retrato cristáo na literatura de cs lewis - artigo

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AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: RETRATO CRISTÃO NA LITERATURA DE CLIVE STAPLES LEWIS Jonas Sommer Luziméri Magaldi Carreiro Paulo Roberto Kliguer Curso de Letras Português-Inglês Polo Dom Bosco Mercês - Curitiba, PR Orientadora: Profª Cláudia Benedetti RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar uma obra da literatura infanto-juvenil do escritor irlandês C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, importante narrativa literária ficcional, composta por sete crônicas. Levar-se-á em conta o aparente caráter bíblico revelado por meio das figuras de linguagem intertextualizadas e dos personagens míticos empregados pelo autor. Para explicar como o Cristianismo é percebido e reconhecido na obra de Lewis, duas crônicas foram escolhidas para análise: O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa; Príncipe Caspian. Pesquisaram-se obras literárias de reconhecidos escritores aficionados por Nárnia, de apologistas cristãos e de biógrafos do escritor, como Devin Brown, Kathryn A. Lindskoog e Gabriele Greggersen, além da Bíblia Sagrada de Genebra. Todas serviram de base para identificar e quantificar quais elementos configuram o retrato cristão em As Crônicas de Nárnia. Palavras-Chave: Literatura infanto-juvenil. Histórias cristãs. As Crônicas de Nárnia. ACDN. Intertexto bíblico. C.S.Lewis. 1. INTRODUÇÃO O ato de ler (bem como o de escrever, pois sempre se escreve algo a ser lido por outrem) tem um alcance existencial: pela leitura (principalmente nas narrativas ficcionais), o indivíduo recria um mundo de “verdades”, vai de encontro às realidades (criadas ou concretas) pelo autor, expande ideias, compreende a sociedade e o mundo onde vive, busca no texto relações com seu próprio mundo interno, etc. Logo, ler possui dimensões variadas e complexas. Esse ato introduz o homem em seu próprio mundo, conecta-o à realidade, faz com que se identifique como herdeiro de um arcabouço cultural de conhecimentos e de valores passados, inserindo-o na condição de responsável por um futuro – num sentido cultural- científico. A literatura é confrontativa, pois contribui para o desenvolvimento do indivíduo e para sua capacidade criativo-imaginativa pela exposição de situações conflitantes, nas quais o leitor precisa lidar com suas emoções e valores, alcançando, assim, a emoção e a razão humanas.

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AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: RETRATO CRISTÃO NA LITERATURA DE CLIVE STAPLES LEWIS

Jonas Sommer

Luziméri Magaldi Carreiro Paulo Roberto Kliguer

Curso de Letras Português-Inglês Polo Dom Bosco Mercês - Curitiba, PR

Orientadora: Profª Cláudia Benedetti

RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar uma obra da literatura infanto-juvenil do escritor irlandês C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, importante narrativa literária ficcional, composta por sete crônicas. Levar-se-á em conta o aparente caráter bíblico revelado por meio das figuras de linguagem intertextualizadas e dos personagens míticos empregados pelo autor. Para explicar como o Cristianismo é percebido e reconhecido na obra de Lewis, duas crônicas foram escolhidas para análise: O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa; Príncipe Caspian. Pesquisaram-se obras literárias de reconhecidos escritores aficionados por Nárnia, de apologistas cristãos e de biógrafos do escritor, como Devin Brown, Kathryn A. Lindskoog e Gabriele Greggersen, além da Bíblia Sagrada de Genebra. Todas serviram de base para identificar e quantificar quais elementos configuram o retrato cristão em As Crônicas de Nárnia.

Palavras-Chave: Literatura infanto-juvenil. Histórias cristãs. As Crônicas de Nárnia. ACDN. Intertexto bíblico. C.S.Lewis.

1. INTRODUÇÃO

O ato de ler (bem como o de escrever, pois sempre se escreve algo a ser lido por

outrem) tem um alcance existencial: pela leitura (principalmente nas narrativas ficcionais), o

indivíduo recria um mundo de “verdades”, vai de encontro às realidades (criadas ou

concretas) pelo autor, expande ideias, compreende a sociedade e o mundo onde vive, busca no

texto relações com seu próprio mundo interno, etc. Logo, ler possui dimensões variadas e

complexas. Esse ato introduz o homem em seu próprio mundo, conecta-o à realidade, faz com

que se identifique como herdeiro de um arcabouço cultural de conhecimentos e de valores

passados, inserindo-o na condição de responsável por um futuro – num sentido cultural-

científico.

A literatura é confrontativa, pois contribui para o desenvolvimento do indivíduo e para

sua capacidade criativo-imaginativa pela exposição de situações conflitantes, nas quais o

leitor precisa lidar com suas emoções e valores, alcançando, assim, a emoção e a razão

humanas.

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Não é tarefa difícil verificar em As Crônicas de Nárnia, de C.S. Lewis, esses elementos

e as possibilidades antes citados. Segundo Botelho (2005, p. 2), ao escrever histórias, Lewis

aproxima seu leitor do real, do concreto, sem, entretanto, racionalizar ou perder a leveza e o

encanto da imaginação: “Para o autor, uma das vantagens dos contos de fada é que eles

contam histórias de animais e de seres míticos que misturam atributos de adultos e

crianças”. Por exemplo, os animais são como crianças, pois não têm responsabilidades; e

como adultos, porque possuem a liberdade de irem e virem.

C.S. Lewis nasceu em Belfast, na Irlanda, em 1898, e faleceu em 1963. Dedicou

praticamente toda a vida à literatura e ao trabalho acadêmico, que se iniciou em Oxford com

sua graduação. Teve seu ápice quando conquistou a cadeira de Literatura Britânica Medieval e

Renascentista. Foi também professor de outras disciplinas, como Filosofia e Grego, em

Cambridge. (GREGGERSEN, 2005, p. 11).

De suas obras ficcionais, a mais famosa é As Crônicas de Nárnia (ACDN). Conforme

Greggersen aponta, em 2005, havia ultrapassado 100 milhões de cópias vendidas e traduzida

em 41 idiomas. Estima-se que o número de unidades vendidas tenha dobrado uma vez que os

direitos autorais da obra foram distribuídos a diversas editoras, em vários países. O gênero

conquistou o leitor. (ibid., p. 18)

Também cresceram o número de livros que analisam, decifram e interpretam as

narrativas de Lewis, em As Crônicas de Nárnia. O autor é muito respeitado nos meios

acadêmico e científico pela relevância de seus estudos como escritor, crítico literário, filósofo,

professor e apologeta cristão. De acordo com Downing (2006, pp. 177-182), dos 58 livros que

escrevera, 25 são de conteúdo cristão, e 21 foram editados na língua portuguesa.

Conforme Greggersen menciona, C.S. Lewis, como escritor, possuía pelo menos três

facetas: “crítico literário, autor de ficção e apologeta” (GREGGERSEN, 2006, p. 8). Ela

também advoga que As Crônicas de Nárnia podem ser analisadas levando-se em conta os

lados pedagógico, literário e teológico de Lewis (ibid., p.11).

Considerando o lado teológico, objeto deste estudo, Lindskoog (1974) diz que as

doutrinas cristãs presentes na obra podem ser divididas em três categorias: o conceito de

Lewis sobre a natureza – o sistema de todos os fenômenos no espaço e no tempo; seu conceito

sobre Deus – o Criador, Redentor e Sustentador da natureza e da humanidade; seu conceito

sobre o ser humano e seu relacionamento com a natureza, com Deus e com o próximo. A base

desses conceitos não é fundamentalista, tampouco modernista. Trata-se da ortodoxia cristã

particular de Lewis, o que Walsh (1949, p.171) chama de “cristianismo clássico”.

C.S.Lewis extraiu da literatura medieval, da renascentista e da Bíblia Sagrada os

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elementos para confeccionar um livro infanto-juvenil que fosse atraente para as crianças e

também proporcionasse lições de vida por sua leitura. Seus personagens são criativos:

centauros, dríades, faunos e outros seres míticos; eles ganham corpo e alma e dividem seu

espaço com seres humanos, compondo um imaginário repleto de realidade.

Embora haja controvérsia entre alguns escritores literários sobre haver uma relação

entre o personagem principal - o leão Aslam - e Cristo, e sobre Nárnia simbolizar o Mundo

(seus habitantes e a raça humana), os leitores de Lewis, estudiosos de Nárnia - como se

referem os aficionados por ACDN - e os apologéticos cristãos defendem um paralelismo entre

esta obra e a Bíblia. A semelhança consiste no gênero literário narrativo. Na narrativa bíblica,

a Criação perfeita surge do nada e é chamada à existência por um Ser Supremo – Deus -,

percebido como Trindade. Há o aparecimento do mal, personificado pelo anjo Lúcifer,

incansável em tentar destruir o bem, perseguindo-o e utilizando o egoísmo do ser humano e

por ele escoando toda a sorte de maldades, que visam destruir a criação de Deus (Gênesis 3)1.

A existência de uma dívida impagável por qualquer ser humano corrompido só poderá

ser quitada pelo sacrifício de um justo, puro e santo, características encontradas somente no

único filho de Deus (Jesus). O Pai doa o Filho, que também se doa. (João 3: 16)2. Mas, para

isso, precisa assumir a forma humana; além de suportar todas as agruras impostas pelo Mal e

ter uma morte física calcada na desonra e na humilhação: a crucificação. Ressuscita pelo

poder divino. (Atos 2)3. Ao vencer a morte, condena o Diabo à morte eterna, com data

marcada: quando os escolhidos por Cristo estiverem com Ele. Depois, ocorre a batalha final:

fatal condenação e juízo, ou seja, a derradeira destruição do Mal e de toda a Terra. Só, então,

um novo mundo criar-se-á e será habitação de todos os que ficaram ao lado de Cristo.

(Apocalipse, capítulos 20-22)4.

Nas figuras de linguagem adotadas pelo escritor, percebe-se uma clara influência de

seus conhecimentos seculares e bíblicos. As Crônicas de Nárnia são carregadas de

expressões, de simbologia e de conteúdo que denotam características cristãs e podem ser

identificadas pelo leitor, assim como se atribuir um retrato cristão à obra.

Para explicar essa identificação, avaliar e comprovar a validade da similaridade desse

livro com as narrativas bíblicas, selecionamos duas crônicas: O Leão, a Feiticeira e o

Guarda-Roupa; Príncipe Caspian. Conforme o próprio Lewis menciona (HOOPER, 1996, p.

1 Português. In: Bíblia de Estudos de Genebra. 1999. p.13. 2 Português. In: ibid., p. 1234. 3 Português. In: ibid., p.1272. 4 Português. In: ibid., pp.1546-1550.

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251):

Não é claro que não foi inconsciente... nem foi, a princípio, intencional. [...] quando comecei o leão, a feiticeira e o guarda-roupa, não creio que tenha previsto que o Aslam iria fazer ou sofrer...como Jesus...e toda a série de crônicas tornou-se cristã.

2. A OBRA E O GÊNERO

C. S. Lewis é um nome conhecido internacionalmente no campo literário,

principalmente no da literatura infanto-juvenil. Percorrer seu legado é contextualizá-lo no

fazer literário. A literatura nasce do trabalho humano, da criação individual. Retrata – direta

ou indiretamente – a sociedade; a cultura; as condições humana, econômica; os conflitos; os

valores; as ideologias, etc. É por meio dela que podemos dialogar com homens e formas de

pensar de séculos distantes. A literatura parte da palavra – que está sempre carregada de

sentidos ideológico e vivencial. Logo, a leitura é a atribuição de sentidos próprios; é o ato de

ressignificar. O texto é o objeto social, que liga as duas esferas atuantes nesse processo: leitor

e autor. Ler Nárnia é dialogar com Lewis, com seus posicionamentos e valores. É, contudo,

irremediavelmente, ressignificar sua obra.

2.1 AS CRÔNICAS DE NÁRNIA A PARTIR DA TEORIA LITERÁRIA

Barthes (2007, p.18) indica três forças agentes dentro da literatura; são conceitos gregos

pertinentes a esta discussão: a) pela força da mathesis, a literatura abriga todos os saberes,

caracterizando-se por ser “enciclopédica”, fazendo “girar todos os saberes”. Afirma o autor

que todas as ciências abrigam-se no monumento literário; b) pela força da representação, ou

mimesis do real (demonstrável), ou do impossível. A busca do real pela linguagem, ou seja, a

relação entre a palavra e o mundo, encontra na literatura o “próprio fulgor do real”; c) pela

força da semiosis. Apesar de ter a impossível tarefa de apreender em si o real (ou fragmentos

dele), o real, por sua vez, escapa-lhe. A isso, Barthes define como “jogar com signos em vez

de destruí-los” (BARTHES, 2007, p. 18-28).

Quanto à representação (mimesis), é conveniente ressaltar que o imaginário é um

sistema de representação do mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem se confundir

com ela, mas a tendo como ponto de partida. Logo, o real é construído pelo olhar como

significado. Para compor uma representação social da realidade, o imaginário passa a ser

desmembrado dela, colocando-se numa esfera própria. Para Platão (ARISTÓTELES, 1966),

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mimesis é a imitação efetuada pela literatura, pelos poetas, bem como a representação

desenvolvida pelos atores. Porém, para este, as criações literárias são uma imitação da

imitação, pois imitam o mundo sensível que, por sua vez, é imitador do das ideias. Aristóteles,

discordando de Platão em Poética (1966), porém, acreditava que imitar usando-se a palavra é

congênito ao homem e, além disso, o ato de imitar realiza uma ação criadora (poesis),

deliberada e calculada, seguindo uma lógica própria e visando a um fim específico: prazer e

conhecer (REITER; SARDAGNA, 2009).

O conceito de alegoria remete-nos à representação de uma coisa que dá sentido por

intermédio de outra:

Etimologicamente, o grego allegoría significa "dizer o outro", "dizer alguma coisa diferente do sentido literal", e veio substituir ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.) um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer "significação oculta" e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais, método que teve como especialista Aristarco de Samotrácia (c.215-143 a.C.). A alegoria distingue-se do símbolo (v.) pelo seu carácter moral e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. Muitas vezes definida como uma metáfora ampliada, ou, como dizia Quintiliano, no Institutio oratoria, uma "metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido", a alegoria é um dos recursos retóricos mais discutidos teoricamente ao longo dos tempos. A mesma correlação é estabelecida por Cícero no De Oratore, em que a alegoria é vista como um sistema de metáforas. Uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos: a primeira considera apenas termos isolados; a segunda amplia-se a expressões ou textos inteiros. (CEIA, 1998, p. 19)

As Crônicas de Nárnia – conforme considerado na Introdução deste trabalho –

apresenta personagens variadas e situações alegóricas, nas quais se evidenciam valores

morais, postos na narrativa de modo metafórico e bem delineado. Compagnon (1999, p. 56)

diz que a alegoria “procura entender a intenção oculta de um texto pelo deciframento de suas

figuras”. Muitas vezes, camufla um sentido mais obscuro ou antigo, fazendo com que o leitor

reaproprie-se do texto em condições mais atualizadas, integrando-o a um novo modelo, “um

ato hermenêutico de apropriação” (ibid., p. 57). O próprio método hermenêutico, conforme

Compagnon definiu, segue um pulso próximo à análise deste trabalho: segundo o autor,

hermenêutica, “a arte de interpretar textos” tem sua origem na antiga disciplina auxiliar da

teologia, aplicada, a priori, em textos sagrados e que, ao longo do século XIX, dedicou-se à

interpretação de todos os textos (discursos) – fundamentando a filologia e os estudos literários

–; posteriormente, reconfigurada pela fenomenologia transcendental de Husserl, pela

fenomenologia hermenêutica de Heidegger e por outras escolas posteriores (COMPAGNON,

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1999).

Pretende-se, em suma, percorrer a intertextualidade encontrada em As Crônicas de

Nárnia e os reflexos dos textos sagrados. Por intertextualidade, Koch (2004, p. 145)

compreende, em stricto sensu, quando, em um texto, “está inserido outro texto (intertexto),

anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade [...] ou da

memória discursiva dos interlocutores”. Na obra analisada, a intertextualidade está implícita

quando se introduzem noções alheias ao próprio texto, sempre que “o produtor do texto

espera que o leitor/ouvinte seja capaz de reconhecer a presença do intertexto”, visto que,

caso não ocorra, compromete a construção do sentido.

Hooper cita a opinião de Lewis: “a melhor maneira de avaliar As Crônicas de Nárnia é

simplesmente as ler. Algumas considerações, contudo, devem ser feitas para se ter uma

apreciação melhor delas” (HOOPER, 1996, p. 447). Ademais, é conveniente ressaltar que o

livro está inserido no contexto da narrativa literária e de suas especificidades. De acordo com

Eagleton (1997, p. 9), a literatura pode ser tanto uma questão “daquilo que as pessoas fazem

com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas”. Afirma ainda que um

segmento de texto pode começar sua existência como uma “história ou filosofia” e, depois,

ser classificado como literatura; bem como pode começar como literatura e passar a ser

valorizado pelo significado arqueológico e pelos aspectos transcendentes. Não importa,

segundo o autor, a condição de nascimento do texto; mas, sim, o modo pelo qual as pessoas

relacionam-se com ele, pois elas podem se relacionar com a escrita de várias maneiras.

Embora haja leitores que não distingam elementos ou tipologia bíblica nas crônicas

narnianas, é importante conhecer as razões pelas quais o mercado editorial investe

considerável soma em literatura pró-Nárnia. Um grande número de autores consagrados

(como Clyde S. Kilby, David Downing, Devin Brown, Markus Muhling, Kathryn A.

Lindskoog, Walter Hooper, Gabriele Greggersen e Glauco Magalhães Filho) dedica-se a

pesquisar, a interpretar e a traduzir, à luz da Bíblia, detalhes imperceptíveis, até mesmo ao

leitor contumaz, produzindo obras literárias que servirão de guia e de manual facilitadores

sobre Nárnia e a Bíblia. Esses biógrafos de Lewis e os apologistas cristãos estudam na Bíblia

quaisquer relações de similaridade entre ACDN e as Escrituras, rejeitando aquilo que não

oferece embasamento científico-literário, com a intenção de preservar a idoneidade literária

de ambas as obras. A credibilidade dos autores que escrevem sobre Lewis, mais

especificamente sobre As Crônicas de Nárnia, tem sustentação no currículo que estes

apresentam e pela valorosa contribuição ao ensino e à literatura.

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2.2 CRÔNICA, ALEGORIA, CONTO OU PARÁBOLA?

A polêmica levantada por alguns críticos literários sobre o gênero narrativo de As

Crônicas de Nárnia é proveniente de o autor ter escrito, segundo eles, contos; e, não, crônicas

propriamente ditas.É importante salientar que, naquela época, segundo Hallewell (2005), os

escritores escreviam textos para serem publicados nos jornais. Ensaios, pequenos contos e

folhetins mantinham os escritores financeiramente, dentro ou fora do anonimato, por razões

políticas ou de foro íntimo, conforme a situação de cada um. Quanto maior a quantidade de

texto e mais rapidamente entregasse ao editor, mais rapidamente receberiam o numerário

combinado.

Porém, a crônica possui uma dimensão mais complexa: ela marca um período

cronológico e um tempo que ultrapassa a cronologia. Apesar de possuir inquestionáveis

movimentos do texto jornalístico (breve, leve e sequencial), mantém íntimas relações com a

poesia e com o ensaio. De acordo com Massaud (1988, p. 250), “quando o caráter literário

assume primazia, a crônica deriva para o conto ou a poesia, conforme se acentue o aspecto

narrativo ou contemplativo”. Santos (2007) cita definições ouvidas dos também cronistas

Fernando Sabino (para quem tudo o que é chamado de crônica é crônica) e Luís Fernando

Veríssimo (acredita que é uma literatura atemporal). Sob esse raciocínio, a Bíblia também

pode ser considerada um livro de crônicas. Sobre a definição de conto, no Dicionário Aurélio

(2010), encontra-se: “uma narração falada ou escrita, enquanto crônica é a narração

histórica, feita por ordem cronológica, podendo ser, inclusive, um pequeno conto”. O conto

possui as dimensões de um ovo: história fechada, completa, uma célula dramática que não

possui a passividade de ampliar-se. Possui temas inter-relacionados, como medo, amor,

carências, perdas e buscas. E estas fazem parte do cotidiano infanto-juvenil (bem como o do

adulto) e favorecem a autodescoberta – quem somos e o que desejamos – conforme nossos

valores morais e éticos.

Segundo Gotlib (1998), o conto é notoriamente um gênero literário de difícil definição,

e as teorizações por parte dos escritores e dos críticos atingem diferentes graus de

complexidade, principalmente quando se considera a evolução da concepção do conto no

tempo e nas diferentes culturas, por exemplo. Quanto ao conto maravilhoso (relacionado aqui

com a possibilidade de As Crônicas de Nárnia ser composto de contos), é analisado por Propp

a partir de pesquisas sobre os contos do folclore russo. O autor, de acordo com Gotlib (ibid.,

p.22), afirma do ponto de vista morfológico:

[...] qualquer desenrolar de uma ação que parte de uma malfeitoria ou de uma falta [...] e, que passa por funções intermediárias para acabar em casamento

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[...], ou em outras funções utilizadas como desfecho. (Nota dos autores deste trabalho: como a coroação daqueles que, na trama, demonstraram bravura, por exemplo.)

Gotlib (1998) recorre ainda ao alemão Jolles (1774-1946), afirmando que há relações

intrínsecas entre o conto e o fantástico, o maravilhoso. De acordo com Jolles, que abordou a

literatura infantil e trouxe uma oposição teórica entre “formas simples” e “formas artísticas”,

em relação aos mitos (recurso explorado por Lewis na caracterização de muitas personagens),

é inegável dizer que sua origem é incerta no tempo. A ausência de autoria, ou a autoria

incerta, leva Jolles a classificar os mitos como “formas simples”, pois estão arraigados ao

inconsciente coletivo, constituindo arquétipos. Porém, o conto está num segundo estágio e

corresponde às “formas artísticas”, pois partem da criação do artista; logo, subjetivos

(GOTLIB, 1998, pp. 17-18).

Por outro lado, Greggersen defende: “Do ponto de vista meramente didático, embora o

próprio C.S. Lewis nunca tenha explicitado nesses termos, podemos, sim, considerar As

Crônicas de Nárnia uma autêntica parábola filosófico-antropológica”. (GREGGERSEN,

2001, p.89). No entanto, não há algo que impeça o leitor de conceber as narrativas de Lewis

como uma série de contos que acabaram em crônicas – ou vice-versa. Primeiramente, porque

a ideia inicial era escrever um livro de histórias fantásticas, carregadas de aventura, de

emoções [...], e o “tipo fantástico de história infantil [...] é o tipo que conheço melhor e de

que mais gosto” (LEWIS, 2009, p. 746). Em segundo lugar, porque é rico em personagens e

múltiplas ações, que acontecem simultaneamente em dois planos diferentes: um real,

percebido como o mundo existente; e outro, imaginário, Nárnia. Em terceiro, porque retrata o

cotidiano de Nárnia detalhadamente; e, por fim, o autor escreveu-as separadamente. Somente

anos mais tarde acabou em livro. Logo, As Crônicas de Nárnia fazem parte do gênero

literário crônica.

3. O UNIVERSO MÍSTICO DA OBRA: CRISTIANISMO E IMAGINÁRIO

A literatura espelha o real e ultrapassa os limites da comunicação direta, levando o leitor

a outros níveis de interlocuções, à reapropriação do mundo que conhecemos e de outro; este,

ressignificado. Para a teologia cristã, fé e razão são dissociáveis. Magalhães Fº (2005) teoriza

sobre duas revelações: uma ligada à razão, acessível a todos, cuja tradição vem confirmada

pelas pesquisas arqueológicas ou históricas. Já a revelação especial advém da fé, com base

nas Escrituras Bíblicas. Ambas têm repercussão significativa na História da humanidade.

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3.1 RELAÇÃO ENTRE A OBRA E SEU UNIVERSO MÍSTICO-IMAGINÁRIO

Na temática cristã, o leão é a imagem idealizada de Deus/Cristo, e as crônicas refletem a

imagem da vida do cristão, da Criação ao Novo Mundo. Em O leão, a Feiticeira e o Guarda-

Roupa e em Príncipe Caspian, a saga dos quatro irmãos Pevensie, que escapam dos

bombardeiros da Segunda Guerra para um lugar seguro, distante de Londres, começa dentro

um guarda-roupa. O armário é pequeno por fora, mas imenso por dentro; como Deus.

É justamente dentro dele que a crianças encontram um mundo fantástico - Nárnia.

C.S.Lewis complementou a fauna de Nárnia usando seres ficcionais das mitologias grega,

latina e nórdica, como, por exemplo: centauros (mitologia grega) e anões (mitologia nórdica).

Árvores, neve, faunos, animais falantes, centauros, dríades, feiticeira, monópodes, leão, e até

a figura moderna do Papai Noel, portador de boas-novas, permeiam a imaginação dos leitores

e transformam a leitura em magia agradável. Seres estelares e rochas também ganham vida,

corpo e alma e dividem espaço com seres humanos.

O próprio título do livro, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, sugere que ele é uma espécie de amálgama, de coisas distintas: e, de fato, esse é o caso [...]. É como se Lewis se deleitasse na justaposição de coisas tão diferentes quanto possível, recusando-nos, assim, qualquer visão ou posição determinada. O livro é quase uma cornucópia ou, em outras palavras, como uma meia de Natal cheia de objetos variados e misteriosos, todos colocados juntos em um recipiente. (BROWN, 1987, p. 126-7)

Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Lewis descreve a personagem Feiticeira

Branca, que se passa por Filha de Eva, mas é descendente de Lilith, personagem mitológica,

cuja lenda diz ser a primeira esposa de Adão. Elementos místicos da obra poderiam conferir-

lhe um teor profano. Veith afirma que essas fantasias fazem com que a imaginação rompa as

barreiras “deste mundo de aço que tantas vezes parece ser tudo o que existe”. Para Veith, “as

melhores fantasias dão-nos ideais de que há algo além da existência, algo belo e

sobrenatural”. Remete a um prenúncio de como seria o céu algo santo (VEITH, 2005, p.19).

Em Príncipe Caspian, outras figuras mitológicas entram em cena: o deus das vinhas,

Baco, filho de Zeus; e o sátiro Sileno, filho do deus Pã, seu pai adotivo. Para Kilby (2010),

parece óbvio que dois propósitos guiaram Lewis na concepção de suas histórias acerca de

Nárnia. Uma delas foi escrever um bom conto; o outro, sugerir analogias. Ainda, segundo ele,

Lewis rigorosamente defendeu o conto de fadas contra qualquer pessoa que alegara transmitir

este uma falsa concepção de vida. Para Lewis, segundo Kilby (2010), era exatamente o

oposto: as chamadas histórias “realistas” é que enganavam as crianças. Para ele, Lewis via o

conto de fadas como mito; por um lado, desperta o desejo por um mundo ideal e, por outro,

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confere ao mundo real uma nova dimensão de profundidade. Ao ler um conto de fadas, a

criança fica satisfeita em simplesmente desejar, enquanto a leitura de uma história "realista”

pode estabelecer o sucesso do seu herói como um padrão a ser alcançado para si próprio e,

quando ela não pode ter a mesma bem-aventurança, sofre uma amarga decepção. Magalhães

Filho interpreta: A imaginação infantil parece conter mais verdades sobre o que é de fato importante

do que a ciência pode traduzir. Fazendo um paralelo com uma frase de Jesus, poderíamos dizer: de que

vale o homem conhecer o mundo inteiro se não conhecer a própria alma? (MAGALHÃES Fº, 2005, p.

16).

Reis (2001, p. 172) diz:

[...] a relação desse mundo possível com o real pauta-se pela categoria da verossimilhança [...] representa-se o que poderia ter acontecido, mas pode também resolver-se pela via da metáfora, da alegoria, do fantástico, da caricatura, da deformação desrealizante [...].

Há uma simultaneidade no tempo: passado, presente e futuro estão diante do leitor; no

mundo real e no imaginário, em Londres, no Deserto, ou na Arquelândia. Os contos de fada trazem a magia que alimenta a imaginação, ajudam a encarar os problemas da vida e, por vezes, trazem esperanças de dias melhores. É um pouco por isso que ainda hoje esses contos continuam a ser tão encantadores para adultos e crianças, que podem acreditar pelo menos na fantasia que é possível viver “feliz para sempre”. (GAGLIARDI; AMARAL, 2001, p. 86)

Veith complementa que as histórias bíblicas são fatos, embora lidas e compreendidas

pela imaginação. Segundo esse autor, é possível comunicar verdades espirituais por meio da

ficção, pois a própria Bíblia abre esse precedente quando Jesus “elucidou o Reino de Deus

por meio de parábolas”. Uma parábola, segundo Veith, é uma “história fictícia que ilustra

algum ponto” (VEITH, 2006, p. 21).

Assim, pode-se inferir que o estilo de Lewis é rico; precioso exatamente pela linguagem

multifacetada, com uma combinação genial de alegorias, metáforas, parábolas, imagens e

mitos.

3.2 RELAÇÃO ENTRE A OBRA E A BÍBLIA A leitura de As Crônicas de Nárnia remete à Bíblia, não somente pelo gênero e

imaginário, como também pela semelhança dos princípios bíblicos, que fornecem a parte

moral nas crônicas. O teólogo e escritor Russel Shedd, ao prefaciar a obra, “Um ano com

C.S.Lewis”, faz alusão ao “dom extraordinário utilizado para tratar de temas cristãos

profundos com simplicidade e perspicácia”. Shedd menciona a impossibilidade de ler Lewis,

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a quem se refere como “mestre”, sem perguntar: “Por que eu não pensei nisso antes?”. (apud

Lewis, 2009, p.7).

Para Greco, “separada da vida, a Moral não tem nenhuma função passível de

demonstração” (GRECO, 1984, p.163). Percebe-se que Lewis utilizou não somente as

mesmas figuras de linguagem encontradas na Bíblia - como parábolas, alegorias,

comparações, metáforas - e alguns componentes semelhantes (animais, natureza, crianças,

cantos, profecias, seres míticos); mas, principalmente, o senso de Moral (certo/errado). Junto

às questões de fé (crenças em divindades) e às comportamentais (solidariedade, altruísmo,

bondade, generosidade, orgulho, teimosia, incredulidade) retratam o panorama bíblico

observado por Shedd e Greco.

O paralelo bíblico começa com a escolha de Lewis quanto ao personagem principal, o

leão Aslan. O próprio autor declarou a tipologia do leão com Cristo:

Com relação ao outro nome de Aslan, eu quero que você adivinhe. Já ouve outra pessoa neste mundo que: 1) Chegou na época do natal; 2) Declarou ser o Filho do Grande Imperador; 3) Entregou-se a si próprio por causa do erro de outra pessoa, para ser escarnecido e morto por pessoas más; 4) Ressuscitou; 5) Refere-se a ele mesmo algumas vezes como sendo um cordeiro? Você tem certeza de que não sabe mesmo o nome dele neste mundo? (apud LINDSKOOG, 1974, p. 16)

Para Lindskoog, o uso de um leão como símbolo de poder é um artifício bíblico.

Segundo ela, o livro de Provérbios refere-se: “o leão, que é poderoso entre os animais e não

foge de ninguém” (Provérbios 30: 30)5. Anteriormente, o rugido do leão é comparado ao

terror do rei (Provérbios 20: 2)6. O profeta Oséias vai mais além ao comparar o rugido do leão

à ira de Deus (Oséias 11: 10)7. Finalmente, em Apocalipse, o leão é usado claramente como

um símbolo específico de Cristo. O apóstolo João registra: “E disse-me um dos anciãos: Não

chores; eis aqui o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, que venceu para abrir o livro e

desatar seus sete selos.” (Apocalipse 5: 5)8. Porém Lewis, embora claramente tenha sido

influenciado pela Bíblia, não necessariamente embasa seu imaginário nas Sagradas Escrituras.

(LINDSKOOG, 1974).

Ainda em torno da figura do leão, Mühling (2005) discorre que a palavra Aslan é árabe

e significa simplesmente “leão”. Lewis indica que desenvolveu a história de Nárnia ao redor 5 Português. In: Bíblia de Estudos de Genebra. 1999. p. 766. 6 ibid., p. 752. 7 ibid., p. 1017. 8 ibid., p.1533.

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da ideia do leão. Ele escusou-se a declarar expressamente que Aslan representa Cristo. De

acordo com ele, Lewis não se sentou para escrever uma alegoria, que é uma história em que a

ordem dos acontecimentos corresponde, uma a uma, à história de Jesus. Entretanto,

estilisticamente, encontramos elementos alegóricos nas narrações de Lewis. Ele deixou-se

guiar pela seguinte indagação: se assumirmos que existe uma terra como Nárnia, na qual os

animais são falantes, e uma como a nossa, o eterno Logos, Deus o Filho, se encarnasse, como

se pareceria? A resposta é, obviamente, o leão Aslan, que proveu Lewis de um meio de

apresentar suas convicções cristológicas.

Segundo Kloster (2010), Lewis emprega a “Mágia Profunda” como uma analogia das

leis e dos mandamentos dados por Deus aos israelitas, usando Moisés para isso. Mühling

(2005) concorda que, para Lewis, a “Magia Profunda” seria a Lei; e a “Magia mais que

Profunda”, o Evangelho. Para ele, a palavra evangelho não é apenas uma descrição de um tipo

particular de literatura, em O Novo Testamento. Evangelho, ou euangelion, em grego,

literalmente significam “boas-novas”. Martinho Lutero claramente via que o Evangelho

sumariza o que Deus faz pelo homem; e a lei, o que Ele deseja que o homem faça. Embora o

Evangelho e a Lei sejam opostos, não são contraditórios; um não elimina o outro. Eles

relacionam-se de uma forma positiva.

De acordo com Kloster (2010), outra analogia à Bíblia encontra-se no ato sacrificial de

Aslan, ao oferecer-se para morrer no lugar de Edmundo, pagando pela traição deste. À medida

que Aslan aproxima-se da mesa de pedra, a Feiticeira chama-o de tolo e dá ordens para que

ele seja preso e depilado. A malvada zomba de Aslan, declarando que ele não passa de um

grande gato. Isso nos remete aos últimos momentos de Cristo, que também foi zombeteado

por seus malfeitores. O rompimento da Mesa de Pedra simboliza a cortina do Templo de

Jerusalém, rasgando-se de alto abaixo quando Jesus morreu.

Para Lindskoog (1974), por causa de seu poder criador, sua morte e ressurreição, Aslan

preenche completamente a descrição de Cristo, encontrada no primeiro capítulo do livro de

Hebreus:

Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas. (Hebreus 1:1-3).9

9 Português. In: Bíblia de Estudos de Genebra. 1999. p. 1463

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Em Príncipe Caspian, Lewis brinda-nos com outra intertextualidade bíblica interessante

com relação à diferença de tempo entre o “nosso mundo” e Nárnia. É Edmundo o responsável

por deslindar o mistério:

– Oh! – exclamou Edmundo, num tom de voz que obrigou todos a prestarem atenção. – Já entendi tudo! – Entendeu o quê? – perguntou Pedro. – Tudo! Ontem à noite estávamos intrigados porque saímos de Nárnia há apenas um ano, mas Cair Paravel parece desabitado há séculos. Não se lembra? Embora tenhamos passado muito tempo em Nárnia, quando retornamos pelo guarda-roupa, parecia que não havia passado tempo algum. É ou não é? (...) – Isso quer dizer – prosseguiu Edmundo – que, quando se está fora de Nárnia, a gente perde toda a noção de como o tempo passa aqui. Por que então havemos de achar impossível que em Nárnia tenham passado centenas de anos, enquanto para nós passou apenas um? (LEWIS, 2009, p. 308)

Diz a Bíblia: “Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que para o

Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2 Pedro 3:8)10

Lewis, tendo sido professor de grego, era sabedor da existência de dois termos para

tempo, que se excelem; portanto, tomou esse conceito temporal já conhecido e adaptou à sua

história. Conforme Butler (2003) aponta, no grego, língua em que o Novo Testamento da

Bíblia fora escrito, há uma distinção entre duas formas de marcar o tempo: Chronos e Kairos.

Essas palavras gregas são usadas para designar, respectivamente, o tempo humano e o divino.

O primeiro, Chronos, é o termo usado para referir-se ao tempo que pode ser medido

cronologicamente; é aquele ao qual estamos presos e não conseguimos nos desvincular. Trata-

se do tempo das horas, dos dias e dos anos seguidos, linearmente, em que cada fato acontece

antes ou depois de outro. Kairos é o tempo oportuno de Deus, a eternidade, o atempo; aquele

que não está preso a uma linha cronológica de acontecimentos. Como não o vivenciamos, ele

é mais difícil de entender. Dessa forma, entre nosso mundo e o de Nárnia, as pessoas

transitam no Kairos, ou seja, mais exatamente no tempo em que Aslam deseja que elas

apareçam em cada local.

Conforme já afirmado anteriormente, As Crônicas de Nárnia podem ser analisadas

levando-se em conta os lados pedagógico, literário e teológico de Lewis. Considerando o

teológico, pode-se afirmar que o autor ensina o leitor acerca de aspectos interessantes da vida,

sejam estes dentro ou fora da religiosidade, com pequenas cenas repletas de sentido.

4. CONCLUSÃO

10 Português. In: Bíblia de Estudos de Genebra. 1999. p. 1508

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O alcance existencial na literatura de Lewis remete o leitor à Bíblia, por duas razões

básicas. Em primeiro lugar, porque há elementos cristocêntricos em As Crônicas de Nárnia.

Esses elementos, já confrontados e explicados valendo-se das obras analisadas, atestam e

comprovam a intenção do autor em escrever uma literatura fantástica diferente, quebrando

conceitos e regras estilísticas. Pela explicação dos teóricos literários, moldes cujos elementos

não somente envolvessem seus leitores nas aventuras extraordinárias, intangíveis,

imaginárias, mas que construíssem algo sólido, concreto, em ação, e que atribuísse valores às

crianças. É importante salientar que suas formações intelectual, cultural e religiosa são

relevantes para a compreensão desse ideal.

Independentemente de credo, de cultura ou de ideologia, As Crônicas de Nárnia traz

mais esse benefício a seus leitores: os importantes valores para os crescimentos moral, ético e

espiritual, igualmente promovidos pelo Cristianismo, os quais a retratam como literatura

cristã. A segunda razão Lewis deixa impresso em suas mais diversas obras utilizadas nessa

análise, inclusive ACDN, quando da utilização de elementos cristocêntricos, fazendo o

intertexto com a Bíblia.

Ainda que prevaleça algum preconceito em relação às obras que utilizam elementos

seculares, caracterizados como pagãos, coadunados com os bíblicos, há consenso entre os

escritores lidos que a Bíblia faz citação de elementos pagãos em suas narrativas, até porque é

o registro histórico e verdadeiro de um povo que inicia na origem do Mundo, do Homem e

segue adiante, contabilizando sucessos e fracassos, vitórias e derrotas, aventuras e

desventuras. Nesse palco, os aspectos culturais são importantes, e o caráter do ser humano é

trabalhado.

É justamente a coletânea de vários livros que formam a Bíblia, com seus vários

escritores, em épocas e locais diversos, em que Lewis inspira-se. Nenhuma outra obra

consegue reunir tanta informação sobre o Homem, seu mundo, sua mente, sua alma e seus

anseios como a Bíblia. A imaginação de Lewis criou símbolos a partir dos que já existiam,

explicitados pelos personagens caricaturados, como o Mal. No entanto, percebeu-se que os

que consolidaram o Bem eram mais humanos, não isentos de errar, mas com capacidade de

discernir, em algum momento, pelo Bem. Assim, o Bem sobrepuja o Mal.

Lewis revela, em ACDN, um deus íntimo e pessoal, que interage com Sua Criação e

Criatura. É um deus com personalidade. À semelhança do Deus da sua fé, o autor criou

personagens e dotou-lhes da pessoalidade, à imagem e semelhança de Aslam. Essa é uma

retórica bíblica. Com sua personalidade criativa, Lewis faz a intertextualidade de As Crônicas

de Nárnia com a Bíblia, de forma riquíssima. Apresenta infinitas possibilidades de estudo,

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que vão desde as semelhanças entre os gêneros literários, às figuras de linguagem diversas,

aos cantos de celebração, às orações, aos perfis de personalidades. Enfim, servem como

sugestão para futuras pesquisas, tendo em vista o espaço limitado desta pesquisa.

Conclui-se que a análise relacionando os elementos, as teorias e os fatores aqui

descritos indica, em As Crônicas de Nárnia, uma clara reconstrução dos símbolos sagrados

pertinentes ao Cristianismo, mediante o uso de figuras de linguagem, como alegorias,

metáforas e parábolas concomitantes às narrativas bíblicas.

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