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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de História
Especialização em História Cultural
Memória e História - Fernando José de Almeida Catroga
Enderson Medeiros
Jhunes Clemente Sobrinho
Lilian Aparecida da Silva
Sariza Oliveira Caetano Venâncio
Goiânia, maio de 2009
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1. MOTIVAÇÃO
O historiador só não se encaminhara na sedução ordenadora da memória e na legitimação da
história dos vencedores se tiver a ousadia de também perguntar: que versão do passado domina e
quem é que a pretende preservar? E por quê? E o que é que, consciente ou inconscientemente, ficou
esquecido? Ora, antes de responder, é necessário pôr em equação as relações entre memória,
história e historiografia. É por meio destes questionamentos que o texto “Memória e História” do
autor Fernando José de Almeida Catroga, publicado no livro Fronteira do Milênio e organizado pela
pesquisadora Sandra Jatahy Pesavento em 2001, perpassa. O trabalho pretendido aqui objetiva
analisar este texto fazendo uma interpretação sintética dos conceitos abordados pelo autor.
2. APRESENTAÇÃO DO AUTOR
Fernando José de Almeida Catroga é doutor em História pela Universidade de Coimbra,
çPortugal, em cuja Faculdade de Letras é professor. Ensina ainda na Universidade Autônoma de
Lisboa. Membro do Instituto de História e Teoria das Idéias e Investigador do Centro de História da
Sociedade e da Cultura (da Fundação para a Ciência e Tecnologia) e redator da Revista História das
Idéias. Tem participado de congressos com projetos de âmbito internacional e pronunciado
numerosas conferências em Portugal e no exterior.
Dirige, também, a coleção "Poliedro em História" (Editorial Notícias).
As suas investigações têm incidido no âmbito da História das Idéias e da História da Cultura
e das Mentalidades, abordando temas tão diversos como a História da História, o Cientificismo, o
Positivismo, o Laicismo, o Republicanismo e a História das Ciências, entre outros temas.
Das dezenas de títulos já publicados destacam-se como mais relevantes publicações nos
últimos quatro anos:
a) Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almedina,
2006.
b) “Ainda será a história mestra da vida?”. Estudos Ibero-Americanos. Revista do
Departamento de História. Edição Especial, Nº 2, 2006. Porto Alegre: PUC do Rio Grande
do Sul.
c) Nação, mito e rito. Fortaleza: Museu do Ceará, 2005.
3. APRESENTAÇÃO DA OBRA
A obra Fronteiras do Milênio se encaixa no campo da História da Cultural. Foi organizada
pela historiadora Sandra Jatahy Pesavento e esta obra arrola sobre temáticas diversas da História
Cultural.
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4. ARGUMENTOS ARROLADOS NO TEXTO
Ao iniciar sua argumentação no texto Catroga afirma existir um relativo consenso entre os
autores que trabalham com a temática “memória e identidade”, que a reminiscência1 é necessária
para formação das identidades pessoais, e que esta por sua vez esta ligada diretamente ao dualismo
de Bergson.
Ora, para elucidar ao leitor que viria ser este tal dualismo façamos uma breve retrospectiva
para o pensamento do filósofo citado. Bergson2 supondo que o homem se afastava cada vez mais de
uma vivência temporal integrada e aberta à consciência, propôs os conceitos de memória-hábito e
memória-lembrança que se alinhavam, respectivamente, à oposição matéria e espírito. Bergson
denominou memória-hábito a resposta automática determinada pelo hábito social com seu
desempenho repetido de performances mentais e corporais que envolvem atividades cotidianas, tais
como nadar, andar de bicicleta e responder automaticamente a múltiplas solicitações do meio.
Em oposição à memória-hábito, concebeu a noção de memória-lembrança, ou memória
verdadeira, que atribui à memória humana a capacidade de suplantar as determinações do hábito,
constituindo-se em fator de consciência e liberdade do sujeito ante o meio e a cultura envolvente.
Retrocedendo a argumentação de Cartroga ele vai citar Joel Candau, para explicar que este
dualismo está superado, pois, segundo Candau3 existem três tipos de memórias:
proto–memória: fruto, em boa parte, do habitus e da socialização, e fonte do automatismo do agir
que tendem a diluir a distanciação entre o passado e o presente;
memória propriamente dita: que enfatiza a recordação e o reconhecimento;
metamemória: conceito que define as representações que o individuo faz da sua própria memória e o
conhecimento que tem e afirma ter desse fato. (CATROGA, 2001, p. 43-44)
O conceito de metamemória, explica a concepção do indivíduo enquanto membro de um
grupo ou sociedade, remetendo diretamente a sua identidade.
Catroga, após expor este argumento coloca na berlinda à concepção de memória coletiva
(termo criado por Maurice Halbwachs) relatando que esta proposta teórica foi condicionada pelo
império do paradigma positivista e organicista do início do século XX, que conduzia a emergência
da sociedade de massas e conseqüentemente postulação de “sujeitos coletivos” como motores do
dinamismo histórico. Contudo, apesar da crítica a este paradigma ele não nega que a reminiscência
1 Utilizamos este termo em oposição à anamnesis devido a sua ligação lingüística direta com a temática abordada.2 BERGSON, Henri. Matiere et mémoire; essai sur la relation du corps a l’esprit. Genève: Éditions AlbertSkira, 1946. pp. 259.3 CANDAU, Joel. Mémoire et identité. Paris: Puf, 1998.
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se da dentro de quadros sociais, pois os indivíduos estão contextualizados dentro de um processo
social onde se situam o modo como eles se vêem e organizam seu percurso rumo a identidade.
Neste âmbito torna imprescindível que a memória seja seletiva, como afirma Catroga “ela
nunca poderá ser um mero registro, pois é uma representação afetiva, ou melhor, uma re-
presentificação, feita a partir do presente e dentro da tensão tridimensional do tempo, ou seja,
presente-passado, presente-presente, presente-futuro”.
Neste ponto Catroga chama atenção para a relação lógica temporal da recordação na
narrativa do individuo atentando-se para o fato de existir uma lógica em ação na narrativa memorial
evocada pelo individuo. Isto porque a recordação evocada pelo sujeito objetiva-se numa
retrospectiva coerente do passado, como se neste caminho não existisse lapsos de esquecimento. É
importante esclarecer ao leitor que Catroga argumenta justamente que a lógica temporal evocada
pelo individuo na recordação é perpassada por um processo totalizador e teleológico que domestica
o aleatório e os efeitos perversos do real-passado. Abrimos um parêntese neste momento para uma
colocação do pesquisador Loiva Otero Felix que elucida este processo da seguinte maneira,
a memória é descrita para dar sentido ao presente de um grupo ou de um indivíduo, sentido esse que
deve ser continuamente construído, uma vez que a memória não é estática, pois na base da sua
formação encontra-se a negociação entre as lembranças do sujeito ou grupo e as dos outros grupos
ou sujeitos. (FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo:
Ediupf, 1998.)
Ora, é notório como relata Catroga que a recordação alimenta uma epistemologia ingênua,
que tende a confundir representação com o real passado e desta relação com o real a recordação
tende a se distinguir da imaginação mesmo admitindo que ambas evocam de certa forma um “objeto
ausente” Estas evocações da recordação pretendem sempre legitimar o real narrado no tempo
passado que por sua vez garante a fidelidade do narrado. O propósito disto se condiciona a
convocação qualitativa, seletiva e apaixonada do que já não existe.
Memória e esquecimento
Segundo Catroga “a recordação tende a esquecer-se do esquecido que ela mesma constrói”.
(p.47) Sendo este localizado no subconsciente recalcado. E é através das suscitações do presente
que o “esquecido” pode vir a ser lembrado. Mas devemos lembrar que os indivíduos selecionam o
seu passado ao escolher consciente ou não o que vai ser lembrado e esquecido.
A recordação quando re-presentificada é reavivada. Caso não seja praticada é devorada pela
corrupção do tempo, ou seja, o esquecimento. Daí, a importância para o autor dos ritos
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compartilhados porque sem eles não haverá memória coletiva ou individual, uma vez que o
conteúdo desta memória é inseparável dos diversos ritos que a produzem.
Ao se comemorar os ritos públicos ou privados estamos socializando os sujeitos, integrando
o eu através de práticas simbólicas e comunicativas. E essa comemoração é a reprodução e a
transmissão não só do rito, mas também da memória.
Funções dos ritos de recordação
Catroga volta a enfatizar as funções instituintes de sociabilidade (Pierre Bourdieu) que os
ritos de recordação, em particular, os comemorativos tem. O autor acrescenta que, além disto, a
memória tem seu papel pragmático e normativo, uma vez que visa ela inserir os indivíduos em
cadeias de filiação identitária distinguindo-os e diferenciando-os em relação a outros.
Assim, em nome de uma identidade e de um sentimento de pertença, Catroga afirma que os
rituais unificam recordações pessoais (como é o caso de eventos familiares) ou coletivas
(recordações nacionais) buscando de certa forma atualizar e eternizar essas identidades. Logo, na
estreita relação entre memória, identidade, filiação e distinção, sem a memória as demais jamais
existirão. A última tarefa dessas liturgias de recordação é a de criar sentido e perpetuar o sentimento
de pertença e de continuidade num protesto contra o tempo; como se através dos ritos houvesse uma
possibilidade de se vencer a morte.
O autor cita que o século XIX ficou conhecido como o “Século da Memória” segundo Pierre
Nora porque foi o século em que este ritualismo memorial ganhou a sua mais pública expressão.
Contudo, o século XIX também foi, e não por acaso, o “Século da História” e o “Século das
Nacionalidades”, período em que as classes e os novos Estados-Nação procuravam no passado a sua
legitimação como forma de possibilitar a instituição e o reconhecimento de identidades coletivas.
Catroga, por fim, recorda que a memória é ativa, logo a recordação nunca estará separada ou
trará oposição entre passado, presente e futuro. O autor recorre a Ricoeur e a Walter Benjamin para
dizer que “recorda é, por isso e sempre, uma operação de resgate (...). Daí que, (...) se possa dizer
que, através da memória, o futuro também é projecção de antigas esperanças.” (p.53)
Memória e historiografia
O autor coloca que vários autores como Halbwachs e Pierre Nora considera a memória
coletiva como espontânea e que existe dialética entre recordações e esquecimentos. Sendo assim, a
memória é inconsciente das suas deformações e vulnerável a todas as manipulações. Já a
historiografia será uma reconstituição sempre problemática e incompleta do que não existe.
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Enquanto a historiografia exige a leitura do passado à memória limita-se ao verossímil. Para isso o
distanciamento entre o sujeito e o objeto é fundamental.
A escrita da história como rito de recordação
A Historiografia nasceu para combater o esquecimento (Heródoto). Para o autor existe uma
relação entre historicismo e o culto aos mortos. Sugere que Oitocentos foi o século da História,
porque também foi o século da morte. Alguns historiadores como Oliveira Martins fizeram relação
entre historiografia e evocação dos mortos. Assim como os cemitérios a escrita e a leitura da
História provoca re-presentificação que visa conhecer algo do que se sabe já não existir. Outros
historiadores como Ranke e Michelet atribui à escrita histórica o papel de “ressuscitador” de
mortos.
Para muitos autores como Michel de Certeau os ritos têm a funcionalidade de parar o tempo, a
fim de se fazer reviver. Para ele o fundo ritual é que anima o próprio trabalho do historiador. Isso
mostra a necessidade de se construir um passado para o presente, de modo a que este se situe num
percurso como horizonte de futuro.
A história “filha” da memória, a memória “filha” da história
O autor lembra que as semelhanças entre memória e historiografia perpassam pelas
narrativas que se referem a “objetivos ausentes”, embora se presuma a sua onticidade pretérita.
Deste modo, a imaginação memorial e a imaginação histórica (Collingwood) não podem ser
confundidas com a imaginação artística. Na imaginação estética, a referencialidade e a verificação
não constituem condições a aceitação do discurso, sendo relativamente indiferente o problema da
verdade.
Para ele a recordação como a historiografia constroem re-presentificações a partir da
interrogação de indícios e traços. Isso tudo é mediado pelo presente, o recordar e o historiar
oferecem ao passado um mundo aberto de possibilidades.
Nesse caso tanto a memória quanto a historiografia cometem erros epistemológicos em
pensar que a dialética entre recordação e esquecimento é um pecado exclusivo da memória.
Todavia, não se pode esquecer, igualmente, que os problemas que caracterizam os inquéritos da
historiografia – formulados de acordo com regras e especificidades metodológicas próprias – só
poderão nascer no seio da memória. O historiador exerce uma função na busca da verdade, com
suas inquietações do presente que a formula. A escrita da história também é fonte produtora (e
legitimadora) de memórias e tradições.
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Para isso é certo que este uso tem suscitado uma autêntica “guerra civil” permanente entre
história-crítica e a “história oficial”. Em suma: nas motivações existentes nos seus objetivos e até
nos seus métodos, a historiografia acaba por pedir emprestada alguma coisa à memória, apesar de
todas as suas prevenções racionalistas contra esse contágio.
Comemoração e poder
Segundo Fernando Catroga a expressão coletiva da memória, ou metamemória, não escapa à
instrumentalização dos poderes, por via daquilo que é recordado ou se silencia consciente ou
inconscientemente. Por isso o historiador tem de tomar algumas precauções para lhe dar com esse
objeto. É preciso que ele faça algumas perguntas como: quem deseja recordar? E por quê? Qual a
versão do passado que se registra e se preserva? O que ficou esquecido? Essas perguntas ajudam o
historiador a examinar melhor a memória e não se deixar envolver por sua sedução.
Na Europa do século XIX, as transformações sociais solicitaram reinvenções do passado.
Surgiram intensos e conflituosos processos de formação e refundação de uma nova idéia e de um
novo ideal de Nação e à consolidação do poder dos novos grupos e classes emergentes. Nessa nova
manifestação da consciência, corporizou-se um reconhecimento do valor social e político da
investigação, ensino e popularização de interpretações do passado legitimadoras do presente, assim
como na institucionalização de práticas simbólicas postas ao serviço da sacralização cívica do
tempo, chamadas de comemorações, e do espaço, novos lugares de memória, resultou desse
movimento a enfatização da sociedade- memória oitocentista.
O século XIX foi o século da história devido ao grande surto historiográfico e ao correlato
reconhecimento da utilidade social e político-ideológica do saber histórico, onde a função ensinável
das interpretações racionais do passado refletiu-se no trabalho construtor e legitimador de novas
memórias. Numa versão científica do velho preceito ciceriano, onde o estudo do passado seria
condição fundamental para se entender o presente e se perscrutar a direção do futuro.
Lembrar grandes feitos do passado, grandes civilizações, heróis servem como lição para um
presente em decadência, ou melhor, servem como uma lição a se alcançar no futuro. Como exemplo
desse movimento de representação do passado tem-se em Portugal nos finais do século XIX, um
clima decadentista, situação que certos grupos procuravam superar, incitando a opinião pública a
colher lenitivos nas lições do passado. Daí, o forte investimento comemorativo, que servia como um
mecanismo de re-fundação do passando a ser projetado num futuro.
O comemoracionismo cívico, tal como idéia de tempo então dominante na historiografia,
punha em ação a mesma visão evolutiva e continuista do devir, em que, como herança a resgatar, o
melhor do passado era decantado para funcionar como futuro do presente. Constituindo ritos de
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recordação e de comemoração, em que se enalteciam as figuras exemplares ou momentos de
grandeza, como meio de criticar-se a decadência do presente e ter esperança numa redenção futura.
A metamemória que teve seu apogeu no século XIX parece que nos tempos atuais está em
crise, pois as transformações sociais e a contestação do historicismo e de seus postulados como a
perfectibilidade, a evolução, o progresso e etc. instalaram um sentimento de descontinuidade e de
pluralidade. Pois mesmo ao nível mais subjetivo, tende-se a esquecer que a própria memória é
tridimensional (presente, passado, futuro). Neste caso, há uma crescente dissolução da vivência do
tempo como presente real (complexo e tendencional) na atemporalidade e acronia do tempo real.
Enquanto o presente real postula a memória em ação, onde se cruzam heranças e
expectativas, o tempo real transcorre como tempo vulgar, logo, como uma mera sucessão, em que
cada momento transporta esquecimento do instante que o precedeu (Ricouer). Catroga pergunta se
“Conduzirá tudo isto ao aparecimento de uma sociedade amnésica?”. Segundo Catroga o que parece
ser a crise, seja tão-só, sintomas do aparecimento de modos mais plurais e diversificados de
objetivação memorial, em conseqüência da fragmentação dos sistemas culturais nas sociedades
contemporâneas. Mas é preciso tomar cuidado com o sentido de nossa própria existência e nas
nossas relações com o outro, as palavras de Nietzsche pode nos ajudar a pensar melhor a questão: “é
licito reivindicar o direito ao esquecimento. Porém, não se pode olvidar que os abusos da amnésia, e
os da recordação geram os mesmos efeitos. Ambos deságuam no caos e no sem- sentido da
existência”.
5. QUESTÕES
a) Qual a diferença conceitual para Catroga entre “re-presentar” e “re-presentificar” a ponto do
autor utilizar e preferir este á aquele?
b) Quais os problemas que caracterizam os inquéritos da historiografia?
c) Qual a relação entre memória e identidade? Se a memória produz e mantém identidades, seria
correto afirmar que a identidade, também, produz memória? Ou a memória que permeia as
identidades já são pré-estabelecidas atuando como mantenedoras das identidades?