revista ciência em pauta - arqueoastronomia

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Especial Arqueoastronomia 1 Arqueoastronomia em Florianópolis Alinhamentos de pedras com o Sol nas mudanças de estação despertam a curiosidade de pesquisadores e levantam polêmicas: é possível que antigos moradores do litoral catarinense usassem conhecimentos de Astronomia para regularem suas vidas? Stonehenge Novas teorias sobre o monumento que incentivou os primeiros estudos a relacionarem vestígios arqueológicos ao céu No Brasil Pesquisas realizadas no país que unem Arqueologia à Astronomia se focam na interpretação de inscrições rupestres SC pré-colonial Estudos descrevem quem foram os moradores da costa catarinense antes da chegada dos portugueses

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TCC de Camila Alves e Talita Fernandes

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Especial Arqueoastronomia

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Arqueoastronomia em FlorianópolisAlinhamentos de pedras com o Sol nas mudanças de estação

despertam a curiosidade de pesquisadores e levantam polêmicas: é possível que antigos moradores do litoral

catarinense usassem conhecimentos de Astronomia para regularem suas vidas?

StonehengeNovas teorias sobre o monumento que

incentivou os primeiros estudos a relacionarem vestígios arqueológicos ao céu

No BrasilPesquisas realizadas no país que unem Arqueologia à Astronomia se focam na

interpretação de inscrições rupestres

SC pré-colonialEstudos descrevem quem foram os moradores

da costa catarinense antes da chegada dos portugueses

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Os pescadorese a astronomia

Perfil: Alexandre Amorim

Entrevista:Germano Afonso

Povos pré-coloniais do litoral catarinense

Etnoastronomia

CARTA AO LEITOR

Sempre que dizíamos para alguém que nosso Trabalho de Conclusão de Curso era sobre Ar-queoastronomia, as pessoas nos perguntavam assustadas: “O que é isso?” Nosso objetivo com essa edição especial da revista Ciência em Pau-ta é justamente explicar para o nosso público o que é essa disciplina e onde ela é estudada. Embora não se saiba exatamente quando a dis-ciplina foi criada, as primeiras discussões sobre Astronomia em estudos arqueológicos são do final do século XIX.

No Brasil, as pesquisas na área são poucas e estão quase restritas a inscrições rupestres. Em Florianópolis, desde o final da década de 1980, Adnir Ramos procura alinhamentos de pedras com fenômenos astronômicos nos arredores da Lagoa da Conceição. Resultado desse traba-lho, o Stand Itinerante de Arqueoastronomia e Arte Rupestre está em exibição na cidade desde 2009 e já passou por cinco bairros da capital.

Ramos acredita que as pedras eram utiliza-das pelos povos pré-coloniais para orientação na pesca, em rituais e em outras atividades. Es-sas afirmações são constestadas principalmente por arqueólogos que relizam pesquisas na re-gião. Curiosas com o tema, pouco divulgado, entrevistamos os membros do Instituto Multi-disciplinar de Meio Ambiente e Astronomia e outros pesquisadores. O resultado você confere nessa revista.

Boa leitura!

Revista Ciência em Pauta – Especial ArqueoastronomiaReportagem: Camila Alves e Talita FernandesEdição: Camila Alves e Talita FernandesDiagramação: Alexandre Lunelli

Infografia: Rogério Moreira Jr.Projeto Gráfico: Alexandre LunelliOrientação: Tattiana TeixeiraImpressão: Centro Cópias

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O que é Arqueoastronomia

Os estudos publicados no mundo

Stonehenge

As estações do anoOs pescadorese a astronomia

Arqueoastronomia no Brasil

Alinhamentos em Florianópolis

Perfil: Adnir Ramos

Perfil: Alexandre Amorim

Entrevista:Germano Afonso

Povos pré-coloniais do litoral catarinense

Etnoastronomia

ARQUEOASTRONOMIAEM SANTA CATARINA

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Ciência em Pauta

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EM BUSCA DE VESTÍGIOS ASTRONÔMICOS

O Códice de Dresden feito pela civilização maia pré-colombiana possui várias descrições astronômicas.

Especial Arqueoastronomia

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Antes de começarem uma guerra, os maias olhavam para o céu. Se Vênus estivesse surgindo, a bata-

lha podia começar. O Códice de Dresden, documento mais elaborado que restou dessa civilização, evidencia a importân-cia do planeta para eles: das 74 páginas do livro, seis são dedicadas a descrever o ciclo de Vênus.

Além dos maias, povos como os chi-neses, babilônios e egípcios, deixaram vestígios arqueológicos com registros de observações de estrelas e planetas. Mas o que a Astronomia representava para essas pessoas? Para que utilizavam essas informações?

Esses questionamentos impulsionaram pesquisas e deram origem, por volta da década de 60, à Arqueoastronomia. Disciplina, que como explica Clive Ruggles no livro Ancient Astronomy, estuda as crenças e práticas relacionadas ao céu no passado e o uso que as pessoas faziam desses conhecimentos. “Pode ser equivocado pensar na disciplina como o estudo da Astronomia antiga, já que os povos no passado podem ter se relacionado com o céu de maneiras

diferentes das pessoas do mundo ocidental”, observa o professor da Universidade de Leicester, na Inglaterra.

Foi Stonehenge, estrutura circular formada por pedras localizadas no sul da Inglaterra, que estimulou o surgimento da disciplina. Norman Lockyer, um dos primeiros a fazer estudos relacionando Astronomia à Arqueologia, realizou pes-quisas no local no começo do século XX e chegou à conclusão de que Stonehenge era um templo solar. Para ele, o monu-mento havia sido construído de modo que o Sol nascesse no solstício de verão acima da Heelstone, situada na entrada do local. (Ver reportagem na página 10)

As atenções só se voltaram a esses es-tudos em 1965, quando Gerald Hawkins, então professor de Astronomia da Uni-versidade de Boston, publicou o livro Stonehenge Decoded. Usando computado-res – tecnologia rara na época – Hawkins encontrou alinhamentos em 165 pontos de Stonehenge e concluiu que o local era utilizado como computador astronômico e calendário, capaz de prever até fenô-menos complexos como eclipses.

Entre os arqueólogos, o sucesso do

best-seller de Hawkins não se repetiu. “É tendencioso, arrogante, preguiçoso, não convincente e traz poucos avanços aos conhecimentos sobre Stonehenge”, afirmou o especialista em pré-história, Richard Atkinson, em artigo publicado na revista Antiquity, logo após o lança-mento de Stonehenge Decoded. A teoria foi questionada, principalmente, pela falta de estudos arqueológicos que pudessem embasá-la. Stonehenge foi construída por uma população que não deixou re-gistros escritos. As escavações realiza-das até essa época no monumento “não haviam permitido” encontrar indícios mostrando a importância da Astronomia para antigos habitantes do local, como defendia Hawkins.

Para muitos pesquisadores, Stonehen-ge Decoded também era fruto do fascínio do autor pela tecnologia. “Eram os pri-meiros dias da revolução computacio-nal e Hawkins estava entusiasmado com os resultados que o computador IBM do Harvard-Smithsonian [Maior centro de estudos de Astronomia do mundo] pro-duziu para ele”, explica o escritor Rodney Castleden em The Making of Stonhenege.

EM BUSCA DE VESTÍGIOS ASTRONÔMICOS

Depois de décadas de desentendimentos e polêmicas, a Arqueologia e a Astronomia se unem para compreender como os povos antigos utilizavam a observação do céu nas suas culturas

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Hawkins estava tão empolgado que escreveu no prefácio do livro: “De fato, devo mencionar que a maior parte do crédito pela solução do mistério sobre Stonehenge, apresentada neste livro, deve ir diretamente à máquina. Aquela trabalhadora resignada que em poucos segundos desenvolveu centenas de cálculos con-fusos que até então tinham desencorajado os humanos aspiran-tes a pesquisadores”, declarou, deixando os arqueólogos receo-sos em relação a sua pesquisa.

>Mais Arqueologia, menos Astronomia Essa polêmica foi o que motivou o surgimento da Arqueo-

astronomia. Até então, os estudos eram conhecidos como “As-tronomia Megalítica” ou “Astro-Arqueologia”. A mudança não significou apenas um novo nome, mas também novas bases metodológicas para os estudos. (Ver box)

A busca por alinhamentos na arquitetura deixou de ser o foco das pesquisas. “Só porque algumas pedras estão alinhadas, por exemplo, com o nascer do Sol em um dos solstícios, não significa que aquilo foi deliberado ou que significava algo para as pessoas que construíram e usavam o monumento”, observa Ruggles, em Ancient Astronomy.

A controvérsia ficou clara depois do I Simpósio Internacio-nal sobre Arqueoastronomia, realizado na cidade de Oxford, em 1981. Foram lançados dois livros: Archaeoastronomy in the Old World, que tinha uma capa verde e trazia artigos mais

baseados em alinhamentos, e Archaeoastronomy in the New World, de capa marrom, que se aproximava mais da Arqueo-logia, com uso de dados etnográficos e registros históricos.

Anthony Aveni, organizador do livro sobre os estudos nas Américas, aproveitou a diferença entre as cores das capas para lançar uma provocação. Ele dividiu os pesquisadores entre “verdes” – os que só se focam em alinhamentos – e “marrons” – os que se preocupam com Arqueologia e An-tropologia. Professor da Universidade de Colgate, nos Esta-dos Unidos, Aveni não poupa críticas e ironias aos pesquisa-dores “verdes”, que também apelida de “colecionadores de borboletas celestiais”.

Aveni foi um dos precursores dos estudos baseados mais em vestígios do que em alinhamentos. Na América, com a disponibilidade de documentos escritos dos próprios povos e com relatos de colonizadores, o autor conseguiu mudar a perspectiva das pesquisas. Os maias foram os que mais pos-sibilitaram isso, pois deixaram livros e calendários criados com base na observação do céu. Um dos três calendários utilizados na época, por exemplo, chamado de tzolkin, fazia previsões dos períodos de chuva, de caça e de pesca.

Mesmo sendo tão crítico, no livro Archaeoastronomy in the New World, que foi organizado depois do Simpósio, Aveni já se mostrava otimista em relação à disciplina. “Depois de um começo tempestuoso que teve início com a controvérsia

Norman Lockyer publica Dawn of Astronomy, onde analisa templos e mitologias do antigo Egito e da Babilônia. Em 1906, ele lança o livro Stonehenge and Other British Stone Monuments Astronomically Considered.

1894

Manuscritos de Timbuktu sobre astronomia e matemática Alguns oráculos da dinastia chinesa Shang falam sobre eclipses

As principais publicações que marcaram o início da Arqueoastronomia

Não existe uma data certa para o início da Arqueoastronomia e nem mesmo um primeiro trabalho que revolucionou a área. Nessa linha do tempo, você vê algumas das datas que marcaram o desenvolvimento da disciplina.

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sobre Astronomia Megalítica na Grã-Bretanha há 15 anos, esse campo de estudos em desenvolvimento contou com uma década de cooperação e progresso entre as disciplinas contribuintes”, escreveu.

> Como está a disciplina hoje Quase trinta anos se passaram desde o Simpósio em

Oxford e da briga entre “verdes” e “marrons”. Em Sto-nehenge, que marcou o início dos estudos e da polêmica so-bre a disciplina, novas pesquisas estão sendo realizadas e a mudança é evidente.

Desde 2003, projetos milionários financiam novos estudos no local e o arqueólogo Mike Parker-Pearson, líder da pesqui-sa Stonehenge Riverside Project, possui uma nova teoria sobre o monumento. Apesar de acreditar que Stonehenge foi criada para ser alinhada com o Sol no solstício de verão, para ele, o local era um monumento sagrado para os mortos, e não um computador astronômico.

Para comprovar a hipótese, a equipe do projeto, que reúne seis universidades inglesas, se concentra na realização de es-cavações nos arredores do monumento, onde há outros vestí-gios arqueológicos, como casas, túmulos, ossos humanos e de animais. (Ver reportagem sobre Stonehenge na página 10)

A Arqueoastronomia se desenvolveu. O que não quer dizer que não existam mais confusões e teorias que envolvam As-tronomia e vestígios arqueológicos. A crença de que o mundo vai acabar em 2012 é uma prova disso. A história divulgada em blockbusters, livros e revistas, tem como base o término do calendário maia - de longa contagem - em dezembro de 2012. Para os defensores dessa hipótese apocalíptica, os maias conseguiram prever uma série de fenômenos astronômicos, como uma mudança dos pólos magnéticos da Terra ou a mor-te do Sol.

Destruir essa crença popular é o principal alvo de Aveni agora. Em seu livro mais recente, The End of time: The Maya Mystery of 2012, ele afirma que essa teoria surgiu pela transpo-sição das crenças da cultura ocidental ao passado. “A cultura pop americana está preocupada com finais trágicos, assim como com novos começos, com a redenção”, explica no livro. Para Aveni, se todos os vestígios deixados pelos maias forem analisados em conjunto, pode-se perceber que eles não esta-vam preocupados em elaborar teorias sobre o universo. “Es-sas previsões surgiram como uma moda cultural dos nossos tempos”, conclui.

1973

Gerald Hawkins publica artigo Stonhenge Decoded na Nature com

uma prévia dos resultados que foram divulgados integralmente depois em

1965 no livro de mesmo nome.

O enhenheiro Alexander Thom publica o livro A Statistical Examination of the Megalithic Sites in Britain.

1963 1967 1981

O termo Arqueoastronomia aparece

pela primeira vez em um artigo da arqueóloga

Elizabeth Baity.

Primeira conferência sobre Arqueoastronomia em Oxford

levanta polêmica sobre as metodologias dos estudos na Grã-

Bretanha.

De Arqueoast ro log ia à Arqueoastronomia

Até se chegar ao termo Arqueoastronomia vários nomes foram utilizados para designar a discipli-na. A divergência continua até hoje. Conheça as diferenças:

ArqueoastronomiaEstudo de crenças e práticas envolvendo o céu no passado, especialmente na pré-história, e do uso que as pessoas faziam desses conhecimentos.

AstroarqueologiaFoi criado por Gerald Hawkins. Na maioria das vezes, é utilizado para definir estudos de alinha-mentos astronômicos de monumentos. Está em desuso, pelo menos entre os pesquisadores que trabalham nesta área. Astronomia culturalTermo geral que abrange Arqueoastronomia e Etnoastronomia.

Estudos de alinhamentosTêm origem nas primeiras pesquisas da Inglater-ra. Significa a mesma coisa que Astroarqueolo-gia.

EtnoastronomiaEstudo de crenças e práticas que envolvem o céu e povos modernos. A maior parte dos estudos se concentra em comunidades indígenas.

Fonte: Ancient Astonomy: an encyclopedia of cosmoslogies and myth de Clive Ruggles.

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Quando se fala em Arqueoastronomia, muitos se lembram dos trabalhos desenvolvidos na Inglaterra, onde foram realiza-das as primeiras pesquisas da área. Mas, além de Stonehenge, quais outros monumentos e culturas foram estudados até ago-ra? Uma maneira de descobrir isso é ver o que os periódicos científicos já publicaram sobre o assunto.

Em 1979, foram criadas as duas únicas revistas científicas que abordam exclusivamente esse campo de estudos, ambas entituladas Archaeoastronomy. Uma delas, que era editada anu-almente pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), deixou de ser publicada em 2002. A outra, produzida pela Universida-de do Texas (Estados Unidos), é impressa até hoje a cada um ou dois anos. Escritos apenas em inglês, os artigos dessas publica-ções divulgam pesquisas do mundo inteiro.

Para a construção do mapa ao lado, foram analisados 293 artigos de todas as edições já publicadas. A seleção incluiu ape-nas trabalhos que tratam sobre uma cultura ou região especí-fica. Textos sobre métodos ou resenhas de livros e filmes não foram considerados.

No mapa também estão sinalizadas as cidades que sediaram os Simpósios Internacionais de Arqueoastronomia de Oxford, que já teve nove edições.

Diferentes das encontradas nas bancas, revistas científicas são segmentadas por campo de estudos e voltadas aos próprios cientistas, que assim podem divulgar seus trabalhos e conhecer o dos outros. Nessas revistas – também conhecidas como periódicos – são encontrados principalmente artigos, que, antes de serem publicados, obrigatoriamente passam pela revisão de outro pesquisador.

A DISTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS PUBLICADOS NO MUNDO

Locais onde foram realizados simpósios de Oxford

Sudoeste dos EUAO que mais se estuda? Os povos nativos americanos conhecidos como “Pueblos”, que viviam na região e deixaram suas ruínas.Número de trabalhos: de 30 a 50

MesoaméricaO que mais se estuda? A antiga civilização maia através dos códices e ruínasNúmero de trabalhos: Mais de 50

Andes e parte da AmazôniaO que mais se estuda? Peru é o principal pólo de pesquisas, já que concentra a maior parte das ruínas dos incas.Número de trabalhos: de 5 a 10

O que são revistas científicas?

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Península ibéricaO que mais se estuda? Monumentos em Portugal e na Espanha, principalmente nas ilhas espanholas, como as Canárias e Menorca. Número de trabalhos: 20 a 30

Grã-Bretanha-O que mais se estuda? Megalitos (estruturas de pedras) e outros sítios arqueológicos da Escócia e Inglaterra.Número de trabalhos: de 20 a 30

FrançaO que mais se estuda? Assim como ocorre na Inglaterra, na França o foco dos estudos são megalitos. Número de trabalhos: de 5 a 10 trabalhos

ItáliaO que mais se estuda? Monumentos nas Ilhas do sul do país, além de Roma, que fica na parte central da Itália e cidades do nordeste, como Veneza e ModenaNúmero de trabalhos: entre 10 e 20

GréciaO que mais se estuda? A civilização da Grécia Antiga, que introduziu as bases da Astronomia moderna, deixou vários vestígios arqueológicos. Número de trabalhos: de 5 a 10 trabalhos

EgitoO que mais se estuda? Os antigos egípcios deixaram uma grande quantidade de vestígios arqueológicos que possuem relação com Astronomia, com as pirâmides.Número de trabalhos: de 5 a 10

ChinaO que mais se estuda?Há quatro mil anos já eram feitos registros de estrelas, planetas e eclipses na China. Os estudos analisam vestígios desses conhecimentos.Número de trabalhos: de 5 a 10 trabalhos

Arte: Rogério Moreira Jr

Fonte: Archaeoastronomy: the journal of Astronomy in Culture e Archaeoastronomy

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QUEBRA-CABEÇASDE PEDRA

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Arqueólogos de projetos milionários encontram vestígios em Stonehenge e seus arredores e elaboram novas teorias sobre o monumento

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N o amanhecer do primeiro dia de verão, tambores, gritos e palmas ressoam em Stonehenge, no sul da Inglaterra. É o barulho das milhares de pessoas que

se reúnem no local todos os anos para comemorar a mu-dança de estação. Nesse dia, o Sol nasce acima de uma das pedras principais do monumento, a Heelstone. “Significa muito para nós... ser britânica e seguir nossas raízes pa-gãs”, afirmou a um repórter da Associeted Press, Victoria Campbell, uma londrina de 29 anos que trabalha no mer-cado financeiro.

Stonehenge é o sítio pré-histórico mais famoso da Ingla-terra e recebe cerca de 800 mil visitantes por ano. Localiza-do na planície de Salisbury, a 137 quilômetros de Londres, o monumento é formado por uma estrutura de pedra cir-culada por uma vala (henge). A arquitetura do local é com-plexa e composta por vários detalhes, como o alinhamento com os solstícios. (Ver infográfico na página 12)

Além de ser motivo de festa para seguidores de reli-giões pagãs e para os adoradores do Sol, a orientação de Stonehenge com eventos astronômicos intriga pesqui-sadores desde o século XVII. Mesmo após tantos anos de estudos, ainda há mais dúvidas do que certezas: não se sabe que população construiu o monumento e qual era a relação dos solstícios com a cultura dos povos que habi-tavam a região.

Hoje, o que resta de Stonehenge são ruínas. Metade da estrutura principal caiu ou desapareceu. Para os vi-sitantes, o que mais chama atenção é o círculo de 17 pe-dras verticais, cujos blocos maiores chegam a ter qua-

tro metros de altura pesam até 50 toneladas. Foi dentro desse círculo que as pesquisas no local se concentraram no início.

William Stukeley foi o primeiro a perceber que as pe-dras de Stonehenge estão orientadas com os solstícios. O antiquário realizou escavações no local durante o sé-culo XVIII e logo chegou a uma conclusão: para ele, Sto-nehenge era um templo dos druidas - antigos sacerdo-tes da sociedade celta – por quem tinha uma verdadeira fascinação. Com a descoberta do tempo de existência do monumento, através da técnica do radiocarbono, essa hi-pótese caiu. As análises mostraram que o local começou a ser construído há cerca de cinco mil anos – dois milênios antes dos druidas - por uma população que não deixou registros escritos. Mais ou menos na mesma época das pi-râmides do Egito.

Depois de Stukeley, vieram as pesquisas que deram ori-gem à Arqueoastronomia. O astrônomo Norman Lockyer, fundador da revista Nature, acreditava que Stonehenge era um templo de adoração ao Sol, mas não conseguiu avançar em seus estudos sobre a função do monumento. Mais de sessenta anos depois, Gerald Hawkins defendeu que o círculo de pedras se tratava de um computador que previa eventos astronômicos, hipótese que foi populari-zada pelo seu livro Stonehenge Decoded, publicado em 1965.

A hipótese logo foi rejeitada pelos arqueólogos. Na épo-ca, os computadores eram novidade e Hawkins foi acusa-do de estar encantado com o avanço da tecnologia. Desde então, os estudos sobre os alinhamentos foram deixados

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Seguidores dos druidas, antigos sacerdotes celtas, até hoje comemoram a chegada dos solstícios em Stonehenge.

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1 Henge Estrutura típica da Inglaterra do período neolítico (Idade da Pedra) é uma vala circular rodeada por margens que delimitam uma área interna. Stonehenge não possui um henge verdadeiro, já que a vala fica por fora da margem. Mesmo assim, com o tempo, o termo passou a ser utilizado no seu caso.

2 Aubrey Holes São 56 cavidades dispostas ao redor do henge. Até hoje não se sabe qual era a função desses buracos, que possuem cada um cerca de um metro de diâmetro. Acreditava-se que abrigavam estacas de madeira, mas com a descoberta de restos mortais e, recentemente, de pedaços de bluestones em seus interiores, estão surgindo outras teorias.

4 BluestonesTermo genérico usado para denominar vários tipos de pedra encontrados em Stonehenge, sendo as mais comuns os doleritos das montanhas Preseli, do País de Gales, localizadas a 400 km de Stonehenge. Acredita-se que existiam originalmente 80 dessas pedras, que foram rearranjadas ao menos quatro vezes no monumento. Atualmente, restam apenas 43. Não se sabe porque esse tipo de pedra foi escolhido e por que foram trazidas de tão longe. A descoberta do círculo formado por bluestones na margem do rio Avon deve trazer novas informações.

3 Trilítos É um conjunto de três pedras: duas verticais e outra horizontal, que serve como verga. No centro do círculo de arenito, há cinco estruturas dessas dispostas em forma de ferradura de cavalo. São as maiores pedras do monumento. Pesam em média 45 toneladas e possuem cerca de 10 metros de altura.

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5 Círculo de arenito O círculo de pedras de arenito, formado por 30 blocos verticais e vergas, é a estrutura que mais chama atenção em Stonehenge. Acredita-se que as pedras foram transportadas de Marlborough Downs, que fica a cerca de 40 km do local. O círculo possui 33 metros de diâmetro e as pedras, cerca de quatro metros de altura e 2 de largura, com peso de 25 toneladas.

A estrutura de Stonehenge

Construído de 3 mil a.C. a 2 mil a.C., o monumento possui uma arquitetura complexa que vai além do círculo de pedras de arenito.

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6 Heelstone Pedra de arenito posicionada na entrada principal de Stonehenge (norte-leste). No solstício de verão, o Sol nasce acima dela, alinhando-se também com a “Altar Stone”, que fica no centro dos trilítos. Possui cerca de 5 metros e altura e 2 de largura

7 Buracos Y e Z Sãos as partes menoss estudada de Stonehehenge. Esses círculos de cavidades que rodeiam a estrutura de arenito foram descobertos na década de 20 e os exames com radiocarbono mostraram que são a construção mais recente do monumento, datando já da Idade do Ferro.

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8 Pedras da estação Originalmente, eram quatro pedras. Duas ddelas posicionadas em cima de montes de terra, conhecidos como túmulos norte e sul, apesar de não conterem restos mortais. Do modo como estão dispostas, parecem formar os vértices de um retângulo.

9 Avenida Estrutura descoberta no século XVII, é formada por valas e margens paralelas com 3 km de extensão, que conectam Stonehenge ao rio Avon. Os primeiros 500 metros da avenida estão alinhados com o solstício de verão.

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Arte: Rogério Moreira Jr / Fonte:English Heritage

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Cursus

Novo Henge

Stonehenge

Bluestonehenge

Woodhenge

Durrington Walls

CursusEstrutura similar ao henge. Possui vala e margens só que é retangular. Parker-Pearson acredita que servia como linha divisória entre os dois domínios.

WoodhengeSeria uma Stonehenge de madeira. O que resta do monumento são apenas as cavidades dispostas em círculos concêntricos, que serviam de suporte para as estacas.

Durrington Walls Com 500 metros de diâmetro, é o maior henge conhecido. A equipe do projeto Stonehenge Riverside Project encontrou vestígios de casas e muitos ossos de animais no local. Para Parker-Pearson, Durrington Walls era um vilarejo e um ambiente de festas. Em seu interior também há círculos de madeira e outros henges. Um deles, o “Círculo Sudeste” está orientado com o nascer do Sol do solstício de inverno.

BluestonehengeDescoberto em agosto de 2008, o círculo de 27 bluestones fica no fi-nal da avenida que liga Stonehenge ao rio Avon. O que resta do local é apenas o henge e os buracos onde as pedras eram colocadas.

Novo HengeA pesquisa possui apenas as imagens dos radares, que mostram manchas pre-tas indicadoras da existência de círculos, formando uma estrutura parecida com um henge. E, no meio, o que parece ser um túmulo. Para o arqueólogo Mike Pit-ts, do blog Digging Deeper, só escavações poderão mostrar o que é essa estrutura.

O que há em volta de Stonehengede lado. Rodney Castleden escre-ve no livro The Making of Stonehen-ge que essa polêmica sobre a teoria do “observatório astronômico” não deve ofuscar o fato de que realmen-te existem alinhamentos das pedras com o Sol e a Lua. “Acima de tudo, é importante ver Stonehenge como um componente-chave de uma cultura da idade da pedra ou do bronze”, afirma.

> Domínio dos mortosEra isso que o arqueólogo Mike

Parker-Pearson, da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, tinha em mente ao dar início ao projeto Sto-nehenge Riverside Project . Ele liderou, de 2003 à 2008, uma equipe que reu-niu profissionais de seis universi-dade britânicas. “Stonehenge é um monumento tão icônico que a maio-ria das pessoas não se dá conta de que todo seu entorno está comple-tamente cheio de monumentos pré--históricos”, afirma no documentário Stonehenge Decoded, produzido pela National Geographic, uma das financia-doras da pesquisa.

Tanto que ao ganhar o título de Pa-trimônio da Humanidade pela UNES-CO, em 1983, o monumento não foi considerado de maneira isolada, e foi classificado como “Stonehenge, Ave-bury e sítios associados”. Com cerca

Para saber maisNo website do projeto Stonehenge Riverside Project você pode acessar relatórios e obter mais detalhes sobre as descobertas da equipe: http://j.mp/cepSH

Para dados oficiais sobre o monumento acesse: http://j.mp/2cepSH

Stonehenge virtual Você pode ver Stonehenge em imagens 3D no Google Earth e até mesmo participar de uma viagem virtual através do site Heritage Key.

Fonte: Google Maps

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de 30 km de extensão, a região banhada pelo rio Avon abriga outros henges, avenidas, centenas de túmulos, além de estruturas similares. A maioria desses vestígios é conhe-cida desde o século XX, mas até os dias de hoje não foi estu-dada de maneira aprofundada e integrada.

Em um desses locais, conhecido como Durrington Walls, localizado a 3 km do círculo de pedras, a equipe de Parker--Pearson concentrou parte de suas escavações. Conside-rado o maior henge da Grã-Bretanha, nele existem dois círculos formado por cavidades que serviam de base para estacas de madeira, com estruturas parecidas com Sto-nehenge. (Ver mapa na página 14)

Depois de várias escavações mal sucedidas, a equipe en-controu o primeiro vestígio de assentamentos na área: seis casas feitas de madeira com o chão de argila e com os con-tornos do que deviam ser lareiras, camas e armários. Nesse local também foram achados muitos ossos de animais. Para Pearson, isso era um sinal de que festas ocorriam nessa re-gião. Em Stonehenge não existe esse tipo de vestígio: ape-nas túmulos e restos de ferramentas.

Com essas informações, o arqueólogo começou a consi-derar uma nova teoria: Stonehenge faria parte do “domínio dos mortos” e Durrington Walls do “domínio dos vivos”. Até mesmo pelo próprio material dos monumentos: um de “pedra”, matéria morta, e o outro de “madeira”, que é or-gânico.

Segundo a teoria de Parker-Pearson, os dois domínios seriam ligados por avenidas, percorridas em rituais que ocorreriam durante os solstícios. As escavações posterio-res foram feitas a partir dessa ideia. Com a descoberta de uma avenida que liga Durrington Walls ao rio Avon, a teo-ria ganhou força.

A última descoberta do Stonehenge Riverside Project foi um monumento de bluestones no final da avenida que liga Sto-nehenge ao rio Avon. Parker-Pearson acredita que o monu-mento seria um “crematório” dos restos mortais, que de-pois seriam enterrados em Stonehenge. Nesse novo círculo não há entradas e vestígios de ocupação humana como ce-râmicas e ossos de animais, mas há uma grande quantidade de restos de carvão. As escavações do projeto terminaram em 2008 e agora a equipe está buscando financiamentos para dar continuidade aos estudos.

> Outro Stonehenge?Os estudos do Stonehenge Hidden Landscapes começaram

em 2010 e são dirigidos pela Universidade de Birmingham e pelo Instituto Ludwig Boltzmann. O objetivo é mapear uma área de 14 quilômetros ao redor de Stonehenge com o auxí-lio de imagens de radar que realizam “escavações virtuais”. Apenas duas semanas depois do início do mapeamento, os pesquisadores anunciaram a descoberta de um novo henge.

Em seu blog Digging Deeper , o arqueólogo Mike Pitts argu-menta que ainda é cedo para afirmar que a descoberta seja um henge e não um túmulo. Ele critica a abordagem das no-tícias que vêm sendo publicadas sobre o assunto, que apeli-dam a descoberta de “gêmea de Stonehenge”. Pitts acredita que é necessário que sejam feitas escavações no local e acha que mais coisas vão ser encontradas até 2013, quando acaba o projeto. “Eu tenho quase certeza de que algo ao menos tão interessante vai surgir em três anos. Quem sabe? Enquanto digito essas palavras, a equipe está lá”, explica em artigo pu-blicado no site da BBC News.

Histórias sobre Stonehenge fazem parte da cultura popular da Inglaterra e, mesmo antes de escavações terem começado a ser feitas no local, diversas teo-rias surgiram para tentar explicar a origem do mo-numento. Conheça alguma delas:

Obra do diaboUm conto popular inglês diz: “O diabo trouxe as pedras de uma mulher da Irlanda, embrulhou-as e trouxe-as para a planície de Salisbury. Algumas pedras caíram em Avon e o resto foi trazido para a planície. O diabo então gritou: ‘Ninguém jamais vai decobrir como essas pedras pararam aqui!’”.

Mago MerlinO livro Histórias dos reis da Grã-Bretanha, escrito em 1135, contém uma curta passagem sobre Stonehenge. Segundo o autor, Geoffrey of Monmouth, o rei Aurelius Ambrosius, ao visitar o local onde vários líderes da Bretanha haviam morrido durante o reinado anterior, decidiu construir um monumento para lembrar a morte deles pelo patriotismo. Depois de várias tentativas mal-sucedidas de alguns carpinteiros, o mago Merlin surgeriu ao rei que construíssem um círculo de pedras parecido com um que havia visto na Irlanda.

Construção romanaEm meados do século XVII, curioso para saber qual era a origem de Stonehenge, o rei James I ordenou que seu funcionário, Inigo Jones, fizesse uma pesquisa no local. O inspetor chegou à conclusão de que os antigos britânicos não teriam capacidade de construir o monumento e de que Stonehenge tinha que ser obra de um arquiteto romano.

Templo dos druidas Uma das primeiras teorias que surgiram é a de que Stonehenge é um templo druida. No século XVIII, os antiquários John Aubrey e William Stuckeley foram os principais defensores dessa ideia. Com a datação do monumento, a ligação com os sacerdotes celtas se mostrou impossível, mas até hoje seguidores dos druidas vão ao local comemorar o solstício de verão.

Hospital neolíticoOs professores da Universidade de Bornemouth, Tim Darvill e Geoff Wainwright, acreditam que Stonehenge costumava ser um centro de cura. Para eles, os criadores do monumento consideravam que as pedras de arenito azul tinham poder curativo e por isso trabalharam para transportá-las do País de Gales. Eles sustentam essa teoria com base na existência de vários túmulos de pessoas doentes ou com problemas físicos ao redor do monumento.

Maldições, curandeirismo e magia tentam explicar origem do círculo de pedras

Fonte: Google Maps

Especial Arqueoastronomia

Ciência em Pauta

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A Terra fica inclinada durante sua trajetória

em torno do Sol ao longo do ano. É isso

que determina as estações do ano. À

medida que o planeta realiza o movimento

de translação (em torno do Sol), os raios

solares incidem mais diretamente em um

hemisfério do que em outro.

Neste exemplo, o hemisfério sul está entrando no verão

Como se formam asestações?O Templo de Kukulcán no México, Stonehenge na Inglaterra e as Pirâmides do Egito são monumentos separados por continentes, épocas e culturas diferentes, mas que possuem uma característica em comum: estão orientados com os solstícios, ou seja, com os dias do ano que marcam o início do verão e do inverno. Estes indícios mostram que alguns povos antigos eram capazes de determinar com precisão quando começavam as estações. Segundo o livro Astronomia, uma visão geral do universo, organizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo, o conceito de ano utilizado no mundo ocidental deve ter surgido a partir das observações que esses povos faziam, provavelmente usando o gnômon (ver infográfico na página ao lado)

O polo norte não recebe luz do Solneste dia

A órbita da Terra e a linha do equador - que divide o planeta em dois hemisférios - não coincidem.

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Arte: Rogério Moreira Jr / Fonte:Astronomia: uma visão geral do universo

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Como os povos antigos previam as horas e as estações do ano

Solstício de verão no hemisfério sul – 21 de dezembro Sol atinge diretamente o Trópico de Capricórnio: latitude máxima ao sul a partir da linha do equador até onde consegue incidir perpendiculamente (a 90 graus). É o início do verão no hemisfério sul.

Os povos antigos não sabiam como aconteciam os solstícios e equinócios. Eles achavam que o Sol girava em torno da Terra e para diferenciar as estações observavam a trajetória que o Sol fazia no céu. O gnômon, relógio solar vertical, é formado apenas por uma haste e é um dos primeiros instrumentos astronômicos de que se tem conhecimento. Não se sabe sua origem exata, mas ele era utilizado na Grécia Antiga, na Babilônia e na China.

Equinócio de primavera no hemisfério sul: 21 de setembroApós esse dia, o Sol cruza a linha do equador, passando a incidir mais no hemisfério sul do que no norte.

Equinócio de outono no hemisfério sul: 21 de marçoApós esse dia, o Sol cruza a linha do equador, passando a incidir mais no hemisfério norte do que no sul.

Além de permitir calcular as horas do dia, as sombras podem indi-car também as estações do ano. O inverno, por exemplo, começa quando a sombra projetada ao meio dia é a maior do ano.

Ao ser iluminada pelo Sol, a haste forma uma sombra cujo tamanho depende da hora do dia.

Por uma convenção astronômica, as estações do ano são determinadas a partir da posição da Terra em quatro pontos:

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Arte: Rogério Moreira Jr / Fonte:Astronomia: uma visão geral do universo

Arte: Rogério Moreira Jr / Fonte:Astronomia: uma visão geral do universo

Solstício de inverno no hemisfério sul – 21 de junho Sol atinge diretamente o Trópico de Câncer: latitude máxima ao norte a partir da linha do equador até onde consegue incidir perpendiculamente (a 90 graus). Começa o inverno no Brasil.

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ARQUEOASTRONOMIANO BRASIL

As paredes do interior da Toca dos Búzios, caverna lo-calizada na cidade Xique-Xique, no sertão da Bahia,

são decoradas por pinturas vermelhas e brancas. Uma delas, de 1,63 m de comprimento, possui a forma de uma estrela com uma longa cauda, lembrando um cometa. Nas rochas do local também existem figuras que parecem a Lua, estrelas e até mesmo um calendário. No exterior da gruta, uma fenda deixa atravessar a luz do Sol no dia do solstício de inverno.

Inscrições rupestres como essas, que parecem estar ligadas à Astronomia, já foram identificadas em rochas

e cavernas de norte a sul do Brasil. Essas são as princi-pais fontes de pesquisas sobre Arqueoastronomia no país, campo de estudos que, através de vestígios arqueológi-cos, procura compreender como os povos antigos usavam o conhecimento do céu em suas culturas.

“Não há monumentos como aqueles encontrados no Peru, no México e na Inglaterra. Apenas recentemente foi identificado um círculo de pedras no Amapá”, expli-ca Maura Imázio, pesquisadora do museu paraense Emí-lio Goeldi e uma das organizadoras da exposição Olhando o céu da pré-história: registros arqueoastronômicos no Brasil,

Baseada principalmente no estudo de inscrições rupestres, a disciplina é pouco desenvolvida no país e enfrenta dificuldades

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exibida em Belém, em 2008, e no Mu-seu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), no Rio de Janeiro, em 2004. “Temos que entender que os povos que moravam aqui eram diferentes”, acrescenta. O projeto, coordenado e idelizado por Cíntia Jalles, arque-óloga do MAST, reuniu painéis com reproduções de inscrições rupestres de seis estados do país: Minas Ge-rais, Pará, Bahia, Tocantins, Paraná e Amazonas.

A partir das exposições, foram pu-blicados dois mil exemplares do catá-logo Olhando o céu da pré-história, um dos únicos livros a abordar o assunto no país, que possui artigos e imagens das inscrições. Além desse material, que não está à venda, a bibliografia sobre o assunto se resume a artigos publicados em revistas científicas e em congressos.

Em 1998, Jalles já havia realizado a exposição O homem e o cosmos, com o resultado de suas pesquisas sobre inscrições rupestres no norte de Mi-nas Gerais, financiada pelo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), em 1996. A ideia de continuar na área de Arqueoastronomia surgiu por conve-niência. “Eu estava me transferindo para o Museu de Astronomia [Rio de Janeiro] e achei que seria a melhor contribuição que uma arqueóloga po-deria dar para uma instituição como o MAST”, conta.

A maioria dos estudos sobre Ar-queoastronomia está concentrada em instituições cariocas. É no Rio de Janeiro que se encontra o MAST, que também incentiva pesquisas de Etno-astronomia (Ver reportagem na página 40), e o IAB, que financiou vários estu-dos na área, como o de Jalles, em Mi-nas Gerais, e os realizados na região central da Bahia, coordenados no iní-cio da década de 1990 pela arqueólo-ga Maria Beltrão.

Fora do Rio, também foram feitas pesquisas pelo professor Germano Bruno Afonso, hoje aposentado da Universidade Federal do Paraná. Ele é o único pesquisador que se dedica apenas à Arqueoastronomia e à Et-noastronomia no país. Já realizou, inclusive, estudos em Santa Catarina. (Ver reportagem na página 22)

>Primeiras pesquisas No Brasil, os estudos sobre Arque-

oastronomia ainda são poucos. As primeiras iniciativas que procuraram relacionar vestígios arqueológicos à Astronomia datam de meados da dé-

O catálogo da exposição Olhando o céu da pré-história traz uma coletânea de inscrições rupestres relacionadas à Astronomia

O livro, de 1987, foi um dos primeiros a serem publicados no Brasil rela-cionando vestígios arqueológicos à Astronomia

Essa inscrição localizada na Chapada Diamantina Setentrional lembra a figura de um homem e um sol.

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cada de 1980, cerca de dez anos após o início da consolidação da disciplina na Europa e em outros países.

Foi na Paraíba, a 95 km da capital João Pessoa, que surgiram as pri-meiras pesquisas. Às margens do rio Ingá, existe uma rocha de 23 metros de comprimento e 4 metros de altu-ra. Ao longo de toda a superfície do monumento existem inscrições em baixo-relevo até hoje incompreendi-das pelos arqueólogos. Não se sabe quando os desenhos foram feitos, por quem, e o que significam.

Dentre as diversas hipóteses que surgiram para explicar as inscrições, estão as relacionadas com Astrono-mia. O engenheiro e arqueólogo espa-nhol Franscisco Alemany, financiado pelo IAB, divulgou a sua hipótese em 1986. Para ele, as imagens da pedra eram utilizadas como um calendário solar. Um ano depois, o médico Fran-cisco Faria publicou o livro Os astrô-nomos pré-históricos da Pedra do Ingá, onde afirma que, após 30 anos de análise do local, chegou à conclusão de que as figuras representam cons-telações do Zodíaco.

O próprio Faria, no entanto, alerta que sua hipótese pode estar errada. “O leitor entenderá as dificuldades e erros que acometem este tipo de interpretação. A bibliografia sobre Astronomia dos nossos aborígenes é rarefeita e aquela referente à Pré--história – onde se insere o monu-mento do Ingá – é nula”, justifica-se no livro.

Para o professor Luiz Carlos Jafe-lice, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o problema está no objeto de estudos. “Não há como sa-ber o que as inscrições rupestres sig-nificam. Analisamos as imagens com nossa visão ocidental. Pode parece o Sol, por exemplo, mas não sabemos se são mantimentos dispostos em círcu-lo ou uma flor”, explica.

Jafelice trabalhou com Arqueoas-tronomia até 2004, quando decidiu abandonar a área. O professor reali-zou pesquisas em rochas no interior do Rio Grande do Norte à procura de alinhamentos com os astros. “Nada foi comprovado, mas também não pode-mos dizer que não há relação”, conta.

Ele acredita que mesmo que os re-

Pinturas rupestres que lembram a forma do sol são fáceis de serem encontradas.Essa está em Minas Gerais.

sultados sejam ambíguos e seja difícil chegar a conclusões, as pesquisas de Arqueoastronomia devem continu-ar. “O céu não é único e é importan-te entendermos como o ser humano se relaciona com ele. Nos cursos de Astronomia, vemos muitas figuras bonitas de planetas, de estrelas, mas falta uma perspectiva humana. A cultura ocidental e a ciência não são as únicas formas de dar sentido ao mundo”, explica Jafelice. “Mas os pesquisadores devem realizar os es-tudos com a mentalidade de que não há necessariamente algo que possa estar relacionado com Astronomia”, adverte.

O astrônomo Rundsthen Nader, do Observatório do Valongo, no Rio de Janeiro, também acredita que no Brasil os estudos sejam mais difíceis por estarem baseados em inscrições rupestres. “Este ainda não é um ter-reno bem conhecido e qualquer en-gano, mesmo que bem intenciona-do, pode trazer consequências não desejadas para a credibilidade da Arqueoastronomia no país”, alerta Nader, que realizou pesquisas junto

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com Jalles, em artigo publicado no catálogo da exposição Olhando o céu da pré-história.

> ArqueologiaA falta de arqueólogos é aponta-

da como um dos principais motivos para o baixo número de pesquisas em Arqueoastronomia no país. De acordo com dados do Ministério da Educação e da CAPES, existem ape-nas dez cursos de graduação em Ar-queologia e três de pós-graduação. Segundo Maura Imázio, além de os cursos serem recentes, há muita de-manda por arqueólogos em áreas que serão terraplanadas ou inundadas, por exemplo. Desde 1986, há uma lei que obriga a realização prévia de um estudo de impacto ambiental (o cha-mado EIA-Rima) que inclui medidas de salvamento arqueológico. “Mas com o tempo, acho que vão surgir mais trabalhos de Arqueoastrono-mia”, acredita Imázio.

O fato de ser uma área multidisci-plinar também dificulta a realização de estudos. Nenhum dos pesquisa-dores afirmou ter tido contato com a disciplina durante os cursos de graduação e pós. Para Márcio D’Olne Campos, professor colaborador da Unirio em Pós-Graduação de Museo-logia e Patrimônio, a Arqueoastrono-mia fica no limiar entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais. “Isso atrapalha porque a academia é muito disciplinar e não multidisciplinar”, explica. Campos, que é formado em Física, estudou Antropologia e Ar-queologia por conta própria e costu-ma ministrar minicursos e palestras sobre Arqueoastronomia e Etnoas-tronomia brasileira em congressos e eventos.

Na maioria dos casos, a única ma-neira encontrada é reunir na mesma equipe arqueólogos, astrônomos e outros profissionais, como ocorreu no norte do Amapá, onde foi encon-trado um círculo de pedras. A des-

coberta de um monumento formado por 147 blocos de granito, próximo à cidade de Calçoene, atraiu a comuni-dade científica e a imprensa por seus alinhamentos com o solstício de in-verno. Nas reportagens, o monumento ganhou o apelido de “Stonehenge bra-sileira ou amazônica”. O Governo do Amapá planeja transformar o local no “Parque Arqueológico do Solstício”.

Os alinhamentos foram identifica-dos pelo meteorologista José Avila, um dos pesquisadores da equipe. “Ele que tem a visão dessas coisas, Arqueoas-tronomia não é minha especialidade”, explica a arqueóloga Mariana Petry, uma das coordenadoras do projeto. Segundo ela, o foco das pesquisas não está na relação do monumento com Astronomia. Os levantamentos do es-tudo identificaram até agora 22 mega-litos no estado. “Queremos entender como os grupos humanos que viviam no Amapá transformavam o espaço”, explica. Para os estudos de Arqueoas-tronomia, Petry espera contar com a ajuda de profissionais e outros pesqui-sadores como Avila.

> Novas pesquisasAtualmente, Cíntia Jalles, Maura

Imázio e Rundsthen de Nader estão elaborando um banco de dados de Arqueoastronomia, onde pretendem reunir todas as inscrições rupestres que possam estar relacionadas com Astronomia. A ideia do trabalho, que já estava previsto quando foram reali-zadas as exposições, é tornar todo esse acervo público.

Agora os pesquisadores estão es-tabelecendo parcerias e buscando fi-nanciamentos para o projeto. A ideia será apresentada em janeiro, durante o Simpósio Internacional Oxford de Arqueoastronomia, em Lima, Peru. “Acredito que, com a reunião dos da-dos espalhados por todo o país, tere-mos condições de traçarmos um perfil melhor do conhecimento astronômi-co na Pré-História”, explica Jalles.

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A o sair para pescar todas as ma-nhãs, Adnir Ramos observou que o Sol nascia entre duas ro-

chas de seu quintal quando o verão se aproximava. Foi a partir de então que começou a buscar por outros alinha-mentos em pedras no litoral catarinen-se, principalmente na região da Lagoa da Conceição. Desde que começou a se envolver com o tema, no final da década de 1980, Ramos conseguiu levantar mais de R$100 mil para seus projetos, entre recursos públicos e privados. Com esse financiamento, viabilizou uma mostra itinerante de Arte Rupestre e Arqueo-astronomia, criou o Instituto Multidis-ciplinar de Meio Ambiente e Arqueo-astronomia (IMMA) e desenvolveu dois projetos de criação de um Parque Ar-queoastronômico.

Ramos é natural da região da Barra da

Lagoa e entrou na universidade para es-tudar as inscrições rupestres do litoral catarinense. De acordo com ele, a esco-lha por Biblioteconomia na Universida-de do Estado de Santa Catarina (Udesc), foi feita por não existir curso de gradu-ação em Arqueologia em Florianópolis. (Veja perfil na página 32)

“Minha ideia era, depois de formado, trabalhar em uma biblioteca especiali-zada em arte rupestre e mais tarde fa-zer uma especialização”, justifica. Ra-mos fez especialização em Antropologia pela FESPSP, em São Paulo, quando ain-da estava no último ano da graduação.

Desde 2009, Ramos vem divulgando suas teorias sobre monumentos, atra-vés de uma exposição itinerante que já levou para cinco bairros de Florianópo-lis. Junto com as fotos dos alinhamen-tos, são exibidas cópias das inscrições

rupestres que catalogou com Keler Lu-cas, autor dos livros A Arte Rupestre em Santa Catarina e Arte Rupestre no Municí-pio de Florianópolis, entre outras publi-cações sobre o tema.

Além dos alinhamentos que encon-trou em Florianópolis, no Morro da Ga-lheta, na Ponta do Gravatá e na região da Barra da Lagoa (Ver ilustrações na página 26), Ramos acredita que existam formações semelhantes em outros pon-tos do litoral de Santa Catarina. “Eu ain-da não pude observar com qual fenôme-no e astro elas estão relacionadas, mas existem outras pedras em municípios como Garopaba, Porto Belo e Laguna que me chamam atenção”, afirma. Ele acredita que esses posicionamentos não são aleatórios e que serviam como re-ferência para povos antigos regularem suas vidas de acordo com as mudanças

Especial Arqueoastronomia

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LIGANDO O CÉU E AS PEDRAS

de estação (ver matéria na página 38). O que se discute atualmente sobre Ar-

queoastronomia em Santa Catarina está restrito às afirmações de Adnir Ramos. Em 2006, ele foi um dos fundadores do Instituto Multidisciplinar de Meio Am-biente e Arqueoastronomia (IMMA) que, de acordo com a definição em seu site, tem como objetivo “desenvolver e executar projetos e pesquisas multidis-ciplinares e projetos culturais com res-ponsabilidade sócio-ambiental”.

Composto por outros sete membros, o Instituto organiza “caminhadas ar-queoastronômicas” no início de cada estação desde 2007. Rosana Carrinho, Diretora de Projetos e uma das funda-doras do IMMA, explica que a atuação dos outros integrantes está restrita a parte administrativa e de divulgação dos projetos. “Quem faz os trabalhos

de Arqueoastronomia é só o Adnir. Sou leiga no assunto, mas acho interessante porque existem estudos em Stonehenge e ninguém sabe que existem essas pe-dras aqui”, explica.

> Trabalho polêmicoDe acordo com o pesquisador do

o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo, Paulo DeBlasis, as afirmações de Ramos não se sustentam. Estudando os povos pré-coloniais catarinenses desde a dé-cada de 1990, DeBlasis já foi visitar os alinhamentos da Ponta do Frade, e con-ta “não ter visto nada demais”. “Pelo que pesquisamos até hoje, eu acredito que os povos sambaquieiros podiam sim ter conhecimentos de Astronomia, pois eram sociedades complexas. Agora, não podemos fazer qualquer afirmação nes-

se sentido. A Arqueologia trabalha com cultura material e nenhum vestígio en-contrado até os dias de hoje nos permi-tiu chegar a essa conclusão”, explica.

As interpretações de Ramos são alvo de muitas críticas. Ele acredita, por exemplo, que as rochas encontradas em Florianópolis foram colocadas pelo que ele chama de “seres superiores” e que estão alinhadas com monumentos como as pirâmides do Egito, as construções de Machu Picchu, no Peru, e Stonehenge, na Inglaterra. Para a arqueóloga Dei-si Scunderlick, pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia, da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), essas compa-rações são um equívoco. “Não se pode equiparar os povos que habitavam o litoral catarinense com aqueles que formavam estados teocráticos como os

Acompanhando o movimento do Sol ao longo do ano, Ramos encontrou alinhamentos entre o astro e as pedras próximos às mudanças de estação

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maias, por exemplo. Nessas culturas, a organização social era baseada na agricultura, onde os povos usavam os co-nhecimentos astronômicos para regular tempo de plan-tio e colheita. Já o nosso litoral foi habitado por povos pescadores-coletores e ceramistas, que não tinham essa mesma cultura”, explica.

Embora participe das observações astronômicas reali-zadas pelo IMMA, o astrônomo amador Alexandre Amo-rim, faz ressalvas às afirmações de Ramos. Para ele, a úni-ca coisa que se pode afirmar é que hoje aquelas pedras podem ser usadas para observar solstícios e equinócios. “Sem estudos mais detalhados, não podemos dizer nada sobre como se deram essas formações e nem se elas eram usadas por antigos moradores da região”, explica. Amo-rim defende que esses locais sejam usados para se ensinar Astronomia fora da sala de aula.

Ainda que contestado pelo meio acadêmico, Ramos vem conseguindo recursos para dar continuidade ao seu tra-balho. Em 2002 conseguiu financiamento do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) para a rea-lização de um levantamento aerofotogramétrico entre a Barra da Lagoa e a Ponta do Gravatá. O objetivo do es-tudo era realizar medições e fotos aéreas de 40 pedras, verificando a orientação delas em relação ao nascer e ao pôr-do-sol em soltícios e equinócios. Para realização do trabalho, foi contratada a empresa Aeroconsult e o astrô-nomo Germano Bruno Afonso. Professor aposentado pela Universidade Federal do Paraná, Afonso realiza pesquisas de Arqueoastronomia e Etnoastronomia no Brasil (Ver en-trevista na página 42). Os estudos contaram com o patro-cínio da Associação de Ensino de Santa Catarina (ASSESC), onde trabalhou como professor do Curso de Turismo.

Nas considerações finais do levantamento, Afonso e Ra-mos indicam a existência de pelo menos dois observató-rios arqueoastronômicos, um na Ponta do Gravatá e outro

na Ponta do Frade. “Nosso trabalho era identificar um lo-cal que tinha a ver com Astronomia, alguns alinhamen-tos de pedras com o nascer do Sol, em uma determinada época, ou alguns furos em pedras onde o Sol entrava no inverno, por exemplo. Minha participação foi validar es-ses dados que o Adnir já tinha percebido”, explica Afonso. O pesquisador compartilha da mesma opinião de Amorim sobre a formação das pedras. “Quem que fez, quando e porque nós não sabemos. A única coisa que podemos ga-rantir é a própria observação”, completa.

Os resultados do levantamento foram utilizados por Ramos, em julho de 2009, para solicitar ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a au-torização para fazer cópias de artes rupestres do litoral catarinense. O objetivo era expor o material coletado no Stand Itinerante de Arte Rupestre e Arqueoastronomia. Após análise, a Superintendência do Iphan em Santa Catarina deu parecer negativo, alegando que a justificativa do do-cumento apresentado “é bastante confusa, misturando dados científicos a crenças pseudocientíficas”. Outro ar-gumento utilizado pelo arqueólogo André Penin Santos de Lima, técnico do Instituto autor da análise, era a au-sência de um arqueólogo responsável pelo trabalho que garantisse metodologia científica. No final de 2009, Ra-mos Solicitou uma revisão do parecer dado pelo Iphan. A Surperitendência informou à reportagem que o docu-mento já foi revisado pelo Centro Nacional de Arqueolo-gia (CNA) e a resposta deve ser entregue aos membros do IMMA a partir de dezembro deste ano.

> Exposição itineranteMesmo sem a autorização para coletar o material soli-

citado, Adnir Ramos conseguiu recursos para viabilizar o Stand Itinerante de Arte Rupestre e Arqueoastronomia, que está em exibição há um ano. De acordo com ele, a

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O caminho que leva à Pedra da Oração, no Morro da Galheta, é de acesso restrito e mantido pelo IMMA.

O Stand Itinerante teve sua primeira exposição no Floripa Shopping e depois passou por mais quatro bairros da cidade

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exposição já teve mais de cinco mil visitantes, entre a comunidade em geral e grupos escolares. Para viabilizar esse projeto, o pesquisador conseguiu recursos da Secre-taria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte de Santa Catarina, além da contribuição de bares e restaurantes da cidade. Os R$ 70 mil arrecadados pelo Funturismo foram gastos com transporte, compra de equipamento e paga-mento de equipe.

Em resposta às críticas feitas aos estudos de Arqueo-astronomia em Florianópolis, Alexandre Amorim defende o aumento de pesquisas científicas sobre a Arqueoastro-nomia. Embora membro do IMMA, Amorim discorda de grande parte das afirmações de Ramos por acreditar que elas têm muita interpretação, mas acredita que o meio acadêmico deve pesquisar antes de negar essas hipóteses.

> Parque ArqueoastronômicoEm 2006, Adnir Ramos desenvolveu com Keler Lucas um

projeto conceitual para criação de um parque arqueosas-tronômico que compreende a região entre a Barra da Lagoa e a Ponta do Gravatá. O objetivo era criar uma infraestrutu-ra para estimular a visitação aos sítios arqueológicos do lo-cal. Apenas para elaboração do projeto, foram arrecadados R$ 30 mil com empresários do ramo da construção e am-biental. A principal patrocinadora foi a empresa Biosphera, que atua com empreendimentos ambientais.

De acordo com Ramos, a criação do parque não foi adian-te porque não houve interesse de órgãos públicos para co-locar o projeto em prática.

Um novo projeto foi enviado este ano para o Ministé-rio da Cultura (MinC) solicitando um recurso de R$ 100 mil para a criação do parque. A emenda com o pedido foi apro-vada pela deputada federal Angela Amin e está aguardando aprovação do MinC.

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Uma das propostas de Ramos é criar um parque de preservação ambiental e observação dos alinhamentos e de arte rupestre

Projeto de museu ao ar livre em Garopaba envolve Arqueoastronomia

A Prefeitura de Garopaba pré-aprovou o pro-jeto do Museu ao Ar Livre da Pedra do Galeão, elaborado por Keler Lucas, autor de livros sobre arte rupestre em Santa Catarina. Lucas já havia ajudado Adnir Ramos a idealizar a proposta do Parque Arqueoastronômico da Barra da Lagoa e o novo projeto também possui relação com o alinhamento de pedras.

A ideia é criar uma trilha na Ponta da Vigia com 3.108 m de extensão, onde devem ser cons-truídos decks, passarelas e escadas. Na área, existem inscrições rupestres e vestígios arque-ológicos, como oficinas líticas, além de alinha-mentos de pedras com fenômenos astronômi-cos, identificados pelo astrônomo Germano Bruno Afonso (Ver entrevista na página 37) e por Lucas.

Para Zeno Castilho, ex-diretor de eventos da Secretaria de Turismo e Esporte de Garopaba e um dos integrantes da equipe de elaboração do projeto, alguns dados relacionados à Arqueoas-tronomia ainda precisam ser confirmados.

O local onde a equipe pretende construir a trilha já possui um relógio solar, criado em 2007 por Afonso e chamado de “Observatório Indígena”. Segundo Castilho, o relógio é uma réplica de um que foi encontrado na Praia do Ferrugem. Ele explica, no entanto, que as pe-dras do monumento verdadeiro não estão mais no lugar original. “Nós encontramos o relógio desmontado. Decidimos construir uma réplica aqui [na Ponta da Vigia] porque fica próximo de outros vestígios arqueológicos”, observa.

No final de outubro, Lucas, Castilho e mais dois integrantes da equipe de elaboração da proposta do museu se reuniram com o prefeito da cidade, Luiz Carlos Luiz, que pré-aprovou o trabalho. Agora, eles estão elaborando os orça-mentos, antes do envio definitivo à Prefeitura. De acordo com o Secretario Interino de Turismo e Esporte, Marcus Vinicius Israel, o documento ainda deve ser enviado à Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Na-cional de Santa Catatina (IPHAN).

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Ponta do Frade

Morro da galheta

Ponta do Gravatá

Barra da Lagoa

Fortaleza da Barra da Lagoa

Praia Mole

Lagoa da Conceição

Conheça os alinhamentosAs pedras encontradas por Adnir Ramos que possuem alinhamentos com fenômenos astronômicos estão na Ponta do Frade, no Morro da Galheta e na Ponta do Gravatá. Os locais ficam na região da Lagoa da Conceição.O coordenador do curso de Geologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Edison Tomazzoli, analisou fotos das pedras e já visitou o Morro da Galheta. “Não é possível dizer se as pedras foram movidas por homens ou não sem que sejam feitas pesquisas, mas as fraturas que elas apresentam indicam que podem ser naturais“, afirma.Ramos não possui um registro de todos os alinhamentos que encontrou nesses locais. Nas ilustrações você pode conferir os principais.

Ponta do Frade

Arte: Rogério Moreira Jr./ Fonte: Google Maps

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Agachado a cerca de 2,5 m das rochas,

o observador pode ver no solstício de

inverno a luz do Sol atravessar no meio

das pedras. Para o geólogo Edison

Tomazzoli, as fraturas dessa formação

parecem ser naturais.

Pode-se ter acesso à área das pedras através da Trilha da Oração, que foi fechada por Adnir Ramos e é restrita. O local fica na Fortaleza da Barra da Lagoa, onde está a sede do Instituto Multidisciplinar de Meio Ambiente e Arqueoastronomia (IMMA). A caminhada até o topo é íngreme e dura em cerca de 25 minutos.

A ilustração abaixo mostra a Pedra da Oração, que dá nome à trilha. Ramos acredita que as rochas lembram um altar e podem ter sido utilizadas em rituais.

Morro da Galheta

Arte: Rogério Moreira Jr. / Fonte: Adnir Ramos/ Alexandre Amorim

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Depois da Pedra da Oração, caminhando 100 metros em direção ao norte, chega-se a uma área onde há um conjunto de pedras. Ramos afirma ter encontrado diversos alinhamentos nesse local, mas não sabe especificar quantos. Dentre eles, o principal envolve três rochas que se alinham com os equinócios.

Morro da Galheta

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Encostado em uma pedra, quando

o observador olha para as

duas rochas elas formam uma

pequena “janela de observação”.

Nos dias de equinócio, o sol

nasce exatamente neste ponto.

Arte: Rogério Moreira Jr. / Fonte: Adnir Ramos/ Alexandre Amorim

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Na época do solstício de inverno, que no hemisfério Sul acontece em 21 de junho, é possível ver o Sol nascer no vértice formado pelo cruzamento das pedras e a linha do horizonte.

Localizada entre a Praia da Barra da Lagoa e a Praia da Galheta, a Ponta do Frade chama atenção pela sua estrutura. São duas pedras verticais, localizadas uma de frente para a outra. Nesse local, Ramos encontrou dois alinhamentos do nascer do Sol com essas rochas: uma no solstício de verão e outra no solstício de inverno. O acesso à Ponta do Frade é feito através de uma trilha de cerca de 40 minutos, caminhando da praia da Barra da Lagoa em direção às piscinas naturais (ver mapa)

Ponta do Frade

Ponto de observação do solstício de inverno

Ponto de observação do solstício de verão

Solstício de inverno

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Solstício de verãoPróximo ao dia do solstício de verão no hemisfério sul - entre cerca de cinco dias antes e cinco dias depois de 21 de dezembro – o observador pode ver o Sol nascer entre as duas pedras que formam a Ponta do Frade.

Ponta do Frade

Arte: Rogério Moreira Jr. / Fonte: Adnir Ramos/ Alexandre Amorim

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Outro local onde existem alinhamentos é a Ponta do Gravatá, localizada entre a praia Mole e a praia da Joaquina. Ramos acredita que existem mais de uma rocha nesse local relacionadas com solstícios e equinócios. O ponto de observação mais utilizado pelo IMMA para observar o nascer do Sol no início do verão está explicado abaixo

Ponta do Gravatá

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O observador pode ver o Sol nascer no

vértice formado entre a pedra de apoio, a

pedra apoiada e a linha do horizonte.

Essa observação pode ser feita cerca

de cinco dias antes e cinco dias depois do

Solstício de Verão, que no hemisfério sul

acontece em 21 de dezembro.

Arte: Rogério Moreira Jr. / Fonte: Adnir Ramos/ Alexandre Amorim

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Duas meninas, aparentando nove anos, entram na tenda Stand Itineran-te de Arte Rupestre, pegam folders com

fotos de alinhamentos e contam para Adnir Ramos, organizador da exposição, que a professora de Geografia mostrou a elas uma pedra que saiu do vulcão. Ele levanta, apon-ta para os papéis nas mãos delas e pergunta. “Vocês sabiam que existem observatórios astronômicos aqui [em Florianópolis]?”. As duas hesitam, uma diz que sim, a outra que não e, logo em seguida, ele pergunta de que colégio são. As meninas dão como resposta o nome de uma escola do bairro do Santi-nho. Ele reclama: “Poxa, eu tava lá e a pro-fessora não levou vocês”.

Exposta em cinco bairros de Florianópo-lis, a tenda reúne o material que ele coletou em suas pesquisas no litoral catarinense: reproduções de arte rupestre, fotos de ali-nhamentos e um relógio solar. Montada pela primeira vez em outubro de 2009, a exposição já esteve no Floripa Shopping, na Universidade Federal de Santa Catarina, na Praia do Santinho, no Parque São Jorge e na Praça Getúlio Vargas, no centro da cidade.

Desde meados da década de 80, Adnir percorre o litoral catarinense em busca de evidências arqueológicas e locais que pos-sam servir como pontos de observação do céu. Sentado em frente ao computador, cercado de imagens de pinturas rupestres, ele embala os DVDs que vende para cobrir seus gastos. Abre a caixinha branca e coloca a capa que acabou de imprimir. “Eu que fiz a filmagem, o texto, a pesquisa e a edição. Só não gravei o áudio porque não gosto da minha voz, parece taquara rachada”. Adnir é um faz tudo, tira seu sustento de ativida-des esporádicas que vão desde a a realiza-ção de palestras sobre Arqueoastronomia e arte rupestre até a pesca e a venda de lenha no inverno.

Um de seus assuntos preferidos é falar sobre seu trabalho. Com um sotaque ilhéu carregado e dicção não muito clara, às ve-zes é difícil entender o que Adnir fala. No meio de suas explicações aparecem muitos termos técnicos. Quando o interlocutor diz que não entendeu, impaciente, dá uma res-posta pronta “Então você precisa estudar mais Astronomia”.

Adnir é natural de Florianópolis, mais es-pecificamente da Barra da Lagoa, bairro de pescadores localizado no leste da ilha. “Da época em que não tinha nem estrada, nem luz, nem água. A gente era tudo barrigudi-nho, cheio de verme. A mãe vinha sempre com seus chás de aloz, mas não tinha jeito, a gente comia com a mão toda suja e aí dava dor de barriga”, lembra.

Primeiro dos 11 irmãos, aprendeu a pes-car por volta dos cinco ou seis anos, duran-te um cochilo do seu pai que, apesar de ser

Entre histórias, projetos e

pesquisasNos últimos 20 anos, Adnir vem coletando

recursos para divulgar a Arqueoastronomia

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pescador, tinha medo do filho se aventu-rar no mar. A primeira tentativa resultou na captura de um siri. A partir de então ele passou a vendê-los para contribuir com a renda da família.

Pescador, aprendeu a observar o céu e prever alguns fenômenos da natureza. “A pesca exigia que a gente entendesse as fa-ses da Lua. Elas determinam as marés, que definem o sentido da passagem dos peixes, se é da lagoa para o mar ou o contrário”. O pai ensinou os conhecimentos básicos para “ler o céu”, mas, para ele, quem entende mesmo disso é a mãe. “Ela prevê o ano, ob-serva os primeiros 12 dias e, com base no que acontece neles, prevê como vão ser os meses daquele ano. Ela tem tudo anotadi-nho em um caderno e raramente erra”.

Apaixonado pelo que faz, Adnir mora com seus objetos de estudo. A primeira coi-sa que se pode ver ao entrar em sua casa é a pedra no canto da sala, que ocupava esse local desde antes da construção ter ganha-do forma. Pendurado debaixo da janela, um quadrado de algodão cru com a estam-pa de uma pintura rupestre. Sem paredes para separar os cômodos, a casa tem um ambiente campestre e a vista para o Morro da Galheta, onde foi feita grande parte de suas observações arqueoastronômicas.

O interesse por arte rupestre e poste-riormente por Arqueoastronomia veio por acaso, quando trabalhava como pescador. Em junho de 86, enquanto esperava alguns amigos voltarem de um mergulho, Adnir viu uma pintura rupestre brilhar, com a luz do dia, no costão da Barra. Cerca de dois anos depois, ele viu o Sol nascer ali-nhado a pedras nesse mesmo local, no iní-cio do inverno. A partir de então, passou a observar a posição em que o Sol nascia ao longo do ano. Fazia isso todos os dias, na volta da pescaria.

A curiosidade despertada pelas observa-ções o levou a buscar estudos. Queria fazer Arqueologia, para se dedicar às pinturas rupestres. Como não existia esse curso na cidade, optou por Biblioteconomia, com a intenção de depois trabalhar em uma bi-blioteca especializada em Arqueologia.

Maninho, apelido que ganhou de ami-gos cariocas que tinham dificuldade para lembrar seu nome, financiou os estudos com o que tirava do mar. Antes mesmo de terminar a graduação, resolveu fazer um curso de pós-graduação em Antropologia nas FESPSP, em São Paulo. Ele lembra que a decisão pela matrícula foi repentina. “Eu estava na capital paulista para umas pales-tras, no dia seguinte eu ia fazer a edição de um vídeo, mas acordei depois de um sonho ruim e resolvi me inscrever”.

De acordo com ele, passou os dois anos da especialização viajando entre Floria-

nópolis e São Paulo, entre os estudos de Biblioteconomia, Antropologia e a busca por alinhamentos no litoral catarinense. Percorria os 705 km com caronas e dinhei-ro que pedia emprestado para amigos e conhecidos.

Os estudos eram pagos em grande par-te com a retirada de mariscos. Enquanto Adnir conta como era viajar nos finais de semana a São Paulo para as aulas do sába-do, sorri e lembra do episódio que, para ele, foi engraçado e ao mesmo tempo um dos piores. Chegou o final de semana e ele não tinha dinheiro para viajar porque o marisco tinha entrado em defeso, época de reprodução quando a retirada fica proibi-da. Maninho pegou um pouco de dinheiro emprestado com um amigo, pediu carona até Curitiba e de lá comprou uma passa-gem para São Paulo. O troco que sobrou foi usado para compra de bananas. “Não me lembro qual era a moeda da época, mas sei que era o valor para um quilo de banana e o vendedor me deixou levar o resto que tinha. Uns cinco ou seis quilos que me ali-mentaram até o final do dia.” A volta levou dois dias. Para isso ele pulou a catraca do metrô e pediu carona para polícia rodoviá-ria e para o motorista do ônibus.

Ele lembra que não foi fácil terminar os estudos. “Tinha uma professora que sempre me devolvia os trabalhos dizen-do que precisava falar comigo. Ela me pe-diu para desistir porque eu não escrevia, nem lia e nem falava bem. Mas eu insisti”. A aprovação veio depois de ele ter escri-to quatro trabalhos que, depois de devol-vidos, vieram com um sete e um ponto de interrogação. “Ela não acreditava que eu que tinha escrito”. Para terminar de pagar o curso, Adnir contou com a ajuda do mar. “Eu devia seis mensalidades. Um dia estava na Ilha do Campeche com um amigo pegando lagosta e resolvi dar um mergulho para pegar uma garoupa e de

repente olhei no rastro de uma pedra e vi um peixe gigante. Fiquei em dúvida se era uma tartaruga e depois vi que era um mero, que pesava 160 quilos”.

Hoje com 48 anos, Adnir não deixou a pesca, “quando eu preciso, vou lá e tiro um marisco”. Ele não tem filhos bio-lógicos, mas se diz pai das filhas da ex--mulher. Está planejando uma viagem. A ideia é ir para o norte do Brasil, pas-sar por outros países da América do Sul, cruzar a América Central em direção ao México e ir de lá à África. O roteiro tem o objetivo de buscar outros pontos de estu-dos e observações de Arqueoastronomia e evidências arqueológicas.

Adnir já foi à Bolívia, à Machu Pic-chu, no Peru, à Calçoene, no Amapá, e à Inglaterra. Ele conta que a viagem para Europa aconteceu depois de ter conheci-do um inglês que veio à Florianópolis in-teressado em conhecer os alinhamentos encontrados por Adnir.

Em frente ao computador, procura pa-cientemente por uma foto de Grimstone Manor, comunidade alternativa onde pas-sou dois meses. Por não falar inglês e por a viagem ter acontecido no final da déca-da de 90, Adnir custa a lembrar o nome do local. Tenta pacientemente digitando diferentes nomes, com grafia errada no Google. Depois de um tempo de buscas, sorri e grita bem alto “não acredito”, ele tinha encontrado uma notícia que trazia a foto de alguns amigos que fez na Ingla-terra. Empolgado e saudoso, passa meia hora contando a inesquecível viagem por terras britânicas. “Foi a experiência mais gratificante que tive em todo meu tem-po de pesquisa. Tive a oportunidade de ir três vezes a Stonehenge, uma delas du-rante o equinócio de outono e em outra para ver o eclipse da Lua Cheia no final da tarde. Um dos eventos mais formidá-veis da face da Terra”.

Ramos ocupa seus dias divulgando seu trabalho e em busca de recursos para seus projetos

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Já se aproxima do pôr-do-sol de uma quarta-feira quando Alexandre Amorim faz os últimos ajustes no telescópio para observar o céu. Faltam alguns minutos para o início da sessão semanal do planetário da Universidade Federal de Santa Ca-tarina (UFSC). Um grupo de seis pessoas que aguarda o início da palestra é convidado a olhar um ponto brilhante no céu através do instrumento. Uma menina de seis anos é a primei-ra a se arriscar. “O que você viu?”, questiona Alexandre. Não muito segura, a garota responde que era a Lua. A cena se repe-te com os outros cinco e ninguém acerta. Mas Alexandre não fala que é o planeta Vênus, apenas aponta para o planetário e diz: “durante a apresentação vocês vão descobrir a resposta”.

Eletricista do Tribunal de Justiça de Santa Catarina há 13 anos, Alexandre é astrônomo amador nas horas vagas. Tem 37 anos, é casado e não tem filhos. Quando recebe uma pergun-ta, prefere deixar que a pessoa encontre a resposta sozinha. Talvez porque foi desta forma que acumulou todo o conheci-mento que tem sobre Astronomia: observando, fazendo ques-tionamentos e buscando as informações em livros.

Parte dos estímulos para se tornar um observador do céu veio dos “causos” contados por seu pai. Natural de Florianó-polis, Alexandre é filho de pescador e morava na Costeira, onde a população dependia principalmente do mar.“Meu pai chegava em casa contando ter visto a estrela com cauda [Vê-nus] nascer bem perto do Sol pela manhã. Ouvia as previsões dos homens dizendo que a maré ia encher ou que a Lua ia empinar. Eu queria descobrir como eles sabiam disso”, conta.

Uma carta celeste da edição especial da revista Superinte-ressante sobre Astronomia, publicada em 1989, foi o pontapé para as pesquisas de Alexandre. “Era daquilo que eu preci-sava”, afirma. Desde então ele passou a dedicar parte de seu tempo às observações, que registra e divulga através do Grupo de Estudos Astronômicos (GEA) da UFSC e da Rede de Astronomia Observacional (REA - Brasil), onde coordena as publicações sobre cometas. Grande parte de seu trabalho está no site que ele mesmo desenvolveu (costeira1.astrodatabase.net). No endereço, Alexandre divulga as páginas da Internet que administra, os artigos que escreve e os sete grupos dos quais faz parte, todos relacionados à Astronomia.

Alexandre sabe de cor as datas de vários eclipses, se eram parciais ou totais e quais eram os melhores locais para obser-vação. Lembra que o eclipse total do Sol de novembro de 1994 foi visível por inteiro de Florianópolis e de Foz do Iguaçu, mas que em São Paulo só era possível observá-lo parcialmente. E recorda com tristeza do eclipse total de Lua de 16 e 17 agosto de 1989. “Eu cheguei a observar em alguns pontos, mas o céu ficou nublado”, lamenta.

Até quando viaja, Alexandre combina turismo com Astro-nomia. Em março de 2006, foi para a capital do Rio Grande do Norte para ver um eclipse. “É muito caro, por exemplo, sair daqui de Florianópolis e ir a Natal só pra conhecer a cidade”, explica. Em 2010, fez três viagens, duas para a Argentina e uma para o Paraná, todas para participar de congressos.

Encantado por ciência em geral, Alexandre diz ter deixa-do a Astronomia de lado por um tempo. Entre 88 e 89, estu-dou eletrônica em casa, carreira que queria seguir no co-légio técnico. “A eletrônica era a informática da época, eu tinha um verdadeiro fascínio pela área, mas, conversando com um tio, ele me convenceu de que eletrotécnica estava mais consolidada. Foi assim que optei por esse curso na ETE-FESC [atual IF-SC]”.

Foi em um evento sobre Astronomia, por volta de 2001, que Alexandre entrou em contato com as pesquisas de Arqueo-astronomia no litoral catarinense, realizadas pelo pescador Adnir Ramos. Ajudou então a criar o site do Instituto Multi-disciplinar de Meio Ambiente e Arqueoastronomia (IMMA) e frequentemente participa das caminhadas arqueoastronômi-cas, realizadas nos solstícios e equinócios.

Quando questionado sobre o conhecimento astronômico dos povos que habitavam o litoral e sobre o uso dos observa-tórios encontrados, Alexandre se mantém cauteloso. “Não dá pra sair inferindo que os povos antigos usavam essa estrutura para regular suas vidas. O que se consegue saber é que esses alinhamentos podem ser vistos, basta ir lá”, afirma. Alexan-dre defende a realização de pesquisas nos locais e acredita que, mesmo que não se encontre nenhuma evidência arqueo-lógica próxima às pedras, esses observatórios podem ser usa-dos hoje como locais de aprendizado de Astronomia.

Observadorincansável

Encantado por Ciência, Alexandre passa seu tempo livre divulgando o que vê no céu

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Desde criança, Germano Bruno Afonso, professor aposentado da Universidade Fe-deral do Paraná, aprendeu a identificar as constelações dos Tupi-Guarani no céu. Des-cendente de indígenas e natural de Ponta--Porã, Germano mudou-se na adolescência para Curitiba para estudar Física. Depois fez doutorado em Astronomia de Posição e Mecânica Celeste na Université Pierre et Marie Curie (1980) e pós-doutorado em As-tronomia no Observatoire de la Cote d’Azur (1993), ambos realizados na França. Atual-mente, Germano trabalho como consultor do Museu da Amazônia (MUSA) em um pro-jeto sobre a Astronomia de etnias indígenas do Amazonas.

Ciência em Pauta - O senhor se considera um arqueoastrônomo?Germano Bruno Afonso - Na verdade, são os outros que me chamam assim, mas acho que posso dizer que sou um Etnoastrônomo.

C.P. - Como os pesquisadores da área de Astronomia receberam seus trabalhos?G.B.A. - Como eu sou cientista, no começo existia um pouco de preconceito. Mas, hoje em dia, não existe mais. Sempre dou palestras na Associação Astronômica Brasileira de Física, por exemplo. Ao contrário do que eu esperava, recebo muito apoio dos meus colegas pelo trabalho que faço. C.P - De quem o senhor enfrentou pre-conceitos?G.B.A. - De arqueólogos, das pessoas em geral. Mas essas coisas não fazem efeito nenhum pra mim. Quando essas pessoas duvidam, só fazem criticar e não vão lá pesquisar.

C.P - Como o senhor conseguiu ligar com a falta de uma educação formal em An-tropologia ou Arqueologia para realizar seus estudos?

G.B.A. - Acho que existe uma vantagem na mi-nha falta de formação. Eu nasci entre os índios e o antropólogo, na maioria das vezes, é um estran-geiro.

O meu trabalho também é mais de campo do que teórico: ver a posição das constelações e checar se naquela época geralmente é frio, se na-quela época dá dengue, se naquela época aparece peixe, cobra, etc. Não me baseio naquilo que está escrito nos livros.

Apesar disso, na minha equipe de trabalho sempre tem antropólogo ajudando. É um traba-lho multidisciplinar. Trabalho em conjunto com biólogos, historiadores, antropólogos, geógrafos, senão complica.

C.P. - É necessário trabalhar em equipe?G.B.A. - É essencial. Vou dar um exemplo. Aqui no Amazonas tem uma constelação que os índios chamam de Anã, mas que todos os antropólogos conhecem como Jararaca. O problema é que perto da constelação também existem os ovos da Jara-raca. Quando uma bióloga da nossa equipe viu isso, ela falou: “Não pode ser Jararaca!”. Ela disse que Jararaca não põe ovos. Então, reparamos que a Anã dos índios é, na verdade, a Surucucu.

Quem sabe dizer essas coisas é um biólogo e não um antropólogo e nem astrônomo. Nós não olhamos só para céu. Nós vemos o céu e a cor-respondência dele com a Terra. Por isso, entram várias áreas de pesquisa.

C.P. - Qual foi seu primeiro contato com a Arqueoastronomia?G.B.A. - Em 1991, estudamos uma pedra de cerca de 1,50 m de altura que ficava às mar-gens do rio Iguaçu, onde foi construída a hi-drelétrica de Salto Segredo (PR). A pedra apon-tava para os quatro pontos cardeais e parecia indicar as direções do nascer e do pôr-do-sol nas estações do ano. Conversando com os pa-jés, descobri que aquela pedra devia ser um re-lógio solar. Mas ela era tão antiga que os índios

também não sabiam quem podia ter utilizado. Nós também não sabemos. C.P. - E vocês tentam pesquisar que po-vos contruíram esses monumentos?G.B.A. - A única coisa que eu faço é medir com o teodolito e calcular onde o sol nasce e se põe. Se os povos que viviam aqui antes fizeram isso de propósito ou não, aí ninguém sabe. Mas é uma coindência de um em um milhão.

Por isso, eu não trabalho muito com Antro-pologia ou Arqueologia. Se, por exemplo, você encontra um observatório desses e um vaso de cerâmica, que é de quatro mil anos atrás, o ar-queólogo vai falar: esse observatório foi feito há 4 mil anos atrás. Eu bem que gostaria que funcio-nasse assim, mas como astrônomo e descendente de indígenas, acredito que o observatório pode ter sido feito antes, na época, ou depois do vaso de cerâmica.

C.P. - O senhor acha que também é im-portante saber quem utilizava esses ob-servatórios?G.B.A. - Claro que é. Mas como são coisas muito velhas, não existe registro escrito. Eu não posso colocar minha mão no fogo e di-zer: isso aqui foram os Guarani que fizeram. C.P. - Nos últimos anos, o senhor vem se dedicando mais a estudar os conhecimen-tos atuais das tribos indígenas. Por quê? G.B.A. - Com a Arqueoastronomia, até os ar-queólogos se desentendem, imagina um astrô-nomo. Como você não tem registro escrito, você não tem em que se basear. A interpretação é muito difícil. Enquanto que com a Etnoastrono-mia você pode trabalhar com civilizações ainda existentes. Ir lá, conversar, bater papo, tirar dúvidas. Para trabalhar com os Guaranis, eu fui ao menos umas cinquenta vezes nas tribos pesquisar. É muito mais científico do que a Arqueoastronomia.

O caçador de constelações indígenas

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Em uma tarde fria e chuvosa de outu-bro, a praia do Pântano do Sul, em Florianópolis, estava quase vazia.

Apenas um grupo de garotos permanecia na areia jogando futebol e alguns pesca-dores, todos vestidos com casacos imper-meáveis, se preparavam para ir trabalhar ou para voltar às suas casas. Um deles, Israel, acabara de chegar à praia depois de passar a madrugada no mar em busca de corvinas, um dos peixes da tempora-da. Com o olhar perdido de quem acaba de voltar de viagem, o pescador esperava os colegas lhe avisarem se estava tudo em ordem para ele poder ir para casa almoçar com sua família. Quando descobriu que já eram quatro da tarde, se assustou. “Jurava que era meio-dia”, exclamou com raiva.

Israel não atribuiu sua confusão com o horário ao tempo nublado, que escon-deu o Sol durante o dia inteiro e deixou o céu de meio-dia e o de quatro da tarde com a mesma aparência. “Uso celular e relógio para saber que horas são. Desta vez esqueci de levar”, explica. O pesca-dor diz que não costuma observar o céu. Quando está no mar e precisa se orientar de noite, prefere se basear na iluminação da cidade. Para ele, que pesca há 10 anos, as pessoas tinham o hábito de olhar para os astros só antigamente. “Isso é coisa de pescador velho”, afirma.

Com 77 anos de idade, Francisco Ar-cênio vive no Pântano do Sul desde que nasceu e é um dos moradores mais ido-sos do bairro. Toda a família de Seu Chi-

co, como é conhecido, era de pescadores, profissão que seguiu até 1975, quando conseguiu o emprego de coveiro no ce-mitério do bairro. Até hoje, Seu Chico sabe de cor os ensinamentos sobre o céu, que aprendeu com o pai e o avô e que usava para se orientar na pescaria. “Eu olhava as estrelas, a Lua. Sabia que bem aqui em cima da minha casa nasce o Cru-zeiro do Sul? Não tinha luz aqui. Dava pra ver tudo”, conta. A energia elétrica che-gou ao Pântano do Sul em 1968.

Assim como acontecia na família de Seu Chico, também era comum entre os pescadores de outras partes da Ilha o uso de conhecimentos populares sobre o céu para prever o tempo, determinar as ma-rés e se orientar no espaço. “Se você per-

Memórias celestes Ditados populares sobre o céu ajudavam pescadores a prever o tempo

Manuel José de Campos, Seu Leca, foi pescador até 1981 e ainda lembra dos ensinamentos sobre a Lua e os outros astros que utilizava para se guiar

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guntar a um nativo sobre Astronomia, ele nem vai saber o que é. Tudo o que eles sabem veio da tradição oral”, afirma Tadeu Pinheiro, membro do Grupo de Estudos de Astronomia (GEA) e professor aposentado do Departamento de Bioquí-mica da Universidade Federal de Santa Catarina.

Pinheiro morou até os 18 anos na La-goa da Conceição, que na década de 1970 ainda era uma área agrícola, onde a plan-tação de milho, feijão, cana e mandioca era a principal renda dos moradores. Não havia tradição de pesca, mas entre os meses de maio e julho, todos se mobiliza-vam com a chegada da tainha, que ocor-ria na Barra da Lagoa e em outras praias próximas. “A pesca era feita através de arrastão. Todos ajudavam a puxar a rede e depois era feita a partilha. Cada um le-vava um pouco de tainha pra casa”, diz.

Tadeu lembra que os pescadores acor-davam com a “Estrela do Dia”, que surgia no horizonte três ou quatro horas antes do amanhecer. A estrela, que na verda-de, é conhecida na Astronomia como “Archenar”, como explica o astrônomo Adolfo Stotz no livro Céu, Ilha, era utili-zada como um alerta de que os cardumes de tainha estavam se aproximando.

> A Lua e as marés No Pântano do Sul, “Achernar” tam-

bém era conhecida. “Só que não é estrela do dia. É da manhã”, corrige Seu Chico. O ex-pescador explica que só prestava atenção nessa estrela na época da tainha. O ponto que mais costumava observar no céu era a Lua. Ele lembra que seu pai

e seu avô costumavam anotar em um “almanaque” as mudanças das fases do satélite da Terra. “A Lua Nova era mui-to boa pra peixe. Melhor do que a Lua Cheia”, explica.

Seu Chico se refere às influências das fases da Lua nas mudanças de maré, fe-nômeno que os pescadores costumam observar. Isso é causado pela influência da Lua e do Sol sob o campo gravitacio-nal da Terra. Todos os dias ocorrem duas marés altas e duas baixas. A Lua influen-cia no nível dessas marés, dependendo do seu posicionamento em relação a Terra e o Sol. Quando ocorre a Lua Nova, por exemplo, a Terra, a Lua e o Sol estão alinhados. E a soma dessa atração gravi-tacional “puxa” o oceano, fazendo com que ocorram as marés altas máximas.

> Previsão do tempo Para os pescadores, além de ajudar a

prever as marés, a Lua também deter-mina se vai chover ou não. “Se o círculo está perto, chuva longe. Círculo longe, chuva perto”, explica Manoel José de Campos. Seu Leca, como todos lhe cha-mam no Pântano do Sul, tem 72 anos e pescou até 1981. O ditado popular que ele cita faz referência ao anel luminoso que às vezes é visível ao redor da Lua, conhecido cientificamente como halo lunar. Esse anel se forma quando a luz da Lua é refratada ao passar por uma camada de cristais de gelo.

Márcia Fuentes, coordenadora do curso técnico de Meteorologia do In-sitituto Federal de Santa Catarina (IF--SC), explica que o ditado está correto.

“Quando ocorre uma frente fria, as nu-vens ficam mais baixas. E é como se a Lua funcionasse como uma lanterna no globo. Quanto mais distante as nuvens ficam, maior a área que ela ilumina. E o círculo parece ser maior”, afirma.

Por esse mesmo motivo, “Quando as estrelas brilham pouco, vem chu-va”, outro ditado popular citado por Seu Leca também possui embasamen-to científico. “Essa camada de nuvens deixa passar a luz, mas age como um filtro, alterando a visibilidade”, explica Fuentes.

Muitos outros ditados utilizados pelos pescadores, no entanto, são só mitos, de acordo com a ciência. Como “Lua deitada, marinheiro de pé”, que afirma que quando a Lua Nova parece estar deitada, significa que virá mau tempo. Sobre esse, Márcia é enfática. “Nem pensar! A posição dos astros não influencia nas mudanças meteoroló-gicas. Ditados que dizem que ‘se a Lua está assim, a chuva vem assado’ estão errados”, afirma.

Seu Leca e sua esposa, no entanto, garantem que estão certos. E mesmo sem o aval da ciência, naquela tarde fria de outubro ele afirma: “Você está vendo? Daqui a pouco vai começar a chover. Isso é porque na Lua nova de agosto choveu e é ela que define se vai chover ou não nos próximos meses. ‘Lua nova de agosto roncou, Lua nova de outubro trovejou’. Sol só em novem-bro”, profetiza Seu Leca olhando para o céu.

O halo é o círculo que se forma ao

redor da Lua. De-pendendo do seu

tamanho, os pesca-dores conseguem

saber se vai chover

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Ao desembarcarem no litoral de Santa Catarina a partir do século XV, os colonizadores portugueses encontraram povos de origem Guarani que já viviam na região há 200 ou 300 anos. Es-ses índios foram o terceiro grupo populacional a habitar a costa catarinense. Antes deles, povos pescadores-caçadores-coletores e índios do Grupo Jê também ocuparam o litoral.

As descobertas são recentes. Somente a partir da década de 1950 arqueólogos conseguiram reunir informações mais detalha-das sobre o período pré-colonial catarinense. Os sambaquis - pala-vra de origem tupi-guarani que significa “amontoado de conchas” – foram os vestígios que mais receberam atenção até o momento. Além de existirem em grande quantidade, eles chegam a ter 70 metros de altura e 500 metros de comprimento.

Mesmo que esses vestígios venham sendo pesquisados desde a década de 1930, apenas nos últimos vinte anos os estudos permi-tiram conhecer melhor as populações pré-coloniais do litoral do Brasil. “Até a década de 1950, a pesquisa em sambaquis se caracte-rizava por trabalhos pontuais, que não permitiam o entendimento da ocupação litorânea”, explica a pesquisadora Maria Dulce Gas-par, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no livro Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro.

Todos os grupos que viveram em Santa Catarina utilizaram os

sambaquis, mas os arqueólogos ainda não sabem informar quando e como cada sociedade os utilizou. O que as escavações dos sítios e datações dos materiais mostram é que os povos já habitavam o litoral há cerca de nove mil anos.

Os pecadores-caçadores-coletores teriam sido os primeiros a chegar. Eles viveram no litoral entre 8000 e 1500 anos atrás e de-ram início à construção dos sambaquis. Já os índios Jê, devem ter aparecido na região entre 1000 e 2000 anos atrás, época em que se começa a perceber mudanças nas construções dos sambaquis. Os Guaranis - últimos de que se tem conhecimento - eram essencial-mente agricultores e também viviam da caça e da pesca. Grande parte da cerâmica encontrada nas escavações foi criada por eles e era utilizada como utensílios, ou objetos, para rituais, como urnas funerárias, por exemplo. (Ver Box)

Apenas na década de 1980, os estudos começaram a definir os povos sambaquieiros como sociedades sedentárias, ou seja, que possuíam habitação fixa e, rituais complexos. De acordo com Dei-si Scunderlick, do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia (Grupep) da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), o imaginário que se tinha até a década de 1970 sobre a formação dos sambaquis refletia o preconceito com o indígena, que era visto como preguiçoso. “Durante muito tempo permane-

O litoral catarinense antes dos portugueses

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Sambaqui do Ipoã, no município de Laguna, onde Adnir Ramos teria encontrado um relógio solar

Pesquisas realizadas desde a década de 1950 buscam descrever quem eram os moradores da região no período pré-colonial

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ceu-se a ideia de que os sambaquis eram o lixo dos índios, forma-dos ao acaso pelo resto de moluscos que serviam de alimento”, afirma.

Mesmo com o avanço das pesquisas, os arqueólogos têm pon-tos de vista distintos sobre a função dos sambaquis. Para Teresa Fossari, Diretora do Museu da Universidade Federal de Santa Cata-rina (UFSC), esses locais eram usados para habitação e prática de rituais, como o sepultamento. Ela sustenta essa teoria com base nos restos de carvões encontrados no local, que apontam para a existência de fogueiras, prática que pode ser relacionada a pontos de habitação.

A mesma hipótese é defendida por Gaspar, que acredita ainda que os sambaquis eram utilizados para marcar território e servia de referência na paisagem. Já para o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), Paulo DeBlasis, os estudos realizados no litoral catarinense não permitem definir qual era a estrutura de moradia desses povos.

Outro ponto de discordância entre os pesquisadores é a ques-tão da nomenclatura. Embora livros e artigos sobre arqueologia usem os termos “índios itararés” e “sambaquieiros” para desig-nar os antigos moradores do litoral, alguns arqueólogos preferem não usá-los. “Não se pode a partir de traços culturais semelhantes, como a construção de sambaquis, dizer que povos de locais e de tempo diferentes pertenciam ao mesmo grupo. Mesmo porque os concheiros [nome dado para populações sambaquieiras em outros locais do mundo] estão presentes no litoral de vários pontos do planeta”, justifica De Blasis.

O pesquisador da USP prefere usar o termo “sociedades samba-quieiras” no plural, para deixar claro que não se trata de um único povo. Fossari contesta também o uso do termo sambaquieiro pela generalização do termo e defende ainda em sua tese de doutorado População pré-colonial Jê na paisagem da Ilha de Santa Catarina, defen-dida em 2004, sugere a substituição do termo itararés por povos Jê, com base nas escavações realizadas por outros arqueólogos na década de 80 e 90. “O termo itararé foi usado para designar um tipo de cerâmica encontrada às margens do Rio Itararé, no Paraná. Usar esse termo para designar os povos que habitaram nosso lito-ral é inapropriado”, explica.

> Os estudos As primeiras escavações realizadas no litoral catarinense tiveram início na década de 1950, com o Padre João Alfredo Rohr. O material coletado por Rohr está hoje aberto à visita-ção no Museu do Homem do Sambaqui, localizado no Colégio

Os três grupos populacionais do período pré-colonial

Pescadores-coletores-caçadoresForam os primeiros habitantes do litoral catarinense. Eles viviam da caça, da coleta e da pesca e habitavam regiões próximas ao mar e a lagoas, locais onde deram início às construtores dos sambaquis. Outros vestígios deixados por esses povos são instrumentos de pedra polida e lascada, como machados, lanças e representações animais ou humanos em pedra (zoólitos).

Grupo Jê MeridionalSão chamados pelo nome geral dado aos povos dessa família linguística, mas possuem características diferentes dos outros que habitaram regiões diferentes do Brasil. Com eles, apareceram as primeiras evidências de cerâmica no litoral catarinense, ainda que em pouca quantidade. A chegada desse grupo ao litoral catarinense também pode ser percebida pela mudança no processo de construção de sambaquis.

GuaraniÚltimo grupo populacional a chegar ao litoral catarinense antes dos portugueses. Eles eram essencialmente agricultores e possuíam um desenvolvimento maior de objetos de cerâmica, que eram usados como utensílios e em rituais funerários.

Catarinense, em Florianópolis. Entre as décadas de 1960 e 1990, uma série de escavações fo-

ram realizadas na Ilha de Santa Catarina e nas illhas aos arredores: Anhatomirim, Arvoredo, Campeche e Coral. Esses estudos, reali-zados em sambaquis e oficinas líticas - rochas que serviram para afiar e polir objetos como machados e pontas de lança - permiti-ram remontar a história dos povos pré-coloniais que habitavam o litoral catarinense.

No litoral Sul, mais especificamente na região de Laguna, os es-tudos são feitos desde a década de 1990 por pesquisadores da Uni-versidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP). Entre os grandes projetos realizados recen-temente está Sambaquis e paisagem: modelando a inter-relação entre processos formativos culturais e naturais no litoral sul de Santa Catarina. Com recursos da Fundação de Amparo a Pesquisas de São Paulo (Fapesp), as pesquisas foram realizadas entre 2005 e 2010 com a coordenação do professor DeBlasis. O estudo, que teve caráter multidisciplinar, também contou com a participação de pesquisa-dores de diversas áreas do conhecimento da USP, do Museu Na-cional (Rio de Janeiro) e da Universidade do Sul do Brasil (Unisul).

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Escavação realizada no sítio Galheta IV evidenciou vestígios dos povos Jê no município de Laguna

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Os vários céus do BrasilEtnoastronomia ganha espaço em estudos e projetos de divulgação científica

Quando os índios Tukano Orientais, que vivem na região do Alto Rio Negro do Amazonas, olham para o céu, não vêem imagens como touro, urso ou escorpião, animais que dão nome a constelações da União Astronômica Internacional. Juntando as estrelas e man-chas da Via Láctea, como em um jogo de ligar pontos, eles imaginam figuras de bichos como tatu, garça e jabuti. Espécies comuns

da Amazônia Brasileira.Em outras tribos indígenas do país também há registros de constelações próprias, além de mitos e rituais ligados ao céu. A própria orga-

nização cultural e econômica de algumas etnias se baseia na observação dos astros. São conhecimentos e tradições que ficaram por muito tempo restritos às comunidades, mas que, desde o final da década de 80, estão sendo estudados e divulgados por astrônomos, antropólogos e outros acadêmicos.

As pesquisas fazem parte da Etnoastronomia - disciplina que estuda a Astronomia de grupos étnicos ou culturais contemporâneos. O primeiro trabalho dessa área de que se tem conhecimento foi publicado em 1987 pela revista Ciência Hoje. Nele, a antropóloga Berta Ribeiro e o índio Tolamãn Kenhíri explicam como os índios Desâna regulam atividades como ciclos de plantio, pesca e coleta de insetos, através das constelações.

Desde então, foram feitos estudos sobre os Tupi-guaranis, Bororos, Suruís, Caiapós, Tukanos, dentre outros, e a disciplina vem atraindo mais pesquisas e projetos do que a Arqueoastronomia, que faz investigações semelhantes, mas a partir de vestígios arqueológicos. Nos últimos dez anos foram produzidas quatro dissertações de mestrado e duas teses de doutorado relacionadas à Etnoastronomia e, projetos

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Especial Arqueoastronomia

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de divulgação científica, como planetários de astronomia indígena, têm se espalhado pelo país.

Luiz Carlos Jafelice, professor da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte, vê na Etnoastronomia um grande potencial de desenvolvimento no país. “No Brasil, não há tantos vestígios arqueológicos relacionados à Astronomia. Meu foco está nas pessoas vi-vas”, explica. Jafelice já realizou estudos de Arqueoastronomia, mas agora pesquisa os conhecimentos tradicionais de pessoas do interior do Nordeste.

Segundo dados da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades, estima-se que atualmente cerca de 4,5 milhões de pessoas façam parte de comunidades tradicionais no Brasil (qui-lombolas e ribeirinhos, por exemplo), ocu-pando 25% do território brasileiro. Conside-rando apenas os índios, que são os principais foco das pesquisas, existem cerca de 460 mil vivendo em tribos, distribuídos entre 225 so-ciedades indígenas, de acordo com a Funda-ção Nacional do Índio (Funai).

Para Germano Bruno Afonso, professor aposentado da Universidade Federal do Pa-raná, recuperar os conhecimentos astronô-micos dos indígenas é fundamental. “Em até duas décadas vários conhecimentos podem estar perdidos. São poucos os pesquisadores dedicados a esses assuntos no Brasil”, teme. Natural de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, Afonso é descendente de Tupi-Guarani e aprendeu quando criança a identificar as constelações de sua etnia. Hoje é um dos principais pesquisadores da área e conta que já visitou cerca de 100 tribos indígenas no Brasil.

Atualmente, Afonso é consultor do proje-to Etnoastronomia dos Povos Indígenas do Ama-zonas do Museu da Amazônia (MUSA), onde trabalha com a ajuda de estudantes do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Estadual do Amazonas. “Quan-do os monitores entram de férias e viajam para suas tribos, eles realizam as pesquisas conversando com os índios mais velhos. De-pois eu volto na aldeia para tirar dúvidas e ai fazemos um vídeo para projetar no planetá-rio como se fosse um céu virtual, mostrando como cada etnia vê o céu e como o cotidiano deles é regulado através das constelações”, explica.

Muitas informações sobre os conheci-mentos astronômicos indígenas também podem ser encontradas em relatos de mis-sionários, viajantes, colonizadores e natura-listas que tiveram contato com os índios. O relato mais detalhado está no livro História da missão dos padres capuchinhos na ilha de Ma-ranhão e terras circunvizinhas, do padre fran-cês Claude D’Abbeville, publicado em 1614. D’Abbeville anotou os nomes que os já extin-

tos Tupinambás da região davam para o Sol, a Lua, as estrelas, os planetas e as constela-ções. Também estão descritos no documen-to os fenômenos que os índios observavam, como a ocorrência das marés, que eles sa-biam ser causada pela Lua mais de cinquenta anos antes de Isaac Newton ter publicado a Lei da Gravitação Universal em 1687.

Flávia Pedroza de Lima, astrônoma do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, analisou documentos do século XVI ao XX que possuem descrições astronômicas dos indígenas brasileiros para fazer sua dissertação de mestrado. O objetivo era fazer um mapeamento desses textos, onde as informações estão dispersas. Um dos probelmas é que os relatos trazem a visão de mundo de quem escreveu. Os missionários que tiveram contato com índios, por exemplo, estavam mais preocupados em catequizá-los do que em entender como seus conhecimentos astronômicos e suas relações culturais e econômicas.

A antropóloga do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) Priscila Faulhaber, que realizou pesquisas com os Ticuna do Amazonas, acredita que os antropólogos também correm o risco de transmitir sua visão de mundo nas suas pesquisas. Ela não gosta nem mesmo do termo Etnoastronomia porque acredita que remete ao conhecimento ocidental de Astronomia. “O sentido do meu trabalho não está em saber se os índios fazem ciência ou não”, explica Priscila, que procura entender como os conhecimentos astronômicos estão presentes no modo de pensar dos Ticuna.

> Divulgação científica Um dos principais ramos da Etnoastro-

nomia está ligado à educação e à divulgação científica. Germano Afonso, por exemplo, criou um Planetário Indígena em Curitiba em 2004 e outro em Manaus este ano por causa do seu novo projeto. Por muito tempo, Germano também visitou aldeias com um planetário itinerante, que o ajudou a identi-ficar novas constelações em suas visitas.

Antes, Afonso ajudou Paulo Souza da Sil-va, professor do Departamento de Física da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) com o projeto de extensão Etnoastro-nomia dos Índios Guaranis da Região da Grande Dourados/MS. Financiado pelo CNPq, a inicia-tiva busca difundir os conhecimentos astro-nômicos dos índios Tupi-guarani através de exposições itinerantes, palestras, oficinas e observações noturnas.

O Mato Grosso do Sul é o estado com a segunda maior população indígena do país, com 68.554 habitantes de oito povos distri-buídos em 27 municípios e em 73 aldeias. Segundo Silva, entre os índios que vivem nas áreas urbanas, os conhecimentos já estão desaparecendo. Por isso, o projeto também instalou relógios solares em três escolas in-dígenas da região e no campus da universi-dade. “Os Índios dessa região tiveram muito contato com o branco e sofrem uma perda de identidade”, explica Silva.

No final do projeto, que acaba em 2010, querem produzir uma cartilha sobre astro-nomia Tupi-Guarani à semelhança de O céu dos índios Tembé, que ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Livro Didático em 2000 (Ver box). Dessa vez, a cartilha será escrita em Guarani também.

Educando através dos índios Tembé

A cartilha infantil O céu dos índios Tembé foi criada a partir de uma pesquisa de Germano Afonso e do matemático Osvaldo Barros na aldeia Tekohaw, na fronteira do Pará com o Maranhão. O livro, que é destinado a estudantes do ensino fundamental, traz informações sobre como os índios Tembe-Tenetehara regulam suas atividades e conseguem prever as estações do ano observando as contelações.

Escrita em uma linguagem didática e cheia de ilustrações, a cartilha procura incentivar os estudantes a entenderem que existem diferenças culturais, aproveitando também para mostrar como as cidades possuem

suas próprias culturas. O livro, que já teve duas edições,

foi produzido em conjunto por vários pesquisadores do Planetário do Pará e ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro didático em 2000. Atualmente, as edições do livro es-tão esgotadas.

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