revista de psicanálise...com certo ideal iluminista. não podemos nos esquecer, por exemplo, que na...

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Revista de Psicanálise n. 0

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Revista de Psicanálise

n. 0

Editorial

Uma nuvem paira sobre a psicanálise e sobre a sua transmissão por décadas a

fio. O chamado “freudolacanismo” condensa um programa de continuação dogmático e

unificado ao redor da autoridade de seus pais fundadores. Dentro dessa doutrina, indagar

os psicanalistas lacanianos sobre definições claras e objetivas a respeito dos conceitos

que organizam nosso campo, ou ainda, sobre o que se faz em uma análise, deixa evidente

que o que de fato se apresenta a nós é uma profunda divergência. Infelizmente, "clareza"

não parece ser um vocábulo do dicionário dos analistas que sustentam essa continuidade,

onde parece ser preferido uma miríade de repetições vazias, ainda mais quando o assunto

é recheado de aforismos. Parece ser desnecessário explicá-los, e esse linguajar

característico - o famoso “lacanês” - acaba afastando aqueles que iniciam neste campo. É

fato, esse obscurantismo lacaniano, tema desta primeira revista, transita na contramão da

proposta de Lacan com seu Ensino. Ele teria deixado como legado a tarefa de inserção da

psicanálise no debate das luzes. Ainda assim, cada vez mais se reforçam os obstáculos a

uma transmissão racional, crítica e democrática. Falamos para os abastados.

Sendo assim, e pensando na psicanálise porvir, a revista "Borda" é criada sob o

desejo de oferecer uma outra leitura da teoria lacaniana, descentrada do Um, situando-se

à margem não apenas de modo periférico e destoante, mas também como borda em uma

topologia própria. Com efeito, um de seus intentos é endereçar ao leitor chaves de leitura

para que este possa se aproximar de áreas supostamente apagadas do texto lacaniano.

Bem como as matemáticas, os textos que se seguem se organizam sob o ideal de

funcionarem como ferramentas, como instrumentos de trabalho que possibilitem uma

diferente abordagem da psicanálise.

Não por acaso, o bastião da nossa orientação é o corte topológico. Sustentamos

assim, acima de tudo, que a legítima tarefa do psicanalista francês foi se debruçar contra

o imperativo das ciências biológicas, do individualismo moderno e da metafísica. Três

focos que parecem ainda hoje assombrar nossa comunidade. Desse modo, propomos aqui

retomar o caminho formal, lembrando que esta é uma aposta de transmissão acessível que

impede o avanço do irracionalismo predominante em nosso meio.

Que fique claro, em hipótese alguma, este projeto não se supõe como a verdade

sobre o que disse Lacan. O que não quer dizer que não nos apoiamos em uma decisão

conceitual rigorosa, política e cheia de consequências práticas. Entregamos, portanto,

uma proposta teórica que se pretende sustentar em uma série de publicações dedicadas a

este mesmo ideal. Radicalizando seus fundamentos – linguística, lógica, topologia e

antifilosofia –, há de se pensar, por fim, uma crítica imanente que torne visível não os

floreios quase religiosos da sagrada escritura, mas sim as gritantes inconsistências

internas ao nosso campo, para que daí possamos propor uma conjectura lógica,

sistemática e argumentativa. Acreditamos que esta é a única forma de constituir uma

comunidade.

Ao leitor, deixamos um aviso: a escolha da ordem dos textos aqui presentes não

se trata de acaso. A investigação do leitor não modesto permitirá deduzir o percurso.

Sumário

Por uma psicanálise inconsistente ................................................................................... 4

Paulo Henrique de Oliveira Arruda

Pedro Henrique de Oliveira Costa

“Lacan é um autor difícil!”: a propaganda de classe do inimigo como estratégia

obscurantista .................................................................................................................. 28

Camila Quinteiro Kushnir

Questões preliminares a todo tratamento possível do Matema. Do

terrorismo dogmático à lógica cosmopolita ................................................................... 41

Augusto Corrêa Vaz de Melo

Afinal, o que disse Lacan? – o inefável, a vivência e o rechaço ao matema ................. 54

Ramiro Faria de Melo e Souza

O obscurantismo no real lacaniano ................................................................................ 65

Jefferson Weyne Silva Soares

Obscurantismo institucional: os impasses e entraves da transmissão em sua

própria casa de circulação .............................................................................................. 71

Bruno Oliveira

A escola de psicanálise como procedimento de sujeição do discurso: como o

obscurantismo na formação do analista serve à manutenção do poder nas escolas ...... 79

Jessika Gomes do Carmo

Os equívocos sobre a incompreensão da psicanálise enquanto sintoma ....................... 88

Priscilla Ribeiro G. Costa

O silêncio dos analistas: sintoma de um ideal ............................................................... 95

Lucas C. S. Pires

A formação além do espelho: por uma leitura não modesta .......................................... 16

Revista Borda - n. 0, janeiro de 2020. Site: bordalacaniana.com

Por uma psicanálise inconsistente

Paulo Henrique de Oliveira Arruda

“A psicanálise é Freud.”

(LACAN, 1974)

1. Qual obscurantismo?

Há várias formas de trabalhar a noção de obscurantismo lacaniano. Uma das

maneiras mais imediatas de se aproximar desse tema é produzir uma série de

argumentações críticas sobre como as instituições lacanianas e seus respectivos

representantes manejam um idioma que no final das contas parece ser feito para produzir

um espaço de exceção onde apenas os eleitos podem efetivamente compreender aquilo

que é veiculado. Chamamos tal idioma de lacanês. O curioso da referida situação é que

não é nada fácil encontrar um correlato dentro da psicanálise ou da história do pensamento

humano. Não existe, por exemplo, um freudianês ou um kleinês, assim como não existe

um platonês. Poderíamos explorar as razões para tanto, contudo, minha proposta com o

presente artigo é falar do obscurantismo lacaniano a partir da figura do próprio Lacan, e

não daqueles que reclamam o seu legado.

Por obscurantismo do próprio Lacan não quero comentar o seu estilo, a aparente

forma elíptica com que construía as suas frases e dava luz aos seus conceitos. Sabemos

que a fama do francês assusta e produz críticas não apenas de estudantes de primeira

viagem, mas também de pensadores renomados. Não acredito que Lacan seja um autor

simples, mas isso não quer dizer que ele seja necessariamente, como muitos sustentam,

difícil ou mesmo impenetrável.

Sendo assim, quando falo de obscurantismo lacaniano estou falando de algo

muito específico: do obscurantismo de Lacan em relação à figura de Freud. No momento

esse tema me parece mais frutífero, além de comportar uma série de possibilidades. Se

abordarmos especificamente a percepção que temos em relação à obra de Freud podemos

começar com alguns apontamentos.

A relação da psicanálise com outras disciplinas é um debate de difícil trato.

Retornando um pouco aos seus fundamentos, como em Freud, já percebemos que o

referido autor estava consciente dessas relações. Em 1924, no texto “Resumo da

psicanálise”, ele diz o seguinte:

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A psicanálise nasceu no século XX, por assim dizer. A publicação com que se

apresentou ao mundo como algo novo, minha Interpretação dos sonhos, tem a

data de 1900. Mas, naturalmente, não brotou das rochas nem caiu do céu.

Liga-se a coisas anteriores, a que dá prosseguimento; resulta de estímulos que

veio a elaborar [grifo nosso] (FREUD, 1924b/2011, p.223).

Ou seja, aqui Freud já deixa muito claro que a sua visão sobre a gênese da

psicanálise está necessariamente atrelada à história de um vasto campo de influências

anteriores. Além disso, não custa lembrar que Freud frequentemente faz em seu texto

extensas referências aos autores dos quais ele está se servindo para elaborar as suas

formulações, seja para tomá-los de forma fidedigna, seja para subvertê-los e avançar um

pouco mais nos conceitos utilizados. Esse é o elemento explícito desse debate.

No entanto, a despeito de tais indicações, não é incomum escutar dos

psicanalistas que a psicanálise seria uma espécie de prática sem precedentes, algo

construído a partir do gênio de um titã que estava apartado de qualquer influência de seus

contemporâneos ou antepassados, todos atrasados em seus mais reprováveis preconceitos.

Esse é o aspecto da discussão que é alimentado pelo culto ao gênio que temos em nossa

comunidade.

Acontece que a psicanálise não findou com Freud e talvez não estaríamos

exagerando se disséssemos que, depois dele, Jacques Lacan foi o psicanalista mais

importante para nossa comunidade. No entanto, ao contrário do criador da psicanálise,

este é geralmente tomado como alguém que podemos rastrear muito bem as referências.

Todos nós nos sentimos muito seguros ao dizer que, no final das contas, tais referências

desembocam sempre no mesmo ponto: Freud. “Lacan disse que era freudiano” talvez seja

o pensamento que mais represente essa linha de raciocínio.

O procedimento mais simples para colocar em xeque essa leitura seria promover

uma espécie de retorno à obra de Lacan com o intuito de mostrar as incontáveis vezes em

que ele critica Freud explicitamente. Obviamente essas citações existem e não são nada

difíceis de serem encontradas (apesar do esforço contínuo para tirar os holofotes dessas

passagens). No entanto, a presente situação ganha contornos mais dramáticos se

considerarmos que, nesse retorno, invariavelmente encontraríamos também inúmeras

citações de Lacan prestando não só reverências à Freud, mas também assinalando que

muitos de seus conceitos podem ser encontrados na obra do psicanalista vienense.

Nesse sentido, Lacan é um autor muito curioso, pois trata-se de alguém que borra

de forma intencional constantemente os aportes que traz para seu campo de trabalho. Em

suma, um autor que não reclama autoria. Se Lacan nos parece no que tange a Freud um

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autor obscuro, uma das saídas viáveis para contornar esse impasse seria, no meu

entendimento, promover um inusitado retorno a Freud.

2. Por que retornar em 2020?

Sobre essa ideia de retorno podemos invariavelmente discuti-la a partir de uma

série de perspectivas. Deixemos um pouco de lado a notação ingênua de que o retorno a

Freud que Lacan faz tem a intenção de conservar a obra do pai da psicanálise, salvá-la

dos malvados psicólogos do ego para, a partir disso, passar uma vida inteira dizendo o

mesmo que seu precursor.

Um argumento mais refinado seria o de que Lacan, no seu retorno a Freud, busca

no final das contas retomar aquilo que foi o mais subversivo da obra freudiana. O caso é

que o subversivo aqui tem muito a ver com as primeiras obras da psicanálise:

Interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e os Chistes e suas relações

com o inconsciente. É essa tríade que Lacan constantemente elogia e à qual faz extensas

reverências.

Muito bem, eu diria que é justamente esse tipo de retorno que devemos evitar.

Tal retorno está intimamente comprometido com uma apreciação localizada, parcial e

reducionista dos postulados freudianos. É inclusive por isso que talvez seja mais do que

nunca necessário dizer em alto e bom som que talvez não estejamos plenamente cônscios

da extensão dos conceitos desenvolvidos por Freud. A figura de Lacan e todo o seu show

pirotécnico discursivo atrai tantos olhares que é muito comum dizer “não consigo

entendê-lo”, geralmente acompanhado do seguinte complemento: “mas Freud é uma

delícia de se ler”. Ou seja, tomamos o estilo barroco de Lacan como atestado de sua

dificuldade, bem como a aparente clareza de Freud como um sinal de que é muito fácil

compreender seus postulados. Essa me parece ser uma armadilha perigosa.

O retorno a Freud que proponho seria um retorno mais comprometido com a

obra como um todo. Além disso, minha intenção é ler sem a pretensão de ocultar

elementos pouco comentados na transmissão da psicanálise freudiana. Diria que seria

necessário empreendermos um movimento de fidelidade ao texto, no sentido de estarmos

atentos não apenas às suas bases, mas também ao seu desenvolvimento e horizonte

teórico-clínico. Obviamente, a ideia de fidelidade que estou propondo nada tem a ver com

um movimento de retorno no sentido messiânico do termo, como se a verdade sobre a

psicanálise pudesse ser encontrada nos escritos de Freud.

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Nesse sentido, talvez poderíamos dizer que o retorno que proponho tem a ver

com certo ideal iluminista. Não podemos nos esquecer, por exemplo, que na contracapa

de seu livro “Escritos”, Lacan assinala que

é preciso haver lido essa coletânea, e em toda a sua extensão, para perceber

que nela prossegue um único debate, sempre o mesmo, o qual, mesmo

parecendo marcar época, pode ser visto como o debate das luzes. Pois há um

âmbito onde a própria aurora tarda: aquele que vai de um preconceito, do qual

a psicopatologia não se desvencilha, à falsa evidência da qual o eu se autoriza

a pavonear a existência. Lá, o obscuro passa por objeto florescendo a partir do

obscurantismo que ali encontra seus valores.

Aqui Lacan está precisamente alertando que o seu projeto tem um caráter

iluminista, visto que estava preocupado em rechaçar o obscurantismo que permeava a

teoria e a prática psicanalítica. O diagnóstico dele era de que esse cenário favorecia o

florescimento de posições místicas dentro do nosso campo:

Temos certa dificuldade de tornar inteligível, num meio que se envaidece do

mais incrível ilogismo, o que comporta interrogar o inconsciente tal como o

fazemos, isto é, até que ele dê uma resposta que não seja da ordem do êxtase

nem do abatimento, mas, antes, que "diga por quê" [grifo nosso] (LACAN,

1960/1998, p.810).

Contudo, por ele dizer que estava comprometido com certo iluminismo não

devemos inferir que seu ensino de forma geral estava alinhado com tal direcionamento.

Na verdade, sustento que é justamente ao falar de Freud que Lacan assume posições mais

obscurantistas. Talvez mesmo por isso (mas com certeza não só) temos em curso já há

algum tempo um movimento chamado “Lacan elucidado”.

Aos que por um milagre não estejam familiarizados com o projeto, trata-se de

uma iniciativa de Jacques Alain-Miller, herdeiro legal e intelectual da obra de Jacques

Lacan, que em linhas gerais teria o papel de disseminar a verdade da obra do mestre.

Curiosamente esse projeto foi lançado aqui no Brasil, com um compilado de conferências

dadas por Miller entre os anos de 1981 e 1995. Elucidar quer dizer explicar, tornar claro,

compreensível, e é interessante o fato de muitos psicanalistas aderirem ao projeto.

A antropóloga Antonio (2015), que fez uma tese em que investigava o

funcionamento de algumas escolas lacanianas de psicanálise no Brasil e na Argentina,

mostra isso com uma clareza quase desconcertante. Vejamos o trecho de uma entrevista

gravada com um psicanalista de São Paulo:

eu escolhi ficar no Campo Freudiano porque eu acho que tem uma

qualidade imensa. Eu fui ver o Fórum [EPFCL], mas comecei a estudar o

Miller e pensei: “Eu gosto desse cara”. O Miller tem uma lógica excelente,

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conseguiu sustentar [sua liderança] e transformou a orientação lacaniana no

que é hoje. Já passou mais de dez anos da cisão, hoje nós temos uma

Associação Mundial de Psicanálise muito forte no mundo inteiro, todo

mundo trabalhando sob uma mesma orientação, colocou mais de dois mil

analistas pra trabalhar. [...] A parte famosa é que Lacan tava dando os

seminários e Miller sempre o interrogava, conversava com Lacan. Lacan, num

belo momento, falou: “Ao menos um aqui me entende”. Pô!, essa

marca do Lacan no Miller marcou o cara pra sempre! É duro você receber

do papa uma bênção, tá certo?! Ainda mais casado com a filha. [...] De uma

certa maneira, deu uma millerizada nos seminários. Tem pessoas que

preferem estudar no pirata, na gravação autêntica dos seminários, não

querem que passem por Miller. Mas o cara ajuda demais a entender [os

textos de Lacan]. Lacan escreve, às vezes, de maneira muito enigmática, e

Miller dá uma orientada nisso [grifo nosso] (ANTONIO, 2015, p.90-91).

Ou seja, para muitos psicanalistas Miller de fato ocupa esse papel de ordenador

e decifrador do texto lacaniano. Sobre isso, em 1997 Miller escreve no prefácio de seu

famoso livro as seguintes palavras:

Já se conhecia Lacan no Brasil, mas não melhor que na França: apenas o

suficiente para que a imagem de seu personagem não impedisse que este ou

aquele de seus enunciados acenasse a um ou a outro que acertasse na

mosca, e que incitasse ao deciframento. [...] Em suma, exige uma

interpretação. Lacan passava por obscuro mesmo para aqueles que eram

seus alunos. O enigma exige um decifrador. O que eu fui [grifo nosso] (Miller,

1997, p.10).

Nesse sentido, talvez poderíamos falar que Miller empreende um projeto

iluminista com a obra de Jacques Lacan (ele elucida), mas um iluminismo às avessas,

posto que pretende decidir o que o leitor vai ler ou não, o que vai entender ou não, o que

vai problematizar ou não, pois a verdade do texto está sempre nas mãos de seu decifrador,

afinal, ele esclarece que, “como São Paulo, fiquei na posição de organizar e espalhar uma

verdade” (Miller, 1997, p.17). Em tempo, o Lacan de Jacques Alain-Miller é em muitos

pontos em irrestrita continuidade com Freud, no sentido de assentimento de seus

conceitos.

Retomando, o projeto iluminista que estou propondo de retorno a Freud não se

insere como uma tentativa de decidir seu valor e seu sentido. Enveredar por uma

empreitada desse tipo seria no final das contas estabelecer a ideia de que seria possível

retirar A leitura de um texto, desqualificando todas as demais e entrando em uma perigosa

lógica de totalidade. No entanto, por isso também não quero dizer que qualquer leitura

seja possível e válida, pois assim cairíamos em um relativismo ingênuo prenhe das mais

bizarras deformações.

Minha ideia seria, na verdade, jogar luz sob uma série de questões que hoje nos

parecem absolutamente esquecidas. Por exemplo, o papel de aspectos biológicos e

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filogenéticos na obra do pai da psicanálise, largamente negligenciados dentro da

comunidade analítica como um todo, afinal, é muito comum sustentar que depois de 1920

Freud definitivamente abandona a biologia - isso quando não se diz que ele já abandona

qualquer pretensão desse tipo em 1900. O segundo dualismo pulsional seria, nesse

sentido, uma ruptura definitiva com qualquer pretensão freudiana de enveredar pelas

ciências naturais.

É aqui que encontramos alguns problemas de ordem prática no retorno que estou

propondo. Se desde cedo nos espaços que entramos em contato com a psicanálise (livros,

universidades, escolas, eventos) somos instigados a enxergar a psicanálise freudiana

como uma teoria que se ocupa dos fenômenos psíquicos a partir de um lugar de

desvinculação de aspectos biológicos e filogenéticos, torna-se muito mais difícil

conseguir enxergar tais elementos nos textos originais.

É importante dizer que essa dificuldade não me parece ter relação com estar

cansado ou ser negligente com a leitura por assumir uma posição de indiferença. Nossa

incapacidade de enxergar determinados elementos nos escritos de Freud advém da nossa

formação, de como tomaram gentilmente as nossas mãos e decidiram que elementos

iríamos reconhecer ou não no texto do referido autor. É a partir dessa (des)orientação que

a nossa leitura não consegue identificar o que está em jogo em frases cristalinas. Por

exemplo, comentando um pouco as relações existentes entre a teoria de Empédocles e a

teoria dos instintos, Freud diz:

Mas nosso interesse cabe a uma doutrina de Empédocles que se acha tão

próxima da teoria psicanalítica dos instintos que ficamos tentados a afirmar

que são idênticas, não fosse pela diferença de que a do grego é uma fantasia

cósmica, enquanto a nossa se contenta em reivindicar uma validade biológica

[grifo nosso] (FREUD, 1937/2018, p.315).

Ainda sobre o instinto:

Por mais que a psicanálise se empenhe em desenvolver suas teorias de modo

independente das demais ciências, ela é obrigada, no caso da teoria dos

instintos, a buscar apoio na biologia [grifo nosso] (FREUD, 1923b/2011,

p.306).

Falando um pouco sobre as excursões da psicanálise em outros campos ele

assinala que:

Nisso nos damos conta de que frequentemente fomos obrigados a nos aventurar

além das fronteiras da psicologia. Os fenômenos de que nos ocupamos não

pertencem apenas à ciência psicológica, têm também um lado orgânico-

biológico, e, portanto, em nossos esforços pela criação da psicanálise fizemos

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também significativos achados biológicos e não pudemos evitar novas

suposições biológicas [grifo nosso] (FREUD, 1938/2018, p.257).

E sobre apostas no futuro:

A biologia é verdadeiramente um campo de possibilidades ilimitadas;

podemos esperar dela as mais surpreendentes revelações, e não somos capazes

de imaginar as respostas que em algumas décadas ela dará às questões que lhe

dirigimos. Talvez sejam respostas tais que façam ruir todo o edifício artificial

das nossas hipóteses [grifo nosso] (FREUD, 1920/2010, p.234).1

Em solo brasileiro há alguns poucos estudiosos que se propõem a trabalhar essa

dimensão biológica da obra de Freud. Richard Simanke é um deles. Em um artigo sobre

o instinto em Freud, para tomar apenas um conceito como exemplo2, Simanke (2014)

defende que Jacques Lacan e Laplanche foram os autores que mais contribuíram para um

movimento de desnaturalização do conceito de trieb enunciado por Freud. Na visão dele,

tal empreendimento teve uma série de consequências, como a disseminação da percepção

de que as traduções até pouco tempo disponíveis no Brasil – como a da Standard –

estariam equivocadas por assumirem o termo “instinto” em vez de “pulsão”. Tratar-se-ia

daquilo que Simanke chamou de uma “visão consolidada”3.

No entanto, as coisas ficam bastante complicadas se tomarmos como dada a ideia

de que Lacan lia o conceito de trieb de Freud como algo dissociado da biologia. Tomando

tal assertiva como verdadeira teríamos que desconsiderar não só o fato de que Lacan

estava consciente que, por exemplo, o instinto de morte em Freud tinha relações com esse

campo:

Todos temos em comum, nesta assembleia, uma experiência fundamentada

numa técnica, num sistema de conceitos ao qual somos fiéis, tanto por ele ter

sido elaborado por aquele mesmo que nos abriu todos os caminhos dessa

experiência, quanto por trazer a marca viva das etapas dessa elaboração. Ou

seja, ao contrário do dogmatismo que nos imputam, sabemos que esse sistema

permanece aberto, não apenas em seu acabamento, mas em vários de seus

pontos de articulação. Esses hiatos parecem conjugar-se na significação

enigmática que Freud promoveu como instinto de morte: testemunho,

semelhante à figura da Esfinge, da aporia contra a qual se chocou esse grande

1 A ideia de que a biologia tinha um lugar privilegiado no interior do edifício da psicanálise freudiana era

tão forte que em 1933, ao escrever sobre a morte de Ferenczi, o vienense conjectura (FREUD, 1933/2010,

p.468), assim como o húngaro um dia conjecturou, que provavelmente em algum momento teríamos uma

bioanálise. 2 Indo um pouco além de Simanke também poderíamos discutir elementos biológicos e filogenéticos que

atravessam outros conceitos e ideias psicanalíticas enunciadas por Freud, como Eu (FREUD, 1937/2018,

p.308), Super-eu (FREUD, 1923/2011, p.43), Id (FREUD, 1938/2018, p.260), complexo de édipo (FREUD,

1924/2011, p.205), castração (FREUD, 1938/2018, p.250), conteúdo dos sonhos (FREUD, 1938/2018,

p.218), neurose (FREUD, 1925/2011, p.117) [...] etc. A lista é longa. 3 Sobre isso convém lembrar que uma das mais recentes e conceituadas traduções de Freud foi feita por

Paulo César de Souza pelo selo da Companhia das Letras. Curiosamente ele manteve o termo “instinto” em

vez da celebrada “pulsão”.

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pensamento, na mais profunda tentativa já surgida de formular uma

experiência do homem no registro da biologia [grifo nosso] (LACAN,

1948/1998, p.104).

Como também teríamos que ignorar afirmações que parecem muito mais radicais:

Encontramos na pena de Freud a ideia de que Eros se funde [...] por formar

Um com os dois. Ideia estranha, da qual provém a ideia absolutamente

exorbitante que se encarna na pregação do amor universal, a qual, no entanto,

o caro Freud repugna com todo o seu ser. [...] Contudo, a força fundadora da

vida, do instinto de vida, como ele se expressa, estaria toda nesse Eros, que

seria um princípio de união. Não é apenas por razões didáticas que eu gostaria

de produzir diante de vocês o que se pode dizer para rebater essa mitologia

grosseira, afora o fato de que isso talvez nos permita não só exorcizar Eros -

refiro-me ao Eros da doutrina freudiana -, mas também o querido Tânatos, com

o qual nos chateiam há muito tempo [grifo nosso] (LACAN, 1971-1972/2012,

p.151).

Taxativamente o francês ainda assevera que “há algo sobre Freud que se prestava

à confusão em que se incorreu ao traduzir trieb por instinto” (LACAN, 1973-1974/2018,

p.142), e não podemos nos esquecer das inúmeras vezes em que Lacan usa sem

constrangimentos o termo “instinto” para se referir ao trieb freudiano.

No entanto, as coisas não são tão simples. Ao mesmo tempo em que podemos

encontrar tais citações no ensino de Lacan – raramente na transmissão contemporânea de

sua teoria – também podemos nos deparar com um Lacan que diz enfaticamente que “a

pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto (nenhuma das expressões de Freud permite

essa confusão)” (LACAN, 1964/1998, p.865).

Essa heterogeneidade da obra lacaniana não é notada por Simanke, mas nos

perguntamos até que ponto poderia ser diferente, posto que em nossa formação as citações

largamente ventiladas de Lacan são justamente aquelas em que ele parece sustentar a ideia

de que a trieb de Freud nada tem a ver com instinto, como a última dessa série.

3. A inconsistência como fundamento para o porvir

De qualquer forma, as citações até então apresentadas são interessantes para

pensar a ideia de inconsistência dos textos. Creio que é preciso resgatar essa dimensão

em nossa formação, ou seja, fazermos um esforço para minorar em larga escala o

imaginário contido em nossos estudos que impossibilita a caída de certos ideais de boa

forma.

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Além disso, é preciso dizer que estamos diante não apenas daquilo que

convencionou-se chamar de “Lacan elucidado”, mas também daquilo que poderíamos

chamar de “Freud explicado”.

Nesse sentido, proponho ser inviável deselucidar o primeiro sem se preocupar

em desexplicar o segundo. Creio que apenas com o devido retorno a Freud poderemos

fazer uma apreciação mais ampla dos textos lacanianos, o que quer dizer que teremos

condições de minorar em grande escala todas as tentativas do francês (e de qualquer um

de seus decifradores) de decidir, por exemplo, que Freud já tinha dito aquilo que ele

(Lacan) disse.4

Curiosamente, enquanto métodos desse iluminismo às avessas a elucidação e a

explicação acabam produzindo um enfraquecimento do texto desses autores. Goldenberg

(2017) notou que se temos cerveja sem álcool e café descafeinado, o movimento de Miller

acaba entregando uma psicanálise lacaniana deslacanizada. Adicionaríamos à reflexão a

ideia de que também temos em curso, pelo menos no que tange a alguns conceitos, algo

como uma psicanálise freudiana desfreudianizada.

Nesse sentido, é importante sublinhar que a ideia de que não existe um outro

Lacan serve à manutenção de uma determinada leitura hegemônica e, portanto, está

intimamente ligada com o exercício de um poder. Trata-se da mesma coisa quando

escutamos, por exemplo, que não existe um outro Freud. Que só exista um Lacan ou um

Freud todo mundo sabe, afinal, aqui estamos falando de pessoas. No entanto,

teoricamente trabalhamos com textos, o que quer dizer que as coisas não são tão simples

quanto parecem. Cada texto comporta potencialidades esquecidas, passagens censuradas

e caminhos ainda não pavimentados.

Se uma das características de um bom analista é conseguir identificar as

inconsistências no texto do analisando, seria interessante indicar que essa disposição

poderia estar presente desde cedo na apreciação que fazemos dos textos dos autores que

consideramos fundamentais para o nosso campo. Dar um bom tratamento para essas

inconsistências em vez de rechaçá-las me parece uma via profícua de trabalho.

4 Esse trabalho de desambiguação me parece interessante em um primeiro momento na medida que denota

um cuidado e rigor maior com a nossa teoria e suas especificidades dentro de uma perspectiva

epistemológica. Infelizmente o nosso cenário atual aponta para o exato oposto e não é difícil encontrar

psicanalistas buscando fazer uma fusão de conceitos freudianos e lacanianos. Nasio (1993), para ficarmos

em apenas um exemplo, procura explicar a tipologia dos gozos propostos por Lacan através dos três destinos

da energia psíquica propostas por Freud.

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Além disso, é justamente a partir do vislumbre de uma inconsistência que

podemos efetivamente produzir algo novo, o que quer dizer que enquanto psicanalistas

contemporâneos é nosso dever não assumirmos a posição de fiadores de uma

teoria/prática estéril e incapaz de sair da sombra dos seus chamados “pais fundadores”.

Sendo assim, gostaria de finalizar o presente artigo resumindo a história de dois

sequestros. Primeiro o de Lacan, que todo santo dia é acorrentado pelos psicanalistas e

professores que, olhando para os mais novos com desdém, desencorajam sua leitura

dizendo que Lacan é um autor muito difícil, ou afirmando que só se pode falar da teoria

do francês depois de ler todos os 27 seminários, mais Escritos e Outros Escritos. Diante

disso deveríamos perguntar, por exemplo, se essa política de transmissão não acaba sendo

um dos fatores para que os jovens estudantes de psicanálise pareçam com frequência tão

neuróticos em relação a teoria, no sentido de se colocarem como incapazes de formular

qualquer coisa que seja sobre a psicanálise. Leem muito, é verdade, mas não se sentem

seguros para perguntar, falar ou escrever sobre aquilo que tanto investigam. Inibições.

Em outro nível o psicanalista francês também é vítima (embora também

cúmplice) de um sequestro que tem como protagonista Jacques Alain-Miller, o

elucidador, aquele que decide o que o mestre disse e consequentemente o que os outros

discípulos irão não só ver, mas também entender.

O outro sequestro é o de Sigmund Freud, que embora tenha passado por vários

cativeiros terá para sempre como seu primeiro grande sequestrador um controverso

Jacques Lacan.

13

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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15

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A formação além do espelho: por uma leitura não modesta

Pedro Henrique de Oliveira Costa

1. A formação do leitor

Na busca pela formação em psicanálise, de vir a ser um psicanalista, um leigo, em

2020, tem à disposição as mais variadas ofertas de ensino, através de cursos presenciais,

à distância, grupos de estudo, materiais disponíveis na internet, vídeos, áudios e livros,

que percorrem o vasto campo da experiência psicanalítica.

O interessado, se fizer uma breve pesquisa na internet, notará que dentre os

diversos caminhos possíveis há um grande número de institutos, escolas (como a maior

delas mundialmente em número de membros1) e associações que se referenciam –

operando amparados em um discurso, uma teoria e uma leitura – como freudolacanianos.

O termo consta frequentemente na apresentação destas instituições, intitulando e

descrevendo seus trabalhos, textos, artigos, revistas, cursos – como, por exemplo: “a

psicanálise de Freud a Lacan”, muitas vezes tratando a obra do último como um

prosseguimento, um avanço, daquilo que já estaria no primeiro, e “a psicanálise de Freud

e Lacan”, que supõe que é preciso tomar estes autores juntos para a compreensão da

experiência psicanalítica.

Esta denominação é legítima de uma leitura – uma política, estratégia e tática de

transmissão e de prática – por meio da qual muitos profissionais da saúde mental se

denominam como sendo psicanalistas freudolacanianos. Emblema que também

representa um dado agrupamento de ideias sobre o mundo2, uma clínica3 e um idioma4, o

lacanês5, uma forma de glossolalia, muito falado para nada dizer.

Em relação a Freud, este passa a ser lido com Lacan em um modo de se buscar

um sentido e relação entre o pensamento de ambos. Não só Lacan é tomado através de

um paradigma biologicista, com o corpo, por exemplo, sendo interpretado por um outro

1 Se trata da ECF, École de la Cause Freudienne, ligada a AMP (Associação Mundial de Psicanálise,

segundo Christian Dubuis Santini em “Lacan, Nous et le Réel-30ème- RETOUR À LACAN”. (2019).

Disponível em: <https://youtu.be/FbdqjA8TRtk>. 2 Tal como o mundo desbussolado, onde o Outro não existe, apresentado por Jorge Forbes (livro: Você quer

o que deseja?. 9.ed. Rio de Janeiro: BestSeller Editora, 2012). 3 A clínica do Real. 4 GOLDENBERG, Ricardo. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2018, p.52. 5 O chato do vinho. Revista Cult, São Paulo, n˚ 201, p.41-42, maio, 2015.

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viés daquele proposto pelo francês, como ao vienense são atribuídas ideias e até

difundidas frases que só foram ditas pelo segundo, viabilizando assim leituras teóricas e

manejos clínicos que são o avesso do que propunham.

Quanto a Lacan, além dos seminários inéditos, ditados há mais de 40 anos e ainda

não estabelecidos, mas que correm desde então em publicações piratas, há nos textos já

oficialmente publicados – “por alguem que pode passar com legitimidade por um

colaborador muito proximo de Lacan”6 – uma série de alterações, censuras, acréscimos7

e más traduções8 que tornam obscura a sua leitura e interpretação.

Tudo isso influencia as orientações teóricas e práticas no campo psicanalítico,

promovendo um eterno retorno a Freud – que já não é o retorno de Lacan a Freud9, pois

se dá em um sentido que não é aquele do Freud lido por Lacan10, da “descoberta de Freud

por Jacques Lacan”11 – ultimíssimamente se chega a uma postura clínica que busca

responsabilizar12 o analisando e promover uma leitura da teoria que acaba por salvar o

pai e inseri-lo na desbussolada13 globalização.

Assim, a leitura na qual tem se formado uma grande parte dos analistas desde

antes da morte de Lacan, o freudolacanismo14, é apontada por alguns leitores críticos

como uma manobra política que influencia atualmente toda a experiência psicanalítica,

da formação e atuação à cura.

Do estabelecimento do texto à interpretação, aquele que busca uma formação em

psicanálise, portanto, não pode se desviar desta política de leitura que se estabeleceu no

campo, originando um obscurantismo em relação à prática e à teoria que torna necessária

outra retomada dos textos, muitas vezes com um esforço de compreender os escritos

6 MILLER, J-A. Entrevista sobre “O Seminario” com Francois Ansermet. In: Opção Lacaniana Online,

Ano 2, número 6, Nov. 2011, Disponível em: <www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_6/Entrevista

_sobre_o_seminario.pdf>. 7 Alfredo Eidelsztein, em 2019, na aula privada: “A Formalização da Psicanalise”, aponta, por exemplo,

que Lacan não disse a famosa frase atribuída ao psicanalista em seu seminário de Caracas, “Eu sou

freudiano, sejam vocês lacanianos se quiserem” [tradução nossa], acrescida no texto por Miller. Informação

que pode ser conferida nos áudios de Patrick Vallas (ver nota 16). 8 GOLDENBERG, Ricardo. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2018. 9 Em “De um desígnio” (1966. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998), Lacan explicita que “a

palavra de ordem com que nos armamos, do retorno a Freud” (p.368), “tem um sentido completamente

diferente por dizer respeito à topologia do sujeito” (p.369). 10 “Si Freud supone un sentido, por ejemplo, izquerda-derecha, que hoy resulta evidente a los

psicoanalistas, Lacan lo plantea derecha-izquierda; o sea, al revés” (EIDELSZTEIN, 2017, p.95). 11 Contracapa dos Escritos feita por Lacan, da edição de 1966. 12 FORBES, J. Você quer o que deseja?. 9.ed. Rio de Janeiro: BestSeller Editora, 2012. 13 Ibid. 14 Conforme entrevista de Alfredo Eidelsztein (2019), disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=tgHZllEe5hQ&t=>

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originais, as estenografias15 e áudios16 no francês de Lacan, no alemão de Freud, espanhol

de Eidelsztein, português de Magno, para citar alguns – não parasitar, quem sabe ser

posseiro (Magno, 1994) –, e poder promover outra leitura, assinar alguma escritura,

menos atravessada pelas relações imaginárias e louvor aos mestres, pela qual não se

busque salvar os autores, os seus nomes, mas que melhor se sirva deles, de suas teorias,

com o objetivo de prosperarmos na experiência que a psicanálise nos dá.

Queremos com este escrito apontar como a abertura a outras possibilidades de

leitura é fundamental para a formação e atuação do psicanalista, sua função e seu lugar.

Traremos um exemplo que ocorreu com o autor durante seus estudos e buscaremos

apontar como um modo de ler pode fazer obstáculo ou nos aproximar do mais importante

da formação do psicanalista: o estudo rigoroso da teoria.

2. Outro leitor

Lacan (1953/1998) nos chamou atenção acerca dos cinquenta anos de atraso dos

psicanalistas em relação à ciência que o interessava, que Eidelsztein (2017) nos atualiza

para cem. Magno (2017) aponta como estaríamos ainda chegando ao século XXI. Por isso

é imprescindível, mesmo que “acontece de acontecerem coisas que carregam um nome”

(LACAN, 1967/2006, p.107), formalizarmos o campo psicanalítico para além da autoria17

e podermos manter o debate de ideias para além dos indivíduos, seus corpos e suas

experiências em análise, que possamos ir além das identificações.

Lacan endereça seu Escritos, suas cartas18, a um tipo de leitor, um “novo leitor do

qual foi feito argumento para reunir estes escritos”, ao qual cabe “devolver à carta/letra

em questão, para além daqueles que um dia foram seus endereçados, aquilo mesmo que

encontrará como palavra final: sua destinacão”, e declara que quer, “com o percurso de

que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor

a uma consequência que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966a/1998, p.11).

15 Os seminários de Lacan não estabelecidos por Miller podem ser lidos, em francês, no site: <http://

staferla.free.fr>. 16 Podem ser ouvidos no site de Patrick Vallas: <http://www.valas.fr>. 17 Conforme apresentação de Félix Morales Montiel (2019). Definiciones, delimitaciones

despersonalizadas y decisiones. In: Primeras Jornadas Internacionales de APOLa. Mesa 9. Disponível em:

<www.youtube.com/watch?v=ACipfBBSnS8&t=79s>. 18 Como Alejandro Pascolini se refere aos textos da coletânea em “Obertura de los escritos de Jacques

Lacan”. (2019). Disponível em: <https://youtu.be/DXQ2IJ2QwjA>.

18

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Portanto, temos aberto o convite a uma leitura não modesta, que pode ser tida por

uma comunidade como heresia, mas que não force o que é novo para caber num esquema

velho19, que busque romper com certa esfera. Lacan (1966b/1998) apontou que para

pensá-lo seria preciso um outro paradigma, disse que “Koyre é nosso guia aqui” [p.870],

falou com as paredes. A leitura de Freud por Lacan, sua possibilidade de leitura, também

se dá por este pensar a psicanálise de outra forma e propor outros recursos, talvez não

pelas instituições que participou ou mesmo por seus alunos, mas através da teoria

científica que sustentava e dos campos que buscava uma interlocução, servindo-se deles.

3. Outra leitura

Ler não é um ato solitário e individual. Nesse processo há no mínimo dois: texto

e leitor. E caso o leitor se indague por que aquilo foi escrito, passamos a três: àqueles dois

se conciliam o autor e, com ele, a comunidade dos leitores. A leitura também não está

restrita a uma página de papel. Um músico lê partituras, tablaturas, cifras diferentes das

do contador, um médico lê a doença na descrição dos sintomas, um agricultor lê o céu,

um fetichista pode ler um brilho na ponta de um nariz e um psicanalista os significantes

mais que as palavras. “Hoje temos não apenas uma história da leitura, como também uma

sociologia da leitura, uma antropologia da leitura e uma psicologia da leitura” (COSSON,

2006, p.38).

Vilson J. Leffa (1999), em “Perspectivas no estudo da Leitura: texto, leitor e

interação social”, classifica, em uma visão panorâmica cognitivo/social da leitura, o

processo da construção do sentido em três grandes abordagens: ascendentes,

descendentes e conciliadoras. O primeiro grupo, ascendentes, está centrada no texto,

tendo a leitura como um processo de extração de sentido, que se dá “necessariamente por

dois níveis: o nível das letras e das palavras, que estão na superfície do texto, e o nível do

significado, que é o conteúdo do texto” (COSSON, 2006, p.39). O segundo grupo,

descendentes, coloca no leitor a responsabilidade pela leitura, em elaborar e testar as

hipóteses sobre o que está no texto, “como um processo de atribuição de significados”

(LEFFA, 1999).

19

Juan Manuel Martínez (livro: Lacan fuera del aula, sobre cuatro conferencias ignoradas. México: El

diván negro, 2019) nos demonstra como “Freud fue leído como se lee todo lo que es nuevo: con esquemas

viejos” (p. 59), devido a um rechaço da novidade, do subversivo, o mesmo ocorrendo com Lacan e seu

ensino.

19

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Já nas abordagens conciliadoras, o leitor é tão importante quanto o texto. Aqui

trata-se a leitura como “o resultado de uma série de convenções que uma sociedade

estabelece para a comunicação entre seus membros e fora dela” (COSSON, 2006, p.40),

aprender a ler seria mais que adquirir uma habilidade ou uma atividade regular.

Entretanto, Cosson nos atenta que quando tomamos a leitura a partir das abordagens

conciliadoras, corremos o risco de que cada leitura perca sua individualidade e propõe

que pensemos estes três modos numa linearidade.

A “antecipacão” seria a primeira etapa, relativa às operações que o leitor realiza

antes de entrar no texto, sendo relevantes os objetivos da leitura (compreender uma bula,

ler um gibi, realizar um atendimento) como os elementos relativos à materialidade do

texto (impresso, digital, número de páginas, entre outros), portanto aqui já se inicia a

leitura. A “decifracão” é a segunda etapa. Através das letras e palavras entramos no texto.

A familiaridade ou não com elas fará do texto uma muralha intransponível ou permitirá

a fluidez na leitura, havendo casos em que o significado de uma palavra desconhecida é

recuperado no contexto.

Com a “interpretacão”, a terceira etapa, com frequência tida como a leitura em si,

Cosson (2006) a restringe às relações que são estabelecidas pelo leitor quando processa

o texto:

A interpretação depende, assim, do que escreveu o autor, do que leu o leitor e

das convenções que regulam a leitura em uma determinada sociedade.

Interpretar é dialogar com o texto tendo como limite o contexto. Esse contexto

é de mão dupla: tanto é aquele dado pelo texto quanto o dado pelo leitor; um e

outro precisam convergir que a leitura faça sentido. Essa convergência dá-se

pelas referências à cultura na qual se localizam o autor e o leitor, assim como

por força das constrições que a comunidade do leitor impõe ao ato de ler. O

contexto é, pois, simultaneamente aquilo que está no texto, que vem com ele,

e aquilo que uma comunidade de leitores julga como próprio da leitura (p. 41).

Sendo, entretanto, a leitura não tão solitária e a interpretação dependente do que

é imposto ao ato de ler, estariam os psicanalistas leitores, lacanoamericanos, onde o

processo de leitura adquire em sua formação e atuação um pilar tão importante,

conhecendo a psicologia das massas, a teoria dos espelhos e advertidos dos efeitos e riscos

do imaginário, operando contra essa resistência de impostura em sua leitura, clínica e

transmissão?

Lacan nos advertia desde cedo que “ha dois perigos em tudo o que tange à

compreensão de nosso campo clínico. O primeiro é não ser suficientemente curioso. (…)

20

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O segundo é compreender. Compreendemos sempre cedo demais, especialmente na

analise” (LACAN, 1954-55/2010, p.144).

Foi de um grupo de estudos que partiu a reflexão teórica que tange a escrita deste

texto, como resultado de uma interação, um exemplo de como opera a interpretação

relacionando texto-leitor-sociedade. Tal grupo funcionava como uma oficina de leitura,

na qual cada membro era responsável por ler previamente um trecho do texto e preparar

alguns comentários para encontros em datas marcadas, expondo o que entenderam ou

não, para que o grupo dialogasse sobre. Assim ocorrem um grande número de grupos de

estudos na formação psicanalítica, uma sociedade de leitores, com a presença ou não dos

mestres – muitas vezes psicanalistas que carregam uma insígnia de terem estudado há

mais tempo, com este ou aquele psicanalista reconhecido por algum grupo, terem muitos

anos de clínica e de análise pessoal (também se considera com quem se analisa) ou até

estarem ou não inseridos em uma instituição e há quanto tempo afiliados20.

Em um desses encontros, um dos participantes levantou uma questão. Se Lacan,

em um certo trecho de seu seminário, estaria usando o termo “a” como uma referência ao

objeto a, causa de desejo. Após algumas opiniões e releituras, duas interpretações

divergentes se destacaram. Seguiu-se então um diálogo onde uma das partes propunha

que sim, por já haver uma introdução do objeto a na psicanálise, e a outra que não, por

este conceito ser concebido apenas seminários mais tarde e que não poderia ser lido ali.

O trecho que originou a questão, apesar de sua importância teórica, sua

“decifracão” e “interpretacão” não é o que almejamos no espaço deste texto, pois trata-se

de demonstrar como o campo psicanalítico pode ser obscurecido pelas relações

imaginárias, pelas posições que leitores – psicanalistas – tomam perante o texto e a

comunidade. Quanto ao grupo citado, o frutífero questionamento se encerrou com a

expressão de um dos membros: “você pode pensar assim, eu faço uma leitura mais

modesta”.

Encerramento que evidencia a divergência entre os leitores que ocorre quanto à

“interpretacão”, no sentido que Cosson (2006) nos define acima, demonstrando como em

cada um naquele diálogo se dava a relação leitor-texto-comunidade, dado que seus

20 A proposta de realizar uma antropologia da psicanálise, de Maria Carolina de Araújo Antonio, em sua

tese, publicada em 2015, “A ética do desejo: estudo etnográfico da formação de psicanalistas em escolas

lacanianas de psicanalise”, uma pesquisa que se deu em escolas de psicanálise de São Paulo e Buenos Aires,

é indispensável para aqueles que buscam trabalhar questões que considerem como se conjuga centralização

e segmentação de poder/saber no movimento psicanalítico.

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argumentos eram suportados por sua leitura decifradora e conciliada a citações,

referências e interpretações de outros leitores e comentadores do texto. Porém, com a

teoria lacaniana, podemos ler que se trata não menos de uma relação leitor-leitor’, onde

cada um traz algo de uma comunidade de leitores – incluindo suas identificações – que,

em relação ao campo psicanalítico, pode fazer barreira ao avanço teórico – clínico e

prático.

No esquema “L” de Lacan (1956/1998) localizamos essa relação no eixo

imaginário, a-a’. Como uma forma de relação que, acerca da transmissão da psicanálise

e da atuação do psicanalista, preocupara o francês desde seus primeiros textos, refazendo

em diversos momentos sua advertência aos psicanalistas “de que tanto a compreensão da

teoria psicanalítica como o manejo da clínica não estão imunes aos efeitos problemáticos

do imaginario” (FARIA, 2018, p.13).

Faria (2018) nos lembra que Lacan optou “ao invés de garantias” – que seriam os

nossos emblemas imaginários, pessoais, individuais, como nossas experiências,

currículos, afiliações, anos de clínica ou de análise - por “uma formação marcada pelo

rigor na transmissão dos conceitos necessários à sustentação da clínica pelo psicanalista”

(p.16). Este rigor exige, daquele que busca ser psicanalista, assim como daquele que

transmite, uma certa atenção às políticas de leitura, que atravessadas por paixões da alma

e da pólis podem devastar comunidades inteiras – e tem seu espaço na psicanálise.

Ironias ou confissões à parte, um leitor modesto não é aquele “outro leitor” ao

qual se endereçam os escritos de Lacan. Interpretamos a expressão “leitura mais modesta”

como uma proposta avessa ao ensino lacaniano. Mas tal como o acontecimento que fez a

dupla Daft Punk se nomear assim21, a tomamos e propomos o contrário, uma “leitura não

modesta”, uma leitura crítico-investigativa, que não se trata de tentar hierarquizar o saber,

sintetizá-lo, ou de buscar uma leitura que rechace as demais, mas sim uma que as inclua,

se sirva delas, que permita ao leitor não se contentar em compreender e que ainda assim

o permita compreender algo, para que, sendo um psicanalista, possa se guiar melhor com

a teoria que dá suporte aos seus atendimentos e manejos clínicos.

A leitura não modesta é a abertura a uma leitura crítico-investigativa que toma o

texto em um rigor pelo qual o leitor possa emprestar-lhe consequências. Goldenberg

(2018) recupera um conceito de Harold Bloom que é essencial ao psicanalista, o de

21 Uma crítica negativa em uma revista apelidou a música da banda como “a bunch of daft punk” (“um

bando de punks bobos”, em inglês), porém a banda gostou e passou a usá-lo. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Daft_Punk>.

22

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desleitura (misreading). Desler nos parece uma forma de emprestar consequência. O que

não é apontar uma leitura verdadeira ou ideal, mas que possa fundar outra escritura, e

ainda outra, caso a anterior, com as descobertas vindouras, efeitos de um trabalho, não se

sustente.

4. Escrituras

Jogar uma nova luz sobre os conceitos originais, desler. Goldenberg (2018),

deslendo, escreve que há leitores fracos e leitores fortes, “estes últimos não leem,

‘desleem’ (misread), porque a leitura, no sentido forte do termo, opera como um

“romance familiar” – no sentido de Freud –, ou seja, como a reescrita de um outro texto”

(GOLDENBERG, 2018, p.36), e nos traz Freud como um leitor forte, desleitor de seus

antecessores, assim como Lacan desleitor de Freud, e ainda Miller desleitor de Lacan,

“um leitor não menos forte que os outros dois, mas com uma diferença: a obra milleriana

comporta como estratégia apagar o leitor e o autor, a serviço de uma política de reescrita

da obra do precursor” (p.38).

Através destas desleituras, expropriando o conceito de Bloom para a psicanálise,

se apresenta também a de Miller por Goldenberg, que funda uma escritura – e que permite

com as demais referências aqui presentes suportar também este texto. Estas escrituras,

para sabermos se nos servem em nossa prática, clínica e teoria, precisamos tomá-las

através de uma investigação crítica, onde ler e desler possa ocorrer sem grilhões e nos

apossarmos de algo, nos servirmos – ou abandonarmos caso seja insuficiente.

A leitura rigorosa – além do suporte na direção da cura e a formação do analista

– se faz como caminho para evitar um “obscurantismo inconsequente”22. É deslendo que

se pode afirmar que “Lacan nunca propôs um novo sujeito ou uma nova clínica

psicanalítica” (FARIA, 2019, p.38), que não há no ensino de Lacan uma primazia do real

sobre o simbólico, nem do simbólico sobre o imaginário, mas que estes registros ao longo

de seu ensino sempre estiveram articulados, sendo o recurso de reuni-los no nó que

esclarecerá, no final, o que esteve marcado de ponta a ponta na sua investigação teórica

e clínica (FARIA, 2019).

22 Termo usado por Oscar Cesarotto e Márcio Peter (no livro Jacques Lacan: uma biografia intelectual.

2.ed. São Paulo: Iluminuras, 2010), para nos apontar o risco de “se embandeirar imaginariamente numa

identificação com Lacan” ou “seguir à risca suas ideias” (p.93), desconhecendo os problemas por ele

levantados.

23

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Se uma interpretação da obra de Lacan aponta para uma lógica evolutiva e uma

ruptura entre duas clínicas23, é lendo Lacan de maneira investigativa e crítica que

poderemos compreender porque há aquela outra, que “não há como supor que se opere

com o Real ou que possa haver uma clínica do Real” (VAZ DE MELO, 2019, p.51).

Assim como existem leituras divergentes em relação à responsabilidade do analisando:

enquanto uma se expressa como implicar o desejo24, há aquela25 que demonstra como

esta responsabilização nasce de uma interpretação em direção oposta à proposta lacaniana

de responsabilidade do analista – e ainda outra que lê como é impossível abrir mão do

desejo26.

Em seu primeiro texto nos Escritos (em ordem cronológica, que nos remete a 1936

e 1949), Lacan (1949/1998) já promove uma desleitura. E nos traz sentenças que desde

este período podem já apontar para a matematização, nos apresenta uma forma de pensar

o eu através de uma “linha de ficcão” que não se reduz ao indivíduo isolado, que apenas

“assintoticamente” se une ao sujeito. Um texto em que o autor se apoia em vários campos

e diversos autores para propor seu experimento e o recurso que traz à psicanálise e o

campo inaugurado por Freud – rompendo do círculo para a quadratura, na sua

conceptualização do sujeito da experiência analítica. Leitura que no espaço deste texto

não podemos desenvolver, mas se abre a caminhos possíveis de investigação.

Contudo, para lê-lo menos enviesado pelo o que a sociedade dos leitores nos

impõe, é preciso estar atento às políticas que atravessam tal sociedade, os processos de

leitura, os processos de formação e não menos os processos de cura. Na possibilidade de

uma leitura crítico investigativa, poderemos ter uma formação “que se pretenda

rigorosamente orientada pelo espírito que marca a transmissão de Lacan” (FARIA, 2018,

p.18).

Esta formação, um tripé lacaniano, de acordo com Faria (2018) – que não visa

garantias através de qualidades pessoais, certificados, afiliação a grupos – se daria na

escrita, na transmissão e na clínica, práticas favoráveis a colocar o psicanalista diante da

potência dos “desafios e angústias próprias a uma operação que tem o inconsciente como

seu objeto” e que “exigem do praticante, tomar a medida da ignorância como tal fazendo

23 Cf. FORBES, J. Você quer o que deseja?. 9.ed. Rio de Janeiro: BestSeller Editora, 2012. (2012). 24 Ibidem. 25 Cf. EIDELSZTEIN, A. (2015). La responsabilidad Subjetiva. Disponível em: <www.eidelsztein

alfredo.com.ar/la-responsabilidad-subjetiva-el-rey-esta-desnudo-no-8/>. 26 Ver MD Magno (1994).

24

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dela um caminho” (p.19). Para tornar esse caminho possível, por uma formação do

psicanalista para além do espelho – prestígio, sugestão e crença na palavra dos grandes

mestres (EIDELSZTEIN, 2019) – que faz muro à subversão e o porvir da psicanálise, é

preciso haver a possibilidade de leituras não modestas.

25

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VAZ DE MELO, Augusto Corrêa. Sobre a estrutura matemática da ciência e da

psicanálise. 115f. Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica) – Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

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“Lacan é um autor difícil!”: a propaganda de classe do inimigo como estratégia

obscurantista

Camila Quinteiro Kushnir

Comumente, o ensino da psicanálise se encontra localizado em dois tipos de

instituições: as Sociedades ou Escolas (lacanianas), que participam mais amplamente do

que Freud denominou de tripé na formação dos analistas (análise pessoal, supervisão e

estudo teórico), e os centros acadêmicos, Universidades, onde a psicanálise resta atrelada

à grade curricular do curso de psicologia – em parte porque nenhum outro curso nos quis.

Tanto em um espaço como no outro, o aprendizado em psicanálise segue uma

certa cartilha, mesmo que de modo implícito. Quem começa os estudos deve tomar Freud

como seu referencial. Embora outros autores sejam explorados, em um primeiro momento

é preciso um intenso investimento na leitura da obra freudiana para que, a partir dela, seja

possível entender as demais. Ferenczi, Klein, Winnicott, Bion, Lacan, etc. Todos são

colocados submissos ao Pai, Freud.

Ele próprio afirmou seu lugar como central, quando em 1914, disse:

Embora de muito tempo para cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista

existente, acho justo continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber

melhor do que eu o que é a psicanálise, em que ela difere de outras formas de

investigação da vida mental, o que deve precisamente ser denominado de

psicanálise e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer [grifo nosso]

(p.16).

Suas também desavenças e rupturas com alguns discípulos, como Adler (1911) e

Jung (1914) mostram como o movimento psicanalítico não era aberto às divergências.

Em razão dos conflitos sucessivos, Freud decidiu criar um “comitê secreto”, paralelo à

vigência da IPA, composto por membros próximos a ele, que seria responsável pelo

controle, sigiloso, em suas associações filiadas, dos padrões requeridos para o exercício

da psicanálise. Frente às suspeitas e à hostilidade que gerava, tal comitê foi dissolvido em

1927 (ANTONIO, 2015).

Cabe nos perguntarmos, no entanto, se ainda hoje não há um controle, velado, de

como devemos trabalhar em psicanálise. Tanto na prática como na teoria, parece haver

um “modo certo” de operar com os analisantes, com os autores e suas produções, e esse

modo depende, fundamentalmente, da experiência, seja em uma análise pessoal,

supervisão ou formação em instituições. Criticar isso não significa, contudo, militar pelo

abandono de referenciais teóricos, passando a agir conforme a opinião, sensação,

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experiência ou intuição de cada um – o que alguns colegas chamam de estilo ou

singularidade de cada analista. Não se trata disso. Nossa prática depende da teoria que

elegemos como bússola, e não o contrário.

Assim, o objetivo desta investigação é interrogar uma transmissão que se faz da

psicanálise em moldes canônicos, sendo o Ensino de Lacan estigmatizado como da ordem

do ininteligível, impenetrável e sem sentido. Por esse viés, ele é tratado como um autor

obscuro, que precisa ser, portanto, clarificado por outros autores. Como veremos aqui, ao

propor um retorno a Lacan, muitos lacanianos acabam por privilegiar (intencionalmente?)

partes de sua obra em detrimento de outras, muitas vezes trabalhando sua teoria destacada

do contexto original proposto por ele. Iremos analisar as consequências desse projeto de

elucidação e como ele afeta não apenas como Lacan é lido, mas tem sua produção

deformada para ajustar-se à fórmula apresentada desde Freud enquanto via régia para a

formação em psicanálise. Em outras palavras, iremos tomar a famosa consideração

“Lacan é um autor difícil” como parte de uma proposta, que Slavoj Žižek, em entrevista

para o programa NiteBeat, chamou de “propaganda de classe do inimigo”.

Comecemos por pensar os motivos que levam grande parte dos psicanalistas a

considerar Lacan um autor difícil. Se nada é em si mesmo, a dificuldade está em relação

a que ou a quem? Os mais otimistas dirão em relação a Freud. Os mais pessimistas dirão

em relação a qualquer outro autor. Se a obra freudiana é conhecida como de mais fácil

compreensão, devemos listar alguns argumentos:

1) Freud é claro em suas colocações, didático. Segundo ele próprio:

Não tenho dúvidas de que a validade das nossas hipóteses psicológicas causará

boa impressão também sobre as pessoas pouco instruídas, mas precisaremos

buscar as formas mais simples e mais facilmente inteligíveis de expressar as

nossas doutrinas teóricas (FREUD, 1919 [1918]/1996, p.210);

2) Por conta dessa didática, para ler, e supor ter entendido Freud, não se faz necessário

estudar muitos outros autores. Dificilmente quando lemos Freud recorremos, por

exemplo, a Iwan Bloch, Georg Grodeck, Albert Moll, etc., de modo que nem mesmo

sabemos a importância que esses1 e outros estudiosos tiveram para a construção da teoria

freudiana. Nossa impressão (não sem a implicação de Freud), é a de que ele “retirou” sua

teoria do trabalho com as histéricas, portanto, da experiência clínica;

1 Eles cunharam os conceitos, incorporados na psicanálise por Freud, de “zona erógena”, “Isso” e

“sexualidade infantil”, respectivamente (EIDELSZTEIN, 2019).

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3) A obra freudiana vem sendo traduzida diretamente do alemão por diversas editoras.

Este trabalho, além de objetivar uma maior fidelidade ao texto original, tende a facilitar

a leitura que se faz de Freud em português.

Analisemos estes pontos em relação ao que se declara sobre Lacan. O didatismo

de Freud, de fato, é algo que ele mesmo sempre defendeu. E, por quê? Pelo compromisso

que tinha com a expansão da psicanálise pelo mundo. Ela deveria se tornar cada vez mais

de fácil apreensão, para que fosse compreendida e aceita pelo maior número de pessoas

possível. Que todos pudessem reconhecê-la em sua importância e diferença diante das

demais disciplinas.

Lacan, contudo, embora tenha realizado conferências em diversos países, para um

público diferente daquele encontrado na França, afirmava dirigir-se aos analistas:

Eu falava para pessoas a quem aquilo interessava diretamente, pessoas

precisas que se chamam psicanalistas. Aquilo dizia respeito à experiência mais

direta deles, mais cotidiana, mais urgente. Era expressamente feito para eles,

nunca fora feito para ninguém mais [grifo nosso] (LACAN, 1968/2006).

Sua preocupação, nessa medida, não era a mesma de Freud. O propósito era atingir

com sua teoria os responsáveis pela psicanálise, fazê-los rever suas certezas e avançar.

Sobre este avanço, o jornal Le Monde, publicou:

É a isso que se endereça Lacan após o que ele chamou muitas vezes seu

“fracasso”. Fracasso junto às sociedades de psicanálise que restam surdas, e

resistem ao discurso que ele propôs à Escola Freudiana de Paris. A propósito,

Lacan nos declarou: O que resistimos aqui, é ao discurso mesmo de Freud. As

sociedades de psicanálise são tampão ao desenvolvimento do pensamento

analítico... bem raros são os rebentos criativos, as novidades que foram

surgindo; de tanto traduzir Freud para conseguir fazê-lo passar, ser aceito, após

um tempo não se compreende mais grande coisa do que ele diz. (...).

“Assimila-se, prossegue Jacques Lacan, a análise a uma terapia, enquanto,

Freud disse, a psicanálise é a ciência e não somente a terapia. Senão, estamos

do lado que cura melhor, e passado algum tempo, atendendo ao desejo de fazer

o bem, ou seja, de maneira intempestiva, não compreenderemos mais nada.

Ensino inútil não fala do que é a psicanálise. Aliás, e de forma confessada só

nos preocupamos em garantir sua conformidade” [tradução e grifo nosso]

(LACAN, 1968b).

A conformidade de que nos fala Lacan está de acordo com a leitura canônica que

se faz da psicanálise. Estar conforme às regras, ao padrão estabelecido, em

concordância, submisso. Esta é a (maior) preocupação dos analistas. Não é à toa o

grande receio de errar que os iniciantes em psicanálise apresentam: evitam falar muito

em seus primeiros atendimentos, não questionam aqueles que os ensinam, não

discordam em eventos dos quais participam, esperam receber aprovação em suas

supervisões e formações.

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Canônico vem do latim “linha de medida, régua”, e do grego kanon “vara reta,

padrão de excelência”. A leitura canônica também é ortodoxa (do grego orthodoxus,

“aquele que tem a opinião certa”). Quem adentra o campo psicanalítico precisa, então,

estar atento para se enquadrar, estar sob o padrão de medida estipulado já com Freud.

Para Lacan, contudo, isso nos torna surdos e alheios às novidades que poderiam fazer a

psicanálise avançar.

Além disso, para ele, a obra freudiana foi extremamente mal lida por seus

discípulos, sendo o seu objetivo promover um retorno para encontrar o que seria a Causa

freudiana, o sentido de sua teoria. Em uma entrevista a Paolo Caruso, disse:

Meu ‘retorno a Freud’ significa simplesmente que os leitores se preocupem por

saber o que é que Freud quer dizer, e a primeira condição para isso é que o

leiam com seriedade. E não basta, porque como uma boa parte da educação

secundária e superior consiste em impedir que as pessoas saibam ler, é

necessário todo um processo educativo que permita aprender a ler de novo um

texto (...). Não é suficiente falar sobre o método experimental para saber

praticar. Posto isso, saber ler um texto e entender o que ele quer dizer (...), isso

implica muitas outras coisas, e sobretudo penetrar na lógica interna do texto

em questão (...). A melhor maneira de enfrentar a crítica sobre os textos

metodológicos ou sistemáticos é o de aplicar ao texto em questão o método

crítico preconizado por ele mesmo. Assim, aplicando a crítica freudiana aos

textos de Freud, pode-se descobrir um monte de coisas [tradução e grifo nosso]

(LACAN, 1966, p.967).

Já em 1974, em outra entrevista à Emilia Granzotto, afirmou:

A psicanálise é Freud. Se alguém quer fazer psicanálise, é necessário referir-

se a Freud, a seus termos, a suas definições, lidos e interpretados em seu

sentido literal. Eu fundei em Paris uma escola freudiana justamente para isso

(...). Reler Freud quer dizer somente reler Freud. Aquele que não faz isso em

psicanálise, utiliza formas abusivas. Tenho a reputação de ser um confuso que

oculta seu pensamento nas nuvens de fumaça. Me pergunto o porquê (...). A

psicanálise não é algo simples [tradução e grifo nosso].

Se Lacan propõe uma releitura de Freud2, não basta percorrer o texto, como

estamos habituados a fazer. É preciso aprender a ler. Ler o que seria o sentido literal, não

havendo nada de simples nisso. E para essa leitura ele indica localizar a lógica interna do

texto em questão, aplicando a ele o método crítico preconizado pelo próprio autor. Desse

modo, Lacan salienta que ler Freud não é tão fácil quanto parece. Somos levados a

acreditar que basta abrir o livro e lê-lo, muitas vezes tal como um romance. Não é

irrelevante quando se frisa que Freud era um excelente escritor e, por isso, ganhou o

2 Sobre esse processo de leitura, conferir o texto: “A investigação em psicanálise como desleitura: a

subversão do recordar, repetir e elaborar”, de minha autoria, no link: <https://www.facebook.com/

psicanaliseprofana/posts/1238959076309921?__tn__=K-R>.

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prêmio cultural Goethe, em 1930. Este, contudo, não é um prêmio de literatura. Nem

mesmo é dado a quem escreve habilmente, mas a personalidades reconhecidas por honrar

a memória de Goethe em seus trabalhos (BRACCO, 2011).

Sobre a escrita clara de um texto Lacan comenta:

O que eu recusei, em qualquer caso, foi entregar esse tipo de coisa chamada

ilusão de compreensão. Tento evitar a sua inclinação natural e muito triste:

acreditar que se compreendeu, porque um pensamento é claro e, naturalmente,

ter entendido o contrário. E reparar que eu conhecia, portanto, muito

precisamente, o obstáculo original ao qual eu tinha me deparado [tradução e

grifo nosso] (LACAN, 1966b).

Podemos conjecturar que o obstáculo ao qual Lacan se refere diz respeito ao

pensamento de Freud, ao qual ele retorna, não para elucidar – projeto já realizado por

seus discípulos, e do qual Lacan também se tornou alvo – mas para trabalhar o que de sua

obra foi ignorada: a lógica interna aos textos, seu sentido, e, principalmente, tecer críticas

que o levaram a produzir uma nova teoria. Não é comum que saibamos, mas Lacan fundou

seu Ensino em um constante debate com Freud.

Mas como pensar uma nova teoria se Lacan se declarou freudiano? Esse aforismo,

dito por ele uma única vez em Caracas, em 12 de julho de 1980, se disseminou em nosso

meio e aparece quase sempre como justificativa para afirmar que ele estabeleceu uma

continuação, acrescentando à teoria freudiana topologia, neologismos e conceituações

que já estavam lá, mas que Freud não teria descrito da mesma forma. Se Lacan retorna ao

Pai, não era para segui-lo, mas para rastrear o que dali servia a seu propósito, rompendo

com o que considerava absurdo na teoria freudiana.

“Em suma, Freud - ao contrário de um número prodigioso de pessoas, de Platão a

Tolstói – Freud não era lacaniano, é necessário que eu o diga” [tradução e grifo nosso]

(LACAN, 14/1/1975, p.57). Se Freud não era lacaniano, mas Platão sim, é possível

encontrar entre Platão e Lacan uma lógica discursiva semelhante, o que não encontramos

entre Freud e Lacan.

Freud não tinha a menor ideia disso que Lacan encontrou chamuscando ao

redor desta coisa que temos ideia... eu posso falar sobre mim na terceira pessoa.

A ideia de representação inconsciente é uma ideia totalmente vazia. Freud

passava completamente ao largo do inconsciente (...). A ideia de

representação inconsciente é uma coisa louca. É assim que Freud o aborda.

Há traços disso tardiamente em seus escritos. O inconsciente? Proponho dar-

lhe outro corpo (...) [tradução e grifo nosso] (LACAN, 26/2/1977, p.9).

Este inconsciente do qual Freud não compreendia estritamente nada, são

representações inconscientes. O que pode ser isso, representações

inconscientes? (...) Eu tenho tentado explicar isso, fomentar isso para institui-

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lo ao nível do simbólico. Isso não tem nada a ver com representações, este

simbólico, são palavras, e, no limite, se pode conceber que umas palavras são

inconscientes. Não se conta inclusive mais do que isso aos montes: no

conjunto, elas [as palavras] falam sem saber absolutamente o que dizem. No

qual o inconsciente não tem corpo mais do que palavras [tradução e grifo

nosso] (LACAN, 26/2/1977, p.4).

Venho aqui antes de lançar minha Causa freudiana. Como veem não me

desprendo deste adjetivo. Sejam vocês lacanianos, se quiserem3. Eu sou

freudiano. Por isso, creio adequado dizer-lhes algumas palavras do debate que

mantenho com Freud, e que não é de hoje. Aqui está: meus três não são os seus

[referência ao Eu, Isso e Supereu de Freud]. Meus três são o simbólico, o real

e o imaginário. Me vi levado a situá-los com uma topologia, a do nó, chamado

borromeu (...). Há que dizê-lo: o que Freud desenhou com sua tópica, chamada

segunda, sofre de certa imperícia. Imagino que era para ser compreendido

dentro dos limites de sua época. Mas não poderíamos aproveitar o que está na

abordagem do meu nó? Considere o saco fofo que é produzido como vínculo

do Isso em seu artigo: “O Eu e o Isso”. O saco, ao que parece, é o continente

das pulsões. Que ideia disparatada esboçar isso assim! Somente se explica

considerando as pulsões como bolinhas expulsas por orifícios do corpo uma

vez ingeridas (...). Isso nos deixa perplexos. Digamos que não é o melhor feito

por Freud (...). Esta é uma fórmula luminosa, que impõe uma figuração

diferente do que esta garrafa. Qualquer que seja sua tampa. Não será melhor,

como me ocorreu dizer, garrafa de Klein, sem dentro e fora? Ou, ainda,

somente, por que não, o toro? [tradução e grifo nosso] (LACAN, 12/7/1980,

p.14).

Essas citações são ínfimas se comparadas a todas as demais que somos capazes

de localizar se abordarmos Lacan do modo como ele próprio indicava, ou seja, buscando

ler sem encaixar o que lemos em categorias já conhecidas (LACAN, 1971). Apenas assim

é possível apreender o subversivo da proposta de Lacan. Se ele discordava de Freud, não

o fazia através de opinião, mas fundamentando seus argumentos a partir da teoria que

criou, calcado em outras disciplinas. Se Freud, em “Sobre o ensino da psicanálise nas

universidades” (1919b[1918b]/1996), destacou que a psicanálise poderia servir para

estreitar uma ligação entre a ciência médica e a história da literatura, a mitologia, a

história das civilizações e a filosofia da religião, para Lacan são outras quatro disciplinas

que serviram à psicanálise: linguística, lógica, topologia e antifilosofia.

Com Freud o que temos no tocante à linguística é a Vorstellung, a representação,

sobre a qual Lacan teceu sérias críticas. Em epistemologia, Freud se baseou no empirismo

inglês. Em física, em Newton, já que mesmo mantendo correspondência com Einstein

nunca fez comentários sobre seus desenvolvimentos físicos, e menos ainda sobre a física

quântica. Em geometria, ele permaneceu com Euclides.

3 A frase “Como veem não me desprendo deste adjetivo. Sejam vocês lacanianos, se quiserem” não se

encontra no áudio original gravado deste seminário. Ela foi introduzida por Miller ao texto original

estenografado. O motivo dessa alteração é parte da discussão deste presente artigo. Conferir áudio original

no site: <http://www.valas.fr/IMG/mp3/1980-07-12_Dissolution_Ouverture_Caracas.mp3>.

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Lacan, diferentemente, incorporou toda a antropologia estrutural de Claude Lévi-

Strauss, a linguística de Ferdinand de Saussure, a pragmática de Austin e a teoria do

discurso como laço social, ou seja, os três movimentos linguísticos do século, que em

Freud não apareceram. Em epistemologia, tomou a Popper, Kuhn, Lakatos, Koyré,

Bachelard, Kojève, Feyerabend, Chalmers. Toda a epistemologia moderna - da qual

Freud nem se inteirou - foi reconsiderada. Em física, Lacan trabalhou desde o Seminário

2 com o princípio da incerteza de Heisenberg, que já estava na física quântica desde ao

menos 1954. Em matemática, trabalhou com Cantor, Frege, Dedekind, que são os autores

que conseguiram formalizar, pela primeira vez, a série dos números naturais, o que

significou um corte com o evolucionismo já que implicou um criacionismo: do 0 ao 1.

Enquanto em lógica Freud estava ao lado de Aristóteles, Lacan utilizou a álgebra de Boole

(EIDELSZTEIN, 2017).

Uma das justificativas usadas para sustentar as diferenças entre os dois

psicanalistas e suas teorias é dizer que Freud e Lacan foram filhos de sua época. Contudo,

muitos estudos trabalhados e incorporados por Lacan ao seu ensino já se encontravam na

época de Freud. Desse modo, as escolhas feitas por cada autor não se delimitaram pelos

conhecimentos da época, mas se referem a toda uma dimensão política – os conflitos que

encontravam, as posições assumidas, a direção que pretendiam dar às suas propostas. E,

para entendermos isso, é preciso retomar onde cada um estava calcado para afirmar o que

disse (EIDELSZTEIN, 2017).

Desse modo, é possível inferir o motivo que levou Žižek a considerar a

disseminação de Lacan como um autor difícil uma propaganda de classe do inimigo. A

quem interessa isso? Não aos que permanecem dependentes dos comentadores para

“facilitar” Lacan. Percebam: se dizemos que algo é difícil e alguém nos oferta um

caminho mais fácil, o que fazemos? Tendemos a tomá-lo. E por que isso seria um

problema? Porque se acaba estabelecendo uma leitura enviesada. Passamos a acreditar no

que nos dizem e quando vamos às fontes, já estamos contaminados por um dado contexto,

que pode ser diferente, e até mesmo oposto à proposta do autor. Segundo o próprio Lacan

(1971, p.11):

há um modo de escutar que faz com que não escutemos nunca mais do que

estamos habituados a escutar. Quando algo diferente se diz, a regra do jogo da

palavra faz com que simplesmente o censuremos. A censura é uma coisa muito

banal, (...) o que não aprendemos a escutar, não o escutamos [tradução nossa].

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Além disso, em grande parte das vezes, quando buscamos pelo autor, nem mesmo

estudamos os textos originais. O que temos de Lacan em português, amplamente

divulgados pela Editora Zahar, já sofreu, pela edição de Miller, várias modificações que

deturpam e nos induzem a uma dada leitura. O original de suas conferências e seminários

podem ser conferidos em francês em dois sites: http://ecole-

lacanienne.net/bibliolacan/pas-tout-lacan/ , e http://staferla.free.fr/ . Neles temos acesso

não apenas às várias produções de Lacan que ainda não foram traduzidas, mas também

aos seminários que em muito foram reduzidos, com a retirada de trechos importantes para

a compreensão, como desenhos e grafos4.

Assim, o que temos do original de Lacan fica restrito a poucos. Os que não sabem

francês ficam submetidos às traduções. Poucos psicanalistas se propõem, até então, a esse

trabalho, o que faz vigorar a leitura de Miller sobre Lacan. Além disso, outros

comentadores podem mais facilmente afirmar o que dizem sem grande preocupação de

serem contrariados, pois se há, como dissemos no início, um acordo silencioso de que

para questionar é preciso saber muito, e até mais do que o interlocutor, a maioria está

sempre aquém do saber dos mestres.

Assim, persiste um amontoado de “Lacan disse” sem qualquer localização. Não

se utilizam citações diretas, números de página, data das lições. Dificulta-se o acesso às

palavras originais de Lacan. Como contestar o que um comentador diz se ficamos sem

parâmetros para tal? Se o que selecionam do texto é, por exemplo, que Lacan se alegou

freudiano, seguindo uma leitura enviesada, estranhamos e rechaçamos quando Lacan diz

que Freud não era lacaniano. Aliás, quantas vezes lemos isso antes de nos depararmos

com este presente artigo? Lacan fica, desse modo, restrito a uma classe que o utiliza

conforme as regras estabelecidas, e para poder acessá-lo é preciso submeter-se, pagando

(caro) por isso: na análise pessoal, na formação, na compra de livros dos comentadores,

prestigiando eventos, etc.

Como, então, a partir do que foi discutido até aqui, podemos ler Lacan e entendê-

lo, renunciando às armadilhas, às formas abusivas, que ele próprio denunciou? Sobre seus

Escritos, disse: “tudo está organizado para interditar que esses textos sejam lidos na

diagonal” (1966b). Uma leitura diagonal é aquela em que se realiza recortes no conteúdo,

4 Outro trabalho importante foi a revisão crítica de uma parte das publicações de Lacan em francês e em

espanhol, estabelecida por Ricardo E. Rodríguez Ponte e seus colaboradores para a circulação interna da

Escola Freudiana de Buenos Aires. Está disponibilizada gratuitamente no site:

<https://www.lacanterafreudiana.com.ar/index.html>.

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compreendendo os pontos mais importantes, visando agregar maior quantidade de

informação em um curto espaço de tempo. Para tal, faz-se necessário encaixar o que

lemos em categorias já conhecidas, exatamente o que nos impede de entender a proposta

subversiva de Lacan.

Esse tipo de leitura serve à transmissão canônica, visto que através dela dadas

passagens são ressaltadas em detrimento de outras. Se Lacan impede uma leitura diagonal

pela novidade que emprega em seu Ensino, não é mais possível lê-lo, tal como fazemos

com Freud. Aliás, como vimos com Lacan, nem mesmo Freud deveria ser tomado desta

forma, cultuado como um autor didático. Tomar uma obra como clara implica o risco da

perda do sentido que a mesma propõe. Para Lacan, trabalhar um texto e acessar esse

sentido implica ler algo que não está dado, que está nas entrelinhas.

É aí que entramos no que é importante no que eu ensino: (...) Alguém quer

dizer, mas o que quer dizer está em geral enganado. É aí que o ouvido do

psicanalista intervém, a saber que apercebe o que o outro quer verdadeiramente

dizer. E o que queria dizer, em geral, não é o que está no texto [tradução nossa]

(LACAN, 1971, p.11).

Assim, seja com o texto produzido com o analisante, seja com o texto tomado para

estudo teórico, o analista teria que proceder da mesma forma: buscar nele o que não está

dado. E quais são as coordenadas que nos permitem não nos perdemos em uma obra tão

ampla como a de Lacan?

1o) Como já colocado, não nos serve tentar encaixar Lacan em esquemas mentais pré-

concebidos. Também devemos estar precavidos de que, fundamentado em outras

disciplinas, Lacan não fala o mesmo que Freud. Ele retorna às interrogações freudianas,

e não às suas respostas;

2o) Além disso, é importante nos acostumarmos sem os comentadores como guias de

leitura. Enquanto eles forem nossa bússola, estaremos, na verdade, perdidos quanto ao

que se diz. Isso não significa ler nada mais do que Lacan, ou os autores que ele cita, mas

sim que possamos utilizar os textos de forma mais crítica e rigorosa, dessacralizando-os;

3o) Precisamos nos localizar no contexto em que Lacan se encontra, qual o tema que ele

desenvolve em cada parágrafo, sobre qual problema está se debruçando e com que autores

está dialogando, o que implica conhecer o que propõem para entender a discussão ali

enredada5;

5 Nesse sentido, dois livros que podem auxiliar é o de Slavoj Žižek, “Lacan, los interlocutores mudos”, e o

de Diana Estrin, “Lacan día por día”. Eles discutem marcos teóricos importantes no Ensino de Lacan.

Disponíveis em: www.dropbox.com/s/t2f6d1plt3up601/ e www.dropbox.com/s/fp0v52uho94aj6w/.

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4o) Lacan costuma ser bastante irônico em suas colocações. Torna-se importante,

portanto, estar atento a isso. Muitas vezes, podemos crer que Lacan está concordando

com algo, quando, em realidade, está discordando, e até desdenhando. Não perceber se

ele está contra ou a favor de uma certa ideia é, em grande parte das vezes, o que mais nos

conduz a um equívoco de leitura. E como identificar isso? Pelo o que foi assinalado no

item anterior. Lacan não pode ser lido e entendido por fora da lógica interna a seus

próprios textos;

5o) Esse ponto talvez seja o mais significativo de todos: quando lemos os seminários de

Lacan nos damos conta de que a cada duas ou três páginas há alguma referência ao campo

da matemática. Isso, contudo, costuma ser censurado pela leitura canônica. Até se

comenta sobre topologia, nós, quando se trata de estudar o RSI. Mas a discussão

permanece limitada. Quando Lacan propõe a utilização das matemáticas, não está

aplicando números e contas a sua teoria, mas sim assinalando a importância do

pensamento matemático que se consolidou na ciência dita moderna. Esse não é, contudo,

nossa forma habitual de pensar. Tendemos a ler qualquer autor baseados em uma

metafísica ingênua, o que nos dificulta utilizar concepções matemáticas e físicas, ou seja,

tendemos a substancializar as coisas para, então, raciocinarmos sobre elas. Se Lacan

localiza a psicanálise na era da ciência moderna, é inevitável, para compreender sua

proposta, que consigamos realizar uma abstração, e isso requer abandonar a ontologia

aristotélica empregada na obra editada por Miller6. Isso implica, por exemplo, assimilar

que “saber”, “discurso”, assim como “gozo” não possuem um agente, alguém de carne e

osso que os produz. O fracasso de Lacan7 na transmissão de sua proposta está ligada a

essa dificuldade de operar com a formalização de seu ensino;

6o) Esta reforma em nosso modo de pensar nos demanda um esforço que não é simples

ou rápido. Faz-se necessário estar cada vez mais em contato com as disciplinas que Lacan

elenca como primordiais ao exercício da psicanálise. Não apenas a topologia e a lógica,

como campos da matemática, mas também a linguística de Jakobson e a antifilosofia.

6 Miller, em 1964, questionou Lacan sobre a ontologia em seu Ensino. Lacan respondeu: “A semana

passada, minha introdução do inconsciente pela estrutura de uma hiância ofereceu ocasião a um de meus

ouvintes, Jacques-Alain Miller, para um excelente traçado (...) ele me interrogou sobre minha ontologia

(...). Insisti nesse caráter demasiado esquecido - esquecido de um modo que não deixa de ter significação -

da primeira emergência do inconsciente, que é de não se prestar à ontologia” (LACAN, 29/1/1964). 7 Lacan discorre sobre esse fracasso na Conferência “De Roma 53 a Roma 67: el psicoanálisis. Razón de

un fracaso”, disponível em: https://www.lacanterafreudiana.com.ar/lacanterafreudianajaqueslacan

conferenciasescritosespaniol.html

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Desse modo, este artigo se propôs a discutir sobre a transmissão de Lacan como

um autor difícil, e o que isso envolve. Apresentamos uma via de leitura que prescinde da

ortodoxia encontrada mundialmente e que tende a seguir os mesmos passos de Freud,

salvando seus autores de qualquer divergência que, segundo Lacan, poderia fazer avançar

a psicanálise para além dos limites estipulados pelos mestres.

Nesse ínterim, é importante frisar que a leitura escolhida por cada psicanalista

sempre estará pautada por um dado discurso. O intuito, portanto, não é de defender ou

salvaguardar uma leitura como a mais correta, mas sim expandir o que de novo pode se

produzir no campo psicanalítico a partir do resgate do que está nas fontes, mas que é

desconhecido e, por isso, não é estudado. Para isso, é imprescindível que os equívocos de

leitura possam ser questionados e trabalhados. A relevância desse processo está em

examinar quais as consequências dessa outra leitura para a clínica, e como podemos

operar a partir dessas novas evidências.

Com isso, apostamos que a proposta de Lacan possa ser democratizada. Não basta

disponibilizar todo o seu Ensino e deixar que cada um se aproprie dele como quiser, sem

coordenadas. Um acesso universal implica oferecer também “chaves de leitura”, ensino

das matemáticas, do estruturalismo, da física teórica. Uma reforma que passa não apenas

pelas Escolas, mas também pela academia. Enquanto Lacan for mantido para poucos,

elitizado, se perpetuará um determinado controle do que se faz e como se aprende. Uma

estratégia obscurantista, lobo em pele de cordeiro, que convida a um Lacan elucidado,

menos difícil, desde que se aceite a submissão ao domínio dos mestres. Burlar isso

significa aceitar que Lacan não poderá ser clarificado para ser entendido. Pelo contrário,

é no esforço de entendê-lo na complexidade que propõe que ele poderá tornar-se claro a

quem não recuar deste trabalho. Avancemos nesta direção.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Questões preliminares a todo tratamento possível do Matema. Do terrorismo dogmático

à lógica cosmopolita

Augusto Corrêa Vaz de Melo

“As matemáticas servem para isso: corrigir o objeto.”

(LACAN, 1978)

Em uma palestra sobre a relação da filosofia com as matemáticas, Alain Badiou (2017)

começa com a seguinte pontuação:

A matemática, isso é terrível, em certo sentido. Não porque ela seja muito complexa,

mas porque é muito simples. Você lê alguma coisa, alguma fórmula, e procura a

significação de tudo aquilo. Mas não há nenhuma significação ali. Tudo está na

superfície das fórmulas em si mesmas. Então, a dificuldade das matemáticas é, em

certo sentido, a dificuldade de algo que é como um sem-sentido. Algo em que a

verdade é separada do sentido, da significação [tradução nossa].

Fiquemos com esta ideia por enquanto. Eidelsztein (2015), por sua vez, chamou a

atenção de um público atento no Uruguai, dizendo que é bastante curioso que toda aquela trupe

de seguidores de Lacan, aqueles mais fiéis, que estavam sentados em frente ao homem, ao

longo da maioria dos seminários, quase ninguém ali trabalha hoje com, ou sequer faz menção

às matemáticas. Parece que um espectro ronda o lacanismo e ele tem um nome próprio:

matema. Essa aterrorizante quimera tira o sono de alguns colegas – isso quando ela é ao menos

lembrada. Quando uma fração considerável do ensino do já falecido francês – sempre bom

lembrar que ele já morreu – é simplesmente colocada de lado, negada, ficamos com um Lacan

mais palatável e, curiosamente, menos obscuro1.

Eis a nossa primeira tese, então: o objeto que chamamos “matema”, que ainda não

definimos, sofre o mesmo destino de um outro projeto de destaque no ensino de Lacan, qual

seja: a relação de íntima dependência da psicanálise com a ciência. Ojeriza, desprezo, combate,

guerra, eis algumas das maneiras pelas quais é tratada essa relação. “A psicanálise é

anticientífica”, escreveu um colega. Por ora não vamos adentrar essa intensa querela, o que

faremos é apenas pontuar uma simples distinção que deveria ser evidente para aqueles que

seguem as premissas da psicanálise lacaniana. Para Lacan, quando se fala em ciência, trata-se

1 Obscuro: que não é iluminado; pouco claro, pouco brilhante; escuro. Que denota tristeza; sombrio, tenebroso.

Pouco conhecido; desconhecido. Pouco inteligível; difícil de compreender: conceito obscuro. Sem nobreza;

humilde: nascimento obscuro; posição obscura. Pouco definido; vago, indistinto. [Física]: Calor fornecido, sem

emissão de luz, por um corpo cuja temperatura é elevada; calor obscuro. Etimologia: Do latim obscurus, “escuro”.

Disponível em: <https://www.dicio.com.br/obscuro/>.

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basicamente da relação entre a escrita (matemática) e a realidade. Em 1974, em uma de suas

visitas pelos Estados Unidos, ele falava para uma plateia inquieta que o questionava sobre qual

seria, então, a sua noção de ciência.

Sra. Turkell: Mas qual é a sua definição de ciência? Essa é a questão. J. Lacan: Até o

momento, tudo o que foi produzido como ciência é não verbal. Naturalmente, é

evidente que a linguagem é utilizada para ensinar ciência, mas as fórmulas científicas

são expressas sempre por meio de pequenas letras. 1/2 𝑚𝑣2, como relação entre a

massa e a aceleração da velocidade, não pode ser explicada pela linguagem senão

pelos mais longos desvios. Sua significação precisa ser estritamente limitada e, ainda

assim, não é perfeitamente satisfatória. Por exemplo, quando tratamos com elétrons,

nós já não sabemos o que entendemos realmente por massa ou velocidade, porque

somos incapazes de mensurá-los. A ciência é o que se sustenta, em sua relação ao

real, graças ao uso de pequenas letras (LACAN, 1976/2016, p.39).

Hoje é bastante evidente, e até cômico, que não se poderia esperar outra reação dos

Yankees. Lacan teve que, inclusive, ouvir coisas do tipo: “esta é uma visão muito limitada da

ciência. Ela omite uma grande parte da ciência” (LACAN, 1976/2016, p.41), ou, “mas por que,

doutor, você insiste tanto sobre a necessidade de fórmulas matemáticas para definir a ciência?”

(p.43). Vale reforçar, de passagem, que, de fato, o incômodo não é só da nossa atualidade. Que

a psicanálise, portanto, tenha nascido sob o solo da literalização do universo (KOYRÉ,

1973/2011; LACAN, 1966/1998), isso já não passava incólume quando Lacan assim o

postulou.

Dito isso, antes de adentrarmos nosso assunto, deveríamos ter a capacidade de separar,

ou mesmo definir, por um lado, essa maneira de conceber a ciência e, por outro lado, o que

vamos simplesmente chamar de cientificismo. Por cientificismo, entende-se essa espécie de

ideologia predominante no nosso mundo que supõe a tese segundo a qual as ciências, chamadas

naturais, reconhecem/dominam a camada fundamental da realidade (o mundo em si). O

cientificismo predominante do nosso mundo moderno, portanto, é o neurocientificismo. Essa

ideologia estabelece que processos neuroquímicos, em geral ligados à plasticidade cerebral,

estão necessariamente associados à dinâmica comportamental, anímica e/ou subjetiva. Contra

essa ideologia, os analistas têm todo direito de se revoltar. Mas notem que, ao que parece, ao

jogar contra o neurocientificismo, acabamos por condenar também a ciência da qual depende

nosso sujeito.

Na mesma batente, é preciso destacar duas correntes de pensamento que se aliam ao

cientificismo moderno e interpelam duramente a psicanálise: 1) a primazia da empiria como

autoridade capaz de legitimar um saber – perspectiva que vem de K. Popper e coloca a

psicanálise como uma “pseudociência”, tal como o tarô, já que “não tem base empírica”, e 2)

a hierarquia e a separação dos campos de saber – trata-se aqui de algo levantado no famoso

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livro “imposturas intelectuais” (de Alan Sokal e Jean Bricmont), que expressa a orientação de

que, por exemplo, no nosso caso, nós psicanalistas não estaríamos autorizados a “usar”

nenhuma formulação ou proposição matemática, sob pena de nos rotularem como “charlatões”,

“impostores”. A chave de todo esse imbróglio é que, bem como nossos detratores, fazemos o

mesmíssimo papel de antagonista. Concordamos de peito estufado que a nossa disciplina, o

nosso ofício, não tem absolutamente nada a ver com a ciência e tampouco com as matemáticas.

De um lado somos “pseudociência” e, de outro, “anticiência”. Vejamos o que diz uma

respeitada “psicanalista”:

De tanto criticar o recurso à emoção, os lacanianos fundamentalistas, obnubilados

pelo formalismo dos nós e dos matemas, correm o risco de perder de vista o

sofrimento dos pacientes. Quanto mais inovadora uma teoria - e a de Lacan foi muito!

- mais ela corre o risco de cair, a qualquer momento, no dogma. E o lacanismo não é

uma exceção à regra (BADIOU, ROUDINESCO, 2012, p.29).

O diagnóstico da historiadora é radical: os lacanianos que trabalham com matemas são

fundamentalistas2. Ela vai fundo e repete um motivo comum na nossa comunidade: há um risco

eminente de que quanto mais rigorosa ou formal é uma teoria, mais ela tende a cair no dogma3.

Essa é, talvez, a linha predominante de pensamento entre os lacanianos. As matemáticas

levariam inevitavelmente à ausência de diálogo, à verdade absoluta, à exclusão do outro, à

barbárie. Está escrito na fórmula, logo, é verdade - e não ouse discordar. Aliado a essa paranoia,

nossa psicanalista também aponta para o terror que é o total apagamento do sofrimento dos

nossos pobres pacientes. Cito mais uma passagem do mesmo texto, um pouco longa, mas que

serve para vermos até onde vai esta ideia. Vejam que nossa autora atinge o ápice do seu

diagnóstico:

Nos últimos seminários, Lacan caiu em um certo delírio especulativo, obstinando-se

a atar e desatar seus nós. Os matemáticos com quem trabalhou, Pierre Sourry, Michel

Thomé ou ainda Jean-Michel Vappereau, participaram dessa aventura, que deixou

muitos traços: desenhos coloridos com anéis e referências. Em Lacan, essa aventura

acompanhou o desaparecimento progressivo da palavra e do dizer. No fim da vida,

ele se tornou não afásico, mas praticamente mudo, apesar de multiplicar ao infinito

os neologismos. Era fascinante ver aquele homem desfazer seu pensamento em

público. Foi um gesto inaudito, fundamentalmente subversivo, como uma última

provocação, um pontapé final na suposta onipotência teórica. Lacan se debateu com

suas aporias e afundou no desespero: temia a morte, mas, ao mesmo tempo, a

2 O fundamentalista acredita nos seus dogmas como verdade absoluta, indiscutível, não colocando de parte,

contudo, a premissa do diálogo. Fundamentalismo “é um movimento que objectiva voltar ao que são considerados

princípios fundamentais, ou vigentes na fundação do determinado grupo”. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Fundamentalismo>. 3 Dogma é uma crença ou doutrina estabelecida de uma religião, ideologia ou qualquer tipo de organização,

considerada um ponto fundamental e indiscutível de uma crença. O termo deriva do grego δόγμα, que significa

“aquilo que aparenta; opinião ou crença”, por sua vez derivada do verbo δοκέω (dokeo), que significa “pensar,

supor, imaginar”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Dogma>.

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afrontava. Pessoalmente, não creio que possa ser imitado nesse ponto, como alguns

de seus epígonos o fazem. A formalização excessiva e seus impasses trazem algo para

a prática psicanalítica? Digamos que não acredito, pois consistiriam sobretudo em

dissolver o tempo das sessões, em nome de um formalismo cruel e brutal, com que

não concordo e que tende a desumanizar o tratamento. Mas deixemos a questão em

aberto. Não nego que o último Lacan tenha sido heroico até em sua aflição final,

muito pelo contrário. Mas não acho que essa busca final tenha trazido uma renovação

da clínica [grifo nosso] (BADIOU, ROUDINESCO, 2012, p.73).

“Delírio especulativo”? “Aventura”? Essa aqui é interessante também: “Lacan se

debateu com suas aporias e afundou no desespero: temia a morte, mas, ao mesmo tempo, a

afrontava.” Lacan trabalhava com matemas e nós, seguido de perto por matemáticos de

prestígio, e disso conclui-se que, quase como um delirante desesperado, ele temia a morte, mas

a afrontava. De onde se tiram essas conclusões, esses diagnósticos por demais estapafúrdios?

Vai saber… Mas vamos insistir na nossa questão. Nossa autora diz que – opinião dela – as

formalizações não acrescentam absolutamente nada para a prática clínica. Reparem que o

formalismo aparece aqui adjetivado: “cruel e brutal”. Mais uma vez, isso que andam chamando

de formalismo seria ligado a um fundamentalismo difuso que em última instância faz mal aos

nossos analisandos.

Convenhamos: a maioria de nós fica sem entender um dos projetos mais importantes

de Lacan por conta dessa hipótese tão difundida. Ao que parece, o francês teria se esforçado

para deixar uma indicação importante aos seus alunos que simplesmente não passou. E não só

não vingou, como tornou-se um dos motivos de repulsa para jovens e velhos, simpatizantes e

caciques. Parece que propostas como a seguinte foram simplesmente apagadas:

“A formalização matemática – é nosso fim, nosso ideal – por quê? – porque somente ela é

matema, quer dizer capaz de se transmitir integralmente” (LACAN, 15/5/1973).

De todo modo, curiosamente, esse famigerado matema ganhou, também, um outro

estatuto na nossa comunidade. Ter a experiência de entrar numa escola de psicanálise é quase

como entrar em um museu esotérico, onde ficam em exposição fórmulas em quadros, esculturas

de figuras topológicas, cartazes com muitas letras soltas... E os nós? O que falar deles? A

impressão que se tem é a de que esse é um fetiche muito especial dos analistas. Ninguém faz

ideia do que seja, qual o seu funcionamento, ao que ele se propõe – senão para dizer que se

cortamos um, os outros dois se soltam também. Mas mesmo sem se preocupar em entendê-lo,

o “nó borromeu” está lá. Presente. Não há melhor ilustração de capa de livro!

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O matema, aqui exposto, adquire sua função de adorno, de bijuteria. Reparem: se ele

não serve, não contribui em nada para nossa prática clínica – como sugere nossa historiadora –

, ao menos temos uma “obra de arte”. Nós extraímos todo seu aspecto, supostamente

subversivo, perigoso, fundamentalista, dogmático, e ficamos com seu valor estético. Há,

portanto, um caroço, uma pedra no sapato, uma perturbação, que temos que desviar, como

quem se desvia de uma bala à la Matrix. Abrimos um dos seminários e nos deparamos com

fórmulas matemáticas, com desenhos esquisitos, com diagramas complexos. Isso quando não

nos aventuramos em tentar ler sessões dos seminários que são inteiramente dedicadas a áridas

explicações e demonstrações. “Lacan só podia estar de sacanagem”, “ele era um

prestidigitador”, “estava em puro delírio”. Mas olhem que interessante essa banda de Moebius,

muito bonita, já tenho capa de agenda, ou desenho para uma ecobag4...

Enfim, para além dessa querela, que é inteiramente política, vamos colocar os pingos

nos “is” e tentar compreender o que vou chamar, por enquanto, de projeto Matema. Digo

“projeto” porque me parece que é preciso justificar algo que vai muito além das já populares

fórmulas, às quais nos acostumamos a nos referir pela alcunha de matema. Mas, reparem vocês

que essa empreitada, ao longo de mais de 30 anos, vai além. Proponho que, sim, há as fórmulas,

e também uma série de outras proposições que não são, de fato, literais, como por exemplo, os

Nós. Sim, eles são, também, parte do que estou chamando de matema. E aqui cabe um

parêntese: outro importante analista escreveu um livro chamado “A obra clara” que não passa

de uma das mais profícuas tentativas de deslegitimar a noção de ciência e, consequentemente,

a opção lacaniana pelo matema. A certa altura, o autor do livro sugere que, por volta de 1973,

Lacan teria se deparado com um limite conceitual inerente ao próprio matema, tendo como

recurso frente a esse limite o seu total abandono.

Pasmem: Lacan teria dissolvido seu projeto “formal”, tal como dissolveu sua Escola.

Claro, se o matema guardava relação com o ensino, a dissolução da escola só se daria com o

abandono do matema. Essa é uma outra leitura comumente associada à introdução de lalangue,

como responsável por organizar o campo no lugar vago, que outrora seria das matemáticas.

Mais uma vez a saída é estilosa, estética, artística, poética. Há o Lacan dos matemas e há o

Lacan que entendeu que não pode ser malvado com seus pacientes, nem dogmático com seus

alunos. Um Lacan poeta.

4 Quem também não saiu correndo para a livraria mais próxima para comprar um romance de Joyce, ao invés de

procurar literatura sobre teoria dos nós? Mea culpa.

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O esquisito dessa aposta, no referenciado livro, é que a entrada em cena do poema

acompanha a entrada dos nós. Mas ora, vejam que interessante. Para o nosso autor, a teoria dos

nós, em Lacan, não é uma teoria matemática! O poema está a salvo! Ele diz:

para o nó, as tranças, etc., a situação é muito diferente. Sem dúvida vem da

matemática, porém mais a título de curiosidades; o nó se esgota em sua mostração

incansavelmente variada e não requer, para legitimar sua eficácia, estar integralmente

escrito (MILNER, 1995/2016, p.170)

E, um pouco mais a frente: “não só o nó não está matematizado, senão que só funciona

por não estar” (p.171). Essa manobra complexa, portanto, deixa a salvo o psicanalista do terror

do matema. Então, temos o nó, ele tem sua importância – ao menos para esse autor, talvez não

se possa dizer o mesmo para os demais analistas – mas não é matemática5. O que faz com que

esses e muitos outros prestigiados autores sustentem uma posição tão feroz contra as

matemáticas? Por ora, fiquemos com a pergunta…

De volta ao “projeto Matema”, a primeira coisa a se entender de uma vez por todas é o

seguinte: quando se lê uma fórmula, por exemplo, x = ay + b, trata-se de alguma coisa

inteiramente sem sentido. Não há sombra de significação aí. Essa fórmula não quer dizer

absolutamente nada. Tal como começamos, nas palavras de Alain Badiou, “a dificuldade das

matemáticas é, em certo sentido, a dificuldade de algo que é como um sem-sentido”. Então

peguemos uma das várias “letrinhas” de Lacan - s(A). Reparem que em uma primeira olhada,

essa “cruel e brutal” fórmula se refere no máximo a duas letras do nosso alfabeto, colocadas

em relação à adição de um símbolo que chamamos “parêntese”. Só isso e mais nada. Não há a

menor possibilidade de que essas letras e esse parêntese digam algo para além do que está no

papel6. Qual é a sacada, então? Uma fórmula, qualquer que ela seja, precisa, necessariamente,

vir com um suporte de discurso, em seu duplo sentido: é necessário que se fale disso, e é

necessário que haja uma articulação de significação por detrás dessa fala para que, por fim,

comecemos a propor alguma coisa. Isso supõe a absoluta dependência da letra, seja ela

algébrica ou não, ao discurso. Lacan disse isso em inúmeras ocasiões e de diversas maneiras.

É preciso entender o motivo disso ter sido apagado, elidido.

5 Ciência pura. É assim que uma matemática brasileira de grande destaque se refere à teoria dos nós: Disponível

em:<https://brasil.elpais.com/ciencia/2019-12-21/jovem-matematica-refuta-conjectura-estabelecida-ha-30-anos

.html?outputType=amp&fbclid=IwAR3y116PHSDiFewhnlEHD7ndve4qIKUY-ZsTGaKUN2i9h3xsiJJAF5Yw

QQI>. 6 Quiçá, dizer que são letras do alfabeto já é algo resultante de uma inferência assentada em uma coordenada

específica que, para nós brasileiros, é comum. Digo isso porque geralmente Lacan fazia o experimento de

perguntar: o que é o símbolo “A”, que tanto escrevo? Claro, ele nos lembrava, trata-se de uma cabeça de gado

virada ao avesso...

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Mas essa dependência ainda não nos diz muito. Precisamos avançar. Reparem: esse

projeto se coloca inteiramente no contexto da revolução científica. Koyré, o guia de Lacan, diz

que o universo é escrito em linguagem matemática, como vimos acima. E porque ele diz isso?

Em primeiro lugar para tirar a física, disciplina reformada pela pena de Galileu, do dogmatismo

e do senso comum. A física não mais é objeto da experiência imediata e da opinião. Em última

instância, trata-se de uma maneira de pensar que vai ganhar contornos rigorosos com Newton,

Einstein e Heisenberg – apenas para citar alguns, em suas respectivas décadas. O centro disso

tudo é uma argumentação racional que se baseia exclusivamente em fundamentos e decisões

conceituais. Ou seja, em proposições que precisam ser demonstradas e provadas

matematicamente. A matemática, então, é o locus da prova, da experimentação. Sua extensão

e seu limite.

Outrossim, é sempre bom lembrar também que, quando se faz ciência – essa que

estamos nos referindo –, não se está mais tratando de Verdade. Para Lacan, fazer ciência,

argumentar, provar matematicamente um experimento mental e demonstrar um teorema é um

processo que depende da foraclusão da verdade! Então estamos inteiramente no campo do

saber. Por isso que uma prova que se considera verdadeira pode mais tarde ser reprovada. Se

quiserem, a própria Verdade, para Lacan, é flagelada, cindida – meio-dita, essa maldita. Além

disso, há ainda uma proposta inaudita no seio do debate lacaniano com as ciências. Em 1966,

ele julga necessário esquecermos essa coisa de separar ciências naturais, de um lado, e ciências

humanas, de outro. Botaríamos tudo em um mesmo saco que passaria a se chamar “ciências

conjecturais”. Para onde foi essa ideia? Elas parecem fugir, não?

Então reparem no pulo do gato: Roudinesco e sua trupe condenam o formalista – aquele

que opera com matemáticas – e o diagnosticam de fundamentalista e dogmático! Ora, ela erra

o alvo de maneira escandalosa. As matemáticas, desde o começo da filosofia grega, são

precisamente o recurso, o pensamento, o discurso responsável por demover o lugar da opinião

e do dogmatismo. É o pensamento matemático que extrai e condena o autoritarismo, seja ele

pessoal ou sacerdotal, e faz da razão uma coisa pública. O homem comum, o profano cidadão

não precisa se apagar diante do poder do sacerdote, ou do padre. Ele mesmo pode chegar ao

teorema. Essa, inclusive, é a proposta de Badiou que, ao que parece, é um dos pouquíssimos

que seguem o matema de Lacan à letra7.

7 Para mais detalhes dessa proposta, conferir os indispensáveis livros do autor, em especial: In praise of

mathematics (BADIOU, Alain; GILLES, Haeri. Malden, MA: Polity Press, 2016), e o seminário dele sobre Lacan

(Seminaire-Lacan. New York: Columbia University Press, 2018). Infelizmente sem versões em português, apenas

inglês e espanhol, além do francês.

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Uma fórmula por si só não diz nada. Por isso Lacan fala de um real sem sentido, dado

que o sentido advém da fala. Por sinal, sentido, na definição do próprio Lacan – que vem de

Frege, mais um desses perigosos fundamentalistas – é a maneira pela qual falo de algo. Então,

há de se articular, estruturar determinadas fórmulas, sejam elas algébricas ou topológicas, a fim

de extrair ou, mais precisamente, produzir seu sentido. Isso se dá pela definição de termos

mínimos de dentro de um campo discursivo. Se digo que a letra A, maiúscula, quer dizer Outro,

trata-se aí de uma decisão absolutamente artificial. Em dado discurso – o da psicanálise no caso

– o A significa o campo do Outro. E isso não serve pra nenhum outro. Notem que não há nada

que sustente essa afirmação senão o pacto, o compromisso, com esse mesmo campo. Isso é

estabelecer um dado fundamental do nosso ofício desde uma decisão radicalmente arbitrária e

contingente. E notem que esse passo é o oposto de qualquer dogmatismo, de qualquer delírio.

Não há nada mais são que uma aposta conceitual desse tamanho. E ética, nesse sentido, é levar

até as últimas consequências o limite que o conceito me coloca. Se o ultrapasso, faço outra

coisa. Vai saber o que...

Então, para começo de conversa, muitíssimo mais importante do que batermos a cabeça

para entender o que quer dizer, i(a), a, A, e etc., o projeto Matema deveria ser pensado em sua

relação com o decisivo declínio da autoridade e da opinião no fazer “científico”. E, mais do

que isso, o matema não é algo a se encontrar, como se fosse a verdade da estrutura ou do sujeito,

ou a razão escondida na vida de alguém, mas sim algo a se fundamentar axiomaticamente, a se

demonstrar e a se sustentar dentro de uma comunidade.

Mas, avancemos em mais alguns exemplos. Tenham em mente o seguinte:

1) “O sujeito é a sombra do número” (Seminário 12, 10/3/1965);

2) “O sujeito é um conjunto vazio” (Seminário 19, 1/6/1972).

Guardem essas citações. Vamos pensar em um cenário hipotético: Antônio é o filho do

casal Bruna e Carlos. Vamos simpaticamente nos referir a eles como a, b e c. Um deles, não

importa qual – vamos selecionar a –, tem algum tipo de sofrimento na sua vida e acaba se

dirigindo a um analista. Lá, “a” fala de muitos assuntos, fala de si mesmo, fala de b, de c, da

relação entre b e c, da sua relação com b e c em separado, e acaba falando da relação entre os

3, a, b e c.

Vamos escrever isso? Dada a situação {a,b,c}, temos uma pessoa que fala sobre as mais

variadas coisas. Listando o que sugerimos acima fica algo assim:

{{a},{b},{c},{a,b},{a,c},{b,c},{a,b,c}}. Muito que bem. Qual é o problema aqui? Se vocês

repararam, trata-se de uma questão matemática elementar. Trata-se de pensar uma contagem

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de todos os subconjuntos possíveis de um dado conjunto. A fórmula para isso é 2x, onde x é o

número de elementos desse dado conjunto. Mas calma lá, vamos contar? {a,b,c}, trata-se aí de

um conjunto com 3 elementos. E 23 dá 8 e não 7. O que está faltando? Ora, a falta. Vejam aqui

a simplicidade da definição do principal conceito na teoria lacaniana. Lembrando que esse

desenvolvimento começa no seminário 12 e termina no 16, mas é no 19 que a coisa fica bem

definida. Ou seja, Lacan tenta, de maneiras distintas, por anos a fio, introduzir a radical

dependência da psicanálise à matemática: “daí minha redução da psicanálise à teoria dos

conjuntos” (LACAN, 1978b). Sim, ele disse isso.

Portanto, há um pensamento, e esse pensamento é o inconsciente. E ele se articula de

tal modo que as matemáticas podem bem fundamentar, descrever, formalizar, mas mais do que

isso. Proponho estabelecermos que o inconsciente é um pensamento que pensa, também,

matematicamente, lembrando que, em 1966, Lacan disse isso com outros termos: as

matemáticas são a substância da psicanálise8. Então, retornando para o nosso exemplo, reparem

que o que falta na contagem é precisamente a “sombra do número”, o sujeito como puro vazio,

a volta a mais no toro que só se contabiliza quando há um fechamento. De uma demanda, eu,

analista, deduzo, através de uma operação, um elemento a mais. Claro, supondo que eu posso

vir a ser aquilo que viabiliza essa função de contagem no interior desse discurso.

Notem que aqui tratei de uma simplificação, porque, a rigor, o conjunto de partida –

que não passa de uma derivação hipotética – pode, ou deve, ser infinito. Não importa. O que

estamos vendo aqui é que a operação de contagem determina que haja um elemento comum, o

conjunto vazio. E por que chamei de derivação hipotética? Porque eu só tenho os elementos

“primários” depois que termino uma análise. Essa é a importância do “bucle”, palavra difícil

de traduzir, mas que indica fechamento, fecho, tal como a fivela de um cinto. O famoso, après

coup, o a posteriori de Lacan, é algo que depende, então, dessa determinação temporal que só

se estabelece com a contagem. Eu conto para depois, e só depois, me dar conta do que eu contei.

Ora, entre inúmeras consequências dessa construção para a nossa teoria do significante,

isso serve, fundamentalmente, para deduzir duas coisas cruciais. Primeiro que a condição para

8 Referência a 1966, seminário 13, Lacan: “Quelqu’un m’a demandé récemment si - j’entends quelqu’un qui n’est

pas de notre domaine, qui est un mathématicien fort distingué, dont j’ai l’honneur d’être l’ami depuis quelques

temps et que certains ici connaissent, au moins par la liaison que j’ai commencé d’établir entre eux et lui - ce

quelqu’un qui n’a pas du tout été inattentif à la sortie du premier cahier du cercle épistémologique m’a posé

certaines questions sur tel ou tel texte de M. MILNER ou de M. MILLER et s’est inquiété, en quelque sorte, de ce

dont il s’agissait, à savoir si c’était de modèles mathématiques ou même de métaphores. J’ai cru pouvoir lui

répondre que les choses dans ma pensée allaient plus loin, et que les structures dont il s’agit ont droit d’être

considérées comme de l’ordre d’un ὑποχείμενον [upokeimenon], d’un support, voire d’une substance de ce qui

constitue notre champ” (p.160, site: www.staferla.free.fr).

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haver um sujeito é uma operação de contagem, ou melhor, uma intervenção no discurso, dado

que, como estamos vendo, uma intervenção sob essas diretrizes é a entrada em cena de um

elemento a mais. Então, conclui-se que não há sujeito antes de uma análise. E, segundo, isso

evidencia que o nosso sujeito, isso sobre o que operamos, não é alguém, não pode ser algo no

qual alguém se torna e não pode ser algo com o que, ou pelo que, alguém se responsabilize -

senão o próprio analista -, já que, por definição, trata-se somente do centro ausente da estrutura.

Alguém fala e faz consistir, em uma análise, um vazio de indeterminação para um dado

interlocutor específico.

E aqui entra talvez o aspecto mais importante deste início de conversa. Vejamos o

problema sob outro prisma:

O alvo, o objetivo da evacuação da significação é, entretanto, exatamente o primeiro

aspecto sugerido pela perspectiva de nossa experiência. Até um certo grau, como

acontece que ela não opere mais facilmente? É devido às propriedades enganadoras

da figura. Vou tratar de me explicar, de fazer compreender o que quero dizer neste

momento. A figura é, justamente, a garrafa de Klein aqui desenhada, sob um aspecto

enganador porque é o aspecto sob o qual efetivamente a estrutura nos engana: é o

aspecto sob o qual parece que nossa consciência, que nosso pensamento, que nosso

poder de significar redobra, como um forro interno, o que o enveloparia, mediante o

que vocês só terão que revirar o objeto e criarão essa ideia de sujeito do conhecimento

que inversamente, ele, envelopa o objeto do mundo que ele propõe (LACAN,

6/1/1965, p.69).

O que tem a ver a garrafa de Klein com o proposto acima através da teoria dos

conjuntos? Ambas as intervenções, porque enquadram-se na proposta geral do matema como

organizador do campo da psicanálise, requerem, exigem, um esforço subtrativo. Vejam, nosso

objetivo primeiro é a evacuação da significação. É a característica fundamental da nossa tarefa

de analistas, pois partimos do pressuposto de que aquilo sobre o que uma pessoa fala não está

dado, não é evidente.

Quando falamos em análise, fazemos consistir um objeto de discurso que guarda íntima

relação com o mundo, mas a rigor, não está nesse mundo. Essa é a premissa básica de um

analista: os fatos com os quais lidamos são fatos de discurso, dado que não há realidade pré-

discursiva. Então, se seguirmos à risca a opção de adotar o aparato conceitual proposto por

Lacan, temos como função colocar em situação a inconsistência de uma dada significação. E é

por isso que perguntamos aos nossos analisandos: “o que você quis dizer com isso?”.

Dito isso, nesse momento do ensino, Lacan parece querer apontar para a nossa

dificuldade em operar sob essa direção. “É devido às propriedades enganadoras da figura”, ele

diz. Bom, por ora não precisamos ir a fundo na matemática envolvida, mas reparemos o

seguinte: a garrafa de Klein, assim como o cross-cap, diferentemente do toro e da banda de

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Moebius – a essa altura, essas são as quatro superfícies privilegiadas por Lacan –, são duas

espécies de superfície que possuem a característica de não poderem ser mergulhadas na terceira

dimensão sem perder alguma coisa. Lembremos que todas elas são objetos, ou entes

matemáticos que servem, entre inúmeras coisas, para descrever relações. Notem: a garrafa de

Klein tem quatro dimensões. E aqui está toda a questão. Quando imaginamos, ou quando

construímos um corpo de três dimensões para esses objetos, ultrapassamos um limite, uma

fronteira marcada pelo impossível, o nome próprio do Real lacaniano.

Agora analisemos com Lacan. Segundo ele, a maneira que pensamos é decorrente de

uma metafísica muito bem estabelecida. Não conseguimos pensar sem nos orientar através da

não-contradição e do espaço 3D. A estrutura, então, nos engana. Essa dupla conversão que a

língua provoca – uma vez que nossos pensamentos são estruturados como uma linguagem e,

mais que isso, diferente da proposta cartesiana, vale também lembrar que os nossos

pensamentos têm extensão (LACAN, 1961-62/2003) –, esse redobramento sobre si mesmo é

responsável pela torção que faz com que imaginemos um sujeito do conhecimento, um agente

de uma ação. Reparem que esse sujeito não está lá a priori. Ele é um equívoco, um desvio de

estrutura.

Para ficar mais claro, vamos destacar o seguinte: com o projeto do matema, Lacan nos

convoca a pensar o pensamento por detrás da nossa função de analistas. Lembrem que ele

afirma que nós pensamos com um instrumento, tal como escrevemos com uma caneta. Ora,

então, que tal trocar a caneta? Que tal passarmos a pensar com outras bases? Mas, por quê?

Bom, talvez porque as matemáticas vão precisamente pensar a ausência de ser e propor um

pensamento sem um – ao menos, até Badiou complicar a coisa toda.

E, mais importante, as matemáticas vão propor objetos fora do senso comum. Para

Lacan, é como se o senso comum fosse o subproduto indigesto da emergência, do mergulho

em uma piscina, daquilo sobre o que a linguagem fala. Trata-se de uma mudança de “n”

dimensões para três, trazendo consigo um impasse. Uma ilusão de ótica – ou seria de escuta?

– que faz com que eu coloque um sujeito indevido em um lugar inadequado, ou melhor, fazendo

simplesmente com que eu diga que um sujeito, esse famoso sujeito da ciência, é uma pessoa

de carne e osso, quando não poderia jamais ser. Reparem então o papel decisivo dessas

ferramentas na nossa formação. Se penso “matematicamente” não caio na esparrela de supor

que quando Lacan fala de sujeito, está falando de fulano ou sicrano9.

9 Geralmente, quando sustento essa tese, tenho de fato em mente o colega que esbraveja que não consegue pensar

a “função paterna” sem estar encarnada em alguém, que não consegue deixar de dizer que “um sujeito deve se

responsabilizar pelo seu sintoma”, mesmo tendo uma vaga ideia de que um sujeito jamais pode ser alguém. E,

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Por fim, concluo e proponho: não há psicanálise sem o suporte do pensamento

matemático. Esse não é um dogma religioso, mas sim uma proposta conceitual. Está aberta

para debate. A outra faceta dessa proposta é que, ao que parece, a rigor, colocar em cena a

dependência da psicanálise à ciência e ao matema nos leva, inclusive, a poder desprezar esse

que já morreu em 1981, e não fazer dele, junto com o vienense, a suma autoridade patriarcal.

É nossa a tarefa de legislar sobre o nosso ofício. A responsabilidade é sempre do analista. Dos

vivos, que circulam na pólis. Uma psicanálise deve, por fim, ser subtrativa e profana. Deve ser

lógica, racional, argumentativa e, por fim, apoiada no projeto Matema.

porque não, sempre há aquele que não consegue falar de sexualidade sem referir-se ao corpo biológico e que, por

vezes, condena aqueles que, por exemplo, fazem cirurgias para mudar seu corpo. Para todos esses essencialistas,

o nome do xarope é matema!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EIDELSZTEIN, A. (2015). Minicurso: ¿Por que o matema? - PARTE 1. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=fViaqIlRxGA>.

KOYRÉ, A. (1973). Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Editora

Forense LTDA., 2011.

LACAN, J. (1961-62). O Seminário, livro 9. A identificação. Seminário inédito, Recife,

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Seminário inédito, Recife, 2003.

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LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra

Freudiana, 2010.

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MILNER, J-C. (1995). La Obra Clara. Lacan, la ciência, la filosofia. Buenos Aires,

Argentina: Ediciones Manatial S.R.L, 2016.

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Afinal, o que disse Lacan? – o inefável, a vivência e o rechaço ao matema.

Ramiro Faria de Melo e Souza

A qualidade do obscuro é ser privado de luz, pouco iluminado, sombrio.

Figurativamente, representa aquilo que é desconhecido, pouco inteligível e sem nobreza1.

O obscurantismo, que procuramos ler como um movimento político, significa um estado

de espírito refratário à razão, bem como a “doutrina daqueles que não desejam que a

instrução penetre na massa do povo”2. Ora, entre aquilo que é obscuro e o movimento

obscurantista, há uma certa diferença que reside justamente no que podemos chamar de

“intenção”. Se ao obscuro concedemos a definição própria de ser pouco inteligível por

conta própria, no caso do obscurantismo o jogo muda. É a própria intenção de um

movimento obscurantista procurar colocar algo como obscuro, privar as massas de acesso

ao conhecimento, bem como apelar para definições voluntariamente retorcidas ou vagas.

Pois bem, aqui já fazemos uma primeira inflexão em relação à questão de ensino de

Lacan: ele era difícil, obscuro? Possuía uma intenção obscurantista? Ou, pelo contrário,

podemos afirmar que os pós-lacanianos têm grande responsabilidade pelo obscurantismo

enxergado em nosso campo, pela miríade de conceitos pouco definidos e confusos?

Podemos afirmar com tranquilidade que o ensino e a transmissão da psicanálise está

disponível para as massas – nem que seja para a massa específica de alunos que por

condição privilegiada já estão estudando psicanálise?

Antigamente, os exegetas eram aqueles que passavam a palavra de Deus para os

ignorantes. Iluminados pela leitura do livro sagrado, possuíam a verdade divina de modo

exclusivo e excludente. Deus aparentemente só falava latim – e que bom, pois assim o

manejo do status de detentor da verdade era mais fácil. Vedava-se o acesso à tradução da

Bíblia para outras línguas justamente para que a posição de poder implicada nessa relação

de saber (de poucos) e ignorância (de todos) fosse mantida. Todos sabemos qual

estardalhaço institucional foi produzido quando Lutero procurou traduzir a bíblia para

que ela pudesse ser transmitida sem a regulação do dogma estabelecido. É de se imaginar

por qual razão, então, a circulação de um saber é pouco interessante para aqueles que

detêm a palavra de ordem. Se a palavra de Deus é aquilo que eu digo, é bom que apenas

eu tenha acesso à sua interpretação. A tentativa de Lutero em traduzir a bíblia

1 Cf. https://www.dicio.com.br/obscuro/ 2 Cf. https://www.dicio.com.br/obscurantismo/

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representava uma nítida ameaça à ordem que estava estabelecida. Da mesma forma

Descartes, de acordo com seu compromisso com a razão e com o método científico,

escreveu o “Discurso sobre o método” em francês. Dessa forma, qualquer cidadão francês

disposto a usar a racionalidade poderia chegar à verdade. Não havia sentido em uma

coagulação de saber, uma vez que todos somos racionais e todos podemos usar nossa

razão de modo apropriado. A palavra-chave nesses dois casos (Lutero e Descartes) é

transmissão. Ambos estavam compromissados com a transmissão daquilo que lhes

interessava. Em Lutero, a escritura sagrada. Em Descartes, o uso da razão. Em ambos, a

questão da tradução é central. Do latim, língua erudita desconhecida pela massa, para o

alemão, no caso do primeiro, e francês, no caso do segundo.

E o que dizer da tradução de Lacan? Não é de espantar que um autor reputado

como um dos mais importantes do século XX tenha tanta coisa que simplesmente não foi

publicada? Por que essa insistência em não permitir que a palavra de Lacan, dita em 27

seminários, circule com facilidade? Será que isso é acidente histórico ou decisão clerical?

Uma contingência que foi lida como uma necessidade? De toda forma, permanece o fato

que muito do que Lacan diz é reformulado ou censurado pelo seu genro Jacques Alain-

Miller, responsável legal pelo estabelecimento de sua obra. Isso, digamos, quando há

publicação. Até hoje – lembrando que Lacan faleceu em 1981, há 39 anos atrás – alguns

dos seminários mais centrais permanecem desconhecido para todos aqueles que não leem

francês ou desconhecem o lugar onde achá-los. No “Seminário IX”, sem publicação

oficial, Lacan se esforça para demonstrar a estrutura do sujeito pelo toro e afirma

inclusive que o sujeito da psicanálise tem apenas duas dimensões: “para o sujeito duas

[dimensões] bastam, acreditem em mim”3 (LACAN, 1961-1962, lição 07/03). Essa

pequena passagem já contrasta violentamente com o que escutamos. O que está em jogo

para Lacan, nesse momento, é mostrar que o sujeito advém de um erro no cálculo

(LACAN, 1961-1962). O toro vem estruturar a relação do sujeito com o significante.

Sujeito que, enquanto tal, não é um corpo inefável, um real do corpo que o significante

marca, mas tão-somente aquilo que se repete no toro, que se escreve nele de forma

matemática. Escrita, aliás, que é o próprio campo da psicanálise, seu suporte e sua

substância. Quando perguntado por um matemático próximo dele se o recurso à

matemática era uma metáfora ou um modelo mental, responde que “as estruturas de que

se trata têm o direito de ser consideradas como da ordem de um [upokeimenon], de um

3 Tradução livre. Trecho original: “pour le sujet deux suffisent, croyez-moi.”

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suporte, até de uma substância disso que constitui nosso campo”4 (LACAN, 1965-1966,

lição 30/03). Esse seminário, proferido há mais de 50 anos, também não tem nenhuma

publicação oficial. E o que dizer do ato analítico, que é associado ao político e ao poético

de maneira assombrosamente frequente, mas o seminário que o aborda diretamente

(“Seminário XV – o ato psicanalítico”) tampouco ganhou a chance de ser publicado e

transmitido de maneira direta? Nele, a questão do ato está inteiramente dependente de

uma lógica discursiva que faz com que o analista tenha que advir no lugar que lhe é

prescrito, a saber, o lugar do objeto (a) como resto da operação significante. Lugar que,

como sabemos, será formalizado no “Seminário XVII – o avesso da psicanálise”

(LACAN, 1969-1970/1992) com o discurso do analista. O que mais surpreende, contudo,

é que, para Lacan, o analista deve estar atento ao suporte lógico que possibilita o ato para

que aí ele advenha:

o psicanalista nessa posição [objeto a] pode não ter - de tudo isso que venho

de desenvolver, a saber, disso que a condiciona [condiciona sua posição] - a

mínima ideia, a mínima ideia da ciência, por exemplo. Isso é comum. Na

verdade, não lhe é pedido que a tenha, visto o campo que ocupa e a função que

ele deve aí desempenhar. Do suporte da lógica da ciência, pelo contrário, ele

teria muito a aprender (LACAN, 1967-1968, lição 20/03/1968).

Do suporte da lógica, disso que ele chama de substância e sujeito do campo

analítico no “Seminário XIII – o objeto da psicanálise”, o analista teria muito a aprender,

às custas de recusar seu próprio ato. Mais uma citação que entra em contraste enorme

com a suposta óbvia relação entre o ato poético e o ato analítico porque os dois são

operação de extração de sentido.

Pois bem. Três exemplos meramente ilustrativos para dar a dimensão real do

ponto que pretendo levantar. Trata-se desta pergunta: “afinal, o que disse Lacan?”. Ora,

como podemos ver nesses três exemplos muito pontuais, aquilo dito por Lacan não é tão

acessível assim, justamente porque há uma barreira imensa entre aquilo que ele disse e

aquilo que circula na instituição. Pra que ver o que Lacan disse se ele já está elucidado

por Miller? Miller disse que Lacan disse que o gozo é x, y e z. Pronto. A linha continua.

A pessoa X disse pra pessoa Y que Colette Soler falou que Miller disse que Lacan disse

Z. E, afinal, o que Lacan disse, se os seminários não estão publicados? Resta-nos apenas

os exegetas e a transmissão que eles fazem do sentido verdadeiro das palavras de Lacan.

4 Tradução livre. Trecho original: “les structures dont il s’agit ont droit d’être considérées comme de

l’ordre d’un ὑποχείμενον [upokeimenon], d’un support, voire d’une substance de ce qui constitue notre

champ.”

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Daí, acontece que muitas coisas passam a fazer parte do campo lacaniano a

despeito do que o próprio autor disse. Esse é o caso, como pretendo mostrar, de termos

como “o inefável” e “vivência”. Muito se escuta sobre o real como o inefável, muito bem

capturado pela obra de Clarice que, nos limites da linguagem, escreveu um nódulo de

real, uma experiência pelo real. Muitas vezes esse inefável é acompanhado também pela

singularidade. “A singularidade na leitura de cada um” pois “todo mundo lê com um

pouco do seu sintoma”. A vivência da travessia analítica, então, nem se fala. Todos se

autorizam em suas práticas a partir de sua vivência na experiência clínica. De uma forma

ou de outra, tanto o “inefável” da experiência do real como a “vivência” do percurso de

cada um pela psicanálise tornaram-se palavras de ordem em muitas argumentações e

debates no campo. O problema que extraímos disso é que se cada um tem sua vivência

singular e lida com o inefável da experiência, como podemos pensar a teoria lacaniana de

maneira transmissível? Será que devemos nos manter nesse campo em que, em última

instância, apelar para sua própria experiência é uma palavra de ordem? A pergunta que

podemos fazer, para começar a elaborar essas questões, é: esses conceitos eram um

problema para Lacan? Será que Lacan, afinal, falou disso? Ou será que esses “conceitos”

estão aí justamente para apelar para um lado contrário à transmissão rigorosa da

psicanálise?

Em uma rápida pesquisa pela totalidade dos 25 seminários disponíveis no original

em francês no site www.staferla.free.fr os resultados são extremamente reveladores. Ao

todo, a palavra “inefável” é dita pelo francês apenas 44 vezes. Sua incidência

minimamente pregnante é restrita aos 5 primeiros anos de seu ensino. Nos seminários

“Mais, ainda” e “O sinthoma”, muito associados à noção de escrita do corpo, de real de

corpo, inefável e real fora do simbólico, a palavra “inefável” não aparece nenhuma vez.

Uma comparação significativa: apenas no primeiro seminário a palavra ciência é dita 33

vezes, apenas 11 vezes a menos que toda a incidência de “inefável” ao longo dos anos. A

conclusão disso é óbvia: o inefável não é um conceito lacaniano. Para demonstrar essa

tese, que talvez nem precisasse de demonstração, vamos às aparições do termo. Logo no

primeiro seminário – onde supostamente Lacan dava mais relevância ao imaginário – o

termo aparece quando fala sobre Melanie Klein e o problema da indistinção entre real,

imaginário e simbólico. Sim, isso em 1953. Vejamos:

E daí? Para nós, analistas, temos nos contentado com isso até o presente.

Certo, tenta-se elaborar um pouco, mas é bem tímido. Sentimo-nos sempre

horrivelmente atravancados porque distinguimos mal imaginário, simbólico e

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real. Quero agora fazer vocês observarem isso. Quando Melanie Klein lhe

entrega o esquema do Édipo, a relação imaginária que vive o sujeito, embora

extremamente pobre, já é suficientemente complexa para que se possa dizer

que ele tem o seu próprio mundo. Mas esse real primitivo é para nós

literalmente inefável. Enquanto não nos diz nada, não temos nenhum meio de

penetrar nele, senão por extrapolações simbólicas que fazem a ambiguidade de

todos os sistemas como o de Melanie Klein – ela nos diz, por exemplo, que,

no interior do império do corpo materno, o sujeito ali está com todos os seus

irmãos, sem contar o pênis do pai etc. É mesmo? (LACAN, 1953-1954/1986

p.104).

Lacan é enfático: pensar um real primitivo, inefável, talvez até seja possível, mas

enquanto o sujeito não nos diz nada, qualquer atuação é uma extrapolação simbólica. O

inefável, caso exista, não faz parte da experiência analítica sustentada pelo simbólico.

Ainda em 1953, Lacan volta a tematizar a existência do inefável em relação à fala/palavra

(parole5 no original), mas apresenta um curioso movimento:

A palavra não se desdobra num único plano. A palavra tem sempre por

definição os seus panos de fundo ambíguos que vão até o momento do inefável

em que não pode mais se dizer, se fundar, ela mesma, enquanto palavra. Mas

este para além não é o que a Psicologia procura no sujeito e encontra em não

sei qual das suas mímicas, das suas cãibras, das suas agitações, em todos os

correlatos emocionais da palavra. O, por assim dizer, para além psicológico

está de fato do outro lado, é um aquém. O para além de que se trata está na

dimensão mesma da palavra. Por ser do sujeito não entendemos as suas

propriedades psicológicas, mas o que se cava na experiência da palavra, em

que consiste a situação analítica (LACAN, 1953-1954/1986, p.263).

Aqui o inefável entra novamente em cena. Porém, isso que da palavra comparece

como inefável não é algo que se encontre nas cãibras, nas agitações, nas mímicas – aqui

lembro-me de uma colega que localizou o gozo do paciente em seu prepúcio. Aliás, faço

a suposição de que a psicose ordinária é apenas a atualização de uma substância que sub-

repticiamente se apresenta em alguns gestos e contorções no comportamento do paciente.

Pois, como haveríamos de pensar uma psicose antes de sua articulação nos fenômenos

elementares de que fala Lacan (LACAN, 1955-1956/1985b). Enfim, esse não é um

problema de agora – voltemos ao inefável. O para além da palavra encontra-se na

dimensão mesma da palavra. Um trecho de 1953 que tem ressonâncias surpreendentes

com o movimento da instauração do real a partir de um limite da operação simbólica. Se

há o inefável, que seja, mas ele não é da ordem de uma singularidade, de um real do corpo

ou de qualquer tipo de experiência quase mística de travessia por um real pela vivência

da clínica: trata-se da própria palavra e daquilo que ela instaura. Como dissemos,

futuramente esse movimento será lido por Lacan como a instauração de um real como um

5 Parole, em francês, pode significar tanto fala quanto palavra. Optamos por deixar as duas para ressaltar a

ambiguidade.

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impossível justamente pela operação limítrofe do campo do simbólico. Nada de real fora

do laço com os outros registros.

Pois bem, Lacan continua com o inefável. Contudo, paulatinamente vai se

afastando de sua noção como um operador na clínica analítica. Em 1954, ainda falando

sobre a questão do imaginário, afirma:

A economia imaginária não nos é fornecida no limiar de nossa experiência,

não se trata de uma vivência inefável, não se trata de procurar uma melhor

economia das miragens. A economia imaginária só tem sentido, só podemos

influir nela, na medida em que se inscreve numa ordem simbólica que impõe

uma relação ternária (LACAN, 1954-1955/1985a, p.320-321).

Aqui o inefável já perde seu interesse. Não se trata nem de afirmar uma

experiência inefável dentro da palavra, mas de retirar a inefabilidade do campo da

experiência analítica e colocar em seu lugar a relação ternária. Impressionante como o

“Lacan do imaginário” fala de simbólico, real e relação ternária, não? Nos próximos

seminários, o francês dá os golpes decisivos na questão. Quando falava da significação

delirante enquanto inefável, justamente por se tratar de uma significação que reenvia à

própria significação (LACAN, 1955-1956/1985b), faz uma certa avaliação do que

representaria essa fixação pelo inefável:

Eu fiz vocês observarem que o documento tinha sido redigido por Schreber em

um momento bastante avançado de sua psicose para que ele tenha podido

formular seu delírio. A esse respeito, formulo minhas reservas, legitimamente,

já que alguma coisa que podemos supor mais primitiva, anterior, originária,

nos escapa – o vivido, o famoso vivido, inefável e incomunicável, da psicose

em seu período primário ou fecundo. Somos livres para nos hipnotizar neste

ponto, e para pensar que perdemos o melhor. Deplorar que se perde o melhor

é em geral uma forma de se desviar do que se tem em mão, e que talvez valha

a pena que se considere. Por que um estado terminal seria menos instrutivo que

um estado inicial? Nada garante que esse estado terminal represente uma

menos-valia desde que admitamos o princípio de que, em matéria de

inconsciente, a relação do sujeito ao simbólico é fundamental. Esse princípio

pede que abandonemos a ideia, implícita em muitos sistemas, de que o que o

sujeito coloca em palavras é uma elaboração imprópria e sempre distorcida de

um vivido que seria uma realidade irredutível. É justamente a hipótese que está

no fundo de A consciência mórbida de Blondel” (LACAN, 1955-1956/1985b,

p.138).

Blondel que, aliás, não contava com muita simpatia de Lacan. No último

seminário em que dedica mais de duas referências à palavra “inefável”, ataca

impiedosamente o psiquiatra e sua desvalorização da articulação em prol do inefável:

Somente os cretinos imbecis, do tipo do sr. Blondel, o psiquiatra, podem

levantar objeções, em nome de uma pretensa consciência mórbida inefável da

vivência do outro, ao que não se apresenta como inefável, mas como

articulado, e que como tal deveria ser recusado, em razão de uma confusão que

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provém de as pessoas acreditarem que o que não se articula está mais além,

quando não é nada disso: o que está mais além se articula. Em outras palavras,

não há por que falar de inefável quanto ao sujeito, seja ele delirante ou místico.

No plano da estrutura subjetiva, estamos na presença de algo que não pode se

apresentar de outra maneira, senão daquela como se apresenta, e que, como tal,

apresenta-se, por conseguinte, com todo o seu valor, em seu nível de

credibilidade. Se existe o inefável, quer no delirante, quer no místico, por

definição ele não fala disso, uma vez que é inefável. Então, não temos que

julgar o que ele articula, ou seja, sua fala, a partir daquilo que ele não pode

falar (LACAN, 1957-1958/1999, p.158).

E Lacan levou essa ideia a sério. Depois desse momento, no “Seminário V – As

formações do inconsciente”, dos 20 seminários que se seguem a palavra “inefável” não é

sequer mencionada em 14 deles. O inefável decisivamente não é um problema lacaniano.

Quando era abordado por Lacan, era tomado sempre na sua relação direta com a

articulação da fala/palavra (parole). No último momento em que dá uma atenção para ele,

sua conclusão é simplesmente que devemos abandoná-lo pois ele não acrescenta em nada

na análise da articulação do que é de fato dito. Repitamos: o inefável não é, em absoluto,

um conceito ou uma preocupação lacaniana.

Antes de chegarmos à conclusão que nos interessa, vamos analisar brevemente

outra noção. As duas últimas citações, apesar de enormes, foram mantidas intactas porque

abordam, além da questão do inefável, a vivência: outra palavra extremamente em voga

no pós-lacanismo. A vivência e a noção de singularidade entram em plena harmonia no

discurso instituído. Há a vivência singular da clínica que sustenta um caminho próprio

pela teoria, um caminho no qual você deixa algo de si, algo do seu sintoma único. Essa

questão, de certa forma, sustenta a ideia de uma experiência meio mística de veredas por

um real que impõe suas marcas de gozo em um corpo mítico, mas vivo. Já vimos que o

inefável não é bem o que se pensa. E quanto à vivência? Há um apelo em Lacan àquilo

que é sentido e vivido, que se faz numa travessia própria pelo próprio sintoma, à formação

do analista pela vivência de uma experiência na clínica?

Não precisamos nos estender nessa questão. A partir das duas citações anteriores,

vimos que a vivência para Lacan está em segundo plano em relação à articulação da

fala/palavra (parole), ou seja, da articulação significante. Indo além, contudo, podemos

chegar a postular que a vivência de uma análise não auxilia em nada na formação de um

analista. A ideia de transmissão da psicanálise por meio da vivência pessoal da clínica é

perigosa e contra ela devemos ser beligerantes. Perigosa pois permite apoiar a formação

de um analista em todo tipo de pré-conceitos adquiridos na própria experiência clínica –

perigo para o qual Lacan chama atenção:

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O que não quer dizer, no entanto, que isso [as formulações em relação à

experiência psicanalítica] baste para autenticar meu ensino como científico, na

medida em que ele tenta se precaver da negligência que, em nome de uma

suposta referência à clínica, sempre se remete, para dar conta dessa

experiência, a uma função reduzida a sabe-se lá qual faro, o qual, obviamente,

não poderia ser exercido se já não lhe fossem dados os marcos de uma

orientação que, por sua vez, foi fruto de uma construção, e muito doutra: a de

Freud. A questão é saber se basta a pessoa se instalar nisso e, em seguida,

deixar-se guiar, a partir daí, quanto ao que é tomado por uma apreensão mais

ou menos vivenciada da clínica, mas que é apenas, pura e simplesmente, um

lugar para se reintroduzirem sub-repticiamente os mais tenebrosos

preconceitos (LACAN, 1968-1969/2008, p.258).

E devemos ser beligerantes porque nunca podemos esquecer que nossa prática

implica o tratamento de um sintoma. Caso desconheçamos como fazê-lo, o que estamos

fazendo? Apelando pra vivência pessoal de clínica? Não há nada que possa retificar e

estruturar a atuação na clínica? Não abordaremos a questão da estrutura do ato analítico,

mas deixaremos indicado – pois já nos basta para o propósito de colocar a noção de

vivência em xeque – que, se tem algo que pode dar conta da experiência analítica, não é

a vivência (Erlebnis):

se a partir de um certo momento - justamente aquele do nascimento desses

seminários - eu acreditei dever fazer entrar em jogo essa tríade do Simbólico,

do Imaginário e do Real, é na medida que esse terceiro elemento, que não

estava discernido como tal até aí em nossa experiência, é exatamente a meus

olhos o que está constituído exatamente por esse fato da revelação de um

campo de experiência. E para remover toda ambiguidade desse termo - trata-

se da experiência freudiana - eu direi, de um campo de experimento: quero

dizer que não se trata de Erlebnis (LACAN, 1961-1962, lição 13/12/61).

Ao invés de experiência vivida, experimento. Trata-se de fazer algo funcionar

desde uma hipótese. No caso, a hipótese é o sujeito do inconsciente. De toda forma,

apoiar-se no vivido não é suficiente. Lacan vai dizer, nesse mesmo seminário, que Pavlov

criou de fato um significante em seu experimento com o cão (LACAN, 1967-1968).

Vimos, portanto, que o inefável não é um conceito lacaniano e que a vivência não

é uma boa guia no campo analítico. Por que, então, escutamos exatamente o contrário por

tudo quanto é canto? Escutamos tanto sobre a questão do inefável da escrita, do inefável

do corpo em relação à travessia pelo real? Tanto do real como algo fora do simbólico? A

suposição que faço, apoiando-me em Eidelzstein, é que há hoje no campo analítico, pela

tentativa de encaixar Freud em Lacan e Lacan em Freud – o chamado freudolacanismo –

uma querela: “a psicanálise está dividida entre partir de um epifenômeno de corpo ou de

uma lógica significante” (EIDELSZTEIN, 2017, p.189). De um lado, portanto, tudo

aquilo que pode ser pensado do lado do real do corpo, como o inefável e a vivência. Nesse

campo, tratamos de um “real autônomo e anterior ao simbólico e ao imaginário, que

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provém da substância viva do corpo a que chamam pulsional ou de gozo”

(EIDELSZTEIN, 2017, p.180). E do outro lado? O que temos do outro lado permanece

inteiramente rechaçado para a manutenção, por um lado, de um certo domínio de

conhecimento e, por outro, uma continuidade do obscurantismo em nosso campo. Apelar

para uma vivência pessoal nunca possibilitará chegar a um consenso teórico; manter a

circulação dos seminários em âmbito restrito e limitado impossibilita o acesso de um

grande número de pessoas.

O que falta destacarmos é que a meta da transmissão era um problema

fundamental para Lacan. Pode-se dizer, sem forçar a barra, que ele sempre esteve às

voltas com o problema da transmissão, desde o “Seminário sobre ‘A carta roubada’”

(1955/1998) até a questão do passe e dos nós. O que acontece, contudo, é que o lado

matemático do ensino lacaniano, totalmente enraizado na revolução da ciência moderna

e dos desenvolvimentos da lógica matemática, é absolutamente rechaçado para colocar

em seu lugar essa quimera mal-ajambrada de uma teoria freudiana em sintonia com a

lacaniana – esse epifenômeno do corpo com contornos de lógica significante. O que

menos encaixa em Freud, de Lacan, é a formalização matemática – o que Lacan chamava

de ideal justamente por poder se transmitir integralmente (LACAN, 1972-1973). Ela

tornou-se, historicamente e por uma decisão que eu penso como deliberada, uma

idiossincrasia lacaniana, que gostava de ser difícil e enigmático. Contudo, o recurso à

matemática serve um propósito fundamental em sua obra, a saber: colocar em xeque a

noção de substância, matéria, sujeito e objeto tais como eram tratados antes pela

psicanálise. Colocar completamente em subversão a noção freudiana de inconsciente. É

o registro matemático que permite sair da significação infinita e de fato escrever uma

estrutura que pode ser pensada de maneira universal como transmissível. É curioso, não?

Escutamos muito que Lacan era obscuro, barroco e gongórico, mas ele mesmo afirma,

quando perguntado se a incompreensão em relação ao seu ensino era um sintoma, que sua

palavra era sobretudo “de ensino” (LACAN, 1971-1972, lição 2/126) e afirma que a

incompreensão se devia a uma postura da própria instituição analítica: “havia o interdito.

E que, realmente, este interdito tenha vindo de uma instituição analítica é certamente

significativo (LACAN, 1971-1972, lição 2/12).

Começamos o presente artigo com a pergunta: afinal, o que Lacan disse? Vimos

dois termos que passam a torto e direito no campo analítico como conceitos importantes

6 Pelas censuras feitas à versão oficial, que cortou muitos dos seminários em Sainte-Anne, usei a versão não

oficial.

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revelarem-se nada lacanianos, mas talvez pós-lacanianos. Chegamos ao final de nosso

percurso falando da tentativa incessante de transmissão por parte de Lacan. Ora, o

problema é que sua grande aposta – a formalização matemática – entra em contraste

absurdo com a tentativa de fazer de Freud um lacaniano e de Lacan um freudiano (e

sabemos que, segundo Lacan, as coisas são bem diferentes...). Nesse sentido, enxergo a

confusão com o que Lacan disse ou não disse justamente como uma estratégia

extremamente lúcida para manter o campo analítico em certa desordem conceitual.

Impedir que alguns seminários específicos sejam publicados me parece uma estratégia

muito eficaz para tornar Lacan um pensador lacunar, que mudou de ideia várias vezes e

apelava para a dificuldade exuberante de imagens estranhas e toscas como a garrafa de

Klein ou o cross-cap. Surpreende, de fato, que o recurso à matemática cada vez mais

perca lugar, no lacanismo instituído, para um amálgama de vivência pessoal e de análise,

experiência de um inefável ou entendimento particular e sintomático da teoria. O matema,

aposta lacaniana da transmissão em sua função de universal, serve só agora pra adornar

as paredes das Escolas onde os detentores do campo lacaniano lamentam Lacan não ter

escrito em latim.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EIDELSZTEIN, A. (2017) Otro Lacan. Buenos Aires: Letra Viva, Librería y Editorial.

LACAN, J. (1953-1954). O Seminário, livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986.

LACAN, J. (1954-1955). O Seminário, livro 2. O eu na teoria freudiana. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1985a.

LACAN, J. (1955). Seminário sobre “A carta roubada”. In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1998, p.13-69.

LACAN, J. (1955-1956). O Seminário, livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1985b.

LACAN, J. (1957-1958). O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

LACAN, J. (1961-1962) O Seminário, livro 9. A identificação. Sem publicação.

Disponível em: <www.staferla.free.fr>.

LACAN, J. (1965-1966) O Seminário, livro 13. O objeto da psicanálise. Sem

publicação. Disponível em: <www.staferla.free.fr>.

LACAN, J. (1967-1968) O Seminário, livro 15. O ato analítico. Sem publicação.

Disponível em: <www.staferla.free.fr>.

LACAN, J. (1968-1969). O Seminário, livro 16. De um Outro ao outro. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 2008.

LACAN, J. (1969-1970) O Seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Ed., 1992.

LACAN, J. (1971-1972) O Seminário, livro 19. ...ou pior. Disponível em:

<www.staferla.free.fr>.

LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra

Freudiana, 2010.

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O obscurantismo no real lacaniano

Jefferson Weyne Silva Soares

“Se as análises fossem levadas tão a sério quanto me dedico a preparar meu

Seminário, isso, sim, seria muito melhor, e certamente elas dariam melhores

resultados”.

(LACAN, 1975-1976/2007)

A frase com que abro esse trabalho foi dita por Lacan em seu seminário sobre o

sinthoma, na classe de 16 de dezembro de 1975. Resumidamente, o que o psicanalista nos

revela é que sua clínica se sustenta no arcabouço teórico que ele detém. O manejo do caso

e a direção do tratamento, por exemplo, estão submetidos a esse ponto. Portanto, é

fundamental entender os conceitos, saber de onde vieram e em que consistem para uma

prática clínica que neles se apoie. Se a teoria é tão importante quanto Lacan fala, tomo a

liberdade então de analisar de forma mais detida um dos conceitos mais ventilados dentro

do movimento freudolacaniano contemporâneo: o real. Para tanto, proponho então que

tomemos como referência fundamental alguns textos de Jacques Alain-Miller.

Para os que não o conhecem, Miller é psicanalista francês, genro e herdeiro da

obra intelectual de Jacques Lacan, sendo também o responsável pelo estabelecimento dos

seminários ditados pelo mestre francês, bem como de seus textos escritos. Após a morte

de Lacan, Miller toma para si a alcunha de “intérprete” e passa a ditar seu curso intitulado

“orientação lacaniana”. “Obrigado por me esperar, tenho que passar algum tempo na

companhia do texto de Lacan e provavelmente adie o momento de interpretá-lo para

vocês” [tradução nossa] (MILLER, 2014, p.23).

Para Miller (2014) o real de Lacan, muitas vezes, é tomado como o impossível

de dizer, aquilo que não se pode falar sobre (semelhante a coisa em si kantiana) ou o

corpo vivo, organismo biológico, carne e osso. No livro “Elementos de biologia

Lacaniana”, que se constitui de Conferências ditadas no Brasil em abril de 1999, o real

está estritamente vinculado a uma biologia e ao gozar do corpo vivo.

Estas conferências, que podem ser vistas como o ponto de Arquimedes do

curso de Orientação Lacaniana, que teve como tema A experiência do Real no

tratamento analítico, estruturam-se em torno da “ironia da natureza com

relação ao significante” e orienta o projeto de precisar o que é o corpo vivo na

psicanálise. Mesmo sendo sem corpo, é o significante, com sua lógica, que vai

abrir o caminho, juntamente com o pouco que se ordena a partir da biologia,

para se chegar a um saber sobre o gozo. Este saber é, talvez, "o único saber

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psicanalítico não-filosófico, o único saber psicanalítico que temos sobre a vida,

sobre o que é o ser vivo. O 'gozar' do corpo vivo seria, assim, tudo o que

podemos saber dele” (MILLER, 1999, p.9).

Em “El ultimíssimo Lacan” nos diz que “entre a verdade e o real, existe o

impossível, pois ambos limitam e conectam ao mesmo tempo. No lado da palavra,

encontramos o real na forma do impossível de dizer” (MILLER, 2014, p.28).

Além de vincular tais leituras acerca do real, Miller habilita uma progressão e

distinção clara entre um primeiro Lacan, que predominantemente trabalharia o registro

imaginário, um segundo Lacan, com ênfase no registro simbólico, e um terceiro

enfatizando o real do qual esse último desenvolvimento seria o mais refinado e mais

acabado constructo da teoria lacaniana. Abrindo espaço para a chamada "clínica do real".

Nesse sentido, proponho neste trabalho contrapor os argumentos de Miller

acerca do real lacaniano com citações do próprio Lacan. Para tanto me sirvo

prioritariamente do livro “El ultimíssimo Lacan” de Jacques Alain-Miller e do seminário

“O sinthoma” de Jacques Lacan, que até o presente momento é o único seminário do dito

“ultimíssimo” a ser estabelecido por Miller, enquanto detentor da obra intelectual de

Lacan. Deixo claro que não pretendo dizer que minha leitura é a única possível nem a

mais correta, porém pretendo apresentar aqui a oposição de ideias entre o que disse

textualmente Miller acerca do real e as concepções de Jacques Lacan, a fim de verificar

se há coerência entre os dois autores.

Lacan introduz o conceito de real em seu texto de 1953 “Simbólico, Imaginário

e Real”, ao inaugurar a Sociedade Francesa de Psicanálise, junto com Daniel Lagache.

Sobre o real ele diz que:

Antes de mais nada, uma coisa que é, evidentemente, surpreendente e que não

nos deveria escapar: ou seja, que há, na análise toda uma parte de real em

nossos sujeitos, a qual, precisamente, nos escapa; que, no entanto, não

escapava a Freud ao ocupar-se ele de cada um de seus pacientes. Mas

certamente, ainda que isso não lhe escapasse, caía também fora de sua

dimensão e alcance (...). É algo que – é necessário dizê-lo – constitui os limites

de nossa experiência. É nesse sentido que se pode dizer, para expor a questão

do saber que entra em jogo na análise: De que se trata? Acaso, esta relação real

do sujeito – segundo um certo modo e segundo nossas medidas de

reconhecimento – é sobre isso que devemos trabalhar na análise? Certamente

que não. Trata-se, indubitavelmente, de outra coisa (LACAN, 1953/1996, p.1-

2).

Aqui temos o real tomado como um limite encontrado na análise, ao qual Freud

também se deparava, mas do qual não conseguia dar conta, pois “caía também fora de sua

dimensão e alcance”. A análise, que Lacan define como uma construção simbólica por

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meio da fala, leva o sujeito e o analista a se depararem com impasses e impossibilidades,

limites lógicos aos quais o analisando se encontra enredado e paralisado.

Passando ao seminário 23, que foi estabelecido em 2005, ou seja, 30 anos após

ter sido proferido, Lacan nos diz do real como impossível, mas não um impossível de

dizer como aponta Miller. Sua ideia é de que ele seria uma impossibilidade lógica e

inerente ao próprio simbólico ao dizer que “a imaginação de consistência vai diretamente

ao impossível da fratura, mas é por isso que a fratura pode sempre ser o real – o real como

impossível. Nem por isso ele é menos compatível com a dita imaginação, e inclusive a

constitui” (LACAN, 1975-1976/2007, p.37), e que “a boa maneira é aquela que, por ter

reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar

isso até atingir seu real, até se fartar” (LACAN, 1975-1976/2017, p.16).

Se como vimos nas citações anteriores, o real é o impossível, Lacan também

deixa claro na segunda citação que não é o impossível de dizer ou de articular em palavras,

mas uma impossibilidade lógica, e que esse real só pode ser atingido quando a lógica se

farta.

O real para Lacan não está apenas intrinsicamente ligado à lógica matemática,

como não pode existir por fora do simbólico, sendo este último condição para sua “ex-

sistência”, como postula Lacan dois anos antes em seu seminário “...Ou pior” dizendo

que “esse real de que estou falando, o discurso analítico é a conta certa para nos lembrar

que o acesso a ele é o simbólico. Não acessamos o referido real senão no e através do

impossível que somente o simbólico define” (LACAN, 1971-1972/2012, p.136).

Retornando ao seminário “O sinthoma”, define um domínio do simbólico sobre

o real quando nos fala que “o método de observação não poderia partir da linguagem sem

que ela aparecesse como fazendo furo no que pode ser situado como real. É por essa

função de furo que a linguagem opera seu domínio sobre o real” (LACAN, 1975-

1976/2007, p.31), e ainda “não é fácil para mim impor-lhes essa convicção com todo o

peso que ela tem. Ela me parece inevitável, uma vez que não há verdade possível como

tal, exceto ao se esvaziar esse real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 1975-

1976/2007, p.32).

Por outro lado, para Jacques Alain-Miller, o real está separado do simbólico e

não somente isso, mas se mostra como superior a este:

Já está presente aqui, nas páginas 366 e seguintes dos Escritos, a noção que

Lacan pôs em relevo na psicose – não esqueçamos que o que sobre o espaço

do lapso está ao final do seminário sobre Joyce, que essas manifestações

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erráticas do que está separado da simbolização já eram o esboço do que Lacan

chamará, depois no seminário, o real sem leis, é dizer, um real desunido do

simbólico, e do qual se pode dizer que o supera [tradução nossa] (MILLER,

2014, p.21).

Sendo assim, percebemos através das citações até então expostas que o real que

Miller sustenta está intimamente ligado com o corpo vivo, a biologia, a carne etc. O real

para Lacan é uma impossibilidade, algo alheio à realidade, mas que se encontra como um

limite e uma impossibilidade de ser encontrado nessa mesma realidade.

Para entendermos melhor o porquê de Lacan trabalhar a noção de real como uma

impossibilidade lógico matemática, tomemos alguns textos de Alexandre Koyré,

principal influência de Lacan no campo epistemológico. Em seu trabalho “Estudos

Galilaicos” ele diz que:

Contrariamente ao que geralmente se afirma, a lei da inércia não tem sua

origem na experiência do sentido comum, e não é uma generalização desta

experiência nem tampouco sua idealização. O que se encontra na experiência

é o movimento circular ou, de forma mais geral, o movimento curvilíneo.

Nunca presenciamos o movimento retilíneo, se restringimos o caso da queda,

que precisamente não é um movimento inercial. E não obstante, o movimento

que a física clássica se esforçará para explicar, será o primeiro — o curvilíneo

—, a partir do segundo. Caminho curioso do pensamento: não se trata de

explicar o dado fenomênico mediante a suposição de uma realidade subjacente

(como faz a astronomia, que explica os fenômenos, quer dizer, os movimentos

aparentes, por meio de uma combinação de movimentos reais), nem tão pouco

de analisar o dado em seus elementos simples para logo reconstrui-lo (método

resolutivo e compositivo, ao qual — sem razão, ao nosso parecer — alguns

reduzem a verdade do método galileano); se trata, propriamente falando, de

explicar o que é a partir do que não é, do que não é nunca. E inclusive a partir

do que não pode nunca ser. Explicação do real a partir do impossível. Caminho

curioso do pensamento! Caminho paradoxal onde existem, caminho que

denominaremos arquimediana ou, melhor dizendo, platônica: explicação ou

reconstrução da realidade empírica a partir de uma realidade ideal. Caminho

paradoxal, difícil e arriscado; e o exemplo de Galileo e Descartes nos fará ver

de imediato e palpavelmente sua contradição essencial: necessidade de uma

conversão total, de uma substituição radical da realidade empírica por um

mundo matemático, platônico — posto que só nesse mundo tem validade e

realizam-se as leis ideais da física clássica — e impossibilidade dessa situação

total que faria desaparecer a realidade empírica ao invés de explicá-la e que,

em lugar de preservar o fenômeno, faria aparecer entre a realidade empírica e

a realidade ideal, o abismo mortal do feito não explicável [tradução nossa]

(KOYRÉ, 1966/1980, p.194-195).

E ainda:

Anteriormente ao advento da ciência galileana, certamente com mais ou

menos dose de acomodação e de interpretação, aceitávamos o mundo que se

oferecia a nossos sentidos como o mundo real. Com Galileu, e depois de

Galileu, presenciamos uma ruptura entre o mundo percebido pelos sentidos

e o mundo real, ou seja, o mundo da ciência. Esse mundo real é a própria

geometria materializada, a geometria realizada (KOYRÉ, 1973/1982, p.55).

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Koyré (1966/1980) defende, portanto, que a partir do renascimento acontece

uma mudança no rumo da ciência, que antes se baseava em observações de fenômenos

naturais, formas de prever e intervir em tais fenômenos. Porém, a partir do renascimento,

e mais especificamente da física de Galileu, modifica-se completamente a forma de lidar

com a ciência, passando a postular leis e conceitos que não estavam presentes na realidade

cotidiana. Seriam, portanto, bastante contra intuitivos.

Para exemplificar, Koyré usa o princípio da inércia onde um corpo se mantém

em movimento retilíneo uniforme até que se aplique sobre este uma outra força que

modifique seu estado inicial. A ideia de Koyré que fundará a noção de real especifica a

impossibilidade de observar um movimento retilíneo uniforme na realidade empírica. O

que se encontra no mundo seria sempre o movimento curvilíneo. Sendo assim, o

movimento retilíneo uniforme é uma impossibilidade da ordem do real, uma lei

matemática impossível usada para ler a realidade. Vemos então que é a partir de um

movimento que não existe (retilíneo) que se lê o movimento que existe (curvilíneo).

Tal distinção entre realidade, que seria o mundo que percebemos pelos sentidos,

e o real, que seria a construção matemática de leis impossíveis, inauguram o conceito que

seria tão importante para o ensino de Lacan e para uma tentativa de fazer um

distanciamento do empirismo ingênuo presente na obra freudiana. Sobre isso é importante

lembrar que, para Lacan (1960/1998), as condições de uma ciência não podem estar

atreladas ao empirismo.

Logo, através da discussão proposta no presente artigo conseguimos visualizar

que talvez seja importante tentar resgatar com maior radicalidade o conceito de real, o

que implicaria desatrelá-lo da dimensão biologicista que impera no movimento lacaniano

contemporâneo. Embora o psicanalista francês tenha continuamente rechaçado os

fundamentos biológicos como determinantes ou centrais para sua teoria do sujeito, não

faltam hoje tentativas de fazer de seu ensino mais um reduto para considerações e

hipóteses organicistas. Talvez essa empreitada tenha como pano de fundo o desejo de

construir uma ponte entre o pensamento de Lacan e o de Sigmund Freud, que é recheado

de tais referências.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KOYRÉ, A. (1973) Estudos de história do pensamento científico. Brasília: Ed. Forense

Universitária, 1982.

KOYRÉ, A. (1966). Estudios galileanos. trad. Mariano González Ambou, Madrid:

Siglo XXI, 1980.

LACAN, J. (1953) O simbólico, o imaginário e o real. Papéis, n.4, abr. 1996.

LACAN, J. (1960) Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente

Freudiano. In. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LACAN, J. (1971-1972) O seminário, livro 19: ...ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 2012.

LACAN, J. (1975-1976) O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 2007.

MILLER, J. A. El ultimíssimo Lacan, 2014. Buenos Aires: Editora Paidós, 2014.

MILLER, J. A. Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de

Psicanálise, 1999.

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Obscurantismo institucional: os impasses e entraves da transmissão em sua própria

casa de circulação

Bruno Oliveira

Há uma estranheza na transmissão da psicanálise diante dos meios aos quais ela

perdura, principalmente quando se parte do pressuposto desta função a partir das ditas

Escolas ou Instituições de Psicanálise. É sabido pela comunidade psicanalítica que desde

os escritos freudianos sobre a história do movimento psicanalítico, no qual ele descreve

suas inúmeras rupturas com colegas e outros teóricos, se evidencia uma dificuldade

colossal em como institucionalizar a transmissão do que seria a prática psicanalítica.

Quando se pensa no campo lacaniano, esses entraves tomam uma proporção exponencial

(FREUD, 1914/1996).

Lacan esteve muito preocupado com os problemas cruciais para a psicanálise e

sua transmissão. Recorreu a muitos outros campos na busca de formalizações, realizou

leituras diagonais para o que lhe servia para o seu campo e sua prática e criou uma série

de dispositivos na tentativa levada à exaustão de reduzir os efeitos de imaginário e de

mestria na circulação do saber psicanalítico e teórico na instituição. No entanto, o próprio

admite na dissolução de sua Escola, criada em 1964, que havia fracassado.

Basta que um vá embora para que todos fiquem livres, é no meu nó

borromeano, verdade de cada um, e em minha Escola é necessário que seja eu.

Decido-me porque se não me intrometesse ela funcionaria na contramão [à

rebours] daquilo para o qual a fundei. Ou seja, por um trabalho – já disse –

que, no campo aberto por Freud, restaura a lâmina cortante de sua verdade –

que traz a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise para o

dever que retorna a ele em nosso mundo – que, por meio de uma crítica assídua,

denunciei os desvios e os compromissos que amortecem seu progresso,

degradando sua utilização. Objetivo que mantenho. É por isso que dissolvo

(LACAN, 1980/2003, p.319).

Por que os mesmos fracassos de 4 a 5 décadas atrás persistem nas instituições ao

longo do tempo até o momento atual? Essa pergunta é tomada como guia da construção

deste artigo para interrogar dois parâmetros fundamentais, dentre tantos outros, sobre

questões que se tornam pivô nestes embaraços: o que se faz com o Saber e com a Ética.

O saber da psicanálise, que Lacan formaliza em vários momentos distintos de seu

ensino, assume uma determinada série de conceituações que, apesar de sua evolução e

modificação, mantém em seu cerne a definição imutável de ser composto por significantes

e letras, sempre no plural. Desde a segunda metade da década de 1950 até os dias atuais,

é uma convenção a clareza de que um significante sozinho e isolado é por definição sem

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referência de significação. Ou seja, somente a partir da soma de pelo menos mais um

significante ou letra que se pode produzir a emergência de um Saber. Articulação

significante, mesmo que esta não produza um sentido imaginário. Essa articulação e seus

efeitos é a definição central do Saber em psicanálise. Este Saber fundamenta lalangue, a

linguagem e o inconsciente, discurso do Outro, pois todos estes implicam na constituição

da dimensão simbólica composta pela malha de letras e significantes.

Já no fim da década seguinte, Lacan traz como o Saber, ao lado de outras 3 letras

sendo $ (Sujeito), a (objeto) e o S1 (significante), podem assumir diferentes concepções

a depender do lugar que ocupam nos discursos radicais. Isso possibilita compreender o

Saber enquanto agente discursivo, enquanto outro que trabalha, enquanto produto de

discurso abaixo da barra, o saber inconsciente, e enquanto Verdade, causando o discurso

da prática analítica. E, mais adiante, com sua definição tardia de inconsciente com o saber

não sabido e que determina o Sujeito (LACAN, 1969-1970/1992).

O primeiro ponto a se questionar diz respeito a sua relação de extimidade e

heterogeneidade em relação a outros dois elementos que compõem a fala em uma análise:

o sujeito e o objeto. Ambos estão no campo da impossibilidade de fazer parte do saber

pela sua característica de serem intocáveis pelo significante. Objeto enquanto furo, causa

do desejo, da fala e do deslizamento de significantes, e o sujeito, enquanto produto da

articulação entre um significante mestre e seu correlato seguinte, como ensina o discurso

do Mestre. Sujeito e objeto, homeomorfos, diz Lacan em 19721, possuem sua relação com

o Saber a partir de sua ex-sistência em relação a este.

Isso implica que o saber inconsciente não possui agente. Não há aquele que produz

o saber ou que o orienta. Mesmo no discurso da histérica em que o saber localiza-se

enquanto produto e havendo um agente para este discurso, isso não implica que venha daí

sua origem, pois a produção é referente ao discurso, e não ao agente. O saber se produz

nessa lógica discursiva e determina aquele que se encontra lá no lugar de agente, o Sujeito.

Não há, portanto, um agente de fala, de gozo ou de Saber, o Isso fala. O saber se articula

a partir do próprio significante, da letra, da homofonia. Uma máquina que opera e

determina o sujeito que surge como consequência lógica desta articulação significante.

Ou seja, é uma questão de estrutura.

1 “Para dizer tudo, a reciprocidade entre sujeito e o objeto a é total. Para todo ser falante, a causa de seu

desejo, quanto à estrutura, é estritamente equivalente, se posso dizê-lo, à sua dobradura, ao que chamei de

sua divisão de sujeito” (LACAN, 1972-1973/2010, p.273).

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Tomar o saber nesta condição estrutural para este campo – o lacaniano – é o

primeiro passo para se pensar no que se opera em uma análise e da responsabilidade da

função que conduz o tratamento, o analista. A instituição psicanalítica entra aí como um

dos requerimentos para poder operar essa função, enquanto espaço de interlocução de

analistas na produção da psicanálise em extensão, e como espaço para articulação do

saber teórico que possibilita a emergência do dispositivo analítico.

Surge, então, o primeiro embaraço institucional: da prática à teoria ou da teoria à

prática? O discurso sustentado até então remete à ideia de que é preciso experienciar o

ofício da escuta para posteriormente, em um tempo cronológico, construir um

entendimento do que se operou lá. Muitas vezes, isso ainda se estende para a ideia de nem

mesmo se pensar no que foi produzido. Seria possível neste dispositivo realizar uma

experiência de análise sem ter como parâmetro os pressupostos teóricos que delimitam as

rotas de escuta/leitura?

Um segundo ponto remete a como o saber do psicanalista é tomado ao pé da letra

pela classe daqueles que assinam como operadores desta prática quando se entende que

se parte de um não-saber como ausência. Apesar de Lacan ter sido claro, quando afirma

no seminário “O saber do psicanalista”, que:

Enfim, sabe-se que insisti sobre a diferença entre saber e Verdade. Então, se a

Verdade não é o saber, é porque é o não-saber. Lógica aristotélica, tudo o que

não é preto, é não-preto, como sublinhei em algum lugar. Sublinhei, é certo,

articulei que essa fronteira sensível entre a verdade e o saber, é precisamente

aí que o discurso analítico se sustenta (LACAN, 1971-1972/1997, p.15).

Há uma diferença fundamental entre assumir o não-saber como forma de dar

suporte linguageiro para produção do saber a partir do discurso, do que se opera no

dispositivo, para esta outra compreensão comumente difundida de que o analista nada

sabe, nem mesmo do saber que o orienta em sua leitura e em sua intervenção.

Onde entra a função da instituição enquanto alicerce de produção teórica, então?

Seria para trazer supostas garantias de que os que ali partilham estão exercendo a

psicanálise como outrora já foi proposto? Seria para averiguar através do fracassado

dispositivo do Passe de que na análise pessoal de cada um, que se arrisca a tal aprovação,

haveria emergido o desejo de analista? Mais ainda, por que a ênfase dada para produção

do analista isola-se na análise pessoal e obtura a elaboração teórica?

Lacan elabora as rotas dos campos de saber que os analistas deveriam se adentrar

no que toca à condição de um analista operar em sua função. Em 1975, ele traz:

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Talvez em Vincennes venham a se reunir os ensinamentos em que Freud

formulou que o analista deveria apoiar-se, reforçando ali o que extrai de sua

própria análise, isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu

(LACAN, 1975/2003, p.317).2

Tomar os campos da topologia e lógica tem dentre vários argumentos a ideia

fundamental de possibilitar transmitir a psicanálise. Afinal, o matema é a via pela qual se

pode escrever algo do Real, e a escritura topológica permite pensar não mais em espaços

apenas euclidianos com a biparidade de dentro/fora, mas em superfícies e formas, tal

como para além da linearidade das sucessões dos eventos pelo tempo cronológico. No

entanto, a literatura e poesia surgem como um campo +1 diante dos quatro elencados, o

qual toma o protagonismo da construção do saber psicanalítico. Fica a interrogação se

seria pelos efeitos do trabalho sobre o significante ou pela manutenção de um

obscurantismo.

Para por isso em questão, é necessário realizar uma visita breve à ética, como

assim segue desenvolvida no seu seminário 7. O problema começa a se formar a partir do

fato de que, tal como Lacan inicia neste seminário, o seu argumento para formalizar a

psicanálise em termos de forma muito bem delimitada, distinguindo-se do campo da

moral e da filosofia, só pode ser possível com o recurso conceitual que a teoria ofereceu

como possibilidade de leitura a respeito do que se passa na ordem do desejo inconsciente

e do simbólico. Sem os quais, a psicanálise ainda residiria estudando e praticando a clínica

pelos indicadores do imaginário como os pós freudianos tanto criticados por Lacan

(LACAN, 1959-1960/2008).

Ele, no entanto, avança em relação a este momento, não somente no que toca suas

formalizações sobre o objeto, Outro, e Sujeito, mas passa a mergulhar também na

matemática para tentar dar conta do que ex-siste para além da ordem simbólica que tanto

usava como suporte para sua teoria até então. O Real, como dizem alguns, se tornou o

centro do ensino de Lacan.

Mas, aparentemente, mesmo com uma certa insistência em seus seminários em

que estuda sobre a topologia dos nós a respeito de ser fundamentalmente necessário se

pensar sempre nos três registros jamais em disjunção ou com hierarquia entre si, o seu

ensino acabou por herdar nos dias atuais entre a comunidade uma tal clínica do real, do

gesto, do lacanismo como ‘estilo’, entre outras disparidades do que comporta o seu

ensino.

2 Neste texto, Lacan apresenta os quatros campos de saberes sobre os quais o analista deveria se debruçar

para exercer o seu ofício, sendo estas a Linguística, Lógica, Topologia e a Antifilosofia.

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O acento dado à ética tem residido na ideia de sustentar a atenção flutuante, dizer

tudo que se passa pela cabeça, mas o que há de mais crucial que implica na posição ética

da função analista é a de que não há como retroceder, como voltar atrás após ter

atravessado um encontro com uma modificação de lógica discursiva.

Se a psicanálise é uma ética, uma práxis que se articula com a noção do furo, do

objeto como norteador dos desfilamentos do significante, da fala, como pensar e articular

a respeito do estilo que cada analista suporta com sua fundamentação teórica? E por que

pôr em questão o Estilo em referência à ética?

A noção do estilo sofreu modificações e incompreensões ao ponto de abarcar

qualquer possibilidade de postura e impostura por parte de atitudes dos analistas.

Frequentemente quando surgem absurdos sobre situações complicadas da clínica de

algum colega, ou quando se publica algo a respeito da teoria que toma uma proporção de

divergência radical dos conceitos fundamentais, a atitude institucional segue o protocolo

de expurgar, apaziguar e se colocar em uma condição de ignorância a respeito. Uma

operação de que os desvios do outro fazem parte do singular da prática, ou do estilo de

cada um e não há o que se questionar. Curiosamente, um movimento que vai na contramão

da ética na clínica de dar suporte à fala e à palavra, para que de lapso em lapso se possa

construir ficções que possibilitem um suporte e condição de interpretação e modificação

de posição diante do gozo.

As instituições de psicanálise em seu espaço nacional, internacional ou ilhadas de

qualquer linha de pensamento de alguns dos seguidores de Lacan assumem posições de

responsabilidade com o campo e com a continuidade do ofício. Respondem perante a

sociedade de quais membros estão carregando no seu dia-a-dia esta prática dificilmente

definida como análise. Assim como de sustentar e levar adiante o seguimento teórico do

que se produz. No entanto, o obscurantismo sobre um Lacan radicalmente difícil e

impossível de compreender é elevado à máxima obsessiva de se manter na dúvida, e as

escolas passam a assumir o objetivo exaustivo de produzir inúmeras interpretações

didáticas ou mais complexas daquilo que Lacan supostamente falou.

Essas dificuldades não são tão simples de compreender ou mesmo de corrigir, pois

é necessário levar em conta que elas tocam em um processo histórico de política

institucional e de poder. E uma forma de se evidenciar isso recai nas edições e traduções

tão comumente comentadas e faladas nos pequenos corredores das Escolas. Edições

publicadas que assumem de maneira escancarada sua impostura para com a originalidade

do transcrito, as inúmeras dificuldades com traduções tendo em vista não somente o que

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se perde de língua a língua, mas também no seu oficio burocrático. O saber psicanalítico

é acessível a poucos que possuem os privilégios de frequentarem outras línguas com

mestria e fluência, e aos que conseguem obter as traduções em suas edições privadas e

limitadas de circulação.

A responsabilidade da transmissão da psicanálise passa aos poucos para as

situações singulares e privadas das análises pessoais de cada um em sua inquestionável

condição de serem um caso a caso, e a onda de obscurantismo teórico assola os demais

meios de produção textual e de leitura. Surgem com isso, de maneira curiosa, as

produções de livros em série de colegas buscando uma forma de elucidar o que Lacan um

dia disse para tentar tornar claro aquilo que jamais deveria estar na escuridão. E com isso,

o campo assume uma diversidade de leituras tão divergentes que o único diálogo possível

reside na ideia de respeitar a leitura particular que cada um faz. Para tanto, de fato faz

sentido sustentar com unhas e dentes que a psicanálise seja completamente avessa ao

pensamento cientifico.

Literatura, poesia, anticientificismo, caso a caso, singularidades, leituras

particulares, uma série de questões importantes que perdem sua real definição e posição

no campo para assumirem uma justificativa de uma pluralidade adimensional que reduz

o rigor teórico a fins inigualáveis.

Por que Lacan é tão difícil e o que sustenta essa dificuldade após tantas décadas?

Ou, talvez, seria o caso de se questionar o porquê de manter essa ideia de um Lacan difícil.

Há uma problemática crucial que implica ler, em que se sustenta a ideia de repetir e

transformar em dogmas pequenas afirmações, ao invés de interrogar o texto. Prescindir

da palavra, do autor e ir adiante. A quantidade de axiomas lacanianos que poucos

conseguem elaborar em uma noção mais clara do que de fato implicam é assustadora. E

isto traz implicações severas para prática clínica. Se Lacan é tão mal compreendido, tão

difícil, como justificar a existência de tantos lacanianos exercendo a práxis, se o seu ponto

de partida teórico é o guia em sua leitura clínica? Uma solução breve apontada para isso

tem sido retornar ao Pai. A postular que o movimento lacaniano teve seu suporte quase

que por completo em Freud, e se este pode ser afirmado como compreensível, então de

alguma forma se torna possível preencher as lacunas com o freudolacanismo.

A prática analítica é um tratamento pela palavra que visa atingir a letra, o

significante, a lógica discursiva e, a partir daí, intervir ao ponto de conseguir realizar

operações de mudança de Saber. Jamais a nível consciente, pedagógico ou de clareza.

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Mas mudanças de posição de gozo a respeito das ficções e do saber inconsciente que toma

outras articulações a partir da função analista.

Ao que parece, neste ponto Lacan fala do horror que o analista tem do seu ato.

Horror por se dar conta de que nosso ato presume que não suportamos que nossa posição,

aquilo que falamos pode não servir para nada. Há uma radical contingência no nosso

ofício que insistimos em eludir. Um analista simplesmente não consegue lidar com o fato

de que o que ele faz ali é da dimensão mais descartável possível. O saber que se produz

em uma análise é da ordem do esquecimento, e cabe ao analista suportar isso no seu

ofício. Neste âmbito, as instituições teriam um enorme papel a contribuir, enquanto

espaço de produção, responsabilidade de transmissão, tradução e como motor

questionador do ofício e seu lugar na comunidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1914). A história do movimento psicanalítico. In: Edição Standard

Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:

Imago, 1996, v.XIV.

LACAN, J. (1959-1960). O seminário, livro 7. A Ética da psicanálise. Jorge Zahar, Rio

de Janeiro, 2008.

LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de janeiro: Escola da Letra

Freudiana, 2010.

LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de

Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, J. (1971-1972). O seminário, livro 19. O saber do psicanalista. Centro de

estudos Freudianos de Recife. Edição não comercial. Recife. 1997.

LACAN, J. (1980). Carta de dissolução. In: Outros Escritos. Jorge Zahar, Rio de

Janeiro, 2003.

LACAN, J. (1975). Talvez em Vincennes. In: Outros Escritos. Jorge Zahar, Rio de

Janeiro, 2003.

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A escola de psicanálise como procedimento de sujeição do discurso: como o

obscurantismo na formação do analista serve à manutenção do poder nas escolas

Jessika Gomes do Carmo

“Lacan não exercia nenhum poder institucional.”

(FOUCAULT, 1981/2014, p.330)

No século XX a ciência consolidou-se no papel proeminente, outrora outorgado à

religião, de modelo para correta visão do mundo. Contudo, apesar dessa posição

privilegiada, as querelas filosóficas (lógicas) e epistemológicas em seu interior

aumentaram.

Karl Popper (1934/2004), por exemplo, em um desses embates filosóficos, atacou

o método indutivo como meio válido para obtenção de conhecimento:

Ora, está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa

no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente

de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse

modo sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos casos de

cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos

os cisnes são brancos (POPPER, 1934/2004).

Vários filósofos, historiadores da ciência e epistemólogos têm debatido sobre a

ciência, seus procedimentos e critérios de demarcação, e questionado a posição da ciência

como caminho puro e superior aos outros saberes como as artes, filosofia e religião para

obtenção de verdades. Einstein, em resposta a Popper, afirma que “a teoria não pode ser

fabricada a partir de resultados de observação, mas há de ser inventada” (EINSTEIN,

1935/2004), negando, assim, a tendência positivista.

Para Foucault (1966/2016), existe uma impossibilidade de uma produção de saber

sobre o homem ou o aparecimento das ciências humanas antes da modernidade, já que

antes desse período o homem não existia. Não se trata, entretanto, de afirmar que o ser

humano não existia, mas que a representação que temos sobre o homem como falante,

laborioso e corporal não existia.

É a partir de um recorte das condições históricas, que tornou possível o

aparecimento das ciências humanas, que podemos entender o surgimento do homem

moderno. É a partir do momento em que o homem passa a ser objeto de conhecimento

das ciências empíricas, a saber, quando passamos a objetivar os modos de produção, as

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condições anatomofisiológicas e o sistema de conjugação indoeuropeia que nos

deparamos com a nossa finitude e o homem passa a ser objeto da ciência.

Segundo Lacan (1966/1998, p.873), “o sujeito sobre quem operamos em

psicanálise só pode ser o sujeito da ciência.” Dessa forma, a psicanálise teve como

condição de possibilidade para o seu surgimento a ciência moderna. A ciência moderna

não foraclui o sujeito, ela foraclui a verdade como causa e produz um sujeito dividido

entre saber e verdade (LACAN, 1966/1998). Nesse sentido, a função da psicanálise seria

a de restituir a verdade ao campo do saber.

A teoria lacaniana converge com a tese foucaultiana de que não há um significado

direto entre as palavras e as coisas. Segundo Bonoris (2019), para a psicanálise lacaniana

entre o sujeito e o objeto está o saber. Antes do surgimento da ciência moderna o mundo

era um texto a ser decifrado, ou seja, havia uma correspondência direta entre a linguagem

e as coisas. Ao excluir a verdade do campo do saber, Deus emudece e o inconsciente pode

dar suas primeiras palavras.

A psicanálise está situada, então, entre a ciência moderna e um cuidado de si, entre

o surgimento do sujeito da ciência e a restituição da verdade ao campo do saber:

A ciência diz: há um saber que funciona no real, mas mesmo Deus não sabe.

A psicanálise diz: há um saber que funciona no real, mas que o próprio sujeito

não sabe que sabe. Deus é inconsciente. (...) Lacan definiu o sujeito suposto

saber como o pivô da transferência. O sujeito suposto saber é o aspecto que

está mais além dos fenômenos transferenciais imaginários da resistência

(enamoramento a ódio), repetição ou sugestão que Freud havia teorizado. A

experiência analítica requer, como a ciência, de um ato de fé, e é o analista que

se consagra a sustentá-la. É dizer que, ao menos em um princípio, é o analista

que ocupa o lugar de Deus: aquele que sabia sobre a verdade do desejo do

sujeito. Não obstante, o analista não se identifica com este lugar, senão que

faça semblante de objeto a, causa do desejo, para fazer surgir uma instância de

saber sem sujeito: o inconsciente. Este é um saber não sabido, indeterminado;

porque ali onde a verdade fala, é dito no meio do caminho [tradução nossa]

(BONORIS, 2019, p.51).

A verdade com a qual a psicanálise trabalha não é uma verdade única e eterna,

não há um saber verdadeiro (BONORIS, 2019). Retornando à carta de Einstein a Popper,

não é possível produzir um exemplo superpuro, já que o fóton, como produção, só pode

existir como uma instância numérica e, portanto, como uma abstração. A verdade, nesse

sentido, é um efeito de linguagem, uma produção:

A psicanálise recupera o valor da verdade subjetiva a partir de um dizer que

importa, que comova, que desvele a divisão subjetiva que a ciência, sem saber,

tenta suturar. (...) O inconsciente é esse lugar Outro onde existe um saber que

nenhum sujeito pode assumir como próprio [tradução nossa] (BONORIS,

2019, p.62).

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Não se trata, entretanto, daquilo que comumente é escutado pelas escolas de

psicanálise, de uma verdade singular que cada um possui. Isso descartaria, portanto, a

afirmação de que a análise é necessária para a formação do analista por ser um saber que

é produzido a partir da experiência do sujeito como analisando, a partir de sua história de

vida, traumas, etc..

Esse saber não se encontra em profundidade, senão em superfície. Não há sujeito

anterior ao dizer, portanto, o inconsciente é o que dizemos (BONORIS, 2019). Diante do

exposto, surgiu o seguinte questionamento: se o inconsciente só é produzido em análise,

ela se faz necessária para a formação do analista como ferramenta de acesso para um

saber que não pode ser acessado através da teoria?

Existe uma incongruência fundamental ao dizer que a “experiência analítica” é

necessária para a formação do analista, já que esta é tomada como a única via de acesso

a uma verdade que é interior ao sujeito. Segundo Antonio (2015):

Experiência analítica é o modo como os meus interlocutores significam a

submissão à terapêutica psicanalítica. Falam em “experiência” no sentido de

vivência propiciada pela psicanálise, já que não há um modelo fixo de

tratamento, com mecanismos técnicos e de duração determinados, dependendo

da singularidade de cada sujeito em relação a seu saber sobre o inconsciente.

(p.90-91).

No entanto, na topologia lacaniana a noção de dentro e fora não se sustenta. É

nesse sentido que os psicanalistas desconsideram críticas de teóricos de outras áreas, já

que esses outros profissionais não passaram pela experiência analítica. Em intervenção

feita na Jornada da École de la Cause Freudienne em novembro, Paul Preciado criticou

a organização do evento e posturas dos psicanalistas. Vejamos um trecho da fala do

filósofo:

Vocês organizam um encontro para falar das mulheres na psicanálise em 2019

como se todavia estivéssemos em 1917, e como se esse tipo particular de

animal, que vocês chamam de forma condescendente e naturalizada “mulher”,

não tivesse sempre um reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como

se ela fosse um anexo ou uma nota em pé de página, uma criatura estranha e

exótica entre as flores, sobre a qual há que pensar de tanto em tanto, em um

colóquio em mesa redonda. Pois bem, haveria que organizar um encontro sobre

homens brancos heterossexuais e burgueses, em psicanálise.

O discurso psicanalítico gira em torno do poder discursivo e político desse tipo

de animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano

universal, e que é, ao menos até o presente, o sujeito da enunciação central no

discurso das instituições psicanalíticas da modernidade colonial.1

1 Disponível em: <www.facebook.com/psicanaliseprofana/posts/1234317873440708?__tn__=K-R>.

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A resposta que mais escutei e li por parte de teóricos e colegas lacanianos acerca

da intervenção feita por Paul Preciado na última jornada da Escola da Causa Freudiana,

na França, foi: “Ele não é psicanalista”, como se a psicanálise fosse imune a qualquer

crítica de outros teóricos.

Essa discussão me provocou certa inquietação acerca da configuração

institucional das escolas de psicanálise. Existe, nesse espaço, pessoas que possuem

legitimidade para falar. A discussão só pode ser legitimada se aquele sujeito está ou já

passou pela “experiência analítica” (doravante usarei sem aspas, como um conceito

retirado da tese de doutorado de Antonio [2015]).

Em sua aula inaugural no Collège de France (A ordem do discurso), Foucault

(1970) separa quatro grandes procedimentos de sujeição do discurso, a saber, os rituais

da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais.

Podemos analisar a política institucional da escola de psicanálise a partir desses quatro

procedimentos. Segundo Foucault, essa divisão dos procedimentos é uma abstração, já

que eles estão, a todo momento, ligados uns aos outros. Esses procedimentos se formam

como uma maneira de garantir “a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos

de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos” (FOUCAULT,

1970/2014, p.42).

Os rituais da palavra são os procedimentos que qualificam o indivíduo que fala,

ritual que determina qual papel aquele indivíduo deve exercer:

(...) define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto

de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou

imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites

de seu valor de coerção (FOUCAULT, 1970/2014, p.37).

A escola de psicanálise está organizada em uma configuração que legitima ou

deslegitima aquele que pode transmitir a psicanálise, construir críticas ou novas leituras,

orientar, produzindo assim certa hierarquia na configuração institucional. Essa hierarquia,

normatizada como organização institucional, produz relações de autoridade e

subordinação dentro das escolas.

Como parâmetro para a análise da instituição, utilizarei a tese de Antonio. A

autora faz um estudo etnográfico da formação de psicanalista em escolas lacanianas de

psicanálise, revelando relações de poder nas escolas. Segundo Antonio (2015):

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A “reciprocidade hierárquica” é o idioma que permite significar a relação entre

analistas e analisantes, membros e não membros, mestres e discípulos. O

mestre assim reconhecido — e aqui podemos pensar em lideranças mundiais

como Miller, Soler, Melman, e locais como Forbes — contém o grupo e a

alteridade na imagem que constrói de si, ou seja, assume a forma pela qual a

coletividade aparece como singularidade/individualidade: mais do que um

representante (alguém que está no lugar de), ele é a forma de apresentação de

uma singularidade em relação a outros agrupamentos (ANTONIO, 2015,

p.133).

Podemos observar essa relação de hierarquia através dos cargos de presidente,

diretor, delegado, analista da escola, analista membro da escola, em detrimento de

analistas praticantes, em formação, e não membros. Para se tornar membro da escola,

pelas configurações da AMP (Associação Mundial de Psicanálise), é necessário passar

por um obscuro processo de seleção (ANTONIO, 2015). Nesse processo será avaliado

qual o comprometimento do candidato a membro com a instituição e falar sobre sua

análise. Para tanto, é necessário que a análise seja feita por um membro da instituição.

Em entrevista realizada por Antonio, um entrevistado tenta explicar o processo

para se tornar membro da escola:

(...) para ser membro de Escola, é algo que vai se dando... na verdade, você já

é membro, entre aspas, há algum tempo, depois só se formaliza; é como se

você fosse, de fato, membro, e depois vira de direito. Assim como foi no início

da Escola Brasileira: já existia uma Escola de fato, a Iniciativa Escola, mas

ainda não havia uma Escola de direito, enquanto pessoa jurídica. Então, a

Escola funciona um pouco assim. Eu já tava como membro há tempos,

participava de cartéis, fazia curso de formação, participava de seminários — é

um pouco este o critério, se é que há algum. A pessoa já tem que ter um

trabalho, mas que só falta bater o martelo. Não é uma coisa assim “Ah, agora

sou membro, então vou começar a agir como membro, trabalhar como

membro”, não é nada disso. (...) [Na entrevista de admissão como membro] se

avalia se a pessoa tem alguma transferência com a Escola. Porque, assim, todo

meio do ano é aberto a seleção, tem uma secretaria na Escola Brasileira a quem

você endereça uma carta com um pedido, um currículo, cada ano eles solicitam

uma coisa, mas quando eu fui, tinha que mandar um currículo (...). [No

currículo] tinha descrito meu trabalho, minha prática clínica, publicação em

revistas, os trabalhos que eu já tinha feito na Escola, eu já tinha sido diretora

de biblioteca sem ser membro, era associada ao Instituto, dava aula no

Instituto, trabalhei na revisão de textos da Opção Lacaniana por uns dez anos,

participei de seminários, dois anos trabalhando na edição da Carta de São

Paulo, e isso eu fui pondo no meu currículo, os cartéis que eu tinha feito, todos

os congressos que eu tinha participado. Então, é um pouco isso. Qualquer um

pode solicitar [ser membro], é aberto, mas é óbvio que a secretaria avalia os

pedidos, os currículos, e aí, conforme o currículo e o percurso da pessoa, se

passa para a segunda fase, que são duas entrevistas, com dois analistas

diferentes. No meu caso, as duas pessoas eram do Rio. Então, assim, eu não ia

me deslocar daqui pro Rio, pagar passagem, sabendo que não iria passar. Tem

isso, qualquer um que tá passando na porta pode solicitar admissão, mas a

secretaria, ao ver o currículo, já diz “Meu filho, passa outro dia”, não vai fazer

o cara despencar daqui... Tem gente que vai até Salvador fazer entrevista,

ninguém faz isso se não vai ser selecionado. São os conselheiros da Escola que

fazem entrevista, então a secretaria indica dois que não são da sua cidade, que

também é pra você não fazer entrevistas com seus colegas de trabalho. Mas

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não tem nenhum pré-requisito. Soube de uma pessoa com trinta anos de

atendimento clínico e que não entrou esse ano como membro, e tem gente com

cinco anos de atendimento e que tá aí. Tem muita gente que pede cinco vezes,

cinco anos seguidos, para ser admitida e não consegue. Se tivesse pré-

requisitos seria fácil... pode ser que a de trinta anos só visite o analista mas não

faça análise, o que, aliás, é o mais comum. Tem gente que estuda muito, mas

que não consegue, porque é algo do inconsciente, tem que ser causado por algo,

não é uma formação racional, não é como na área da matemática: dois mais

dois são quatro; a gente vê a diferença de uma pessoa que atende e não faz

análise e uma pessoa que faz. Não é um saber do mestre, do saber teórico,

precisa ter um mínimo de contato com o inconsciente, com algo da castração,

do gozo, pra poder conduzir uma experiência analítica. A formação depende

de tudo isso (ANTONIO, 2015, p.116).

Há, também, certa predileção de analistas que fizeram análise com Lacan ou

outras lideranças mundiais:

Não raro, em conversas com membros, quando eles mencionavam algum

psicanalista, completavam com “ele fez/faz análise com fulano”, “Fulano fez

análise com Lacan”, “Fulano fez análise com Miller”. Esse recurso

classificatório indica que a escolha do analista com quem se faz a formação

não se dá apenas de forma arbitrária e subjetiva, mas também de forma

objetiva, racionalizada de acordo com o “tronco familiar” com o qual se quer

ser identificado e do qual se quer fazer parte (ANTONIO, 2015, p.95).

Retomando os procedimentos de sujeição do discurso, as sociedades de discurso

têm como função fazer circular essa produção de saber em um local restrito. Isso nos faz

lembrar a reação dos psicanalistas à fala de Paul Preciado. Segundo eles, a fala do filósofo

não pode ter legitimidade em nossa prática, já que não se trata de um psicanalista.

Os grupos doutrinários criam o sentimento de pertença através do discurso. Tudo

que é inassimilável ao discurso do grupo doutrinário é considerado heresia ou ortodoxia.

Alfredo Eidelsztein é um exemplo de psicanalista que não é bem aceito nas escolas

tradicionais de psicanálise por construir uma leitura lacaniana que destoa do discurso das

escolas. “A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe,

consequentemente, todos os outros” (FOUCAULT, 1970/2014, p.41).

Por último, a apropriação social dos discursos trata-se do instrumento pelo qual o

indivíduo terá acesso a determinado discurso. O acesso ao discurso é atravessado pelas

lutas sociais. Não podemos esquecer que, para Foucault, a prática do poder está irredutível

ao regulamento do saber, permanecendo inseparável a este. No tocante à produção de

subjetividades, vemos em Foucault (2004) que

a questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condições ele está

submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no imaginário

para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento; em

suma, trata-se de determinar seu modo de "subjetivação” (FOUCAULT, 2004,

p.235).

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Uma fala que podemos escutar com facilidade nas escolas é que, para entender

Lacan, é necessário um certo grau de erudição, isto é, uma experiência e familiaridade

com a arte e literatura elitizada (ANTONIO, 2015). Entendemos ainda, como Pierre

Bourdieu (2006) nos clarificou, que o capital cultural marca as diferenças de classe:

O sentimento de fazer parte de um mundo mais polido e controlado, um mundo

cuja existência encontra justificativa em sua perfeição, harmonia e beleza, um

mundo que produziu Beethoven e Mozart, além de reproduzir continuamente

pessoas capazes de interpretá-los e saboreá-los; e, por último, uma adesão

imediata, inscrita no mais profundo dos hábitos, aos gostos e aversões, as

simpatias e antipatias, as fantasias e fobias - tudo isso, mais que as opiniões

declaradas, serve de fundamento, no inconsciente, à unidade de uma classe

(BOURDIEU, 2006, p.75).

Dessa forma, o acesso à chave de entendimento dos textos lacanianos estaria,

segundo essa ideia acerca da arte e literatura encontrada nas escolas, restrito a uma

determinada classe social. Por exemplo, um menino da periferia que tem como capital

cultural o rap e não consome uma arte considerada mais erudita não teria ferramentas para

entender a obra lacaniana.

Percebemos que há uma incongruência entre o que é falado acerca da formação

do analista e a proposta lacaniana. Retomando o exemplo dado por Popper de que não é

possível inferir que todos os cisnes são brancos apenas através de enunciados universais

e singulares, também não é possível compreender a formação do analista através de um

enunciado obscuro propagado pelas escolas, incongruentes com a teoria lacaniana.

Segundo Foucault (1981/2014), Lacan não foi um revolucionário, ele queria apenas ser

“psicanalista”:

Ele queria subtrair a psicanálise da proximidade da medicina e das instituições

médicas, que considerava perigosa. Ele buscava na psicanálise não um

processo de normalização dos comportamentos, mas uma teoria do sujeito. Por

isso é que, apesar de uma aparência de discurso extremamente especulativo,

seu pensamento não é estranho a todos os esforços que foram feitos para

recolocar em questão as práticas da medicina mental (p.330).

Foucault diz que, em sua época como estudante, Lacan foi um autor que trouxe

uma nova concepção do sujeito humano, diferente da ideia da filosofia e das ciências

humanas de que o sujeito era radicalmente livre ou determinado. Ele aprende com Lacan

que é “preciso procurar libertar tudo o que se esconde por trás do uso aparentemente

simples do pronome “eu” (je)” (FOUCAULT, 1981/2014, p.330). Ao ser questionado

acerca do obscurantismo dos textos lacanianos, Foucault responde:

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Penso que o hermetismo de Lacan é devido ao fato de ele querer que a leitura

de seus textos não fosse simplesmente uma “tomada de consciência” de suas

ideias. Ele queria que o leitor se descobrisse, ele próprio, como sujeito de

desejo, através dessa leitura. Lacan queria que a obscuridade de seus Escritos

fosse a própria complexidade do sujeito, e que o trabalho necessário para

compreendê-lo fosse um trabalho a ser realizado sobre si mesmo. (...) Lacan

não exercia nenhum poder institucional. Os que o escutavam queriam

exatamente escutá-lo. Ele não aterrorizava senão aqueles que tinham medo. A

influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos

(FOUCAULT, 1981/2014, p.330).

Talvez fosse o caso de abrirmos espaço para a crítica de um filósofo e nos fazer

“escutar” Lacan, sem o terrorismo institucional que encontramos nas escolas de

psicanálise, já que a influência não pode ser um poder que impomos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONIO, M. C. de A. A ética do desejo: estudo etnográfico da formação de

psicanalistas em escolas lacanianas de psicanálise. 297 f. Tese (Doutorado em

Antropologia Social) – Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. 2015.

BONORIS, B. El nacimiento del sujeto del inconsciente. Buenos Aires: Letra Viva, 2019.

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto

Alegre: Zouk, 2006.

EINSTEIN, A. (1935). O experimento de Einstein, Podolski e Rosen. In: POPPER, Karl

R. A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix, 2004.

FOUCAULT, M. (1966). As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São

Paulo: Martins Fontes, 2016.

FOUCAULT, M. (1970) A Ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2004.

FOUCAULT, M. (1981). Ditos e escritos, vol. I. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2014.

LACAN, J. (1966). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1998, p. 869-892.

POPPER, K. R. (1934). A lógica da pesquisa científica. Editora Cultrix, 2004.

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Os equívocos sobre a incompreensão da psicanálise enquanto sintoma

Priscilla Ribeiro G. Costa

As questões da psicanálise e sua transmissão, bem como seus impasses, tem sido

constantemente alvo de debate e problematização por alguns grupos que percebem o cuidado

necessário que essa temática deve ter. Durante muito tempo nos encarregamos de repetir os

conceitos psicanalíticos, por vezes tão complexos, e tentar encaixá-los onde assim fizesse o

mínimo de sentido. Até que inevitavelmente os limites e fragilidades da teoria foram sendo

questionados e implicados em suas consequências não só teóricas, mas da prática clínica como

um todo. A incompreensão é, a cada dia, mais difundida e utilizada como uma justificativa que

diante de tais limites, os percursos de estudo são delimitados ou impossibilitados de serem

investigados.

Na maioria das instituições psicanalíticas brasileiras nos deparamos com um extenso

estudo da teoria freudiana como um ponto de partida para aprofundamento da teoria lacaniana

e, ainda, com certa promessa de que ao dedicar-se muito, aquele que se propõe a tal tarefa será

recompensado com um esclarecimento intelectual da psicanálise. E isso não acontece, por quê?

Eis a questão obscurantista. Ao que parece, a insistência de uma continuidade entre Freud e

Lacan, entre as possíveis formas de clinicar, cai em um abismo que assim que passa a ser

interrogado, causa mais desconforto entre os supostos lugares já definidos do que o que de fato

se propõe a interrogação, que seria uma tentativa de pontuar outros caminhos. Separar Freud e

Lacan tem sido uma árdua tarefa, nessa primeira proposta de delimitar os campos teóricos e

suas proposições. O que, consequentemente, promove uma mudança radical na leitura e na

forma de trabalho mediante a clínica e a ética que a rege.

As separações são necessárias, bem como as articulações que fazemos com elas desde

que se faça de forma cautelosa. Essa parece ter sido uma das constantes preocupações da

comunidade psicanalítica: onde localizar seu saber e sua ignorância. A teoria lacaniana é um

dos principais alvos de incompreensão, daquilo que não pode ser apreendido ou pensado, e há

que se conformar com o que os leitores de Lacan fizeram dele e de suas traduções. Essa mesma

questão é levantada pelo próprio Lacan em 1971, em seu seminário “O saber do Psicanalista”1,

1 Lacan tenta se reaproximar dos residentes do Hospital de Sainte-Anne para falar sobre a distância que havia entre

o trabalho da psicanálise e o saber. Ele demonstra uma grande preocupação com a temática do saber para os

psicanalistas e como os movimentos psicanalíticos da época padeciam de uma mudança no que ele chamava de

“assentamento do saber”. Essa lhe parecia ser uma questão urgente em meio aos movimentos que surgiam junto à

antipsiquiatria na França, onde lhe era cobrado um posicionamento político a respeito.

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em que tentava retomar o contato com os jovens psiquiatras e analistas na capela do Hospital

de Sainte-Anne, voltando-se para uma preocupação que nunca o abandonou: a questão do saber.

Em sua lição de 2 de dezembro de 1971 lança a seguinte pergunta: “a incompreensão de Lacan

seria um sintoma?” E sua resposta é categórica:

Podemos questionar por qual motivo, tantos anos após o início de seu ensino, Lacan se

propõe a fazer conferências em paralelo ao seu seminário XIX “...Ou pior”2, levantando desde

o começo pontuações sobre a difundida incompreensão lacaniana e o lugar do saber entre os

psicanalistas. Ele defende sua posição de que não se trata de um sintoma, a incompreensão

passa inclusive por questões que ao longo dos anos permeava um interdito institucionalizado.

Sustento-a aqui, em função de elementos memoráveis, que estão ligados a isto: afinal

de contas, se em um determinado nível meu discurso é ainda incompreendido é

porque, digamos, durante muito tempo, ele foi, em todo setor, interditado, não de ser

escutado, o que estaria ao alcance de muitos, mas interditado de vir escutá-lo. É o que

nos vai permitir distinguir esta incompreensão de um certo número de outras. Havia

o interdito. E que, realmente, este interdito tenha vindo de uma instituição analítica é

certamente significativo (LACAN, 1971-1972/1997, p.29).

Dito isso, torna-se mais claro como esse precedente de uma incompreensão na psicanálise

foi admitido, carimbado e sustentado, tendo por consequência muitas vezes o afastamento

daqueles que se interessam pela psicanálise, bem como uma construção de muros teóricos para

que a única resposta possível frente a um impasse da formação seja: procure análise e tudo

ficará mais claro. É necessário nos questionarmos qual o lugar da análise pessoal e qual o lugar

da teoria, de que forma ambos têm se confundido e utilizados para tapar buracos em meio a

esse embaraço daquilo que não se pode avançar. Lacan fala nesse mesmo ano de 19713, sobre

o sintoma acabar caindo em um valor de verdade para os analistas, como essa equivalência foi

preponderante diante da verdade do analista como aquele que tem o poder da interpretação,

aquele que faz através do seu saber, ainda que o coloque enquanto suposto.

2 O seminário XIX intitulado “...Ou pior” (1971-1972/2010) foi escrito em paralelo ao seminário “O Saber do

Psicanalista” (1971-1972/1997), onde os temas acabam por vezes se repetindo entre as conferências, porém em

perspectivas diferentes. 3 Nesse momento, no Seminário O Saber do Psicanalista (1971-1972/1997) Lacan questiona como a

incompreensão na psicanálise é considerada como um sintoma de forma equivocada. A partir daí, ele afirma que

os psicanalistas fizeram uma infeliz equivalência do sintoma da incompreensão com um valor de verdade.

Não penso assim. Não penso assim, primeiro porque, em um sentido, não se pode

dizer que algo que tem uma certa relação com meu discurso, que não se confunde, que

é o que poderia ser chamada minha fala, não se pode dizer que seja totalmente

incompreendida. Se minha fala fosse incompreensível, não vejo bem o que, em termos

de número, vocês fariam aqui (LACAN, 1971-1972/1997, p.28).

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Se pensarmos a verdade a partir dos discursos radicais bem exemplificados no seminário

XVII, “O avesso da Psicanálise”4, podemos notar que Lacan a coloca em uma posição daquela

que movimenta o discurso, de causa, abaixo da barra e inacessível enquanto toda.

Ainda que os discursos sejam colocados enquanto formas de laços sociais pensados para

uma análise em intensão, dando um passo adiante, qual o valor da verdade então, se ela não é

separável como o mesmo diz de outras funções de fala? Se existe um valor, podemos supor um

preço a pagar. E esse preço pago por colocar o valor de verdade na incompreensão lacaniana

tem sido alto, de forma que de um lado temos aqueles que ainda se propõem a se lançar em um

estudo mais rigoroso, mas se esbarram com os mestres intocáveis, e de outro lado, temos

aqueles que não chegam perto por terem escutado o quanto essa aproximação lhes será cara. E

tem sido cara a psicanálise.

A questão da incompreensão pode ser relacionada com tudo isso que a posição de saber

coloca, uma posição que também é de poder. Enquanto houver uma ideia de que a psicanálise

só tem dois caminhos: de estar completamente elucidada, ou de que é inacessível, haveremos

de estar às voltas com as dificuldades que isso promove em sua disseminação. E qual é a

responsabilidade das instituições psicanalíticas frente aos fechamentos que o lugar da verdade

produz? Não é definitivamente sem importância, tendo em vista que o primeiro lugar em que

se recorre para fazer a formação comumente é uma instituição. Atualmente, diante dos

obstáculos de se avançar em determinados temas, os estudos em grupo sem vínculos

institucionais têm aumentado, buscando um espaço onde se possa avançar na teoria e tendo a

possibilidade também de questioná-la, partindo do pressuposto que a psicanálise não pode

permanecer estagnada em um lugar divino onde tudo já foi dito.

4 No seminário XVII O avesso da psicanálise (1969-1970/1992), Lacan propõe uma formalização com estatuto

lógico para distinguir a estrutura do discurso a partir de uma proposta com quatro discursos (mestre, histérica,

analista, universitário) que pudessem representar as possíveis intervenções para a prática clínica, afirmando serem

eles diferentes formas de laços sociais, que podem mudar de lugar dando um quarto de giro.

O sintoma é valor de verdade e – mostro-o rapidamente – a recíproca não é verdadeira.

O valor de verdade não é sintoma. É muito bom observar esse ponto porque a verdade

não é nada cuja função eu pretenda isolável. Sua função, aí evidentemente onde ela

toma lugar na fala, é relativa. Ela não é separável de outras funções da fala. Razão a

mais para que eu insista que, mesmo reduzindo-a ao valor, ela não se confunde, em

nenhum caso, com o sintoma (LACAN, 1971-1972/1997, p.31).

Quanto à impossibilidade, trata-se dessa própria condição discursiva de estrutura que

institui uma disjunção entre o lugar da produção e o lugar da Verdade. Isso quer dizer

que nenhum vetor ou mesmo nenhum elemento poderá alimentar o lugar da Verdade.

Lacan sugeriu que essa condição de “isolamento” do lugar da Verdade fundamenta a

consistência do real e, como tal, passa a definir a própria condição que causa os

discursos (SOUZA, 2008, p.118-119).

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Lacan em seu texto “Variantes do Tratamento Padrão” nos Escritos de 1955 se põe a

pensar as distorções do percurso do tratamento e se essa deformação faz parte da psicanálise ou

não. Há uma forte questão em relação à formalização da psicanálise e como o rigor teórico

colaboraria para o entendimento e também para levar a cabo a sua própria ética. Ele diz:

Mais adiante, de forma muito interessante, ele põe em xeque as ditas certezas e dogmas

dos psicanalistas sobre questões que estão postas desde Freud e que se percebe que ainda não

ocorrem sem alguma confusão quando postas à prova. Um dos exemplos seria o famoso

conselho freudiano a respeito dos perigos da promessa de cura, afinal esse não pode ser o

objetivo de uma análise.

Inicia-se então uma discussão de quais seriam os critérios terapêuticos na psicanálise, e a

pergunta final trazida nesse recorte aponta justamente para o limite do que será explicitado

nesse mesmo texto em uma situação exibida a partir de um congresso em Londres (usada por

Lacan para esclarecer a situação): quais são as implicações das divergências teóricas para os

critérios que definem o tratamento. Até onde podemos definir o que é psicanálise ou não?

Nos lacanianos de uma forma geral, encontramos diversas leituras, traduções e

despedaçamentos de seu ensino. É possível perceber como um texto pode ter tido inúmeros

parágrafos retirados ou transformados a partir do referencial ao qual se recorre para sua leitura.

A mudança é tão drástica que ao ler outra referência que possui uma preocupação com o ensino

de Lacan e suas palavras de forma mais fidedigna, se percebe um outro texto e uma outra

proposta teórica. É nítido como esse é um outro ponto importante para se abordar por onde pode

chegar a incompreensão dos textos de Lacan e as consequências de uma modificação de seu

ensino para uma outra coisa que por vezes pode aparecer camuflada em péssimas traduções e

autores que propõem conceitos muito distantes dos que foram propostos com a desculpa de que

foi encontrado em Lacan.

Será essa uma distorção de seu direcionamento para a informação médica? Ou será

que se trata de uma deformação intrínseca à questão? Suspensão do passo que serve

de passo de entrada em seu problema, por lembrar o que se pressente no público, ou

seja, que a psicanálise não é terapêutica como as outras. Pois a rubrica variantes não

quer dizer nem adaptação do tratamento, com base em critérios empíricos nem,

digamos, clínicos, à variedade dos casos, nem uma referência às variáveis pelas quais

se diferencia o campo da psicanálise, e sim uma preocupação, inquieta até, com a

pureza dos meios e fins, que deixa de pressagiar um status de qualidade melhor do

que o rótulo aqui apresentado (LACAN, 1955/1998, p.326).

Assim, se admite a cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico, ele

precavera-se contra qualquer abuso do desejo de curar, e o faz de maneira tão habitual

que, ao simples fato de uma inovação motivar-se neste, inquieta-se em seu foro íntimo,

ou reage no foro do grupo através da pergunta automática que desponta de um “será

que isso ainda é psicanálise?” (LACAN, 1955/1998, p.327).

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A tentativa de salvar o lugar de saber a qualquer custo pode ter implicações graves que

podem condicionar ou até inviabilizar uma formação psicanalítica. Lembremos aqui que o

próprio estatuto de saber muda na teoria de Lacan, ficando mais evidente a partir do seminário

XX – “Encore”5, como o saber sai desse efeito retroativo de cadeia entre os significantes [𝑆1

→ 𝑆2] para uma produção do discurso.

Se o saber é o que se articula, então é o que está em constante produção do discurso

enquanto efeito. Lacan afirma que esse saber só pode ser constituído a partir da linguagem,

mas não a linguagem como a concebemos no senso comum, da simples comunicação.

Chamando atenção de forma clara que “a linguagem é o esforço feito para dar conta de algo

que não tem nada a ver com a comunicação, e é o que chamo de Lalangue” (LACAN 1972-

1973/2010, p.266). É interessante retomar esse recorte, onde ele explicita que se o

inconsciente é estruturado como uma linguagem, é porque a linguagem de início não existe.

É necessário um movimento do discurso para que se possa haver tentativas de dar conta dos

seus efeitos a partir de um saber.

É importante localizar como não estamos tratando aqui de um saber que é passado

através de um mestre para um correspondente ou discípulo. Para que haja saber é preciso

movimento, transposição, e isso só é possível mediante o levantamento de hipóteses,

questionamentos e um possível lugar de fala que produza elaborações e interlocuções. O

obscurantismo nasce e se mantém a partir de uma perspectiva que repousa sobre uma prática

de silenciamento, através da venda de um ideal de saber e de ignorância. Ou você compreende

do que a psicanálise se trata de forma clara, ou você precisa fazer silêncio mediante sua

incompreensão até um dia mágico em que as coisas façam sentido, ou sua análise pessoal que

dê conta dos impasses.

O que não é posto é o quanto esse é um caminho investigativo que não ocorre sem rigor,

dedicação e insistência. Insistência em que? Em não parar de questionar aquilo que não faz

sentido, aquilo que da teoria não pode ser relacionado com a prática clínica de alguma forma,

5 A tradução utilizada aqui pela Escola da Letra Freudiana contém uma série de parágrafos que foram recortados

da versão dos textos estabelecidos por Jacques-Alain Miller.

Mas o ponto pivô do que enunciei este ano diz respeito ao saber, sobre o qual acentuei

que seu exercício só podia representar um gozo. Esta era a chave, o eixo central. É

sobre isso que eu gostaria de contribuir hoje, com uma espécie de reflexão sobre o que

se faz de ‘tateante’, no discurso científico, com relação ao que pode ser produzido

pelo saber. Vou diretamente ao que se trata. O saber é um enigma. Um enigma que

nos é presentificado pelo inconsciente, tal como ele se revelou pelo discurso analítico

e que se enuncia mais ou menos assim: para o ser falante, o saber é o que se articula

(LACAN, 1972-1973/2010, p.265).

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quais referenciais os autores estão se apoiando para propor tal conceito e como os mesmos

podem fazer um uso próprio para que o conceito possa também ser elucidado, como o próprio

Lacan fez, partindo de outras disciplinas como a linguística, a lógica, a matemática, etc. É

preciso ir nas fontes dos quais o autor se serviu, para que também possa haver uma leitura

diferenciada a partir da referência que é posta.

A disponibilidade para essa abertura de investigação é imprescindível para uma

psicanálise mais acessível, mais atenta aos problemas cruciais de sua época, e todas as

discussões que se colocam frente à atualidade.

Manter uma psicanálise sem possibilidade de questionamento para além da patente dos

“pais e fundadores”, sem novas hipóteses ou problematização das que já existem, é cair no

mesmo equívoco milenar que a incompreensão é um sintoma. Lacan nos adverte disso faz

tempo e, ainda assim, cá estamos todos nos debatendo e lutando por novas aberturas mediante

os fechamentos. É preciso pensar qual tem sido o caminho das formações psicanalíticas nos

dias de hoje e como a transmissão tem sido conduzida de forma que o discernimento crítico

sobre a teoria tenha sido incentivado, e sua consequente elucidação.

A psicanálise não pode mais permanecer nos porões obscuros da teoria inacessível que

provoca horror aos que dela observam de longe ou de perto. Até quando estaremos fadados a

repetir a pergunta situada por Lacan, de forma a nos colocar a movimentar a atual produção de

analistas, questionando o inevitável: “será que isso ainda é psicanálise?” (LACAN, 1955/1998,

p.327). Esse ainda parece ser um ponto central para todo o percurso que está por vir na

contramão do obscurantismo.

A questão de introduzir um discurso científico relativo ao saber é interrogá-lo onde

ele está, e esse saber, onde ele está, isso quer dizer no inconsciente, na medida em que

é no berço de “alíngua” que esse saber repousa. Eu assinalo que o inconsciente, eu

não entro nisso, não mais que Newton, sem hipótese. A hipótese de que o indivíduo

que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de

um significante, o que enuncio sob essa fórmula mínima: “um significante representa

um sujeito para outro significante”. Em outras palavras, eu reduzo a hipótese, segundo

a fórmula mesma que a substância, a isso: a hipótese é necessária ao funcionamento

de “alíngua”. Dizer que há um sujeito não é nada mais do que dizer que há uma

hipótese (LACAN, 1972-1973/2010, p.271).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. (1955). Variantes do tratamento-padrão. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998,

p. 326-327.

LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:

Zahar, 1992.

LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19. O saber do Psicanalista. Recife: Centro de

Estudos Freudianos do Recife, 1997.

LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19. ...Ou pior. Bahia: Espaço Moebius de

Psicanálise, 2011.

LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de janeiro: Escola da Letra

Freudiana, 2010.

SOUZA, A. (2008). Os discursos na Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2008.

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O silêncio dos analistas: sintoma de um ideal

Lucas C. S. Pires

“A postura de silêncio supostamente lacaniana é mentirinha.”

(MAGNO, 2018)

Existe uma crença no senso comum psicanalítico de que o analista, enquanto atende

seus analisandos, deve ficar em silêncio – sustentando isso a qualquer custo. Acredita-se que

essa é a postura natural do analista, sua marca registrada, e aquilo que é necessário para se

operar o tratamento de um sofrimento – tanto que até o senso comum leigo pensa que é assim

um analista, que ele entra mudo e sai calado, que é frio e distante. Talvez isso tenha origem

nas recomendações1 que Freud faz sobre o analista que, além de ser opaco, “assim como uma

superfície espelhada, não deve mostrar nada além daquilo que lhe é mostrado” (FREUD,

1912/2017, p.102). Desse modo, nada deve partir do analista. O que chega até ele deve ser

mostrado de volta para o paciente, para evitar que o analista coloque dados de sua

individualidade em jogo no tratamento. Em última instância, para Freud, não deve haver

nenhum tipo de intimidade entre os dois componentes do par analítico, mantendo a relação o

mais asséptica possível, e para isso o analista deve manter um estado de abnegação própria.

Mas parece que o analista talvez deva se abster de falar também. Se seguirmos essa

ideia do espelho freudiano, então podemos pensar a situação assim: se o analisando dirige

palavras ao analista, este as devolve para sua origem. Agora, se o analisando se mantém em

silêncio, então o analista também permanece silenciado. Isso perdura por mais de 100 anos, e

mesmo psicanalistas de outras linhas que não a freudiana sustentam e repetem para que se

continue com a figura do analista em silêncio. Ainda no campo do senso comum, podemos

ver que analistas ditos lacanianos carregam a forma mais pura e assustadora do silêncio, por

serem considerados aqueles que carregam o silêncio do sepulcro. Diga que você é analista e

vão compreender que você fala pouco; diga que é lacaniano e vão te perguntar “por quê?”,

enquanto se mostram chocados com o que você disse, por causa da fama que paira na imagem

dos lacanianos.

A partir daqui vamos deixar o senso comum onde ele deve ficar: do lado das crenças e

preconcepções sobre as quais ninguém se interroga. Essas convicções acabam se propagando

1 Freud era hesitante em publicar um trabalho com diretrizes do fazer psicanalítico, tanto que ponderou a ideia

por quatro anos. Ele temia que as recomendações fossem tomadas como regras inflexíveis. cf. FREUD, S.

Fundamentos da Clínica Psicanalítica. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. In: Obras Incompletas de

Sigmund Freud; 6., p.105.

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quase como um dogma, silenciando as próprias questões e abrindo as portas para o

obscurantismo no fazer psicanalítico. Segundo o dicionário2, obscurantismo é o estado de algo

que se encontra na escuridão, um estado de completa ignorância, além de uma oposição

política ou religiosa a todo o progresso intelectual ou material entre as massas. Aquilo que

vaga nas sombras é inimigo da luz que lança, não o esclarecimento, mas sim a dúvida e o

questionamento sobre determinado assunto, tópico ou situação. Esta foi a proposta do

psicanalista francês Jacques Lacan, do debate das luzes sobre os pontos obscuros que

pairavam na psicanálise de sua época e que, infelizmente, ainda pairam nos dias de hoje do

século XXI, como podemos ler na contracapa de seu livro Escritos3.

O ponto sobre o qual pretendo me debruçar aqui com vocês é justamente sobre a

postura silenciosa dos analistas. Por que acreditam que isso talvez seja uma espécie de ideal

do analista? Através de citações de textos, seminários e conferências, todos de autoria do

Lacan, veremos o que de fato é apresentado quando ele aborda a questão do silêncio, e qual a

argumentação teórica que sustenta essa pequena característica que acabou tomando grandes

proporções com os pós-lacanianos, pelo menos na comunidade brasileira.

Romper o obscurantismo não é tarefa fácil, pois mexer no vespeiro das crenças atrai

animosidades. Tomo como inspiração inicial uma citação da aula de 3 de fevereiro de 1960,

do seminário sobre A Ética da Psicanálise (1959-1960/2008). Lacan disse:

Bem sei que nunca é cômodo romper o silêncio de um grupo para tomar a palavra e

brandir a sineta, deixo-lhes, portanto, a possibilidade de me fazerem uma pergunta

por escrito. Isso só tem um inconveniente, é que eu terei a liberdade de lê-la como

eu quiser (LACAN, 1959-1960/2008, p.161).

Por mais que seja difícil romper o silêncio de um grupo como diz Lacan nesse trecho –

e aqui me refiro ao silêncio sobre a postura do analista, que acredita que mudo poderá mudar

alguma coisa no sofrimento do analisando –, e que possam ocorrer animosidades, a proposta

não é ser beligerante, e sim que possamos manter um alto rigor teórico em nossa prática,

cultivando o diálogo. Não trago citações de Lacan para dizer que estou certo, pois isso seria

apenas como trocar o problema de lugar, tomando algo como um novo dogma, como a única e

última verdade – sendo que a verdade sempre é não-toda. Não trabalho com dogmas, portanto

trago as citações para que vocês possam saber e verificar de onde estou tirando os pontos da

2 cf. <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=e3Dle>. 3 “É preciso haver lido essa coletânea, e em toda sua extensão, para perceber que nela prossegue um único

debate, sempre o mesmo, o qual, mesmo parecendo marcar época, pode ser visto como o debate das luzes”

(LACAN, 1966/1998).

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proposta teórica que estou me baseando: a proposta lacaniana pautada no já citado debate das

luzes.

Chamo esse movimento de uma leitura crítico-investigativa, pelo fato de ser

importante sempre estudar uma teoria questionando o raciocínio apresentado pelo autor, além

de ser necessário empreender uma investigação – para não ficarmos apenas lendo textos – que

deverá ter uma pergunta ou um tema como guia, que nesse artigo trata-se do silêncio e sua

presença no fazer do analista. Aproveitando o gancho do Lacan ao final com “terei a liberdade

de lê-la como eu quiser”, já adianto que isso não quer dizer que todas as interpretações são

possíveis. Dentro de um texto, ou de um discurso, não se pode interpretar tudo, pois apenas

algumas interpretações são possíveis no material que temos para trabalhar. Se tudo é

interpretação, então nada é interpretação.

Retomemos rapidamente o espelho freudiano. De qual tipo de espelho ele fala? Já

pensaram nisso? Na óptica, ramo da física que estuda projeções de imagens e funcionamento

de espelhos, temos as imagens reais e imagens virtuais formadas por dois tipos distintos de

espelhos (côncavo e plano, respectivamente). Ambos os espelhos não refletem exatamente o

que está a sua frente, mas produzem uma inversão da imagem em relação ao objeto original

refletido – direita e esquerda, ou para cima e para baixo se invertem, dependendo do tipo de

espelho, assim como outras alterações, como tamanho, por exemplo. Já podemos observar que

apenas devolver o que o analisando apresenta não se trata meramente de refletir, mas também

de uma inversão. O analista precisa fazer algo mais do que apenas ficar repetindo, então.

Essas são coisas que precisamos levar em conta enquanto raciocinamos a partir de uma teoria

que sustenta uma prática. Como será essa operação de inversão que o analista deve fazer?

Infelizmente, no campo psicanalítico não se trata de um único tipo de silêncio.

Pretendo focar no silêncio das sessões, mas, ao longo do texto, irei tecer comentários também

a respeito do silêncio presente na transmissão teórica e o silêncio frente às autoridades.

Vamos pegar algumas citações do texto “A direção do tratamento e os princípios de

seu poder” (LACAN, 1958/1998) que versam sobre a postura do analista em sessão, o que

cabe a ele e o silêncio. Comecemos com um trecho famoso, onde Lacan afirma que

o psicanalista certamente dirige o tratamento. O primeiro princípio desse tratamento,

o que lhe é soletrado logo de saída, que ele encontra por toda parte em sua formação,

a ponto de ficar por ele impregnado, é o de que não deve de modo algum dirigir o

paciente (LACAN, 1958/1998, p.592).

Fica claro aqui que o analista dirige o tratamento, e não o paciente ou analisando.

Pautar-se em uma direção do paciente seria o mesmo que trabalhar na via da sugestão, o que

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seria um problema que tem relação com a demanda. Mais à frente isso ficará mais claro,

vamos averiguando cada citação. Isso é importante para que possamos tentar desfazer o mal-

entendido do obscurantismo. Continuando, podemos ver que o analista também participa do

jogo, da cena analítica. Ele não fica de fora, pois deve pagar com suas palavras – o que não

quer dizer que ele fica em silêncio –, na medida em que “a transmutação que elas sofrem pela

operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação” (LACAN, 1958/1998, p.593), além

de pagar também com sua pessoa enquanto suporte dos fenômenos transferenciais, e com o

seu ser, mas aqui não vamos abordar a questão do ser e da falta-a-ser.

A crítica de Lacan à afirmação presente em sua época, e aparentemente nos dias de

hoje também, de que “o analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é”

(LACAN, 1958/1998, p.593), minimamente mostra qual caminho ele postula em sua teoria. O

analista então precisa dizer e fazer algo para operar uma cura, caso contrário entraria em um

beco sem saída. A crítica se estende à metáfora do espelho mencionada por ele no texto,

fazendo referência ao espelho freudiano que vimos anteriormente, além de enunciar sua

analogia do bridge4. Vamos ao trecho:

Sem dúvida, há também uma estratégia ali, mas não nos enganemos com a metáfora

do espelho, por mais que ela convenha à superfície una que o analista apresenta ao

paciente. Cara fechada e boca cosida não têm aqui a mesma finalidade que no

bridge. Com isso, antes, o analista convoca a ajuda do que nesse jogo é chamado de

morto, mas para fazer surgir o quarto jogador que do analisado será parceiro, e cuja

mão, através de seus lances, o analista se esforçará por fazê-lo adivinhar: é esse o

vínculo, digamos, de abnegação, imposto ao analista pelo cacife da partida na

análise (LACAN, 1958/1998, p.595).

Não devemos nos deixar enganar pela metáfora do espelho de que o analista apenas

reflete e que não fala nada que não seja algo que tenha vindo do analisando. A função do

morto convocada pelo analista no jogo é de deixar as suas cartas voltadas para cima, onde

todos da mesa podem ver. Essa função é onde se localizam os sentimentos do analista:

Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível

nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscitá-lo, o jogo prossegue sem que se saiba

quem o conduz (LACAN, 1958/1998, p.595).

Caso esse morto seja ressuscitado seria como se as cartas expostas voltassem a estar

escondidas, seguindo a analogia do jogo de cartas, então não se saberá quem conduz o jogo,

ou, no caso, o tratamento. O analista precisa poder ter a liberdade de falar algo caso seja

necessário, em algumas situações até responder alguma pergunta que o analisando faça para

4 Jogo de cartas jogado por dois pares de jogadores, onde um dos elementos do par atua como a função de morto.

Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bridge_(jogo_de_cartas)>.

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ele. Isso tira do caminho algo que pode gerar algum pensamento paranoico no analisando,

alguma desconfiança ou algo do tipo. Assim o analista pode realizar seu trabalho conduzindo

o tratamento do sofrimento. Aqui já podemos perceber que as propostas teóricas freudiana e

lacaniana possuem diferenças – e muitas vezes são completamente opostas. Por mais que seja

necessário criticar qualquer modelo teórico, inclusive o seu próprio, não é possível seguir

paradigmas distintos quando se trata de pensar uma clínica. A psicanálise possui paradoxos,

porém esse não é um deles.

O analista, enquanto aquele que escuta o discurso do analisando, faz pontuações ao

longo de uma sessão. O analisando carrega um pedido atrelado à busca de uma resolução para

o seu sofrimento, de causas inconscientes, que, nessa proposta teórica, se trata de um saber

que não se sabe, ao invés de um conteúdo reprimido, e em última instância nos pede a

felicidade, segundo Lacan (1958/1998, p.620). Frente ao pedido, à demanda, o analista se cala

e frustra o analisando. Mas em que sentido o analista se cala?

Se eu o frustro, é que ele me demanda alguma coisa. Que eu lhe responda,

justamente. Mas ele sabe muito bem que isso seriam apenas palavras. Tais como as

recebe de quem quiser. Ele nem tem certeza de que me seria grato pelas boas

palavras, muito menos pelas ruins. Essas palavras não são o que ele me pede. Ele me

pede... pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto

(LACAN, 1958/1998, p.623).

Se a demanda que o analisando faz ao analista não é uma demanda que implique um

objeto, então não temos como respondê-la, além do fato de a demanda nem ao menos ser do

analisando, já que partiu do analista o pedido de que ele falasse. Talvez o ponto que

precisamos pensar aqui seja onde recai o acento da frustração. Afinal, isso quer dizer que o

analista deve ficar quieto ou que apenas deve frustrar a demanda? Seriam ambos

equivalentes? O analista definitivamente fica quieto em alguns momentos, por exemplo,

enquanto escuta o analisando, pois não deve ter pressa e compreender rápido demais5 as

coisas, entretanto isso não necessariamente possui relação com frustrar a demanda. Sendo

assim, a questão com a qual nos deparamos é: por que o analista precisa frustrar a demanda?

Vamos pegar duas citações desse texto, que se articulam, para que possamos tentar

avançar nessa questão.

5 “Há dois perigos em tudo o que tange a apreensão de nosso campo clínico. O primeiro é não ser

suficientemente curioso. Ensina-se às crianças que a curiosidade é um defeito feio, e, em geral, é verdade, não

somos curiosos, e não é fácil provocar este sentimento de maneira automática. O segundo é compreender.

Compreendemos sempre demais, especialmente na análise. Na maioria das vezes, nos enganamos. Pensa-se

poder fazer uma boa terapêutica analítica quando se é bem-dotado, intuitivo, quando se tem o contato, quando se

faz funcionar este gênio que cada qual ostenta na relação interpessoal. E a partir do momento em que não se

exige de si um extremo rigor conceitual, acha-se sempre um jeito de compreender. Mas fica-se sem bússola, não

se sabe nem de onde se parte, nem para onde se está tentando ir” (LACAN, 1954-1955/2010, p.144).

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Assim, o analista é aquele que sustenta a demanda, não, como se costuma dizer, para

frustrar o sujeito, mas para que reapareçam os significantes em que sua frustração

está retida (LACAN, 1958/1998, p.624).

Trabalhamos com a lógica dos significantes, e com o sujeito do inconsciente que surge

no intervalo entre dois significantes, logo uma intervenção que faça significantes importantes

reaparecerem é bem-vinda, já que

reduzir essa demanda a seu lugar pode efetuar no desejo uma aparência de redução,

através da atenuação da necessidade. Mas isso não passa, antes, do efeito do peso do

analista. Pois, se os significantes da demanda sustentaram as frustrações em que o

desejo se fixou (a Fixierung de Freud), é somente no lugar deles que o desejo é

sujeitador (LACAN, 1958/1998, p.641).

Não responder, frustrar ou sustentar a demanda, por parte do analista, tem o intuito de

fazer reaparecerem os significantes onde a demanda ficou retida, por já ter sido frustrada em

um momento anterior, e que apontam onde o desejo se fixou. Deste modo, precisamos da

demanda para poder fazer surgir o desejo. Então, se respondermos à demanda não haverá

possibilidade de o desejo surgir. Lembram quando dissemos que dirigir o paciente produziria

a via da sugestão e que isso tem relação com a demanda? Caso o analista responda a

demanda, seja com um sim ou com um não – que também é uma resposta, percebem? –, ele

passa da via da transferência, tanto motor que possibilita o tratamento como seu obstáculo

também, para a via da sugestão. No segundo já vimos que não há possibilidade de tratamento

analítico. A direção do tratamento se orienta “em relação aos efeitos da demanda” para poder

sustentar o lugar do desejo (LACAN, 1958/1998, p.640).

Um pequeno desvio para um breve comentário sobre a relação entre demanda e desejo

– que já é um assunto que exige tempo e outro artigo. Eidelsztein, em seu livro “O grafo do

desejo” (2017), descreve como o sujeito barrado, na neurose, onde podemos falar em desejo,

representado por se relaciona com o Outro. A partir dessa relação representada em etapas

no grafo, que inicialmente se dá pela demanda do Outro, nós temos a dialética da

identificação que

conduz, então, ora à petrificação própria do ideal do Outro – é o curto-circuito – ora

ao aprisionamento do sujeito na dialética significante, à metonímia incessante da

significação, o circuito, o círculo. O sujeito, então, fica preso na dialética da

identificação, no um, ou é vítima de um deslocamento infinito da significação

(EIDELSZTEIN, 2017, p.112).

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Aqui o sujeito ainda não é o do desejo, barrado, portanto da neurose, pois estamos

apenas nas identificações com os ideais – tanto o ideal do Outro, escrito6 como I(A), como a

imagem do pequeno outro, do meu semelhante, escrito como i(a) –, e na demanda do Outro,

atrelada ao movimento de deslocamento infinito de significação que vem do Outro. O sujeito

está preso em algo sem saída aqui. É necessário algo que vá para além disso, como

possibilidade de escapatória, um além dos ideais que “é imprescindível na direção da cura do

sujeito barrado” (EIDELSZTEIN, 2017, p.113).

Vamos a mais uma citação sobre a importância do para além dos ideais e para além da

demanda como saída:

Na nossa teoria do sujeito, os ideais, como tais, possibilitam duas únicas vias e

ambas sem saída. São duas vias que nunca dão verdadeiramente, um lugar para a

dialética do sujeito. Por isso a direção da cura implica, a respeito de ambas saídas,

em impasse, o passe. Não há opções para o sujeito, o passe é um só: dizer não à via

da identificação, tanto imaginária, quanto simbólica. São então postulados teóricos –

e não posições morais – o que motiva os psicanalistas a irem além dos ideais. É

necessário ir além dos ideais porque o ideal implica sempre um ponto de detenção

mortífero ou uma metonímia infinita dilacerante (EIDELSZTEIN, 2017, p.113).

Permanecer nos ideais concerne a uma condição moral, além de ser um caminho sem

saída, porém a psicanálise na proposta lacaniana apresenta aqui um postulado ético

(lembrando que a ética é a do desejo). Essa via possibilita uma saída, um para além dos ideais

que precisa estar presente na direção do tratamento. Não esqueçam que o analista é aquele

que, na direção do tratamento, não responde à demanda, para que dela possam surgir os

significantes onde o desejo é sujeitador. Apenas assim surge o desejo. Isso é importante, pois

é dessa forma que se constitui pela primeira vez o desejo, na neurose, na relação do sujeito

barrado com o Outro, além do fantasma – escrito como –, suporte do desejo. Guardem

para mais tarde esse ponto de ser necessário um para além do ideal, pois retomaremos ele em

um momento oportuno.

Ao final do seu texto sobre a direção do tratamento, Lacan enumera algumas

proposições, organizando de forma concisa o caminho percorrido.

1. Que a fala tem aqui todos os poderes especiais do tratamento; 2. Que estamos

muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o discurso

coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso; 3. Que essa

liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar; 4. Que a demanda é

propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise, estando excluída a

hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma; 5. Que, não sendo colocado

6 Todas essas escrituras como I(A), i(a), A, s(A), entre outras, fazem parte da álgebra lacaniana. A opção de

operar com letras é para evitar toda e qualquer relação com o significado, para retirar todo o sentido possível,

evitando a ambiguidade ao máximo. Os matemas lacanianos são escritos com essa álgebra.

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nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o sujeito é dirigido e até

canalizado; 6. Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode

ater-se aqui a nada além da incompatibilidade do desejo com a fala (LACAN,

1958/1998, p.647).

Deixar o paciente falar, e mais do que isso, incentivá-lo a falar sobre aquilo que lhe

causa sofrimento não implica que o analista deva permanecer em silêncio total. Essa não é

uma conclusão possível perante essas proposições. Mesmo apontando que o analista não deve

satisfazer a demanda, Lacan ressalta a dificuldade e a tentação que pode ocorrer do analista

querer responder “nem que seja um pouco” (LACAN, 1958/1998, p.647). É isso que ele

precisa silenciar para que o tratamento se conduza nos trilhos do desejo.

Em seu seminário sobre a lógica do fantasma (1966-1967/2008), na aula de 12 de abril

de 1967, podemos ver uma breve citação de Lacan em que aponta, novamente, que há uma

relação entre o silêncio e a demanda:

Escrever, como se tem feito, que é vão procurar em meus Escritos qualquer alusão

ao silêncio, é uma bobagem. Quando inscrevi a fórmula da pulsão, no alto, à direita

do grafo, como S barrado punção de D (a demanda), [D], é quando a demanda se

cala que a pulsão começa (LACAN, 1966-1967/2008, p.290).

Existem passagens sobre o silêncio no ensino de Lacan, como vemos nesse trecho,

porém o silêncio aqui não é a pausa de uma fala, mas o não responder a demanda que o

analisando apresenta. Além disso, outro elemento entra em cena aqui e se relaciona com a

demanda também. Trata-se da pulsão, e podemos encontrar uma clara definição no seminário

sobre o sinthoma (1975-1976/2007), que é “no corpo7, o eco do fato de que há um dizer”

(LACAN, 1975-1976/2007, p.18).

Sobre o fazer do analista perante a demanda que surge em sessão encontramos um

trecho extenso na aula de 28 de abril de 1965 do seminário Problemas Cruciais Para a

Psicanálise (1964-1965/2006). Vamos analisá-lo por partes:

Eu disse que a análise começa por uma demanda particular que fazia da palavra de

nosso saber o objeto da demanda do sujeito. Teria podido acrescentar que,

paralelamente, sua palavra se faz para ele objeto suposto da demanda que ele projeta

sobre nosso silêncio. Por sua palavra, o analisando tenta situar-nos no registro da

demanda; por seu silêncio, o analista se situa fora da previsão da demanda. Seu

7 É importante dizer que não se trata do corpo biológico, pois Lacan não trabalha com biologia. Claro que o

corpo existe. Porém, assim como todas as coisas e como toda a realidade, ele é feito de linguagem, por

significantes de um discurso. Não existe nada antes ou para além da realidade, como podemos ver nas citações

da aula de 9 de janeiro de 1973 do seminário “Mais, Ainda” (LACAN, 1972-1973/2008): “não há nenhuma

realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso” (LACAN 1972-1973/2008, p.37),

e “não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz coletividade, e que chamei de

os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as

mulheres e as crianças não são mais do que significantes” (LACAN, 1972-1973/2008, p.38).

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silêncio é testemunha de um resto, daquilo que cai de todo discurso, fazendo-se

escuta, ele vem completá-lo, trazer o desvelamento de uma dimensão outra (LACAN

1964-1965/2006, p.315).

No início de uma análise há a demanda do analisando que é direcionada ao analista,

como já vimos. Demanda-se a palavra que contém o saber do analista que o analisando crê ser

o objeto de sua busca, crê ser aquilo que solucionará tudo. O silêncio, como não-resposta à

demanda, faz o analista mostrar que não é esse o caminho de uma análise, situando-se fora

dessa previsão da demanda e fazendo aparecer o resto daquilo que cai de todo discurso.

Responder à demanda seria o equivalente a ofertar o objeto buscado, sustentando que alguém,

nesse caso, o analista, o possui, ou ainda mais, que ele existe de fato. Ambos são

problemáticos por fazer com que o profissional que atende deixe de poder operar a função de

analista e passe a ser um guru, um guia para a felicidade. A dimensão relativa ao resto dessa

operação é a dimensão do desejo, que está no para além da demanda.

Toda demanda se situa, implica em sua estrutura mesma a escuta; ela surge sobre um

fundo de silêncio. Toda palavra tem como avesso indissociável a escuta do outro,

quer este outro seja projetado sobre o interlocutor real ou que ele seja fantasmado na

ausência, pouco importa. Existe apenas o discurso delirante, e só ele, que surge

sobre um fundo sonoro. Em todos os outros casos, o silêncio, em sua função de

escuta, é o que vem testemunhar do desejo ignorado do discurso. Ele é suporte do

que eu chamaria o fantasma de linguagem, suportando todo o discurso para fazer

dele o apelo do que poderia vir a responder, não à demanda, mas ao desejo

(LACAN, 1964-1965/2006, p.315).

Toda palavra, toda fala possui seu elemento oposto e inseparável que é a escuta do

outro seja qual for o interlocutor, presente fisicamente ou fantasmado na ausência, já que

sempre falamos, endereçamos nossa fala para alguém, como uma carta, por exemplo. A

exceção aqui está presente apenas no caso do discurso delirante, por possuir um fundo. Junto

disso, toda demanda implica em sua estrutura mesma a escuta, portanto não pode vir de um

discurso delirante, de fundo sonoro. Este silêncio presente é o que, em sua função de escuta,

inseparável da palavra do interlocutor, vem testemunhar o desejo ignorado do discurso – o

resto mencionado anteriormente. Inclusive o silêncio suporta o discurso para fazer dele o

apelo, o chamado, o convite do que poderia vir a responder, nesse caso, não à demanda, pois o

analista não possui o objeto que sequer existe, mas sim ao desejo. Há uma relação então entre

silêncio-discurso-desejo. Continuemos com a próxima passagem para averiguar isso:

Esta dimensão do nosso silêncio, porém, só aparecerá ao sujeito no momento mesmo

em que ele é privado dele, ou seja, quando da irrupção da nossa palavra, palavra

esperada, sem dúvida, mas da qual veremos que ela é sempre desvelamento da falta.

Enquanto nosso silêncio não está presente senão como escuta, ele é o que se torna,

para o sujeito, demanda de palavra. Dizer ao analisado que ele deve dizer tudo

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implica que ele pode dizer tudo, inclusive o que não pode, dele, ser ouvido. Nós

assumimos a responsabilidade da escuta, vimos garantir-lhe a presença de outro

sentido e, antes de tudo, que naquilo que é do dizer, nada se fará objeto de rejeição.

Nossa escuta é o suporte dessa crença que é a sua, a de ter em seu poder o objeto por

nós demandado. “Como vocês fazem para se lembrar de tudo o que eu digo?” Se ele

não sabe como eu faço, isso de que ele tem certeza que é minha escuta é um

receptáculo sem falha (LACAN, 1964-1965/2006, p.315).

A palavra do analista aparece aqui, e é esperada até. Mas ela não aparece como

resposta à demanda, e sim como uma palavra, uma fala que desvela, exibe e manifesta a falta.

O analista se silencia perante a demanda para poder escutar o desejo, e dessa forma o silêncio

do analista se faz presente como escuta. Porém, para isso é preciso que a palavra do analista

apareça e seja proferida por ele. Não qualquer palavra, mas aquela que desvela a falta,

fazendo presente à dimensão do desejo. O analista precisa falar, percebem? Aos poucos

vamos verificando que outra coisa que não a teoria é o que sustenta, aparentemente, esse mito

do analista silencioso, do silêncio total, como se todo o processo de uma análise acontecesse

de forma natural, apenas pela presença do analista mudo. Caso o silêncio não se apresente

como escuta, isto é, se o analista entende o silêncio como silenciar-se, fechar a boca, ficar

mudo, isso fará surgir no analisando uma demanda por palavra – recuperando a analogia com

o jogo de bridge, seria o analista esconder suas cartas, não as deixando expostas. Ao

assumirmos, nós, analistas, a responsabilidade da escuta isso cria no analisando a crença de

que, quando ele fala, ele possui o objeto por nós demandado, a ponto até de ficar deslumbrado

pelo analista sempre lembrar o que foi falado nas sessões, acreditando que nossa escuta é sem

falhas - o que não é verdade, pois ela não é perfeita, e não há problema em não ser. Essa

crença implica que:

Nesse sentido nós somos verdadeiramente apelo à transferência e à trapaça; à

transferência, graças ao fato de que é nossa escuta que investe toda palavra dos

emblemas que fazem dela o objeto analítico; ela torna-se assim o objeto privilegiado

e único da demanda; trapaça por que, na realidade, o analista, avalista do desejo, não

pode jamais ser o sujeito de uma demanda qualquer que ela seja, nem mesmo do que

se chama a cura (LACAN, 1964-1965/2006, p.315).

Nós analistas somos o apelo, o convite, o estímulo tanto à transferência, quanto à

trapaça. No primeiro, pois ao disponibilizar nossa escuta isso faz com que tudo aquilo que é

dito seja revestido pelo emblema, pela roupagem que torna isto o objeto privilegiado da

demanda. Por escutarmos, o analisando crê que ao falar ele irá oferecer-nos aquilo de especial

que ele acredita que nós buscamos. Já no segundo, mesmo que a nossa escuta implique que

ele fale, isso não quer dizer que podemos responder essa demanda. Não devemos acreditar

que aquilo que o analisando nos demanda é de fato aquilo que ele quer, pois a demanda

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engana, já que ela é intransitiva, portanto, sem objeto. Estamos interessados no para-além da

demanda, no desejo.

É possível colher mais um exemplo, no ensino de Lacan, de que o analista diz coisas

em sessão, e que o silêncio da boca fechada pode não ser efetivo, na aula de 11 de fevereiro

de 1975 do seminário “R.S.I.” (1974-1975). Vamos acompanhar a citação:

A palavra é um objeto de elaboração para o analisando, mas o que diz o analista,

pois ele diz, o que diz o analista tem efeitos, nos quais pouco é dizer que a

transferência aí tem um papel, mas isso não é nada, não esclarece nada. Tratar-se-ia

de dizer como a interpretação carrega, e que ela não implica forçosamente uma

enunciação. É evidente que um número exagerado de analistas têm o hábito de calar,

ouso crer, quero dizer, calam o bico, não abrem, como se diz, falo da boca, mas ouso

crer que o silêncio deles não é só feito de um mau hábito, mas de uma suficiente

apreensão do alcance de um dizer silencioso. Ouso crer, mas não tenho certeza. A

partir do momento em que entramos neste campo, não há provas. Não há provas a

não ser nisso de nem sempre funcionar, um silêncio oportuno (LACAN, 1974-1975,

p.28-29).

Assim como vimos anteriormente, a fala possui todos os poderes especiais do

tratamento e permite que o analisando possa fazer elaborações. Entretanto, o que é dito pelo

analista possui e produz efeitos também em sessão. Se o que ele diz tem essa propriedade, por

que a crença de que ficar em silêncio, de boca fechada, seja o operador? Por qual motivo

desperdiçar essa ferramenta, que de fato é a ferramenta de operação do analista?

Além de seu único livro, organizado por ele próprio, Escritos, e de seu ensino oral

através de seus seminários, Lacan também proferia conferências em algumas cidades pelo

mundo. Esse último item da lista merece a nossa atenção, pois em diversas delas Lacan se

fazia claro e direto diante daqueles que não tinham contato com ele em seus seminários. Em

sua conferência na Universidade de Columbia (1975/2016), nos Estados Unidos, Lacan disse

coisas nítidas sobre a análise e o analista, como por exemplo:

Muitas vezes o analista crê que a pedra filosofal – se posso dizer assim – de seu

ofício, isso consiste em se calar. O que eu digo sobre isso é bem conhecido. Depois

de tudo é um engano, um desvio, o fato de que os analistas falam pouco (LACAN,

1975/2016, p.67).

E ainda sobre o analista:

Então o analista ainda tem coisas a dizer. Ele tem coisas a dizer a seu analisante, a

aquele que, pelo menos não está ali para se afrontar com simples silêncio do analista.

O que o analista tem a dizer é da ordem da verdade. Eu não sei se vocês têm a

verdade como algo muito sensível. Quero dizer: se têm uma ideia do que é a

verdade. Todo discurso implica ao menos um lugar que é este da verdade. O que eu

chamo discurso é uma referência a um laço social. A análise é desta ordem

(LACAN, 1975/2016, p.68).

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O fato de que os analistas falam pouco é um engano, e aparentemente um engano dos

próprios analistas, já que eles sustentam esse mito. O analisando não vai em busca de

tratamento para o seu sofrimento para se deparar com uma pessoa que, ao invés de utilizar a

analogia do bridge e deixar as cartas viradas para cima na mesa, seja como um defunto, frio,

duro e calado. Aquilo que o analista tem a dizer é da ordem da verdade, da verdade do sujeito

do inconsciente – efeito da linguagem, barrado –, portanto relativo ao desejo. É dessas coisas

que o analista fala para o analisando e que ele precisa falar para que se opere uma cura.

Ingênuo é aquele que acredita que o silêncio do sepulcro produz transformações no

sofrimento alheio.

Retornemos à problemática do beco sem saída da dialética das identificações. Não é

porque na neurose há o desejo, algo que está para além do ideal e da demanda, que não

aparecem idealizações na neurose. O desejo é apenas a forma de sair desse impasse, e não a

erradicação. Essa adversidade dos ideais também se faz presente do lado do analista, como

podemos acompanhar em alguns trechos do seminário de Lacan sobre A Transferência (1960-

1961/2010). Na aula de 03 de maio de 1961, Lacan disse:

Este ideal, preciso discuti-lo antes de o riscarmos com uma cruz? Não, decerto, que

não se possam evocar no analista exemplos do estilo do coração puro, mas é

pensável que este ideal seja requerido, de saída, no analista? Poderia ser ele de

alguma maneira esboçado, se fosse comprovado? Digamos que não seja isso o

comum nem a reputação do analista. Poderíamos também dar facilmente nossas

razões de decepção quanto a esta fórmula débil (LACAN, 1960-1961/2010, p.332).

Logo de partida já nos é indicado que a ideia de ideal, do lado do analista, deve ser

riscada do mapa. Pode ser que alguém espere isso de um analista, porém ele não possui algo

semelhante a uma pureza – e nem é essa a sua reputação.

Seguindo essa linha, na aula de 07 de junho de 1961, Lacan aponta que além de não

ser puro, o analista também não é nenhum santo:

É claro, vocês imaginam, que não o coloco entre os santos. É preciso dizê-lo. Pois,

não o dizendo muitos achariam ainda que este seria o ideal, como se diz. Há muitas

coisas sobre as quais somos tentados a dizer, a nosso respeito, que ali estaria o ideal.

A questão do ideal está no coração dos problemas da posição do analista (LACAN,

1960-1961/2010, p.438).

Mesmo sendo claro, é necessário dizer. O óbvio precisa sempre ser dito, mesmo nos

dias de hoje. Por mais que o ideal seja o cerne dos problemas que o analista enfrenta a

respeito de sua posição dentro do tratamento, essa questão precisa ser abordada para que

possamos abandonar qualquer noção de ideal do analista.

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Na última aula deste seminário, em 21 de junho de 1961, temos mais algumas palavras

de Lacan sobre a posição do analista e a temática do ideal:

Essa posição, eu a distingo dizendo que no próprio lugar que é o seu, o analista deve

se ausentar de todo ideal do analista (LACAN, 1960-1961/2010, p.469).

Não devemos esquecer que a análise refere-se a um tratamento que vai além dos

ideais, pois se trata de uma ética e, diferentemente da moral, não se apoia nos ideais sociais,

no que está certo ou no que está errado, como diz Eidelsztein (2018, p.47). Se o desejo é a

saída do impasse idealizador, isso não é diferente do lado do analista. Ele opera o tratamento a

partir do desejo do analista8, como podemos ver nesse trecho da aula de 24 de junho de 1964

do seminário de Lacan sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/2008) e

sem ele é impossível lidar com os impasses do tratamento:

Para lhes dar fórmulas-referência, direi – se a transferência é o que, da pulsão,

desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por essa

via, ele isola o a9, o põe à maior distância possível do I que ele, o analista, é

chamado pelo sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que tombar

para ser o suporte do a separador, na medida em que seu desejo lhe permite, numa

hipótese às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado (LACAN, 1964/2008, p.264).

O desejo do analista é aquilo que reconduz as coisas aos trilhos. Isso não quer dizer

que a análise se trata de algo rígido, apenas que a via possível do tratamento é a via da

dimensão do desejo, como já abordamos. Na experiência psicanalítica, o analista é

convocado, pelo analisando, a encarnar um ideal, e a isso o analista deve declinar, não

respondendo à demanda. Se o propósito dessas operações é se afastar das identificações, das

idealizações, porque então seria o propósito do analista o de fomentar um ideal, o seu próprio

nesse caso, na condução do tratamento? Trata-se de uma incongruência da qual se faz

necessário prescindir, se quisermos operar uma clínica pautada em um rigor teórico.

Maria Pierrakos foi a estenotipista dos seminários de Lacan, por 12 anos, e registrou

essa experiência em seu livro “A Batedora de Lacan” (2005). Dentre os diversos comentários,

podemos vê-la descrevendo como o auditório, que escutava Lacan falar, se calava diante das

palavras do mestre, e “um silêncio místico se instalava” (2005, p.20). Descreve como muitos

tentavam imitar Lacan, inclusive no vestuário, charuto, e jeito de respirar. Os seminários eram

como “uma assembleia de clones, de pequenos Lacans, de Lacans em miniatura” (2005, p.27),

além de também levantar críticas aos jogos de poderes que essa relação acabou produzindo. A

8 O conceito de desejo do analista não será desenvolvido neste artigo, para não fugir do foco da proposta. 9 Refere-se ao “objeto a”, conceito cunhado por Lacan que implica tanto o objeto do desejo como também o

objeto causa de desejo. Este também não será desenvolvido neste artigo, para não fugir do foco da proposta.

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tentativa de imitar o mestre te faz cair no beco sem saída da dialética das identificações, algo

importante repetir para que comece a ficar claro.

Vimos até aqui que o silêncio do analista de fato existe, porém não como o analista

mudo do mito que se perpetua até os dias de hoje nos círculos psicanalíticos, e sim como não-

resposta à demanda que surge em sessão. Esse não-responder não significa dizer não ou ficar

em silêncio, o que seriam respostas, mas não acreditar que nós analistas possuímos aquilo que

nos pedem, e muito menos que temos algo para dar, além de que aquilo que nos pedem não é

de fato o que querem. Nosso silêncio precisa aparecer como escuta, como escuta do desejo

através das palavras que o analista tem a dizer sobre a verdade do sujeito do inconsciente.

Mencionamos anteriormente que não há apenas na clínica uma postura silenciosa, ou

de silenciar-se – como o mito de ficar mudo –, mas que há também presença disso na

transmissão que se faz da psicanálise, enquanto teoria e prática clínica, até os dias de hoje.

Não só pelo fato da propagação e sustentação desse ideal de analista silencioso, mas também

nas relações de poder que se estabelecem nas escolas de formação de analistas. Relações de

poder por não ensinar de fato qual a proposta teórica presente na psicanálise, debruçando-se

sobre os textos e investigando-os, e por não ensinar o que se faz em uma clínica, perpetuando

o obscurantismo já mencionado. Lembremos que o obscurantismo não tolera

questionamentos, pois isso poderia alterar o estado de manutenção de um grupo nas sombras

da ignorância. Lacan (1958/1998, p.592) aponta que o fazer de um “reduz-se ao exercício de

um poder”, quando este é incapaz de sustentar o exercício autêntico de uma práxis.

Minimamente é necessário saber como se faz para realizar tal práxis, e aqui falamos da

psicanálise. Para isso há que se estudar e investigar a teoria que sustenta este fazer. O poder

aqui é problemático, pois

esse poder, eles o substituem pela relação com o ser em que se dá essa ação, fazendo

com que seus meios, nomeadamente os da fala, decaiam de sua eminência verídica.

Eis por que é realmente uma espécie de retorno do recalcado, por mais estranho que

seja, que faz com que, das pretensões menos inclinadas a se preocupar com a

dignidade desses meios, eleve-se a algaravia do recurso ao ser como a um dado do

real, quando o discurso que ali impera rejeita qualquer interrogação que uma

estupenda mediocridade já não tenha reconhecido [grifo nosso] (LACAN,

1958/1998, p.618).

Um discurso que rejeita qualquer tipo de questionamento não é um discurso que se

proponha a trabalhar com a dimensão da verdade, campo do fazer do psicanalista. Isso apenas

faz com que continuemos sustentando ideais nocivos à prática do nosso campo. Se quisermos

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pensar em um futuro para a psicanálise, em uma psicanálise porvir, então precisamos romper

esses silêncios e questionar o que estamos fazendo e para onde queremos ir.

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