Talvez este trabalho aponte, explícita ou implicitamente, algumas perspectivas e condutas consideradas impensáveis nos seguintes níveis: no da cultura jurídica e na do pensamento jurídico dominante; bem como no da formação social do Brasil de hoje. Contudo, solicita-se paciência abertura de pensamento aos eventuais leitores e leitoras, pois, caso se consiga subir apenas um degrau acima do pensamento único que os inte-resses dominantes têm se empenhado em impor, tais reflexões poderão contribuir para outros projetos intelectuais mais abrangentes, voltados quer para uma renovação da cul-tura jurídica nacional, quer para o grande mutirão necessário pra que se possa formular um modelo de sociedade menos desigual para este País.

Sobretudo, ele aponta de forma direta e indireta para a necessidade de um novo direcionamento para os estudos jurídicos, uma vez que se constata a necessidade ur-gente de uma formulação mais adequada e pertinente para os cursos de direito, a partir da premissa de que o profissional do Direito não pode mais se conter no modelo de especialização, para o que tendia o ensino jurídico das últimas décadas. Exige-se um profissional versátil, com sólida formação teórica e humanística; apto a compreender e interpretar as mudanças sociais, políticas e econômicas, habilidades que o estrito co-nhecimento do direito positivo não proporciona. Assim, uma formação interdisciplinar

Page 71: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

70

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

torna-se imprescindível. O conhecimento jurídico deve sair cada vez mais do casulo epistemológico em que se encontra e mesclar-se com o que se produz de melhor em outros domínios do conhecimento humano.

2. NOTAS HUMANÍSTICAS.

Pensadores de diferentes áreas e com diferentes orientações teóricas têm de-monstrado em seu ofício de produtores de conhecimento, uma preocupação cada vez mais intensa com a questão do humanismo. Isto se prende a fato de que nas últimas décadas, povos e países estão experimentando uma reestruturação regressiva de con-quistas historicamente obtidas, e que se consolidaram no conjunto denominado Direitos Humanos. O que se apresenta como desafio às forças vivas em quaisquer sociedades é a elaboração de uma nova perspectiva ético-moral, que consiga fazer frente ao galopante processo de desumanização decorrente da massificação pelo consumo e pela ideologia do mercado total. Vale ponderar que avaliar o ser humano concreto como valor axial se converte no ponto de partida para a estruturação do Direito e da Justiça sob novas bases. Como bem assinala Wolkmer (2005, p. 20):

O humanismo aparece como forma de resistência simbólica na Renas-cença ameaçada pelo fanatismo religioso, no Iluminismo na qualidade de uma contrapartida contra o nacionalismo extremado e a escravização do ser humano pela máquina e pelos interesses econômicos e, na contempo-raneidade, conota os efeitos perversos da globalização

Não é novidade que os direitos fundamentais, e os valores neles incluídos, não foram prontamente reconhecidos. A conquista deles deu-se num clima de lutas e diver-gências, tendo custado até mesmo a vida de muitos que os buscaram. É também sabido que dada a sua complexidade, a noção de dignidade da pessoa humana envolve aspectos oriundos das muitas dimensões da realidade; muito embora tenha como base o fato de que o ser humano, na qualidade de um ser autônomo e racional, é capaz de conduzir-se por normas que ele próprio formula e estabelece.

Daí que o homem não aparece no mundo como um ser a mais, que pode ser usado para utilidade e proveito de outros. De sua racionalidade e independência interior resulta que se conhece e governa a si mesmo e que é um ente autônomo, que não pode ser considerado como um puro objeto, coisa que outro ser do mundo possa possuir ou destinar para um fim qualquer.

A posição de respeito à dignidade da pessoa humana, moralmente correta, deve impor-se ao legislador, mas tendências individualistas extremaram, a ponto de chega-rem a afirmar que o direito de um só homem é tão sagrado como o de milhões. (...) Cremos que os direitos da pessoa humana não possam ser obstáculo ao cumprimento de medidas que se destinem ao bem da humanidade inteira ou do conjunto humano

Page 72: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

71

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

que constitui uma sociedade civil, porquanto o bem do organismo social compreende e supera o dos indivíduos que dele fazem parte e, assim, deve ser considerado prevalente ao de uma só pessoa ou de um grupo de pessoas (NOVOA MONREAL, 1988, p. 84).

Diga-se de passagem: no que tange à esfera política da existência social, a democracia seria a expressão mais adequada da dignidade humana, posto que pertence à essência moral do ser humano. A dimensão ética diz respeito à essência mesma do projeto democrático. Por conseguinte, qualquer intento de efetivação de uma autêntica democracia, situa em primeiro plano as exigências éticas da ação política. No plano da ética é que poderá ser confirmado o êxito da experiência democrática, e com ele, o destino da liberdade nas sociedades atuais.

É prudente advertir que a expressão dignidade humana é reconhecidamente po-lissêmica. A despeito disso, comporta uma imensa riqueza de conteúdo; por isso, mes-mo se constatando a persistência de um certo grau de indeterminação, o conceito pode e deve ser utilizado com desenvoltura. No âmbito das ciências humanas e sociais, vocá-bulos e expressões técnicas têm sido amplamente manejados mesmo sem a garantia de uma total precisão conceitual. Seria injustificável limitar a reflexão acerca da temática devido à falta de uma definição universalmente aceite. De semelhante modo, seria equi-vocado confinar a questão ao plano subjetivo; pois ambas as posturas poderiam tanto induzir abusos quanto erigir obstáculos a qualquer discussão proveitosa e conseqüente.

A inteligência, a consciência de si, a capacidade de autodeterminação e a au-tonomia, que desembocam na liberdade, situam as pessoas humanas num patamar aci-ma do reino animal, ao mesmo tempo em que revela sua dignidade intrínseca. E isso permite à pessoa humana poder reivindicar respeito absoluto. A experiência histórica inclusive evidencia que, em última instância, a pessoa humana é irredutível aos condi-cionamentos e determinações psicológicas, sociológicas e culturais, portanto, a dignida-de seria o substrato mesmo da condição humana; e que não pode prescindir de proteção normativa específica, como ressalta Sarlet (2006, p. 145):

Por derradeiro, parafraseando desta feita em outro contexto, a famosa e multifacetada assertiva de Dworkin de que o governo que não toma a sério os direitos não leva a sério o Direito, podemos afirmar que a ordem comunitária (poder público, instituições sociais e particulares) bem como a ordem jurídica que não toma a sério a dignidade da pessoa (como qua-lidade inerente ao ser humano e, para além disso, como valor e princípio jurídico-constitucional fundamental) não trata com seriedade os direitos fundamentais e, acima de tudo, não leva a sério a própria humanidade que habita em cada um e em todas as pessoas e que as faz merecedoras de respeito e consideração recíprocos.

Cada antropologia de cunho filosófico e cada modalidade de humanismo afir-mam coisas a respeito do que os seres humanos são ou deveriam ser. Portanto, em virtude do contexto cultural em que se encontram inseridas as pessoas, os grupos, e as nações, existem as mais diversas interpretações e diferentes imagens do ser humano. Na civilização ocidental a ênfase na dignidade intrínseca do ser humano principia historica-

Page 73: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

72

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

mente no Renascimento. No contexto desse movimento cultural essa ênfase apresentava alguns traços característicos, tais como o enaltecimento da dignidade e da liberdade hu-manas; o reconhecimento de uma natureza humana estável e definitiva, muito embora não se tratasse de uma essência estática, mas sim, construída por intermédio o pleno uso da liberdade e; a exaltação do ser humano como um microcosmo que reúne em si mesmo todas as propriedades do macrocosmo.

No século XIX, com o advento do idealismo e do positivismo, o humanis-mo perde quase totalmente o significado renascentista, e mesmo quando o vocábulo é utilizado, supõe a pessoa humana como um ser estritamente natural. No século XX o humanismo retorna, porém, no interior de correntes filosóficas concorrentes entre si no tocante à interpretação da natureza essencial do ser humano.

Vale acrescentar que tais interpretações antropológicas não permaneceram res-tritas ao âmbito filosófico mas também passaram a fazer parte da arena política, com-pondo discursos pela conquista do poder. Por exemplo: na Europa, o humanismo cristão se enquadra no movimento de abertura da Igreja Católica para o mundo moderno, assim como da formação dos partidos de inspiração cristã que pretendiam conter o avanço tanto da esquerda marxista quanto do liberalismo

A propósito é oportuno registrar o que nos ensina o filósofo:

O tema da gênese e concepção do Direito, forma da sociedade política, está desta sorte intrinsecamente ligado à concepção do homem que dá razão desses direitos – que são, por excelência, direito humanos –, do-minante na sociedade em que tais direitos são reconhecidos se não efeti-vamente respeitados. Há, assim, uma antropologia política fundamental que, em formas diversas, acompanha a história já relativamente longa das sociedades políticas do Ocidente. Desde a chamada “cosmonomia” do Direito arcaico Grécia até o conflito dos humanismos ou mesmo às ten-dências anti-humanistas que refletem a crise das sociedades políticas con-temporâneas, estamos diante de uma sucessão de concepções do homem, cuja função histórico-ideológica, explicitada freqüentemente na intenção dos pensadores que as formularam ou interpretaram, define-se justamente como tarefa teórica, ora de crítica ora de justificação, da própria prática política, ou seja, do tipo de relação entre o poder e o direito reconhecida na sociedade (Lima Vaz, 2002, p. 207s).

Portanto, a construção de uma nova cultura jurídica para os novos tempos, deveria tomar por base o coletivo social mais excluído e oprimido e, com efeito, buscar novas fontes de legitimação. Como substrato dessa busca de legitimação existe um cri-tério axiológico básico: conferir prioridade ao atendimento das necessidades das maio-rias empobrecidas, concebida como a manifestação plena da Justiça, o que implica, entre outros aspectos, na adoção de uma ética da alteridade. Essa ética comportaria, em primeira instância, a ênfase numa solidariedade que tenha como ponto de partida as necessidades dos segmentos humanos excluídos e discriminados e que se propõe a uma ação cultural voltada para a emancipação e a autodeterminação das pessoas, e assim, o reconhecimento de novas identidades coletivas. Por conseguinte, no plano prático, afir-

Page 74: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

73

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

mar a dignidade da pessoa humana significa romper com o convencional e incorporar novos valores que nascem de práticas sociais emancipatórias.

Vale a advertência do humanismo existencialista, para o fato de que muitas vezes o Homem tem sido analisado, tanto entre as ciências humanas quanto nas biológi-cas, como um ente, um objeto, um fenômeno natural qualquer, olvidando-se dessa ma-neira que é o próprio ser humano quem põe em questão os entes. Logo, entre os entes do mundo real e o ser humano existiria uma diferença fundamental de natureza ontológica, que a visão (pós)moderna tende a reduzir cada vez mais. Na atualidade, os seres huma-nos estão sendo reduzidos a “coisas”, isto é, a máquinas biológicas ou termodinâmicas, definidos segundo sua utilidade no plano da produtividade e do consumo.

Neste decurso global de coisificação, não existe nenhuma possibilidade de se fundamentar valores, exceto aqueles referentes à utilidade. Neste quadro, o significado e o sentido da existência humana vão desaparecendo e cedendo espaço à destrutividade e ao niilismo, configurados como quase inerentes à sociedade tecnológica. Nesse qua-dro, o perigo maior reside nessa imagem de “máquina biológica” ingressar no domínio pré-lógico, isto é, naquele plano sobre o qual se constroem e se articulam os discursos, plano este que não se observa nem se estuda; é o mundo dos fatos sobre os quais se está de acordo a priori e não se discute; seria o mundo da verdade social inconsciente (Foucault).

Um exemplo de paradoxo que nasce desta visão aparece quando o assunto é o meio-ambiente: A maioria das correntes ambientalistas, que se inscrevem numa pers-pectiva puramente naturalista do ser humano, desconhece as razões pelas quais, a má-quina humana estaria funcionando mal e coisificando o meio ambiente natural. Ora, eliminadas a liberdade e a intencionalidade, não sobram explicações para esse defeito de funcionamento! Disso decorre uma perspectiva trágica e negativista da raça humana que justificaria até mesmo seu desaparecimento, e isto em prol do equilíbrio da vida no planeta?

No plano da política outro paradoxo se apresenta quando se deseja construir valores superiores de igualdade e solidariedade, pois, a partir de uma perspectiva es-tritamente materialista do ser humano, cabem algumas indagações: Como poderia uma máquina biológica que responde apenas a estímulos mecânicos, construir valores trans-cendentes? Qual seria o fundamento de contestação contra as leis de mercado do neoli-beralismo, de cunho científico, que promovem a seleção natural por meio da atividade econômica? Felizmente, nas duas últimas décadas, surgiram movimentos nos campos político, filosófico, e mesmo no da Física, que situam o ser humano em primeiro plano, e que reivindicam para ele uma posição central e especial no mundo natural, e que assim propiciam e induzem uma nova concepção antropológica humanística.

Vale registrar que o humanismo não é um fenômeno delimitado cronológica e geograficamente. A rigor, trata-se de um fenômeno que se desenvolveu em diversas partes do mundo, em diferentes épocas e culturas. É isto que lhe imprime uma direção convergente num planeta unificado pelos meios de comunicação de massa.

Em suma: A consciência humana não seria apenas um reflexo passivo e/ou deformado do mundo natural, mas fundamentalmente uma atividade intencional, bem

Page 75: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

74

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

como uma atividade incessante de interpretação, reconstrução, e reinvenção do mundo natural e cultural. O ser humano, embora participe do mundo natural na medida em que possui um corpo, não é redutível a um simples fenômeno natural, não possui uma natureza acabada, uma essência definida, mas é um projeto de transformação do mundo natural e de si mesmo.

Tal projeto consiste na humanização da Terra, ou seja, na eliminação de todas as formas de violência e alienação que privam os seres humanos de sua intencionalida-de e de sua liberdade, e que os reduz a objetos e instrumentos da intencionalidade de poucos.

Mas qual pode ser, em um planeta unificado compulsoriamente, no qual se con-trapõem mundividências, objetivos, interesses, e valores contrastantes, um denomina-dor comum que faça convergir os povos, as culturas e as religiões? Em resposta, alguns parâmetros podem ser estabelecidos, considerando-se que a partir de tais parâmetros seria possível a busca de um humanismo universal, nos planos pessoal e coletivo, na qualidade de um patrimônio e de um horizonte exeqüível para todas as culturas, a saber: a) a centralidade do ser humano como valor e como preocupação; b) afirmação da igual-dade intrínseca da raça humana; c) reconhecimento e respeito pela diversidade cultural e individual; d) a busca pelo conhecimento humanizador; e) afirmação da liberdade de pensamento e de credos; e f) repúdio às várias formas veladas e explícitas de violência desumanizantes.

3. FATORES ESTRUTURAIS.

Em virtude da globalização, os indivíduos têm extrema dificuldade de situar-se num processo social em que o Estado-Nação perde prestígio e cede espaço a megacen-tros mundiais de poder, assim como novas formas sutis de dominação. A complexidade e as contradições são de tal monta que os donos do poder não podem ser facilmente identificados. Assim, as pessoas se tornam cada vez mais distantes dos núcleos de deci-são política, em face do modelo que desloca a soberania para o âmbito das corporações, organizações, e conglomerados multinacionais e transnacionais.

Nesse quadro a possibilidade de participação política vê-se reduzida, na medida em que a diversidade de alternativas retira do indivíduo a capacidade de escolha. Isso se agrava tendo em vista que a virtualidade da mídia pasteuriza a relevância, a pertinência e a atualidade dos fatos sociais, culturais e políticos. Dessa maneira, o problema maior para as pessoas reside em identificar a essência dos fatos e eleger parâmetros confiáveis de interpretação da realidade.

Como eixo principal do processo de globalização encontra-se o consumo. A globalização mergulha as pessoas numa crise que deriva da oscilação entre satisfazer todos os desejos e necessidades, e a realidade que não lhe permite tal satisfação. Essa crise constante distancia o indivíduo das escolhas racionais e o insere no amplo decurso

Page 76: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

75

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

da massificação, ou seja, o da homogeneização cultural, que não apenas gera distorções, mas também impede a plena, consciente e conseqüente participação política.

A chamada informação em tempo real não permite que os indivíduos possam discernir entre as necessidades reais e aquelas criadas artificialmente. Entrementes, ele não consegue assimilar outra linguagem senão a da publicidade; o que pode vir a trans-formar todas as coisas, materiais ou imateriais, em mercadorias a serem consumidas; incluindo a política. Daí a necessidade de uma meticulosa arquitetura da imagem dos candidatos a cargos eletivos e, com efeito, e o perigo da redução das campanhas eleito-rais a peças publicitárias.

As diversidades étnicas, religiosas, culturais, econômicas, e políticas que ga-nham relevo no bojo do processo de globalização, na verdade não são de ordem ge-ográfica, mas sim entre indivíduos e grupos que experimentam um desenvolvimento social diferenciado, subordinado à lógica do consumo. O sistema aposta e investe na diversidade como instrumento para fazer prevalecer sua dominação; a rigor, as pessoas se encontrariam estagnados numa zona intermediária entre o seu mundo particular e o mundo globalizado.

Nesse contexto, o mais ingente de todos os desafios seria o da edificação de um processo de autonomia política, em que as pessoas e grupos deveriam reaprender a ocu-par o espaço público e saber superar estratégias e práticas políticas em obsolescência.

Historicamente falando, é oportuno registrar que no Brasil, na década de 1970, com o recrudescimento do regime militar e o aparecimento de profundas mudanças econômicas, foram cerceados até mesmo os precários canais de expressão e negociação criados no bloco histórico imediatamente anterior, que ficou conhecido como populista. Nesse quadro de carência de canais de interlocução, surgem os movimentos sociais como pólos de atração das demandas democráticas.

Na ausência de espaços legítimos de negociação de conflitos, entre outros, al-guns aspectos ganharam relevo, tais como a identidade étnica e de gênero, o local de moradia e os serviços essenciais, que se converteram no espaço privilegiado da ação social e política, de forma diferenciada das práticas sindicais e partidárias clássicas.

Vale advertir que o confronto por meio de vanguardas ficou seriamente des-prestigiado após a derrota da luta armada. Essa nova opção das esquerdas nesse período veio a conferir prestígio à prática da educação popular, inspirada nos pressupostos do método Paulo Freire, que acabou por representar uma modalidade de diálogo entre os sofisticados discursos das esquerdas e a sabedoria intuitiva e espontânea das classes subalternas.

Por tudo isso, é oportuno ponderar que a década de 1980 foi marcada pela emergência dos movimentos populares por todo o Continente. A Revolução Sandinista, por exemplo, deu ensejo a uma grande mobilização no âmbito das camadas populares. premidas pelos regimes de Segurança Nacional, as esquerdas perceberam que sua única saída, para além da luta armada, seria construir um projeto de resistência cujos agentes fossem as próprias classes empobrecidas.

No Brasil, os movimentos sociais e as Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) foram os espaços preferidos de engajamento e de inserção no universo popular, num

Page 77: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

76

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

quadro de repressão e de ausência dos canais políticos consagrados (sindicatos, parti-dos, etc.), como já foi mencionado. Desse caldo de cultura surgem as oposições sindi-cais, as pastorais populares, as associações de moradores, os grupos de defesa dos direi-tos humanos, organizações feministas, movimentos negros, movimentos indigenistas, dos sem-teto, dos sem-terra, e congêneres; além daqueles portadores de bandeiras ainda mais específicas, como a reforma agrária e a dívida externa.

A participação dos movimentos sociais teve sua culminância nas contribui-ções populares para a elaboração da Carta Magna de 1988. O processo constituinte foi um momento que conferiu visibilidade do processo de participação política em grande escala. E, a partir dele, para os movimentos sociais, tornou-se ainda mais presente a reivindicação de participar na definição e redefinição de direitos, nas grandes decisões estratégicas e, para alguns, até mesmo na gestão da sociedade.

Em outras palavras, a partir dessa experiência, não se tratava apenas da obten-ção de novos direitos ou reafirmação dos existentes, mas se tratava de protagonizar a invenção de uma nova sociedade. Entretanto, cumpre ressaltar que na década de noven-ta, os movimentos sociais se viram desafiados pela complexa articulação de alternativas no plano da gestão de políticas públicas, e foi inaugurada uma nova fase na qual não só se fazia necessária a qualificação técnica e política das lideranças, mas também em-penhos no sentido de que os movimentos pudessem ocupar adequadamente os espaços conquistados.

Nessa fase alcançam maior notoriedade as Organizações não Governamentais (Ongs) que, até então, vinham se mantendo na condição de instâncias responsáveis por tarefas supletivas e/ou subsidiárias (apoio, assessoria, acompanhamento, e congêneres) em prol dos interesses e das ações dos movimentos sociais.

Entrementes, a globalização produzia uma sociedade aparentemente destituída de regulação, em que as possibilidades de comunicação, intercâmbio e conquistas tec-nológicas pareciam ilimitadas. A par disso, a desterritorialização e a internacionalização compulsórias, esvaziam as funções clássicas do Estado-Nação, e a noção clássica de soberania. No plano individual, os cidadãos eram submetidos a padrões de consumo e de estilo de vida, que tendiam a neutralizar as singularidades. Assim sendo, em função da diversidade de valores e escolhas sugeridas ou impostas, os cidadãos foram perdendo a capacidade de efetuar opções genuinamente autônomas, sob o peso da ideologia, da compulsão de consumo, e da dependência em relação à mídia. E tudo isso desfavorece consideravelmente tanto a capacidade quanto os meios de participação democrática.

Nesta altura vale uma advertência: embora o papel de alguns estados nacionais permaneça significativo, eles já não são mais os protagonistas no cenário histórico. A relevância deles persiste em virtude de serem integrantes dos organismos financeiros internacionais: o G8, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organizaçpão Mundial do Comércio (OMC), os quais cumprem a função de manter a hegemonia do dólar nas transações internacionais, garantindo assim uma suposta esta-bilidade monetária global; bem como sustentam a superioridade militar, sobretudo, a partir do poderio bélico norte-americano.

No entanto, são as empresas trans e multinacionais que gerenciam e comandam

Page 78: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

77

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

o fluxo da poupança mundial (que segundo dados aproximados atinge o patamar dos US$ 15 trilhões), e que recobrem desde os investimentos produtivos até a lavagem de dinheiro com procedência ilegal. A propósito do fluxo de montantes ilegais, com acura-da perspectiva sociológica, Bauman (2005, p. 82) assinala:

(...) Parte considerável dos bilhões de dólares, libras e euros que todo dia mudam de mãos provém de fontes criminosas e se destinam a fontes criminosas (...). Na maior parte do tempo, a maioria dos poderes políti-cos não tem capacidade nem disposição para se engajar na luta contra as forças criminosas que, com freqüência demasiada, controlam recursos que nenhum governo, sozinho e muitas vezes em conjunto, pode igualar. Essa é uma das razões pelas quais, (...), os governos preferem dirigir a animosidade popular contra os pequenos crimes a se engajar em batalhas que com toda probabilidade prosseguirão por um tempo interminável e decerto consumirão recursos incalculáveis, mas que tendem virtualmente a serem perdidas.

Para os países situados na periferia do sistema e, por isso mesmo, pouco atra-tivos para os investidores, os pólos hegemônicos e suas instituições representativas re-servam somente medidas assistencialistas de curto alcance e de curto prazo, além, é claro, dos programas de controle da natalidade, e do controle da imigração. Por sinal, a imigração é um resultado imprevisto e incômodo da globalização para os países indus-trializados, que passaram a ter que receber enormes contingentes de trabalhadores em-pobrecidos em busca de oportunidades profissionais, ou fugindo de conflitos armados e regimes autoritários; numa proporção dantes inimaginável, bem como representa uma inesperada contrapartida do neocolonialismo.

Por tudo isso se multiplicaram movimentos voluntários, Ongs, e organizações religiosas, apoiadas pelo Banco Mundial e outros organismos de financiamento e cus-teio, voltados para o atendimento dos pobres, miseráveis e excluídos. Dito de outro modo: estão proliferando entidades despolitizadas, cujas atividades assistenciais fun-cionam como mecanismos de controle sobre os contingentes populacionais empobreci-dos, e que são financiadas com recursos internacionais; uma modalidade de privatização da pobreza que atende aos interesses do sistema e diminui o impacto do ajuste estrutural e outros mecanismos produtores de exclusão e de marginalização.

Enquanto isso, na medida em que o mercado se afirma como uma instituição abrangente se acentua o fenômeno da exclusão, aprofundando a ambigüidade das prá-ticas e dos resultados obtidos por essa rede, institucionalizada ou não, de prestação de serviços sociais. A despolitização lhes desloca do campo das ações anti-sistêmicas para uma forma sutil de reforço do stablishment globalizado neoliberal.

Outro aspecto fundamental é o papel do Mercado. Através de milênios, apenas uma parcela reduzida da humanidade foi dependente do mercado, pois provia sua pró-pria sobrevivência material. Apenas no século XIX, como resultado da concentração demográfica nos centros urbanos, resultante da elevada demanda de mão-de-obra nas indústrias, as populações foram ficando cada vez mais dependentes dos produtos e ser-

Page 79: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

78

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

viços oferecidos pelo mercado. Assim sendo, na segunda metade do século XX, a exclusão do mercado, ou

seja, a carência do poder de compra, a não aquisição de serviços, e a não fruição dos ser-viços essenciais prestados pelo Estado, passou a se configurar como a exclusão funda-mental. As pessoas passaram a ser socialmente prestigiadas em consonância direta com a capacidade de participação no mercado, sobretudo na qualidade de consumidores.

Entretanto, considerando-se os ajustes estruturais, tal avaliação produz uma colossal massa de sobrantes e descartáveis, visto que o desemprego estrutural diminuiu consideravelmente a massa salarial e aumentou a concentração de renda, empurrando os trabalhadores, empregados e desempregados, para a precariedade das franjas do sis-tema, numa condição marcadamente subalterna em todos os aspectos.

O mais grave é que tal condição determina que o processo econômico globali-zado irá prosseguir independentemente das massas excluídas e, segundo a lógica domi-nante, apesar delas. A propósito desses contingentes humanos descartáveis, ponderava Santos (2001, p. 73):

(..) os pobres não são incluídos nem marginais, eles são excluídos. A di-visão do trabalho era, até recentemente, algo mais ou menos espontâneo. Agora não. Hoje, ela obedece a cânones científicos – por isso a considera-mos uma divisão do trabalho administrada – e é movida por um mecanis-mo que traz consigo a produção das dívidas sociais e a disseminação da pobreza numa escala global.

4. UM NOVO CENÁRIO.

Uma visão panorâmica da realidade atual descortina tanto áreas iluminadas quanto nebulosas que traduzem contrastes monumentais entre amplos domínios sociais e geográficos. O século XX terminou com a humanidade diante de grandes dilemas que comportam chances e riscos, em virtude de fatores que podem ou não abrir grandes possibilidades para o futuro próximo e mesmo para o futuro distante.

Em primeiro lugar cumpre destacar o inevitável impacto provocado pelos avanços tecnológicos; quer pela intensidade, quer pela velocidade das inovações. No campo das telecomunicações, o formidável acesso à informação por meio das redes de televisão via satélite e pela Internet, atingem frontalmente o clássico controle das elites sobre as informações e a interpretação dos fatos, a despeito do aparato eletrônico de controle hoje disponível às comunidades de inteligência e aos organismos e empresas a elas associadas. Assim, muitas pessoas, comunidades, grupos, movimentos e mesmo países pobres, estão conseguindo participar de alguma forma do jogo do poder.

Ademais, nas últimas décadas, assistiu-se ao arrefecimento dos regimes di-tatoriais e uma revalorização do conceito de democracia, muito embora em seu for-mato liberal esteja sob questionamento. A par disso, crescem os movimentos sociais

Page 80: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

79

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

que ultrapassam as antigas características meramente reivindicatórias para o patamar da afirmação de identidades, reafirmação de valores fundamentais, empenho na expansão da cultura política e no exercício da cidadania, e o fortalecimento da sociedade civil. Tudo isso implica na formulação de uma vivência democrática marcadamente plural, participativa, e voltada para a busca do consenso. Por essa razão, verifica-se uma luta mais intensa em prol dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais, assim como um combate mais intenso à corrupção.

Por seu turno, o problema do desenvolvimento econômico se afigura como cada vez mais complexo. Em algumas áreas do planeta, existem países que experimen-tam um ritmo de crescimento superior ao dos países industrializados, acompanhado de uma distribuição de renda mais eqüitativa, por intermédio de políticas educacionais eficazes e massivas, e do aproveitamento inteligente da poupança interna. Significam sinais de esperança que enaltecem a criatividade e a originalidade no domínio das po-líticas públicas e do manejo de recursos econômicos. Em contrapartida, muitos países sofrem a carência de oportunidades e um processo de empobrecimento galopante, com todos os seus corolários.

Outrossim, o tema do desenvolvimento comporta a problemática ambiental. O modelo da expansão industrial, que teve seu auge ao longo do século passado, acarretou conseqüências funestas que se abatem e se abaterão sobre todos. Felizmente está se configurando uma nova consciência no tocante aos recursos naturais, sobre as fontes energéticas não renováveis, sobre os danos ambientais, e temas correlatos, o que im-plicou na propalada concepção de desenvolvimento sustentável1 , ou seja, um modelo compatível com a proteção do meio ambiente, com vistas à qualidade de vida das fu-turas gerações, em substituição ao modelo vigente ao longo dos séculos XIX e XX, altamente poluente, destrutivo e excludente.

A modalidade dita sustentável comporta ainda a consciência de que o desenvol-vimento não diz respeito apenas ao plano material da existência humana, mas também a metas não estritamente econômicas: daí o combate aos preconceitos, à exclusão sis-têmica, à discriminação, o incentivo à participação política, e a valorização da cultura democrática, lutas estas que induzem a elaboração de um conceito de desenvolvimento humano2 sustentável.

No âmbito da comunicação social, os meios eletrônicos de amplo alcance nos exibem um planeta que ora parece mais homogêneo, ora revela imensas distâncias e agudos contrastes, sobremodo no tocante à capacidade de consumo. Essa antinomia

1 A definição de desenvolvimento sustentável adotada pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvol-vimento (WCED) fica sendo: “desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer as habilidades das futuras gerações de satisfazerem suas necessidades”, de onde foi retirado o requisito estabelecido originalmente em 1986 na Conferência de Otawa, a respeito da necessidade de eqüidade e justiça social para o desenvolvimento sustentável. (BARONI, 1992, p. 16)

2 O conceito de Desenvolvimento Humano é a base do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), publicado anualmente, e também do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ele parte do pressuposto de que para aferir o avanço de uma população não se deve considerar apenas a dimensão econômica, mas também outras características sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana. (DESENVOLVIMEN-TO HUMANO E IDH, 1990)

Page 81: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

80

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

coloca a necessidade de reconhecimento, isto é, cada cultura passa a exigir que sua mundividência, seus valores, sua nacionalidade, sua etnia, seu idioma, e seu modus vivendi sejam reconhecidos e valorizados. Assim, muitos povos estão mergulhados no movimento de duas forças antagônicas: uma centrípeta, que impele a todos para o cerne de uma mesma realidade; e outra centrífuga que tende a compensar essa equalização compulsória, por meio da reafirmação das identidades e da multiplicação das chamadas ações afirmativas.

No plano econômico a gradativa integração dos mercados menores ao grande mercado globalizado, enseja vantagens comparativas para as micro, pequenas, e médias empresas. Isto representa um outro paradoxo: num mundo de economia globalizada e de grandes empresas multinacionais e transnacionais, existe um espaço importante a ser ocupado pelos pequenos empreendedores. Logo, as atividades criativas de indivíduos, grupos, e comunidades, e mesmo pequenos países, e a despeito da complexidade do jogo concorrencial em curso, comportam um potencial competitivo.

A par disso, o capitalismo industrial clássico, com base apenas no capital físico e financeiro entra em declínio e vai sendo substituído pelo capital intelectual, melhor dito, um processo produtivo no qual o fundamento é o conhecimento criativo e inova-dor, focalizado principalmente na prestação de serviços e na difusão de novas tecnolo-gias, novos produtos e mesmo, novas idéias.

5. DA NOVA ORDEM.

A América Latina encontra-se inteiramente inserida na racionalidade e no modo de vida ocidental, o que gera processos de reestruturação econômica e social com respeito ao uso e a organização dos recursos, com vistas a alcançar a integração social das massas e o bem estar dos povos. Para tanto, essa mesma racionalidade impõe uma trajetória segmentada e seletiva que se converte num obstáculo para um desenvolvimen-to integral do subcontinente, posto que essa trajetória impede que até mesmo as necessi-dades básicas possam vir a ser satisfeitas. Disso decorre um paradoxo: a América Latina encontra-se incluída, mesmo que de forma subordinada e, ao mesmo tempo, excluída da nova ordem internacional.

A partir da década de 1980 assistiu-se ao triunfo da chamada razão instrumental que, gradativamente, foi neutralizando a razão histórica no cenário social, e que tem como respaldo o sistema único de produção mundial que articula de forma seletiva e excludente os povos e países dos hemisférios Norte e Sul, e nisso reside o cerne da nova ordem internacional. A diferença fundamental entre as duas modalidades de razão aludidas reside na escolha entre meios e fins. Enquanto a razão histórica ostentava como meta o aprimoramento da existência social, e como referências éticas, a solidariedade, a autonomia, e a liberdade; a razão instrumental encontra-se dirigida apenas para a utilidade e a eficiência, respaldada na absolutização da rentabilidade e na dominação

Page 82: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

81

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

ideológica. A mistificação ideológica e simbólica que produz, inverte a relação entre meios

e fins, impondo a lógica da mercadoria nas relações sociais. A partir disso, foi imposta a internacionalização do capital financeiro para além dos limites dos Estados nacionais, ou seja, um sistema que extrapola as fronteiras geográficas e jurídicas, e que integra a economia mundial num mesmo processo produtivo, com base na rápida circulação de capitais, de investimentos, e de uma nova e flexível divisão internacional do trabalho.

Trata-se de uma tendência produtiva singular que não consiste na simples adi-ção das produções nacionais, mas sim, numa articulação de processos produtivos num único cenário mundial. Assim, as economias nacionais ficam submetidas a um só e mesmo parâmetro de organização produtiva internacional, vinculada a centros de poder financeiros e políticos, por seu turno, a serviço de empresas e de interesses do capital transnacional.

Esse panorama econômico, teoricamente organizado pela doutrina neolibe-ral, transformou a natureza das lutas e das ações sociais: de um confronto geopolítico para um confronto geoeconômico, expresso no embate com os poder financeiro das megacorporações e blocos comerciais, principais personagens no cenário da luta pela hegemonia. Em contrapartida aos megamercados encontra-se uma massa de mercados precários do Terceiro Mundo, lutando pela sobrevivência e separados por um abismo das economias do Hemisfério Norte, e que se vêm obrigadas a uma inserção forçada na total dependência dos padrões de exportação e dos investimentos externos, estipulados a partir dos multipolares núcleos de poder.

Por outro lado, a consolidação do mercado total tem implicado numa transfor-mação considerável no perfil das empresas, sobretudo no tocante à atuação social. Na atualidade, além da qualidade dos serviços, uma inteligente política de preços e uma estratégia de marketing agressivo e criativo se mostram necessários, a fim de manter pe-rante a opinião pública uma imagem positiva e atraente da empresa e de seus produtos. A responsabilidade social das empresas norte-americanas, por exemplo, tem-se tradu-zido em cifras que atingem bilhões de dólares. Além da ênfase em promover bem-estar é preciso demonstrá-lo. A discreta divulgação dos atos filantrópicos foi substituída pela ampla divulgação; e tudo isso sem prejuízo dos lucros, e sem o perigo da politização em torno das questões sociais e da integração com a comunidade, devido à cessação da bipolaridade ideológica.

Vale reiterar que num tempo em que o Estado encolhe, aumenta o espaço da empresas no fomento do bem estar social. Até mesmo os próprios consumidores mais bem informados tendem a dar preferência às empresas socialmente engajadas. Assim, pode-se dizer que filantropia não é uma prática lucrativa em si, mas trata-se de uma questão de atitude e de valores corporativos que fortalecem a imagem da companhia perante o consumidor e a sociedade.

Neste cenário, fazer o bem pode ter se transformado numa vantagem no plano da competitividade3, bem como no da motivação dos próprios funcionários que se 3 Por sinal, Peter Druker, ardoroso defensor da integração entre as empresas e os entes filantrópicos assinala: “Na

área mais vital de uma empresa – motivação e produtividade do pessoal que trabalha com conhecimentos – as

Page 83: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

82

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

sentem imbuídos de uma missão que ultrapassa a simples fabricação e venda de merca-dorias, o que lhes amplia a auto-estima e o orgulho corporativo. Já se cogita que, num futuro muito próximo, os quadros de lideranças das empresas serão justamente aquelas que demonstrarem maior desenvoltura na concepção, execução, e avaliação de empre-endimentos sociais.

Por outra parte, se afigura um cenário sombrio: uma semana após a queda do muro de Berlim, foram assassinados os professores jesuítas no campus da Universidade de El Salvador. A imprensa mundial dispensou pouquíssima atenção à chacina, muito embora esta falasse muito mais alto sobre a condição de Terceiro Mundo do que o fim simbólico do comunismo soviético. Havia sido eliminado, de uma só vez, um dos mais profícuos núcleos produtores do pensamento teológico libertário na América Latina. Como sintoma dos novos tempos, no mês seguinte, com anuência tácita ou explíci-ta de todos os países do hemisfério, os EUA iriam intervir militarmente no Panamá. Muito embora não se possa estabelecer uma relação mecânica entre a queda do muro e o massacre dos religiosos, pode-se estabelecer uma relação simbólica: com o fim do socialismo real, o capitalismo não necessitava mais ostentar a máscara de defensor dos Direitos Humanos.

Afigurava-se uma nova ordem internacional na qual apenas um sistema seria dominante, ou seja, um único império sem fronteiras geográficas, nem econômicas, nem ideológicas. À total abertura do mercado passou a corresponder um total fechamento de poder político-militar, do qual não se pode fugir; e assim, nunca o Terceiro Mundo esteve tão isolado em seu confronto de interesses contra o bloco dos países ricos. O ca-pitalismo das décadas de cinqüenta e sessenta ainda propunha e encaminhava reformas econômicas e sociais supostamente benéficas aos países pobres, mesmo que imbuído do propósito de diminuir as chances para a construção de alternativas. A partir do esfacela-mento da União Soviética, o capitalismo tornou-se, novamente, selvagem.

Essa nova face do capitalismo induz a uma reestruturação do Terceiro Mundo: de uma área geopolítica na qual eram exploradas tanto as matérias primas quanto à força de trabalho, para uma esfera na qual vive uma população que se tornou supérflua para o processo produtivo, o que significa também que estas massas excluídas encontram-se inteiramente destituídas de poder político. Os grandes contingentes de trabalhadores excluídos não podem recorrer às greves, nem a outros expedientes, pois não ameaçam as estruturas do capital e perderam o poder de negociação.

Nesta situação os povos e países do Terceiro Mundo vão perdendo a capaci-dade de engendrar e implementar políticas autóctones e autônomas de desenvolvimen-to. No tocante ao processo produtivo, se evidencia que os países capitalistas centrais encontram-se num acelerado processo de integração e concentração econômica, indus-trial, comercial e política, tomando como base a revolução científico-tecnológica, por sua vez, geradora da chamada tecnologia de ponta: informática, robótica, biotecnologia, nanotecnologia, novos condutores, e a busca por novas fontes energéticas. Os efeitos mais notórios desse processo estão dados pela configuração de macrounidades políticas,

organizações sem fins lucrativos são verdadeiras pioneiras, elaborando as políticas e práticas que as empresas terão que aprender amanhã”. (DRUKER, ano APUD VASSALO, 1998, p. 26).

Page 84: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

83

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

econômicas e militares, como é o caso da União Européia. Em contrapartida, as economias e as sociedades empobrecidas periféricas,

permanecem isoladas, ou pior, aprofundam seu isolamento, porquanto competem entre si para sustentar alianças bilaterais com países ricos, na esperança de obter algumas vantagens específicas. Essa desarticulação entre os países do Terceiro Mundo torna-se evidente, por exemplo, nas discussões acerca da renegociação da dívida externa; na estratégia de combate ao narcotráfico; no controle das migrações; na relação entre de-senvolvimento e problemas ambientais. Assim, assiste-se a dois movimentos opostos e interdependentes: a integração dos países ricos versus a desarticulação entre os países pobres. As dificuldades na consolidação do Mercosul seriam um bom exemplo de de-sarticulação.

No âmbito geopolítico, essas mesmas sociedades empobrecidas, são conside-radas agentes de desequilíbrio para o mercado global (com reflexos na composição e nas decisões do Conselho de Segurança da ONU) e sua hegemonia. Segundo essa ló-gica, nos países pobres se encerrariam os fatores de conflito, tais como: nacionalismo, fundamentalismo, narcotráfico, terrorismo, excedente populacional, epidemia de Aids, deterioração ambiental, migrações em massa, corrupção crônica no aparelho estatal, e outros tantos fatores de risco.

Tais fatores servem como justificativa para que se mantenha uma ordem mi-litarizada e uma cultura da guerra (da qual a doutrina Bush do ataque preventivo é um subproduto), que beneficia o complexo militar industrial e de inteligência dos países centrais, e que tem se manifestado pela multiplicação de conflitos com propósitos ge-opolíticos e financeiros até mesmo inconfessáveis (como é o caso da intervenção no Iraque). Essa tendência só pôde tornar-se explícita após o fim da Guerra Fria, já que antes ela tinha que adquirir as feições de uma operação de inteligência, tal como no famigerado episódio Irã – Contras.

Considerada em sua totalidade, a nova dinâmica do mercado mundial acentua o caráter meramente reativo das economias latino-americanas. Isto implica num aprofun-damento da dependência e da subordinação estruturais na quais se encontram, e como terreno fértil para o capital especulativo, e um crescimento induzido por exigências externas pontuais de curto e médio prazos, ou seja, inexiste uma estratégia consistente e duradoura no tocante às necessidades das maiorias.

Por conseguinte, a propalada interdependência decorrente do surto de globali-zação, é totalmente assimétrica, pois contrapõe como nunca dantes um mundo de opu-lência inteiramente segregado a outro mundo caracterizado pela baixa produtividade, atraso cultural, religiosidade arcaica (o Islã entre os empobrecidos da Ásia e da África), e outros fatores que representam uma ameaça à segurança mundial, de acordo com a perspectiva dos interesses dominantes.

Na mesma direção, as camadas dirigentes ainda desejam impor uma mentali-dade segundo a qual as vítimas devem se sentir culpadas, isto é, a introjeção das regras do mundo opulento (conceito de democracia, de espiritualidade e de sistema de valo-res) pelos povos das áreas pobres, que tem sido induzida pelo efeito de demonstração do chamado american way of life, estribado no poderio militar, comercial e cultural

Page 85: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

84

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

inerente que, na prática, desdobra-se num sentimento de autodestruição, bem como de indiferença para com os iguais. Tais sentimentos criam as condições para que quaisquer opções alternativas sejam consideradas irracionais e inexeqüíveis pelos próprios empo-brecidos, em face dessa supostamente única ordem possível.

É neste quadro que podem prosperar as ideologias da indiferença quanto aos destinos coletivos, tais como facetas do neoliberalismo; a fetichização da mercadoria; a idolatria do mercado; a lógica pós-modernista; e a retórica anti-estatal.

Após a Segunda Guerra até a década de 1970, a proposta desenvolvimentista procedente dos países industrializados em direção à América Latina, tratava de trans-plantar pelo menos uma pequena parcela das benesses do Estado e Bem-Estar Social (expansão dos serviços essenciais, previdência, programas habitacionais etc.), ou seja, a implantação de um capitalismo reformista à semelhança do que surgira na Europa ocidental, e tudo isso por meio da chamada política de substituição de importações e de elevados investimentos estatais.

Evidentemente, tal política aprofundava a dependência em relação aos países centrais. Nesse contexto, o desenvolvimento significava a independência, e a indepen-dência seria alcançada mediante a integração econômica Daí a fundação de organismos como a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) e similares.

Essa política econômica não prosperou por diversas razões, dentre as quais se destaca o fato de que o capital industrial estrangeiro, a rigor, participou apenas margi-nalmente nos esforços exportadores, voltando-se para o mercado interno. Instalou-se a contradição: quanto mais dominava, mais deixava de gerar divisas. As exportações tradicionais não alcançavam o ritmo da dinâmica industrial e, com a escassez de divisas, instalou-se a espiral da dívida externa, agravada pela remessa de lucros. Assim sendo, paulatinamente, a lógica exportadora substituiu a lógica desenvolvimentista. A partir disso, o esquema de integração econômica perdeu o sentido.

A partir de 1980, generaliza-se pelo Continente a linguagem da abertura de mercado e da exportação, ou seja, instala-se uma economia do pagamento da dívida. Apesar da total dependência, não se pode mais falar nela, porquanto todos os países adotaram a submissão, desapareceram as alternativas. Foram criadas condições no in-tuito de, na década seguinte, implementar os programas de privatização, de esvaziamen-to do Estado e da eliminação das benesses sociais. Entrementes, a noção de integração foi transformada em área de livre comércio, zonas sob total controle das potências eco-nômicas. Nelas, as mercadorias têm livre trânsito, enquanto se tenta restringir cada vez mais o movimento de pessoas.

É oportuno observar que ao longo de três décadas, toda essa movimentação econômica pôde ser realizada sem maiores obstáculos aos interesses dominantes, em virtude da implantação dos regimes de Segurança Nacional. Os regimes militares sou-beram impedir a democracia de massas, e ainda induziram uma redemocratização ca-racterizada muito mais pela continuidade do que pela ruptura. Ainda hoje, os argumen-tos típicos dos regimes de Segurança Nacional são evocados, sob nova roupagem (por exemplo, a suposta ameaça de uma crise das instituições, por ocasião de mobilizações em grande escala), quer pela mídia, quer por certos setores das elites beneficiárias da-

Page 86: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

85

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

queles regimes que, mesmo após a redemocratização, permaneceram confortavelmente instaladas no poder.

6. A QUESTÃO DO INDIVÍDUO.

Nesta altura, cabe uma brevíssima reflexão acerca da questão dos indivíduos em todo esse processo histórico. Entre outras demandas teóricas relativas à temática, desde logo deve-se destacar a exigência das rediscussão do conceito marxista de aliena-ção, posto que tal conceito busca designar as objetivações do ser humano na história, e aponta para os obstáculos erigidos pelas formas de apropriação do trabalho ao potencial criativo dos seres humanos. Em outras palavras, como a plena humanização se torna inatingível em decorrência de um sistema que promove sistematicamente o alheamento, a insuficiência, a privação, a insuficiência sociohistórica das expectativas pessoais. Ao mesmo tempo, faz-se necessária a revisitação dos clássicos das ciências sociais, no to-cante à formação da individualidade e sua respectiva relevância social.

Ademais, A participação política dos indivíduos na sociedade global se apre-senta como uma das principais vias para a inserção social e na luta pela diminuição das desigualdades. Pode-se classificar a participação política ativa em diferentes gradações de intensidade e comprometimento. Além desses aspectos, se deve considerar o estágio de desenvolvimento da cultura política, a solidez das instituições democráticas, a par dos instrumentos legais que facilitam ou dificultam a participação nos vários níveis decisórios.

A Cultura é quem distingue as formas humanas de organização social das ma-nifestações não humanas de convívio. Toda mudança social acarreta necessariamente transformações no acervo cultural de uma sociedade. Em contrapartida, qualquer trans-formação no plano cultural tende a acarretar algum tipo de mudança nas formas de organização das relações sociais, uma vez que a Cultura comporta todos os domínios da vida social e, o comportamento humano encontra-se vinculado aos modos cultural-mente estabelecidos de percepção da realidade. Sinteticamente, pode-se definir cultura como o modo de viver de uma sociedade.

Tal modo de viver compreende inúmeros aspectos referentes às condutas, em-bora entre elas se verifiquem elementos em comum. Tais elementos representam com-ponentes previsíveis dos comportamentos normais de qualquer integrante da sociedade diante de situações dadas. Em conseqüência, apesar do número infinito de variantes que podem ser encontradas na atitude de indivíduos, ou mesmo nas atitudes de um mesmo indivíduo em diferentes situações, pode-se verificar que, em circunstâncias semelhan-tes, a maior parte das pessoas geralmente reagirá da mesma forma.

Do mesmo modo, o sistema social como um todo consiste numa configuração mais extensa de padrões socialmente engendrados. Assim sendo, por meio dos padrões culturais, o indivíduo adquire as técnicas de exploração do meio natural por intermédio

Page 87: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

86

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

do trabalho, assim como os critérios de relacionamento com o plano simbólico. As sociedades se perpetuam ensinando a cada geração de indivíduos os padrões culturais que deles são esperados, na dependência direta da posição que ocupam na distribuição social da riqueza, do prestígio e do poder.

Portanto, não existiriam sistemas sociais, nem o ajustamento de novos compo-nentes a eles, sem o concurso da cultura. Entretanto, a despeito da intensidade com a qual o indivíduo é adestrado e condicionado para a vivência societária, ele permanecerá uma unidade singular, com necessidades próprias e, capacitado em maior ou menor grau, para sentir, pensar, e agir com relativa autonomia e independência; posto que retém, para além da personalidade construída, uma individualidade.

Assim, é oportuno ponderar que, a despeito da influência decisiva da socie-dade e da cultura, a aptidão sem paralelo do ser humano para ajustar-se e adaptar-se à dinâmica das mudanças, e o desenvolvimento de respostas cada vez mais eficazes aos problemas se fundamenta na individualidade que sobrevive em cada qual. Como uma simples célula do organismo social, o indivíduo contribui para a permanência do statu quo; enquanto como pessoa, ajuda a transformá-lo quando se faz necessário. Logo, a fim de funcionar bem como unidade social, o indivíduo deve reproduzir certas formas estereotipadas de comportamento, ou seja, determinados padrões culturais e, ao mesmo tempo, exercitar sua individualidade de forma criativa, de modo a enriquecer a socieda-de no enfrentamento de novos desafios e necessidades que se apresentam.

7. CONCLUSÃO.

A sociedade mundial e a sociedade brasileira encontram-se às voltas com um acelerado e ultracomplexo processo de mudança e transformação, como já se aludiu, devido à pressão exercida por potências econômicas monumentais; por um novo mo-delo de estratificação resultante da modernização compulsória, e pelo perfil peculiar da elite nacional; a trajetória das desigualdades sociais atingiu um novo patamar e adquiriu nova fisionomia. Em vista disso, até mesmo a tão propalada lentidão do judiciário ad-quire nova configuração, considerando-se que:

Hoje em dia, toda espera, toda procrastinação, todo atraso se transforma em estigma de inferioridade. O drama da hierarquia de poder é todos os dias remontado (...) em inumeráveis saguões e salas de espera, onde al-gumas pessoas (inferiores) são orientadas a “sentar-se”e ficar à espera até que outras (superiores) estejam “livres para atendê-las”. O crachá do pri-vilégio (...) é o acesso aos atalhos, aos meios de tornar instantânea a grati-ficação. A posição na hierarquia é avaliada pela habilidade (ou inaptidão) em reduzir ou eliminar de todo o lapso de tempo que separa um desejo de sua realização. Subir na hierarquia social é avaliado pelo aumento da capacidade de ter o que se deseja (o que quer que seja) agora – sem atraso (BAUMAN, 2005, p. 129).

Page 88: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

87

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

A carência de percepção dos direitos e a falta de acesso à justiça são sintomas do déficit de cidadania que se constitui como realidade para a maciça maioria da popu-lação brasileira. Assim sendo, todos os procedimentos destinados à agilização do acesso ao judiciário, desde a utilização dos recursos tecnológicos, até a descentralização das instâncias decisórias, passando pela modernização dos ritos processuais e o recurso às mediações, seguramente podem minimizar os problemas do significativo contingente populacional que não possui condições nem recursos para atender às suas necessidades ou ver contemplados seus interesses na esfera jurídica.

No entanto, retomando-se a prerrogativa original do acesso à justiça, na qua-lidade de um instrumento para a diminuição das desigualdades sociais, vale repisar que tais desigualdades se aprofundaram e se tornaram ainda mais graves na proporção em que se implanta uma nova ordem internacional, com reflexos diretos na realidade brasileira. Assim, está-se diante de uma problemática jurídica que comporta dois desdo-bramentos simultâneos – político e metodológico.

Historicamente, o político e o jurídico têm sido duas faces da mesma moeda. A despeito dos pretensos obstáculos teóricos criados por certas correntes do dogma-tismo, as ciências sociais e a filosofia do direito discernem de modo irretorquível que as conexões entre o Direito e o meio circundante, e as relações de poder nele vigentes, são muito mais estreitas do que muitos formalistas gostariam. Nas palavras do filósofo-jurista: “Ora, o ‘não jurídico’ é o que confere existência, vitalidade e consistência ao que é jurídico”. E mais adiante acrescenta: “Quando se deveria acreditar que o ‘jurídico’ depende do ‘não jurídico’ para existir e para ser compreendido, visto que o Direito se assenta sobre as estruturas sociais, porfiar por ignorar o que é ‘pré-jurídico’, ou por de-legar a competência, somente pode prejudicar a consciência dessa relação”. E arremata o argumento: “... Como isentar a ciência do Direito de um comprometimento com o estudo dos fatores que determinam o surgimento do ius? Doutrinar sobre o Direito sem doutrinar sobre os fatores que engendram sua criação parece ser, em verdade, um exer-cício que se faz no vazio. (BITTAR, 2004, p. 34s)

Por conseguinte, pode-se ponderar que no tocante ao acesso à justiça, pode vir a ocorrer o equívoco recorrente, tanto no plano teórico quanto no da aplicação do direi-to, que consiste na substituição de pessoas reais, atores sociais e entes sociológicos, por figuras abstratas e ideológicas. A título de exemplo, pode-se destacar o uso pelo jargão jurídico das expressões que se justificam apenas como linguagem técnico-formal, po-rém, que são utilizadas como se referindo a pessoas reais, supostamente acima e além das contradições, conflitos, e determinações que caracterizam e se fazem presentes em quaisquer sociedades. Nesta altura, cabe reproduzir uma magistral síntese de cunho metodológico:

(...) os juristas preferem fazer alusão a expressões vazias e abstratas, que os isentam de maiores comprometimentos com outras ciências ou saberes. Quando se referem ao poder constituído e investido das decisões legisla-tivas, menciona-se “o legislador”, como expressão de linguagem quase fictícia, quase metafísica, de pura existência ideal e lógica. Então a ci-ência que lhe é consentânea, o Direito Constitucional, estuda e analisa

Page 89: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

88

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

somente a estrutura do Estado, tal como posta na Constituição, bem como a distribuição dos órgãos que administram o poder. Quando se referem ao poder constituído como julgador das demandas sociais, menciona-se “o julgador” como ente dotado de investidura para proferir decisões que funcionam como normas individuais, na esteira do entendimento de Hans Kelsen. Então a ciência que lhe é consentânea, o Direito Processual, es-tuda e analisa somente as técnicas de administrar o processo, os modos de decidir, os momentos procedimentais de manifestação das partes, a tipologia dos recursos e peças processuais. Quando se referem aos órgãos executivos do poder, menciona-se “a administração”, como se de órgão apolítico se tratasse, sem reconhecer que somente se mantém a classe da burocracia estatal para atender a fins sociais eleitos pelo próprio povo. Então, a ciência que lhe é consentânea, o Direito Administrativo, estuda e analisa apenas os atos da administração, as formas de praticar atos interna corporis, a nomeação de funcionários, a contratação de serviços e obras, a gestão do patrimônio público, a forma e as técnicas de anulação de atos e licitações (BITTAR, 2004, p. 35s).

Historicamente – basta verificar a história da implantação dos cursos jurídicos no Brasil, a criação do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – os aplicadores do direito estiveram e estão permanen-temente próximos do poder, às voltas com as questões próprias das esferas de poder, assim como influenciam nas decisões próprias do poder formal em todos os seus diver-sos níveis.

Portanto, a decantada e suposta isenção política dos intérpretes e aplicadores do Direito se apresenta como uma falácia, própria de uma ilusão ou de uma ideologia. Por sinal, ao longo de uma contundente análise da presença da ideologia no mundo jurídico, e partindo dos traços característicos da formação vigente da maioria dos bacharéis em Direito no Brasil, constata com acuidade Novoa Monreal (1988, p. 189) acerca de sua própria obra:

Não duvidamos que para muitos juristas formados no ambiente social que, hoje prevalece, nossas idéias soarão como vitáveis, ou como um sa-crilégio. É bem difícil que mentalidades modeladas por tão hábil sistema de deformação de idéias e de consciências, possam captar, sem delongas a verdade que se contém nestas páginas. Alguns talvez possam tornar-se mais recalcitrantes depois de sua leitura. Enquanto isso, estudantes de Direito ou jovens estudiosos de outras ciências sociais que se estejam iniciando, e que, por isso, ainda não estão incorporados à rede de ataduras que, mais adiante, nos ligará com o status, sem haver sido trabalhados pelas distorções que, gradualmente, lhes serão imbuídas pelo ensino e por outros meios de influência social, poderão perceber, com olhar límpido, que o Direito pode e deve ser fundado, pensado, desenvolvido e feito realidade como regra de ordenação social, de um modo muito diferente do que até agora se praticou no ocidente, com grande proveito para o ser humano. É deles de quem poderá brotar, principalmente, uma atitude crítica do Direito que objetamos e uma vontade para depurá-lo, ou ainda,

Page 90: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

89

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

para substituí-lo, em benefício de toda a sociedade.

A par disso, não se pode olvidar que os juristas são portadores de uma piedosa hipocrisia, que consiste na fundamentação apriorística daquilo que só será fundamenta-do a posteriori, empiricamente. Segundo Bourdieu, tal ‘hipocrisia’ seria uma expressão de violência simbólica, porquanto consiste em se obter reconhecimento baseado no des-conhecimento. Neste caso, a violência simbólica se realiza pela fundamentação numa autoridade transcendente, situada para além dos interesses de quem formula as normas, e que dependem assim da posição ocupada por quem as enuncia.

Dito de outra maneira: o direito exerce violência simbólica quando produz uma auto-legitimação, por meio de sua deshistoricização artificial. É oportuno elucidar que aqui, violência simbólica é concebida como uma imposição sutil de significações, ou seja, uma forma subreptícia de se impor como legítimas certas significações, ocultando, ao mesmo tempo, as forças sociais interessadas na implantação e manutenção de tais significações.

Todavia, o que não deixa de ser bastante curioso é o fato de que os próprios juristas se tornam vítimas dessa violência simbólica na proporção em que se empenham para que as pessoas acreditem naquilo que pregam, porque eles próprios acreditam. O empenho dos juristas e aplicadores do direito se direciona para traduzir, até mesmo na indumentária e na postura corporal, um conjunto de virtudes capazes de tornar o campo jurídico um espaço autônomo, livre de quaisquer pressões ou influências externas.

No entanto, à semelhança de outros espaços sociais, o direito é relativamente autônomo. Assim, faz-se mister reconhecer que o mundo jurídico é também um espaço de confrontos, de lutas, e de conflitos, que se dão segundo determinadas regras internas. Disso decorre que a força específica do direito é paradoxal, na proporção que o direito não é o que diz ser, nem o que acredita ser. Entretanto, o fato dos seus praticantes acre-ditarem nisso e levarem outros a acreditar, o direito consegue produzir efeitos sociais concretos, qual seja:

(...) O discurso jurídico, destinado a demonstrar que a decisão exprime não uma perspectiva pessoal do julgador, mas a voluntas legis ou a vo-luntas legislatoris, confere ao direito grande eficácia simbólica, já que o cidadão comum, convidado a participar da distribuição de uma justiça igualitária e ideologicamente neutra, acaba contribuindo para legitimar, ex post, decisões nas quais, na realidade, não teve qualquer participação (SOUZA, 2005, p. 279).

Retomando o leito principal, ou seja, as funções precípuas do acesso à justiça, transparece a necessidade de que seu equacionamento e encaminhamento mais adequa-do e eficaz, devem estar direcionado para uma sociedade concreta, formada por pessoas reais e, em se tratando do Brasil, atravessada horizontalmente de por uma estratificação social específica, cujos contornos encontram-se em célere transformação, a par de for-mas agudas de desigualdade social de há muito arraigadas. Para tanto, faz-se mister um empenho interdisciplinar no qual as ciências do social devem desempenhar um papel

Page 91: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

90

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

de destaque na descrição, compreensão, e interpretação do perfil da sociedade brasileira atual, assim como do quadro estrutural do capitalismo globalizado.

Essa integração de conhecimento estará pavimentando o caminho para que es-tratégias e táticas, inovadoras, criativas e conseqüentes, garantam que o acesso à justiça cumpra seu papel emancipador. Curioso é que antes do fim da Guerra Fria e da plena implantação da nova ordem globalizada, o jurista-sociólogo já preconizava essa neces-sidade em prol da eficácia jurídica:

... enquanto a complexidade socioeconômica aumenta com o tempo, as abordagens jurídicas formalizantes tornam-se cada vez menos capazes de perceber o caráter dialético das transformações históricas. De certo modo, na visão do normativismo jurídico, seus problemas científicos são uma espécie de puzzle – enigma com número limitado de peças que o analista, à semelhança de um jogador de xadrez, vai movendo até encon-trar a solução final. No limite, portanto, os paradigmas lógico-positivistas do pensamento jurídico deixam até mesmo de compreender o papel das instituições de direito no contexto social, de um lado lamentando nos-talgicamente o declínio do direito, a proletarização do direito civil e a decadência da lei, e, de outro, não percebendo a superação do problema do atraso legislativo pela questão relativa à própria natureza política da re-gulamentação legal das relações sociais subjacentes ao desenvolvimento capitalista (FARIA, 1988, p. 78).

WHEREVER GOES THE INEQUALITY? A STRUCTURAL OVERVIEW.

ABSTRACTIn the correlation between access to justice and fundamental rights, there is a prospect of setting up Brazilian society assumed a kind of ‘single thought’ in the contemporary legal culture. This short review article aims to reiterate the need for a new direction for legal studies, based on interdisciplinarity toward the search for the relationship between access to justice and fundamental rights. The methodology used was a literature and documentary review on a multidisciplinary thematic context involving the theoretical horizons of the humanistic aspects of structural factors of the nation state, the so-called new order and the question of the individual, within a new scenario that presents the current reality. Concludes the paper on the need for an interdisciplinary effort in which the social sciences should play a prominent role in the description, understanding, and interpretation of the current profile of Brazilian society, as well as the structural fra-mework of globalized capitalism.

Keywords: Fundamental Rights. Legal sociology. Access to justice. Globalization.

Page 92: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

91

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª ed. rev. e amp. São Paulo: Saraiva, 2006.

BAUMANN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2000.

______ . Vidas desperdiçadas. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 2005.

BARONI, Margaret. Ambiguidades e deficiências do conceito de desenvolvi-mento sustentavel. In: Revista de Administração de Empresas. São Paulo, 32(2): 14-24 Abr./Jun. 1992. Disponível em <http://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/10.1590_S0034-75901992000200003.pdf>. Acesso em 13 de julho de 2011.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. de Fernado Tomaz. Lisboa: Di-fel e Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH. 1990. Disponível em <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso em 13 de julho de 2011.

FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988.

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ética & direito. São Paulo: Loyola, 2002.

NOVOA MONREAL, Eduardo. O direito como obstáculo à transformação so-cial. Trad. de Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Fabris, 1988.

SARLET, Ingo Wolfgang [org.]. Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na CF de 1988. 4ª ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SOUZA, Luis Sergio Fernandes de. O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no direito. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

Page 93: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

92

Por Onde Passa A Desigualdade? Um Panorama Estrutural

VASSALO, Claúdia. Fazer o bem recompensa. Revista Exame. São Paulo, abr. 1998.

WOLKMER, Antonio Carlos [org.]. Fundamentos do humanismo jurídico no ocidente. Barueri: Manole e Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.

José Bittencourt Filho - Procurador da Conab, Professor de Teoria do Direito na Uni-versidade de Brasília (UnB) e de Direito Internacional Público na Faculdade Planalto (IESPLAN/DF), Membro da International Association of Constitutional Law, Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e Douto-rando em Ciencias Jurídicas y Sociales na Universidad del Museo Social Argentino, em Buenos Aires-Argentina. Endereço postal: SEPS 708/907 Lote B, Faculdade IESPLAN, Coordenação de Direito, Brasília – DF. Endereço eletrônico: [email protected]

Page 94: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

93

Revista Jurisplan - 2012

TRIBUNAL DE NUREMBERG (1945-1946): A GÊNESE DE UMA NOVA ORDEM NO DIREITO INTERNACIONAL

Rosilene Soares SilvaRoberto da Gama Cidade

1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA OBRA.

GONÇALVES, Joanisval Brito. Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

2. APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DA OBRA.

Joanisval Brito Gonçalves é Consultor Legislativo do Senado Federal para a área de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Consultor para a Comissão Mista de Controle da Atividade de Inteligência do Congresso Nacional. Doutor em Relações In-ternacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em História das Relações Internacionais (UnB). Especialista em Inteligência de Estado (CEFARH/PR) e em In-tegração Econômica e Direito Internacional Fiscal (ESAF/União Européia). Bacharel em Relações Internacionais (UnB) e em Direito (UniCEUB). É professor de Direito Internacional Público, de Relações Internacionais e de Direitos Humanos em Brasília.

Brito Gonçalves procurou na presente obra traçar uma análise interdisciplinar da importância do Julgamento de Nuremberg como marco do Direito Penal Internacio-nal e das relações internacionais. O autor analisa, ainda, os aspectos controversos do Tribunal, as violações do julgamento e os seus efeitos no sistema internacional pós- 1945. Sendo assim, engloba o contexto internacional em que se deu o julgamento em Nuremberg, com abordagens sobre os princípios basilares do Direito.

Por fim, vale ressaltar que a obra em análise está direcionada a todos, princi-palmente aos que se interessam por uma operação do Direito Internacional Penal em benefício do ser humano, por justiça nas Cortes pelo mundo.

3. BREVE RESUMO DA OBRA.

A obra intitulada Tribunal de Nuremberg 1945-1946: a gênese de uma nova ordem no direito internacional é um livro dividido em seis capítulos.

Na introdução, o autor faz um estudo sobre a I Guerra Mundial, relatando que

Page 95: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

94

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

a humanidade sofreu um conflito inédito, no qual foram utilizadas novas técnicas de combate, inclusive com uso de gazes causando sofrimentos inimagináveis e nunca uti-lizados em guerras anteriores1.

No primeiro capitulo o autor trata sobre o Direito Internacional antes de Nu-remberg, época em que a guerra era alternativa habitual e, por muitos, consideradas legítimas.

No segundo, fala sobre a II Guerra Mundial e a formação do Tribunal Militar Internacional. Nesse capítulo trata do advento da Grande Guerra de 1939 e as atroci-dades cometidas; os Aliados e os crimes durante a guerra; os preparativos para a for-mação do Tribunal de Nuremberg; o Estatuto do Tribunal; O Tribunal, o seu objetivo e competência; O Ministério Público; os acusados; a defesa e, por fim, a organização dos debates.

No terceiro, o autor trata dos encargos coletivos no qual ficaram encarregado os membros do Ministério Publico no Tribunal Militar Internacional. Detém-se aos encar-gos coletivos, alega não tratar dos individuais devido a suas proporções2. São definidos como encargos coletivos, os crimes de conspiração; os crimes contra a paz; os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade. Assim, leciona que a esses crimes eram atri-buídas as mais genéricas responsabilidades, de modo que qualquer pessoa poderia ser indiciada, julgada e condenada com base em qualquer um desses preceitos3. No mesmo capítulo, relata as reações dos réus.

No quarto, faz análise do julgamento e seus aspectos conflitantes. Fala do cará-ter de Tribunal de Exceção de Nuremberg, do princípio da imparcialidade do juiz, uma vez que o Tribunal era composto de juízes aliados, da ausência de recurso, do princípio da legalidade e da irretroatividade da lei penal, dos argumentos da defesa e por fim, apresenta argumentos a favor do Tribunal.

No quinto, é discutida a estruturação do novo Sistema Jurídico Internacional pós–guerra e a influência do Julgamento dos criminosos de guerra na Alemanha no novo sistema. Faz uma reflexão sobre o mundo após o julgamento e a origem de uma nova ordem jurídica internacional. Para tanto, analisa as Sentenças e faz um apanhado sobre os Aliados.

O último capítulo disserta sobre o objetivo do Tribunal Penal Internacional Permanente; a estrutura da Corte; os juízes; o Ministério Público; a jurisdição e compe-tência do Tribunal, além de falar sobre os princípios gerais de direito.

Por fim, conclui com uma análise da importância do Julgamento de Nuremberg como baliza no Direito Internacional, nas Relações Internacionais e na História Con-temporânea

1 Joanisval Brito Gonçalves, Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 31.

2 . Idem, p. 141.3 dem, p. 102.

Page 96: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

95

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

4. PRINCIPAIS TESES (IDÉIAS) APRESENTADAS PELO AUTOR.

Joanisval Brito Gonçalves apresenta uma única tese em seu livro, qual seja: o julgamento em Nuremberg dos grandes criminosos da II Guerra Mundial e suas conse-qüências para a humanidade. Nesse sentido, apresenta os reflexos que o Tribunal Militar Internacional trouxe para o novo sistema jurídico internacional, sobretudo afirmando a responsabilidade penal internacional de indivíduos perpetradores de atos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Brito Gonçalves leciona que com o fim da primeira guerra estabeleceu uma anistia provisória e somente com as conferências para estabelecimento da paz decidiram pela criação de uma comissão destinada a estudar as responsabilidades dos autores da guerra e a respectiva punição a esses autores, independente de posição hierárquica ou status.

Como exemplo de criminosos de guerra pertencente a alto grau de hierarquia em governo, o autor cita, inclusive, a responsabilidade do Kaiser Guilherme II, que na época se refugiou na Holanda, pela deflagração do primeiro grande conflito. Devido à negativa da Holanda em extraditar o Kaiser Guilherme II, que era para o Tribunal alia-do, o principal réu, fez com que o Tribunal julgasse apenas quatro dos quarenta e cinco selecionados acusados como criminosos de guerra alemães na Primeira Guerra, nenhum dos quatro eram de grande importância, uma vez que se tratava de oficiais subalternos4.

Após relatos sobre a I Guerra, passa a descrever que em 1939 as tropas alemãs atravessavam a fronteira polonesa ocasionando a II Guerra Mundial, que seria a maior guerra presenciada pela humanidade, pois em seis anos de guerra, várias nações foram devastadas, milhões de mortos e muitos desrespeitos a diversos princípios de guerra5.

Diferente da I Grande Guerra, na II Guerra Mundial houve o envolvimento maciço das populações civis nos confrontos armados, sendo os civis as maiores vítimas daquela guerra. Outra diferença em relação à Primeira Guerra, é que na Segunda, vio-lências até então inconcebíveis, foram praticadas contra indivíduos, populações e etnias inteiras. As condutas eram tão cruéis, principalmente as cometidas pelos nazistas, que não havia como prever tais atos. Porém, seria inaceitável que tais condutas não fossem punidas com o fim da guerra, uma vez que a falta de punição permitiria que aquelas condutas fossem usadas em conflitos posteriores.

O autor narra que tanto do lado do Eixo quanto dos Aliados, havia declarações de que os vencidos seriam julgados pelos seus crimes, independente de quem fosse o vitorioso, todos tinham consciência de que o vencido estaria condenado à arbitrariedade do vencedor6.

De acordo com o autor, antes do fim da Segunda Guerra, Estados Unidos,

4 Joanisval Brito Gonçalves, Tribunal de Nuremberg 1945-1946: A Gênese de uma Nova Ordem no Direito Internacional. 2ª Edição. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 32 e 33.

5 Idem, p. 596 Idem, p. 64.

Page 97: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

96

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

União Soviética e Reino Unido, as três potências aliadas, fazem a Declaração de Mos-cou que estabelece os princípios a serem adotados para julgar os criminosos de guerra, essa Declaração é um preparatório para formação do Tribunal de Nuremberg. Nessa Declaração, afirmam que perseguirão os responsáveis nazistas até os confins da terra para reconduzirem aos países onde cometeram os abomináveis atos, afim de que possam ser julgados e punidos conforme as leis daqueles países.

Para os principais criminosos de guerra, cujos delitos não tinham definição geográfica, seriam castigados por decisão comum dos governos aliados, e é com base nesse principio que se tem o julgamento de Nuremberg, julgando os vinte e dois homens de Estado7.

À medida que a guerra ia chegando ao fim faziam-se convenções com clausulas que obrigavam os governos dos países vencidos a colaborar com a captura dos Crimi-nosos de Guerra. Proibiam-se os países neutros de darem abrigos aos criminosos, para impedir que se repetissem o que aconteceu na I Guerra Mundial8.

Em maio de 1945 o governo Norte Americano, representado pelo juiz Robert Jackson, propôs ao governo Francês, britânico e soviético a constituição de um Tribunal Militar Internacional para julgar os criminosos de guerra do III Reich. Como acordo dos quatro governos aliados estabeleceu-se o estatuto do Tribunal Militar Internacional que se fixavam as regras e princípios referentes à sua organização, competência e procedi-mento9.

Interessante observar que o estatuto do Tribunal Militar Internacional serviu de base para lei Penal Internacional após a II Guerra, principalmente para a instauração de tribunais para julgamento de criminosos de guerra.

Porém, o autor explica que, uma vez que o Estatuto é a lei fundamental do Tri-bunal de Nuremberg, e era uma legislação penal internacional nova, os criminosos de guerra alemães seriam julgados com base em proibições que não estavam previstas em nenhuma legislação penal anterior. Isso iria contra as considerações britânicas de 1942, que dizia que “para o julgamento dos criminosos de guerra, qualquer que seja o Tribu-nal competente, far-se-á uso das leis já em vigor, sem promulgar qualquer lei especial ad hoc Não poderia haver Tribunal de Exceção e nem ferir ao princípio universal de direito, o da legalidade10.

Todavia, o autor destaca que apesar de o Estatuto ser uma lei nova e prever pu-nição para crimes que antes não eram tipificados no sistema jurídico anterior à II Guerra Mundial, até mesmo por que era impossível imaginar que a humanidade chegaria a tantas barbaridades, ele é a origem do Novo Sistema Jurídico Internacional que resultou no Estatuto Penal Internacional, instituído pela comunidade das Nações em 199811.

Gonçalves reserva uma parte apenas para o Tribunal Militar Internacional, no qual fala de seu objetivo, que era julgar os grandes criminosos da guerra do Eixo. Sua

7 Idem, p. 70.8 Idem, p. 71.9 Idem, pp. 73 e 7410 Idem, pp. 75,150 e 157.11 Idem, p. 76.

Page 98: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

97

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

composição era de representantes das quatro Potências vencedoras: EUA, França, Grã- Bretanha e URSS. No entanto, o objetivo era não refletir como uma reação apenas dos Quatros Grandes Aliados e sim uma reação da Humanidade contra as atrocidades co-metidas pelos nazistas. Os magistrados eram desnacionalizados ou supranacionais em razão do cargo12.

O autor chama atenção para o fato de que o Tribunal impossibilitou recurso da Sentença, mesmo que o acusado tenha sido condenado à pena capital13.

Quando trata da formação do Tribunal Militar Internacional, Gonçalves descre-ve o papel do Ministério Público de acordo com o Estatuto, que seria reunir os cargos de acusação e proceder com a persecução aos grandes criminosos de guerra14.

Em relação aos acusados, Gonçalves ensina que para compor o banco dos réus estavam as principais autoridades do III Reich e que a escolha dos acusados fora subje-tiva, com a intenção de realizar um julgamento político do regime nazista, representado por homens responsáveis por instituições nazistas. Condenando esses homens, estar-se-ia condenando o Estado, o Regime e a Ideologia nazista. Houve muita discrepância em relação às penas. Os Aliados deixaram claro que a desnazificação deveria ser irre-versível. Por isso, quem não se submetesse a essa proposta seria condenado à morte, independente do grau de responsabilidade no governo do III Reich15.

A maioria da defesa fora designada pelos próprios acusados e era composta por grandes personalidades do Direito Alemão. Ressalta o autor que a defesa dos réus no Processo de Nuremberg teve grandes méritos, como absolvições de três acusados, além de inocentar o povo alemão pela guerra e suas conseqüências16.

Disserta, o autor, sobre a organização dos debates na sala de audiências do Palácio da Justiça em Nuremberg onde o Tribunal teria competência na condução dos debates, inclusive para aplicar sanções a perturbadores17.

Explica, ainda, que com exceção às especificações sobre crimes de guerra, o Tribunal de Nuremberg estabeleceu os crimes pelos quais deveriam ser responsabiliza-das as autoridades alemãs, as organizações do III Reich e qualquer um que se desejasse punir, contrariando o princípio da legalidade18.

Brito Gonçalves reforça que os quatro encargos - plano comum de conspiração; Crimes contra a paz; Crimes de Guerra e Crimes contra a humanidade- são definidos de forma confusa, de modo que qualquer pessoa poderia ser indiciada, julgada e conde-nada com base nos preceitos, o que garantia a Acusação grande facilidade em adequar qualquer conduta aos encargos do Estatuto19. Os atos criminais dos mais diversos eram repetidos a maioria das vezes nos outros três encargos. Todas as ações nazistas, desde

12 Idem, p. 77.13 Idem, p. 81.14 Idem, 2004, p. 83.15 Idem, pp. 89, 90 e 91.16 Idem, p. 9317 Idem, p. 95.18 Idem, p. 102.19 Idem, p. 103.

Page 99: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

98

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

a fundação do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães foi apresentadas como crime de conspiração20.

Primeiro os nazistas conspiraram, depois ao executar o plano comum, despre-zaram as leis da humanidade, cometendo assim os crimes contra a humanidade, enquan-to isso se preparavam para a guerra e quando desenvolveram a guerra, cometeram cri-mes de guerra contra as forças armadas inimigas, bem como contra civis combatentes21.

A teoria da conspiração foi devido ao fato do Füher ter se suicidado e como ele assumia para si todas as responsabilidades, pois o poder era concentrado em suas mãos, a acusação acabaria por se ver impossibilitada de responsabilizar os réus. Por isso, de-senvolveram a teoria da conspiração22.

O crime de conspiração implica dois elementos: acordo de vontades e consenso acerca dos procedimentos. O acordo de vontade, elemento do tipo, cai por terra diante do princípio do Líder. A autoridade de Hitler era inquestionável, portanto, não haveria acordo23.

Crimes contra a paz: o elemento do tipo é a guerra de agressão. Vem em segun-do lugar na denúncia. O crime contra paz teve início com a invasão da Polônia, depois contra França e Reino Unido. Direção, preparação, ou persecução de uma guerra de agressão. O ato de agressão representa as condutas de caráter preparatório, sem empre-go de força. Não era previsto em nenhum tratado ou convenção24.

Crimes de guerra: execução de reféns, fuzilamentos de prisioneiros, pilhagem de bens públicos, deportação para trabalho escravo. Aquele que vier a cometer viola-ções às normas de conduta entre nacionais e militares de Estados beligerantes, durante a guerra, será criminoso de guerra. Esse era o mais admissível dos quatro encargos, uma vez que já faziam parte de diversos estatutos penais militares do continente e já era previsto nas convenções de Genebra e de Haia25.

Crimes contra a humanidade: foi encargo que deu embasamento para o surgi-mento dos direitos humanos e deu origem ao novo termo para extermínio em massa, o genocídio. Assassinato, escravização e deportação ou qualquer ato inumano cometido antes ou durante a guerra. Esse encargo compila explicitamente condutas já descritas nos encargos anteriores, caracterizando o bis in idem26.

Maus-tratos, tortura, seqüestro, prisões arbitrária, deportação, trabalhos força-dos, perseguição por razões étnicas religiosas ou ideológicas, genocídio, saques nos ter-ritórios ocupados vão se confundir com crimes contra a humanidade. Os crimes têm as tipificações repetidas nos crimes de complô, crimes contra a paz, contra a humanidade e até nos crimes de guerra. O que incorreria, conforme já mencionado, no bis in idem,

20 Idem, p. 104.21 Idem, pp. 104 e 105.22 Idem, p. 106.23 Idem, pp. 117 e 119.24 Idem, p. 125.25 Idem, p. 131.26 Idem, p. 137.

Page 100: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

99

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

violando, portanto, princípio do direito penal27. Crimes de Guerra foram cometidos por todas as forças em combate. Por exem-

plo, as bombas em Hiroshima e Nagasaki. O exército vermelho executou 11.000 oficiais poloneses e em Nuremberg a culpa foi dado, apenas, aos alemães28.

Após o Estatuto de Nuremberg não mais seriam aceitas tantas violações e condutas internadas nos Estados que acarretassem danos à comunidade internacional. Surge, assim, um Direito internacional onde os Estados devem obedecer a tratados e, inclusive, os sistemas jurídicos internos dos Estados devem respeitar a princípios uni-versais, pois o Direito Internacional condena as leis raciais, a violência contra minorias, os abusos da autoridade para com seus cidadãos29.

Os procedimentos e o julgamento foram feitos por quatro nações distintas, o que fez com que conciliassem os sistemas jurídicos bastante distintos. A acusação foi beneficiada, a defesa se viu em significativos prejuízos por não estarem acostumados com esses procedimentos mistos, ferindo outro princípio básico do Direito, o do pleno contraditório30.

Destaca, o autor, a característica do Tribunal de Nuremberg como Corte de Exceção. Não se ativeram ao princípio da imparcialidade do juiz, uma vez que o Tri-bunal era composto de juízes dos países Aliados e as sentenças eram negociadas entre os juízes31.

Enfatiza, ainda, a ausência de possibilidade de recorrer, o direito básico de a parte lesada requerer do poder judiciário uma revisão mais abrandada de uma senten-ça32.

O princípio da legalidade e da irretroatividade da lei penal foram expressamen-te violados no julgamento em Nuremberg33. Apesar de tantas violações os defensores da Corte a viam como alternativa para mostrar à comunidade internacional todos os horro-res cometidos no III Reich. Ademais, o Tribunal Militar Internacional deixaria claro que a comunidade internacional não toleraria atos como aqueles praticados pelos nazistas34.

Na reflexão do autor, o Tribunal Militar Internacional, mesmo indo de encontro a todo um sistema jurídico anterior, válido por dar início a um novo Direito Internacio-nal, pois devido a ele, não mais se argumentaria a ausência de normas internacionais para absolver criminosos35.

Após validar o Tribunal Militar, relata as sentenças, resultado dos onze meses de trabalho. Dos 21 homens levados a julgamento no Tribunal Internacional Militar dos Grandes Criminosos de Guerra, 12 foram condenados à forca, como criminosos comuns

27 Idem, pp. 108 e 133.28 Idem, pp. 108 e 133.29 Idem, p. 124.30 Idem, p. 149.31 Idem, p. 150.32 Idem, p. 15533 Idem, p. 15734 Idem, p. 187.35 Idem, pp. 189 e 190.

Page 101: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

100

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

quando queriam ser fuzilados como criminosos de guerra; 3 receberam prisão perpétua; 2 foram condenados a 20 anos de reclusão; 1 foi condenado a 15 anos de prisão e outro a 10, porém 3 foram absolvidos. Os corpos dos enforcados foram cremados e as cinzas jogados em um rio, cujo nome permaneceria em segredo, para evitar que fosse levan-tado algum monumento no local. E assim, virava-se uma das mais terríveis páginas da história humana36.

Sobre o advento do Direito Internacional Humanitário, diferencia o princípio da necessidade em contraposição ao princípio da humanidade. O da necessidade é de-finido como o que, em regra, justifica o emprego da violência para atingir o fim da guerra. O princípio da humanidade fundamenta na unidade do gênero humano e no fato de que a guerra é considerada como sendo entre as coletividades estatais e não entre os indivíduos37.

Faz um breve relato das Convenções de Genebra, Suíça, que adaptou em 1949 as convenções de 1929 ao Direito Humanitário. Explica que da Conferência de 49 sur-giram 4 Convenções de Genebra: I- Convenção de Genebra para a melhoria da sorte dos feridos dos Exércitos em Campanha; II- Convenção de Genebra para a melhoria da sorte dos feridos, enfermos e Náufragos das Forças Armadas do Mar; Convenção de Ge-nebra Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra e IV- Convenção de Genebra Relativa à Proteção dos Civis em tempos de Guerra38.

As Convenções estão em vigor e o Brasil é parte desde 1956. O termo guerra é substituído por conflito armado, por ser mais amplo e por não haver guerras no novo sistema internacional, uma vez que foram banidas pela Carta da ONU. Em tempo o au-tor não faz a diferenciação entre guerras e conflitos armados, apenas em nota de rodapé tem se que conflitos armados é guerra em sentido material39.

Com relação aos princípios do Direito Internacional Humanitário cita os se-guintes princípios:

da humanidade;da limitação da escolha dos meios e métodos a disposição dos beligerantes; da honestidade na escolha dos métodos de guerra; da proteção da população civil; da proteção das vítimas de guerra; da proteção

dos bens de caráter civil; da inviolabilidade física e moral de todas as pessoas afetadas pelas hostilida-

des; da não discriminação; e da segurança; da neutralidade da Cruz Vermelha e, por fim, o princípio de li-

mitação40. O autor enumera algumas principais transformações ocorridas na década de

1990 afirmando que nessa década surge uma Nova Ordem Mundial. A guerra fria chega ao fim, no entanto uma infinidade de disputas por motivos étnicos e religiosos marcam

36 Idem, pp. 193 e 194.37 Idem, pp. 210 e 211.38 Idem, p. 214.39 Idem, pp. 214 e 216.40 Idem, pp.222 e 226.

Page 102: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

101

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

a última década do século XX41. Em 1993 o Tribunal Penal Internacional para ex-Yugoslávia (ICTY) é estabele-

cido para processar e julgar os indivíduos responsáveis por violações graves do Direito Internacional Humanitário cometidas no território da Ex-Yugoslávia, na década de 90. O Estatuto da Corte estabelece competência para julgar 4 categorias de crime, quais sejam:

infrações graves às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes de guerra; genocídio; e crimes contra a humanidade42. Foi estabelecido em 1994 o Tribunal Penal Internacional para Ruanda- ICTR

com a finalidade de persecução de pessoas responsáveis por genocídio e outras viola-ções ao direito internacional humanitário no território de Ruanda43.

Gonçalves reserva o último capítulo apenas ao Tribunal Penal Internacional Permanente. Esclarece que os tribunais ad hoc para a Ex-Yugoslávia e para Ruanda serviram de fonte de inspiração para a Corte Penal Internacional Permanente.

Em 1995 a Assembléia Geral decide pela criação de um Comitê Preparató-rio (PrepCom) para o estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional. A Itália se oferece para sediar a Convenção em Roma. Em 1998 ocorre em Roma a Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas para o Estabelecimento de uma Corte Internacional Criminal. Nessa conferência firma o tratado que constitui o estatuto do Tribunal Penal. Em 2002 o Brasil ratifica o Estatuto de Roma44.

O Tribunal Penal Internacional tem por objeto quatro categorias de crimes: genocídio; crimes contra a humanidade; crimes de guerra; crime de agressão, previstos nos arts. 5º e seguintes do Estatuto de Roma45. Portanto, com o Tribunal Penal Interna-cional estabelecido, os criminosos já têm a certeza de que se praticarem atos horrendos serão punidos46.

5. ANÁLISE CRITICA DA OBRA.

Brito Gonçalves trata com excelência sobre o julgamento de Nuremberg, com uma análise jurídica e política do tema. As cercas de 385 páginas desse livro permitem certa visão do contexto em que estava inserido o processo do julgamento de Nuremberg. Digo, certa visão, em vista da complexidade do assunto. Até por que é um julgamento se estendeu por duzentos e dezesseis dias e que resultou em um processo de 42 volumes.

Munido de conhecimento aprofundado sobre o tema, o autor permite ao acadê-mico de Direito participar e acompanhar um julgamento internacional ocorrido em 1945

41 Idem, p. 232.42 Idem, p. 234.43 Idem, pp. 237 e 238.44 Idem, pp. 363, 364, 365 e 367.45 Idem. p. 26146 Idem, p. 298.

Page 103: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

102

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

e as conseqüentes mudanças ocorridas no cenário internacional. Permite-nos refletir sobre o momento histórico no cenário mundial em que se responsabilizaram os que cometeram crimes de guerra, pois nas palavras do juiz Robert Jackson, se todo o mundo tiver a idéia de que fazer uma guerra de agressão conduz ao banco dos réus teremos um grande progresso em relação à segurança e à paz.

No entanto, o livro não tem a pretensão de ser um manual, uma apostila, uma cartilha Caminho Suave sobre o Direito Penal Internacional. Parece apresentar mais uma proposta de discussão a respeito do tema do que apenas lições. Tanto é que no decorrer do texto, fala de organizações e nomes do III Reich como se todos soubessem do que se trata.

A obra não explica o porquê de tanto ódio dos alemães em relação aos judeus e outras minorias. Não abarca a questão da origem dos conflitos. Não menciona qualquer informação sobre Hitler e suas patologias. Não questiona se havia alternativa para não instalação de um tribunal de exceção ou se haveria qualquer outra possível solução com vistas a por fim às constantes guerras e seus crimes.

O autor ilustrou a obra com personagens do julgamento; explicações no rodapé de extrema importância; anexos com o resumos do processo dos grandes criminosos de guerra, no qual constava o nome dos acusados, os respectivos encargos de acusação e as sentenças; explicações sobre algumas das organizações do III Reich; a planta da sala de audiências do Palácio de Justiça de Nuremberg e trechos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional que enriqueceram a obra dando mais vida ao tema. Contudo, na minha humilde opinião de leitora, a informação sobre as organizações e encargos deveria vir logo no início do livro.

A obra em análise é de suma importância, tendo em vista a grande contribuição do Tribunal de Nuremberg para o sistema jurídico internacional. Importância não só aos que desejam se aproximar do tema, porém, também, ao meio acadêmico, que deve pos-suir curiosidade acerca dos crimes internacionais e o tratamento a eles dispensado, por fim, a toda a sociedade, pois com diz uma velha máxima do filósofo Georges Santayana, “Um povo que desconhece o passado está condenado a repeti-lo”.

Diante de tudo o que foi exposto, o que foi possível reter de mais forte em re-lação à grande polêmica sobre o Tribunal de Nuremberg, foi a característica de exceção daquela corte, de vencedores julgando os vencidos, porém, uma necessidade política e moral, uma vez que as atrocidades cometidas eram inconcebíveis e não poderiam ficar impunes. Muitos princípios foram violados, mas a justiça se fez presente quando contri-buiu para a evolução do Direito Penal Internacional.

O contato com este livro ajudou a tentar suprir deficiência em Direito Penal Internacional, carência essa, que se mostrou em grau tão elevado que a fez por vezes pensar em desistir do trabalho. Abandono, que só não ocorreu devido à certeza que valeria a pena, de fato valeu.

Qual lição permanece depois de passados mais de 60 anos dos julgamentos do Tribunal de Nuremberg? As questões debatidas nos julgamentos de Nuremberg se apresentam como instrumentos a serem aprendidos e revistos diante de ações presentes na atual situação em que o mundo vivencia.

Page 104: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

103

Tribunal De Nuremberg (1945-1946): A Gênese De Uma Nova Ordem No Direito Internacional

Hoje práticas semelhantes àquelas julgadas ainda são praticadas por determi-nados governantes que ainda imaginam estar resguardados pela impunidade garantida pela aparente proteção dos cargos que ocupam.

O legado de Nuremberg é, na verdade, uma lição que deve ser aprendida e se-guida pelos líderes mundiais. O legado compreende um aviso, o de que independente da posição ocupada por determinada pessoa, a participação em crimes patrocinados pelo Estado irá sim gerar responsabilização individualizada pelos atos criminosos praticados pelo sujeito, além daquele que os ordenou.

A aplicabilidade do precedente do Tribunal de Nuremberg pode não ser tão simples, mas diante de uma análise de práticas recentes de governos que autorizaram, por exemplo, a tortura como parte de um procedimento legal e legítimo de interrogató-rio, vê-se que é uma lição esquecida ou ignorada por aqueles que detêm o poder, sendo a impunidade ainda regra.

A história pode ter ensinado a moderar as nossas expectativas quanto ao alcan-ce de proteção do direito internacional. No entanto, nunca a humanidade deve permitir que as aspirações por um mundo pacífico e justo regido por normas de proteção inter-nacional se esvaiam.

Roberto da Gama Cidade - Graduado em Direito pelo UniCeub (2007), Especialista em Direito Público, Advogado e Consultor, Professor da cadeira de Direito Internacio-nal Privado e Direito Internacional Público no Curso de Direito, e Professor da Cadeira de Direito Público e Privado do Curso de Administração de Empresas. Endereço ele-trônico:

Rosilene Soares Silva – Bacharelado em Direito pela IESPLAN em Dezembro de 2010.

Page 105: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

104

Revista Jurisplan - 2012

O DIREITO À SAÚDE E À CLÁUSULA DA RESERVA DO FINANCEIRAMENTE POSSÍVEL.

Daniel Ivo Odon Sulien Barbosa Rodrigues

RESUMOEste artigo de revisão curta tem por propósito estudar a questão que envolve a dúvida sobre se o direito à saúde, pressuposto lógico para a fruição de qualquer outro direito, pode sofrer mitigações fundadas na ausência de uma reserva financeira para sua concre-tização. Foi realizada uma revisão bibliográfica e documental sobre direitos e garantias fundamentais, em especial quanto a sua dimensão econômico-financeira como elemen-to limitador de sua efetividade em torno da obra do professor Ingo Wolfgang Sarlet, doutrinador gaúcho, que dedicou uma série de trabalhos sobre o assunto. Conclui o trabalho que a ineficiência administrativa; o descaso governamental com direitos fun-damentais da pessoa humana; a incapacidade de administrar verbas públicas; a ausência de visão política na percepção pelo gestor público do imenso relevo social de que se cinge a proteção à saúde; e a inatividade funcional dos administradores públicos na con-creção dos comandos constitucionais, não podem representar percalços à execução pelo Poder Público na sua uma obrigação constitucional inafastável da prerrogativa à saúde

Palavras-chave: Poder Público. Prerrogativa à Saúde. Direito.

1. INTRODUÇÃO.

O trabalho se insere no contexto dos direitos de segunda geração ou direitos sociais, que obrigam os entes governamentais a fornecer aos cidadãos uma gama de prestações, tais como educação, saúde e assistência social. Entretanto, observou-se logo que essas ações positivas possuíam um custo financeiro ao qual a sua efetivação estava intimamente relacionada.

Diante da limitação econômico-financeira de concretização imediata dos di-reitos de índole social, grande parte das constituições do mundo, inclusive a do Brasil, estabeleceram programas de realização progressiva, que visavam a gradual concreção desses direitos conforme a evolução econômica dos Estados.

Assim, a cláusula da reserva do financeiramente possível, em singelas linhas, traduz uma limitação de ordem financeira que incide sobre a efetivação dos direitos sociais, que em regra, exigem dos Estados dispêndio pecuniário para sua realização.

A questão tormentosa tratada nesta monografia e que representa um dos maio-

Page 106: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

105

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

res desafios do direito moderno brasileiro é, se o direito à saúde, pressuposto lógico para a fruição de qualquer outro direito, pode sofrer mitigações fundadas na ausência de uma reserva financeira para sua concretização.

Dessa forma, aborda-se a questão da exigibilidade dos direitos sociais na sua possível dimensão subjetiva. Em seguida, faz-se uma sumária digressão sobre o dever estatal de garantir as condições mínimas para uma existência digna, o que a doutrina denominou de mínimo existencial, para somente então se adentrar no cerne da questão jurídica controvertida: a reserva do possível e sua utilização como fator de limitação à efetividade do direito à saúde.

Utilizando-se do método dedutivo e, sobretudo, de referências bibliográficas. O principal marco teórico eleito foi o professor Ingo Wolfgang Sarlet, doutrinador gaú-cho, que dedicou uma série de trabalhos sobre os direitos e garantias fundamentais, em especial quanto a sua dimensão econômico-financeira como elemento limitador de sua efetividade.

1.1. Dos direitos fundamentais de índole social.

1.1.1. Dos direitos fundamentais.

No contexto global, a brutal pauperização e negação dos direitos às massas pro-letarizadas que assolava as sociedades civilizadas acabou suscitando a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalha-dora (COMPARATO, 2006, p. 53 et seq.) A Constituição francesa de 1848, retomando o espírito de certas normas das Constituições de 1791 e 1793, reconheceu algumas exi-gências econômicas e sociais. Mas a plena afirmação desses novos direitos humanos, só veio a ocorrer no século XX, com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar, de l919, que representou a positivação no plano interno dos direitos humanos tratados em normas internacionais. (IBIDEM)

Conforme leciona Flávia Piovesan, os direitos fundamentais representam a integralização dos direitos humanos consubstanciados em normas internacionais (De-claração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os Pactos de Nova Iorque de 1966, Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 etc.), de modo a refletir o processo democratização no Estado de Direito que. Os direitos fundamentais nada mais são do que os direitos humanos plasmados dentro da jurisdição doméstica do país (PIOVE-SAN, 2007, p. 21-28).

Toda Constituição moderna, além de organizar o exercício do poder político, traz consigo, então, o dever de definir os direitos fundamentais dos indivíduos subme-tidos à soberania do Estado. Neste contexto foi elaborada a Constituição brasileira de 1988 que, de tanto enaltecer e dotar o ser humano de direitos, recebeu de Ulysses Gui-marães a alcunha de Constituição Cidadã.

Os direitos fundamentais espraiados no texto constitucional, por conseguinte, se configuram gêneros cujas espécies se agrupam em quatro grandes categorias: direitos

Page 107: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

106

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

políticos, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos (BARROSO, 2006, p. 95). Muito embora todas as acepções de direito fundamental assumam imenso relevo no Direito Constitucional brasileiro, por pertinência ao tema, restringir-se-á a presente análise à abordagem exclusiva dos direitos sociais.

1.1.2. Dos direitos sociais

O reconhecimento dos direitos de caráter econômico e social foi o principal be-nefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira me-tade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização.

Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais não eram ca-taclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional das atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de produção, cuja ló-gica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior ao das pessoas (BARROSO, 2006, p. 53).

Os direitos econômicos, sociais e culturais atendem à locução abreviada de direitos sociais. Sua compilação constitucional remonta principalmente a Constituição Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919. Sua missão é encarar o homem para além da sua condição individual, exigindo deveres de prestação positiva (facere) do Estado, de modo a assegurar melhores condições de vida. Assim, enquanto os direitos individuais exigem do Estado um dever de abstenção, os direitos sociais, contrariamente, palpitam a atuação interventiva do Estado. Na Constituição brasileira de 1988, é exemplo de norma constitucional social que exige a prestação positiva do Estado o direito à proteção da saúde (art. 196).

2. OS DIREITOS SOCIAIS E A EXIGÊNCIA DE PRESTAÇÕES POSI-TIVAS DO ESTADO.

Se em relação aos direitos de defesa (descritos acima como sendo de primeira dimensão) não se cogita grandes controvérsias quanto a sua aplicabilidade imediata, sendo eles desde logo aptos a produzirem efeitos jurídicos, isto certamente não se dá na órbita dos direitos sociais de prestações, cuja realização exige uma conduta positiva por parte do Estado em relação ao destinatário.

É precisamente em função do objeto precípuo destes direitos e da forma me-diante a qual costumam ser positivados (normalmente como normas definidoras de fins e tarefas do Estado ou imposições legiferantes de maior ou menor concretude) que se travam as mais acirradas controvérsias envolvendo o problema de sua aplicabilidade,

Page 108: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

107

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

eficácia e efetividade. Dentre as diversas questões que suscitam estes direitos funda-mentais, há que destacar quatro, que, desde já, constituirão o objeto precípuo das consi-derações que irão seguir (SARLET, 2007, p. 297).

Assim, pergunta-se: a) em que medida os direitos a prestações se encontram em condições de, por força do disposto no art. 5º, § 1º, da CF serem diretamente aplicáveis e gerarem sua plena eficácia jurídica? b) quais os diversos efeitos jurídicos inerentes à eficácia jurídico-normativa dos direitos fundamentais a prestações? c) é possível de-duzir destes direitos um direito subjetivo individual a prestações estatais? d) caso afir-mativa a resposta à pergunta anterior, em que situações e sob que condições um direito subjetivo a prestações poderá ser reconhecido? (Id, p. 297)

Ponto de partida desta análise será, aqui, também a constatação de que, mesmo os direitos fundamentais a prestações, são inequivocamente autênticos direitos funda-mentais, constituindo (justamente em razão disto) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, § 1º, de nossa Constituição.

A exemplo das demais normas constitucionais e independentemente de sua forma de positivação, os direitos fundamentais prestacionais, por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, sendo, na medida desta aptidão, diretamente aplicáveis, aplicando-se-lhes (com muito mais razão) a regra geral, já referida, no sentido de que inexiste norma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade (SARLET, 2007, p. 297).

O quanto de eficácia cada direito fundamental a prestações poderá desencadear dependerá, por outro lado, sempre de sua forma de positivação no texto constitucional e das peculiaridades de seu objeto (Id, p. 297).

No momento em que os delineamentos mais relevantes no âmbito da diferen-ciação até agora realizada decorrem da natureza do objeto jurídico dos direitos sociais de prestação, há que definir por este critério, retomando-se parcialmente noções já de-senvolvidas no início do estudo, ainda que em apertada síntese.

Já se assentou, neste contexto, que, enquanto os direitos de defesa se caracte-rizam por sua natureza preponderantemente negativa, tendo por objeto abstenções do Estado, no sentido de proteger o indivíduo contra ingerências na sua autonomia pessoal, os direitos sociais prestacionais têm por objeto principal uma conduta positiva do Esta-do, consistente numa prestação de natureza fática (Id, p. 299).

Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de limitar o poder estatal, os direitos sociais reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômi-ca e social. Diversamente dos direitos de defesa, mediante os quais se cuida de preservar e proteger determinada posição, os direitos sociais de natureza positiva pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que objetivam a realização da igualdade material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais (Id. Ibid., p. 299).

Page 109: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

108

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

2.1. O alcance eficacial dos direitos sociais.

A noção de efetividade, cujo desenvolvimento é de relativa modernidade, tem sido objeto de grande preocupação dos constitucionalistas em todo o mundo. Tendo relação íntima com o fenômeno da jurisdicização do texto constitucional, e ao reco-nhecimento de sua força normatizante, a efetividade merece expressivo cuidado e lugar cativo na hermenêutica constitucional.

É intuitivo que a efetividade das normas depende em primeiro lugar, da sua eficácia jurídica, isto é, da aptidão formal para incidir e reger as situações da vida, operando os efeitos que lhe são próprios. Não se quer referir, aqui, apenas à vigência da regra, mas também, e, sobretudo, à “capacidade de o relato de uma norma dar-lhe condições de atuação” (FERRAZ JR., 1980, p. 29 apud BARROSO, 2006, p. 248), iso-ladamente ou conjugada com outras normas. Se o efeito jurídico pretendido pela norma for irrealizável, não há efetividade possível. Mas essa seria uma situação anômala em que o direito, como criação racional e lógica, usualmente não incorreria.

No Brasil, autores da melhor linhagem elaboraram cortes parciais que ilumina-ram aspectos específicos da efetividade das normas constitucionais. O estudo sistemá-tico pioneiro na matéria deve-se a José Afonso da Silva, em notável monografia escrita em 1968 e reeditada em 1982, cuja ênfase recaía na eficácia das normas constitucionais. Lastreando-se na lição de Rui Barbosa, assentou o eminente Professor da Universidade de São Paulo que não há, em uma Constituição, cláusula a que se deva atribuir mera-mente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras ditadas pela soberania nacional ou popular a seus órgãos (FERRAZ JR., 1980, p. 29 apud BARROSO, 2006, p. 250).

Em seguida, elaborou, sob inspiração da doutrina italiana, sua célebre classifi-cação tricotômica das normas constitucionais, dividindo-as em:

a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata;b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas

passíveis de restrição;c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida (que compreendem

as normas definidoras de princípio institutivo e as definidoras de princípio programáti-co), em geral dependentes de integração infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos.

Desse modo, no que se refere à efetividade dos direitos sociais, não se pode furtar-se de examinar, ao menos de forma sumária, qual o significado que podemos atribuir à expressão “normas programáticas” à luz do direito constitucional positivo (SARLET, 2007, p. 309).

Constata-se, desde logo, que na tradição do nosso direito constitucional as as-sim denominadas normas programáticas costumam ser encaradas de forma bastante ampla e genérica, razão pela qual a tarefa de formular uma posição uniforme no que tange ao conteúdo e significado destas normas longe está de poder ser considerada isen-

Page 110: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

109

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

ta de dificuldades, até mesmo pelo fato de que sob a rubrica normas programáticas pode enquadrar-se uma variada gama de normas da Constituição, que - a despeito de algumas semelhanças - nem por isto deixam de ser distintas entre si (idem. Ibidem).

Neste contexto, consideramos possível partir da premissa de que todas as nor-mas da Constituição aptas a serem enquadradas no grupo das normas de cunho progra-mático apresentam um elemento comum que justifica suficientemente esta opção, qual seja, o de que todas estas normas se caracterizam pelo fato de reclamarem, para que possam vir a gerar a plenitude de seus efeitos, uma interposição do legislador.

Cuida-se, portanto, de normas que apresentam a característica comum de uma (em maior ou menor grau) baixa densidade normativa, ou, se preferirmos, uma norma-tividade insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado, ou que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigidas ao Le-gislado (idem. Ibidem).

Com efeito, já se assinalou alhures que todas as normas constitucionais, mesmo as que fixam programas ou tarefas para o Estado, possuem o caráter de autênticas nor-mas jurídicas, no sentido de que mesmo sem qualquer ato concretizador se encontram aptas a desencadear algum efeito jurídico.

Para além do que já foi dito neste sentido, faz-se oportuna a referência à lição de Gomes Canotilho, reforçando o entendimento de que normas desta natureza corres-pondem às exigências do moderno Estado Social de Direito, sendo, portanto, inerentes à dinâmica de uma Constituição dirigente, no sentido de que estas normas impõem aos órgãos estatais, de modo especial, ao legislador, a tarefa de concretizar (e realizar) os programas, fins, tarefas e ordens nelas contidos (SARLET, 2007, p. 309).

No que tange à eficácia e à aplicabilidade das normas que se enquadram neste grupo, não se deve deixar de atentar para o fato de que diretamente dependentes do grau de concretude em nível da Constituição, bem como de seu objeto. A necessidade de uma concretização legislativa não se reconduz, todavia, tão-somente ao aspecto da determi-nação do conteúdo, já que os direitos de defesa, de regra, também contêm formulações de cunho aberto e vago, mas que nem por isto deixam de ser diretamente aplicáveis pelos órgãos judiciários, mediante o recurso à interpretação, sem que se cogite - neste particular - de ofensa ao princípio da separação de poderes (MIRANDA, apud SAR-LET, 2007, p. 310).

A necessidade de interposição legislativa dos direitos sociais prestacionais de cunho programático justifica-se apenas, (se é que tal argumento pode assumir feição absoluta) pela circunstância - já referida - de que se cuida de um problema de natureza competencial, porquanto a realização destes direitos depende da disponibilidade dos meios, bem como - em muitos casos - da progressiva implementação e execução de políticas públicas na esfera socioeconômica (idem, ibidem).

Tomando-se como exemplo o direito à saúde. A Constituição, ao enunciar que a saúde, além de ser um “direito de todos”, é dever do Estado, consagrou-se a promoção e proteção da saúde para todos como uma tarefa governamental que, na condição de nor-ma impositiva de políticas públicas, assume a condição de norma de tipo programática.

Page 111: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

110

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

Importa anotar, portanto, que a dimensão programática convive com o direito (inclusive subjetivo) fundamental, igualmente impondo deveres e/ou atribuindo direitos diferen-ciados quando ao seu objeto, destinatários, etc. (idem, ibidem, p. 314)

Arremata-se, portanto, que as normas por uma questão óbvia, independente de sua escala hierárquica, são editadas para serem regularmente cumpridas. Não rema-nesce dúvida, que ao menos em tese, existe uma relação de contraposição entre o ideal previsto na lei e a realidade fática social. Neste ponto que mora o conflito científico que invalida a presunção difusa e equivocada na qual o direito deve apenas exprimir a realidade concreta, pois é evidente que o direito deve delinear um quadro onde ecoam os sentimentos sociais voltado para uma ação prospectiva.

2.2. A exigibilidade dos direitos e garantias fundamentais de ordem social.

Pelo seu alto relevo no âmbito do tema genérico da eficácia dos direitos, funda-mentais, assim como pela calorosa polêmica que a matéria suscita, este item ocupar-se-á da problemática específica da eficácia dos direitos sociais enquanto direito subjetivo a prestações.

Em outras palavras, cuida-se de deslindar se e – em sendo afirmativa a resposta – até que ponto e sob que condições é possível, com base numa norma proclamatória de direito fundamental social, reconhecer-se ao particular um direito subjetivo individual, isto é, a possibilidade de exigir judicialmente do Estado uma determinada prestação ma-terial (direito à educação, assistência médica, assistência social, etc.) (SARLET, 2007, p. 317).

Se relativamente às demais cargas eficaciais referidas às dificuldades não se concentram no que tange à sua existência propriamente dita (não se discute, por exem-plo, que uma norma de direito fundamental, ainda que de cunho programático, sirva de parâmetro para a aplicação e interpretação das demais normas), mas dizem com certas especificidades vinculadas a cada tipo de efeito possível, tal não ocorre em se tratando da eficácia dos direitos sociais enquanto direitos subjetivos a prestações, onde a contro-vérsia já se põe inclusive com relação à própria possibilidade de seu reconhecimento (idem, ibidem).

Afinal, se há alguma questão que merece ocupar um lugar de destaque no âmbito da problemática da eficácia dos direitos fundamentais, esta é, sem dúvida, a indagação em torno da possibilidade de se reconhecê-los diretamente com base na nor-ma constitucional definidora de um direito fundamental social, independentemente de qualquer interposição legislativa. É saber se há como compelir judicialmente os órgãos estatais à prestação que constitui o direito de índole social (idem, ibidem, p. 327).

Assim, constata-se que alguns dos mais ilustres representantes da doutri-na pátria advogam o ponto de vista de acordo com o qual os argumentos contrários ao reconhecimento de um direito subjetivo individual a uma prestação estatal são de cunho preponderantemente ideológico, não resistindo a uma análise jurídica mais de-tida. Sustenta-se, por exemplo, que a natureza aberta e a formulação vaga das normas

Page 112: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

111

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

que versam sobre direitos sociais não possuem o condão de, por si só, impedir a sua imediata aplicabilidade e plena eficácia, já que constitui tarefa precípua dos tribunais a determinação do conteúdo dos preceitos normativos, por ocasião de sua aplicação.

Para além disso, alega-se que mesmo se tratando de preceitos imprecisos ou fluidos, se possível reconhecer um significado central e incontroverso, sempre se poderá aplicar a norma constitucional sem intermediação legislativa, já que, do contrário, se estaria outorgando maior força à lei do que à própria Constituição.

Percebe-se, todavia, que mesmo entre os estudiosos mais liberais, admite-se a existência de hipóteses nas quais não é possível investir o particular de um direito sub-jetivo a determinada prestação estatal. Neste contexto, assumem relevo alguns dos as-pectos já referidos no que concerne às distinções entre os direitos sociais prestacionais e os direitos de defesa, bem como outros argumentos que igualmente serão sumariamente referidos para viabilizar uma posterior análise e tomada de posição sobre o tema. De acordo com Mello (1981, p. 243), a posição jurídica dos particulares será menos con-sistente, não lhes conferindo a fruição e nem a possibilidade de exigir a fruição de algo, quando a norma constitucional:

expressar em sua dicção apenas uma finalidade a ser cumprida obrigato-riamente pelo Poder Público, sem, entretanto, apontar os meios a serem adotados para atingi-la, isto é, sem indicar as condutas específicas que satisfariam o bem jurídico consagrado na regra.

Há casos nos quais as normas constitucionais atributivas de direitos sociais “contemplam interesses cuja realização depende da edição de norma infraconstitucional integradora”. (BARROSO, (2006, p. 107)

Ressalte-se que este argumento encontra-se diretamente vinculado ao problema da forma de positivação do direito fundamental, isto é, à sua estrutura jurídico-nor-mativa. Na verdade, esta opinião harmoniza – ao menos parcialmente – com uma das objeções mais tradicionais, inclusive no direito comparado, feitas ao reconhecimento de direitos subjetivos (fundamentais) a prestações, qual seja o da indeterminação e/ou ambigüidade do dispositivo que os prevê.

Raciocínio diametralmente oposto ao adotado por alguns doutrinadores, que se posicionam favoravelmente à existência de normas de eficácia limitada. Nestas situa-ções, a norma constitucional expressamente transfere ao legislador ordinário a tarefa de concretizar o direito fundamental, sendo que apenas após este ato de intermediação a prestação devida pelo destinatário tornar-se-á exigível (SARLET, 2007, p. 327).

Outra linha de argumentação habitualmente oposta ao reconhecimento de direi-tos subjetivos a prestações diz com o limite fático da reserva do possível que, consoante será assinalado, chegou a ser considerada verdadeira característica dos direitos sociais prestacionais. Sustenta-se, por exemplo, que a efetivação destes direitos fundamentais encontra-se na dependência da efetiva disponibilidade de recursos por parte do Estado (MÜLLER, 1981, p. 5, apud SARLET, 2007, p. 328).

Para os que defendem este ponto de vista, a outorga ao Poder Judiciário da fun-

Page 113: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

112

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

ção de concretizar os direitos sociais mesmo à revelia do legislador, implicaria afronta ao princípio da separação dos Poderes e, por conseguinte, ao postulado do Estado de Direito. De acordo com a ponderação de Müller (idem, ibidem):

falta aos Juízes a capacidade funcional necessária para, situando-se fora do processo político propriamente dito, garantir a efetivação das pres-tações que constituem o objeto dos direitos sociais, na medida em que estas se encontram na dependência, muitas vezes, de condições de nature-za macroeconômica, não dispondo, portanto, de critérios suficientemente seguros e claros para aferir a questão no âmbito estrito da argumentação jurídica.

Desde logo, impõe-se a ponderação de que ambos os argumentos - aspectos normativos -estruturais e reserva do possível - se encontram intimamente ligados ao problema do objeto do direito fundamental e, por conseguinte, à sua função como di-reito a prestações. Portanto, é a natureza do objeto que determina, de acordo com esta linha argumentativa, as especificidades que impedem uma eficácia plena destes direitos fundamentais.

Relembre-se, por oportuno, que eventual ambigüidade ou indeterminação do conteúdo não acarreta, por si só, a indispensabilidade de uma intermediação legislativa em se tratando de direitos de defesa, já que estes pressupõem, para sua efetiva realiza-ção, uma atitude abstencionista do Estado. O que importa, relativamente aos direitos sociais prestacionais, é a possibilidade (ou não) de se alcançar a definição de seu objeto, isto é, do conteúdo e alcance da prestação, através de mecanismos especificamente ju-rídicos, não se cogitando - se for este o caso - de uma ofensa ao princípio da separação dos Poderes. (ALEXY, 2007, p. 462)

Para além disso, alega-se que os direitos sociais a prestações, por encontrarem-se em inevitável tensão dialética com os direitos de defesa, acabam por entrar em rota de colisão com outras normas constitucionais, inclusive com os próprios direitos de defesa, constituindo-se neste sentido, em causa para eventuais restrições na esfera dos últimos. (MÜLLER, 1981, p. 5, apud SARLET, 2007, p. 329)

Por derradeiro, há quem sustente que os direitos sociais geram um efeito de-letério sobre a ordem constitucional, porquanto despertam expectativas que facilmente resultam frustradas, além de habitualmente acabarem não cumprindo com sua função principal de assegurar as condições materiais para a efetiva fruição dos direitos de li-berdade.

Page 114: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

113

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

3. MÍNIMO EXISTENCIAL E A CLÁUSULA DA RESERVA DO FINANCEIRAMENTE POSSÍVEL.

O caráter cogente dos direitos sociais com o que passou a ser caracterizado como sendo uma garantia de um mínimo existencial é clara, porém é igualmente notória que aqui há um sem número de questões polêmicas que há bastante tempo compõem o cerne dos debates no referente aos direitos fundamentais.

Assim, como destaca o professor Ingo Sarlet, entre a doutrina pátria, muito embora o tema não venha a ser exatamente novo, não faz, contudo, muito tempo que tem sido objeto de estudos mais sistemáticos. Nesta seara, ressalta a contribuição de Ricardo Lobo Torres, autor, ao que se sabe, do primeiro ensaio especialmente dedicado ao tema no Brasil, já há mais de quinze anos e pouco após o advento da Constituição de 1988, publicado na prestigiada Revista de Direito Administrativo. Desde então, o próprio autor citado tem re-visitado o tema, ampliando o horizonte de seus estudos e aperfeiçoando seu rico arcabouço argumentativo (SARLET, 2008, p. 18).

Adentrando desde logo este aspecto do tema, é possível afirmar que a noção de um direito fundamental às condições materiais que asseguram uma vida com dignidade teve sua primeira importante elaboração dogmática na Alemanha, onde, de resto, obte-ve também um relativamente precoce reconhecimento jurisprudencial. (Idem. Ibidem, p.19)

Com efeito, em que pese não existirem, de um modo geral, direitos sociais típicos, notadamente de cunho prestacional, expressamente positivados na Lei Funda-mental da Alemanha (1949) - excepcionando-se a previsão da proteção da maternidade e dos filhos, bem como a imposição de uma atuação positiva do Estado no campo da compensação de desigualdades fáticas no que diz com a discriminação das mulheres e dos portadores de necessidades especiais (para muitos não considerados propriamente direitos sociais) -, a discussão em torno da garantia do mínimo indispensável para uma existência digna ocupou posição destacada não apenas nos trabalhos preparatórios no âmbito do processo constituinte, mas também após a entrada em vigor da Lei Funda-mental de 1949, onde foi desenvolvida pela doutrina, mas também no âmbito da práxis legislativa, administrativa e jurisprudencial.

Na doutrina do Pós-Guerra, o primeiro jurista de renome a sustentar a possi-bilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, inc. I, da Lei Fundamental da Alemanha, na seqüência referida como LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada (SARLET, 2008, p. 19).

Por esta razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II. da LF) não

Page 115: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

114

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

pode ser concebido meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida. Cerca de um ano depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal Fede-ral Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht) já no primeiro ano de sua existência, reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado, argumentando, igualmente com base no postulado da dignidade da pes-soa humana, no direito geral de liberdade e no direito à vida, que o indivíduo, na quali-dade de pessoa autônoma e responsável, deve ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica principalmente a manutenção de suas condições de exis-tência. Ressalte-se que apenas alguns anos depois o legislador acabou regulamentando - em nível infraconstitucional - um direito a prestações no âmbito da assistência social (art. 4º, inc. I, da Lei Federal sobre Assistência Social Bundessozialhilfegeseiz)”(Idem, Ibidem, p. 19).

Por fim, embora transcorridas cerca de duas décadas da referida decisão do Tribunal Administrativo Federal, também o Tribunal Constitucional Federal acabou por consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições míni-mas para uma existência digna. Da argumentação desenvolvida ao longo desta primeira decisão, extrai-se o seguinte trecho:

certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. [...] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos cidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, encontram-se limitados nas suas atividades sociais, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existên-cia digna e envidar os esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais (VerfGE 40. 121-133, apud SARLET, 2008, p. 19-20)1.

Desenvolvendo os aspectos já referidos, a doutrina (mas também a jurisprudên-cia) constitucional da Alemanha passou a sustentar que - e, em princípio, as opiniões convergem neste sentido - a dignidade propriamente dita não é passível de quantificação (SARLET, 2008, p. 20). A necessária fixação, portanto, do valor da prestação assisten-cial destinada à garantia das condições existenciais mínimas, em que pese sua viabilida-de, é, além de condicionada espacial e temporalmente, dependente também do padrão socioeconômico vigente. Não se pode, outrossim, negligenciar a circunstância de que o valor necessário para a garantia das condições mínimas de existência evidentemente estará sujeito a câmbios, não apenas no que diz com a esfera econômica e financeira, mas também no concernente às expectativas e necessidades do momento (Idem, Ibidem, p. 21).

De qualquer modo, tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portan-

1 Sigla do julgado do Tribunal Constitucional Alemão site http://www.bverfg.de.

Page 116: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

115

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

to, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesta perspectiva, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência. Registre-se, neste contexto, a lição de Heinrich Scholler, para quem a dignidade da pessoa humana apenas estará assegurada “quan-do for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”. (SCHOLLER, In: JZ 1980. p. 676, apud SARLET, p. 21)

Ainda no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, verifica-se uma distinção importante no concernente ao conteúdo e alcance do próprio mínimo existen-cial, que tem sido desdobrado num assim designado mínimo fisiológico, que constitui, por compreender as condições materiais mínimas para uma vida condigna, no sentido da proteção contra necessidades de caráter existencial básico, o conteúdo essencial da garantia do mínimo existencial, e um assim designado mínimo existencial sociocultu-ral, que, para além da proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção - em termos de tendencial igualdade - na vida social. Ao passo que - na Alemanha e segundo orientação doutrina e jurisprudencial prevalente - o conteúdo essencial do mínimo existencial encontra-se diretamente fundado no direito à vida e na dignidade da pessoa humana (abrangendo, por exemplo, prestações básicas em ter-mos de alimentação, vestimenta, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação), o assim designado mínimo sociocultural encontra-se fundado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade no que diz com o seu conteúdo material. (SARLET, 2008, p. 22)

Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que a garantia (e direi-to fundamental) do mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder ser reconhecida, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. No caso do Brasil, embora não tenha havido uma previsão consti-tucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, não se poderia deixar de enfatizar que a garantia de uma existência digna consta do elenco de princípios e objetivos da ordem constitucional econômica (art. 170, caput), no que a nossa Carta de 1988 resgatou o que já proclamava a Constituição de Weimar, de 1919 (SARLET, 2008, p. 22).

De outra parte, os próprios direitos sociais específicos (como a assistência so-cial, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser (os direitos sociais) reduzidos pura e simplesmente a concretizações e garantias do mínimo existencial, como, de resto, já anunciado.

Por outro lado, a previsão de direitos sociais não retira do mínimo existencial sua condição de direito-garantia fundamental autônomo e muito menos não afasta a necessidade de se interpretar os demais direitos sociais à luz do próprio mínimo existen-cial, notadamente para alguns efeitos específicos, que agora não serão objeto de atenção mais detida.

O fato de os direitos sociais na sua condição de direitos a prestações positi-vas cujo objeto são prestações estatais adstritas à destinação, distribuição, bem como

Page 117: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

116

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

à criação de bens materiais, aponta-se, com acerto, para sua faceta economicamente expressiva. Doutra feita, os direitos de defesa, por serem destinados a um não fazer, são freqüentemente considerados despidos do relevo econômico, no ponto em que o bem jurídico que tutelam pode ser garantido de forma autônoma em relação ao contexto econômico, ou, pelo menos, sem a destinação direta, por força de decisão judicial, de recursos financeiros.

De qualquer modo, é preciso que se deixe consignado que a referida irrelevân-cia econômica dos direitos de defesa (negativos) não dispensa alguns comentários e esclarecimentos mais detidos. Com efeito, já se fez menção que todos os direitos funda-mentais (inclusive os assim chamados direitos de defesa), na esteira da obra de Holmes e Sunstein e de acordo com a posição entre nós sustentada por autores como Gustavo Amaral (2001, p. 303) e Flávio Galdino (2005, p. 147), são de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem, para que sejam efetivados, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral (SARLET, 2008, p. 42).

Assim, não há como negar que todos os direitos fundamentais podem implicar “um custo”, de tal sorte que esta circunstância não se limita aos direitos sociais de cunho prestacional. É exatamente neste sentido que deve ser tomada a referida “neutralidade” econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos negativos) e a efetividade naquilo que depende da possibilidade de implementação jurisdicional não tem sido co-locada na dependência da sua possível relevância econômica.

Já no que diz com os direitos sociais a prestações, seu “custo” assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos para grande parte da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se comprometa algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura eco-nômica, já que aqui está em causa a possibilidade de os órgãos jurisdicionais imporem ao Poder Público a satisfação das prestações reclamadas (Idem, Ibidem, p. 42).

Há algum tempo se averbou que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras de di-reitos fundamentais sociais, de tal sorte que a limitação dos recursos constitui, segundo alguns, em limite fático à efetivação desses direitos (SARLET, 2007, p. 303.).

Distinta (embora conexa) da disponibilidade efetiva dos recursos, ou seja, da possibilidade material de disposição, situa-se a problemática ligada à possibilidade ju-rídica de disposição, já que o Estado (assim como o destinatário em geral) também deve ter a capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam os recursos existentes. Encontra-se, portanto, diante de duas facetas diversas, porém intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais prestacionais. Justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos sociais a prestações sob o que se denominou de uma “reserva do possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange mais do que a ausência de

Page 118: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

117

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

recursos materiais propriamente ditos indispensáveis à realização dos direitos na sua dimensão positiva.

A construção teórica da reserva do possível tem, ao que se sabe, origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fun-damentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do possível” (Der Vorbehalt das Mõglichen) passou a “traduzir (tanto para a doutrina majoritária, quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público (KRELL, 2002, p. 52).

Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a presta-ção de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dis-por, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende - de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã - da ponderação por parte do legislador.

A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possí-vel apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilida-de fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribui-ção das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administra-tivas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade.

Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficá-cia e efetividade dos direitos fundamentais possam servir não como barreira instrans-ponível, mas inclusive como ferramenta para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional.

A realização dos direitos sociais na sua condição de direitos subjetivos a pres-tações, de acordo com oportuna lição de Gomes Canotilho, costuma ser encarada como sendo sempre também um autêntico problema em termos de competências constitucio-nais, pois “ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos econômi-cos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações in-tegradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais” (CANOTILHO, 2001, p. 369). Como dá conta a problemática posta pelos que apontam para um “custo dos direitos” (por sua vez, indissociável da assim designada “reserva do possível”), a crise de efeti-vidade vivenciada com cada vez maior agudeza pelos direitos fundamentais de todas

Page 119: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

118

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

as dimensões está diretamente conectada com a maior ou menor carência de recursos disponíveis para o atendimento das demandas em termos de políticas sociais (LEAL, 2000, p. 163-187).

Com efeito, quanto mais diminuta a disponibilidade de recursos, mais se impõe uma deliberação responsável a respeito de sua destinação, o que nos remete diretamente à necessidade de buscarmos o aprimoramento dos mecanismos de gestão democrática do orçamento público, assim como do próprio processo de administração das políticas públicas em geral, seja no plano da atuação do legislador, seja na esfera administrati-va, como bem destaca Rogério Gesta Leal, o que também diz respeito à ampliação do acesso à justiça como direito a ter direitos capazes de serem efetivados e, além disso, envolve a discussão em tomo da necessidade de evitar interpretações excessivamente restritivas no que diz com a legitimação do Ministério Público para atuar na esfera da efetivação também dos direitos sociais. (Idem, Ibidem, p. 163-187)

Além disso, assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela efetivação dos direitos fundamentais sociais, mas que, ao fazê-lo haverão de obrar com máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem) um direito subjetivo a determinada prestação social, ou mesmo quando declararem a in-constitucionalidade de alguma medida estatal com base na alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal postura, venha a implicar necessariamente uma violação do princípio democrático e do princípio da separação dos Poderes. Neste sentido (e desde que assegurada atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e na medida do necessário) efetivamente há que dar razão a Holmes e Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério (especialmente pelo prisma da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez (HOLMES, 1999, p. 94).

Desse modo, oportuna a referência ao pensamento de Novais (2004, p. 295, apud HOLMES, 1999, p. 38) ao afirmar que a reserva do possível (antes de atuar como óbice insuperável à efetivação dos direitos sociais) deve viger como um mandado de otimização dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de, tanto quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal em causa, preservando, além disso, os níveis de realização já atingidos, o que, por sua vez, aponta para a necessidade do reconhecimento de uma proibição do retrocesso, ainda mais naquilo que se está a preservar o mínimo existencial (SARLET e FIGUEIREDO, 2007).

4. OS LIMITES À EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL DA SAÚDE.

Proposição precípua da análise que se passa a desenvolver é o contexto de que não se poderá desconsiderar que o direito à saúde encontra-se sempre e de alguma maneira afetado pela assim chamada reserva do possível em suas diversas expressões,

Page 120: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

119

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

seja pela disponibilidade de recursos financeiros ou pela capacidade técnico-jurídica de deles se dispor.

Por outro lado a garantia (implícita) de um direito fundamental ao mínimo existencial opera como parâmetro mínimo dessa efetividade, impedindo tanto omis-sões quanto medidas de proteção insuficientes por parte dos atores estatais assim como na esfera das relações entre particulares, quando for o caso. Em outras palavras, em matéria de tutela do mínimo existencial (o que no campo da saúde, pela sua conexão com os bens mais significativos para a pessoa) há que reconhecer um direito subjeti-vo definitivo a prestações e uma cogente tutela defensiva, de tal sorte que, em regra, razões vinculadas à reserva do possível não devem prevalecer como argumento a, por si só, afastar a satisfação do direito e exigência do cumprimento dois deveres, tanto conexos quanto autônomos, já que nem o princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária nem o da separação dos poderes assumem feições absolutas (SARLET e FIGUEIREDO, 2007).

Que o em princípio cogente reconhecimento de direitos subjetivos (inclusive originários e, portanto, diretamente fundados na Constituição, a despeito da inexistência de regulamentação específica pelo legislador) a prestações na esfera do mínimo exis-tencial também no caso da saúde, em que o impacto econômico seguidamente é muito expressivo (comparado com o “custo” do mínimo existencial em outros casos, como o da moradia e do ensino fundamental, por exemplo) não afasta a possibilidade e neces-sidade de se discutir uma série de questões daí emergentes resulta evidente, a principiar pela própria definição do que constitui o mínimo existencial em cada caso (SARLET e FIGUEIREDO, 2007).

Dentre os inúmeros aspectos que aqui poderiam ser colacionados e avaliados, situa-se o problema das técnicas processuais adequadas de tutela dos direitos fundamen-tais. Neste contexto, destaca-se (por sua conexão direta com a questão da reserva do possível) a que em geral equívoca equiparação entre as noções de eficácia plena e exigi-bilidade direta de direitos subjetivos a prestações e a categoria do direito líquido e certo como fundamento para concessão de liminar em mandado de segurança. Com efeito, o mínimo existencial está sujeito à demonstração e discussão com base em elementos pro-batórios, notadamente no que diz com as necessidades de cada um em cada caso, assim como em relação às alternativas efetivamente eficientes e indispensáveis de tratamento.

Não se pode ser ingênuo a ponto de ter como irrelevantes as questões vincula-das à reserva do possível, já que esta, para além das considerações de ordem financeiro-orçamentária estrita, envolve também aspectos outros, tais como disponibilidade efetiva de leitos, aparelhos médicos avançados, profissionais de saúde habilitados, etc. (SAR-LET e FIGUEIREDO, 2007). Além disso, assume relevo a exigência de capacidade de decisão específica (perícia) acerca das diretrizes terapêuticas a serem observadas quanto à prestação de saúde requerida. Isso porque os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas do SUS, que uniformizam as condutas de tratamento no âmbito do sistema de saúde brasileiro, têm por base o trabalho de profissionais especializados, buscando (pelo menos vale, em princípio, a presunção), acima de tudo, a garantia de eficiência e segurança dos tratamentos e medicamentos indicados, encontrando-se abertos à partici-

Page 121: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

120

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

pação da comunidade científica, a quem é viabilizada a possibilidade de opinar sobre o protocolo em estudo, antes que seja definitivamente aprovado e estabelecido (SARLET e FIGUEIREDO, 2007).

Por isso, a decisão acerca da garantia do mínimo existencial muitas vezes de-mandará um exame mais acurado da pretensão formulada em juízo, pois nem sempre se estará diante de tratamentos e medicamentos eficientes e seguros, podendo em muitos casos ser temerária a extrapolação das decisões técnico-científicas constantes dessas diretrizes. Com isso, não se está evidentemente a concordar com o entendimento de que não pode ser imposto ao Estado medicamento ou procedimento muito oneroso, da mesma forma como não se está a endossar decisões judiciais ou doutrina que reconhe-çam apenas a possibilidade de exigir judicialmente do Estado o fornecimento de bens ou serviços previstos na legislação ou, como no caso dos medicamentos, em protocolos aprovados pelo Ministério da Saúde ou pelas Secretarias de Saúde dos Estados ou Mu-nicípios (SARLET e FIGUEIREDO, 2007).

Como mencionado anteriormente, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem sempre servir de critério para a decisão judicial. Nesse sentido, pode-se dizer que não se mostra razoável, por exemplo, compelir o Estado a fornecer ou custear medicamentos e tratamentos experimentais, assim compreendidos aqueles não aprovados pelas autoridades sanitárias competentes (o que não significa que a opção técnica do setor governamental respectivo não possa e mesmo deva ser sindicada em determinadas hipóteses), ou que o foram para finalidade diversa daquela pretendida pelo interessado, e que sequer constituíram objeto de testes minimamente seguros, de tal sorte que o autor da demanda, em alguns casos, pode estar servindo como mera cobaia, o que, no limite, poderá implicar até mesmo em violação da própria dignidade da pessoa humana, que, em situações mais extremas, importa até mesmo no dever de proteção da pessoa contra si mesma por parte do Estado e de terceiros. (SARLET e FIGUEIREDO, 2007)

Num sentido ainda mais amplo, igualmente não se configura razoável a con-denação do Estado em obrigação genérica, ou seja, ao fornecimento ou custeio de todo medicamento ou tratamento que vier a ser criado ou descoberto, conforme a evolução científica, ainda que oportunamente aprovado pelo órgão sanitário técnico competente. Lembre-se que nem sempre o “novo” é sinônimo do melhor (mais eficiente e seguro para o próprio titular do direito à saúde e, por vezes, para a própria comunidade em que se insere), seja em termos de diretrizes terapêuticas, seja em termos orçamentários propriamente ditos. (SARLET, 2007)

Sem dúvida não é razoável, ademais, a imposição de prestação de determinada “marca” de remédio, quando existente outra opção, similar em segurança e eficiência, mas de menor custo econômico, disponível no mercado e no próprio sistema público de saúde - isso para não mencionar a necessidade de indicar-se preferencialmente o princípio ativo, isto é, a denominação científica das substâncias prescritas e, sempre que possível, ‘optar-se pelos medicamentos popularmente conhecidos como “genéricos”, desde que, convém repisar, assegurada a eficiência e segurança.

Em sentido semelhante, sem prejuízo de outras implicações em termos éticos, a

Page 122: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

121

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

exigência de intervenções desnecessárias e/ou inúteis, como ocorre, em caráter ilustra-tivo, com exames e cirurgias que podem, com vantagens acima de tudo para a própria saúde da pessoa, ser substituídos por outras formas de diagnóstico e tratamento. Tudo isto, portanto, converge com a exortação já lançada no que diz com a necessidade de averiguação (e, portanto, produção de prova e sujeição ao contraditório) do que efetiva-mente representa o mínimo existencial em cada caso e qual a necessidade (não apenas financeira) em dar atendimento ao pleito.

Ainda sobre a necessidade de repensar o papel do Poder Judiciário, não se pode deixar de lembrar que o Magistrado atua nas vestes do Estado-Juiz e, neste sentido, cumpre-lhe também (mesmo diante das limitações próprias à jurisdição e à relação pro-cessual que concretamente tem diante de si) atuar no sentido da fiscalização das provas trazidas pelas partes envolvidas, assim como do cumprimento da decisão exarada, nota-damente quando deferida uma prestação no âmbito do sistema público de saúde. Deve o magistrado verificar com rigor, tanto a prescrição médica, como já mencionado, quanto as alegações trazidas pelas entidades públicas a respeito da negativa da prestação, inclu-sive no que concerne ao comprometimento das contas públicas.

A própria exigência (salvo exceções plenamente justificadas) de prévio reque-rimento administrativo da prestação pode, a depender da perspectiva e das circunstân-cias, ser considerada, não necessariamente um mero óbice de acesso à jurisdição, o que seria de todo inaceitável, mas como critério de avaliação da (in) ocorrência de urgência do pleito veiculado e, portanto, da necessidade (ou não) de tutela (im) prorrogável da pretensão, visto que a prova da negativa estatal em fornecera prestação solicitada é um indicativo de urgência a tutela judicial requerida, a ausência de”prova do pedido administrativo pode servir de atenuante para o ente estatal que, somente em juízo, terá sido informado da necessidade reclamada pelo requerente e, em princípio, apenas então, poderá tomar as primeiras medidas administrativas necessárias ao cumprimento dos deveres materiais relacionados à salvaguarda da saúde dessa pessoa (SARLET, 2007).

Esse mesmo papel ativo é também exigível no acompanhamento da fruição do bem alcançado judicialmente, pelo controle judicial, por exemplo, por meio da exigên-cia de prestação de contas por parte do beneficiário da prestação material, demonstran-do, por exemplo, que retirou a medicação, ou que realizou a cirurgia, ou que se mantém sob o tratamento de saúde solicitado (SARLET, 2007).

Por fim, o que se concluí neste ponto é que não se pode confundir a necessidade de se levar a sério o sem número de dimensões e desdobramentos da reserva do finan-ceiramente possível com a inadmissível criação de obstáculos à plena eficácia e apli-cabilidade do mínimo existencial, não somente na condição de um direito derivado das normas infraconstitucionais, mas, outrossim, como direito subjetivo originário – e até certa medida absoluto – , a obtenção de prestações, o que se mostra ainda mais relevante em se tratando de matéria de tamanha sensibilidade como é à saúde e a vida humana.

Page 123: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

122

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

5. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL QUANTO À EFETIVAÇÃO DODIREITO À SAÚDE.

O Supremo Tribunal Federal em mais de uma oportunidade já se viu instado a se manifestar a respeito da realização do direito a saúde e sua eventual limitação por meio da cláusula reserva do financeiramente possível.

E no âmbito da Suprema Corte o Ministro Celso de Melo tem sido sem sombra de dúvidas o que mais se dedicou ao estudo do tema, proferindo decisões emblemáticas quanto aos limites de realização dos direitos sociais decorrentes da limitação econômi-co-financeira do Estado. Salientou o Ministro em vários acórdãos de sua relatoria, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional a ele outorgada, não poderia demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os di-reitos econômicos, sociais e culturais que se identificam – enquanto direitos de segunda geração – com as liberdades positivas, reais ou concretas. (MELLO, 2004)

Na esteira do raciocínio acima expendido o Ministro Celso de Mello, nos pro-cessos em que atuou como relator2 , tem entendido que incide sobre o Poder Público a gravíssima obrigação de tornar efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe de promover em favor das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recu-peração – que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República. O STF, afirmou em uma série de outras decisões que o direito à saúde representa um indisso-ciável consectário do direito fundamental à vida, o que impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional3 .

Pelo exposto, observa-se que o STF encontra-se sensível as questões relativas à implementação das políticas públicas voltadas a realização dos direitos sociais, sobretu-do quanto ao direito a saúde, e sempre que instado a se manifestar não se desonerou da sua missão constitucional de exigir dos Administradores Públicos a realização dos pro-gramas sociais determinados pela Carta Magna, sempre afastando a pseudo-argumen-tação quanto limitação financeira do Estado que na maioria das vezes é utilizada para disfarçar uma total desídia do Poder Público no que tange a efetivação do direito saúde.2 ADPF 45, RE 393.175-AgR/RS e RTJ 185/794-796. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso entre 14 e 27

de junho de 2011.3 RE 556.886/ES (adenocarcinoma de próstata); SI 457.544/RS (artrite reumatóide); AI 583.067/RS (cardiopatia

isquêmica grave); RE 393.175-AgR/RS (esquizofrenia paranóide); AI 570.455/RS (glaucoma crônico); AI 635.475/PR (hepatite “c”); AI 634.282/PR (hiperprolactínemia); MS 273.834-AgR/RS (HIV); RE 271.286-AqR/RS (HIV); RE 556.288/E3 (insuficiência coronariana); AI 620.393/MG (leucemia mielóide crônica); AI 676.926/RJ (lipoparatireoidismo); AI 468.961/MG (lúpus eritematoso sistêmico); RE 568.073/RN

(melanoma com acometimento cerebral); RE 523.725/ES (migatia mitocondrial); AI 547.758/R3 (neoplasia malig-na cerebral); AI 626.570/RS (neoplasia maligna cerebral); RE 557.548/MG (osteomielite crônica); AI 452.312/R3 (paralisia cerebral); AI 645.736/R3 (processo expansivo intracraniano); RE 248.304/R3 (status marmóreo); AI 647.296/SC (transplante renal); RE 556.164/E3 (transplante renal); RE 569.289/ES (transplante renal). Disponível em: http://www.stf.jus.br>. Acesso entre 14 e 27 de junho de 2011.

Page 124: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

123

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

6. CONCLUSÃO.

Por tudo que fora até agora exposto, ficou claro que o alto relevo social e o inarredável valor constitucional do qual se reveste o direito à saúde, faz com que este não possa ser menosprezado pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável acordo de índole constitucional que tem no poder público o seu principal destinatário.

Desse modo, a meta estabelecida pelo constituinte originário no que tange a proteção ao direito à saúde, traça um objetivo cujo não-alcance se consideraria uma gra-ve situação de inconstitucionalidade omissiva atribuída ao Estado, sobretudo quando a Carta Magna estabeleceu nesta seara um evidente programa a ser materializado através de políticas públicas coerentes e responsáveis.

Contudo, não se pode tratar com indiferença a questão relacionada à realização dos direitos sociais – que por tratar-se de uma norma programática de concretização progressiva –, possuí uma relação imediata com uma dimensão financeira subordina-da às possibilidades orçamentárias do Poder Público. Assim, uma vez objetivamente comprovada a impossibilidade econômica da máquina estatal, desta não se pode exigir, dentro das raias da razoabilidade, a efetivação imediata daqueles direitos, pois a referida limitação de ordem material mitiga o alcance do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstá-culo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa –, o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (MELLO, 2004).

Adverte-se, assim, que a reserva do financeiramente possível – ressalvada a objetiva comprovação acima mencionada –, não pode ser alegada pelo Poder Público com o propósito de esquivar-se deliberadamente do cumprimento de suas obrigações constitucionais, sobretudo quando dessa omissão estatal puder resultar em aniquilação ou anulação total dos direitos de índole social, cuja fundamentalidade é patente.

Outro aspecto a ser considerado, é que sendo um típico direito de segunda geração que exige do Estado uma prestação positiva, decorrente do conceito de igual-dade substancial, a proteção à saúde tem por alicerce comando constitucional que não autoriza um raio de discricionariedade capaz de conceder maior grau de liberdade de conformação ao direito, do qual o exercício possa ter como conseqüência, como base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação da prerro-gativa essencial.

Dessa forma, põe-se em evidência o alto relevo jurídico-social que assume em nosso ordenamento positivo o direito à saúde, especialmente em face do mandamento inscrito no art. 196 da Constituição da República.

Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no

Page 125: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

124

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

art. 196 da Constituição, fundado na obrigação de assegurar a todos a proteção à saúde, representa um elemento que estabelece correspondência direta com um comando de solidariedade social. Logo, se impõe ao Estado, qualquer que seja o grau institucional em que atue no plano da organização federativa, o dever de realizar a norma insculpida no art. 196.

Assim, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde – que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegurado pela própria Constitui-ção da República (art. 52, caput, e art. 196) –, ou fazer prevalecer, contra esse direito fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entende-se, uma vez con-figurado esse dilema, que motivos de ordem ético-jurídicos estabelecem ao operador do direito uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito irrecusável à vida e à saúde humana.

Logo, a direito a saúde – que conforme exposto alhures, representa, no contex-to do panorama histórico dos direitos humanos, uma das expressões mais significativas da igualdade material e das liberdades reais ou concretas – impõe, ao Estado, um dever prestacional que somente será cumprido pelo Poder Público de todos os níveis, quando este adotar providências destinadas a promover, em sua plenitude, a satisfação efetiva do comando estabelecido pelo texto constitucional.

Portanto, não é suficiente que as instâncias governamentais proclamem o reco-nhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declara-ção constitucional do direito à saúde, ele seja, antes de tudo, respeitado e efetivamente garantido.

Cumpre ressaltar, também, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o constituinte originário classificasse, como prestações de relevância publica, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), de forma a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas situações em que o Poder Público, de maneira desarra-zoada, deixasse de respeitar o comando constitucional, frustrando-lhe arbitrariamente a eficácia jurídico-social, seja por inconcebível atitude omissiva, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

E em tema de implementação de políticas governamentais previstas e deter-minadas no texto constitucional, notadamente nas áreas de saúde pública, o Supremo Tribunal Federal tem proferido decisões que neutralizam os efeitos lesivos e nocivos resultantes da inércia Estatal, em situações nas quais o comportamento omissivo do Poder Público representava uma inadmissível ofensa aos direitos básicos assegurados pela própria Carta Magna, mas cujo exercício estava sendo inviabilizado por uma cos-tumeira (e irresponsável) inatividade do aparelho estatal.

O STF, em referidos julgamentos, preencheu a lacuna da omissão estatal e deu real efetividade a direitos essenciais, concedendo-lhes concretude e, desse modo, via-bilizando o acesso dos cidadãos à fruição plena de direitos fundamentais, cuja realiza-ção prática lhes estava sendo negada, injustamente, por arbitrária abstenção do Poder Público.

Portanto, conclui-se que a ineficiência administrativa; o descaso governamen-tal com direitos fundamentais da pessoa humana; a incapacidade de administrar verbas

Page 126: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

125

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

públicas; a ausência de visão política na percepção pelo gestor público do imenso relevo social de que se cinge a proteção à saúde; e a inatividade funcional dos administradores públicos na concreção dos comandos constitucionais, não podem representar percalços à execução pelo Poder Público da norma inscrita no art. 196 da Lei Fundamental que impõe aos entes governamentais uma obrigação inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inadmissível omissão estatal importar em vulneração grave a um direito funda-mental e que foi, no contexto ora estudado, a prerrogativa à saúde.

THE RIGHT TO HEALTH AND THE POSSIBLE PROVISION OF FINANCIALLY RESERVES

ABSTRACTThis short review article aims on the study of whether the right to health, logical as-sumption for the enjoyment of any other right, may suffer mitigations based on the absence of a financial reserve for its achievement. It was performed a literature and documentary review over the rights and guarantees, with focus on their economic-finan-cial dimension as an element that limits its effectiveness around the work of Professor Ingo Wolfgang Sarlet, counselor gaucho, who devoted a lot of work on the subject. The article concludes that the administrative inefficiency, the neglect of governmental fun-damental human rights, the inability to manage public funds, the lack of political vision in the perception by the public administrator of the immense social importance that is restricted to protect the health and functioning inactivity of public administrators in the concreteness of constitutional provisions, can not represent mishaps enforcement by the government in its constitutional obligation inafastável a prerogative of the health.

Keywords: Public Policies. Prerrogative Right to Health. Fundamental Human Rights.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Centro de estudios po-liticos y constitucionales, traducción y estudio introductorio de Carlos Bernal Pulido, 2ª edición, Madrid: 2007.

ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos hu-manos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2003.

AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar,

Page 127: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

126

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

2001.

ATRIA, Fernando. Existem Direitos Sociais? In: MELLO, Cláudio Ari (co-ord.). Os Desafios dos Direitos Sociais. Revista do Ministério Público, nº. 56, set/dez. 2005. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

BARCELOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. 2ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas nor-mas – limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 8º Ed. Rio de Janeiro: Reno-var, 2006.

BARZOTTO, Luis Fernando. Direitos humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética. In MELLO, Cláudio Ari (coord.). Os desafios dos direitos sociais. Revista do Ministério Público, nº. 56, set/dez. 2005. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

BONAVIDES, Paulo et ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Bra-sil. 6ª edição. Brasília: Editora OAB, 2004.

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2001

______ . Direito constitucional. 5a ed. Coimbra: Almedina, 1992.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: Direitos não nascem em árvores. 1ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica – Um Modelo Pro-gramático. (coletânea). 1980, p. 29 apud BARROSO, Luís Roberto. Ibidem, p. 248.

GOUVÊA, Marcos Maselli. O direito ao fornecimento estatal de medicamen-tos. In: Revista Forense, v. 370. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 103-34. Disponível em: < http://www.mp.rs.gov.br/dirhum/doutrina/id507.htm>. Acesso entre 14 e 27 de junho de 2011.

HOLMES, Stephen and SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999.

Page 128: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

127

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: Os (des)caminhos de um Direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio Fa-bris, 2002.

LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Os direitos econômicos, sociais e culturais na América Latina e o Protocolo de San Salvador. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2001.

LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Eficácia das Normas Constitucionais so-bre Justiça Social, In: Revista de Direito Público (RDP) nº 57-58 (1981)

MELLO Celso de. DPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello. Informativo/STF n. 345/2004. Disponível em: < http://www.stf.jus.br>. Acesso entre 14 e 27 de junho de 2011.

MÜLLER, JP. Soziale Grundrechte in der Verfassung? 2nd edn., Frankfurt, 1981.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacio-nal. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamen-tais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

______ . Eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti et BARCELOS, Ana Paula (orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livra-ria do Advogado Editora, 2008.

SARLET, Ingo Wolfgang e FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, mínimo existencial e direito a saúde: algumas aproximações. In: Doutrina Nacional. Direitos Fundamentais e Justiça. Nº 1, out-dez 2007. p. 171-213. Disponível em: < http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf> Acesso entre 14 e 27 de junho de 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20 ed. São

Page 129: Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLANiesplan.br/faculdade/direito/revista/01.pdf · Revista Jurídica do Curso de Direito do IESPLAN. ... uma visão científica de determinados

128

O Direito A Saúde E A Cláusula Da Reserva Do Financeiramente Possível.

Paulo: Malheiros, 2001.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2006.

TIMM, Luciano et al. [org.]. Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

VAZ, Anderson Rosa. A cláusula da reserva do financeiramente possível como instrumento de efetivação planejada dos direitos humanos econômicos, sociais e cultu-rais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 17. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar. 2009.

Daniel Ivo Odon - Procurador da Conab, Professor de Teoria do Direito na Universi-dade de Brasília (UnB) e de Direito Internacional Público na Faculdade Planalto (IES-PLAN/DF), Membro da International Association of Constitutional Law, Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e Doutorando em Ciencias Jurídicas y Sociales na Universidad del Museo Social Argentino, em Bue-nos Aires-Argentina. Endereço postal: postal: SGAS 901, Bloco A, Edifício Conab, BRasília-DF, 70.390-010; Endereço Eletrônico: [email protected] .

Sulien Barbosa Rodrigues - Bacharelado em Direito pela IESPLAN em julho/2011. Endereço eletrônico: [email protected]