revista fé para hoje número 38, ano 2012

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Comometida com a Fé que foi entregue aos santos PARA HOJE N 0 38 - Nov/2012 - R$10 da fé cristã

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Page 1: Revista Fé para Hoje Número 38, Ano 2012

Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos

par a

HOJEFÉN0 38 - Nov/2012 - R$10

da fé cristã

Page 2: Revista Fé para Hoje Número 38, Ano 2012

Vamos semear!

Nosso desejo ao produzir esta revista é que, através dela, possamos colocar conteúdo bíblico nas mãos de pessoas que estão buscando a verdade de Deus para suas vidas e ministérios. Precisamos ser fieis na semeadura se queremos um dia ver uma grande colheita. Queremos ser colaboradores com Cristo e compartilhar as verdades da Palavra com todos quantos pu-derem ler as páginas dessa revista. Certa feita ouvi de alguém que encon-trou uma cópia de nossa revista numa pilha de papéis, num lixão e, lendo--a, foi convertido por Deus. Hoje podemos compartilhar os artigos desta revista gratuitamente para as mais de 90.000 pessoas que seguem nosso ministério pelo Facebook. Nossa missão é servir a Cristo e sua igreja. Nossa esperança é ver homens e mulheres fieis ao ensino da Palavra. Quero também incentivar os irmãos a juntar-se a nos em compartilhar este conteúdo tanto na forma gratuita digital, ou quando possivel abençoar algum outro irmão ou seu pastor com uma assinatura impresa.

J. Richard Denham IIIPresidente, Editora Fiel

Faç a a assinatura an ual da r e v istaFé para Ho je p or apenas R$15,00*Ligue 12 3919.9999 ou acesse www.editorafiel.com.br/feparahoje* Assinatura anual inclui duas revistas por ano. Se você deseja receber a revista fora do Brasil, entre em contato conosco pelo e-mail: [email protected]

Page 3: Revista Fé para Hoje Número 38, Ano 2012

Editorial Tiago Santos ........................................... 2

1. Uma nota sobre o primeiro artigo do Credo dos Apóstolos – Jonas Madureira .. 3

2. Um Evangelho que DevemosConhecer e Tornar Conhecido – Paul Washer ......... 13

3. A morte de uma igreja Hernandes Dias Lopes........................... 21

4. Deus, você e a igreja Sillas Campos ........................................ 25

5. A glória de Deus no chamado para pregar às nações – Franklin Ferreira ............... 31

6. Quão f irme fundamento! Steven Lawson ...................................... 41

7. Missões e Sof rimento Zane Pratt ............................................ 45

8. O fundamento da Igreja e a fé Mauro Meister ...................................... 59

Sumário

editor-chefe Tiago J. Santos Filho tradução Francisco Wellington Ferreirarevisão Marilene Paschoal diagramação Rubner Durais presidente James Richard Denham III presidente emérito James Richard Denham Jr. realização Editora Fiel | Novembro de 2012 | no 38

Page 4: Revista Fé para Hoje Número 38, Ano 2012

As coisas essenciaisTiago Santos

Editorial

Precisamos voltar às coisas essen-ciais.

Há muita riqueza, beleza e profun-didade na Palavra de Deus – fazemos bem em perscrutar essas coisas; em buscar entender todo o conselho de Deus – aquilo que ele revelou por sua Palavra e legou ao seu povo.

Mas não podemos avançar para as coisas mais profundas sem antes nos apegarmos às coisas essenciais. Para que nossas construções tenham vigor, é preciso que os alicerces sejam muito firmes.

O apóstolo Pedro traduz bem essa ideia em sua carta, ao dizer para seus leitores que quer “lembrá-los” de cer-tos ensinos que eles já haviam recebi-do. Paulo faz a mesma coisa em quase todas as suas epístolas, lembrando seus leitores que, no fim, a vida cris-tã deve ser caracterizada por algumas coisas essenciais, como fé, esperança e amor.

O Senhor Jesus Cristo ensinou também sobre as coisas essenciais. Em um de seus ensinos, ele conta a his-tória da construção de duas casas (Lc 6.46-49). Há muitas coisas importan-

tes nesse texto, que deviam chamar nossa atenção; por exemplo, edificar uma casa é algo que envolve muita di-ligência e trabalho. Ambos os homens da história o fizeram. Normalmente casas são construídas para servir de abrigo, proteção, reduto familiar, lar – seu propósito é bom. Todavia, o Se-nhor conta que um deles construiu sua casa na areia e que esta casa, não tinha alicerces. O outro construiu sua casa sobre a rocha e a edificou sob alicer-ces muito firmes. A diferença está nos alicerces.

Nesta edição da revista oferecemos ao querido leitor alguns artigos que nos remetem a essas coisas essenciais; que lidam com alguns dos alicerces de nossa fé. Preparada no contexto da 28ª Conferência Fiel para Pastores e Líde-res de 2012, trabalhamos aqui temas fundamentais, como doutrinas essen-ciais, igreja, missões. Naturalmente, há muitos assuntos importantes que não trouxemos nesta edição, mas cremos que estes haverão de ajudar-nos a che-gar na rocha, onde nosso alicerce deve estar fundamentado.

Que Deus abençoe sua leitura.

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Uma notasobre o primeiro artigo do Credo

dos Apóstolos

JonasMadureira

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“Creio em Deus Pai todo-podero-so, criador do céu e da terra.” Assim reza o primeiro artigo do Credo dos Apóstolos. É bastante peculiar que um dos símbolos mais significativos da fé cristã comece com uma confissão de que Deus é Pai. Isso, em princípio, pode não parecer uma peculiaridade, uma vez que outras religiões também chamam suas divindades de pai. Con-tudo, uma leitura mais atenta do con-texto e do significado dessa confissão revelará que tal declaração — que re-conhece Deus como Pai — não é ape-nas significativa para os cristãos, mas acima de tudo exclusiva a eles.

Sem dúvida, outras religiões tam-bém chamam suas divindades de pai, porém não da mesma forma como os

cristãos chamam Deus de Pai. Para os cristãos, a doutrina da Trindade sem-pre está nas entrelinhas da confissão de Deus como Pai. A razão disso se deve ao fato de que, antes de Deus ser o nosso pai celestial (Mt 6.9; Ef 4.6), ele é o Pai de Jesus Cristo (Mt 26.26; Ef 1.3). Nesse caso, ao confessar que Deus é Pai, o cristão inevitavelmente traz à memória a bondade e o amor de Deus que entregou o seu único Filho, o “unigênito do Pai” ( Jo 1.14), para que todo aquele que crê no Filho não pere-ça, mas tenha a vida eterna ( Jo 3.16). Portanto, quando os cristãos chamam Deus de Pai, eles não estão se referin-do apenas à imagem de Deus como um pai celestial, mas principalmente à imagem trinitária de Deus, ou seja,

No Credo dos Apóstolos se enumera sucintamente e em ordem precisa toda a história de nossa fé. Nele nada há que não esteja calcado em sólidos testemunhos da Escritura.”

João Calvino

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a imagem do Pai de Jesus Cristo que, em favor da humanidade, entregou o seu único Filho, num ato de suprema bondade e incomparável amor.1

Em outras palavras, ao começar a confissão dessa forma, o cristão pres-supõe não apenas a bondade do pai celestial, mas acima de tudo a incom-parável e suprema bondade do Pai de Jesus Cristo. A intenção do cristão é expressar que, antes de tudo, ele conce-be Deus como o summum bonum, isto é, como a bondade suprema que nenhuma

criatura é e jamais será capaz de ser.2 E isso, diga-se de passagem, é confirma-do pelo próprio Jesus, quando diz que “Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus” (Mc 10.18). Entretanto, o Credo é ainda mais preciso, uma vez que não pressupõe apenas a bondade suprema, mas também o poder absoluto de Deus. Afinal, não podemos esquecer que a confissão do cristão se dirige ao Deus Pai que é, ao mesmo tempo, todo-pode-roso, criador do céu e da terra. Ou seja, o Credo não confessa apenas a suprema bondade de Deus, mas também o seu

absoluto poder como criador de todas as coisas (Gn 1.1; Sl 19.1-6; At 17.22-31; Rm 1.18-23).

Assim como a confissão de Deus como Pai reflete a doutrina da Trin-dade, a confissão de Deus como to-do-poderoso reflete a doutrina da Criação, tal como foi herdada da fé judaica. A doutrina da Criação par-te do pressuposto de que tudo o que existe deve sua existência a um ser de grandeza máxima: Deus. Uma vez que, por definição, um ser de grande-

za máxima é onipotente, então, nada de concreto pode existir independente do seu poder criativo.3 Em seu famoso ensaio Das Glaubensbekenntnis: ausge-legt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart [O Credo: interpreta-do e respondido à luz das questões de hoje], Wolfhart Pannenberg elucidou, de forma precisa, o reflexo da doutrina da Criação na confissão de Deus como todo-poderoso. Em suas palavras:

Para ser preciso, nas versões gregas primitivas do Credo dos Apósto-

A intenção do cristão é expressar que, antes de tudo, ele concebe Deus como o summum

bonum, isto é, como a bondade suprema que nenhuma criatura é e jamais será capaz de ser”.

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los, a confissão Deus todo-podero-so se expressa por meio do título grego Pantokrator, Senhor de tudo [Allherr], termo também emprega-do ocasionalmente em referência a deuses gregos, como Hermes. No entanto, muito tempo antes, o termo se tornou familiar à tradição judaica e cristã, através da tradu-ção grega do Antigo Testamento, na qual a junção Kyrios Pantokra-tor era usada como tradução para Yahweh Sabaoth, um dos nomes veterotestamentários de Deus. Ademais, tal tradução mostra, mais uma vez, o quanto o poder absoluto de Yahweh permanecia no centro da fé judaica. Portan-to, a menção Deus todo-poderoso no Credo dos Apóstolos confirma ainda mais a identidade do Deus da fé cristã com o Deus de Israel. O fato de nada lhe ser impossível foi mostrado de forma renovada aos cristãos, por meio da ressur-reição de Jesus dentre os mortos (cf. Rm 4.24). Entretanto, também está presente na confissão Deus to-do-poderoso a noção de Deus como criador de todas as coisas. Quando a confissão credal Deus todo-po-deroso, “Senhor de tudo”, foi mais bem elucidada pela adição da refe-rência explícita à criação do mun-do, tal fato, portanto, não passou de mera expressão daquilo que já estava presente na noção de Deus como todo-poderoso. Se Deus é, de fato, todo-poderoso, não apenas o mundo visível, a terra, mas tam-

bém o mundo invisível, o céu, são obra de suas mãos.4

Portanto, ao confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão afirma a uni-dade que há entre o conceito trinitário de Deus Pai e o conceito cósmico de Deus todo-poderoso, o Criador do céu e da terra. Dessa forma, professa-se a crença não apenas na existência de Deus, mas sobretudo na existência de Deus como absolutamente bondoso e onipotente. Isso não é pouca coisa, pois, para o cristão, a confissão Deus Pai todo-poderoso expressa duas rea-lidades divinas que jamais devem ser disjuntivas, isto é, a crença cristã em Deus não admite que essas duas reali-dades constituam uma relação do tipo “ou-ou” – ou Deus é todo-bondoso ou é todo-poderoso. Pelo contrário, a rela-ção é conjuntiva, ou seja, uma relação do tipo “tanto-quanto” – Deus é todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Isso significa que toda a tentativa de fundamentar a crença em Deus que privilegie um conceito em detrimento do outro será qualquer crença menos uma crença cristã.

A crença em Deus Pai todo-podero-so é precisamente a confissão da unida-de que há entre a bondade suprema e o poder absoluto de Deus. Sem dúvida, são realidades distintas, porém inse-paráveis na crença cristã. Vale a pena enfatizar que, em nenhum momento, estamos dizendo que ambas as realida-des são indiscerníveis. Pelo contrário, é óbvio que são discerníveis, mas isso não quer dizer que sejam separáveis.

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Ora, no mundo existem coisas que são assim, ou seja, que são discerníveis, mas que nem por isso devem ser sepa-radas. Da mesma forma que existem coisas que são discerníveis e separáveis – como um galho que tanto é distinto de uma árvore como pode ser separa-do dela – também existem coisas que são discerníveis e inseparáveis – como é o caso, por exemplo, da cor verme-lha que, embora seja discernível, não pode ser separada da maçã vermelha. Logo, existem coisas que são discerní-veis embora sejam inseparáveis. Esse é o caso da crença cristã. Podemos dis-cernir a bondade suprema de Deus do poder absoluto de Deus, porém não podemos separar a bondade suprema de Deus do poder absoluto de Deus.

É justamente por causa da inse-parabilidade que há entre a bondade suprema e o poder absoluto de Deus que o problema do mal se impõe como uma questão demasiado espinhosa, tanto para o cristianismo como para

qualquer outra religião que sustente a crença básica em um Deus todo-bon-doso tanto quanto todo-poderoso. Vejamos a razão disso a partir de uma versão da formulação clássica do pro-blema do mal, que foi atribuída a Epi-curo (341-270 a.C.) por Lactâncio, um famoso apologista cristão que viveu aproximadamente entre 260-320 d.C.:

De acordo com Epicuro, ou Deus deseja remover o mal e não é capaz; ou ele é capaz e não deseja; ou ainda não deseja nem é capaz; ou então tanto de-seja quanto é capaz. Se desejar e não for capaz, deve ser fraco, o que não pode ser afirmado sobre Deus; se for capaz e não desejar, deve ser malévolo, o que tam-bém é contrário à natureza de Deus; se não deseja nem é capaz, deve ser tanto malévolo quanto impotente, e conse-quentemente não pode ser Deus; agora, se tanto deseja quanto é capaz – a única possibilidade compatível com a nature-za de Deus – então de onde vem o mal? [De Ira Dei, XIII]5

OPÇÕES DE EPICURO IMPLICAÇÕES

1. Ou Deus deseja eliminar o mal, mas não pode. Deus é fraco.

2. Ou Deus é capaz de eliminar o mal, mas não deseja eliminá-lo. Deus é malévolo.

3. Ou Deus nem deseja e nem é capaz de eliminar o mal. Deus é malévolo e fraco.

4. Ou Deus deseja e é capaz de eliminar o mal. Deus é bondoso e poderoso.

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De acordo com essa versão de Lac-tâncio, vemos que Epicuro enumerou quatro opções e suas respectivas im-plicações quanto ao problema do mal:

A partir do que já foi dito, é ób-vio que, de todas as quatro opções, apenas a quarta opção é compatível com a crença cristã. No entanto, é justamente a quarta opção que co-loca o cristão diante de uma questão difícil. Afinal, um ser todo-bondoso não desejaria que acontecessem coi-sas más, que crianças desenvolvessem leucemia, que terremotos fizessem

edifícios desabarem sobre pessoas ou que terroristas jogassem bombas em escolas repletas de crianças. Em vez disso, desejaria impedir que tais males acontecessem, se pudesse fa-zê-lo. Como o Deus do cristão não é apenas todo-bondoso, mas também todo-poderoso, logo, é óbvio que ele pode impedir que tais males aconte-çam. Mas o fato é que eles acontecem. Então, como compreender que seja todo-bondoso um Deus que sendo também todo-poderoso permite que tais males aconteçam?

Não precisamos gastar páginas e páginas para convencer o leitor de que o problema do mal é, para os cristãos, um “exercício de fé”.6 O problema toca em questões muito difíceis, que estão relacionadas não apenas com a nossa inteligência, mas também com o nosso sentimento religioso. Nas palavras do filósofo Alvin Plantinga:

O Credo dos Apóstolos começa assim: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da ter-ra...”. Quem repete essas palavras

e leva a sério o que elas dizem não está apenas confessando o fato de aceitar que uma dada proposição é verdadeira; algo muito mais forte do que isso está em jogo. A crença em Deus significa confiar em Deus, aceitá-lo, entregar-lhe a nossa vida. Para o crente, o mundo intei-ro parece diferente. (...) O universo inteiro assume para ele um aspec-to pessoal; a verdade fundamental sobre a realidade é a verdade sobre uma pessoa. Assim, acreditar em Deus é mais do que aceitar a pro-

Se Deus é, de fato, todo-poderoso, não apenas o mundo visível, a terra,

mas também o mundo invisível, o céu, são obra de suas mãos”.

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posição de que Deus existe. Mes-mo assim, inclui pelo menos isso. Não faz muito sentido acreditar em Deus e agradecer-lhe pelas montanhas sem acreditar que há tal pessoa a quem agradecer, e que ela é de algum modo responsável pelas montanhas. Nem podemos confiar em Deus e entregar-nos a ele sem crer que ele existe: “é ne-cessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e recom-pensa os que o buscam” (Hb 11.6).7

Ora, por que o dilema de Epi-curo é, para os cristãos, um exer-cício de fé? Em primeiro lugar, porque os cristãos acreditam jus-tamente em um Deus todo-bon-doso tanto quanto todo-poderoso. Em segundo lugar, porque, quando se fala da crença em Deus, não se fala apenas de uma postura intelectual ativa, mas sobretudo de uma postura intelectual passiva. Por exemplo, para acreditar que “o todo é maior do que as partes”, que “a menor distância entre dois pon-tos é uma reta” ou que “2+2=4” basta a compreensão do que significam essas proposições (uma postura intelectual ativa). Veja, tanto um ateu como um crente podem conhecer e acreditar nessas mesmas verdades. Para acre-ditar que, em um triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é

igual ao quadrado da hipotenusa basta uma postura intelectual ativa. A mes-ma coisa não pode ser dita da crença cristã na existência de Deus. Para a crença no teorema de Pitágoras é su-ficiente uma postura intelectual ativa (mera compreensão). Todavia, para a crença em Deus se requer bem mais do que uma postura intelectual ativa (a compreensão de que Deus é Pai e, ao mesmo tempo, todo-poderoso). O que se requer é o que chamamos de uma postura intelectual passiva, pois, antes

de confessar Deus Pai todo-pode-roso, o cristão é primeiro afetado pelo poder do Es-pírito que, atra-vés da palavra de Deus, o compele a acreditar que toda a sua vida, bem como to-

das as coisas à sua volta, enfim, tudo está nas mãos de um Deus bondoso e onipotente. Como se trata de uma crença que determina a “cosmovisão” (Weltanschauung) de uma pessoa, en-tão, é natural que não apenas a inteli-gência, mas sobretudo o modus viven-di do cristão sejam determinados por essa crença. Entretanto, aquele que confessa a fé cristã não apenas pro-fessa e assume uma cosmovisão, mas vive em função dela. Isso só pode ser assim porque a crença cristã não é um produto das faculdades intelectuais, ou seja, não é o resultado de uma mera atitude mental. Ela é, antes de

A crença em Deus Pai todo-poderoso é precisamente a

confissão da unidade que há entre a bondade suprema e o poder

absoluto de Deus”.

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tudo, fruto do impacto da palavra de Deus que, como disse Herman Doo-yeweerd,

pode ser explicado apenas pelo Espí-rito Santo, o qual abre nosso coração, de forma que nossa crença não é mais uma mera aceitação dos artigos da fé cristã, mas uma crença viva, instru-mental para a operação central da palavra de Deus no coração, o centro religioso de nossa vida.8

Ou como disse Agostinho de Hi-pona:

Amo-te, Senhor, e minha cons-ciência não duvida e nem vacila. Feriste-me o coração com a tua pa-lavra, e desde então te amei (Con-fissões, X, 6, 8).

A crença do cristão em um Deus bondoso e onipotente não é fruto de pura intelecção, mas sobretudo da ação interna do Espírito9 que impul-siona o cristão a crer em Deus dessa forma. Portanto, uma solução para o problema do mal que implique a dis-

solução ou a disjunção da crença em Deus Pai todo-poderoso não convence o cristão que aderiu a essa crença não apenas por uma operação do seu in-telecto, mas sobretudo pelo impacto da palavra de Deus, através do poder iluminador do Espírito. É o poder do Espírito que por meio da palavra de Deus convence o cristão de que Deus é todo-bondoso tanto quanto todo-po-deroso. Por isso, não é uma boa estra-tégia tentar modificar a crença cristã para torná-la mais palatável diante do problema do mal — até porque Epi-curo já mostrou que tais modificações pioram ainda mais as coisas. Além do mais, modificar a crença cristã para eliminar as dificuldades do problema do mal não é apenas uma péssima es-tratégia, mas acima de tudo um sinal de desonestidade intelectual.

Para o cristão, faz sentido crer que o Criador do céu e da terra seja todo-poderoso. Entretanto, não basta que o Criador mantenha apenas uma relação de poder com as obras de suas mãos. O cristão professa que o Deus que cria to-das as coisas deseja também uma rela-

Antes de confessar Deus Pai todo-poderoso, o cristão é primeiro afetado pelo poder do Espírito que, através da

palavra de Deus, o compele a acreditar que toda a sua vida, bem como todas as coisas à sua volta, enfim, tudo está nas

mãos de um Deus bondoso e onipotente”.

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ção amorosa com a sua criação. Aquele que foi impactado pela palavra de Deus não consegue separar, na sua crença, a bondade suprema e o poder absoluto de Deus. E exatamente porque não consegue separar ambas as realidades que o cristão se depara com a dificulda-de de entender a origem do mal:

Mas de novo dizia: “Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom, mas o pró-

prio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será para haver um motivo para que eu seja castigado justamen-te? Quem colocou isto em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura, embora todo eu tenha sido feito por um Deus tão doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas se também ele, por uma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe veio, também a ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo, na sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente

bom?”. De novo me deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas não me deixava arrastar até àquele inferno do erro, onde nin-guém te confessa, quando se julga que és tu a padecer o mal, e não o homem que o pratica.10

Em vez de adotar uma postura cí-nica e simplista, que passa a régua e diz “Não há dificuldade alguma! A crença em Deus é tão simples. Os teólogos e

filósofos é que complicam!”, o cris-tão precisa encarar com seriedade as dificuldades que o problema do mal impõe.11 Por outro lado, soluções es-capistas e demasiado retóricas, que sa-crificam ou a bondade ou a onipotência divina, são insuficientes para quem foi “ferido pela palavra de Deus” (Agosti-nho). Qualquer solução que, diante do problema do mal, abra mão da bonda-de divina em favor da onipotência de Deus é tão desastrosa quanto é a so-lução que abre mão da onipotência di-vina em favor da bondade de Deus. A solução que condiz com a crença cristã é aquela que, a despeito do mal, susten-

Somente a crença em Deus pai todo-poderoso pode dar para o cristão a esperança na vitória

sobre o mal, no triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica”.

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12 | Revista fé para hoje

ta a crença em Deus Pai todo-poderoso. Mesmo porque somente a crença em Deus pai todo-poderoso pode dar para o cristão a esperança na vitória sobre o mal, no triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica. Mas isso é matéria para outra nota.

1 Sobre a noção de Deus Pai como primeira pessoa da Trindade, bem como a estrutura trinitária do Credo dos Apóstolos, cf. J. N. D. Kelly. Early Christian Creeds. London: Longman, 1972, especialmente os capítulos 12 e 13.

2 “É que nenhuma alma alguma vez pôde ou poderá conceber alguma coisa que seja melhor do que tu, que és o supremo e o melhor bem [qui summum et optimum bonum es].” Santo Agostinho. Conf issões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII, 4, 6).

3 Cf. William L. Craig. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 2012, p. 181.

4 Wolfhart Pannenberg. Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1982, p. 38-39. Veja também Franklin Ferreira. Teologia cristã: uma introdução à sistematização das doutrinas. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 74-82.

5 Apud Pierre Bayle. Historical and critical dictio-nary. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1965, p. 169.

6 Em uma conversa que tive com Franklin Ferreira, ele me disse algo bastante esclarecedor, e que reproduzo a seguir com a sua anuência: “Se, para o cristão, o problema do mal é a oportunidade do exercício da fé, em contrapartida, para o incrédulo, o problema do mal é demasiado constrangedor, na medida em que suas opções são: (1) ou a negação da existência de Deus (que reduz o mal à mera percepção humana, relativizando-o); (2) ou o panteísmo (que nega a existência do mal); (3) ou o dualismo (que sugere que o bem e o mal são equivalentes). Entendo que o problema do mal não

é um dilema para o cristão, mas um exercício de fé, na medida em que esperamos o triunfo do Bem, no Dia do Senhor, na consumação escatológica.”

7 Alvin Plantinga. God, Freedom, and Evil. Grand Rapids, Cambridge: Eerdmans, 1974, p. 2.

8 Herman Dooyeweerd. No crepúsculo do pensamen-to. São Paulo: Hagnos, 2010, p. 255.

9 João Calvino designa essa ação do Espírito, que colo-ca o homem diante de Deus, de testimonium internum Spiritus Sancti (testemunho interno do Espírito Santo) [Institutas, 1.7.4-5; 3.2.33]. Calvino entende que, para o homem ouvir a voz divina, não basta Deus falar. A razão é simples. O homem é, por natureza, surdo para ouvir a voz de Deus e cego para enxergar a verdade revelada. Por isso, antes de ouvir, ele precisa ser curado de sua surdez; antes de ver, ele precisa ser curado de sua cegueira. Nas palavras de Calvino, “a palavra de Deus é semelhante ao sol: ilumina a todos a quem é pregada, mas não produz fruto entre os cegos. E, nessa parte, todos nós somos, por natureza, cegos. Por isso, não pode penetrar em nossa mente, a não ser pelo acesso que lhe dá o Espírito, esse mestre interior, com sua iluminação” [Institutas, 3.2.34]. Cf. João Calvino. A instituição da religião cristã. Tomo II. São Paulo: Unesp, 2009, p. 58-59.

10 Santo Agostinho. Conf issões. Lisboa: INCM, 2004, p. 273 (VII, 4, 6).

11 Sobre essa atitude cínica e simplista, C. S. Lewis diz: “Pois bem, então o ateísmo é sim-plista. E vou lhes falar de outro ponto de vista igualmente simplista que chamo de ‘cristia-nismo água com açúcar’. De acordo com ele, existe um bom Deus no céu e tudo o mais vai muito bem, obrigado – o que deixa completa-mente de lado as doutrinas difíceis e terríveis a respeito do pecado, do inferno, do diabo e da redenção. Os dois pontos de vista são filosofias pueris. Não convém exigir uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no mundo real são complexas. Parecem simples, mas não são”. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 53-54.

Franklin Ferreira: É mestre em teologia, pastor batista, autor, preletor, diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP.

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Um Evangelho que DevemosConhecer e Tornar Conhecido

Paul washer

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Um escritor ou pregador do evan-gelho teria muita dificuldade para elaborar uma introdução melhor ao evangelho de Jesus Cristo do que esta introdução dada pelo apóstolo Paulo à igreja de Corinto.1 Nestas poucas linhas, Paulo nos oferece verdades su-ficientes para vivermos durante toda a vida e conduzir-nos à glória. Somente o Espírito Santo poderia capacitar um homem a dizer tanto, com tanta clare-za, em tão poucas palavras.

ConheCendo o evangelho

Nesta pequena passagem das Es-crituras, achamos uma verdade que tem de ser redescoberta por todos nós. O evangelho não é apenas uma men-

sagem de introdução ao cristianismo. Ele é “a” mensagem do cristianismo; e o crente fará muito bem se gastar sua vida em procurar “conhecer” a glória do evangelho e em “tornar conhecida” esta glória. Há muitas coisas a conhe-cermos neste mundo e inúmeras ver-dades a serem investigadas na esfera do cristianismo, mas o glorioso evan-gelho de nosso Deus bendito2 e de seu Filho, Jesus Cristo, é superior a todas elas. É a mensagem de nossa salvação, o instrumento de nosso progresso na santificação e a fonte cristalina da qual flui toda motivação pura e correta para a vida cristã. O crente que compreende algo do conteúdo e do caráter do evan-gelho nunca terá falta de zelo, nunca será tão necessitado que buscará forças

Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei...”

1 Coríntios 15.1

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em cisternas rotas e vazias feitas pelas mãos de homens.3

De nosso texto, entendemos que o apóstolo Paulo já tinha pregado o evangelho à igreja de Corinto. De fato, ele era o pai espiritual daqueles crentes!4 Entretanto, Paulo viu a ne-cessidade de continuar pregando-lhes o evangelho: não somente de recordar as suas verdades essenciais, mas tam-bém de ampliar o seu conhecimento. Na conversão deles, começaram uma jornada de descoberta que abrangeria toda a sua vida e se estenderia pelas eras intermináveis da eternidade – a

descoberta das glórias de Deus revela-da no evangelho de Jesus Cristo.

Como pregadores e congregantes, seríamos sábios se víssemos o evan-gelho novamente com os olhos deste apóstolo da antiguidade e o estimásse-mos como digno de uma vida inteira de investigação cuidadosa. Embora já tivéssemos vivido muitos anos na fé, embora possuíssemos o intelecto de Edwards e o discernimento de Spur-geon, embora pudéssemos entender toda publicação desde os pais na igreja

primitiva, passando pelos reforma-dores e puritanos, até aos eruditos do tempo presente, estejamos certos de que ainda não atingimos nem mes-mo os contrafortes deste Everest que chamamos de “evangelho”. E isso será dito a nosso respeito mesmo depois de uma eternidade de eternidades!

Vivemos em mundo que nos ofere-ce um número quase infinito de possi-bilidades, e existe um número incalcu-lável de opções que rivalizam por nos-sa atenção. O mesmo pode ser dito so-bre o cristianismo e a ampla esfera de temas teológicos que um aluno pode

estudar. Há um número quase infinito de verdades bíblicas que um homem pode gastar a vida examinando-as. E mesmo o tema menos importante da Escritura é digno de milhares de vidas em seu estudo. Todavia, há um tema que se eleva sobre todos os demais e que é fundamental para o entendi-mento de todas as outras verdades bíblicas – o evangelho de Jesus Cristo. É por meio desta mensagem singular que o poder de Deus se manifesta na igreja e na vida do crente individual.

Somos “evangélicos” porque cremos no evangelho e o estimamos

como a verdade primordial e central da revelação de Deus para os homens”.

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Quando examinamos os anais da história do cristianismo, vemos ho-mens e mulheres de paixão incomum por Deus e por seu reino. Anelamos ser como eles e nos perguntamos como chegaram a possuir um zelo tão dura-douro. Depois de uma consideração diligente de sua vida, doutrina e mi-nistério, descobrimos que eles diferi-ram em muitas coisas, mas tiveram um denominador comum entre si. Todos eles tiveram um vislumbre da glória do evangelho, e sua beleza acendeu a paixão deles e os impulsionou a pros-

seguir. A vida e o legado deles pro-vam que paixão genuína e duradoura resulta de um entendimento cada vez mais crescente e mais profundo do que Deus fez por seu povo na pessoa e na obra de Jesus Cristo! Não há substitu-to para esse conhecimento!

O evangelho cristão tem sido de-signado como “evangelho”, uma pala-vra que vem do latim evangellium, que significa boas novas. Esta é a razão por que os crentes são muitas vezes cha-mados de evangélicos. Somos “evan-gélicos” porque cremos no evangelho

e o estimamos como a verdade pri-mordial e central da revelação de Deus para os homens. O evangelho não é um prefácio, um provérbio ou uma ex-plicação posterior. Não é meramente a classe de introdução ao cristianismo, e sim todo o curso de estudo do cris-tianismo. É a história de nossa vida, as insondáveis riquezas que procuramos explorar e a mensagem que vivemos para proclamar. Por esta razão, pode-mos dizer que somos mais cristãos e mais evangélicos quando o evangelho de Jesus Cristo é a nossa única espe-

rança, o nosso único motivo de orgu-lho e a nossa única e maior obsessão.

Hoje, são realizadas tantas confe-rencias no âmbito do evangelicalismo, especialmente para jovens, que têm o objetivo de estimular a paixão dos crentes por meio de música, comu-nhão, palestrantes eloquentes, histó-rias emocionais e apelos comoventes. Contudo, o entusiasmo que tais con-ferências produzem, seja ele qual for, desaparece rapidamente. Pequenos fogos foram acessos em pequenos co-rações e se acabam em poucos dias.

Esta é a grande necessidade do momento, uma paixão por conhecer o

evangelho e uma paixão idêntica por torná-lo conhecido”.

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Temos esquecido que paixão genuína e duradoura nasce do conhecimento da verdade e, em específico, a verdade do evangelho. Quanto mais “conhe-cemos” e compreendemos a beleza do evangelho, tanto mais somos to-mados por seu poder. Um vislumbre do evangelho moverá o coração ver-dadeiramente regenerado a segui-lo. Cada vislumbre maior do evangelho acelerará o seu passo, até que ele este-ja correndo resolutamente em direção ao prêmio.5 A essa beleza o coração verdadeiramente cristão não pode re-sistir. Esta é a grande necessidade do momento! É o que temos perdido e o que temos de obter novamente – uma paixão por conhecer o evangelho e uma paixão idêntica por torná-lo co-nhecido.

Tornando ConheCido o evangelho

Não seria um exagero dizer que o apóstolo Paulo foi um dos maiores instrumentos humanos do reino de Deus, na história da humanidade e na história da redenção. Ele foi respon-sável pela propagação do evangelho em todo o Império Romano durante um tempo de perseguição incompa-rável e permanece como um exemplo do que significa ser um ministro cris-tão. No entanto, ele fez tudo isto por meio da proclamação simples da men-sagem mais escandalosa de todas que já chegaram aos ouvidos dos homens. Ao considerarmos a vida do apóstolo Paulo, notamos que ele foi um ho-

mem excepcionalmente dotado, em especial no que concerne ao seu inte-lecto e zelo. Todavia, ele mesmo nos ensinou que o poder de seu ministério não estava em seus dons, mas na pro-clamação fiel do evangelho. Em sua primeira carta dirigida aos cristãos de Corinto, Paulo escreveu sua grande resignação:

Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evange-lho; não com sabedoria de palavra, para que se não anule a cruz de Cristo.6

Porque tanto os judeus pedem si-nais, como os gregos buscam sabe-doria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os ju-deus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.7

Podemos dizer que o apóstolo Paulo foi, acima de tudo, um prega-dor! Como Jeremias antes dele, Paulo foi constrangido a pregar. O evange-lho era como um fogo ardente encer-rado em seus ossos, que ele não podia suportar.8 Aos cristãos de Corinto, Paulo declarou: “Eu cri; por isso, é que falei”9 e: “Ai de mim se não pregar o evangelho!”10 Essa estimativa tão ele-vada do evangelho e de pregá-lo não pode ser fingida, quando não existe no coração do pregador, e não pode ser ocultada, quando existe. Deus chama diferentes tipos de homens para le-

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varem o fardo da mensagem do evan-gelho. Alguns deles são mais solenes e sérios, enquanto outros são mais desatentos e joviais, porém, quando a conversa muda para o assunto do evangelho, uma mudança ocorre no semblante do pregador, e parece que você tem diante de si uma pessoa mui-to diferente. A eternidade está estam-pada na face dele, o véu foi removido, e a glória do evangelho brilha com uma paixão genuína. Tal homem tem pouco tempo para histórias fantás-ticas, antídotos morais ou para com-partilhar pensamentos vindos de seu coração. Ele veio para pregar e tem de pregar! Não descansará enquanto seu povo não ouvir a mensagem de Deus. Se o servo Eliezer não pôde comer enquanto não entregou a mensagem de seu senhor, Abraão,11 quanto me-nos um pregador do evangelho ficará tranquilo enquanto não houver entre-gado o tesouro do evangelho que lhe foi confiado!12

Embora poucos discordem do que escrevi até aqui, parece que, de modo geral, a pregação apaixonada do evangelho está fora de moda. Ela é considerada por muitos como algo que não possui o requinte e a sofisti-cação necessários para que seja eficaz nesta era moderna. O pregador cheio de paixão que proclama ousada e ca-tegoricamente a verdade é agora con-siderado um obstáculo para o homem pós-moderno que prefere um pouco mais de humildade e de abertura para com outras opiniões. O argumento da maioria é que temos de mudar nossa

maneira de pregar porque o evangelho parece loucura para o mundo.

Essa atitude para com a pregação é prova de que perdemos nosso senso de direção na comunidade evangélica. Foi Deus quem ordenou que a “lou-cura da pregação” seja o instrumento para levar ao mundo a mensagem sal-vadora do evangelho.13 Isto não signi-fica que a pregação deve ser tola, ilógi-ca ou bizarra. Contudo, o padrão pelo qual toda pregação deve ser compara-da é a Escritura e não as opiniões con-temporâneas de uma cultura decaída e corrupta, que é sábia a seus próprios olhos14 e prefere ter seus ouvidos co-çados e seu coração entretido a ouvir a Palavra do Senhor.15

Aonde quer que o apóstolo Pau-lo viajasse, ele pregava o evangelho. Faremos bem se seguirmos o seu exemplo. Embora o evangelho pos-sa ser compartilhado por meio de instrumentos, não há outro instru-mento tão ordenado por Deus como a pregação. Portanto, aqueles que es-tão buscando constantemente meios inovadores para compartilharem o evangelho com uma nova geração de pessoas interessadas fariam bem se começassem e terminassem sua busca nas Escrituras. Aqueles que enviam milhares de questionários que per-guntam aos nãos convertidos o que eles mais gostariam de ver em um cul-to de adoração devem compreender que as inúmeras opiniões de homens carnais não possuem a autoridade de “um i ou um til” da Palavra de Deus.16 Precisamos entender que há um gran-

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de abismo de diferenças irreconci-liáveis entre o que Deus ordena nas Escrituras e o que a cultura carnal contemporânea deseja.

Não devemos nos admirar de que homens carnais tanto dentro como fora da igreja desejem teatro, músi-ca e mídia no lugar da pregação do evangelho e da exposição bíblica. En-quanto o coração de um homem não for verdadeiramente regenerado, ele aborda o evangelho da mesma ma-neira como os demônios gadarenos abordaram o Senhor Jesus Cristo:

“Que temos nós contigo?”17 Sem a obra de regeneração realizada pelo Espírito Santo, o homem carnal não tem nenhum interesse ou apreciação verdadeira pelo evangelho, mas, ape-sar disso, este milagre é operado no coração de um homem por meio da pregação do evangelho que, a princí-pio, ele desdenha. Portanto, devemos pregar aos homens carnais a própria mensagem que eles não querem ouvir, e o Espírito Santo deve agir! Sem isto, os pecadores não podem ver a beleza

do evangelho, assim como porcos não podem ver beleza em pérolas, ou como cães não podem mostrar reverência para com carne santificada, ou como cegos não podem apreciar uma pin-tura de Rembrandt.18 Os pregadores não fazem bem aos homens carnais por oferecer-lhes as coisas que seu co-ração caído deseja, e sim por colocar diante deles a verdadeira comida,19 até que, pela obra miraculosa do Espírito Santo, reconheçam-na como o que ela realmente é, provem e vejam que o Se-nhor é bom!20

Antes de terminar esta breve dis-cussão sobre a pregação do evangelho, temos de falar sobre um assunto final. Apresenta-se frequentemente a teoria de que nossa cultura não pode tolerar o tipo de pregação que foi tão eficaz durante os grandes despertamentos e avivamentos do passado. A pregação de Jonathan Edwards, George Whi-tefield, Charles Spurgeon e outros pregadores semelhantes seria ridicu-larizada, satirizada e escarnecida pelo homem moderno. No entanto, esta

Precisamos entender que há um grande abismo de diferenças irreconciliáveis entre o que Deus ordena nas Escrituras e o que a

cultura carnal contemporânea deseja”.

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teoria não leva em conta o fato de que estes mesmos pregadores foram ridi-cularizados e satirizados pelos homens de seus dias! A verdadeira pregação do evangelho será sempre “loucura” para toda cultura. Qualquer tentativa de remover a ofensa do evangelho e de tornar a pregação “conveniente” di-minui o poder do evangelho. Também frustra o propósito para o qual Deus escolheu a pregação como o meio de salvar homens – que a esperança dos homens não esteja em nobreza, elo-quência ou sabedoria mundana, e sim no poder de Deus.21

Vivemos numa cultura que está presa ao pecado com algemas de aço. Histórias morais, máximas extraor-dinárias e lições de vida compartilha-das de um coração de um palestrante querido ou de um “tutor de vida espi-ritual” não têm nenhum poder verda-deiro contra essas trevas. Precisamos de pregadores do evangelho de Jesus Cristo, que conhecem as Escrituras e são capacitados, pela graça de Deus, a encarar qualquer cultura e a clamar: “Assim diz o Senhor!”

1 1 Coríntios 15.1-4.

2 1 Timóteo 1.11.

3 Jeremias 2.13-14; 14.3.

4 1 Coríntios 4.15.

5 Filipenses 3.13-14.

6 1 Coríntios 1.17.

7 1 Coríntios 1.22-24.

8 Jeremias 20.9.

9 2 Coríntios 4.13.

10 1 Coríntios 9.16.

11 Gênesis 24.33.

12 Gálatas 2.7; 1 Tessalonicenses 2.4; 1 Timó-teo 1.11; 6.20; 2 Timóteo 1.14; Tito 1.3.

13 1 Coríntios 1.21.

14 Romanos 1.22.

15 2 Timóteo 4.3.

16 Mateus 5.18.

17 Mateus 8.29.

18 Mateus 7.6.

19 Isaías 55.1-2.

20 Salmos 34.8.

21 1 Coríntios 1.27-30.

Franklin Ferreira: É mestre em teologia, pastor batista, autor, preletor, diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP.

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A MORTE DE UMA IGREJA

Hernandes Dias Lopes

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As sete igrejas da Ásia Menor, conhecidas como as igrejas do Apo-calipse, estão mortas. Restam apenas ruínas de um passado glorioso que se foi. As glórias daquele tempo distante estão cobertas de poeira e sepultadas debaixo de pesadas pedras. Hoje, nes-sa mesma região tem menos de 1% de cristãos. Diante disso, uma pergunta lateja em nossa mente: o que faz uma igreja morrer? Quais são os sintomas da morte que ameaçam as igrejas ainda hoje?

Em primeiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se aparta da verdade. Algumas igrejas da Ásia Menor foram ameaçadas pelos falsos mestres e suas heresias. Foi o caso da igreja de Pérgamo e Tiatira que deram

guarida à perniciosa doutrina de Ba-laão e se corromperam tanto na teo-logia como na ética. Uma igreja não tem antídoto para resistir a apostasia quando abandona sua fidelidade às Escrituras nem a inevitabilidade da morte quando se aparta dos preceitos de Deus. Temos visto esses sinais de morte em muitas igrejas na Europa, América do Norte e também no Bra-sil. Algumas denominações históricas capitularam-se tanto ao liberalismo como ao misticismo e abandonaram a sã doutrina. O resultado inevitável foi o esvaziamento dessas igrejas por um lado ou o seu crescimento numérico por outro, mas um crescimento sem compromisso com a verdade e com a santidade. Não podemos confundir

Precisamos voltar aos princípios da Reforma e clamar

por uma reavivamento!”

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numerolatria com crescimento saudá-vel. Nem sempre uma multidão sina-liza o crescimento saudável da igreja. Uma igreja pode ser grande e mesmo assim estar gravemente enferma. Sem-pre que uma igreja troca o evangelho da graça por outro evangelho, entra por um caminho desastroso.

Em segundo lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela se mistu-ra com o mundo. A igreja de Pérgamo estava dividida entre sua fidelidade a Cristo e seu apego ao mundo. A igreja de Tiatira estava tolerando a imorali-dade sexual entre seus membros. Na

igreja de Sardes não havia heresia nem perseguição, mas a maioria dos cren-tes estava com suas vestiduras conta-minadas pelo pecado. Uma igreja que flerta com o mundo para amá-lo e conformar-se com ele não permanece. Seu candeeiro é apagado e removido. Alguém disse: “Fui procurar a igreja e a encontrei no mundo; fui procu-rar o mundo e o encontrei na igreja”. A Palavra de Deus é clara: ser amigo do mundo é constituir-se inimigo de Deus. Quem ama o mundo, o amor do

Pai não está nele. Há pouca ou quase nenhuma diferença hoje entre o estilo de vida daqueles que estão na igreja e daqueles que estão comprometidos com os esquemas do mundo. O índi-ce de divórcio entre os cristãos é tão alto como daqueles que não professam a fé cristã. O número de jovens cris-tãos que vão para o casamento com uma vida sexual ativa é quase o mes-mo daqueles que não frequentam uma igreja evangélica. A bancada evangé-lica no Congresso Nacional é conhe-cida como a mais corrupta da política brasileira. A teologia capenga produz

uma vida frouxa. Precisamos voltar aos princípios da Reforma e clamar por uma reavivamento!

Em terceiro lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não discerne sua decadência espiritual. A igreja de Sardes olhava-se no espelho e dava nota máxima para si mesma, dizen-do ser uma igreja viva, enquanto aos olhos de Cristo já estava morta. A igreja de Laodicéia considerava-se rica e abastada, quando na verdade era pobre e miserável. O pior doente

Uma igreja não tem antídoto para resistir a apostasia quando abandona sua fidelidade

às Escrituras”.

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é aquele que não tem consciência de sua enfermidade. Uma igreja nunca está tão à beira da morte como quando se vangloria diante de Deus pelas suas pretensas virtudes. O cristão não deve ser um fariseu. O fariseu aplaudia a si mesmo por causa de suas virtudes, mas olhava para os publicanos e os enchia de acusações descaridosas. O cristão verdadeiro não é aquele que faz um solo do hino “Quão grande és tu” dian-te do espelho, mas aquele chora diante de Deus por causa de seus pecados.

Em quarto lugar, a morte de uma igreja acontece quando ela não associa a doutrina com a vida. A igreja de Éfe-so foi elogiada por Jesus pelo seu zelo doutrinário, mas foi repreendida por ter abandonado seu primeiro amor. Tinha doutrina, mas não vida; ortodo-xia, mas não ortopraxia; teologia boa, mas não vida piedosa. Jesus ordenou a igreja a lembrar-se de onde tinha caí-do, a arrepender-se e a voltar à práti-ca das primeiras obras. Se a doutrina é a base da vida, a vida precisa ser a expressão da doutrina. As duas coisas não podem viver separadas. Doutrina sem vida produz orgulho e aridez es-piritual; vida sem doutrina desemboca em misticismo pagão. Uma igreja viva

tem doutrina e vida, ortodoxia e pie-dade, credo e conduta!

Em quinto lugar, a morte de uma igreja acontece quando falta-lhe perse-verança no caminho da santidade. As igrejas de Esmirna e Filadélfia foram elogiadas pelo Senhor e não receberam nenhuma censura. Mas, num dado momento, nas dobras do futuro, essas igrejas também se afastaram da ver-dade e perderam sua relevância. Não basta começar bem, é preciso terminar bem. Falhamos, muitas vezes, em pas-sar o bastão da verdade para a próxima geração. Um recente estudo revela que a terceira geração de uma igreja já não tem mais o mesmo fervor da primeira geração. É preciso não apenas come-çar a carreira, mas terminar a carreira e guardar a fé! É tempo de pensarmos: como será nossa igreja nas próximas gerações? Que tipo de igreja deixare-mos para nossos filhos e netos? Uma igreja viva ou igreja morta?

Franklin Ferreira: É mestre em teologia, pastor batista, autor, preletor, diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP.

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DEUS, VOCÊ E A IGREJA

Sillas Campos

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O que você pensa acerca da Igreja de Cristo? Como você a vê? Qual a importância dela em sua vida? Es-tas são questões muito importantes, cujas respostas revelam sua situação diante de Deus. Quero dizer, seu amor ou desprezo pela igreja reve-lam seu amor ou desprezo para com o próprio Deus. Por isso, através deste artigo, quero fortalecer sua visão, es-perança e amor pela igreja de Cristo. Porém, antes de apresentar-lhe meus argumentos principais trago à sua mente algumas frases anotadas na capa de minha Bíblia:

Onde quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida com pureza, ali existe uma igreja de Deus, mesmo que ela esteja repleta de falhas.João Calvino

A igreja não é uma democracia na qual escolhemos a Deus, mas uma teocracia na qual Ele nos escolheu.John Blanchard

Não vamos à igreja, somos a igreja.Ernest Southcoot

Sei que a Igreja tem suas tolices, in-coerências e irrelevâncias; mas eu a amo, assim como amo minha mãe, a despeito de suas fraquezas e rugas.Stanley Jones

Estas frases expressam a opinião de alguns homens, mas nada como a opinião do próprio Deus! Por isso, ba-seando-nos em 1 Coríntios 3, vejamos o que Deus pensa sobre a igreja; como ele a vê; como ele se relaciona com ela; o que ele está fazendo por ela.

É maravilhoso saber que Deus salva todos os que são seus

filhos! Que ele não desiste de nenhum deles!”

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Como deus vê a igreja

Escrevendo para a igreja em Co-rinto, o apóstolo Paulo é usado pelo Espírito Santo para nos revelar como Deus vê a igreja. Usando figuras de linguagem, ele nos ensina que o Se-nhor vê a sua igreja como “cooperado-res de Deus” (3.9a); “lavoura de Deus” (3.9b); e “edifício de Deus” (3.9c). Interessante que no original grego a palavra Deus precede os substantivos, ficando assim: “De Deus somos coo-peradores; de Deus lavoura, de Deus edifício sois vós”. E o propósito dis-to no grego é salientar vigorosamente

que nós, os instrumentos, não temos importância, e enfatizar que tudo é de Deus, e todos pertencem a Deus. Tan-to é que no verso 6 e 7 Paulo confirma esta ideia: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento”.

Através destes versos Deus está di-zendo: “Dentro da minha igreja não há lugar para personalidades indispensá-veis!” Isto significa que devemos pen-sar menos acerca de nós mesmos ou de qualquer outro líder humano. Eu

e você passaremos, mas a igreja pros-seguirá vitoriosa. Como alguém disse: “Deus sepulta seus servos, e prossegue nos seus projetos”. Por isso precisamos dizer uns aos outros: “Na igreja de Cristo, eu não sou indispensável! Você não é indispensável! Somente Deus é indispensável!” Alguém disse que pastores e líderes vivem estressados porque se esquecem de quatro impor-tantes leis espirituais, que são:

Deus existe!Você não é ele!Arrependa-se! Pare de “dar uma

de Deus”.Faça sua parte e descanse nele.

deus honra sua igreja

O texto diz: “Porque de Deus so-mos cooperadores...” (9a). O que significa isto? Isto significa que o Deus todo-poderoso, autossuficien-te, e completo em si mesmo, na sua condescendência nos confere a honra de trabalhar na sua seara. Isto me faz lembrar quando eu tinha quatro anos e gostava de ajudar meu pai a lavar o carro. Lembro-me do dia que estraguei boa parte da pintura do capô. Hoje sei que eu mais atrapalhava do que ajuda-

Dentro da igreja não há lugar para personalidades indispensáveis!”

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va, porém meu pai me honrava diante de toda família dizendo que eu o aju-dava a lavar o carro. Esta era uma for-ma dele me aproximar de si mesmo, de me amar, de me ensinar a crescer. Da mesma forma, o nosso Deus “que não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de algo...” (At 17.25a) nos confere a honra de sermos seus coope-radores.

deus ForTaleCe sua igreja

Ao mesmo tempo em que o texto exalta a primazia da ação sobrenatu-ral e soberana de Deus na edificação da sua igreja, o próprio texto não es-conde o fato dele usar seu povo para abençoar o seu povo. No início do capítulo vemos Deus usando Paulo para alimentar a sua igreja (3.2). De-pois vemos Deus usando os discursos de Apolo e o ensino de Paulo para conferir o dom da fé a eles (3.5). E, logo em seguida vemos Deus usando a vida de Paulo e Apolo, para plantar e regar (3.6). Logo, concluímos que “Deus fortalece seu povo através do seu povo”.

Isto não é uma teoria fria e mor-ta, mas uma prática comum e obser-vável dentro de toda igreja de Cristo. A cada encontro, formal ou informal, Deus mesmo fortalece seus filhos. Se alguém está necessitado, Deus usa seu povo para suprir sua necessidade. Se alguém está passando por uma luta, ele usa seu povo para fortalecê-lo! Se alguém está entristecido, ele usa seu povo para consolá-lo! Se alguém

está confuso, ele usa seu povo para aconselhá-lo! Se alguém está caído, ele usa seu povo para levantá-lo! Se alguém conquista uma vitória, ele usa seu povo para alegrar-se com ele! Por isso, quando a igreja de Cristo se reúne, às vezes ela se assemelha a um salão de festa cheio de celebração! Às vezes, com a sala de emergência de um hospital que acolhe e trata os feridos! Às vezes, como uma reunião familiar permeada com palavras e atitudes de apoio, carinho e exortação! E, às ve-zes, com uma escola, um centro de ensino e aprendizado. Num mesmo culto, Deus trata das diversas necessi-dades do seu povo, através da instru-mentalidade do seu povo.

deus avalia seu Povo

Dentro de um capítulo de aplica-ção corporativa encontramos quatro versículos com aplicação individual. Isto significa que Deus se relaciona com a igreja como um todo, e ao mes-mo tempo com cada membro indivi-dualmente. Paulo fala do seu ministé-rio inicial a favor da igreja e a partir daí passa a falar da responsabilidade de cada membro na edificação da mesma – “veja cada um como constrói” (10). Seu argumento é que o próprio Deus avalia como cada membro realiza a obra da edificação do corpo de Cristo; que Deus vê quem edifica sobre o fun-damento prescrito, que é Cristo (vs. 10-11); Deus vê quem ensina e vive a verdade do evangelho (ouro, prata, pedras preciosas). E Deus vê quem

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fornece um ensinamento inadequado, ou deixa a desejar no seu testemunho (madeira, feno, ou palha) (v.12).

Mas qual o resultado desta avalia-ção divina? Primeiro: Deus recompen-sa os fiéis! “Se permanecer a obra de alguém que sobre o fundamento edifi-cou, esse receberá galardão” (14). Se-gundo: Deus disciplina os infiéis! “Se a obra de alguém se queimar, sofrerá ele dano...” (15a). Terceiro: Deus salva a todos! “... mas esse mesmo será sal-vo, todavia, como que através do fogo” (15b). É maravilhoso saber que Deus salva todos os que são seus filhos! Que ele não desiste de nenhum deles! Nem

daquele que faz a obra do Senhor re-laxadamente. Contudo, devemos nos perguntar: Por que desperdiçar o pri-vilégio de glorificar com o nosso me-lhor àquele que é digno de toda honra, glória e louvor? Por que desprezar os galardões que Deus promete aos fiéis?

deus ProTege sua igreja

Já ouvi crentes usando os versos 16 e 17 deste capítulo para combater

a glutonaria, tabaco, promiscuidade, etc. Porém nestes versos o autor já vol-tou a falar da igreja de forma corpora-tiva. Sim, o nosso corpo é o templo do Espírito Santo (1Co 6.19), mas estes versos afirmam uma outra maravilha: Que, de forma especial, nós, a igreja de Cristo, somos santuário de Deus (16); e que, se alguém atacar a igreja, Deus mesmo o destruirá! Pois a igreja é ter-ritório sagrado (17).

Isto significa que, se durante um culto alguém decidir contar o número de pessoas presentes, não deve se es-quecer da pessoa mais importante: O próprio Deus!

Muitos de nós estamos preocupa-dos. Vemos certas barbaridades sen-do introduzidas ao cristianismo (ex.: misticismo, pragmatismo) e tememos pelo presente e futuro da igreja. Po-rém, há uma palavra de consolo para nós nestes versos! Explico isto com a seguinte pergunta: O que você faz para defender um leão? Resposta: Você simplesmente senta e assiste ele defender-se a si mesmo! Da mesma forma, a igreja é o corpo de Cristo, e

Num mesmo culto, Deus trata das diversas necessidades do seu povo,

através da instrumentalidade do seu povo”.

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Cristo é o leão de Judá! Podemos fi-car tranquilos! Cristo sabe muito bem como proteger, cuidar e preservar sua igreja. Confie nele!

deus abençoa sua igreja (21-23)

Como muitas igrejas em nossos dias, a igreja em Corinto estava come-tendo um grande erro. O erro de de-pender e se orgulhar de certos líderes a quem estavam ligados. Então, Pau-lo conduz seus pensamentos para os maiores e melhores tesouros que eles já possuíam em Cristo. Ele os recorda que todos os mestres, dons, sabedoria, e até as riquezas e coisas criadas têm sua origem em Cristo, e que, em Cris-to isto tudo já lhes pertencia! Por isso, desprezar a Cristo a fim de depender, exaltar e apoiar-se em alguns mestres humanos é tolice! É empobrecer-se! (21-22).

Nós, igreja de Cristo, precisamos apreciar esta grandiosa declaração e demonstração de amor! Nestes versos, Paulo revela que Deus criou o univer-so, para sua própria glória, pensando na sua igreja! Que ele espalhou as es-trelas no céu por causa da igreja! Que ele criou as flores, montanhas, vales, e pássaros para o aprazimento da sua igreja. Que ele concedeu dons aos ho-mens pensando na igreja! Assim como ele realizou a grande obra da redenção por causa da sua igreja! Não podemos nos esquecer disto! Não devemos des-

viar a devoção e louvor devido a ele! Nenhum herói da fé, mártir, pai da igreja, teólogo, autor, pastor ou cantor evangélico merece os elogios e depen-dência que devemos somente a ele.

Cristão, espero que estas conside-rações o ajudam a fortalecer sua visão, esperança e amor pela igreja de Cristo. Se você encontra-se numa igreja onde a Palavra de Deus é pregada e ouvida com pureza, não se desanime diante dos erros e fraquezas. Faça sua parte, dê um bom testemunho, encoraje seu pastor a continuar pregando a Palavra e ore para que o Espírito a use pode-rosamente na salvação dos perdidos e edificação dos salvos.

E se o querido leitor ainda não faz parte da igreja de Cristo, o desafio de Deus para você é o seguinte: Creia que “Jesus Cristo morreu pelos nos-sos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no tercei-ro dia” (1Co 15.3). “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o res-suscitou dentre os mortos, será salvo” (Ro 10.9). E assim você também será introduzido ao que há de mais impor-tante nesta vida: A igreja de Deus!

Sillas Larghi Campos: Mestre em Teologia, pastor da Primeira Igreja Batista de Tupã, SP, preletor.

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Sermão pregado na 27ª Conferência Fiel para Pastores e Líderes em 4 de outubro de 2011.

A glória de Deus no chamado para

pregar às nações

Franklinferreira

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Gostaria de usar o texto de Jere-mias 1.4-19 para tratar de três temas vitais ao ministério cristão de ensino: a vocação, a pregação e seu conteúdo, e a coragem necessária para permane-cer firme. Na verdade, gostaria de usar o texto de Jeremias como um texto de formação, que entrelace nossas voca-ções de ensino à vocação de Jeremias, que nos ajude a recuperar o senso de chamado para pregar a mensagem de Deus às nações. Antes de continuar, fazem-se necessárias algumas palavras introdutórias. Jeremias, que significa “aquele que exalta o Senhor”, começou seu ministério no reinado de Josias, que iniciou uma reforma e renovação da aliança, de curta duração. Ele per-tencia a uma família de sacerdotes e recebeu seu chamado quando tinha 18 anos, na segunda década do século sé-timo a.C., na pequena cidade de Ana-

tote, a cinco quilômetros de Jerusalém. Na verdade, Jeremias viveu em meio a um turbulento momento político na história da região: a Assíria entrara em declínio como império, o Egito tentava recuperar sua influência, e a Babilônia era o poder em ascensão no leste. Pouco depois, Josias foi morto em Megido e, em rápida sucessão, três de seus filhos, Joacaz, Jeoaquim e Ze-dequias, e um neto, Joaquim, sucede-ram-no no trono. Por não temerem a Deus, esses reis conduziram o povo da aliança aos eventos mais devastadores da história de Judá: a invasão babilô-nica, a destruição do templo e o exílio no estrangeiro.

Nós hoje vivemos numa encruzi-lhada da história. A igreja tem crescido globalmente. Aqui no Brasil há muitos pastores devotos, crentes sérios, igre-jas saudáveis, sinais da obra do Espíri-

Aqueles dentre nós chamados ao santo ministério da Palavra, devem pregar as realidades grandiosas e magníficas de Deus e do Espírito Santo, da Escritura e da criação,

da cruz de Cristo e da aliança, da salvação e de uma vida santa, a oração,

o batismo, a santa ceia”.

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to Santo. Ao mesmo tempo, há super-ficialidade e infidelidade bíblica, trai-ção ministerial, divisões, idolatria por crescimento de igreja a qualquer custo. Na esfera pública temos governos po-pulistas, corrupção, pessoas morrendo em portas de hospitais, violência cres-cendo assustadoramente e impunida-de ampla, geral e irrestrita. Há preo-cupantes sinais de ameaças à liberdade de culto e de expressão. Diante desse quadro, (1) qual deve ser a imagem cultivada por aqueles chamados a obe-decer à ordem de pregar a palavra de Deus? (2) Qual deve ser o conteúdo de tal mensagem? (3) Como aqueles cha-mados a pregar essa soberana Palavra devem se portar?

1. voCação (4-8)

Vamos nos deter um pouco nos versículos 4-7: O relato começa com a afirmação “a mim me veio, pois, a palavra do Senhor” ( Jr 1.4). Essas palavras ou expressões equivalen-tes ocorrem outras vezes no livro ( Jr 7.1; 11.1; 14.1; 16.1; 18.1). A palavra way’hi (“continuou a vir”) sugere que este chamado veio não de forma súbi-ta, mas de forma persistente. “Antes que eu te formasse”: estas primeiras palavras do Senhor a Jeremias revelam que foi iniciativa de Deus o fato de ele ter sido escolhido para ser profeta. O nome de Deus domina a cena: nessa pequena passagem o nome do Senhor é citado 12 vezes! Ele o predestinou para anunciar a mensagem, e antes mesmo de seu nascimento, Jeremias

foi consagrado (“separado”, “santifica-do”) por Deus para essa tarefa ( Jr 1.5; cf. Gl 1.15). Desde a concepção até a consagração, Deus tinha preparado cada etapa do processo, conhecendo todas as necessidades e sabendo como supri-las. Em outras palavras, Jere-mias recebeu o caráter e a personali-dade necessários para a obra profética. “E te constituí”: significa “dei”, isto é, antes mesmo de Jeremias nascer ele foi dado. Essa é a maneira de Deus agir. Ele fez isso com seu próprio Filho, Je-sus Cristo ( Jo 3.16). Deus o ofereceu às nações. Deus continua enviando aqueles que ele chama a pregar às na-ções, em obediência ao chamado e em imitação a seu Filho (1Co 11.1).

Por outro lado, a reação de Jere-mias mostra que ele não era voluntário ( Jr 1.6). Ele menciona sua idade: “Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança”. Na verdade, ele não queria dizer que era uma “criança”, mas que ainda não chegara aos trinta anos, que era o tempo quando os levi-tas iniciavam oficialmente seu minis-tério, sendo, portanto, muito jovem para atender o chamado. Mas Deus responde a objeção: “Não digas: Não passo de uma criança” ( Jr 1.7). A com-preensão de que ele tinha sido esco-lhido como instrumento da revelação de Deus para uma geração endure-cida forneceu a convicção de que sua missão provinha de Deus, e levou-o a proclamar a palavra do Senhor a uma nação teimosa e rebelde. E ele recebeu forças da comunhão constante com Deus em oração (cf. Jr 12-20, as cin-

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co “confissões” de Jeremias). “Porque a todos a quem eu te enviar irás; e tudo quanto eu te mandar falarás”: Quanto mais próximo do exílio, o cumprimen-to da profecia, mais sua timidez inicial é substituída por coragem, o que mos-tra o quanto ele amadureceu em sua vocação.

Como acontece com Jeremias no versículo 8, os servos de Deus recebe-ram muitas vezes a ordem “não temas”, como Abraão (Gn 15.1), Moisés (Nm 21.34; Dt 3.2), Daniel (Dn 10.12, 19), Maria (Lc 1.30), Simão (Lc 5.10) e Paulo (At 27.24). Diante do medo, uma emoção terrível e paralisante, Deus

assegura que sustentará seu servo. Je-remias não estaria livre de oposição e até de perigo físico, porém cumpriria seu ministério em todas as dificulda-des, porque Deus estaria com ele para fortalecê-lo. Portanto, Jeremias sub-meteu-se à sua vocação. E, mesmo sem sair de Jerusalém, ele seria um profeta às nações – a mensagem de Deus ecoa-ria por Egito, Filistia, Moabe, Amom, Edom, Damasco, Quedar, Hazor, Elão e Babilônia ( Jr 46-51). Talvez, como Jeremias, nunca viajemos para fora de nosso país para anunciar a mensagem

de Deus. Mas, ainda assim, podemos ser instrumentos para levar a Palavra de Deus às nações.

Parece que o estilo de vida dos ho-mens que exercem hoje a vocação pro-fética no Brasil está em ruínas. Esta vocação proclamadora foi substituída por estratégias comandadas por bu-rocratas religiosos munidos de planos de negócios. Pensa-se hoje no pastor como alguém “que faz as coisas” ou que “faz as coisas acontecerem”. Pasto-res construtores de templos. Pastores administradores. Pastores executivos. Pastores seniores. Essa definição se aplica aos modelos básicos de lideran-

ça em nossa cultura: políticos, homens de negócios, celebridades e atletas. Mas nossa vocação precisa ser mode-lada por Deus, pelas Escrituras e pela oração. O elemento central da vocação profética não é de alguém “que faz as coisas”, e sim de alguém colocado na comunidade para estar atento e cha-mar a atenção ao que Deus fala em sua Palavra, palavra de juízo e denúncia, mas palavra de graça, misericórdia e renovação.

Neste sentido, precisamos relem-brar: Deus chama alguns membros da

Deus continua enviando aqueles que ele chama a pregar às nações, em obediência ao

chamado e em imitação a seu Filho”.

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santa comunidade sacerdotal para pre-gar o evangelho, as boas novas da livre graça de Deus. Essa vocação é uma obra interna de Deus, que chama os servos da Palavra. E embora seja inter-no, o chamado para o ministério inevi-tavelmente virá acompanhado por um testemunho externo. Ou seja, aqueles chamados para a pregação da Palavra demonstrarão dons e aptidões para o exercício do ministério. Eles são equi-pados pelo Espírito Santo para pasto-rear, evangelizar, pregar e ensinar – e frutos visíveis serão evidenciados por conta desse chamado interno. E será confirmado diante da igreja este cha-mado interno, por conta dos frutos ex-ternos da obra da graça que já aconte-ceu interiormente. Portanto, a vocação profética não pode ser reduzida a mero trabalho. Este pode ser quantificado e avaliado. Pode-se dizer se este chegou ao fim ou não, assim como se pode ser contratado ou demitido. Uma vocação não é um trabalho. A vocação proféti-ca é sobre a pregação da Palavra, so-bre a administração dos sacramentos, sobre chamar o povo de Deus a adorar o Pai, Filho e Espírito Santo, é sobre lembrar semanalmente à comunidade da fé os privilégios e responsabilidades da aliança.

Karl Barth afirmou que quem não houver sido chamado para pregar, que não o faça, pois não será pequeno mal que causará se subir ao púlpito sem haver sido escolhido por Deus para isto. Por outro lado, se você foi cha-mado para anunciar a santa Palavra, você só tem um, e um único oficio:

anunciar fielmente “todo o desígnio de Deus” (At 20.27), portando-se como alguém que pertence exclusiva-mente ao Senhor.

2. ConTeúdo e Pregação (9-16)

Analisando os versículos 9-10, percebemos que tocando na boca do jovem, Deus simboliza a comunica-ção de sua mensagem. Agora o Se-nhor proclama sua mensagem às na-ções tendo Jeremias por arauto. Para transmitir esta mensagem, Deus usa metáforas baseadas na agricultura e na construção, constituída por três pares de verbos, os dois primeiros negativos e o terceiro positivo: o profeta deve arrancar e derribar, destruir e arruinar para então edificar e plantar ( Jr 1.10). Toda a corrupção na nação deve ser ar-rancada e derrubada, e somente depois disto é que se pode edificar e plantar de novo. Portanto, a mensagem do pro-feta teria duas funções. Em primeiro lugar, essa mensagem era uma decla-ração sobre a maldição da aliança que seria executada em seu devido tempo (Dt 28.1-68). Em segundo lugar, as bênçãos da aliança se tornariam rea-lidade. Deus quer renovar, reconstruir e restaurar seu povo, mas antes da re-novação é necessária a remoção radical do pecado e da infidelidade à aliança e eleição. A ruína é inevitável, enquanto a nação persistir no pecado, mas a pa-lavra de renovação oferece esperança de restauração. Usando a linguagem do Novo Testamento, Deus tem pri-meiro de remover o pecado, antes de o

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pecador começar a crescer na graça e no conhecimento de Jesus Cristo.

Jeremias, entretanto, é humano. Ele reage inicialmente com medo e inadequação. São reveladas então a Jeremias duas visões inaugurais, des-critas nos versículos 11-13. A primei-ra é a de “uma vara de amendoeira” ( Jr 1.11). Em hebraico, a palavra “amen-doeira” (shaqéd) e o verbo “eu velo so-bre” (shoqéd) têm som semelhante. Há um jogo de palavras aqui que ilustra a prontidão com que Deus cumpre suas promessas. Sempre que o profeta vis-se a cada primavera uma amendoeira em flor, ele seria lembrado de que o Senhor está observando para assegu-rar que sejam cumpridas todas as pa-lavras transmitidas em seu nome ( Jr 1.12). A segunda visão tinha um tom mais sinistro, “uma panela ao fogo” (ou “fervendo”), literalmente uma pa-nela sobre a qual alguém sopra, e cuja boca se inclina do Norte, indicando que seu conteúdo se derrama em dire-ção ao sul ( Jr 1.13). Essa visão indica a invasão babilônica, que virá do norte ( Jr 20.4).

Percebemos nos versículos 14-16 que o exército da Babilônia executará o propósito de Deus de punir a idola-tria de Judá e a quebra da aliança do Sinai. O verbo qtr, “queimar incenso” ( Jr 1.16), é usado em outras passagens significando queimar a gordura dos sacrifícios (cf. 1Sm 2.16; Sl 66.15). A tensão entre o culto aos ídolos e a ado-ração exclusiva ao Senhor chegaram ao clímax. A guerra viria para inter-romper um modo de vida inútil, im-

puro e indolente, obrigando o povo a voltar seus olhos para o que é essencial e eterno. Mas Jeremias não vai trazer o fim por meio da espada ou da ação política. Ele é chamado a proclamar a palavra do Senhor quantas vezes for necessário, custe o que custar, e um alto preço será exigido dele.

Aqueles chamados ao ofício de anunciar a Palavra de Deus não são chamados a trocar a mensagem da aliança pelo discurso político. Nenhu-ma ideologia é absoluta e nem pode ser confundida com o evangelho. Sempre que a igreja ou mesmo pastores e teó-logos identificaram determinada ideo-logia com o reino de Deus ou com a mensagem bíblica, essa foi não apenas distorcida, mas acabou sendo perdida. Portanto, a preocupação primeira da-queles chamados a anunciar a Palavra de Deus não é tanto com a mudança da sociedade civil, mas com a refor-ma e renovação da igreja por meio da mensagem de Deus. Aqueles chama-dos ao ofício de anunciar a palavra de Deus não são chamados para lidar com aqueles que ouvem e se submetem à mensagem profética como se fossem problemas. É fácil reduzir as pessoas a problemas, pois na maior parte das vezes é fácil solucionar esses proble-mas. Mas os profetas são chamados a conduzir as pessoas dos ídolos a Deus, da rebelião para a aliança, por meio da Palavra, da adoração e da oração. Aqui somos meros instrumentos nas mãos de Deus. As pessoas não devem ser vistas como problemas em busca de solução, mas como pecadores que po-

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dem ser renovados à imagem de Deus. Portanto, a vocação é sobre conduzir as pessoas a Deus, por meio de sua Pa-lavra, em humildade. Trata-se de per-manecer junto ao povo.

A tentação à qual os profetas es-tão sujeitos é considerar Deus uma mercadoria, utilizá-lo para legitimar a idolatria (cf. Jr 23.21-40). Qual é, então, o conteúdo da mensagem pro-fética? Deve-se conhecer o Senhor ( Jr 8.7; 24.7; 31.31-34). Este conhe-cimento se dá por meio do Messias, o

Renovo Justo, descendente de Davi, que executa juízo e justiça na terra ( Jr 33.14-18), a fonte de águas vivas ( Jr 2.13), o bálsamo de Gileade ( Jr 8.22), o Bom Pastor ( Jr 23.4), o Renovo Jus-to ( Jr 23.5), o Senhor justiça nossa ( Jr 23.6), aquele que trará a nova aliança ( Jr 31.31-34). E este novo conheci-mento redunda em preocupação pelo aflito e necessitado e na prática da jus-tiça e retidão.

A mensagem profética é o convite para “voltar” ( Jr 4.1-2; cf. 9.24; 22.2, 13, 15; 23.5; 33.15). Este termo e seus cognatos foram usados quase cem ve-zes neste livro e são o significado lite-ral da palavra “arrependimento”. Im-

plica voltar-se dos próprios caminhos para a aliança ( Jr 6.16), é um chamado à comunidade para um retorno à “ver-dade”, “juízo” e “justiça”. Em suma, o povo é chamado ao arrependimento e ao conhecimento de Deus por meio do Messias. E o remédio de Deus para o coração enfermo ( Jr 17.9) será gravar sua lei no coração da nova comunidade ( Jr 31.31-34). Portanto, o verdadeiro profeta é aquele que procura distanciar o povo do mal, enfatizando as exigên-cias de Deus na aliança ( Jr 23.14, 22).

Usando a linguagem do Novo Tes-tamento, aqueles dentre nós chamados ao santo ministério da Palavra, devem pregar as realidades grandiosas e mag-níficas de Deus e do Espírito Santo, da Escritura e da criação, da cruz de Cristo e da aliança, da salvação e de uma vida santa, a oração, o batismo, a santa ceia. E isso deve ser pregado no púlpito, nas salas de aula e na visitação pastoral, ansiando por vidas moldadas pela Palavra de Deus, renovada pelo Espírito Santo, de uma humildade dis-posta ao sacrifício, que erguem a Deus um louvor santo, sofrendo sem perder o contentamento, orando sem cessar, perseverando na santidade.

O verdadeiro profeta é aquele que procura distanciar o povo do mal, enfatizando as

exigências de Deus na aliança”.

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3. segurança (17-19)

Na seção composta dos versícu-los 17-19 podemos ver que o desâni-mo que o profeta sentiu ao entender o conteúdo da profecia é combatido por uma ordem direta: “cinge os lom-bos” ( Jr 1.17), que pode ser traduzida como: “e você, prepare-se!” A frase é um termo militar hebraico usado para descrever um soldado vestido e de-vidamente preparado para tomar sua espada. Antes mesmo de nascer, ele foi convocado para lutar nessa batalha. Não lhe foram concedidos alguns anos nos quais pudesse refletir e decidir em que lado se posicionaria ou mesmo se iria lutar. Ele foi escolhido. Deus o chamou para ser um guerreiro. Então, ele deve ser fiel ao anunciar a Palavra de Deus e não deve temer a ninguém. Mais do que isso, o Senhor incita Je-remias a se preparar para a batalha. Se Jeremias perder sua coragem, Deus o abandonará por sua falta de fé: “Não te espantes diante deles, para que eu não te infunda espanto na sua presença”. Devemos entender: há uma verdadeira batalha espiritual sendo travada. Há maldade, crueldade e infelicidade. Há superstição e ignorância; brutalidade e dor. Não existe zona neutra no Uni-verso. Cada centímetro quadrado é área de combate. Deus se levanta con-tra tudo isso. Ele está salvando, resga-tando, abençoando, provendo, julgan-do, renovando: “Conjuro-te, perante Deus e Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu reino: prega a palavra, insta,

quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longani-midade e doutrina” (2Tm 4.1-2).

Deus, então, faz uma das promes-sas mais ricas que ele pode fazer aos seus servos: “Tu, pois, cinge os lom-bos, dispõe-te e dize-lhes tudo quanto eu te mandar; não te espantes diante deles, para que eu não te infunda es-panto na sua presença. Eis que hoje te ponho por cidade fortificada, por co-luna de ferro e por muros de bronze, contra todo o país, contra os reis de Judá, contra os seus príncipes, contra os seus sacerdotes e contra o seu povo. Pelejarão contra ti, mas não prevale-cerão”. Mesmo com todos contra ele, Deus estará ao seu lado, fazendo-o in-vencível. A presença de Deus lhe dá a certeza de que ele será uma fortaleza invencível, firme como uma “coluna de ferro” e resistente aos ataques como “muros de bronze”. E sua mensagem afetará pessoas de todas as classes so-ciais em Judá, dos líderes políticos e sacerdotes ao cidadão comum.

No início do verão de 1942, uma crente luterana, Sophie Scholl, par-ticipou da produção e distribuição de panfletos de um pequeno movimento de resistência pacífica chamado Rosa Branca. Ela foi presa, junto com seu irmão, Hans Scholl, e outro univer-sitário, Christoph Probst, em 18 de fevereiro de 1943, depois que o rei-tor da Universidade de Munique os surpreendeu distribuindo esses pan-fletos no pátio da universidade. Em 22 de fevereiro de 1943 os três foram julgados em menos de quatro horas,

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acusados de alta traição e decapitados no mesmo dia. Suas últimas palavras foram: “Como podemos esperar que a justiça prevaleça quando são poucos os que estão dispostos a se doarem in-dividualmente a uma causa justa? Um dia bonito e ensolarado, e eu tenho de partir, mas o que importa a minha morte, se através de nós milhares de pessoas forem despertadas e instadas à ação?” Sophie Scholl foi martiriza-da com 21 anos. Mesmo tão jovem, ela se opôs ao totalitarismo nazista, por causa de sua fé, num contexto de repressão, censura e conformismo. Isso é coragem invencível! Se você foi chamado a anunciar a Palavra, fique firme! A promessa e a graça de Deus estão com você! Como diz a canção do grupo Logos:

Meu servo, não temas!Não temas, pois eu te escolhi!Sei que é dif ícil, mas confia em mim!Confia em mim e então,Tu verás o meu poder!

Durante seus quarenta anos de mi-nistério, Jeremias foi invencível. Di-versas vezes passou por intensa ago-nia, mas não traiu sua vocação. Ele foi desprezado e perseguido, mas jamais

deixou de anunciar a mensagem de Deus. Ele foi tremendamente pressio-nado para que fizesse concessões, de-sistisse e se escondesse, porém, jamais cedeu. Cada músculo do seu corpo foi exigido até o limite da fadiga. Mas ele foi corajosamente “coluna de ferro” e “muros de bronze”. Muitos se opo-riam, mas Deus prometeu estar com ele e protegê-lo: “Eu sou contigo, diz o Senhor, para te livrar” ( Jr 1.19).

ConClusão

Jeremias foi o profeta mais rejeitado e resistido da história israelita. Ele re-cebeu a ordem de não se casar ou ter filhos ( Jr 16.1-4), uma experiência incomum de celibato. Experimentou oposição, castigos e prisões ( Jr 11.18-23; 12.6; 18.18; 20.7; 26.9-19; 28.5-17; 37.11-38.28). Muitas vezes é chamado de o “profeta chorão” ( Jr 9.1; 13.17; 14.17). Quando levado para o Egito, contra a sua vontade, caiu no esqueci-mento – de acordo com a tradição, ele

morreu naquele país, dez anos depois, apedrejado por seus compatriotas, que ainda se recusavam a aceitar sua men-sagem. Mas não somos chamados a andar por vista, mas por fé. Jeremias

Jeremias foi o profeta mais rejeitado e resistido da história israelita”.

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foi grandemente honrado pelos escri-tores do Novo Testamento. Sua pro-fecia é citada 40 vezes, a metade no Apocalipse (cf. 50.8; Ap 18.4; 50.32; Ap 18.8; 51.59s; Ap 18.24s). A mais longa citação do Antigo Testamento no Novo Testamento é a passagem da “nova aliança” ( Jr 31.31-34; cf. Hb 8.8-13). As denúncias de Jeremias contra o povo como incircunciso de coração e ouvido ( Jr 6.10; 9.26) foram repetidas por Estevão (At 7.51), uma pregação que lhe custou a vida. As lições tiradas da visita à casa do oleiro ( Jr 18.1-10) foram aplicadas por Paulo ao chamado dos gentios por Deus (Rm 9.20-24). E Jeremias, que foi considerado o mais humano dos profetas, recebeu a maior honra, ter sido comparado ao Filho do Homem (Mt 16.14). Que obedeçamos nossa vocação, preguemos fielmente a mensagem recebida, que finquemos os pés no chão com coragem, para que em tudo Deus seja glorificado.

“Todavia, o meu povo trocou a sua Glória por aquilo que é de nenhum proveito. Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o Senhor. Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não re-têm as águas” ( Jr 2.11-13).

“Dai glória ao Senhor, vosso Deus, antes que ele faça vir as trevas, e an-tes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, ele a mude em sombra de morte e

a reduza à escuridão” ( Jr 13.16).

“Não nos rejeites, por amor do teu nome; não cubras de opróbrio o trono da tua glória; lembra-te e não anules a tua aliança conosco” ( Jr 14.21).

“Ó Senhor, Esperança de Israel! Todos aqueles que te deixam serão envergo-nhados; o nome dos que se apartam de mim será escrito no chão; porque aban-donam o Senhor, a fonte das águas vi-vas. Cura-me, Senhor, e serei curado, salva-me, e serei salvo; porque tu és o meu louvor” ( Jr 17.13-14).

Issiaka Coulibaly, “Jeremias”, em Tokunboh Adeye-mo (ed. geral), Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.

Karl Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Edi-torial, 2009.

F. Cawley, “Jeremias”, em F. Davidson (ed.), Novo co-mentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, s/d.

J. G. S. S. Thomson, “Jeremias”, em J. D. Douglas (ed.), Novo dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 794-800.

R. K. Harrison, Jeremias e lamentações; introdução e comen-tário. São Paulo: Vida Nova & Mundo Cristão, 1989.

Eugene H. Peterson, Memórias de um pastor. São Pau-lo: Mundo Cristão, 2011.

Eugene H. Peterson, Ânimo; o antídoto bíblico contra o tédio e a mediocridade. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

J. R. Soza, “Jeremias”, em T. Desmond Alexander & Brian S. Rosner, Novo dicionário de teologia bíblica. São Paulo: Vida, 2009, p. 324-329.

Franklin Ferreira: É diretor e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

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QUÃO FIRME FUNDAMENTO!

StevenLawson

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Nenhum edifício erigido por mãos humanas pode ser e permanecer sólido e forte, a não ser que os seus alicerces estejam bem fixos e sejam firmes. Um edifício alto não pode ser construído sobre uma fundação tendente a frag-mentar-se. Não se deve construir um edifício sobre mero lixo ou entulho. Sem uma base sólida e sem colunas enterradas profundamente, a estrutu-ra superior cairá. E mais, quanto mais alto o edifício, mais profundas as colu-nas devem ser. A solidez estrutural do edifício todo repousa completamente na firmeza do alicerce.

Em nenhum outro lugar essa ver-dade é mais aplicável do que na cons-trução da igreja, que é “uma casa es-piritual” (1Pe 2.5). Jesus Cristo em

pessoa é o único Edificador da igreja, como prometeu: “Edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não pode-rão vencê-la” (Mt 16.18b). Cristo não disse “vocês edificarão a minha igreja”. Tampouco disse: “Eu edificarei a igre-ja de vocês”. Em vez disso, afirmou: “[Eu] edificarei a minha igreja”. Cris-to, pessoalmente, está construindo a sua igreja, e, como um sábio constru-tor, está estabelecendo-a sobre funda-ção de sólidas pedras – o sólido funda-mento da doutrina (Ef 2.20).

amarras inamovíveis da graça soberana

A pedra angular, a principal pedra de uma igreja construída por mãos di-

As doutrinas relacionadas com a soberania de Deus na

salvação do homem lançam a mais sólida pedra angular e, assim,

protegem firmemente a vida e o ministério do povo de Deus”.

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vinas, é a fé no senhorio de Jesus Cris-to. Afinal de contas, foi essa a grande confissão de Pedro – “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16) – que deu azo à grande promessa de Jesus de que construiria soberanamente a sua igreja. Há, porém, outras amarras ina-movíveis da igreja, além desta de que acabamos de falar. No processo de edi-ficar a sua igreja, o Senhor Jesus levan-ta e coloca nos respectivos lugares as fortes colunas e os fortes componentes de tudo quanto ensinou – o completo conselho de Deus. Jesus ordenou que os seus discípulos ensinassem “tudo o que eu lhes ordenei” (Mt 28.20, com ênfase em tudo). As verdades que Cristo ensinou constituem a fundação sólida e segura. E no coração mesmo do seu ensino doutrinário está um inequívoco compromisso com a so-berania da graça divina. Estas verda-des centrais formam a sólida base do firme fundamento da igreja. A igreja que é construída sobre as doutrinas da graça, é erguida sobre a inexpugnável rocha da revelação divina. Que firme fundamento tal igreja tem!

Mas, triste é dizer, a igreja atual parece ter a intenção de retirar as dou-trinas da graça do seu alicerce. Em vez disso, prefere construir com madeira, palha e restolho sobre areia movediça. Uma igreja assim pode ter uma im-pressionante aparência externa, e, por-tanto, pode atrair muita gente. Mas, interiormente ela não é espiritual, é instável, e, pior, em grande parte não é convertida. Tal igreja, construída sobre um alicerce tão frágil não pode

ter esperança de subsistir nos dias de tribulação. Mas a história registra que quando uma igreja é edificada com o ouro, a prata e as pedras preciosas de uma mensagem centrada em Deus, ela é fortalecida e pode resistir aos mais difíceis temporais. Nem mesmo os ventos tempestuosos da apostasia, da perseguição e das terríveis chamas do martírio podem fazê-la cair. De fato, sempre que a igreja é edificada sobre a sólida rocha da graça soberana de Deus, ela permanece inamovível, como inamovível tem permanecido nas horas mais tenebrosas da história.

a graça soberana: um Firme FundamenTo

As verdades da graça soberana for-mam o mais forte fundamento doutri-nário para qualquer igreja ou crente. As doutrinas relacionadas com a sobe-rania de Deus na salvação do homem lançam a mais sólida pedra angular e, assim, protegem firmemente a vida e o ministério do povo de Deus. O culto na igreja é mais puro quando o ensino dessa igreja sobre a graça sobe-rana é mais claro. Seu modo de viver é mais limpo quando a sua exposição das doutrinas da graça é mais rica. Sua comunhão é mais agradável quando a instrução sobre a soberania de Deus é mais firme. Sua obra de evangelização no mundo é mais forte quando a sua proclamação da teologia transcenden-tal é mais ousada. A vida espiritual da igreja toda é elevada quando a sua mensagem está ancorada no mais alto

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conceito sobre a graça soberana de Deus. Foi nos tempos da história em que as doutrinas da graça eram apre-sentadas em sua rica plenitude, que a igreja esteve melhor. Eis onde perma-nece o firme fundamento da igreja: nas enriquecedoras verdades da graça soberana.

A respeito desse sólido fundamen-to, Benjamin B. Warfield escreveu:

Pois bem, estes Cinco Pontos compõem uma unidade orgânica, um singular e uno corpo da ver-dade. Eles estão baseados em duas pressuposições que a Escritura en-dossa abundantemente. A primei-ra pressuposição é a completa im-potência do homem, e a segunda é a absoluta soberania de Deus em sua graça. Todos os demais pon-tos são decorrências. O local de encontro desses dois fundamentos é o coração do Evangelho, pois, se o homem é totalmente depravado, segue-se que é necessário que a graça de Deus em salvá-lo seja so-berana. De outro modo, o homem inevitavelmente a recusará em sua depravação, e permanecerá não re-dimido.1

Warfield está certo em sua ava-liação. A culpa humana e a graça divina se cruzam no Evangelho, e as doutrinas da graça soberana retratam vividamente a grandiosidade da obra de salvação planejada e operada por Deus.

Sobre este ponto, Boice declara sucintamente: “As doutrinas da graça permanecem ou caem juntas, e juntas apontam para uma verdade central: a salvação é toda de graça porque é toda de Deus; e, porque é toda de Deus, é toda para a sua glória”.2 Toda a glória seja para Deus, que supre toda a graça.

1 B. B. Warfield, “A Review of Studies in Theology”, em Selected Shorter Writings of Benjamin B. Warf ield, II, ed. John E. Meeter (Nutley, NJ: Presbyterian and Re-formed, 1973), 316.

2 Boice e Ryken, The Doctrines of Grace: Rediscovering the Evangelical Gospel, 32.

Missões e Sofrimento

Franklin Ferreira: É diretor e professor de teologia sistemática e história da igreja no Seminário Martin Bucer e consultor acadêmico de Edições Vida Nova.

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Missões e Sofrimento

ZanePratt

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inTrodução

Somos de uma cultura de direitos. Os ocidentais, em geral, e os ameri-canos, em específico, são criados para acreditar que seus direitos são invio-láveis e que a vida lhes deve algo. Os nossos direitos perceptíveis vão muito além dos direitos básicos de liberdade de religião, de expressão e de reunião. Afinal de contas, a Declaração de In-dependência Americana diz que todos têm o direito inalienável de buscar a felicidade; e isso é facilmente tradu-zido, na mente das pessoas, como di-reito à própria felicidade. Na cultura ocidental, confronto, conveniência e segurança se tornaram a experiência de vida normal para a vasta maioria

das pessoas. Em tal ambiente, não é surpresa que estas coisas tenham che-gado a ser consideradas como direitos inegociáveis. Além disso, numa cultu-ra materialista adversa ao conceito de transcendência, valores como confor-to, conveniência e segurança parecem ser cruciais para a maioria das pessoas. Esses valores sobrepujam tudo mais. Qualquer coisa que ameaça ou pertur-ba a experiência destas coisas é vista automaticamente como má.

Essa maneira de pensar penetrou na igreja cristã. Os evangélicos oci-dentais cantam sobre amar a Jesus mais do que sobre qualquer outro as-sunto ou outra coisa. Todavia, o com-promisso deles permanece frequente-mente dentro do contexto de expec-

Somente Jesus poderia sofrer ou morrer pelos pecados do mundo. Somente ele, Deus

perfeito e homem perfeito, poderia sofrer em nosso lugar para pagar a penalidade que

merecíamos pagar”.

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tativas determinadas culturalmente. Como ocidentais, eles consideram inconscientemente, como muitos ou-tros, segurança e conforto como seus valores mais importantes; por isso, eles constroem seu entendimento da vida de discipulado dentro desses parâme-tros. A supremacia destes interesses parece tão autoevidente que nem mes-mo ocorre a alguém examiná-los. Os evangélicos ocidentais simplesmente não pensam na possibilidade de que Deus exija deles algo que seja descon-fortável ou inseguro, além do, talvez, desconforto brando de compartilha-rem o evangelho com alguém que se ofende no decorrer do processo.

Quando um evangelho centrado no homem é pregado, esta tendência se torna ainda mais visível. Quando pessoas ouvem que o alvo da salvação é satisfazer suas necessidades ou seus desejos por realização (ou mesmo dar-lhes uma “vida abundante” mal defini-da como “sua melhor vida agora”), não faz sentido alguém pensar que seguir a Jesus pode envolver sofrimento e per-da. No entanto, mesmo em igrejas que mantêm um teocentrismo bíblico, esta aversão inconsciente ainda se mantém real. O sofrimento como uma parte normal da vida e um componente nor-mal de seguir a Cristo não integra a agenda mental da maioria dos cristãos ocidentais. Quando os crentes seguem um caminho de obediência que envol-ve desconforto, eles são considerados heróis da fé incomuns. Quando esse caminho de obediência os coloca em um risco físico sério, são frequente-

mente tachados de fanáticos e consi-derados como potencialmente con-fusos. Mesmo no avanço da Grande Comissão, muitas igrejas e cristãos do Ocidente valorizam inconscientemen-te o dinheiro mais do que a obediência e supõem que Deus nunca pediria aos seus que arrisquem sua vida por amor à sua obra. Sofrer é visto como anor-mal, incomum e mau.

Nisto, assim como em muitas coi-sas, a experiência cultural do Ocidente está em desarmonia com a maior parte do mundo no decorrer da maior par-te da História. A maior parte da raça humana não tem tido outra escolha, senão a de suportar sofrimento como uma ocorrência comum da vida. Sem os grandes escudos protetores que o Ocidente desfruta (tecnologia, medi-cina, sistemas de distribuição global de alimentos, paz interna e o governo da lei), a maior parte da raça humana tem vivido com a ameaça de doenças, fome, desastres naturais e violência humana, como uma condição normal. Até no Ocidente, embora o sofrimen-to seja restringido e ocultado, ele não pode ser eliminado verdadeiramente. Crimes ainda acontecem. Desastres naturais destroem comunidades in-teiras, e crises econômicas aniquilam anos de economias numa noite. Pode-mos ter os melhores cuidados médicos do mundo, mas as pessoas ainda ficam doentes, e todos, por fim, morrem – às vezes, de maneira lenta e dolorosa. A diferença é que as pessoas do Ocidente se ofendem com o sofrimento, como se seus direitos fossem de algum modo

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violados por sua mera existência. O resto do mundo sabe que sofrer é ape-nas uma parte da vida.

É muito estranho que os cristãos ocidentais tenham essa visão reduzida do sofrimento. O sofrimento é um dos grandes temas da Bíblia. O fato de que os cristãos ocidentais não observam isso (ou supõem inconscientemente que o sofrimento não se aplica a eles) é um exemplo clássico de suposições culturais que afetam a interpretação da Escritura. Quer o observem, quer não, a Bíblia fala muito sobre sofri-mento. Prestar atenção especial a coi-sas que aparecem proeminentemente na Palavra de Deus é um princípio correto de interpretação da Escritura. O evangelicalismo ocidental precisa desesperadamente recapturar uma teologia bíblica do sofrimento. Sem ela, faremos de nosso conforto e se-gurança um ídolo e marginalizaremos a nós mesmos no serviço da Grande Comissão.

A Bíblia fala sobre o sofrimento em várias categorias. O sofrimento existe em todos os lugares e sobrevém a todas as pessoas apenas porque este mundo é um mundo caído. Às vezes, o sofrimento acontece como conse-quência de mau comportamento, em-bora a Bíblia nos alerte contra o fazer-mos julgamento imediato nesses ca-sos. O sofrimento é prometido espe-cialmente àqueles que seguem a Jesus em um mundo que está em rebelião contra ele. E, de maneira mais inten-sa, o sofrimento está ligado à obra do avanço do evangelho. Em vez de con-

siderar o sofrimento como totalmen-te mau, a Bíblia destaca benefícios e bênçãos que fluem do sofrimento. Por fim, a Bíblia dá instrução clara sobre como os crentes devem reagir quando o sofrimento lhes sobrevêm na sábia providência de Deus.

soFrendo em um mundo Caído

Vivemos num mundo bagunçado. A causa desta bagunça é a nossa re-belião contra Deus. Quando ele criou o mundo, ele viu que tudo era bom, e tudo permaneceu bom até que a raça humana parou de confiar em Deus e lhe desobedeceu. A queda de Adão e Eva no pecado introduziu alguma forma de sofrimento em cada área da vida. Imediatamente, o relaciona-mento conjugal deles foi corrompido, Adão procurou culpar Eva por seu próprio pecado, e o filho mais velho deles assassinou seu irmão mais novo. A primeira família foi também a pri-meira família disfuncional! Os poucos capítulos seguintes de Gênesis mos-tram a espiral descendente e rápida da depravação humana, chegando até ao ponto em que Gênesis 6.5 nos dá esta triste acusação: “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era conti-nuamente mau todo desígnio do seu coração”. Como resultado da rebelião do homem, os relacionamentos dos seres humanos estão confusos. E os resultados incluem tudo, desde amiza-des destruídas e casamentos rompidos a assassinato e opressão. Toda pessoa

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que vive neste mundo caído está sujei-ta ao sofrimento apenas por causa da propensão inata das pessoas para feri-rem umas às outras.

A queda afetou muito mais do que apenas os relacionamentos humanos. Ela corrompeu toda a ordem criada. Em Gênesis 3, Deus disse a Eva que sua dor no parto aumentaria grande-mente e disse a Adão que sua sobrevi-vência dependeria de labor doloroso. Em Romanos 8, Paulo explicou que toda a criação está “sujeita à vaidade”, em “cativeiro da corrupção” e, “a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.18-22). Como resultado de nossa rebelião, este mundo se tor-nou um lugar de desastres naturais, e nossa vida é caracterizada por doença e morte. Terremotos, furacões, tornados, secas, inundações, fomes, deslizamen-tos de terra, câncer, doenças de cora-ção e coisas semelhantes, tudo resulta do fato de que este é um mundo caí-do. Essas coisas atingem tanto o povo de Deus como aqueles que desafiam a Deus. Em sua Palavra, Deus nunca promete que seu povo será isento de qualquer destas características doloro-sas de um mundo caído. Neste mundo bagunçado pelo pecado humano, coi-sas más acontecem a todas as pessoas.

Devido à gravidade do pecado, é admirável que as coisas não sejam pio-res. Nas operações da graça comum, Deus ainda provê bênçãos para os jus-tos e, também, para os injustos. E o Espírito de Deus restringe o mal, para que as coisas não sejam tão más como poderiam ser. Em seu cuidado provi-

dencial, Deus protege, muitas vezes, o seu povo de desastres que poderiam ter acontecido. Todo crente tem um testemunho de maneiras pelas quais Deus o protegeu de dano potencial, e, muito provavelmente, no céu desco-briremos inúmeras outras ocasiões em que Deus nos protegeu, quando nem mesmo percebemos. No entanto, ele nunca promete que sempre nos prote-gerá e não está sob qualquer obrigação de fazer isso. O sofrimento acontece apenas porque este é um mundo caí-do. Algumas pessoas experimentam menos sofrimento por causa do lugar em que vivem, e parte desta diferen-ça pode ser atribuível ao impacto da Palavra de Deus na cultura, através do tempo. Todavia, cada pessoa está sujeita à possibilidade de desastres na-turais ou crimes. Cada pessoa pode ter câncer ou doença de coração; por fim, cada pessoa morre. Estas formas de sofrimento vêm apenas porque o mun-do é caído, e os sofrimentos não discri-minam entre crentes e não crentes.

soFrimenTo Por Fazermos o mal

O sofrimento vem, às vezes, como resultado de fazermos o mal. Algumas coisas são apenas as consequências na-turais de desconsiderarmos as orienta-ções dadas por Deus. Alcoolismo, abu-so de drogas e glutonaria causam seu próprio dano natural na raça humana. Quando alguém comete um crime e é apanhado, sua punição subsequente vem como uma consequência legal do procedimento errado. Também é ver-

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dade que em certas passagens da Es-critura (como as maldições pronuncia-das em Deuteronômio 28), sofrimento e desastre são ligados diretamente, por Deus, à desobediência aos seus man-damentos. No entanto, a Escritura nos adverte contra estabelecermos muito rapidamente uma conexão entre o pe-cado de uma pessoa e o seu sofrimen-to. O livro de Jó, em específico, anula esta conexão. Os amigos de Jó estavam convencidos de que as tribulações de Jó eram, de algum modo, resultado de algum pecado que ele cometera. Jó protestou em sentido contrário, e, no final, Deus afirmou que Jó, e não os seus amigos, falara corretamente sobre este assunto. Jesus rejeitou a noção de que um homem nascido cego estava sendo punido por algum pecado dele mesmo ou de seus pais ( Jo 9.1-3). E, quando lhe perguntaram sobre dois grupos de pessoas que haviam morri-do – um grupo, por causa de opressão política, e outro, por causa da uma torre que caíra sobre eles –, Jesus in-sistiu em que eles não eram pecadores piores do que os outros que haviam escapado desses infortúnios. A coisa mais segura que podemos dizer é que fazer o mal não tem frequentemente as suas próprias consequências naturais, e Deus pode usar o sofrimento como uma chamada de despertamento para pessoas que estão seguindo o caminho errado; mas devemos dizer que rara-mente é sábio supor que, se uma pes-soa está sofrendo, ela está sofrendo por causa de algum pecado específico que cometeu.

soFrendo Como CrisTão

Neste assunto, o pensamento da Escritura é diretamente contrário às expectativas culturais do evangelica-lismo ocidental irrefletido. O Novo Testamento tanto pressupõe como afirma que o sofrimento é normal, é uma parte expectável do que signifi-ca seguir a Cristo. Em face do que a Bíblia diz sobre a condição caída do mundo, isto não deve ser uma surpre-sa para o crente. Em Jesus, Deus se tornou homem e viveu entre nós, e o mundo reagiu assassinando-o. Em vez de buscar a Deus, a humanidade caída o odeia e está tentando escapar dele. Se uma pessoa fala a pecadores rebel-des sobre o Deus verdadeiro ou expõe a autojustiça deles como a fraude que ela é, tal pessoa incorre no mesmo ódio que caiu sobre Jesus. Ele deixou clara a conexão: “Lembrai-vos da pa-lavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se me per-seguiram a mim, também perseguirão a vós outros; se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” ( Jo 15.20). Eles perseguiram a Jesus, logo, a conclusão deve ser óbvia. Em um mundo corrompido pelo pecado, é realmente verdadeiro que nenhuma obra boa fique sem punição. Paulo ex-pressou isso quando disse: “Ora, todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2 Tm 3.12). Sob a inspiração do Es-pírito Santo, Paulo não disse “talvez sejam”, ele disse: “Serão”. Sofrer por amor a Cristo é entendido como uma

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dádiva: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29). A palavra traduzida aqui por “foi conce-dida” vem da família da palavra charis, no grego, e poderia ser traduzida por “foi presenteada”. A Bíblia nos diz que os apóstolos se regozijaram por terem sido considerados dignos de sofrer por causa do nome de Jesus (At 5.40-41). As igrejas em Jerusalém (At 8.1), na Galácia (Gl 3.4), em Filipos (Fp 1.29), em Tessalônica (1 Ts 2.14) e na Ásia Menor (1 Pe 4.12), todas expe-rimentaram sofrimento, tal como os recipientes originais da Epístola aos Hebreus (Hb 10.32). Paulo atravessou sofrimento horrível (2 Co 11.23-29), como também os outros apóstolos (At 5-8). Na Escritura cristã, a chamada para seguir a Cristo é uma chamada para abandonar a tranquilidade, a se-gurança e o conforto deste mundo, a fim de tomar a cruz. Isto não é uma descrição de uma superfé extraordi-nária. É uma descrição bíblica da vida normal do cristão normal.1

a Comunhão no soFrimenTo de CrisTo

No Novo Testamento, muitas das referências que falam sobre sofri-mento dizem respeito especialmente ao sofrimento de Jesus. Há um forte sentido em que estes sofrimentos são exclusivos de Jesus. Somente ele pode-ria sofrer ou morrer pelos pecados do mundo. Somente ele, Deus perfeito e homem perfeito, poderia sofrer em

nosso lugar para pagar a penalidade que merecíamos pagar. Nesse sentido, Jesus sofreu para que os crentes não tivessem de passar por esse sofrimen-to. Porque ele suportou a ira de Deus contra a nossa rebelião, aqueles que creem nele nunca terão de enfrentar essa ira. Nenhum crente jamais sofreu para compensar qualquer de seus erros aos olhos de Deus. A morte expiatória de Jesus é totalmente suficiente para pagar todos os pecados de todas as pessoas que crerão nele, em todos os lugares, em todo o tempo. Nada pode ser acrescentado a essa morte.

No entanto, a Escritura nos diz que aqueles que creem em Cristo es-tão agora, eles mesmos, “em Cristo”. Por meio da habitação do Espírito, os crentes possuem agora uma união íntima com Jesus. Muitas bênçãos maravilhosas fluem para o povo de Deus por meio desta união com o seu Salvador. Esta mesma união os une também com o contínuo sofrimen-to dele no mundo, não como obra de expiação, e sim como a experiência de oposição do mundo ao amor e à santi-dade dele. Parte do que significa estar “em Cristo” é compartilhar da comu-nhão de seus sofrimentos. Paulo une o conhecer a Cristo e o poder de sua ressurreição com o compartilhar de seus sofrimentos, como se estas duas coisas fossem inseparáveis (Fp 3.10). Paulo disse aos cristãos de Corinto: “Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio

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de Cristo” (2 Co 1.5). Pedro ecoou este mesmo tema, ao dizer: “Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando” (1 Pe 4.13). Em Romanos 8.17, Paulo chegou ao ponto de dizer que os crentes são “herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele se-remos glorificados”. Sofrer com Cristo é tão intimamente conectado com o gozo final de sua glória, que as duas coisas não podem ser separadas. A menos que Paulo tenha negado o que dissera em outra passagem, isto não pode significar que estes sofrimentos são, de algum modo, salvadores. Mas isto parece demonstrar que sofrer com Cristo é uma parte tão normal de estar em Cristo, que Paulo não podia conce-ber uma coisa sem a outra.

Em Colossenses 1.24, Paulo dis-se: “Agora, me regozijo nos meus so-frimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja”. É impressionante ouvirmos Paulo falar sobre algo que faltava nas aflições de Cristo, até que compreen-demos que a palavra que ele usou nesta passagem nunca é usada a respeito do sofrimento expiatório de Jesus. Paulo não disse que estava contribuindo para a obra salvadora de Cristo em morrer por nossos pecados. Antes, esta aflição de Cristo é sua experiência, em união com seu corpo na terra, da aflição deles como seu povo em um mundo hostil. Aparentemente, há uma plena medida

dessa aflição que será experimentada pelo povo de Deus antes do fim desta era; e Paulo viu seu próprio sofrimen-to como algo que contribuía para essa medida. A intimidade da união de Cristo com seu povo é tão profunda, que os sofrimentos deles são de Cristo, e os sofrimentos de Cristo são deles.

Isto significa que cristãos confor-táveis e prósperos do Ocidente devem sair por aí e tentar provocar persegui-ção ou afligir intencionalmente a si mesmos com práticas ascéticas? Não. O ascetismo é inútil como um instru-mento de santificação (Cl 2.23), e os crentes não são ordenados a buscarem perseguição. No entanto, a condição deles deve alarmá-los. É perigosa e anormal. Eles precisam especialmente acautelar-se das seduções da respeita-bilidade e da prosperidade. Precisam acautelar-se da idolatria sutil de fa-zerem de Jesus um meio para obterem seu próprio gozo desta vida. Precisam acautelar-se do mundanismo de co-locarem seu coração nas coisas deste mundo e valorizarem possessões, saú-de e segurança mais do que a glória de Cristo. Precisam examinar a si mesmos com honestidade e verificar constante-mente se o desejo de manterem seu es-tilo de vida os seduziu a comprometer de alguma maneira a sua obediência. Precisam cultivar a mentalidade de prontidão para perder qualquer coisa e tudo, quase imediatamente, por causa do supremo valor de Cristo. Riqueza e segurança são condições perigosas nas quais um discípulo de Jesus e aqueles que vivem nelas precisam exercer cui-

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dado especial. A condição normal de um seguidor de Cristo é participar da comunhão dos sofrimentos dele, e os que não fazem isso precisam sempre perguntar a si mesmos por que não o estão fazendo.

soFrimenTo e o avanço do evangelho

Promover o avanço do evangelho é um empreendimento perigoso. Aque-les que levam a luz de Cristo às trevas de um mundo rebelde parecem expe-rimentar um nível intensificado de sofrimento. Isto foi certamente uma experiência de Paulo. Bem no começo da vida cristã de Paulo, quando Ana-nias lhe foi enviado em Damasco para restaurar-lhe a visão, Deus ligou uma descrição de sua chamada missionária com estas palavras: “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome” (At 9.16). Paulo entendeu esta ligação e a expressou a Timóteo no final de sua vida, ao descrever o evan-gelho e dizer sobre ele: “Para o qual eu fui designado pregador, apóstolo e mestre e, por isso, estou sofrendo estas coisas” (2 Tm 1.11-12). Para que ninguém pense que esta conexão entre sofrimento e serviço do evange-lho era exclusiva dos apóstolos, Paulo aplicou-a também a Timóteo, dizen-do: “Participa dos meus sofrimentos como bom soldado de Cristo Jesus” (2 Tm 2.3). Na verdade, esta conexão era tão íntima, que Paulo usou a ex-pressão “participa comigo dos sofri-mentos, a favor do evangelho”, onde

o contexto indica claramente que ele falava sobre participar da obra do evangelho (2 Tm 1.6-9).

Este padrão tem permanecido até ao presente. Aqueles que têm levado o evangelho a lugares onde ele nunca foi ouvido antes têm sido, sempre, al-vos especiais de oposição e sofrimento. David Garrison, em seu livro Church Planting Movements (Movimentos de Plantação de Igreja), lista o sofrimen-to de missionários como uma das prin-cipais características na maioria dos lugares em que Deus tem agido de ma-neiras extraordinárias.2 Isto não deve surpreender-nos. O mundo, o Diabo e a nossa própria carne se opõem, todos, à obra de Deus. Aqueles que levam o evangelho a lugares em que Cristo ainda não é conhecido têm de fazer isso com seus olhos abertos para o que possa vir adiante. Além disso, a igreja no Ocidente tem de abraçar a verdade de que o evangelho é digno de qual-quer preço que Deus pede que pague-mos e tem de abandonar sua aversão instintiva ao desconforto e ao perigo. A Grande Comissão não será cumpri-da sem sofrimento.3 Se uma parte do corpo de Cristo demonstra que não está disposta a pagar qualquer tipo de preço, Deus os deixará de lado e usa-rá aqueles cujos valores estão mais em harmonia com os valores dele.

Cosmovisão bíbliCa e soFrimenTo

Até aqui esta discussão têm sido um tanto sombria. Tudo isto signifi-ca que o cristianismo bíblico é algum

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tipo de ascetismo melancólico? De modo nenhum! Como disse C. S. Le-wis, Deus é um hedonista no coração.4 Há prazeres eternos à sua mão direita (Sl 16.11). A vida cristã é uma questão de “alegria indizível e cheia de glória” (1 Pe 1.8). Mesmo quando fala sobre os sofrimentos de Jesus, a Bíblia nos diz que ele suportou a cruz “em tro-ca da alegria que lhe estava proposta” (Hb 12.2). O cristianismo bíblico não valoriza o sofrimento por si mesmo. A atitude cristã para com o sofrimento é uma questão de sistema de valores

transformado. Por causa do verda-deiro tesouro, o crente está disposto a renunciar as coisas menores, como possessões, conforto temporal e segu-rança ou até a esta vida. A realidade não é o que você perde. A realidade é o sobrepujante valor do que você ganha.

Paulo resumiu sua perspectiva em sua carta aos cristãos de Filipos. No contexto em que Paulo falou sobre a possibilidade de ser executado por causa de sua fé, ele disse: “Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1.21). Seu maior tesouro nesta vida era conhecer Cristo. O benefício ganho na morte era o estar com Cris-

to, o que Paulo considerou melhor do que qualquer coisa que esta vida poderia oferecer (Fp 1.23). Em qual-quer circunstância, Cristo é tudo. Ele é o tesouro escondido no campo que é digno de vendermos tudo para obtê-lo (Mt 13.44). Ele mesmo é a coisa mais preciosa que já existiu nesta terra. É a verdadeira vida, a verdadeira alegria, a verdadeira paz, a verdadeira satisfa-ção. Em Cristo, o crente tem perdão do pecado, novo nascimento, recon-ciliação com Deus, adoção na família de Deus, o dom do Espírito Santo,

transformação progressiva na imagem de Cristo e a garantia da vida eterna na alegria e glória infinitas da presença de Deus. Este é o verdadeiro tesouro, é um tesouro que não pode ser perdido. Todas as coisas que o mundo valoriza – possessões, conforto, saúde e a pró-pria vida – são coisas que todos, por fim, perderão. Que pessoa racional se apega, enquanto pode, a coisas que por fim perderá, às expensas de coisas de muito maior valor que ela nunca per-derá? Vista da perspectiva de Deus, a pessoa verdadeiramente sensata é aquela que suporta quaisquer perdas temporais que acompanham o tesouro

Sofrer com Cristo é tão intimamente conectado com o gozo final de sua glória, que

as duas coisas não podem ser separadas”.

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genuíno e eterno. Quando os crentes assimilam o incrível valor de Cristo e de seu evangelho e o valor comparati-vamente menor e passageiro das coisas boas desta vida, podem ver com os mesmos olhos de Paulo, o qual, depois de tudo por que passou, escreveu: “A nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não aten-tando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2 Co 4.17-18).

Evidentemente, o problema é que as coisas que podemos ver são imedia-tas e sedutoras, enquanto as que não podemos ver só podem ser assimiladas pela fé. Aqueles que têm muitas coisas boas que podem ver aqui têm frequen-temente mais dificuldade para assimi-lar o valor superior das coisas que não podem ver. A maioria das pessoas pre-fere ter seu bolo e, também, comê-lo. Preferem gozar as coisas boas desta vida e as coisas melhores da vida por vir. Contudo, em sua sabedoria, Deus sabe que não podemos servir a dois senhores (Mt 6.24). Ele não chama seus filhos a renunciarem todas as possessões e prazeres, assim como não nos ordena buscar o sofrimento por si mesmo. Tudo que ele criou é bom, in-cluindo possessões e prazeres usados corretamente. Deus chama os seus fi-lhos a valorizarem aquilo que é infinita e eternamente valioso, acima daquilo que é menos importante e temporal. Deus os chama a investir sua vida nas coisas da vida por vir. Ele os chama

a reconhecer que não pertencem a si mesmos, mas vivem somente pela graça e para a glória dele. Quando essa perspectiva é atingida, a chamada para suportar sofrimento por causa do evangelho deixa de ser notícias som-brias e se torna uma parte razoável de nossa chamada jubilosa em Cristo.

Os cristãos que têm assimilado a mentalidade da cosmovisão bíblica aceitam o sofrer por Cristo porque ele é intrinsecamente digno disso. Eles acharam em Cristo o maior tesouro do mundo, e em comparação com ele to-das as atrações e confortos do mundo parecem esterco coberto de ouropel. Como Paulo, eles podem dizer com honestidade: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimi-dade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como re-fugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3.8). As coisas deste mundo não são dignas de nosso sofrimento, mas Jesus é.

beneFíCios do soFrimenTo

Vale a pena sofrer por Jesus por-que ele é muito maior do que qualquer coisa que percamos em segui-lo. Além disso, há certos benefícios que vêm ao crente por meio do sofrimento. Um desses benefícios é que o sofrimento testa e demonstra se a fé é genuína ou não. Em sua parábola dos quatro solos, Jesus falou sobre aqueles que fazem uma aceitação superficial do evangelho, mas não aprofundam suas raízes. Quando a perseguição ou as di-

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ficuldades vêm, eles voltam atrás rapi-damente, mostrando que sua fé nunca fora genuína (Mt 13.20-21). Por outro lado, falando aos crentes que haviam suportado sofrimento, Pedro disse: “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (1 Pe 1.6-7).

Outro benefício do sofrimento é que ele é um aliado na luta contra o pecado. Em sua primeira carta, Pedro também escreveu: “Ora, tendo Cris-to sofrido na carne, armai-vos tam-bém vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o pecado” (1 Pe 4.1). O sofrimento não deve ser buscado, como o faziam os ascetas medievais, na esperança de que a autopunição intencional possa puri-ficar o pecado. Entretanto, quando o sofrimento vem, ele é usado frequen-temente por Deus para tornar Cristo mais atraente e tornar o mundo menos atraente e, assim, ajudar-nos na luta por santidade.

O sofrimento ajuda a moldar o caráter do crente na imagem de Je-sus. Em uma passagem famosa, Pau-lo escreveu: “E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperan-ça” (Rm 5.3-4). Assim como o trei-

namento rigoroso molda o corpo de um atleta e o torna preparado para o esporte, assim também o sofrimento molda o caráter de um cristão e o tor-na preparado para o serviço do reino.

Por último, o sofrimento provê uma oportunidade para o crente ex-perimentar o poder de Deus. Paulo mostrou ter compreendido isso, quan-do disse: “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessida-des, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2 Co 12.10). A força de Deus é supre-mamente maior do que a nossa, porém experimentaremos mais provavelmen-te essa força quando chegarmos ao fim de nossos próprios recursos e descan-sarmos somente nele.

reagindo ao soFrimenTo

Como um cristão deve reagir quando o sofrimento lhe sobrevém? Primeiramente, não devemos ficar surpresos. “Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se algu-ma coisa extraordinária vos estivesse acontecendo” (1 Pe 4.12). A cultura ocidental pode instilar a expectati-va de que a vida deve ser fácil, mas a Bíblia indica claramente o contrário, especialmente para os cristãos. Não devemos ser surpreendidos nem con-fundidos pelo sofrimento. Deus nos instruiu que devemos esperá-lo.

Em segundo, devemos suportar pacientemente qualquer sofrimento

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que nos sobrevenha, sem comprome-termos nossa integridade em Cristo. O Novo Testamento ressoa este tema repetidas vezes. Eis dois exemplos. Paulo disse a Timóteo: “Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evange-lista, cumpre cabalmente o teu minis-tério” (2 Tm 4.5). Pedro afirmou: “Por-que isto é grato, que alguém suporte tristezas, sofrendo injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus” (1 Pe 2.19). A nossa tentação carnal é fazer quaisquer comprometi-mentos que forem necessários para ba-nir nosso sofrimento. Deus nos chama a suportar com paciência.

Em terceiro, devemos amar aque-les que nos perseguem e orar por seu bem-estar (Mt 5.43-47). Não deve-mos tomar vingança daqueles que er-ram contra nós (Rm 12.14, 17, 19-21). Tanto a nossa carne quanto o mundo ao nosso redor nos instigam a que vin-diquemos a nós mesmos, mas devemos reagir aos instrumentos humanos de nosso sofrimento como Jesus reagiu, amando até as pessoas que o mataram.

Em quarto, devemos crer em Deus em meio ao nosso sofrimento e reagir por fazermos o bem proativamente. “Os que sofrem segundo a vontade de Deus encomendem a sua alma ao fiel Criador, na prática do bem” (1 Pe 4.19). A consequência de nosso sofri-mento está nas mãos de Deus, e pode-mos confiar nele quanto a essa conse-quência. Deus pode nos libertar por levar-nos ao lar para ficarmos com ele, mas ele nunca nos deixará, nem nos

abandonará. Nada pode tirar-nos de suas mãos ou separar-nos de seu amor. Nosso dever é pagar o mal com o bem. Devemos deixar as consequências com Deus e ser proativos em fazer a obra de seu reino em face de qualquer coisa que nos sobrevenha. Precisamos guar-dar-nos da tentação real de entrarmos no modo de sobrevivência e, em vez disso, permanecermos ativos na pro-pagação de sua glória.

Devemos usar nossas experiências de sofrimento para confortar os outros que sofrem. Paulo abordou isto com alguma amplitude em 2 Coríntios 1. Em vez de tornar-nos apáticos ou in-sensíveis, o sofrimento deve nos tor-nar compassivos para com os outros em suas aflições.

Devemos fixar nossos olhos em Jesus (Hb 12.1-3). Esta talvez seja a reação mais essencial de todas. Nossa carne sempre recuará do sofrimento. O mundo sempre nos dirá que somos loucos por nos colocarmos no sofri-mento, em primeiro lugar. Somente por mantermos uma perspectiva bí-blica sobre o supremo valor de Jesus, seremos capazes de suportar com pa-ciência o sofrimento, enquanto aben-çoamos nossos perseguidores, confor-tamos outros que sofrem e continua-mos ativamente na obra do reino de Deus. Isto exige dedicação em oração e no estudo da Palavra de Deus. Tam-bém exige encorajar e desafiar outros no corpo de Cristo, a menos que es-tejamos involuntariamente separados dos outros crentes. Somente em Cris-to o sofrimento pode não somente ser

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suportado, mas também transformado em algo que glorifica a Deus e nos faz bem.

Por fim, somos até ordenados a re-gozijar-nos. Pedro disse: “Alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo” (1 Pe 4.13). Isto parece insensato para o mundo, mas foi a reação espontânea dos após-tolos, que se regozijaram por haverem sido considerados dignos de sofrer por causa de Cristo (At 5.41). Regozijo como este só pode surgir pelo poder do Espírito Santo, em mentes que compreenderam plenamente o valor supremo de Cristo, em vidas que têm seus olhos fixados habitualmente em Cristo. Somente nele, faz sentido re-gozijar-nos em meio ao sofrimento.

ConClusão

Um artigo como este é difícil de ser escrito. Se eu dei a impressão de que já fiz tudo que recomendei aos outros neste artigo, esta é realmente uma im-pressão errada. Comparado com meus irmãos e irmãs na igreja perseguida, eu não sofri ainda. Ainda acho inti-midante a perspectiva do sofrimento e da perseguição. No entanto, com base na leitura da Palavra de Deus e com base em conversas com outros ir-mãos que suportaram muito mais por causa do reino de Deus, aprendi uma coisa. Deus nos dá graça quando ela é necessária. “Acheguemo-nos, portan-

to, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericór-dia e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.16). Ele não a dá necessariamente antes do tempo. Deus não me dá graça agora para que eu precise enfrentar algo que pode ou não acontecer-me no futuro. Toda-via, no momento de necessidade, ele é sempre fiel. Nessa confiança, precisa-mos repudiar os temores de nossa car-ne e as mentiras do mundo e suportar o sofrimento como bons soldados de Jesus Cristo.

1 Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento à luz do reino de Deus, ver John Piper e Justin Taylor, eds., Suffering and the Sovereignty of God (Wheaton: Crossway, 2006).

2 David Garrison, Church Planting Movements (Midlothian, VA: WIGTake Resources, 2004), 235-38.

3 Quanto a uma leitura adicional sobre o sofrimento e o avanço do evangelho, ver John Piper, Let the Nations Be Glad: The Supremacy of God in Missions, 3rd ed. (Grand Rapids: Baker, 2010), 93-131; e J. Dudley Woodberry, ed., From Seed to Fruit (Pasadena: William Carey, 2008), especial-mente o capítulo 24.

4 C. S. Lewis, Screwtape Letters (San Fran-cisco: HarperCollins, 2001), 118.

Mauro Meister

Franklin Ferreira: É mestre em teologia, pastor batista, autor, preletor, diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP.

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O FUNDAMENTO DA IGREJA E A FÉ

Mauro Meister

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Em Mateus 16 temos a narrativa de um diálogo entre Jesus e seus dis-cípulos durante um “retiro espiritual” que fizeram pelas “bandas de Cesaréia de Filipe” (v. 13). Afastado das multi-dões, das controvérsias com os fariseus e outros adversários, das tremendas demandas diárias que recebia de todos à volta, o Senhor chama aqueles que estavam mais próximos à reflexão, para lhes mostrar alguns dos fundamentos sobre os quais a “sua igreja” seria conti-nuada e firmada na face da terra.

Com a excelência da pedagogia que sempre é evidente nos Evange-lhos, nosso Senhor começa a sua lição sobre os fundamentos da Igreja com uma pergunta que vai levar a uma ou-tra: “Quem diz o povo ser o Filho do Homem?”. Certamente, o simples in-vocar do nome “Filho do Homem” já faria com que os discípulos refletissem

a respeito das mais diversas conversas e discussões acaloradas, tidas depois das leituras dos textos da Torá aos sá-bados na Sinagoga. Quem é o “Filho do Homem” segundo os Salmos ou o Daniel, ou mesmo na forma como a expressão é empregada para chamar o profeta Ezequiel? Quem é esse a quem tanto esperamos, era a pergunta no ar?

A resposta estava pronta, mos-trando que havia algumas principais correntes de interpretação entre os doutos, correntes essas que se espalha-vam na opinião do povo: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas... (v. 14). Mal sabia o povo que o Filho do Homem já andava entre eles a cerca de 30 anos, e pouquíssimos o reconhe-ceram, dentre eles, alguns cegos, exa-tamente para mostrar que o real pro-blema da humanidade não é a cegueira física, mas a cegueira espiritual.

A Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada sobre

fundamentos humanos”.

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Continuando com a sua sutil e cer-teira pedagogia, Jesus faz, então, a per-gunta que realmente interessa: “Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?” (v. 15). Observe que a associa-ção é imediata: “o Filho do Homem” e quem “eu sou”. Aqui está a primeira lição direta: Jesus é o Filho do Homem anunciado no Antigo Testamento.

Como é usual, Pedro sai na frente ao dar a resposta. É peculiar de Pedro adiantar-se em falar e agir. E a respos-ta de Pedro é direta: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v. 16). A resposta é carregada de conceitos teológicos fun-damentais que são trazidos pelos textos da Lei, dos Salmos e dos Profetas. Em resumo, Pedro faz uma associação teo-lógica dizendo que o Filho do Homem é o mesmo Messias, que é o Cristo e que este mesmo é o Filho do Deus vivo, e, afinal, era este homem que estava dian-te dos seus próprios olhos na região de Cesaréia de Filipe. A partir desta reali-dade, aprendemos alguns importantes princípios no diálogo que se desenvolve.

PrinCíPio da revelação

Na resposta do diálogo, Jesus mos-tra, então, o primeiro grande funda-mento sobre o qual a sua igreja está fir-mada: a iluminação do Espírito Santo sobre a Revelação, ou como chamarei aqui, o Princípio da Revelação. O Senhor Jesus diz que não foi carne ou sangue que fizeram Pedro reconhecer esta verdade revelada nas Escrituras e agora exposta diante de seus próprios olhos, mas o próprio Deus. Esta é uma

das fundamentais diferenças entre o cristianismo e outras religiões. A reve-lação que vem da parte de Deus e que corresponde à realidade dos fatos. Je-sus é aquele que a Escritura diz que ele é. Jesus é aquele que ele mesmo diz ser. Jesus é aquele que Deus diz ser! Temos aqui três ideias básicas. Primeiro, que a revelação passada se cumpre em Cris-to, afinal, ele é o Messias prometido. Segundo, que a revelação presente, na encarnação do Filho do Deus vivo, é superior. Não no sentido de que a re-velação anteriormente dada fosse im-perfeita, mas agora, ela é completa e plena. Tudo o que Deus quis revelar, mostrou-nos no seu Filho (Hb 1.3; Jo 1.18). E terceiro, aprendemos que a iluminação individual é fundamental. O verso 17 nos ensina que Deus reve-lou a Pedro esta verdade. Os escribas, fariseus e todos os estudiosos da época tinham as mesmas fontes que Pedro ti-nha, mas foi Pedro quem conectou os pontos da revelação passada com a re-velação presente diante dos seus olhos. Esta mesma verdade é viva hoje quan-do, pela iluminação do Espírito Santo, percebemos na Escritura a verdade de Deus. Crer na revelação da Palavra de Deus é uma bem-aventurança: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas”. So-bre esta revelação é que a fé da Igreja deve ser fundamentada.

PrinCíPio da ediFiCação

A resposta de Jesus a Pedro come-çou com uma troca de palavras: você disse que eu sou o Cristo, e eu digo,

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Simão Barjonas (Simão filho de Jo-nas), que você é pedra (o significado do apelido de Simão, Pedro). Jesus usa deste trocadilho para trazer à luz uma das mais importantes verdades a res-peito da fé da Igreja: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (v. 18).

O catolicismo romano imediata-mente interpretou o jogo de palavras, Pedro e pedra, como sendo a mesma palavra e nisto construiu a doutrina do papado, sendo Pedro o primeiro desta suposta sucessão. Mas há aí uma falácia. Quando Jesus diz “esta pedra”, não re-

fere-se a Pedro, mas à verdade pronun-ciada por Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. É sobre esta verdade que a Igreja irá subsistir, a obra do Filho de Deus. O próprio Pedro, refletindo sobre esta verdade, fala-nos em sua primeira epístola: “Por isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido” (1Pe 2.6).

A grande lição aprendida aqui é que a Igreja de Jesus nunca poderá ser edificada sobre fundamentos huma-nos. Sempre que interferimos e nos colocamos no lugar do fundamento verdadeiro encontramos diante de nós uma igreja falsificada, trasvestida e ir-reconhecível como igreja de Cristo.

PrinCíPio da ProPriedade

Da mesma forma como a igreja não pode ter fundamentos lançados por homens, ela não pode ter homens como seus proprietários! No final do verso 18, o Senhor Jesus usa a expres-são “minha igreja”. A igreja é dele, sua noiva, pela qual ele tem verdadeiro zelo e compromisso. Com base nesta verdade é que são feitas muitas pro-messas à Igreja e a respeito da Igreja, dentre elas, a de que vai ele apresentá-la sem mancha, ruga ou mácula.

O Senhor sabe que é necessário cumprir toda a sua obra pela Igreja, para que possa resgatá-la de forma comple-ta. Por isto mostra aos seus discípulos: “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, ser morto e ressuscitado no terceiro dia” (v. 21). Ele diz “minha igreja” porque ele é o único dono dela, trabalhou até a mor-te para que pudesse comprá-la com seu sangue e ninguém mais pudesse clamar posse sobre ela e seus membros. A Igre-ja de Jesus não existiria como tal sem a sua morte e ressurreição, o que lhe dá completa posse dela.

A verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra”.

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PrinCíPio da auToridade

Por último, podemos perceber o princípio da autoridade de Cristo so-bre a sua Igreja. Para demonstrar este princípio temos, em primeiro lugar, a afirmação desta autoridade: “E as por-tas do inferno não prevalecerão contra ela” (v.18b). O conceito é, de certa for-ma, muito simples: o fato da Igreja ter a autoridade da revelação de Deus, ser a propriedade e a edificação de Cris-to, não há nada neste mundo, nem o próprio inferno, que possa se colocar contra ela e vencer. Assim, a verdadeira Igreja de Cristo não tem o que temer; não há poderes que possam terminá-la, porque ela pertence a Cristo. Aliás, opor-se à obra de Cristo na Igreja é obra de Satanás e é por isto que Pedro é repreendido severamente ao opor-se, quando foi dito que era necessária a morte e ressureição do Senhor.

Por outro lado, a verdadeira Igreja trabalha como uma agência do céu aqui na terra. O Senhor afirma: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que liga-res na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido des-ligado nos céus” (v.19). Veja que o texto é muito claro em dizer que a ordem da ação de ligar e desligar começa no céu e é implementada na terra pela Igreja. Acredito que aqui temos o ensino claro, somado ao contexto de Mateus 18.15-18, onde aparece a mesma expressão, que a Igreja tem a obrigação de admitir e demitir aqueles que não cogitam das coisas de Deus. A Igreja tem a respon-sabilidade de abrir e fechar a porta para

que as “portas do inferno” não operem dentro dela mesma. Logo, a Igreja na terra deve viver na busca de realizar a vontade soberana do Pai do céu.

E como, afinal, esta fé deve ser vi-vida aqui na terra?

“Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mes-mo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á. Pois que aproveitará o homem se ganhar o mun-do inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma? Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras. Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Ho-mem no seu reino” (16.24-28).

O que o texto nos mostra é que a vida de fé na igreja deve ser vivida em torno da cruz! É, com certeza, uma vida de negação dos padrões da individua-lidade egoísta para viver os padrões da vida do bem-aventurado. Da mesma forma como era necessário que o Se-nhor fosse a Jerusalém para passar pela cruz, o cristão toma a sua cruz e segue a Jesus nos passos da ressurreição.

Franklin Ferreira: É mestre em teologia, pastor batista, autor, preletor, diretor do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos, SP.

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