revista asas da palavra (unama)-antônio vieira

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    Revista de LetrasV 10 n. 23. dezembro . 2007

    UNIVERSIDADE DA AMAZNIA

    Reitordson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco

    Vice - ReitorAntnio de Carvalho Vaz PereiraPr - Reitor de EnsinoMrio Francisco GuzzoPr - Reitora de Pesquisa, Ps- Graduao e Extenso

    Nbia Maria Vasconcelos MacielDiretora do Centro de Cincias Humanas e EducaoAna Clia Bahia SilvaCoordenadora do Curso de LetrasMaria Clia Jacob

    Comisso Editorial desta edioAna Clia Bahia SilvaJoo Carlos PereiraJosse FaresLeonor Severa MiglioMaria Clia JacobMaria MirandaSrgio Antonio Sapucahy da Silva

    Capa e projeto grficoJos Fernandes Fonseca Neto

    Editorao EletrnicaElailson Santos

    ProduoCurso de Letras

    Distribuio / Assinaturas/ Intercmbio

    Editora UNAMA - EDUNAMAAv. Alcindo Cacela,287 CEP 66.060-902 Belm- ParTelefone (91) 40093145 Fax: (91) 4009319http:/ / [email protected]

    Apoio

    Ita

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    Antnio VieiraEdio C om em orativa - IV C entenrio

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    Asas da PalavraISSN 1415-7950

    Corpo Editorial InternoAmarlis TupiassuCarlos PaixoEdval Bernardino Campos

    Jos Guilherme de Oliveira CastroLucilinda TeixeiraMaria do Perptuo Socorro Cardoso da SilvaMarisa de Oliveira MokarzelPaulo Martins NunesRosa Maria Coelho de Assis

    Corpo Editorial ExternoAdma Fadul Muhana - USPAlcir Pcora - UNICAMPAldrin Moura de Figueiredo - UFPAAudemaro Taranto Goulart - PUC. MGAntonio Medina - USP

    Benedito Nunes - UFPAClia Brito - UFPADina Oliveira - UFPAGeraldo Mrtires Coelho - UFPA

    Jerusa Pires Ferreira - PUC.SPJoo Adolfo Hansen -USPJoo Nuno Corra-Cardoso - U.Coimbra.PTJos Medina - USPJos Ribamar Ferreira Jnior - UFMAJosebel Akel Fares - UEPAJussara Derenji - UFPAMrcia Marques de Morais - PUC.MGMaria de Lourdes Abreu de Oliveira - CES/JFMaria Luiza Ortiz Alvarez - UnB

    Ncea Helena Nogueira - CES/ JFPedro Pinho - UFPA

    Esta publicao foi elaborada por docentes doCurso de Letras da Universidade da Amaznia -UNAMA, com o patrocnio do Banco Ita.Comemora os 400 anos de nascimento donotvel e maior orador da lngua portuguesa,Padre Antonio Vieira (1608-2008).

    Asas da Palavra - revista de Letras - Belm: Unama, v 10 n. 23, 2007. Semestral.

    FICHA CATALOGRFICA - UNAMA

    274

    ISSN 1415-7950

    1. Literatura - Estudos crticos, artigos,ensaios,memrias, resenhas,fico,traduo,poesia. Peridicos. 2. Lingstica.I.UNIVERSIDADE DA AMAZNIA. Curso de Letras.

    CDD 400

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    R evista de LetrasSem estral V. 10 - n. 23 - 2007 - ISSN 1415-7950

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    Iconografia

    Fontes

    Breviarium. Para refletir comPde. AntonioVieira. Amarlis Tupiass. Editora UFPA. 2007

    OCEANOS - Vieira - 1697-1997. Nmeros 30/31 abril/ setembro 1997.Editada por Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses.

    PadreAntonio Vieira. Editora Verbo, 1972. Gigantes da Literatura Universal, n.13.

    Santo Antonioluz domundo. Editora Vozes, 1997: nove sermes.

    Nossa Histrian.32, junho 2006.Editora Vera Cruz

    Literatura Brasileira: Singular ePluralFundao Biblioteca Nacional. Literatura Brasileira Feira do Livro - Frankfurt (1994)

    Crditos das Ilustraes usadas nesta edio

    Fr. Diego de Valades. Rethorica crist.Perugia(1579)

    Frans Janzoo. Amsterdan (1647)

    Cndido Portinari. Rio de Janeiro

    Luiz Sanchez, Madrid (1622)

    Jos de Brito. Campinas. (1997)

    G. Barleus. J& c.Blaeu. Amsterdan (1638).

    Arnold van Westerhout ( 1651-1725)

    J.F .Bernard, Amsterdan, 1723-1743

    Andr de Barros. Lisboa (1746)

    Alexandre Rodrigues Ferreira. Conselho Federal de Cultura

    A. Wiercx.Anturpia (1593)Literatura Brasileira: Singular e Plural

    Seco de Iconografia - I.B.N.L .PT (1661)

    Henrique Valente de Oliveira.Lisboa (1663)

    Coleo Jorge de Brito.Lisboa (1693)

    Grav. sc. XV, XVI, XVII- Ac. Biblioteca Nacional

    Francisco de Mendona.P.Henningins.Colnia (1650)

    Antonio de Sousa Macedo ( 1645)

    Miguel de Paiva.Lisboa(1630)

    Theodoro Braga. Instituto H. e G. Alagoas.( 1922)Capa do livro do Monsenhor Leal.Falngola. Brasil (1969)

    Autor desc. Sc.XVIII.Fot. de Srgio Benutti - IPHAN / BA

    Jos Fernandes. Belm da Memria. UNAMA. Brasil(2005)

    Capa

    Detalhe da gravura de Carlo Grandi. Livro de Andr de Barros,Vida doApostolicoPadreAntonio Vieyra da Companhia deJesuschamadopor antonomasia o Grande... (Lisboa, Oficina Sylviana, 1746).

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    Apresentao

    Este, mais um, esvoaar de Asas da Palavra, reveste-se de galas e dirige seusinstrumentos de direo em rumo retro, ao reencontro do Padre Vieira e seu verbo demaravilha, ntegro sempre, vigoroso sempre, intenso e apurado no falar s pessoas deseu tempo e s pessoas de todos os tempos. Vieira a mais bela, intrigante e instigante

    voz, inteiramente nova, at no agenciamento verbal de seus sermes, que dominam odebate poltico no sculo XVII. Sua vida de oitenta e nove anos, cinqenta deles vividosno Brasil, sendo que quase nove, na Amaznia, um enrodilhado de vrias pontas,

    voltadas a causas a que se empenhou com obsesso, como a defesa de um futuro decongraamento a todos os homens do mundo, sob a gide geral de Cristo e ao comando

    pessoal de um excepcional rei portugus. Pela essncia dessa vontade, de seu senso depaz e justia, Vieira ultrapassou seu tempo, j que o sonho de fraternidade universalcontinua agitando os homens de bem, obstante passados quatrocentos anos donascimento do Jesuta. Idias corajosas nunca antes alimentadas e divulgadas, estaturamental francamente genial, Vieira inconfundvel no trato das palavras que, sob o seucomando, alcanaram estgios de sublimada beleza. Existncia itinerante, andarilha,irrequieta. Testemunha de desmandos e poderes exacerbados, arbitrrios, diante de quefez ecoar sua voz audaz e impetuosa, repleta de paixo e esperana.

    Possivelmente algum haver de pensar que todas as biografias, os retratos, asmemrias, as anlises e interpretaes da imensa obra de Vieira encontram-se jestabelecidos, e esgotadas as iniciativas por entender seus juzos, suas razes e motivaes. certo que, nos mais de trs sculos de sua morte no 18 de junho de 1697, nocessaram de se avolumar os estudos dados compreenso da personalidade complexado missionrio e dissecao de sua vasta e multiforme obra. Desde ali, a bibliografia

    vieiriana se multiplica com a revelao de novas facetas, de novos significados incrustadosnos feixes de sua produo. Desde l novas vertentes exploradoras se flexionam e serenovam, haja vista haver sempre mais uma dimenso no to facilmente percebida noshorizontes lingsticos e de ideao do Padre. Por tratar-se de um fabuloso texto,repleto de sendas, s vezes indivisas, de meandros profusos de fios imbricados edialogantes, quando de um abrao mais ntimo com seu discurso, desdobra-se essamatria em mais planos a devassar e interrogar, como que inesgotavelmente, mais ainda vista de seus sentidos atuais, ou melhor, intemporais.

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    essa intimidade que se cultiva em mais este nmero de Asas da Palavra. Umabrao, no para exumar obrigatoriamente, quatrocentenariamente um escritor, ao intuito deregistrar notas de efemrides, de festejos e aplausos pr-forma. Como se ver, os estudiososque contribuem com este nmero afloram lcidos s pginas e depem, alegria do leitor,anlises e interpretaes que expem, reviram, rediscutem as dobraduras interiores tanto da

    parnese, quanto das cartas, das defesas, dos dilogos, dos papis, assim nomeados, aotempo de Vieira, os escritos prticos, de mais serventia nos ordenamentos institucionais.

    Asas da Palavra - Antnio Vieira se constitui de dezesseis estudos, empenhados ausculta geral dos discursos devoto e profano, ambos vertidos para alm das questesde converso e f. Alis, razes sacras e polticas caminham juntas, montadas eemparelhadas no grande texto de Vieira que alia o cultivo da palavra de Deus ao sonhode transformao poltica.

    Os estudos, agrupados em ordem alfabtica, comeam com a pesquisa daProfessora Adma Muhana- USP, que, da investigao Do processo de Vieira naInquisio imerge nos subterrneos da obra dita proftica do Jesuta, desvelando-aquanto origem, sob o apoio dos autos do processo que a Santa Inquisio moveucontra o Jesuta. um trabalho de grande importncia compreenso das circunstnciasde que derivam os escritos messinicos de um Vieira em nsia por antever um futuro deesperana humanidade.

    Alcir Pcora (UNICAMP), em Para ler Vieira: As trs pontas das analogiasnos Sermes, aciona seu profundo e minucioso saber sobre o discurso vieiriano, para,contrariamente tese de uma obra pautada por idias contraditrias, afirmar o texto doPadre como o conjunto de partes coesas, todas dirigidas elevao de Portugal e dohomem, considerado em sentido geral.

    Aldrin Moura de Figueiredo (UFPA), em Memorabilia Jesuta: Antnio Vieirae a historiografia da Amaznia no sculo XIX, detm-se na anlise do acervo deantigas bibliotecas e no gosto pelo memorialismo, entre os letrados paraenses do fimdo sculo XIX e comeo do XX. Escavando esse veio que o historiador depara, entreoutros pensadores, com Antnio Ladislau Monteiro e Igncio Cerqueira e Silva voltadosopositivamente compreenso das idias de Vieira.

    O professor Alrio Cardozo (UFMA), em O armazm de Deus: a naturezaamaznica segundo Antnio Vieira, prende-se ao texto de Antnio Vieira, com apreocupao de entender a maneira como a percepo do pregador colhe e registra osdados referentes natureza singular e grandiosa do universo amaznico, tais como as

    chuvas, o sistema dos rios, a abundncia de elementos da flora, da fauna e demaisespcies amaznicas, sobre que se prende a ateno e certa escrita de Vieira.

    A palavra divina na surdez do rio Babel o ttulo de minha contribuio (AmarlisTupiass - UNAMA) revista. um trabalho feito com o objetivo de investigar ospropsitos evangelizadores da Misso, centrados na necessidade de os missionriosdominarem as vrias lnguas indgenas no integradas ao tronco tupi, com as quais Vieira,ao chegar Amaznia, se angustia, de vez que, sem a fluncia nesses idiomas, segundo oPadre, de difcultosssimo entendimento, seria certo o fracasso da ao catequizadora.

    O professor Audemaro Taranto Goulart (PUC-MG), no estudo A inteligncia

    dialtica nos sermes de Vieira, examina, com nfase e agudeza as maneiras sob que

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    o raciocnio se apresenta no Sermo pelo Bonsucesso das armas de Portugal contraas da Holanda.

    No ensaioOs tristes, brutos ndios de Vieira, ou um missionrio aturdido, oprofessor Benedito Nunes (UFPA), no obstante destacar, no ttulo de seu estudo, facetas

    no edificantes atribudas pelo Padre aos ndios, disserta, com apoio em textos de umVieira amaznico, sobre um outro Vieira, contrafeito, certo, quanto aos desmando daescravizao do nativo, mas entusiasmado com a inteligncia no modo como o indgenaabsorve os preceitos cristos.

    O professor Geraldo Mrtires Coelho (UFPA), em seu estudo Choques culturaisna Amaznia seiscentista: colonos, padres, ndios e...Antnio Vieira percorre as grandeslinhas da relao entre a lngua portuguesa e as lnguas indgenas na Amaznia como umtodo no correr do sculo XVII, de modo a evidenciar que a busca dos cdigos lingsticosindgenas por parte de diferentes agentes da colonizao mostrar-se-ia como essencialao enraizamento da conquista.

    O docente da UnB, Henryk Siewierski em seu estudo O tempo, como mundona Histria do futuro do PE. Antnio Vieira ocupa-se em - dir-se-ia desfiar a tramaargumentativa que fundamenta as razes profticas de um Vieira, estribado nas Escrituras,para prever a destinao de Portugal cabea do quinto imprio do mundo.

    Sermo, Vieira, Performamce a contribuio de Jerusa Pires Ferreira (PUC- SP) ampliao do conhecimento sobre Antnio Vieira. Seu estudo conduz aosamplos espaos sacros barrocos onde ressoa o verbo ou a teatralizao persuasiva de

    Vieira. Como apoio aos seus argumentos, a professora busca subsdios em Paul Zumthorque define perfomance como o envolvimento mgico entre o orador e o pblico,ambos fascinados, quando a fala ecoa para concretizar os efeitos da oralizao.

    Joo Adolfo Hansen (USP) vem s pginas de Asas da Palavra com o trabalhoPara ler as cartas do Pe.Antnio Vieira (1626-1697) que, pela fundamentao e apuro,, em si, demonstrao de alto apreo obra do Pe. Vieira. Seu estudo, tomada adespretenso do ttulo, o tom humilde, pode no dar idia da profundidade e rigorcomo as cartas so submetidas leitura que, pelo cuidado, mais do que ato de ausculta.

    Assim as cartas so investigadas, sob seus variados aspectos, oferecendo ao leitor basesslidas para sair em busca dessa manifestao vieiriana to multifocal e bela, vertidas,tantas vezes, s questes cruciais da histria de Portugal.

    Jos Varella Pereira (Instituto Histrico e Geogrfico do Par), com Atualidade

    de Antnio Vieira na Amaznia uma controvrsia do sculo XVII para reanimar osculo XXI faz largo apanhado da histria da Amaznia, em cujo centro se situa Vieira,suas idias e sua ao religiosa e poltica. um texto espontneo e solto, movimentadopor um estudioso que ao longo da vida armazenou basto saber sobre a Amaznia de

    Vieira e a Amaznia de agora.

    Mrio Couto Henrique (do Centro de Documentao da Santa Casa deMisericrdia do Par) desdobra sua anlise, em Sem Vieira, nem Pombal, parademonstrar quanto errneo e sujeito a equvocos tomar a palavra colonizao emsentido conclusivamente homogneo. A partir da, atm-se ao estudo das polticascatequticas do sculo XIX, situando-as no contexto da colonizao como ao

    submetida ao Estado, ao contrrio dos empreendimentos catequticos anteriores que

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    gozavam de autonomia de atuao junto aos grupamentos indgenas. Sem Vieira,nem Pombal um estudo que sobressai, alm da escrita clara e espontnea, peladetida anlise de dados histricos.

    Marco Antnio da Costa Camelo, docente da Universidade do Estadodo Par (UEPA), em seu estudo A esttica da criao verbal de Padre Antnio

    Vieira sob a ptica de Bakhtiniana, como o ttulo informa, volta-se aos vastosmetafricos da expresso potico-religiosa do Jesuta, buscando compreend-los com base nos estudos de Bakhtin acerca da retrica e do dialogismo lingstico.

    As cartas ao rei e a Amaznia do Padre Antnio Vieira, estudo de

    Rafael Chambouleyron (Faculdade de Histria da UFPA) pretende, de incio,mostrar como a temtica sobre os motivos que teriam conduzido Vieira

    Amaznia dos Seiscentos ocupou parte das biografias de Vieira. Logo depois,Rafael Chambouleyron conclui pela no importncia dessa temtica, vista arelevncia, a importante, de fato, da forma intensiva como Antnio Vieira refletiu,sobretudo em suas cartas, sobre as tramas e os papis assumidos pelos agentesda colonizao no norte do Brasil.

    Os professores Rosa Assis e Srgio Sapucahy (Universidade da Amaznia- UNAMA), em Encontros com Vieira: uma leitura analtica interdisciplinar,encontram-se, primeiro, a si e a acontecimentos que marcam sua afeio ao

    texto de Antnio Vieira, para contemplar Asas da Palavra com anlises doverbo persuasivo e potico acionado pelo Padre no Sermo pelo bom sucessodas armas de Portugal contra as da Holanda. Os dois textos que compemEncontros com Vieira: uma leitura analtica interdisciplinar tomam como apoiolies de Fiorin e Plato, teorias de Bakhtin, bem como anlises textuais propostaspor Maria Lusa Ramos.

    Com o apoio do Banco Ita, esta edio de Asas da Palavra, emcomemorao aos Quatrocentos anos de nascimento do Pe. Antnio Vieira,contempla o leitor com uma seco Memria constante de dois textosdocumentais: Padre Antnio Vieira e a Igreja de So Joo Batista, de Maria de

    Belm Meneses e Origem da Igreja, do Monsenhor Leal. E, para fechar comselo dourado este nmero da revista de Letras da UNAMA, dispensa-se a palavrafim, porque na ltima pgina inscreve-se Vieiravoz, poema de Paulo Nunes,professor da Universidade da Amaznia.

    Amarlis TupiassP. Conselho Editorial

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    22 CRONOLOGIA

    27 DO PROCESSO DE VIEIRA NA INQUISIOAdma Muhana

    39 PARA LER VIEIRA: AS 3 PONTAS DAS ANALOGIAS NOS SERMES

    Alcir Pcora

    49 MEMORABILIA JESUTA: ANTNIO VIEIRA E AHISTORIOGRAFIA DA AMAZNIA NO SCULO XIX

    Aldrin Moura de Figueiredo66 O ARMAZM DE DEUS: A NATUREZA AMAZNICA SEGUNDO ANTONIO VIEIRA .

    Alrio Cardozo

    77 A PALAVRA DIVINA NA SURDEZ DO RIO BABELAmarilis Tupiass

    107 A INTELIGNCIA DIALTICA NOS SERMES DE VIEIRAAudemaro Taranto Goulart

    131 OS TRISTES, BRUTOS NDIOS DE VIEIRA,OU UM MISSIONRIO ATURDIDOBenedito Nunes

    139 CHOQUES CULTURAIS NA AMAZNIA SEISCENTISTA:COLONOS, PADRES, NDIOS E... ANTNIO VIEIRAGeraldo Mrtires Coelho

    152 O TEMPO, COM O MUNDO NA HISTRIA DO FUTURO

    DO PE. ANTNIO VIEIRAHenryk Siewierki

    160 SERMO, VIEIRA, PERFORMANCEJerusa Pires Ferreira

    171 PARA LER AS CARTAS DO PE. ANTNIO VIEIRA (1626-1697)Joo Adolfo Hansen

    193 ATUALIDADE DE ANTNIO VIEIRA NA AMAZNIA - UMA CONTROVRSIA DO SCULO XVI PARA REANIMAR O SCULO XXI

    Jos Varella Pereira

    Sumrio

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    Antnio VieiraCronologia

    1608 Nasce a 6 de Fevereiro em Lisboa, na freguesia da S, Antnio Vieira, filhoprimognito de Cristvo Vieira Ravasco e de Maria de Azevedo.

    1614 Desembarca com a famlia em Salvador da Bahia, onde freqentar as aulas doColgio dos Jesutas.

    1623 Aos 15 anos de idade, ingressa no noviciado da Companhia de Jesus e passa aresidir na Aldeia do Esprito Santo (hoje, Vila de Abrantes).

    1624 Em maio, as foras holandesas ocupam a Cidade do Salvador.1626 Com 18 anos de idade, o novio Antnio Vieira encarregado de redigir a

    Carta Annua ao Geral dos Jesutas, relatrio anual da Companhia de Jesus noBrasil. Constitui o seu primeiro escrito conhecido.

    1627 Transfere -se para o Colgio dos jesutas de Olinda, onde passa a ministraraulas de Retrica.

    1633 Prega o primeiro sermo pblico, na Igreja de Nossa Senhora da Conceio daPraia, em Salvador.

    1634 ordenado sacerdote, a 10 de dezembro, celebrando a 13 do mesmo ms asua primeira missa.

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    1638 nomeado Lente em Teologia.1640 Prega oSermo Pelo BomSucesso das Armas dePortugal,

    contra as da Holanda, na Igreja de Nossa Senhora daAjuda, em Salvador.

    1641 Vieira viaja para Lisboa, onde residir at 1646.1642-1644 Prega pela primeira vez na Capela Real,

    em Lisboa, oSermo dos Bons Anos. Em ateno aobrilhantismo das suas prdicas recebe, em 1644, ottulo de Pregador de Sua Majestade e alguns dosseus sermes so publicados separadamente. ,igualmente, nomeado Tribuno da Restaurao.

    1645 Prega o Sermo do Mandato, na Capela Real, emLisboa.

    1646-1652 Profisso solene na Igreja de So Roque, emLisboa. Pregador e conselheiro de D. Joo IV, poreste enviado como embaixador em diversas missesdiplomticas Holanda e Frana, negociandoPernambuco, a paz europia, o financiamento daguerra contra Castela e a futura Companhia Comercialdo Brasil. o perodo de grande atividadediplomtica e poltica de Vieira, que se desloca por

    grande parte da Europa, representando e defendendoos interesses portugueses. Faz, ainda, parte daembaixada portuguesa nas negociaes da Paz deMnster, cujo objetivo era pr fim Guerra dosTrinta Anos. Em Ruan e Amsterdan encontra-se enegocia com representantes da comunidade judaicaportuguesa a refugiada, o que lhe valeria, desde ento,a hostilidade do Santo Ofcio.

    1652 Em novembro parte de volta ao Brasil, a fim dese dedicar s misses junto dos ndios do Par e doMaranho, dos quais assumir corajosamente a

    defesa, contra os interesses escravagistas doscolonos.

    1654 Prega oSermo deSanto Antonio aos Peixes, na vsperade embarcar para Lisboa, onde, em breve visita,pedir providncias favorveis aos ndios e smisses jesutas no Maranho.

    1655 Antes de retornar s misses do Maranho, em abril,prega na Capela Real, em Lisboa, durante aQuaresma: abre com oSermo da Sexagsimae fechacom oSermo do BomLadro.

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    1657 Prega oSermo do Esprito Santo, no Maranho.1659 Visita cinco aldeias da etnia Nheengaba. No regresso a Belm do Par,

    encontrando-se doente em Camut, redige o seu primeiro tratado futurolgicoEsperanas dePortugal, V Imprio do Mundo.

    1661 Em resultado do seu combate escravido dos ndios, Vieira e os seuscompanheiros jesutas so expulsos do Maranho e embarcados para Lisboa.

    1662 Prega o importanteSermo da Epifaniadiante da rainha-regente.1663-1667 desterrado para Coimbra e comeam os interrogatrios da

    Inquisio, que o persegue devido s suas idias milenaristas e messinicasinspiradas no profetismo do Bandarra (Quinto Imprio) e, tambm, porcausa das suas alegadas simpatias pela gente de nao, os judeus. Em 1666, aInquisio ordena que seja retirado da cela de religioso, a que estava confinado,e colocado em crcere de custdia. Apesar de praticamente desprovido delivros para consultas, redige duas Representaes da defesa e, em segredo,parte do livro Histria do Futuro e da Apologia. Em 1667 proferida asentena: ...seja privado para sempreda voz ativa epassiva edo poder depregar....

    1668 anistiado a 12 de junho.

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    1669 Prega o Sermo do Cego, na Capela Real, emLisboa. Parte para Roma em busca de revisoda sua sentena, onde permanece seis anos,pregando, em italiano, aos cardeais da Criaromana e exilada rainha Cristina da Sucia.

    1675 Regressa a Lisboa munido de umBrevedo PapaClemente X, isentando-o por toda a vida dequalquer

    jurisdio, poder eautoridadedos inquisidores presentes efuturos dePortugal, mas permanecendo sujeito autoridade da Cria romana.

    1679 Declina o convite da rainha Cristina da Suciapara ser seu confessor.

    1681 Regressa Bahia, em Janeiro, e passa a residir naQuinta do Tanque, casa de campo do Colgiodos Jesutas, onde prepara a publicao dos seusSermese redige aClavis Prophetarum.

    1686 Vieira um dos poucos a no ser afetado pelaepidemia de mal da bicha (febre amarela).Devido a essa calamidade, a Cmara de Salvadorfaz votos a So Francisco Xavier, proclamando-o Padroeiro da Cidade do Salvador, em 10 demaio.

    1688 nomeado Visitador-Geral da Provncia doBrasil (at 1691).

    1690 Promove a Misso entre os ndios Cariris daBahia, financiando-a com o lucro da venda dos

    seus livros.1694 Emite parecer a favor da liberdade dos ndios,contra as administraes particulares em SoPaulo.

    1695 Envia carta-circular de despedida nobreza dePortugal e amigos, por no poder escrever atodos.

    1696 transferido da Quinta do Tanque para oColgio dos jesutas, no Terreiro de Jesus.

    1697 Termina a reviso do tomo XII dos Sermes;dita a sua ltima carta ao Geral da Companhia

    de Jesus, Tirso Gonzalez, a 12 de julho. Morre a18 de Julho, no Colgio, aos 89 anos. Os ofciosfnebres realizam-se na Igreja da S, oficiadospelos Cnegos. sepultado na Igreja doColgio.

    Fonte: OCEANOS 30/31Editada pela Comisso Nacional paraas Comemoraes dos DescobrimentosPortugueses. Abril/ setembro 1997.

    Lisboa. Portugal.

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    Do Processo deVieira na Inquisio

    Adm a M uhana - U SP

    Em julho de 1663, quando se iniciam os interrogatrios na mesa do Inqui-sio de Coimbra, Vieira no tem qualquer obra proftico-especulativa ou messi-nica. No tinha ordenado para impresso os sermes, e somente cartas, propostase pareceres constituam dispersivamente sua obra escrita. Em suma, at ento fora

    orador, pregador rgio, diplomata, professor e missionrio; mas parte escritospolticos, toda a atuao de Vieira era oratria.

    Pretendo aqui reunir alguns aspectos da composio dessa obra dita profti-ca de Vieira tomando por base seu processo no Santo Ofcio, partindo do pressupos-to de que o conjunto da produo escrita de Vieira est diretamente vinculado a suaatuao oratria que poltica e catequtica. Gostaria, porm, de entender esta

    vinculao como de homologia nunca de transposio. No caso dos sermes, porexemplo: a existncia de verses escritas anteriores edioprinceps, que apresentamdiferenas significativas em relao verso final reescrita por Vieira, tem levadoestudiosos a considerar tais verses como mais prximas daquilo que teria sido pro-

    ferido verbalmente no plpito: ora, tanto as verses anteriores princeps, como esta,so transposies para o registro escrito, que selecionam da fala aquilo que julgamsignificativo. Se as verses anteriores apresentam nomes ou passagens omitidas naeditio princepse esta, por sua vez, apresenta argumentos que no constam das verses,entendo que tal se deve ao efeito de sentido que os que transcreveram as falas preten-deram lhes ser o adequado. No caso da edio preparada por Vieira, verificamos queleva em conta as figuras discursivas que, na ausncia daactio, conformam o sentido doseu sermo, como obra, j no ouvida, mas lida; no caso das demais transcries, atquase taquigrficas que fossem, devemos ter presente que outras figuras de palavraspreenchem aquilo que, na pregao, era entendido por meio de figuras de oralidade,

    expressas naactio

    e napronuntiatio

    .

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    Algo de semelhante ocorre com os autos do processo, em que a transcrio decada sesso inquisitorial promove uma uniformidade que visa excluir tudo o que possafugir razo da letra. Ao inscrever sempre a data, o local, o juramento, o apelo confisso, o exame propriamente dito, a admoestao final, o testemunho de fidelida-de da redao, as assinaturas dos participantes sobre a letra, assim petrificada, que o

    Santo Ofcio configura a verdade do acontecimento. Cada exame contido numaseqncia invarivel de perguntas e respostas, que elimina silncios, hesitaes, e tudo omais que torne instvel ou indeterminado o sentido do que proferido. O aspectodramtico da situao inquisitorial suprimido ao mximo, para que dela reste apenasuma leitura, em que palavras ditas como opinies ou dvidas apaream como afirma-es passveis de julgamento.

    Confrontado com isto, Vieira insiste inmeras vezes que, como resposta ao queno lhe permitido dizer verbalmente, escreve sua defesa e apologia as quais, destamaneira, passam a compor sua chamada obra proftica. Mas nela mantm incessante-mente as marcas de oralidade e figuras cujo efeito visado uma ao imediatamente

    persuasiva sobre os interlocutores. neste sentido que entendo a interpenetrao dettulos, de datas e de destinatrios, que tem confundido os mais atentos comentadores,e que faz de todos os seus livros um s livro, ou livro nenhum. Porque, exceto norecorte de ttulos que lhes deram seus editores (entre os quais, feliz ou infelizmente, meincluo) esses diversos livros, que hoje consideramos sua obra proftica, no so livrosmas pensamentos ou desejos de livros isto se quisermos, e julgo que o devemos,ler o que diz Vieira. Ele no se diz autor, daquilo que diz no serem livros. Todos socartas e defesas, sem exceo (talvez) daClavis Prophetarum.

    As demais, em ordem cronolgica, so: a Carta Esperanas de Portugal (1659),aHistria do futuroe aApologia das coisas profetizadas(indistinguveis, escritas simultanea-

    mente entre 1663 e 1664), oLivro Anteprimeiro da Histria do futuro(finais de 1664-1665)aDefesa peranteo Tribunal do Santo Ofcio(outubro de 1665-junho de 1666), e oMemorial(editado indevidamente com o nome deDefesa do livro intitulado Quinto Imprio, de 1667),ltimo documento do seu processo inquisitorial, e finalmente aCarta Apologtica, ao Pe.

    Jcome Iquazafigo (abril de 1686). Todos elas resistem a uma interpretao literriatanto quanto filosfica ou teolgica, na medida em que a dialtica oratria imprime aesses textos um carter sempre movente e fracassado em seu sentido, na ausncia daactioque os organiza. Estaactio que a Inquisio nega, precisamente, em prol de umaescrita sobre a qual possa julgar um fechamento de sentido. Pois se quisermos interpre-tar os textos relacionados ao processo de Vieira na Inquisio tomando por base ape-nas um confronto de pensamentos unvocos, veremos (com inteira propriedade, alis)o que vislumbraram Lcio de Azevedo, H. Cidade, J. van den Besselaar, e o demons-trou A. Pcora: uma disputa, concomitantemente poltico-retrico-teolgica, acerca daprofecia de um reino de Cristo na Terra, denominado por Vieira Quinto Imprio noo que a Inquisio considera contrria aos dogmas da Igreja. O que eu acrescenta-ria que esta noo s se constituiu ao longo do processo de Vieira e no ser propri-amente uma noo, mas uma atuao.

    possvel identificar com nitidez quatro momentos do processo de Vieira: oprimeiro, de abril de 1660 a julho de 1663, quando o Conselho Geral do Santo Ofcio emLisboa toma conhecimento da Carta Esperanas de Portugal e a manda qualificar emRoma, obtendo da Congregao nove censuras a proposies da Carta; nesse perodo

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    (em abril de 1663) recebe tambm a denncia de Fr. Jorge de Carvalho, qualificador doSanto Ofcio, segundo a qual ouvira Vieira dizer ter composto em sua idia um livrointitulado Clavis prophetarum, no qual pretendia escrever que o mundo iria ter um novoestado de paz, no qual todas as naes gentias, bem como os judeus, inclusive os dastribos perdidas, se converteriam f de Cristo; este estado mais perfeito, em que a Igreja

    estaria estendida por todo o mundo, perduraria por mil anos, at a vinda do Anticristo eo Juzo final.1O segundo perodo vai de julho de 1663 a fevereiro de 1664, em queocorrem os nove primeiros interrogatrios na Mesa do Santo Ofcio em Coimbra, nosquais argem-no acerca da Carta (exames 1-6) e da denncia de Fr. Jorge de Carvalho(exames 1-2, 7-9). O terceiro perodo decorre entre abril de 1664 em que Vieira autorizado a redigir uma defesa, tendo em vista suas enfermidades e setembro de 1665,quando obrigado a entregar todos os papis que escrevera at ento: esses papis so osque constituiro aHistria do futuroe aApologia das coisas profetizadas. Indignado com aapreenso dos papis que iriam lhe servir como defesa, Vieira faz uma petio ao Conse-lho Geral de Lisboa para que a Inquisio de Coimbra os devolva. Aqui se inicia o quartoe ltimo perodo, em outubro de 1665 quando, em resposta sua Petio, o ConselhoGeral ordena Inquisio de Coimbra que o retenha num dos crceres de custdia; a,

    Vieira mantido at a sentena final, em dezembro de 1667. Neste perodo, encarcerado,redige a chamadaDefesa peranteo Tribunal do SantoOfcio(at julho de 1666), submetido segunda srie de 21 exames (outubro de 1666 a agosto de 1667) e, ao seu trmino,compe umMemorial, antes de lhe ser dada a sentena.

    Assim, no princpio do processo (em 1661) h apenas um campo indefinido deopinies expostas na carta de Vieira ao bispo eleito do Japo, D. Andr Fernandes,tambm missionrio jesuta, as quais opinies somenteapsa instaurao do processose tornam proposies, quero dizer, objeto de disputatio: a ele no preexistem como

    verdadeiras ou falsas, herticas ou dogmticas, afirmaes ou negaes: so opiniesvagas, afeies, como diz um dos qualificadores do Santo Ofcio.

    Embora a CartaEsperanas de Portugal, escrita em 1659, seja o pretexto para ainstaurao do processo, sabemos todavia muito pouco sobre as circunstncias da suaredao para considerarmos esclarecida a sua interpretao. Causa impresso a opor-tunidade de Vieira t-la escrito em 1659, isto , trs anos aps a morte do Rei e seisanos aps seu regresso ao Brasil, durante os quais se dedicara inteiramente missiona-rizao dos ndios. Ento, o que parece pouco claro so os motivos que Vieira teriapara escrever esta carta tantos anos aps a morte do rei e quando, isolado nos sertesamaznicos, o livro do Bandarra j no parecia ter qualquer importncia para o estadodo reino portugus e sua poltica imperialista fatores que, antes e durante os primei-ros tempos da Restaurao, haviam propiciado a sua difuso e autoridade.

    Devemos voltar aos anos 40, quando logo aps sua chegada a Portugal, paraprestar obedincia em nome da provncia do Brasil ao novo rei D. Joo IV, Vieiraredige uma srie de escritos polticos em favor dos cristos-novos, bem como, maistarde, em favor dos ndios: personagens recorrentes na totalidade dos seus escritosproftico-especulativos. Em ambos os casos, deve-se notar, Vieira no defende nem aliberdade civil dos ndios, nem a liberdade da crena judaica: em ambos os casos, o quedefende que a indiscriminada violncia da Inquisio, num caso, e a dos colonos, nooutro, impedem que judeus e ndios se convertam ao cristianismo e que aceitem porconseguinte a lei e a ordem do imprio portugus. (Digo isto para lembrar que Vieira

    1 No 2 exame (setembro de1663), Vieira responde: depresente e ainda de dezanos a esta parte em que co-meou a aplicar-se s mis-ses do Maranho no com-ps nem compe papel oulivro algum, e somente deordem de seus superioresquando tinha lugar para isso,

    tratava de limpar alguns dosseus sermes para os dar impresso. Mas que antes dodito tempo, de dezoito anosa esta parte, andava estudan-do, e compondo um livro,que determina intitular Cla-vis Prophetarum cujo princi-pal assunto, e matria ,mostrar por algumas propo-sies, com lugares da Es-critura, e Santos, que na Igre-ja de Deus h de haver umnovo estado diferente doque at agora tem havido,

    em que todas as naes doMundo ho de crer em Cris-to Senhor nosso, e abraarnossa Santa F Catlica; e queh de ser to copiosa a graade Deus, que todos ou qua-se todos, os que ento vive-rem, se ho de salvar, parase perfazer o nmero dospredestinados, in A. MUHA-NA, Os autos do processodeV iei-ra na Inquisio(So Paulo,Ed. Unesp; Fundao Cul-tural do Estado da Bahia,1995), p.55-6.

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    judaicas e testamentrias, quer de autoridades crists e pags, para demonstrar queas tribos perdidas ainda existem, ocultas, no mundo o que era opinio no exclu-siva dos dois autores, mas professadas por muitos, como por exemplo GregrioGarcia, no seu livroOrigen delos indios deel Nuevo Mundo eIndias Occidentales, de 1607.Sendo a afirmao do reaparecimento das dez tribos perdidas de Israel a ltima

    das nove proposies da CartaEsperanas dePortugalcensurada pelos qualificadoresdo Santo Ofcio de Roma, esta uma das quais Vieira justificar em vrias ocasi-es.6As divergncias entre ambos os autores no que diz respeito f, entretanto, semantm: segundo Vieira, inultrapassvel era o fato de esses judeus (poder averoutros que tenho differente seita)7no crerem no dogma da Santssima Trindadee no terem o Messias por Filho de Deus o que so crenas incompatveis com af crist. As convergncias entre Vieira e Ben-Israel teriam sido outras: assinaloapenas a falta de ortodoxia de Ben-Israel, que em sua interpretao vtero-testa-mentria adota tanto Padres e Doutores da Igreja catlica como filsofos gregos elatinos, como o faz Vieira, adotando tambm autores hebreus, aos quais forneceautoridade; e a crena comum de que a descoberta do Novo Mundo anncio deum novo tempo tanto para a nao judaica, como para o mundo todo.8

    Ou seja, todas noes plenamente coincidentes com a f catlica, das quais Viei-ra no precisaria ser convencido para t-las por legtimas. possvel que, naquele anode 1649, quando se publica o livro de MenasssEsperana deIsrael, Vieira tenha preten-dido continuar a controvrsia de ambos por escrito, mas nada indica que tal controvr-sia portasse o ttulo deHistria do futuro, ou configurasse a obra que conhecemos poreste nome: o que se esquece que em nenhuma pgina dos seus manuscritos seqestra-dos pela Inquisio esse ttulo aparea.

    Quando ento escreve, dez anos mais tarde, a Carta Esperanas de Portugal, que

    tem por subttulo Quinto Imprio do Mundo, primeira e segunda vida del-Rei D.Joo IV,9a tese de que o Bandarra verdadeiro profeta e de que profetizou a ressur-reio de el-rei D. Joo IV por ser o rei portugus escolhido por Deus para destruiros turcos e efetuar a unio entre cristos, gentios e judeus aparece deslocada se nolevarmos em conta as circunstncias em que foi escrita. Segundo se depreende dacorrespondncia de Vieira nesta poca rainha D. Lusa de Gusmo e ao seu confessorD. Andr Fernandes, uma primeira verso da Carta ter sido enviada do Maranho emabril de 1659 para ser entregue rainha (cuja regncia estava a ser contestada fortemen-te pelos aliados do prncipe D. Afonso VI) como remdio passvel de fornecerauxlio ao desempenho de suas aes, notadamente seu apoio Companhia de Jesus namissionarizao dos ndios e a guerra contra Castela. Tal remdio no tendo sido acei-to, a carta permaneceu sem efeito at novembro do mesmo ano quando, com o agra-

    vamento da situao de regncia da rainha, Vieira envia-lhe uma nova verso.10Aomesmo tempo, remete outra carta, a ser entregue ao rei D. Afonso VI, em que relata amisso aos ndios nnhengabas, exaltando as conquistas f que a Companhia de Jesuse ele, Vieira, em particular, tinham obtido, recuperando para a coroa portuguesa terrasque estavam perdidas devido aliana dos indgenas com os holandeses protestantes.Ou seja, demonstrando ao rei que sua proteo catequizao feita pelos jesutas re-dundava em proteo da prpria Coroa. Embora esta carta tenha sido publicada logono ano seguinte,11sabemos que a Esperanas de Portugal que ter publicidade, pelacontestao que o Santo Ofcio lhe fez. Com efeito, em 1661, mandara-a qualificar em

    6 Tendo se referido ao assuntona Carta Esperanas de Por-tugal (inObrasescolhidas, op.cit.,VI, p.28-36), Vieira interroga-do sobre o mesmo no 6 exa-me, em janeiro de 1664 (inOsautos doprocessodeVieira naInquisio, op.cit., p.79-81) e no19 exame, em dezembro de1666. Discute-o naApologia dascoisas profetizadas(ed. A. MUHA-NA, Lisboa, Cotovia, 1994,p.137-76) e na questo 21 da

    Representao Segunda daDefesa peranteoTribunal doSantoOfcio(op.cit., II, p.107-45). Des-ses escritos os inquisidoresretiram as proposies cen-suradas de nmero 9, 36-38,82 e 91 (inOsautosdoprocessodeVieira na Inquisio, op.cit.,p.409-30).

    7 Defesa peranteoTribunal do San-to Ofcio, op.cit., II, p.147.

    8 Noes disseminadas nasobras de Menasss ben-Isra-el Conciliador(em quatro par-tes, 1632-51),Dela resurreccindelos muertos(1636),Dela fra-gilidadhumana(1642) ePiedra

    gloriosa odela estatua deNebu-chadnesar(1655).

    9 Atento apenas para o fato deque embora a Carta tenha porsubttulo Quinto Impriodo Mundo, no h menoao mesmo em toda ela ttu-lo que entretanto a primei-ra das cem proposies cen-suradas pela Inquisio. Asrespostas que Vieira d quan-do inquirido pela primeiravez a esse respeito (no 3exame, em outubro de 1663)so hesitantes e evasivas. Cf.Os autos doprocessodeVieira na

    Inquisio, op.cit., p.62-4.10Cf. cartas CCCeCCCI, de 29 deabril e 28 de novembro de1659, respectivamente, inCartas(ed. Lcio de Azeve-do, Lisboa, Imprensa Nacio-nal, 1977), v.3, p.741-44.

    11CartaLXXXVIde 28 de novem-bro de 1659, impressa emfolheto com o ttulo Copiadehuma carta para ELRey N.Senhor, sobreas misses doSear,do Maranham, doPar & gran-derio das Almasonas. Lisboa,of. de Henrique Valente deOliveira, 1660. Ver Cartas,op.cit., v.1, p.528-48.

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    Roma, com a falsa notcia de que seu assunto (asTrovasde Bandarra) estava h muitoproibido pela Inquisio portuguesa, e obtm deste modo nove censuras sobre asquais instaura o processo contra Vieira. Ou seja, a Carta pode ter sido escrita sobretudocomo um meio poltico para sustentar a rainha no trono e apoi-la contra os detratoresda Companhia de Jesus; todavia o processo no Santo Ofcio obrigou Vieira a justific-

    la teologicamente e armar assim seu edifcio proftico.

    Sem negar ter escrito a Carta, num primeiro momento Vieira nega que o come-tido fosse de qualquer maneira censurvel. Declara que as censuras inquisitoriais porta-

    vam sobre um sentido das proposies diverso do que proferiu, e que, portanto, asproposies de que ele mesmo era autor, em seu sentido prprio, ainda no haviamsido julgadas; estas, provar que eram lcitas, e lcito que, numa controvrsia privada,com o confessor da rainha, as houvesse escrito. por este motivo que, afirmandoaceitar quaisquer censuras e qualificaes que no futuro se fizessem a suas proposies,no sentido em que foram escritas, Vieira requer que lhe seja permitido defender-se,expondo o verdadeiro sentido das mesmas e as autoridades da f em que se fundava.

    Ora, mas alm da Carta, dissemos que na origem dos interrogatrios est tam-bm a denncia do Fr. Jorge de Carvalho acerca de um livro que Vieira teria ditopretendia escrever: aClavis Prophetarum. Aqui, a acusao concerne a algo um evento,uma ao, um objeto que no tem existncia. No se trata, como na Carta, de umfato cuja veracidade, significao ou inteno no se pode provar (a afirmao quealgum nega ter dito, ou aquela cujo sentido ambguo). Trata-se de algo inexistente:desejos, idia ou pensamento de livros, como nomeia Vieira, repetidas vezes.Insistindo neste argumento que ele ergue a sua defesa: diz que, embora o livro de quelhe argem o significado no exista, nem nunca tenha existido, obedecendo s pergun-tas que lhe fazem, escrever o que nele constaria se o tivesse escrito. Ou seja: Vieira exige

    que a Inquisio, conforme seus prprios enunciados, interrogue-o apenas sobre sehavia ou no uma vontade hertica no livro que pensara em escrever. A esta suspeita,ento, Vieira responde pela prpria composio do pretenso livro: exige o direito deescrever o livro que teria escrito para que a Inquisio possa julgar se nele haveriaalguma afirmao contrria f. Por meio desse edifcio dialtico Vieira se outorga odireito de legitimamente o escrever, na medida em que o dota do estatuto de respostas questes que a Inquisio lhe faz. Em suma, tal livro no escrito, acerca do qual acusado, sua prpria defesa.

    Esta a origem daHistria do futuro, cuja redao no menos envolta emdiscusses. O ponto principal reside em que na segunda pgina do livro que foi editado

    comoHistria do futurol-se riscada a data de 1649, substituda por 1664 o que apresentado como prova de que, desde aquele encontro com Menasss ben-Israel em

    Amsterd, Vieira perseguiu a idia messinico-judaica do Quinto Imprio. Todavia,examinando com ateno os manuscritos depositados no processo inquisitorial de Vi-eira, verificamos que pretender um contnuo das idias messinicas de Vieira desde1649 at o seu processo e, mais alm, at o fim da sua vida uma fico, produzidaexatamente pelo estilo processual do Santo Ofcio, a qual Vieira no se cansa de refutar.O que quero dizer que, por um lado, todo o esforo inquisitorial consiste em dotar aspalavras da Carta Esperanas de Portugal de historicidade, unidade e coerncia, pormeio das quais constituam-nas como errneas e, quele que as pronunciou, comoautor,responsvel, dissimulado e, como tal, culpvel. Vieira, por seu lado, esfora-se por

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    demonstrar que essa substancializao de seus pensamentos um falseamento porqueno os disse como soam; e redige seus esboos de defesas justamente no sentido dedot-los de uma qualidade, outra, nunca idntica a si mesma sempre mudando epassando de uma defesa para outra, sempre variando as interpretaes possveis.

    Conforme os autos, desde o segundo exame (setembro de 1663) Vieira esquiva-sede responder verbalmente e pede para escrever uma defesa em que possa justificar, demodo fundamentado, o que escreveu na Carta e o que pensara escrever naClavis. Estesdois objetos de acusao refletem-se claramente em todos os escritos seus que foramarquivados pela Inquisio. Os primeiros, como dissemos, foram os papis que hojeconstituem aApologia das coisas profetizadase aHistria dofuturo, e cujos originais lhe foramarrebatados pelo Santo Ofcio. Nesses textos, Vieira se refere ao que escreve seja comoapologia (e que por isso editei com o ttulo deApologia das coisas profetizadas, a partir dosubttulo de uma das sees), seja como histria. H partes denominadas conseqn-cias, e partes denominadas captulos; os textos iniciais tratam de justificar a afirmaoque Bandarra foi profeta, e os subseqentes comentam a durao do mundo, a seita dos

    milenrios, etc. Algumas dessas partes foram publicadas por Lcio de Azevedo em 1918 e, a partir dessa edio, receberam o ttulo deHistria dofuturo. Todavia, so uma poromenor daquilo que Vieira escreveu como rascunho de sua defesa, hesitante entre escreveruma defesa dirigida apenas aos inquisidores (que seria suaapologia) e escrever uma espciedehistria(que seria suaClavis prophetarum), em que realizasse aquele livro que s tinhacomposto em sua idia e que as circunstncias de sua vida de diplomata e de mission-rio no lhe haviam dado oportunidade para redigir.

    Antes de seu encarceramento, em 1664, numa das cartas a D. Rodrigo de Mene-ses, assduo correspondente seu desde 1662 at 1674, quando o nobre falece, Vieirachega a afirmar que nunca teve seu desterro em Coimbra por gal e que: se no fora

    to sujeito s inclemncias do tempo, o tivera por paraso na terra. Se aquela obrachegar a merecer este nome [de obra], ser uma grande prova, e pode ser que admir-

    vel, disto que digo [o paraso na terra].12Tambm numa passagem doLivro anteprimei-ro da Histria do futuro, afirma que, com alguma violncia, Deus obrou sobre ele paraque se dedicasse quela escritura. Em suma, Vieira possivelmente retomou aquela pgi-na escrita em 1649, e talvez mais algumas (que talvez nunca saibamos quais), para queconstitussem o papel da sua defesa. Mas ao mesmo tempo esta defesa se acopla aolivro que um dia planejara escrever, aClavis Prophetarum, e que escreve neste momentopor ser instado a isso, pela prpria Inquisio. O ttuloHistria do futuro diz na Petioao Conselho Geral j referida , foi inventado nessa ocasio para que pudesse se valerde algum amanuense que, sem entender que se tratava de uma defesa, o auxiliasse naescritura (tendo em vista sua notria enfermidade e o segredo que era obrigado amanter acerca de estar sendo processado pela Inquisio).13

    Quanto ao que nele estaria escrito, nesses anos de 1663 a princpios de 1665,Vieira ainda no sabe14 e isto est plenamente de acordo com o assunto do livro, qualseja, a profecia como linguagem alegrica, que necessita das ocorrncias no tempo elugar para ser interpretada. Neste sentido, a prpria redao daHistria do futuro dadapor Vieira como possvel por estar em conformidade e oportunidade com o momen-to presente (kairs). Nas cartas desse perodo, ele se diz muitas vezes surpreso com oque vai escrevendo,15pede opinies de argumentos contrrios e notcias sobre os avan-os e derrotas dos turcos para poder interpretar a Histria, e escrever a sua Histria.

    12Carta a D. Rodrigo de Mene-

    ses, 3 de maro de 1664.13Entendo literalmente a justi-ficativa que Vieira fornecepara essas suas obras na Peti-o ao Conselho Geral doSanto Ofcio, de 21 de se-tembro de 1665: para abre-viar as ditas matrias, reco-nhecendo a imensidade de-las, buscou traa, mtodo edisposio com que as me-ter todas em um s discur-so que intitula Histria doFuturo, que vem a ser umcomo compndio de todasas proposies que deveprovar ... E tambm tomouo disfarce do dito ttulo paradebaixo dele se poder aju-dar de alguma pessoa queescrevesse sem entender ointento da dita escritura nemviolar o segredo que lhe foiimposto, i nOs autos do pro-cesso deVieira na Inquisio,op.cit., p.122. Sendo assim,no se trata de um erro docopista, como julgou L-cio de Azevedo, o fato de oProjeto daHistria doFutu-ro, escrito por Vieira entre1663 e 64, terminar com aspalavras: Estes so os livros

    e questes de que consta olivro intitulado Clavis Prophe-tarum.

    14As profecias do Abade Joa-quim no vieram ainda. Osanagramas, e tudo o maisdeste gnero, estimarei; ecerto que grande a morti-ficao com que mevejo ata-lhado, porque ia a obra devento em popa, e cada vez sedescobriammaiores, emais firmesesperanas. Carta a D. Rodri-go de Meneses, 23 de junhode 1664 (grifos meus).

    15 Carta a D. Rodrigo de Mene-ses, 19 de maio de 1664.

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    De novo, aHistria do futuros existe como prova e defesa do livro que no existe.Vezes sem conta Vieira clama aos inquisidores que depois de os ditos seus livros (oupensamentos de livros) e os assuntos e proposies de que haviam de constar, seremassim argidos, e censurados, fica mais dilatada a matria e prova deles, do que se comefeito os tivesse escrito ou composto16. comum considerar tais protestos como

    dissimulaes de Vieira, alheias no fundo prpria causa. Mas entendo que Vieirainsiste em que a matria catica do princpio do processo vai se distinguindo apenas medida que dela fala e que, esta matria, sendo proftica, no tem um significado fixo,sendo sempre sua linguagem figurada estilo prprio da Providncia divina. Da asemelhana entre a linguagem figurada e a profecia: tanto uma como outra so esclare-cidas no pela referncia (que no est dadaa priori, jamais), mas pela relao quemantm com suas semelhantes num conjunto de enunciados, no momento certo dainterpretao. neste sentido que seus textos podem designar como rei do QuintoImprio o monarca D. Joo IV, ou D. Afonso VI, ou D. Pedro II; que possa conside-rar que Deus pretendeu primeiro a converso dos judeus e depois reconsiderar que osgentios sero os primeiros convertidos; que no defende o que diz, mas que diz o quedefendeu, etc. Porque a nica coisa fixa nesse arcabouo proftico-especulativo de

    Vieira a certeza de haver um Juzo final, e antes dele um Anticristo, e antes ainda umaera crist de paz universal. Em sua viso escatolgica da histria humana como sujeita Providncia divina, apenas o fim conhecido: do presente at seu trmino, ahistria do

    futuroh de ser escrita pelos homens.

    aqui que podemos inserir um outro escrito de Vieira, o chamadoLivroanteprimeiro da Histria do futuro, enviado quele seu amigo D. Rodrigo de Menesesem algum momento de 1665, como um retalho da obra para ser apresentado Corte de Lisboa. semelhana da Carta, tambm oLivro anteprimeiroao ser publi-cado traz por subttulo: Quinto Imprio do Mundo, Esperanas de Portugal, emque se declara o fim e se provam os fundamentos dela. Mas como deste nopossumos original autgrafo, tambm no o podemos afirmar como tendo sidodado por Vieira. Em breves palavras, o livro trata da insero da guerra de Espa-nha contra o reino portugus na histria universal e da presena da gentilidade,convertida ou a se converter pelos missionrios portugueses, nos livros profticosda Bblia. O tom exaltado e urgente deste livro mostra que, no momento em que oredige, Vieira est plenamente convencido de que a Inquisio atua como um ins-trumento enviesado da Providncia para efetu-lo como intrprete, redator e rea-lizador da histria do futuro, isto , o Quinto Imprio.

    nesta altura, em setembro de 1665, que o Conselho Geral expede ordempara a Inquisio de Coimbra dar o assento final ao processo, sem mais delongas.(Talvez, at, motivado pelo conhecimento desteLivro anteprimeiroem Lisboa.) Osinquisidores de Coimbra exigem a Vieira que entregue sua defesa no estado em quese encontre e arquiva-a nos autos. Como dissemos, Vieira requer ao ConselhoGeral a devoluo dos seus papis, em termos impositivos, e a reao do Conse-lho ordenar que seja ele retido num dos crceres de cstdia da Inquisio deCoimbra, sem dispor de livros, exceto a Bblia e um brevirio.

    A, Vieira redige a chamadaDefesa peranteo Tribunal do Santo Ofcio, cujottulo tambm no lhe pertence, tendo sido dado por seu editor, Hernni Cidade,em 1957. Vieira fornece-lhe um ttulo geral (Representao dos motivos que tive

    16 "Petio ao Conselho Ge-ral, in Os autos doprocessodeVieira na Inquisio, op.cit.,p.119.

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    para me parecerem provveis as proposies de que se trata), e dois subttulosrelativos a cada uma das partes, que configuram o gnero jurdico em que se insere.Essas partes revelam a mesma duplicidade de matrias que encontramos naApolo-giae naHistria do futuro. Uma, intitulada Representao primeira dos fundamen-tos e motivos que tive para me parecer provvel o que escrevi acerca do esprito

    proftico de Bandarra, e do mais que se inferia das suas predies, e, outra, intitu-lada Representao segunda dos fundamentos e motivos que tive para me parecerprovvel o que tratava de escrever acerca do Quinto Imprio ou Reino consuma-do de Cristo. Segundo Besselaar, estaDefesaprova tanto que Vieira tinha nacabea todos os elementos essenciais da sua tese como que no tinha nem apacincia nem a disciplina de um erudito.17O que este excelente autor no leva emconta que todas as questes, tanto da primeira como da segunda Representao,respondem a perguntas que foram feitas a Vieira em seus interrogatrios e corres-pondem precisamente s duas sries de acusaes a que foi sujeito, sem nada lhesexceder. Como dir mais tarde, Vieira, em suas defesas, tentava adivinhar as supo-sies e censuras de que era acusado, visto que a Inquisio no revelava aos suspei-tos as culpas presumidas. Depois de dois anos recolhendo autoridades para suaapologia, de fato Vieira j dispunha de uma estrutura argumentativa que lhe possi-bilitou erguer o edifcio proftico-especulativo que so essasRepresentaes. Aten-tando para os procedimentos argumentativos da primeira Representao, porm,

    vemos que eles se organizam simplesmente segundo um princpio dedutivo, peloqual define o gnero Profecia; em consequncia deste, o indivduo profeta; e final-mente, as profecias particulares de Bandarra. Quanto segunda Representao, seusistema menos coeso, dispondo sries isoladas de questes, mas ordenadas se-gundo procedimentos retrico-dialticos que lhe fornecem feio lgica.18Surpre-ende, com efeito, nesses escritos, o modo como Vieira se vale das citaes, mos-

    trando seu pleno domnio da arte da memria; mas, desprovido de outro livro queno a Bblia, quase no se v que suas citaes das autoridades de Padres, Doutorese expositores aparecem como blocos imprecisos (como diz Santo Agostinho,Tertuliano, Orgenes, Surez etc.). Enfim, semelhana dos inquisidores, Besselaarenganou-se tanto em considerar que Vieira tinha toda a tese na cabea, como seenganou em considerar no ter ele a ndole de um erudito: pois erudio no termo adequado quele cuja especulao no est desvinculada da atuao, defen-siva ou ofensiva, isto , dialtica. Destas duasRepresentaes, mas sobretudo daApo-logiae daHistria do futuro, os inquisidores de Coimbra retiraram mais 90 proposi-es alm das da Carta, sobre as quais recaram censuras, e acerca das quais foiinterrogado na segunda srie de exames, a partir do 10 (em outubro de 1666).

    A acusao central destes exames, do 10 ao 27, a suspeita de judasmo, qual Vieira retruca sempre que apenas expe os fundamentos e o sentido do livroque tinha em mente escrever, obedecendo s ordens da prpria Inquisio. ine-gvel que a insistncia com que Vieira procura se defender redigindo essas tantasobras mostra seu empenho em se pronunciar, perante o prprio tribunal da Igreja,sobre matrias que doutro modo talvez no o pudesse fazer. E tambm inegvelque essas matrias apresentam uma incorporao do messianismo judaico, masisso no interior de uma prtica misionria jesutica, que igualmente permitia a in-corporao de costumes e ritos ndios, indianos, chineses e japoneses, no sentidode lhes dotar de uma significao catlica. Por isso, penso que a obra proftico-

    17Livro anteprimeiro da Histriado futuro, p.10-11.

    18Cf. A. MUHANA,Os recursos ret-ricos na obra especulativa deAn-tnio Vieira. Dissertao demestrado,FFLCH-USP. So Pau-lo, 1989 (mimeo).

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    especulativa de Vieira no pode ser interpretada apenas em termos de idiasmessinicas, mas de contraste e persuaso, por serem exatamente estas idiasa culpa de que a Inquisio o acusa. No limite, a Inquisio que faz esseshomens judeus,19como disse o prprio Vieira que , alis, a sua ltima pro-posio censurada, a de n 100. Num dos nove primeiros exames, ao ser interro-

    gado sobre outro livro, o Conselheiro secreto, que tambm pretendera escrever paraconverso dos judeus, Vieira declara sobranceiramente que a razo que tinhapara compor o dito livro era a mesma, que h para se comporem cada dianovos livros espirituais, e catecismos20e que a esse respeito em particular quise-ra fazer o tal livro, por ser o judasmo a heresia de Portugal, assim como noutrosreinos impugnava outras.21Em suma, se nessas obras a nfase em disputar sobreo Quinto Imprio na perspectiva judaica sobressai, frente converso dos gen-tios (que nunca est ausente), isto parece se dever mormente ao fato de seremobras que se destinam a rebater as censuras da Inquisio.

    Expressamente, Vieira s desiste de querer explicar ou declarar o senti-

    do das suas proposies22quando, aps quatro anos de interrogatrios, lhe in-formam que o prprio Papa as teria censurado. Ainda assim, redige um escrito,a que intitula simplesmenteMemorial, e que constitui um como resumo da suacausa. Este escrito (atualmente arquivado fora do processo, num dos livros doConselho Geral da Inquisio23) foi pela primeira vez editado nas Obras inditascom o extenso ttulo de Defesa do livro intitulado Quinto Imprio que aapologia da Clavis Prophetarum e respostas das proposies censuradas pelosinquisidores, estando recluso nos crceres do Santo Oficio de Coimbra. Divi-dido em oito ponderaes, nele Vieira repassa o assunto do livro que quiseraescrever; os papis de que lhe tiraram as culpas; as opinies que lhe reprovaram;as suposies feitas s palavras, proposies, aluses e intento seus; as conseq-ncias que dessas suposies tiraram; a impossiblidade de responder aos exames;as denncias pelas quais foi delatado; e, finalmente, seu carter, o qual, pela mai-or parte, plasmado com suas aes de missionrio dos indgenas do NovoMundo que, ento, so apelidados de novos cristos. Mas este memorial (talvezpor resguardo do prprio inquisidor Alexandre da Silva) no chegou a influir nasentena final.

    Assim aparece a construo da obra proftico-especulativa de Vieira.No s a matria daClavis Prophetarum, ou seja, o Quinto Imprio, permanece amesma daApologia, daHistria do futuroe daDefesa peranteo Tribunal do SantoOfcio, como so todas constitudas por contraditas s questes da Inquisio. Isto, embora se comportem como obras distintas, so em princpio uma mesmaambivalente defesa, gerada na situao inquisitorial e dirigida a inquisidores. Tra-tando essas obras do Quinto Imprio, tal noo foi se acrescendo e despojan-do de proposies por fora das objees inquisitoriais que se apresentavamquilo que no passava de desejo de livros de Vieira. Na sentena, afinal, a Inqui-sio concordar com Vieira de que, exceto nos manuscritos contidos e arqui-

    vados nos autos do processo, no h outros delitos de que possa ser acusado, e,nesses manuscritos, nenhuma inteno alm de uma autorizada defesa. Nada almdo que fora produzido no processo.

    19Os autos doprocessodeV ieira naInquisio, op.cit., p.390 e 430.

    20Idem, 8 Exame, p.92.21Idem, p.94.22In Os autos do processodeV ieira

    na Inquisio, op.cit., 28 Exa-me, p.327.

    23E publicado com inmeroserros em relao ao origi-nal nas Obras escolhidas, op.cit., v.VI, p.97-179.

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    de ao coletiva e institucional, implica dizer que o sermo deve estar apto a formularhipteses para uma poltica pragmtica e legtima a ser conduzida pelos Estados cat-licos na histria. Nessa perspectiva, no verossmil postular, como se costuma, havercontradio em Vieira porque ele contempla ou confunde ostensivamente aspectostemporais e espirituais, seja em sua atuao missionria, seja em sua pregao da dou-

    trina crist. Para o jesuta, no mbito da histria, aspectos temporais e espirituais, namedida em que so efeitos que, em ltima instncia, reportam-se a Deus, no podemter completa autonomia de ser em relao ao outro. Da mesma maneira, nenhumdesses aspectos pode ser absoluto na determinao do gnero do sermo, que con-templa justamente a descoberta da articulao entre ambos.

    Quanto s questes relativas maior ou menor brasilidade dos sermes,penso que o melhor, decididamente, seja dissolv-las. Cada um dos sermes integra-se aoconjunto da produo internacional jesutica da Contra-Reforma e, ao mesmo tempo,participa do encargo de propor uma poltica de expanso do Estado portugus na Amrica.E os sermes jamais propem tal poltica como se fora um projeto de dominao

    externa sobre colnias virtualmente autnomas e oprimidas, quer dizer, como se jhouvesse aqui sentimento nativista espontneo, lutas de classes e vontade de independn-cia frente metrpole, caracterizada, por sua vez, como entidade externa e intrusa.

    Mais verossimilmente, para Vieira, trata-se de sustentar e ampliar o mesmoEstado que se desdobra nas vrias partes de um mundo em expanso, com base tantona doutrina neotomista de conduo do gentio ao orbe cristo, isto , de sua integraohierrquica aocorpo msticoe institucional da cristandade, quanto no enfrentamento casoa caso de dificuldades surgidas nas vrias frentes de colonizao. Nenhum Brasil,portanto, parece necessrio postular nesse perodo, a no ser o que se pode contarcomo parte atuante de um Imprio que busca integrar os vrios pontos de sua expan-

    so, ao mesmo tempo em que procura lidar com uma ruptura europia radical, mani-festa em termos do cisma religioso.

    Com base nessa hiptese, tenho procurado examinar o alcance do verossmildaunidadeteolgico-retrico-polticacomo categoria pertinente para a anlise de obras, dediferentes gneros, produzidas nos sculos XVI, XVII e, ao menos, em parte do sculoXVIII. No entanto, gostaria de considerar essa unidade, aqui, no de um ponto de vistaterico, mas operacional e heurstico. Tenho em mente discorrer, em particular, a pro-psito de certa tcnica bsica de leitura dos sermes seiscentistas, til para reposio

    verossmil de alguns de seus sentidos no mbito da liturgia catlica, em geral poucoconsiderada nas anlises contemporneas. A tcnica bsica a que me refiro a de esta-

    belecimento de analogias entre trs linhas semnticas necessariamente envolvidas nosermo: primeira, a das comemoraes do ano eclesistico ou litrgico (tempo santo);segunda, a das passagens escriturais do Evangelho do dia, definidas, por sua vez, pelocalendrio litrgico; terceira, a das circunstncias presentes na enunciao do sermo,entendidas como circunstncias do tempo comum ou histrico do sermo, que, segun-do a ortodoxia catlica, no nega, nem est em contradio com o tempo santo.

    A seguir, explico-me melhor a respeito de cada uma dessas linhas de pondera-o analgica.

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    A. O ano litrgico ou eclesistico

    O ano eclesistico, como sabido, diz respeito srie de tempos e dias santos,definidos pela Igreja, que comea com aPrimeira Domingo do Adventoe fecha naltima semana depois dePentecostes. A celebrao peridica dessas solenidades refere

    a memria, guarda e ensino dos mistrios e dogmas da Igreja, entendidos ortodo-xamente como legados de Cristo. Assim, um pregador, quando diz o seu sermo,deve ajust-lo necessariamente aos significados doutrinrios da ocasio. Apenas attulo de lembrana, especificaria que o calendrio eclesistico compe-se basica-mente de 3 tempos santos, a saber:

    1 tempo: doAdventoSeptuagsima.

    Os temas genricos dos sermes desse perodo so a promessa da vinda doMessias; o mistrio da Encarnao; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministrio(portanto, a graa de Deus ao enviar seu filho terra); e, por ltimo, o chamado se-gundo advento, isto , a volta de Cristo como juiz ao fim da histria. Todo o perodo

    adventcio significa catolicamente uma preparao para oNatal, e o seu primeiroDo-mingo contado 4 semanas antes dele (caindo, assim, em novembro). Nesse perodo,portanto, as principais solenidades so: o1 Domingo deAdvento(ouDominga, como sedizia no XVII), que constitui justamente a abertura do calendrio litrgico; oNatal; e a

    Epifania, que trata da manifestao divina como chamado (ouvocao, como se dizia) verdadeira religio, que se comemora noDia deReis, em 6 de janeiro.

    2 tempo: daSeptuagsimaAscenso.

    Os temas tratam genericamente da redeno e misericrdia de Cristo. Asprincipais datas a balizar esse perodo so: aSeptuagsima, que conta os 70 dias faltan-

    tes para aPscoa, quando se celebra a ressurreio de Cristo; aSexagsima, que celebraos 60 dias antes dela e que, no caso de Vieira, d nome ao mais conhecido de seussermes paradoxalmente, no tenho notcia, em toda a imensa fortuna crtica arespeito dele, de um s artigo em que a festa tenha sido seriamente consideradacomo capaz de trazer alguma elucidao aos argumentos e metforas ali emprega-dos); aQinquagsima, que est a 50 dias daPscoa, ainda em fevereiro; aQuaresma, quenomeia o perodo de 46 dias que vai da4 feira deCinza(assim mesmo, no singular,como se diz no sculo XVII) e vai at o 1 Domingo da Pscoa; e, ainda, aSemana Santa,que fecha esse perodo, contando-se doDomingo deRamos(entrada de Cristo em

    Jerusalm) aoDomingo dePscoa. Este, por sua vez, conta-se como o primeiro domin-go depois da lua cheia do equincio de maro. O perodo, como todos sabem, vai

    de fevereiro a finais de abril. Ainda neste segundo tempo santo, convm referir aQuinzena da Pscoa, perodo que inclui aSemana Santamais a semana seguinte, que vaidoDomingo dePscoaaoDomingo da Pascoela, ainda em abril.

    3 tempo: da Ascenso a Pentecostes.

    Neste intervalo so celebrados basicamente os benefcios do Esprito Santo.Fazem parte dele as festas daAscensoe dePentecostes, que se do respectivamente a 40 e50 dias depois daPscoa, celebrando-se, nesta ltima, a descida do Esprito Santo sobreos Apstolos em lnguas de fogo.

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    Tais referncias genricas dos tempos litrgicos, por sua vez, esto articuladasnecessariamente, na composio dos sermes, aos passos dos Evangelhos previstospara serem lidos nas missas a cada dia do ano. Assim, quando o pregador faz o seusermo, ele o apresenta justamente como um comentrio apropriado, mais ou menosdilatado, leitura que se acabou de fazer do Evangelho do dia, ouvida pelos fiis

    presentes cerimnia da missa. Com base nesse texto, as tpicas mais gerais ditadaspelo calendrio litrgico subdividem-se ou especificam-se segundo novas linhas deponderao ou de proliferao de analogias conceituosas.

    B. OEvangelhodo dia

    Para que a exposio se torne menos bvia e mais demonstrativa, considere-se, por exemplo, um sermo do tempo adventcio, que justamente abre o calendriolitrgico. O Sermo da Primeira Dominga do Advento, que Vieira refere ter pregado naCapela Real de Lisboa, no ano de 1650, est entre os mais celebrados e conhecidos dosduzentos e poucos que deixou registrados em suaeditio princeps. No se trata, porm,

    aqui, de examin-lo com mincia, mas de utiliz-lo como forma de apresentar essachave de leitura, que considera prioritrias as relaes significativas propiciadas pelascategorias litrgicas.

    Como se viu j, os mistrios tpicos doAdventoso: a promessa do Messias; aEncarnao; o nascimento de Jesus; a sua juventude e ministrio; oJuzo Final. Antes deseguir adiante, segundo o eixo analgico de 3 pontas que mencionei, obrigatriodeter-me na considerao do Evangelho do dia. No caso, trata-se deLucas 21, 25-33 cuja lembrana na Igreja justamente a do ltimo ponto referido: oJuzo Final.Talvez parea excessiva a idia de se ler oEvangelhodo dia to logo se considere deter-minado sermo, mas efetivamente no se trata aqui de propor nenhuma forma recicla-

    da de beataria. O que Vieira e os catlicos lem como ritual de f, considero-o aquicomo articulao de sentido prevista nas determinaes de gnero, nem mais, nemmenos. Isto dito, na Vulgata,Lucas 21, 25-33reza o seguinte:

    LUK 21 25 et erunt signa in soleet luna et stellis et in terris pressura gentiumpraeconfusionesonitusmaris et fluctuum

    LUK 21 26 arescentibus hominibus praetimoreet expectationequaesupervenient universo orbi namvirtutes caelorummovebuntur

    LUK 21 27 et tuncvidebunt Filiumhominis venientemin nubecumpotestatemagna et maiestate

    LUK 21 28 his autemfieri incipientibus respiciteet levatecapita vestra quoniamadpropinquatredemptio vestra

    LUK 21 29 et dixit illis similitudinemvideteficulneamet omnes arbores

    LUK 21 30 cumproducunt iamex sefructumscitis quoniampropeest aestas

    LUK 21 31 ita et vos cumvideritis haecfieri scitotequoniampropeest regnumDei

    LUK 21 32 amen dico vobis quia non praeteribit generatio haecdonecomnia fiant

    LUK 21 33 caelumet terra transibunt verba autemmea non transient2

    2Ou, na traduo portuguesa

    do Manual do Cristo, doPadre Leonardo Goffin,cuja primeira edio alem de 1690:Naquelletempo, disseJesus a seus discpulos: Haver sig-naes nosol, na lua enas estrellas en terra, consternao das gentespor causa da confusodobramidodas ondas; mirrando-seos homensdesustona expectaodoquevirsobretodoomundo, porqueas vir-tudes docoseabalaro. E ento,vero o Filho do Homemvindosobreuma nuvemcomgrandepo-der emagestade. Quando, pois, es-tas cousas comearema cumprir-

    se, olhaeelevantaeas vossas cabe-as, porqueseapproxima vossaredempo. E propoz-lheesta com-parao: Vdea figueira eas maisarvores; quandocomeama pro-duzir fructo, conheceis queestproximo o estio. Assimtambemquando virdes estas cousas cum-prir-se, sabei queest proximo oreino deDeus, Emverdadevosdigoquenopassar esta gera-o emquanto nosecumpriremtodas estas cousas. Passaro ocoea terra, mas as minhas pa-lavras nopassaro.

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    Dentre os temas principais doAdvento, portanto, oEvangelhoem questo seleci-onou aquele relativo ao tempo terrvel doJuzo Final, tendo em vista mover o auditrio penitncia e emenda dos costumes. Mas possvel ir bem alm disso e especificaralguns lugares de significao particularmente relevantes na tradio exegtica da passa-gem, disponvel na inveno retrica do sermo. Vale dizer, importa agora, sobretudo,

    levantar as tpicas do repertrio tradicional da parentica e da teologia bblica associa-das ao tema doJuzo Final. Entre elas, a ttulo de exemplo, alguns lugares comuns dateologia bblica empregados a propsito da categoria mstica doJuzo3so:

    (1) A articulao semntica entre julgar e reinar.

    Tais termos, aparentemente distantes numa gramtica contempornea, apare-cem estreitamente ligados na Bblia (por exemplo, emJz 16, 17:Ento o Senhor

    fazia surgir juzes queos libertavamdos assaltantes.) Essa articulao est patentetambm no livro dosJuzes, cujo esquema geral, segundo Pesch, basicamentequaternrio: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/ Deus salvapor meio de um juiz (que pode ser maior, isto , carismtico, inspirado; ou

    menor, tratando-se to somente de ocupar o posto de lder ou governante);

    (2) O alerta contra os abusos praticados pelos Juzes.Aos juzes cabe garantir a cada um o lugar que lhe devido segundo a vontadede Deus no corpo de seu povo; todo poder cuja fonte no se fundamente na

    justia, que reporta a Deus, vcio daquele que manda (por ex:Lev. 19,15:Nocometais injustias emjuzo... Julga o prximo conformea justia);

    (3) A implicao de castigo e salvao, na ocasio do Juzo.A purificao do povo por meio do julgamento tem o propsito de reapro-

    xim-lo de Deus e, portanto, deve ser compreendido no interior de uma eco-nomia salvfica;

    (4) O anncio da proximidade do Juzo.Tal proximidade, por sua vez, acentua a seriedade do julgamento e a exignciade uma deciso imediata de emenda da vida (Mc1, 15:Completaram-seos tempos,est prximo o reino deDeus, convertei-vos ecredeno Evangelho);

    (5) A salvao para todos os que confessam na f.As decises que contam para a salvao j so tomadas durante esta vida,sobretudo na perspectiva joanina (Por exemplo emJo 3, 18:Quemcrnele, no

    julgado, equemno cr, j est julgado, porqueno creu no nomedo Filho...).Todos os lugares referidos so conhecidos da tradio da leitura bblica asso-

    ciada ao tema doEvangelhoem questo. Vieira, como qualquer pregador eficiente doperodo, domina perfeitamente esses lugares; para diz-lo corretamente, eles j estodados no repertrio possvel a ser selecionado em seu sermo. Quer dizer, so lugaresargumentativos que esto desenvolvidos ainda antes que Vieira sequer comece a com-por o sermo pela primeira vez. Mas antes de falar propriamente das escolhas feitaspelo jesuta na produo desseSermo da Primeira Dominga do Advento, que interessa aquimais como exemplo de articulao disponvel ou provvel do que como andamentoargumentativo especfico, gostaria de considerar rapidamente a terceira ponta em jogo

    na produo das analogias de base de um sermo de matriz ibrica seiscentista.

    3Cf. Juzo/ Julgamento, deW. Pesch, no Dicionrio deTeologia Bblica, organiza-do por Johannes B. Bauer,Volume II (S. Paulo, Loyola,1983).

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    um Padre Vieira que j no tem a perder por escrito o que pleiteava na suposta situaooriginal da prdica. Essa circunstncia poderia lev-lo, por exemplo, a tornar maisousada ou mais dura a censura ao Rei e Corte na verso reescrita em comparaocom a que ele havia produzido na prdica diante d eles? So questes que exigem ocotejo de outros papis e que ficam aqui apenas para assinalar a complexidade desse

    jogo de duplos temporais presente nos sermes.

    Cabe considerar agora os argumentos efetivamente empregados no sermode modo a amarrar as 3 pontas de significao analgica de que venho falando.

    D. Os argumentos doSermo do Advento, 1650.

    Assim, considerando finalmente o sermo produzido por Vieira, interessantenotar que ele o inicia por umaponderao misteriosa, como era prtica comum nos ser-mes engenhosos seiscentistas. Pergunta Vieira pelarazo ocultasob omistriode cabe-rem todos os homens de todas as pocas no mesmo Vale do Josaf, onde desceria oCristo no tempo doJuzo Final; amplificao mistrio com a comparao irnica do vale

    doJuzocom a praa do Pao da Ribeira, onde os enormes squitos de poucos grandesdo reino, bastavam para tomar toda a sua extenso. Para apresentar a sua resposta aocaso, Vieira prope ao seu auditrio, maneira inaciana, uma imaginao ou compo-sio de lugar4da cena doJuzo, de tal modo que as autoridades temporais e espirituaisportuguesas, supostamente ali presentes, deveriam, ento, imaginar-se como rus naexpectativa do seu julgamento final naquele dia sublime, em que podero salvar-se oudanar-se eternamente. Para o propsito particular desta comunicao, interessa apenasnotar que, centrado na encenao do momento dramtico da separao entre os bonse os maus, o sermo levado a afirmar 3 aspectos decisivos doJuzo:

    (1) a ressurreio na f significar uma reparao, com arbtrio, da fortuna do

    nascimento;

    (2) no haver privilgio de estado, seja da nobreza, da realeza ou do ecle-sistico: a investidura no determinar a salvao ou a condenao, masto somente as obras da vida;

    (3) reis e cortes sero objeto de juzo especialmente rigoroso, por incorreremem dois pecados principais: o pecado da omisso, quando se deixa defazer o que o cargo obriga e onde a ocasio exige ao decidida, e opecado de conseqncia, quando a corrupo do voto ou de um atoinicial traz sucessivos desmazelos. Ou seja, governantes e ministros deve-

    ro pagar com a prpria condenao eterna os desastres em cascata causa-dos pelas aes necessrias e justas que deixam de fazer na hora certa epelas errneas e injustas que fazem quando no deviam.

    Bem defendidos os pontos elencados acima, Vieira j pode ento revelar arazo oculta do mistrio de caberem todos, vivos e mortos, a um s tempo, no estreito

    vale de Josaf. Prope ento que, na situao da vida presente, os homens que tmpoder sentem-se imortais e incham de vaidade e soberba, ocupando grandes espaoscom falsos bens, enquanto, no tempo do Juzo, esses mesmos outrora poderosos que, por isso mesmo, tinham muitos outros homens a sua conta, sem que tenhamsabido zelar por eles , em vez de inchar, encolhero, mirraro de tanto medo da

    4 Cf., por exemplo, o primei-ro prembulo do primeiroexerccio de meditao dosExerccios Espirituais: lacomposicin ser ver comla vistadela imaginacin el lugar corp-reo donde sehalla la cosa quequierocontemplar (...)(in Obrasde San Ignacio de Loyola,Madrid, B.A.C., 1997). Cita-o p. 236.

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    sentena que se abater sobre eles. Cabero ento todos, facilmente, onde antes nocabiam uns poucos. Combina-se, pois, um andamento ameaador, acentuado pela com-posio cenogrfica do tempo fatal doJuzo, e uma ponderao que se resolve, senode maneira maldosa, ostensivamente irnica. Tal combinao certamente um dostrunfos dos sermes bem temperados de Vieira.

    Entretanto, o que mais me interessa notar que os lugares argumentativosdestacados acima, ajustados aodesfechodarazo oculta, mostram que Vieira, durante todoo sermo, esteve operando fortemente balizado pela trplice articulao semntica quereferi. Evidncia ostensiva disso a metfora que finalmente decide o sermo, qual seja,mirrar de pavor. Se ainda cabe lembrana do incio deste texto, ela estava dada j noEvangelho de Lucas ([...] arescentibus hominibus praetimoreet expectatione[...])5. O sermodetermina, pois, uma espcie de razo de lugar na Repblica, que se ilustra na com-parao entre os antigos costumes virtuosos dos ministros, onde cada coisa era cabida,isto , decorosa, e as prticas dos seus pares contemporneos, nos quais ampliando asoberba j no cabem a honra, o decoro, a poltica e, enfim, perde-se a alma.

    5 (...) mirrando-se os homensde susto na expectao (...)

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    Assim, para encerrar, diria que o sermo tem seu incio antes ainda de o padreVieira compor uma s linha dele. Quando comea a pregao j umamquinade com-posio est em andamento, pronta a fornecer-lhe os principais anlogosda invenoemetforas da elocuo, bem como os cruzamentos entre eles. Esse aspecto bsico dognero parentico, que postula uma hermenutica na qual as tpicas polticas ajustam-se

    tradio bibliolgica e litrgica, segundo o jogo complexo dos tempos de sua produ-o, pode, entretanto, ficar soterrado sob as consideraes to entusisticas quantoanacrnicas da genialidade de Antnio Vieira. Seja l o que se queira indicar com ostermos gnio, genial, genialidade, e sem pretender sequer recus-los, parece-me,contudo, mais pertinente ou funcional referir a produtividade prpria dos lugares con-

    vencionais do gnero, sobretudo considerado em sua insero na tradio catlica.No h nada a temer: Vieira no perde nada com isso; ele no se torna um reprodutor

    vulgar de frmulas do passado. Ao contrrio: ele se torna umaautoridadeno gnero aoemular a tradio e propor novas formas particulares de atualiz-lo e de torn-lo eficazpara novos auditrios.

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    1Memorabilia oitocentista

    No incio do sculo XIX, o gosto pela cultura clssica estava em moda entre osintelectuais brasileiros, ainda muito informados pela racionalidade iluminista. Era regra abusca de uma explicao laica da histria humana e das mazelas constitutivas da realidadede seu prprio pas, que ento comeava de fato a nascer. Mas, para narrar a histriaptria, o tema da memria entrava em jogo. Um termo, memorabilia, e suas variantesaportuguesadas memorial, memorioso, memoroso ememorvel aparecia quando em vez nosdiscursos dos eruditos da poca. De vasto uso e prolixa memria, desnecessrio nesteartigo o rastreamento completo dessas expresses e de seu emprego por uma infinidadede letrados da poca de senadores a juristas, de mdicos a msicos, de religiosos a

    jornalistas. Houve, no entanto, um consenso: era passvel de registro impresso comomemria, tudo aquilo que era digno de permanecer na lembrana; tudo que eraclebre,tudo que eranotvel. Coisas que servem para serem lembradas era o significado literaldo termo latino to em moda. O romantismo da primeira metade do sculo XIX, emque pese a feroz crtica ilustrao setecentista, continuou fazendo uso do termo namedida em que a prpria literatura almejava recordar, recolher ou editar obras de autoresantigos, cuja produo literria se recupera pelo nexo da memria.

    O mito de origem dessa expresso est na obra do historiador grego Xenofonte(428-362 a.C.). Encontramos sua obra, em traduo inglesa, em vrios gabinetes de leitu-ra do Gro-Par do sculo XIX, como a biblioteca do Consul britnico John Hesketh, a

    Memorabilia Jesuta:Antnio Vieira e a

    historiografia daAmaznia no sculo XIX1

    Aldrin M oura de Figueiredo* - U FPa

    * Doutor em Histria. Profes-sor da Faculdade de Hist-ria e do Programa de Ps-Graduao em Histria So-cial da Amaznia da Univer-sidade Federal do Par.

    1 Uma primeira verso desteartigo foi a originalmente es-crita para comemorao dotricentenrio da morte deVieira, em 1997, por convitede Benedito Nunes, a quemsou grato. Posteriormentefoi publicado em Varia His-tria, v.23, 2000. A verso aquipresente, no entanto, incluinova discusso sobre a ques-to da memria vieirista naAmaznia. Agradeo a Rafa-el Chambouleyron, MagdaRicci e a meus alunos pelatroca de informaes e pelaamizade. Os agradecimentosse estendem aos funcion-rios, sempre gentis, do Ins-tituto de Estudos Brasilei-ros da Universidade de SoPaulo, do Instituto Histricoe Geogrfico de So Paulo eda Biblioteca Pblica do Par,onde consultei a maioria dasobras aqui utilizadas.

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    sala de leitura do baro de Guajar Domingos Antonio Rayol e em citaes esparsas naobra de prelados como D. Romualdo de Souza Coelho e seu sobrinho D. Romualdo deSeixas2. De um modo geral, esses homens de letras, de diferentes matrizes intelectuais,realaram em suas obras o fundamento histrico da recolha de memrias, da valorizaodas experincias pessoais, o registro das obras realizadas, e a divulgao dos conhecimen-

    tos adquiridos pelo homem. Tratava-se de um modelo baseado naMemorabilia Socratisdicta, ou sejaDitos memorveis deScrates, obra que ento era lida muito mais como contextoda vida mundana do filsofo grego, do que com interesse em especulaes sobre seupensamento. O certo que a jaz, de certo modo, a legenda de um gnero literrio muitocultivado no sculo XIX e na primeira metade do sculo XX: omemorialismo. , portanto,imenso e variado o conjunto de textos que o gnero literrio abarca como literatura dememrias, posto que o padro analtico e repertrio cognitivo desses textos se encon-tram em praticamente todas as formas de recuperao imaginria do passado.

    O processo de recolher dados da memria com viso literrio tanto pode serconseguido sob o olharhistoriogrfico, mergulhando em registros documentais do

    passado, como alterando, recriando e imaginando novas balizas factuais da memria.Livros, dicionrios, compndios e tratados recobrem muito mais que uma simplesreconstruo e preservao dos tempos pretritos, intervindo mesmo na modificaodos registros como forma de crtica aos fatos ou comportamentos que se julgammerecedores de uma reviso judicativa. Amemorabilia, em suma, uma verso constitu-tiva da prpria histria e esteinsigthque me fez pensar esse artigo sobre a construoda memria sobre o jesuta Antnio Vieira por uma eloqente historiografia da Ama-znia Oitocentista. Celbre e memorioso padre que acabou por se tornar uma espciede modelo narrativo para as literaturas histricas que ento se escreviam pelo Brasilafora. Dentre os autores nacionais que incorporam essa questo da memria jesutica,chamaram-me ateno os nomes de Antnio Ladislau Monteiro Baena (1782-1850) eIgnacio Accioly Cerqueira e Silva (1808-1865). Entre outras similitudes, os dois tinhamem comum o fato de haverem descrito minuciosamente a situao da Provncia doPar, entre o fim da poca colonial e o limiar da nova situao poltica distante dePortugal. Ambos tambm, como era costume nos chamados estudos corogrficos,dedicaram grande parte de seu tempo em tentar compreender o modo pelo qual opassado da regio influenciava a situao presente. Augusto Sacramento Blake (1827-1903) notou esta inclinao em ambos e, tomando emprestado as afirmaes de Joa-quim Manuel de Macedo (1820-1882) no seuAnno Biographico Brazileiro, conseguiu resu-mir, com maestria, o interesse desses homens de letras em perscrutar o passado, comoquem, com a luz da crtica, consegue viajar pelos escuros labirintos de trs sculos3.

    Essa viagem pelo mundo pretrito, feita por esses cronistas do imprio,como pomposamente foram chamados poca, pode ser melhor compreendida quan-do, em suas descries sobre a situao presente, ambos recorriam aos antecedenteshistricos. o caso, por exemplo, da Companhia de Jesus que, vez por outra, aparecenesses autores, ora como culpada pelos fracassos na civilizao do povo, ora comoinjustiada pelos desmandos de Pombal. Seja como for, tanto Baena como Ignacio

    Accioly, ainda sentiram, no incio do sculo XIX, os ecos do acontecido com os inaci-anos durante a segunda metade do Setecentos. Primeiro, a expulso de Portugal e dascolnias, em 1760, e depois a supresso, em 1773, pelo prprio Papa. A memriaparecia ainda estar fresca, afinal, o primeiro golpe nos seguidores de Loiola, extermi-

    2 Os volumes que conseguimosencontrar em bibliotecasparaenses so: Xenophons.Memorabilia of Socrates: withEnglish notes, critical and ex-

    planatory, the Prolegomena ofKhner, Wiggers Lifeof Socra-tes, etc. Organizado pelo eru-dito Charles Anthon (1797-1867). New York: Harper &brothers, 1848; Xheno-phon. TheAnabasis, or expe-dition of Cyrus, and theMemo-rabilia of Socrates. LiterallytranslatedfromtheGreek of Xe-nophon. Volume organizadopelo famoso tradutor Reve-rendo John Selby Watson(1804-1884), acompanhadode um comentrio geogr-fico feito pelo viajante Wi