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Revista Eletrônica Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro
Ano 01 - Número 01 - Maio 2016
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Índice
A aventura de escrever ..................................................................................................................................... 3
Um artista dançarino em busca do sentido da dança em sua vida ................................................ 5
De quantos tempos somos feitos ................................................................................................................. 6
O impacto de descobrir a história da dança, que também é sua .................................................... 9
Por mais histórias de perdedores ............................................................................................................... 11
A dança da história que vejo daqui onde estou agora....................................................................... 13
Anos 60/70 .......................................................................................................................................................... 16
Anotações sobre o curso de história das danças cênicas do século XX/XXI..............................18
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A aventura de escrever
Flavia Meireles
Entre os dias 12 e 16 de abril de 2016 ministrei uma breve e intensiva oficina
intitulada “História das danças cênicas no século XX/XXI” no Centro Coreográfico
do Rio de Janeiro. Durante quatro dias abordei com cerca de 30 participantes,
assuntos em torno da história da dança cênica ocidental com foco no século
XX/XXI buscando, antes de mais nada, refletir e problematizar com eles as
relações entre dança e história – entre esses campos de saberes e suas
aproximações e dissensos.
Interessava-me, sobretudo, estimular um viés crítico acerca da história, da dança
e dessa junção complexa chamada história da dança, de uma perspectiva não-
totalizante e aberta às questões de cada participante. Interessava-me, também,
que cada participante pudesse traçar relações entre uma história na dança de
âmbito pessoal em um contexto mais geral, a fim de sensibilizar a produção de
discurso e de reflexão sobre sua posição como artista num mundo
contemporâneo. Que linhas de continuidade e descontinuidade conseguimos
traçar – em cinco dias – que alinhavem experiências pessoais com uma
determinada constelação de experiências na história da dança carioca, brasileira
e internacional? Como provocação, sugeri que os participantes da oficina
produzissem textos impulsionados pelas aulas (não exatamente sobre as aulas,
mas certamente a partir delas) em um tema de sua escolha. Provocação mais
ousada ainda pois quatro dias geraram sete textos. Daí veio a aventura de
escrever.
Os textos que se seguem são frutos dessa aventura que se iniciou com a referida
oficina e que, tomara, não parem nunca. Vale ressaltar o trabalho colaborativo
que daí se iniciou: os autores de uns textos foram editores ou revisores de outros
tantos textos, escolhidos pelos participantes. Minha função como “professora”
havia acabado: são eles, por eles mesmos, autogeridos, quem assinam os textos.
Um laço de solidariedade (agora trabalhando virtualmente) fez com que
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chegássemos a esses textos que vocês estão prestes a ler. E é com esse laço que
espero que os textos – cuja palavra tem a mesma raiz etimológica de tecido –
habitem esta seção do blog do centro coreográfico e estimulem a tessitura de
outros textos. Gostaria de agradecer imensamente à Cristiane Moreira,
responsável por reunir e organizar todos os textos. Agradeço também à direção e
maravilhosa equipe do Centro Coreográfico que deu todo o suporte necessário a
esta empreitada. E a todos os autores, revisores, participantes e passantes que
dispuseram um pouco do seu tempo para estar conosco.
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Um artista dançarino em busca do sentido da dança em sua vida
Karla Flor
Nós, membros da criação e criadores, ao nos vermos diante das artes,
descobrimos o quanto estas são apaixonantes e desejáveis nas nossas vidas. Um
mundo se abre diante dos nossos olhos e assim nos entregamos diariamente ao
estudo e aprofundamento do que é fazer arte. Nossos corpos em movimento são
elementos de descoberta do nosso próprio “eu” nos fazendo sentir o êxtase que
essa energia criativa chamada dança nos traz.
Todo esse mundo descoberto diariamente com a arte proporciona sonhos
que alimentam a nossa psique. Formulam expectativas de uma vida de
realizações e estímulos. Entretanto, ao sairmos dos palcos imaginários e do
encontro inebriante causado pela criação, nos vemos diante de um cenário que
não é nada poético. Despidos de vontade e desejo, nos vemos em um palco sem
luz e sem som, uma plateia que não preferiu estar ali e uma esperança que
descansa com os nossos sonhos. Seguimos na busca de realização para termos a
nossa arte reconhecida. Buscamos por almas que lutem com os nossos olhos e
busquem com os nossos corpos a valorização do que nós chamamos de profissão,
mas que é a nossa vida.
Vivenciamos momentos de pura alegria e profunda tristeza.
Questionamos o porquê da nossa arte não ser reconhecida. Cansados, buscamos
algo que se faz belo na teoria, porém na prática, é questionador. As dificuldades
provocam todos os dias à minimização dos nossos sonhos. Somos artistas
criadores. Independente da dificuldade, não podemos esquecer quem somos. Ser
professor, bailarino, atuar em uma grande companhia de dança, trabalhar para
programas da área televisiva. Todas essas alternativas são maneiras da arte da
dança se apresentar. Não devemos perder a essência do verdadeiro artista, pois a
nossa criação para ser perfeita só depende do nosso desenvolvimento. Não se
deixe contagiar pelas mazelas. A arte está presente em todos os trabalhos
realizados pelo artista na sua vida.
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De quantos tempos somos feitos
Cristiane Moreira Muito se fala que não somos seres descolados do nosso tempo e
comunidade. O que somos, a arte que fazemos e como enxergamos a arte que já
existia será pensada a partir deste lugar.
Embora o curso tratasse da dança cênica ocidental contemporânea no
século XX e XXI, para falar deste lugar precisamos tanger muitos mundos
pessoais que estavam ali se movendo naquele universo do curso. Portanto
mesmo correndo o risco de desviar um pouco da rota habitual estabelecida
resolvi ponderar sobre questões que se apresentaram em nossas conversas.
Cabe colocar que quando usamos o termo Afro para classificar
determinada técnica de dança, ele passa a ser quase um apelido, porque sob este
rótulo precisamos de muitos epítetos e explicações para apreender do que se irá
tratar. Afinal África é um continente, portanto existem inúmeras danças que
poderíamos apreender.
Existem danças ritualísticas e profanas, danças de origens variadas, de
diversas etnias e de espaços geográficos diferentes. O que faz com que as danças
Yoruba sejam muito diferentes das do povo de Mali, por exemplo. Quando aqui
no Brasil se fala de dança Afro, geralmente estamos falando de uma dança de Pé
de Orixá, que foi recortada da cultura de candomblé. Neste ponto, pode-se fazer
um outro recorte: quando no senso comum se fala de uma cultura afro, aqui no
Brasil, isto na verdade quer dizer uma cultura retirada da cultura de terreiro.
O candomblé como ele se apresenta no Brasil é algo que se constrói aqui,
onde todos os orixás são cultuados no mesmo espaço, na mesma festa, onde se
pode cantar e dançar para todos os Orixás reunidos em conjunto. Na África, cada
região cultua apenas um orixá que protege aquela casa, aquele lugar específico.
Fazendo um recorte na nação de Ketu, a cultura de candomblé nesse caso segue a
filosofia Yoruba que vem para o Brasil e se cristaliza nos terreiros sob a forma
ritualística. O candomblé como entendemos é uma construção brasileira sobre
bases africanas, é brasileira em sua arquitetura, no seu vestuário e etc., que são
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formados aqui no Brasil. Somente agora com acesso à informação globalizada, á
internet, há uma africanização destes costumes, mas ainda estamos em grande
parte dos terreiros ligados à tradição do candomblé criados nos moldes da Bahia
na época da corte. Isto dito, ainda há várias questões e por menores que podem
ser esmiuçados, mas a ideia era somente para fazer uma introdução ao assunto.
Na dança cênica estamos acostumados a experimentar a sensação de criar
o tempo que nos interessa naquele espaço ali. Tempo faz parte do cotidiano de
todos, mas também é categoria da arte. E como o tratamos faz diferença no
resultado estético e até filosófico da obra em questão.
No universo da dança e da arte contemporânea algo que marcou muito: o
advento da física quântica e a teoria da relatividade. O tempo e o espaço são uma
coisa só. E então nos achamos moderninhos fazendo as espirais, sequências em
loop sem frente marcada para representam espaço contínuo. E isso faz diferença
por que a visão de tempo ocidental é linear. Para a maioria dos povos ancestrais
o tempo é cíclico e não retilíneo como para ocidentais. Para os africanos tempo é
um orixá. Para a nação congo angola ele é Tempo, para os Yorubas ele é Iroko,
para os Fon ele é Loko. Tratando aqui de Iroko, é um orixá que é tempo e espaço,
é uma árvore sagrada que liga o céu (orum) `a terra (Aiê) e, portanto, junta
espaço e tempo. É começo e fim porque os círculos da árvore marcam os anos, lá
os yorubas encontram seus ancestrais. Tudo nesta cultura é cíclico, a roda do
candomblé é hierárquica, organizada por tempo de Santo, e junta o mais velho ao
mais novo porque o primeiro é o mais velho e o último é o mais novo. Círculo se
encarrega de unir as pontas.
A dança, sua gestualidade e todo o resto, é a repetição que atualiza a
dança que se dançava antes, porque os corpos que dançam agora são outros, com
outras histórias. A dança é a mesma do passado, mas no presente. Então ela se
faz diferente, mas transpõe a barreira temporal entre passado e presente. O
agora é uma repetição de certa forma renovada, das origens do primitivo vivido.
O tempo neste contexto é representado circularmente porque começa e acaba no
mesmo ponto porque o ancestral é você e você é o seu ancestral. A árvore de
Iroko enquanto representação traz em si a ancestralidade como marca e por isso
a dimensão de tempo está ligada a espaço. A reflexão que faço é que tempo na
cultura ocidental é uma linha ele tem um começo que não sabe bem onde é o
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início, mas que pensado enquanto linha e representado enquanto linha e aonde
se vai colocando os fatos nesta linha. Então a teoria da relatividade é lida de
maneiras diferentes.
A arte contemporânea embora de difícil contorno e delimitação traz a
forte característica de trazer as vivências do artista para dentro de sua arte.
Podemos ainda fazer um outro questionamento: ser um artista brasileiro
contemporâneo é ser hibrido e passar por múltiplas vivencias, é ser atravessado
pela cultura judaico cristã mesmo não querendo (afinal fomos colonizados pelos
portugueses). É ser um artista banhado pelas igrejas pentecostais mesmo sem se
dar conta (temos meios de comunicação que nos trazem tais conceitos). Este
mesmo artista vive uma discussão em paralelo com academia. Neste âmbito ele
deve ser racional e assuntos religiosos ou transcendentais não deveriam existir.
Por fim a mídia e a sociedade de consumo ainda o bombardeia. A resultante de
todas estas forças irá aparecer em seu trabalho artístico seja ele dançado ou
escrito.
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O impacto de descobrir a história da dança, que também é sua
Amanda Machado Pereira
O dançarino que até ontem estava na sala de ensaio treinando
exaustivamente um conjunto de passos ao som de determinada melodia, que se
prepara fisicamente para ser o corpo necessário no momento de apresentar-se,
está pronto para dançar, acredita-se. Entretanto, parte de nós, se inquieta com o
ato de “reproduzir” e segue em busca de criar algo que seja seu. Outra parte
angustia-se e busca entender o que fez com que ele e muitos antes dele
desejassem estar nesse espaço e ser esse “eu” dançante. Esse segue em busca da
história da dança.
De frente aos livros, artigos, vídeos, fotografias, biografias, relatos e
remontagens, o dançarino que foi preparado para dançar, mas não foi educado
para pensar as influências contidas no seu dançar, se redescobre impactado. Esse
impacto é por se reconhecer em muito do que é descoberto, - no real sentido de
se retirar o que tem função de cobrir - já que a produção cultural se entrelaça
com a multiplicidade das formas de vida de seus criadores e esses têm uma
forma de vida que se entrelaça com a multiplicidade de produções culturais
outras, advindas antes. Logo, quando em um processo criativo, tudo que
interpassa nossa forma de vida, seja pelos sentidos, seja por influências ocultas,
floresce no movimento.
O impacto surge não apenas de perceber influências de obras que apenas
lhe foram apresentadas por meio de citações, imagens e textos simplórios, - ou
nem o foram - mas também da necessidade que é despertada em você de
mergulhar profundamente em todo material existente sobre história da dança.
Dias e noites impactadas por uma necessidade angustiante, a de alcançar todo o
conhecimento que antes beirava a inexistência, ou, pelo menos, um abissal
distanciamento, que agora se encontra à sua espera.
Dúvidas incontáveis, cronologia, corpo, movimento. Não há tempo que
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permita um aprofundamento em tudo que existe sobre dança e, pior, não há
material sobre tudo que existiu sobre dança. Sem saber por onde começar, que
conhecimento represar, que técnica experimentar, ou ainda, a não
experimentação de técnica. Desse cenário surge um “ser pensante” na dança. Que
busca não apenas se mergulhar sob as influências, mas que muito além disso, usa
destas como estímulo para buscar o seu próprio modo de se expressar. Como
relatado por Martha Graham à Agnes de Mille “Você tem que se manter aberta e
alerta ao anseio que te motiva”.
Essa ânsia de descobrir e compreender como o cenário da dança se deu
até que tivesse a forma que tem hoje é de grande valia para a compreensão de
como coloco o meu dançar sobre o palco que escolho pisar, seja este um palco
convencional ou não, e do porquê o danço. E mais, essa ânsia me desloca e me
motiva a produzir um conteúdo que pode ser recheado de referências, mas
também é único e será referência para o que há de vir.
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Por mais histórias de perdedores
Bruna Belém A história da dança esteve por muito tempo às margens, em um
repertório de lamentações, devido à sua persistente interpretação como arte
efêmera e incapturável.
No entanto, as notações e documentações mantêm as obras em
movimento ao criar uma maneira de problematizar a não resistência e também a
resistência das artes do corpo no tempo. Assim, a história jamais se esgota.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, filme brasileiro de 1999, o
diretor Marcelo Masagão buscou apresentar a história do século XX sob a ótica
dos perdedores, ou seja, aqueles que não tiveram seus nomes eternizados pela
história canônica da humanidade, e com isso ativou dispositivos de investigação,
reflexão e reedição da memória individual e conjunta.
A morte é o motim disparador da questão do mutável, reorganizável e até
mesmo ilusório. À luz deste fenômeno, o filme aponta para experiências
singulares de indivíduos que consciente ou inconscientemente contribuíram
para o espetáculo da vida e a banalização desta. Sendo da ordem do
desaparecimento, esquecimento ou mesmo silenciamento, a morte é apresentada
nessa produção audiovisual de forma a subverter esse mutismo e atualizar a
história ao colocar os mortos na linha de frente, dando-lhes voz para sair de suas
prisões mortuárias e, com toda a potência que a arte nos concede, gritar,
provocar e resistir.
A humanidade se diz contemporânea tentando organizar uma linearidade
histórica para se legitimar frente ao tempo, paralelamente a isso deseja romper
com processos históricos de estruturação da sociedade, mas acaba reproduzindo
modelos e discursos aprisionados numa imobilidade estéril que não legitima
mais nada e muitas vezes também não questiona, não cria novos caminhos, não
reorganiza e não se permite ser mutável.
É muito comum falar que a dança fez diversas rupturas ao longo da
história e que essas criaram novos processos de estruturação, mas na maioria
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das vezes não passavam de oposição ao processo anterior. Rupturas e releituras
são nossos direitos, bem como nossos deveres enquanto vivos, mas é preciso
fazer uma ressalva aqui, já que não se trata de negar ou afirmar processos
anteriores, e sim de perceber que a estruturação da história (e da história da
dança) está em um estado que não deve parar de mudar, uma matéria fluente.
A modernidade virou líquida faz muito tempo e persistir em apenas um
ponto de ancoragem é tão ilusório quanto procurar apenas um centro de
referência que suporte a história de todos. É necessário apresentar centros em
pontos quaisquer, como nos propõe o filme de Masagão, que gerem uma
interpretação instantânea e não fixa, que nos deem movimento e nos abram
possibilidades para outras poéticas do existir e permear a terra tornando-nos
capazes de dar legitimidade ao que a história nos pede hoje e elevar o agora à
máxima potência.
A potencialização e a legitimação da arte possibilitam sua emancipação e
produção de discursos e, contrariamente à ideia de passar uma mensagem,
pensemos em estratégias de aproximação com o atual, de sensibilização e de
permeabilização sem desenvolver certezas absolutas, mas dando a ver de novos
horizontes que não nos imponham um lugar a chegar, mas amplie nossos modos
de ir e de ver.
Recriar, rever nichos históricos, reatualizar; falar mais do mesmo por
novos pontos de vista; ir contra as certezas impostas; resistir aos sensos /
dissensos; afirmar uma existência; traçar outra história para a história da arte;
firmar a conquista do poético-político nas forças de criação e se firmar como não
figurante, mas presente em sua obra e em seu tempo... Dessa forma, o artista, em
seu papel de produção de experiência estética e de subjetividade das questões do
presente, assegura agora um inventário diferente daquele que o coube outrora,
diferenciando-o do papel de criador de objetos ou movimentos para ser criador
de histórias que se sustentem por tempo indefinido.
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A dança da história que vejo daqui onde estou agora
Silvia Chalub
A história da dança parece algo tão imenso quanto a impossibilidade de
narrá-la. Restringir-se à dança cênica ocidental dos séculos XX e XXI poderia ser
uma solução, não fosse o tempo reduzido demais para dar conta de tamanha
extensão. Ao propor o desafio desse curso com cinco dias de duração, a
autodenominada megalômana professora Flavia Meireles montou sua estratégia:
dirigir nossa atenção para o contemporâneo, colocando-o e colocando-nos todos
em relação com os outros tempos. Essa foi minha percepção como aluna e após
ler um dos textos da bibliografia. Nos termos de Agamben, filósofo italiano que
em 2006 escreveu O que é o contemporâneo, o devir histórico não cessa de
operar no agora. Evocamos o passado através das sombras do presente, através
daquilo que não podemos ainda alcançar.
No segundo dia do curso, o filme Nós que aqui estamos por vós esperamos,
de Marcelo Masagão, trouxe de forma poética a memória do século XX,
sobrepondo diversas temporalidades. São variadas as formas de
pensar/perceber o tempo, seguimos por associações. Logo nos primeiros
minutos do filme vemos a dança de Nijisnky em L'après-midi d'un faune no teatro
onde foi apresentada pela primeira vez, em 1912. A imagem do Théatre du
Châtelet rompida em duas partes, como um desmoronamento, é o prenúncio do
que está por vir.
No início do século XX, as certezas do sujeito moderno estão ruindo. A
crescente industrialização, os avanços da ciência, a percepção do tempo e a
primeira grande guerra, para citar alguns fatores, colocam em crise todo um
sistema de crenças onde o sujeito se apoia. A representação, é claro, faz parte
deste processo em mutação. Pensemos na arte moderna, na fotografia e no
cinema nascente.
A obra de Marcel Duchamp é exemplar em traduzir o espírito desta época,
sendo considerada inaugural da arte contemporânea. Em 1912, no quadro Nu
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descendo a escada, estão presentes movimento e fragmento. Também a arte
futurista, que desponta na primeira década do século XX, explora essa temática.
Mas, em Duchamp, podemos ainda destacar o gesto do artista que transmuta o
gesto cotidiano, como vemos, por exemplo, nos objetos Roda de bicicleta (1913),
Porta garrafa (1914) e Fonte (1917). Com Duchamp, o sistema de arte (artista,
espectador, lugar de criação, lugar de exposição, circulação da obra, etc.) é
problematizado de modo irreversível.
O curso ministrado por Flávia utiliza o método cartográfico, conectando
acontecimentos, não elegendo a cronologia como ordem principal, muito pelo
contrário. Nosso exercício durante as aulas é sair do presente em busca de
resíduos. Noto, de onde estou, a relevância de Duchamp na arte e na dança
contemporâneas. Para restringir nosso campo, observo seu gesto artístico
repercutir na dança cênica norte-americana dos anos 60, em nomes como Anna
Halprin, Trisha Brown e os artistas do coletivo formado no Judson Dance
Theater. Eles investiram na experimentação e na investigação de novos modos
de fazer dança, exploraram os limites do corpo, das sensações e esticaram as
bordas da dança até a performance. Não que não houvesse experimentações em
dança antes deles, assim como também houve experimentações nas artes antes
de Duchamp. E é justamente por isso que os nomes que destaco aqui existiram e
persistem, porque estão em contato com muitos outros. Estou tão somente me
apropriando de alguns pontos dentro da multiplicidade para poder seguir.
A história é construída a partir de pontos de vista, lembra Flávia. E a
sobrevivência dos trabalhos artísticos deve-se muito aos textos escritos sobre
eles. Abrir brechas na matriz da dança cênica ocidental contemporânea,
primordialmente europeia e norte-americana, de onde vem o arcabouço teórico
que usualmente acessamos, é uma tarefa a ser realizada.
Somos um grupo de alunos com interesses heterogêneos. Alguns dos
presentes no curso atuam em danças urbanas, que a princípio não é dança de
palco, mas sim das ruas. Ressalto essa informação apenas para sublinhar um
possível canal de ativação para nossa pesquisa, mais uma entrada. Porque a
dança percorre sempre uma passagem, seja da rua para a cena, seja da sala de
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ensaio para o palco, há, continuamente, uma transposição de lugares. “Estar
entre” é o habitat natural da dança. Efêmera e residual, a dança é constituída por
presença e apagamento. A dança está entre o “por fazer” e o “já feito”.
Consciente de que o “estar entre” é um espaço privilegiado para o
conhecimento e a pesquisa, penso que a escrita sobre dança feita por corpos que
dançam deve servir para abrir espaços. Escrever é deixar marcas.
Em 2007, Jaques Rancière escreveu o artigo intitulado O espectador
emancipado. Convoco esse pensador francês para trazer à luz a questão do lugar
do espetáculo e da audiência. Há aí também uma passagem aberta entre essas
duas posições. Constata-se muito frequentemente na dramaturgia atual, e nem
tão atual, o desejo por um espectador que atenda ao chamado irremediável para
o ato, seja em cena, seja na vida. Operar a redistribuição dos lugares entre
performer e espectador é um caminho mais fortemente escancarado a partir dos
anos 60. Nesse texto, Rancière afirma a distância entre o ator e o espectador, e
destaca a distância entre esses dois e o espetáculo. Em suas palavras, a
performance é “um espetáculo mediático que se encontra entre a ideia do artista
e o sentimento ou a interpretação do espectador”. O livre trânsito entre os três
pontos (artista-espectador-performance) é, para Rancière, crucial no processo
de emancipação intelectual. Ele elege a palavra tradução para falar sobre o
espectador ativo, que se apropria da história contada para oferecer a sua
própria. “Uma comunidade emancipada é, na verdade, uma comunidade de
contadores de história e tradutores”, escreve quase ao final do artigo.
Para terminar, uma artista e pensadora brasileira, Lygia Clark. Em 1964
ela dá o nome Caminhando* à sua nova proposição. Sobre ela, Lygia escreve: “A
obra é o seu ato”. Lygia coloca em jogo a decisão implícita no agir. Aproxima
corpo, objeto e experiência. Sua obra extrapola a arte, extrapola seu tempo e
ativa a dança que dançamos.
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Anos 60/70
Marcondes Mesqueu
O rádio bombava e a televisão dava os seus primeiros passos. Na Escola
de Comunicação da UFRJ se discutia se a TV tinha uma linguagem própria ou se
era o resultado da soma do rádio com o cinema. Do outro lado do mundo a
Guerra do Viatnan fazia o seu papel de ceifar vidas. A juventude cantava Era Um
Garoto Que Assim Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones. Já naquela
época o tátátá da metralhadora era refrão e matava igual. Na política
internacional corpos “espetacularmente” se imolavam na tentativa de
sensibilizar pela paz. Beatles gritava Help! e na Terra Brasilis a CBS nos dava um
Rei, filho da Lady Laura. A agora pra vocês O Rei Roberto Carlos. Hoje, frente ao
distanciamento histórico arrisco a dizer que o nosso Rei da Juventude
representava uma contestação sobre controle. O seu cabelo grande não ia além
dos ombros. Vivíamos uma ditadura militar. As relações no meio da arte eram
contidas. A desconfiança estava no ar. Colegas sumiam para nunca mais voltar. A
Cinelândia era o palco da descoreografia das emoções. A censura com o seu
lápis vermelho riscava o que entendia e o que não entendia. Tínhamos uma
imprensa alternativa atuante em várias partes do Brasil. Reporte, Escaps,
Opinião, Pasquim, Beijo na Rua, EX, Bafafá... são algumas das diversas folhas que
se comprava nas bancas em que o jornaleiro “se arriscava” a ter pois em alguns
momentos grupos de estrema direita investiram contra as mesmas. Teve até caso
de explosão de banca e redação. Na periferia do centro do Rio a arte se fazia
existente em vários pontos como Marechal Hermes, Campo Grande, Caxias, Nova
Iguaçu,... Nesse conturbado cenário a liberdade dos pensantes e discordantes
estava ameaçada, porém o poder criativo se acendia e ascendia a cada
impedimento. Vivíamos regidos pelas metáforas. Se não era possível ser claro
nas ideias então as “figuras de linguagem” entravam em ação. A poesia
alternativa tomava fôlego e publicações como Panela de Pressão, Feto, Gandaia,
Poesia no Poste, Passa na Praça que a Poesia te Abraça ... ocupavam os espaços
públicos. A “geração mimeógrafo” era uma editora de versos. Na literatura vale
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ressaltar o nome da Heloisa Buarque de Holanda que entendeu, registrou e até
hoje milita intelectualmente com a produção artística que está fora das
prateleiras do enlatamento dos “chopins”. Tempos conturbadamente
tropicalista. Caetano cantava Alegria Alegria e depois bradou na Globo que era
“Proibido Proibir”. Vandré teve a sua existência de cidadão e poeta arranhada
pelo espinho da “revolução” quando falou de “flores”. O tempo passa e os
militares ensaiam uma saída “lenta e gradual” do poder. Começamos a respirar
ares mais amenos. Em tempo: no ensino médio entra Educação Moral e Cívica e
sai Estudos Sociais, Filosofia e Geografia Política. A História vira seleiro de datas
e acontecimentos pouco aprofundados. Na Avenida Presidente Vargas olhando
para Candelária bradamos DIRETAS JÁ! Ela veio e elegemos Tancredo Neves que,
vítima da fatalidade, morreu de diverticulite e ai... Haja luto! Haja decepção! Haja.
Aja.
Na Globo, Jô Soares fazia um quadro em que um português assistia a um
streap em sua televisão de casa. Toda semana uma modelo milimetricamente
gostosa ia tirando a roupa e o portuga enlouquecia com a possibilidade de ver
“aqueles seios maravilhosos”. Ela já estava quase semi-nua. Ia ser agora que a
danadinha ia mostrar o que de mais bonitinho tinha. Nas ruas algumas pessoas
comentavam que a censura tinha acabado e a democracia tinha sido recuperada
porque agora na TV o nu estava liberado. A TV da história e do portuga dá defeito
e sai do ar, a vítima lusitana chora e torce para que na semana que vem, sabe-se
lá quando, ele veja um corpo nu.
Desejo essa sorte pra mim, pra você e para o portuga, é claro, porque a
nossa vocação de ver o que não existe vem de longa data.
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Anotações Sobre Curso de Histórias das Danças Cênicas do Século XX/XXI
Rodrigo Bernardi
Entre os dias 12 e 16 de abril, a artista e pesquisadora, Flavia Meireles,
realizou o curso “Histórias das danças cênicas do século XX/XXI”, no Centro
Coreográfico do Rio de Janeiro, cuja iniciativa proporcionou uma série de
discussões a respeito da historiografia da dança cênica ocidental. A metodologia
utilizada indicou a seguinte estratégia: discutir histórias das danças com base em
narrativas de artistas brasileiros e estrangeiros, de forma que não tomássemos
os fatos históricos como dados universalizantes. Sendo assim, por que não
chamar a atenção para as histórias de artistas brasileiros que iniciaram suas
trajetórias em festas populares e danceterias?
Em particular, refiro-me aos que se dedicaram as danças populares
desenvolvidas nos Estados Unidos, a partir dos anos 60 e, cada qual ao seu modo,
buscaram refinar seus meios de produção coreográfica na medida em que
experimentavam outras atividades corporais, tais como a ginástica olímpica, as
artes circenses e a capoeira. Ainda que sejam classificadas1 como danças sociais,
festivas ou de entretenimento, é importante notarmos o surgimento de outras
histórias a partir de artistas que, digamos, aproximaram2 a dança “de rua”
adaptando-a aos meios de criação coreográfica relacionados ao balé, jazz e dança
contemporânea.
Tempos atrás, os grupos Jazz de Rua do Rio de Janeiro (1991-1995) e
Grupo de Rua (1996-) aderiram a tais atividades com o objetivo de auxiliar,
diante as inúmeras dificuldades de aprendizagem, o aprimoramento técnico em
torno da dança breaking. Desse modo, quando todos os dançarinos tinham que
aprender uma sequência de movimentos que seriam realizadas muito próximas
do chão, alguns fundamentos, supostamente, já tinham sido introduzidos, ou nas
1 Ver NEGRAXA, Thiago. As danças da cultura Hip Hop e Funk Styles. São Paulo: All Print, 2015;
RIBEIRO, CRISTINA, Ana; CARDOSO, Ricardo. Dança de Rua. Campinas: Átomo, 2011.
2 Tal aproximação pode ser conferida, dentre tantas opções, a partir da estrutura e desenvolvimento
coreográfico dos espetáculos Jam on the groove (1997), da companhia novaiorquina Ghettoriginal, Do
popping ao pop e vice-versa (2000), do Grupo de Rua, Raio-X (2003), da Membros Cia de Dança, Som
do movimento (2007), da Discípulos do Ritmo e Olho nu (2014), da Cia Híbrida.
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aulas de capoeira, ou por meio dos educativos da ginástica olímpica, ou através
da própria sequência, facilitando, portanto, o aprendizado.
Embora coreógrafos e dançarinos já estivessem habituados com a tarefa
de adaptar as coreografias realizadas socialmente – tendo em vista as
apresentações com os grupos de rap, ou no caso de ter que ajustá-las
rapidamente para a gravação de um videoclipe – tenho suspeitado que foi a
partir da criação de espetáculos de longa duração, que alguns coreógrafos
passaram a experimentar outras vias criativas, pois acreditavam que poderiam ir
além dos padrões vigentes em competições de dança. Creio que nos casos de
Bruno Beltrão e Renato Cruz, seus anseios artísticos partiram fortemente da
ideia de ter que produzir outras paisagens coreográficas, com corpos que se
movem desse ou daquele jeito, em vez de seguir fielmente o “regimento interno”
das danças urbanas ditas “clássicas”, possibilitando, então, que brechas históricas
fossem exploradas em meio as que nos são contadas. Ou seja, histórias das
danças transfiguradas em biografias de célebres artistas3.
Como exposto anteriormente, o objetivo do curso foi provocar discussões
em torno da dança cênica dos séculos XX e XXI, com base em narrativas de
artistas brasileiros e estrangeiros, porém, sem perder de vista o fato de que as
narrativas são motivadas e transmitidas de muitas maneiras: a minha foi uma
delas, e de algum modo se mistura com a interpretação de colegas que
ingressaram no mundo da dança de rua nos anos 90. Como devem ter notado,
partilhei alguns fatos sem a perspicácia de um historiador da dança, acreditando
que tanto a minha interpretação como todas as outras merecem atenção especial
no que diz respeito à sua validação. Ora, porque se deve acreditar num conjunto
de fatos que se segue dessa e não daquela maneira? Flavia nos deu uma dica:
“cada um de nós é uma história da dança e devemos estar atentos aos modelos
históricos hegemônicos, tanto os evidenciados textualmente, quanto os que são
transmitidos por meio da oralidade”.
Por fim, procurei mostrar que mesmo sob influência das street dances norte-
americanas, nos últimos vinte anos, no Rio de Janeiro, como em outros Estados, 3 Sobre o tema, recomendo GUARATO, Rafael. O culto da história na dança: olhando para o próprio
umbigo. In: VI CONGRESSO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS,
Uberlândia, 2010. <Disponível em:
http://www.academia.edu/15288806/culto_da_história_na_dança_olhando_para_o_prório_umbigo >.
Acesso em: 27 abr. 2016.
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alguns artistas estão elaborando suas obras com pouco interesse em preservar o
aspecto “tradicional”, “original” e “essencial” destas danças, até por que a história
que temos aqui hoje é diferente. O que herdamos é só uma parte do que já
aconteceu.