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Poesia Ronaldo Costa Fernandes Anoitecimento Anoitece no meu coração coberto de ervas e, na luta desigual, cresço com a miséria. Trens trazem minérios de rumor e tristeza. Além da janela, homens caçam a manhã, enterram no lodo o tempo da esperança e cavam fundo até aparecer o osso do mundo. Nem mesmo as minhas imaginações servem na tarde ferida e de tijolos exaltados para inventar suposta vida que não seja experiência sem retorno. A vida como carro desgovernado a mais de duzentos quilômetros por hora, em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada. Se ao menos soubesse o ponto de chegada dos lobos, não me atormentaria com o tempo que não tem começo nem fim. 261 Poeta, ficcionista e ensaísta, Ronaldo Costa Fernandes publicou quatro livros de poesias. O mais recente é Eterno Passageiro. Ganhou vários prêmios, como o Guimarães Rosa, APCA, Casa de las Américas e escreve para o Correio Braziliense. Poesia

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Poesia

Ronaldo Costa Fernandes

AnoitecimentoAnoitece no meu coração coberto de ervas e,na luta desigual, cresço com a miséria.Trens trazem minérios de rumor e tristeza.Além da janela, homens caçam a manhã,enterram no lodo o tempo da esperançae cavam fundo até aparecer o osso do mundo.Nem mesmo as minhas imaginações servemna tarde ferida e de tijolos exaltadospara inventar suposta vidaque não seja experiência sem retorno.A vida como carro desgovernadoa mais de duzentos quilômetros por hora,em noite chuvosa, numa estrada não sinalizada.Se ao menos soubesseo ponto de chegada dos lobos,não me atormentaria com o tempoque não tem começo nem fim.

261

Poeta, ficcionistae ensaísta,Ronaldo CostaFernandespublicou quatrolivros de poesias.O mais recente éEterno Passageiro.Ganhou váriosprêmios, como oGuimarães Rosa,APCA, Casa delas Américas eescreve para oCorreio Braziliense.

Poes ia

Barcelona

Sento-me no café,a placidez da praça com seus pombos,a inexatidão do foco das nuvens,o amargo do adoçante,e a canção pedinte de um acordeão.Percebo que não estou no estrangeironem que falam em língua catalã,aí compreendo que sempre estive sentado num bare que a multidão passa, indiferente e pedestre.

Na cidade velha, Cervantesmorou de frente pro mar– quem sabe não chegou a pensarem Dom Quixote como marinheiro?Ruas tortas de Miró e Gaudíamolecem as molduras das janelasfechadas para se protegeremde tanto peixe e dentes solares.O mapa de papel nunca existeantes de eu desenhá-locom o papel mais fino da memóriae estrias de pés alucinados.Neste café, estive moídocada grão de pesaresmagado na trituraçãodo bairro velho que me habita.

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Ronaldo Costa Fernandes

LiçõesExistir é a prova dos nove.Um dia me cansarei de sera nota dissonantee abandonarei a lição de casa,a lição da rua, a lição da vida,oh, Deus,todas as lições que nunca aprendi.Lição se aprende com o corpo.O corpo tem sua matéria,sua disciplina, seu passar de ano.A natureza ensina com galhos,cada folha que cai é um ponto.Por toda parte há as esquinas das vírgulas.Tenho medo do abc das torrentes,da aritmética das montanhas,da História das minhas dores.Minha dor é um frutoque, amadurecido, não caie vai apodrecendo o galho,o caule e a raiz tormentosa.

BandeiraMinha bandeira é não dar bandeira.Minha bandeira é o toque de silêncio,a morte do soldado desconhecidoque sou.Quem depositará floresneste monumento à minha batalha?Minha ordem não tem progresso.

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Poes ia

Hopper

Em Hopper, não há a solidão que todos dizem.

Aquele casal na lanchonete,as moças no quartoou no vagão de tremestão imobilizados de vida– de vida tão graveque nada escapa (como nos buracos negros)de seu campo de gravidade.

Ali estão os autômatos de Hopperem sua fantástica viagem em torno de si mesmo.

Não é a vida americana que é criticada.O que nos desnorteia em Hopper– e nos fascina –é que nos vemos na lanchonete,na parada de ônibus ou no vagão de trem.Estamos imobilizados – hopperianos –em têmpera e colorido,fixos na tela do tempo,e, irremediavelmente, presos a nós mesmos,a vida como um quadro americanodo qual não podemos escapar.

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Ronaldo Costa Fernandes

Poema barroco

Quem carrega a morte consigotraz duas formas de vida,quem leva a vida morrendoquando chega a verdadeirapor fim encontra unidade na derradeira.Divide-se o corpo em dois,uma parte já há muito não servia,a outra é apenas conteúdopara o continente ataúde.

Esta é a multidão mais desprezada,não se observa na ruao cemitério vertical das almas oxidadaso campo santo das avenidaso movimento distritaldas almas no trânsitocada qual em seu carneirocada qual em seu carro funerário.

Torre

Todas as torres são de Babel.Na minha cidade todos os edifíciossão torres habitadas.Os edifícios falam línguas diversas.As torres quando se exibemcolocam seus vestidos de lâmpadas.As torres morrem em pée, de pé, soberbas, apodrecem.

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Poes ia

Todos os homens são torresque vagam babélicos.Uns são torres inertes,outros são torres escondidasna névoa da noite– a luz vermelha no alto nãoé alerta, mas o altomedo de fazer da vidauma viagem sempre em alerta.Quem quer ascendersofre a vertigem da torre:em vez de abismo para baixosão abismos para cima.

Rodoviária

Daqui não se parte,aqui não se chega,há um tempo imóvelem toda multidão de pésde borracha, de pés de ardósia,de pés mecânicos de escada,porque aqui o que existe éredemoinho de gente,agitação febril que se consome,o suor diário de cana,o pastel diuturno da manhã,a cabeça operária,o relógio de ponto no pulso.

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Ronaldo Costa Fernandes

Nesta Rodoviária não há viagem,todos estão paralisados numa cidadeoperária; aqui mesmo parece sero destino e a partida,vermes no estômago,no ventre do tempo,consumindo-se de si mesmo,a Rodoviária para existirnecessita dessa fornalha de gentepara produzir o calor febril da cidade.Mas aqui há também ócioe malandragem – há o eternoflanêur suburbano, de pente no cabelo,masca o chicletes do conto do vigário,os bolsos vazios de trama e promessa.

267

Poes ia

Poesia

Anibal Beça

Solo

Assim como chegasem convite à vistaesse ruflar de asasme assalta e conquistame cobre e agasalhano cobre do outono.Mas logo me deixade novo o abandonode tardes vaziasolhando andorinhastão leves tão lentasde tanta preguiça.

Agora perceboque sou passageiromero cão rafeiro

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Poes ia

Poeta, escritore tradutor.Em sua obradestacam-se oslivros: Itinerário daNoite Desmedida àMínima Fratura;Filhos da Várzea;Suíte para osHabitantes da Noite.

aqui neste bancofarejando a praçade nuvem esgarçadano azul distraída.A cor que me ficame enterra amareloe o sol sem a gemame deixa o lençoltão claro de claras.

Moringa

Rego tua língua frescacom água de sílabas

enquanto pétala de argilaum alfabeto sua poroso

no barro da palavra.

Boca de argila furtivacarregas um deserto

na aridez do desejomas é dentro de tique brota o silêncio do cacto.

Falo do meu oásis(envenenada miragem)bebes e matas tua sedesamaritana

suicidasaciada.

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Anibal Beça

O beijo

“Ouvir de novo a tua voz seriaMatar a sede com água salgada”.

Herberto Helder“Boca ó minha delicia meu néctar eu te amo“

Gillaume Apollinaire

Punhais de nuvens descem com os ventosDesembainhados nos lívidos lábiosAbrindo à fuga o fogo do momento

Seda e linho se atiçam nesse acasoPara a chuva de sílaba imanenteRegando a pele fina que se enlaça.

Úmido aço no laço sem tormentoDesfaz todos os nós toda trapaça:Molhado lambe a língua rio fluente.

A porta se escancara e tudo passaSem grãos medindo a hora nua ausenteEnquanto mãos caçando viram caça.

A fala dos afetos frente a frenteDerrete-se ao veludo das palavrasE vai esvaziar o véu silente.

Nervura calipígia denso espasmoRevira persiana iridescenteRaio de íris fremente em mar de pálpebras.

271

Poes ia

Estrela negra rompe o céu cadenteRútila brilha a lira acalentadaDesfalecendo o arpejo umidamente

Suor falaz dos poros pelos flancosAs mãos soletram montes num poenteDe um sol mormaço rubro caligráfico

Escrita em arrepio abstinenteA ausência se estertora em ímã sáficoUm hino de atração soa dolente.

Dois lábios que se encontram num abraçoSão asas de avoantes reticentesMas sabem do selvagem no céu vasto.

Os Arautos

“Hay golpes en la vida, tan fuertes … Yo no sé!”César Vallejo

Já não se me pousa o corvo heráldicopela palha esfarrapada das vestespelo escuro canto dos arautos:Nunca mais...

O fio se fia para o novelo da rocaum rodar tartamudo com soluçoso tempo solavanca em sua boleiae eu, como Vallejo, não sei...

272

Anibal Beça

Uma folha se eleva leve e vai em vãointerceder num diálogo com o ventomas turbulências são evidentes na facevalas profundas vincadas...

O que me salva é minha tarefa.Não me afogo em lagos encharcados de culpa:os meus pecados não caberiam num sermãode confessionários não sei...

Apenas sei que a lâmina vibra em sua luzilumina os poucos pêlos ralose no espelho se traduz a minha espera.Falta-me o forno para queimar o pãono entanto carrego um vulcão na almacrepitando erupções passadas:assim me quedo sem saber de nada

Quando virá? Não sei...

Parêmias

Colho do olhar a calma mansidãopresente, sempre armada na visão.

Vejo e muito olho o lombo nas retinasde livros grossos lidos na surdina.

Eis que da estante fogem personagenstodos aqueles vistos na viagem

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Poes ia

Na descoberta mágica do sonhoAcordado, nas lentes, um sardônico

ser, plasmado entre o medo e os meus pecadosde Sade a Nabokov degredado

lambendo em Chatterley godivas ladiesprendo lolitas dóceis nas paredes.

Madame Bovary o teu Flaubert sou eu!Despindo as tuas vestes, teu plebeu.

Entre basilios e bentinhos sei-me EçaCruzado com Machado em dor expressa.

Na verdade nem Freud nem MasochApenas um comum ser sem retoque.

ProfanoPara Marcos Sena

Passa a noite com seu fioe vai deslizante e célerenesse meu olhar distante.

A lamparina refulgea memória acesa em chamaardendo acontecimentos.

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Anibal Beça

Tento pendurar-me ao fioda corda e ao calor das horasmas o fogo não me é fuga.

Plumas do sonho me sabemum ajoelhado insoneno evangelho dos notívagos.

Ajoelhado, jamais!Disse-o ao seu ouvido um dia.quando senhor me sabia.

Rodilhas dentadas dançamnos segundos dos ponteiros:a dissoluta engrenagem.

Chegada a hora do vinhoela me lavou os pésperdoei-a com a fala

Cabelos revoltos voamna curvatura do dorso.Não me soube mais divino.

Então a lavei com a línguae a enxuguei com oliveiras.Ouvi distante: ECCE HOMO!

275

Poes ia

Pulsar

As cortesãs não beijam pagantesnão querem o teste da fraquezaa pulsão desvelada do desejo

Querem as moedas para o vinhoe o beijo reservado ao amante

O que é real na floração do desejoampara-se em mãos insurrectas

a deslizar por todo corpopernas subindo pelas coxas

o centro do umbigo mamiloso queixo se alonga prognata

até a escalada da bocaonde o beijo acontece poroso

Arfante e úmido o calor investeboca contra boca eletrizadas

faíscas riscando o céuricochete e estalo

chicote de luzclareia a clareira do sonho e

ela se abre lânguida ao mormaço.

O beijo pulsa em todo corpocomo um rio e suas nervuras

276

Anibal Beça

Último round

O vento que de verde tudo varrenão varre esta floresta onde eu habito.Espana roxas nódoas de um espárringueque sou eu mesmo a rir por esses ringues.Porradas que me dou? Mero detalhe,de quem passou a vida sem ter sidosendo, o sabido súdito do anárquico.Não fui, não sou, não quero ser doído.O menestrel choroso? Este não vale,perdeu-se pelos socos de outras divasem noites desbotadas na paisagem.Mas então, o que fica dessa trilha?ora, amigo, nocautes dessa aragemvarrida nos cruzados descaminhos.

Lumine

Como quem rabisca calçadas remotasescrevo com os cacos da nossa infância.

Tu tinhas a palidez ruborizada dos anjose eu as mãos trêmulas de um tocador de harpa.

Tudo era sacro em céu profano.

Deitados tínhamos nossa própria luzas sombras nossos lençóise o escuro era o mundo de fora.

277

Poes ia

Essa memória que me assaltapor um instante ilumina tua boca e a minhaúmidas do primeiro orvalho.

Janela

Esta manhã me acorda para a vidavinda com luz amena no meu rosto.Pela janela os raios em descidasão aspas de uma lauda sem desgosto.

Das queixas não me queixo na acolhidapois somam menos que o maior imposto.Vale essa vida até aqui vividano tom alegre em que me trago exposto.

Mas não me escoro no dever cumpridopor que de ver em muito haver implicacom este olhar ainda não vencido.

Quisera essa alegria que me ficachegar ao chão de muito irmão feridode vida desigual que não se explica.

278

Anibal Beça

Das muitas e poucas águas

Dessa memória a barca apenas remana contramão das ondas. Águas soltas,quem me dirá se voltam como tema,talvez redemoinho revoltoso,e aí buscar o tempo sem dilemana vertical vertigem ardilosade sol posto, caído com algema,tão preso à claridade em mote e glosa?Longitude de sombras mareadas,Ó nuvens do silêncio! Ó calmaria!Quadro a quadro, slow motion, bem passadas,as cenas uma a uma em estesia.

O tempo nesse barco são espadasque já não sangram mais águas paradas.

279

Poes ia

Baladinha da rua do Sol

Visão de vasto verãoestampa em corpo suadoa paisagem juvenil:Os seios rebeldes hirtosanchos de tão generososnos contornos definidosdois vulcões em lava acordamem erupção nos mamilos

prestes a incendiara coleada cambraiadeixando as crateras fora.Ela se sabe morenaela se sabe trigueirafala e conversa com o ventoarejando a cabeleiraem meneios as madeixasno balanço da cabeçaorna a elegância do passonum belo ritmo delgadode suas pernas esbeltasjunto à elegância das ancas.

Moça da rua do Solrebrilham meus dois cometasolhos, relva, caracolesses astros sempre opacosveem o que não vem do vácuovia glúteo via lácteana visada visceral

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Anibal Beça

o cheiro que me exasperajá exporta nas pegadasrastro felino animal

A graça do porte desvelao quadril em curvaturaservido pela cinturae o arredondado das coxas.Geografia de planíciepedindo pra ser exploradapalmo a palmo nessas curvasmas as franzidas nervurassobem meu colesterolsolo da moça do sol.

281

Poes ia