mimesis vol23 n2 2002 catroga

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  • 8/14/2019 Mimesis vol23 n2 2002 Catroga

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    ReitoraIrm Jacinta Turolo Garcia

    Vice-Reitora e Pr-Reitora Comunitria

    Irm Ilda Basso

    Pr-Reitora AdministrativaIrm Olvia Santarosa

    Pr-Reitor de Pesquisa e Ps-GraduaoJos Jobson de Andrade Arruda

    Pr-Reitora AcadmicaRegina Clia Baptista Belluzzo

    M I M E S IS

    r e v i s t a

    c i n c i a s h u m a n a sBauru SP 2002 V. 23 N. 2

  • 8/14/2019 Mimesis vol23 n2 2002 Catroga

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    Rua Irm Arminda, 10-50

    CEP 17011-160, Caixa Postal 511Fone (14) 3235-7111 Fax (14) 3235-7219

    Bauru - SP - Brasile-mail: [email protected]

    Copyright EDUSC- 2003

    Coordenao EditorialIrm Jacinta Turolo Garcia

    Assessoria AdministrativaIrm Teresa Ana Sofiatti

    Coordenao Executiva

    Luzia Bianchi

    CapaJlio Furtado

    Projeto GrficoJlio Furtado

    Reviso de Lngua PortuguesaAngela de Lima Lapera

    Reviso de Lngua InglesaLaureano Pelegrin

    DiagramaoJlio Furtado

    Impresso e Acabamento

    Grfica Bandeirantes S/A

    Publicao Semestral / Semestral Publication

    ISSN 0102-7484

    Mimesis: Revista da rea de Cincias Humanas.

    Universidade do Sagrado Corao. Bauru -SP - Brasil, 1979-1980; 1982

    1979-80, 1-2

    Publicao interrompida em 19811982-2002, 2-23

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    Conselho Editorial

    Glria Maria PalmaUSCHlio Requena da ConceioUSCJos Luiz SanfeliceUnicampMaria Aparecida V. BicudoUSCRegina Clia Baptista BelluzzoUSCSlvio Donizetti O. GalloUSC

    Newton Aquiles von Zuben USCEditor

    Conselho Cientfico Internacional

    Angela Ales BelloUniversidade Lateranense de RomaAna Patrcia Noguera EcheverriUniversidad Nacional deColombia

    Andres Troncoso vilaPontificia Universidad Catlica do ChileAntonio AledoUniversidad de AlicanteEspanhaClaude-Jean BertrandUniversit de Paris IIFranois Dossecole Normale SuprieureParisGloria M. Comesaa-Santalices Universidade de Zulia Venezuela

    Guilhermo Hoyos VasquesPontificia Universidad JaverianaColombia

    Jos TengarrinhaUniversidade do PortoPortugalJulin Serna ArangoUniversidad Tecnolgica de Pereira

    ColombiaLus Ado da FonsecaUniversidade do PortoPortugalStuart SchwartzYale UniversityUSA

    Conselho Cientfico Nacional

    Ademir GebaraUNIMEPAlberto De VittaUSCAntonio Carlos Carrera de SouzaUSC

    Antonio Vicente Marafiotti GarnicaUnespBauruBenedito AntunesUnespAssisBenedito Eliseu CintraPUCSo PauloClia Maria RiveroUSCCleide Antonia RapucciUnespAssisConstana Marcondes CesarPUCCampinas

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    Francisco de Assis CorreiaUnespRibeiro PretoFrancisco FontanellaUNIMEPFranklin Lepoldo e SilvaUSPSo PauloGabriele CornelliUNIMEPIlca Almeida de Oliveira VianaUSCJoo Baptista de Almeida JuniorPUCCampinas

    La Slvia Braga de Castro SUSCLoureno ZancanaroUELLucila ScavoneUnespAraraquaraLuiz Alfredo ChinaliUnespFrancaLuiz Gonzaga Godoy TrigoPUCCampinasMarcia Valria Zamboni GobbiUnespAraraquaraMarcos Antonio dos Santos ReigotaUniversidade de SorocabaMaria Arminda do Nascimento ArrudaUSPSo PauloMaria de Lourdes TabaquimUSCPedrinho GuareschiPUC

    Pedro L. GoergenUnicampRoslia M. R. de AragoUnespThomas BonniciUniversidade Estadual de Maring

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    Mimesis uma revista semestral, publicada pela Universida-de do Sagrado Corao, dedicada s Cincias Humanas. Atenta realidade cultural pluralista e multidisciplinar de nossa poca atual,

    pretende apresentar-se como um meio, ao mesmo tempo pedaggi-

    co e crtico, de divulgao dos saberes constitudos atravs das pes-quisas e reflexes de especialistas que tenham interesse em questesque so objeto de investigao das Cincias Humanas. Est cienteda diversidade de posies tericas, ideolgicas e filosficas, comseu potencial conflituoso, assim como da pluralidade de crenas ede valores ticos de uma sociedade em constante transformao, e a

    partir dessa convico, esfora-se por promover o reconhecimentodo direito de cada um manifestao de suas idias. Identificandoa relevncia social do conhecimento, postula o dilogo constantedos diversos discursos, para alm das fronteiras disciplinares, assu-mindo como principal preocupao, de um lado, a busca constantee rigorosa da compreenso e da interpretao da realidade, respei-tando as nuanas que o rigor assume conforme a regio de indaga-o qual se refere, e, de outro lado, o respeito do direito de dife-rentes linguagens em pleitear racionalmente o conhecimento, a pes-

    quisa e a reflexo.Mimesis tem como finalidade construir um espao comum no

    seio do qual todos possam manifestar-se, formando uma pluralida-

    de paradoxal de linguagens nicas, cada uma colocando prova suapertinncia e sua validade mediante o contato com a realidade epelo dilogo crtico com outros discursos. Focada na construo deuma comunidade comunicante, rejeita qualquer sectarismo metodo-

    lgico ou ideolgico, investindo, ao contrrio, na politizao do es-pao cultural de pensamento e de investigao como meta e tarefa,reconhecidas pela prpria Universidade, e amparadas por padresticos institudos em concerto.Mimesis aceita trabalhos, como arti-gos, ensaios, estudos crticos, resenhas, de preferncia de especia-

    Mimesis

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    listas ou pesquisadores ps-graduados da rea de Cincias Huma-nas, sobre temas ou teorias da atualidade sem deixar de considerar

    relevantes as contribuies investigativas, de carter mais acadmi-co, sobre questes e autores clssicos. Os trabalhos encomendadosou recebidos sero publicados no idioma do autor.

    Ao Conselho Editorial, reserva-se o direito de os publicar ou

    no, seguindo rigorosa avaliao e parecer de, no mnimo, dois dou-tores do Conselho Cientfico ou outros externos, especialistas narea qual se insere o trabalho apresentado.

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    Atendendo sua finalidade fundante de construir um espao deaparncia para mltiplos discursos, aRevista Mimesis, neste nme-ro, apresenta diversos estudos nas reas de Filosofia, Sociologia, Fi-losofia da Educao, Letras e Educao Ambiental. So reflexes

    sobre temas relevantes, pois cada autor, em sua perspectiva, apre-senta comentrios crticos visando definio de alternativas paraa sociedade, para as pessoas e para as instituies.

    Fernando Catroga, em seu artigo Recordar e comemorar. Araiz tanatolgica dos ritos comemorativos, apresenta um estudominucioso sobre as relaes entre memria e morte. Sendo uma ex-

    perincia individual e intransfervel, a morte, em si mesma, umnada epistemolgico e ontolgico. O autor analisa tambm sua es-camoteao na civilizao ocidental, pelo horror que nos apresenta.A exacerbao dos signos tumulares levou o Ocidente, a partir dosculo XIX, construo de cemitrios-museus a fim de torn-losmemrias construdas, gerando uma comemorao pela anulaodo distanciamento gnosiolgico entre sujeito e objeto.

    EmLa crisis educativa segn Hannah Arendt: novedad y tradi-cin, Gloria M. Comesaa-Santalices e Katiuska J. Reyes Galudestacam que na educao que uma dada sociedade estabelece emque grau assume responsabilidades com as geraes futuras. O estu-do toma como foco de anlise o texto de H. Arendt A crise na

    Educao, aqui no Brasil publicado na obra Entre o Passado e oFuturo. A educao territrio do novo e do jovem. Mais, apontam anecessidade da incluso, nas prticas educativas, de procedimentosque promovam a preservao da tradio culturalmitos, memrias,conhecimentos e crenas, pois, tambm na educao que decidi-mos ou no se amamos nossas crianas. Assim, esta concepo nosfornece como sentido para a educao a responsabilidade com as ge-raes futuras, a cultura e a tradio. Com isto anotam que um doscaminhos possveis para enfrentar a crise atual da educao a pro-

    Editorial

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    moo de atitudes positivas com relao criana, ao jovem e au-toridade do professor. Pois, a base dessa viso educacional a afir-mao de que o velho prepara o novo e, dessa forma, o professor e asociedade no podem prescindir da autoridadeaqui tomada estrita-mente no sentido arendtianono ato educativo.

    No artigo Solido e doena na metamorfose nietzschiana,

    Mrcio Danelon explora os delicados caminhos de se relacionar a o-bra de um autor, um filsofo, com sua vida. Seu intento demons-trar que a sade bastante frgil do filsofo alemo Friedrich Nie-tzsche, assim como sua vida, a qual foi um exerccio de solido,

    podem explicar algumas de suas principais posies filosficas eidias que nos legou. Amparado na obraEcce Homo, declarada au-tobiografia intelectual de Nietzsche, bem como em dois de seus

    principais bigrafos, o autor explora a vida do filsofo, que teve osofrimento fsico como seu companheiro. Recolhe, por exemplo, no

    pronturio mdico do adolescente Nietzsche na escola de Pforta, os

    dados de suas doenas: dores de cabea, reumatismo, inflamaesdo ouvido, crises de enxaqueca. A tese apontada por Danelon a deque todas essas enfermidades, que dificultaram e depois impediram

    a Nietzsche o exerccio da docncia universitria e da vida acadmi-ca, acabaram por afast-lo de um convvio social mais intenso, eque a doena e a solido podem explicar, em alguma medida, ametamorfose de Niezsche, de cristo bem formado nos princpiosluteranos, em ateu convicto, arauto da morte de Deus. Por outrolado, a produo de uma filosofia crtica da cultura alem da poca,de uma filosofia do martelo, dedicada a derrubar os dolos, con-

    tribuiu ainda mais para afast-lo dos crculos sociais, para que suafilosofia no tivesse maiores repercusses, e para que no tivessediscpulos, o que aconteceu apenas depois do agravamento de suadoena e conseqente parada na produo filosfica, intensifican-do-se aps sua morte.

    A representao feminina em trs obras pontuais da literaturasul-africana em ingls:King Solomons Mine (1885), de Henry Ri-der Haggard;Is there nowhere else where we can meet? (1885), de

    Hadine Gordimer; eDisgrace (1999), de J. M. Coetze, o objeto deanlise de Thomas Bonnici, em seu artigo Representao femininana literatura dafrica do Sul. A anlise das personagens femininasem momentos diferentes da histria literria da frica do Sul reve-lou como a literatura registrou e construiu formas de representaodo feminino. A mulher-bruxa, a mulher objetivada, a mulher subje-

    tivada so as principais fases desse paradigma que no desconsideraas ambigidades e a complexa teia de valores que enredam a culturadas mulheres brancas e negras da frica do Sul. A represso, a

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    opresso e a submisso so os desdobramentos do colonialismo edo apartheid, que atingiu de forma cruel a mulher negra sul africana.

    As vozes silenciadas e os discursos no-autorizados aparecem notexto literrio como testemunhas da violncia, da subservincia e daculpabilidade, que somente uma descolonizao da mente podereverter, a fim de que o terrvel dilema do desmascaramento da

    identidade feminina encontre um espao de debate, atravs da recu-perao e anlise das vozes silenciadas.

    A questo da incluso de alunos com necessidades especiaisocupa um lugar de destaque nas pesquisas educacionais contempo-

    rneas e a Declarao de Salamanca, de 1994, tem sido o marcoindicativo da relevncia e da urgncia de tal problemtica. Esse otema do artigo de Thas Cristina Rodrigues Tezani,A dinmica daincluso na gesto da escola pblica, que concentra-se em descre-ver o sentido da incluso, as adaptaes exigidas nos currculos paraatender a educao inclusiva e a gesto escolar. A autora conclui

    que o processo de incluso deve transcender os limites da institui-o escolar, reconhecendo como indispensveis, para a aprendiza-gem, as interaces sociais.

    Daisi Chapani e Ana Maria Daibem apresentam, em seu texto

    A incorporao da temtica ambiental por uma Escola Pblica deBauru (SP), o resultado de uma pesquisa sobre a contribuio deuma escola p blica para a formao de atitudes dos alunos comrelao questo da sustentabilidade. O texto coloca em destaque aanlise das opinies dos diferentes atores sociais: os alunos, profes-sores e funcionrios sobre a insero da temtica ambiental no

    processo escolar. Conclui seu trabalho afirmando que os resultados

    obtidos denotam que a manifestao dos alunos sobre a preservaoambiental tem relao com a escolaridade, o que leva supor que aescola esteja colaborando com a formao de uma massa crticaconsciente da relevncia do futuro do planeta. Sugere, entretanto,que tais medidas sejam mais efetivas e ampliadas no mbito escolaruma vez que muitos alunos no conseguiram justificar a importn-cia do estudo do meio de forma coerente e outros nem sequer se

    mostraram capazes de ampliar suas consideraes para alm docontexto escolar.

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    Recordar e comemorar. A raiz tanatolgica dos ritos comemorativosTo remember and to celebrate. The thanatological root of celebration

    rites

    Fernando Catroga

    La crisis educativa segn Hannah Arendt: novedad y tradicinThe educational crisis according to Hannah Arendt: novelty and

    tradition

    Gloria M. Comesaa-SantalicesKatiuska J. Reyes Gaul

    Solido e doena na metamorfose nietzschianaSolitude and sickness in the nietzschean metamorphosis

    Mrcio Danelon

    Representao feminina na literatura da frica do SulFemale representation in South African literature

    Thomas Bonnici

    A dinmica da incluso na gesto da escola pblicaDynamics of inclusion in public school administration

    Thas Cristina Rodrigues Tezani

    A incorporao da temtica ambiental por uma escola pblica deBauru (SP)The incorporation of environmental theme by a Bauru State school

    Ana Maria Daibem

    Daisi Chapani

    13 M

    49 M

    67 M

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    103 M

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    Sumrio/Contents

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    m 12 M

    Sobre os colaboradores deste nmero

    Prximo nmero

    Instrues aos autores/Rules to the author

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    Resumo

    Nada to individual quanto a morte, por ser intransfervel.Todo conhecimento a seu respeito indireto, pois somente apreen-dido pela morte do outro. A civilizao ocidental, desde seus

    primrdios, buscou escamote-la e os discursos tanatolgicos serosempre dos (e sobre) os vivos. O horror sobre as conseqncias doestar morto tem gerado ritos, principalmente da prtica libertadorada presena do cadver, na busca de um sentido e alvio para essaruptura. Isso gera, ainda, a exacerbao dos signos tumulares paratornar visvel o ser em detrimento do nada, buscando dar um senti-

    do de presena e recordao eterna ao ausente. Esses sentidos tmgerado no Ocidente, principalmente a partir do sculo XIX,cemitrios museus, produtos do racionalismo iluminista. A finali-dade torn-los memrias-construdas, cujo dilogo faz com queessa evocao busque anular o distanciamento gnosiolgico entre osujeito e o objeto, gerando uma comemorao.

    Palavras-chave: morte; tanatologia; cemitrios-museus; ritos; co-memorao

    1 - Recordar e comemorar

    Sendo um acontecimento individual e indizvel ningumpode morrer a morte de outrem nem narrar a sua prpria morteesta no somente um fenmeno biolgico, mas tambm, como

    Recordar e comemorarA raiz tanatolgica dos ritos comemorativos

    To remember and to celebrateThe thanatological root of celebration rites

    Fernando Catroga

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    sublinhou Max Scheller,1 um saber intuitivo e apriorstico, confir-mado pela experincia indireta e intuitivamente apreendido atravsda morte do outro e dos traos subjetivos e histrico-sociais como pensada e representada. Porm, em si mesma, ela um nada epis-temolgico e um nada ontolgico. Pens-la ser sempre neg-la.S a partir de um sujeito instalado na certeza do viver2 se poder

    interrogar o seu enigma, entendendo-se assim que, no fundo, noseja a morte, mas o saber da (e sobre) a morte que suscita inquie-

    tao ao homem.3

    Na cultura ocidental, existe uma velha tradio que aconselhao seu escamoteamento como problema. Segundo Epicuro, o maisterrvel dos males nada para ns, pois, enquanto existimos, amorte no , e, quando ela est l, j no existimos ns. A morte notem, por conseguinte, nenhuma relao nem com os vivos nem comos mortos, uma vez que ela nada para os primeiros e os ltimos jno existem.4 Posies similares foram defendidas por Epiteto,

    Sneca, Montaigne, Kant, Feuerbach, Marx e, em ltima anlise,por todo o pensamento imbudo de otimismo iluminista.5 Dir-se-iaque esta atitude se limita a explicitar uma das respostas do homem

    conscincia e recusa da sua finitude: a interiorizao do desejo dese sentir imortal (FREUD, Trauer und Melancholie, 1916-1917),

    tendncia esta que a sociedade contempornea levou s ltimasconseqncias ao desenvolver um processo de civilizao assentecada vez mais na separao e estranheza entre a vida e a morte.Hoje, nunca se est preparado para morrer e a morte chega demasi-adamente cedo, como de um assassinato se tratasse.6 Morre-se sem-

    pre de e esquece-se de que, afinal, a causa (das causas) da morte o incessante morrer da vida.Inteligir o sentido da inaceitvel finitude uma das condies

    necessrias para se tentar entender o tempo, ou melhor, o homemcomo tenso entre um futuro que ainda no e um passado que jno existe. Logo, a morte, no sendo extrnseca vida, surge comoo problema radical que, em vez de ser recalcado, pode-nos ensinar

    a compreender a vida e saber viv-la.7 E como dela s poderemosreconhecer sua semitica, os discursos tanatolgicos sero uma falasempre dos (e sobre) os vivos.

    Se a prossecuo deste objetivo tem uma via teortica privile-giada as filosofias da existncia (HEIDEGGER,8 LVINAS9) no so de menor valor gnosiolgico, porm, os caminhos abertos

    pela antropologia, pela etnologia e pela histria das mentalidades aointerrogarem no s as ideaes, mas principalmente os comporta-mentos, os gestos e as atitudes corporizados nos ritos que encenam

    o morrer e a morte.

    1 Cf. SCHELLER, Max.Morte e

    Sobrevivncia. Lisboa: Edies 70,1993.

    2 GADAMER, Hans-Georg. La mort

    comme ques tion. In: A. A. V. V. Sens

    et Existence. In:Hommage a Paul

    Ricoeur. Paris: Seuil, 1975. p. 20.

    3 ELIAS, Nobert. La Solitude dsMourants. 2 me ed. Paris: ChristianBourgeois diteur, 1998. p. 15.

    4 Segue-se a traduo de BORGES,Anselmo. Mort e Esperana. In:

    Igreja e misso, Janeiro-Dezembro.1993. p. 123.

    5 Idem, p. 122.

    6 ZIEGLER, Jean.Ls Vivants et lsMorts. Paris: Seuil, 1975. p. 273.

    7 Cf. QUENTAL, Antero de.Prosas.

    Coimbra: Imprensa da Universidade,

    1931. p. 179.

    8 Cf. HEIDEGGER, Martin.L tre et

    l Temp. Paris: Gallimar, 1972. p. 41.9 Cf. LVINAS, Emmanuel.La Mortet l Temps. Paris: LHerne, 1991.Sobre o tema, veja-se BERNARDO,

    Fernanda. A morte segundo

    Emmanuel Lvinas: Limite: Limiardo Eu inter-essado.Revista Filosficade Coimbra, v. 6, n. 11, maro, 1997,

    p. 119-204.

    m

    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dosritos comemorativos.Mimesis, Bauru,v. 23, n. 2, p. 13-47,

    2002.

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    nesta perspectiva que muitos estudiosos tm defendido quea linha diferenciadora da hominizao se encontra no fato de ohomem ser o nico animal que cultua os seus mortos. Esto nestecaso autores como Edgar Morin, Franoise Charpentier e Louis-Vincent Thomas. No entanto, outros, como Michel Ragon, susten-

    tam que tal manifestao j se detecta em alguns primatas10 e no se

    encontra em todos os povos: alguns houve que denotam indiferenaem relao aos destinos dos cadveres.11 Seja como for, pareceindiscutvel que o horror perante a putrefao e o medo do regressodo duplo so constantes antropolgicas que tm gerado ritos vivi-dos pelos sobreviventes numa ordem de tempo que sintomatica-

    mente tende a coincidir com o perodo da decomposio do prpriocorpo (ROBERT HERTZ) e a ultrapassar a sua realidade biolgicaatravs de uma especfica expresso social e metafsica.

    No h uma sociedade sem ritos, aqui entendidos como con-dutas corporais mais ou menos estereotipadas, s vezes codificadas

    e institucionalizadas, que exigem um tempo, um espao cnicoe um certo tipo de atores: Deus (ou os Antepassados), os oficiantes

    e os fiis participantes do espetculo. Como escreveu Louis-Vincent Thomas, o sentido do rito assenta justamente nas interaesentre os protagonistas do drama e o consenso que os unifica, sendo

    aquele inconcebvel sem uma organizao de signos geradora deeficcia simblica. Mas esta somente ter efeito dentro de um hori-zonte de crena; s assim a representao ritual poder ser catrticae normativa enquanto expresso libertadora de angstias e modo deresoluo de dramas e de conflitos.12 E os ritos funerrios com-

    portamentos complexos que espelham os afetos mais profundos esupostamente guiam o defunto no seu destino post-mortem tmcomo objetivo fundamental superar o trauma e o caos que toda a

    morte provoca nos sobreviventes.13No momento catico, o rito forma de negociar a alteridade, a fim de inflecti-la em sentido posi-

    tivo, e a morte representa a alteridade por excelncia, uma vezque ela a no-vida.14 Como bem lembra Michel Guiomar, cest

    par et dans le Funraire que sexprime clairemente une mta-physique de la Mort, aux diffrentes poques, en divers lieux, danschaque religion, dans chaque civilisation.15

    Um dos componentes fortes do rito de ltima passagem aprtica libertadora da presena do cadver. O canibalismo, a imer-so, o embalsamento, passando pelas tcnicas mais freqentes (acremao e a inumao) so tcnicas materiais (e pblicas) que serevestem de um simbolismo capaz de lhes conferir sentido e de

    tornar mais suportvel a rejeio da ruptura. Da os gestos liberta-dores e paradigmticos, seja o de fazer regressar o corpo a terra,

    10 Cf. DEPUTTE, Bertrand L.

    Perception de la mort et de la separa-

    tion chez ls primates. In: NATHAN,

    Tobie. (dir.).Rituels de Deuil, Travaildu Deuil. Paris: La Pense Sauvage,1995. p. 183. Defende o autor: si le

    deuil est dfini comme um sentiment,comme la douleur ressentie la pertedum proche, on peut alors difficile-

    ment envisager une comparaison avec

    les primats non humains. Mais si on

    ne dfinit le deuil que comme lsractions cette perte, alors il devientpossible de dcrire et danalyser aussicelles des singes et de les comparercelles ds hommes (p. 185). Sobre a

    hiptese de luto nos animais, veja-sePOLLOCK, Georges H. Deuil et

    changement. In: TUDES sur laMort. XXIIIme Congrs. Deuil etAccompagnement. Bulletin de la

    Societ de Thanatologie. n. 107-108,XXX anne, 1996, p. 40-41.

    11 Cf. RAGON, Michel L.Espace de

    la Mort. Essai sur larchitecture, ladcoraton et lurbanisme funraires.

    Paris: Albain Michel, [19--], p. 13-14.

    12 Cf. THOMAS, Louis-Vicent.Rites

    de Mort. Pour la paix ds vivants.Paris: Fayard, p. 12-14.

    13 Cf. THOMAS, Louis-Vicent.La

    Muerte. Uma lectura cultural.

    Barcelona: Paids, 1991. p. 115;

    Idem,Rites de Mort, p. 119.14 Cf. THOMAS, Louis-Vicent.,

    Prefcio. In: BAYARD, Jean Pierre.Sentido Oculto dos Ritos Funerrios.Morrer morrer? So Paulo: Paulos,

    1996. p. 8.

    15 GUIOMAR , Michel.Prncipesdune Esthtique de la Mort. Paris: J.

    Corti, 1967. p. 34.

    M

    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dos

    ritos comemorativos.Mimesis, Bauru,

    v. 23, n. 2, p. 13-47,

    2002.

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    gua ou a gruta maternais, seja o da purificao pelo fogo, ou o dacomunho canibalista com o princ pio vital do defunto. E todosvisam suprimir a imagem da decomposio, destruindo, dissimu-lando ou conservando o cadver.16 O que permite dizer que, nosritos funerrios, trata-se de negociar e esconder a corrupo,17 demodo a que se possa regressar ordem.

    Como se sabe, as esperanas escatolgicas semeadas pelareligio judaico-crist encontraram na descida do corpo a terra a suamediao adequada. Por isso, a inumao inseparvel de um ritua-lismo que tem nas prticas de conservao, de simulao e dedissimulao as suas expresses simblicas mais significativas,caractersticas que podem ajudar a compreender o cariz dominante-mente monumental dos cemitrios cristos, bem como os elosexistentes entre a morte e a memria.

    Necrpole e memriaO nosso ponto de partida bvio: todo e qualquer cemitrio,

    e particularmente o cemitrio oitocentista, deve ser entendido comoum lugar por excelncia de reproduo simblica do universosocial18 e de expectativas m etafsicas. E este simbolismo decorre dofato de, como sublinhou Gaston Bachelard, a morte serprimeira-mente uma imagem.19 O que se compreende, pois, segundo o cle-

    bre aforismo de Roche Foucauld, nem o sol, nem a morte se podemolhar de frente. E esta primeira caracterstica determina a existn-

    cia de uma relao estreita entre os mortos e a memria. Comefeito, esta pode ser definida como um conjunto de recordaes ede imagens comumente associadas a representaes, as quais cono-tam valores e normas de comportamento construdas ou inventa-das a partir do presente e de acordo com a lgica do princpio darealidade, sem que isso implique, no entanto, que a memria sejaespelho ou transparncia da realidade-passado. Como defende PaulRicoeur ao comparar a memria com a imaginao, se esta invocao ausente como irreal, a memria representa-o como anterior evo-cao, sugerindo assim uma dimenso veritativa para a memria,construda por razes normativas e pragmticas.20

    De fato, se ontologicamente a morte remete para o no-ser, na memria dos vivos, enquanto imagens suscitadas a partir de tra-os com referente, que os mortos podero ter uma existncia (mn-sica). Ganha desta maneira significado que a necrpole ocidental te-nha-se estruturado como uma textura de signos e smbolos dissi-muladores do sem-sentido da morte e simuladores da somatiza-

    16 URBAIN, Jean-Didier.Morte. In:

    ENCICLOPDIA EINAUDI. Lisboa:Imprensa NacionalCasa da Moeda,v. 36, 1997. p. 381.

    17 THOMAS, Louis-Vincent. op. cit.,

    p. 9.

    18 Cf. URBAIN, Jean-Didier.La

    Socit de Conservations.tude smi-ologique ds cimetires de IOccident.Paris: Payot, 1978. p. 85.

    19 BACHELARD, Gaston.La terre et

    ls Reserves du Reps. Paris: J. Corte,1948. p. 312.

    20 COENEN-HUTHER Josette.La

    Mmorie Familiale. Paris:IHartmann, 1994. p. 15. Cf.RICOEUR, Paul. Vulnrabilit de lammoire. In: L GOFF, Jacques et al.

    Patrimoine et Passions Identitaires.

    Entretiens du Patrimoine. ThtreNational de Challot. Paris: 6, 7 e 8Janvier, 1997; Paris: Fayard, 1988.

    p. 17.

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dosritos comemorativos.Mimesis, Bauru,v. 23, n. 2, p. 13-47,

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    o do cadver, e que o cemitrio tenha sido desenhado como umaespcie de campo simblico que, se convida anamnesis,21 encobreo que se pretende esquecer e recusar.22 Este processo exige tambmuma traduo ritual, j que le souvenir ne porte pas seulement surle temps: il demande ausi du tempsun temps de deuil.23 E tudoisto explica que a funo do smbolo funerrio seja a de, em ltima

    anlise, ser metfora do corpo, trabalho imaginrio exigido pelarecusa da morte e pela conseqente objetivao dos desejos com-

    pensadores de sobrevivncia nascidos do fato de o homem ser onto-logicamente atravessado por um desejo de eternidade. Perante aincompreensibilidade do morrer, a memria emerge como protestocompensatrio. Mas, na morte do outro, a morte de cada um quese antev; e, na recordao do finado, ainda a prpria morte quese pensa ou dissimula: na sua re-presentificao encontra-se pro-

    jetada a morte futura do prprio evocador e os anseios de perpetua-o na memria dos vivos.24

    Todo o signo funerrio, explcita ou implicitamente, remete para o tmulo (recorde-se que signo deriva de sema,25 pedratumular). Pode ento se concluir que, se o tmulo tem por funodevorar e digerir o cadver, por outro lado, ele constitudo por umasobreposio de significantes (cadver vestido, caixo, pedra tumu-lar, epitfio, estaturia, fotografia, etc.) que induzem metaforica-mente a aceitar-se a incorruptibilidade do corpo,26 elevando-se a

    metonmia real, num prolongamento sublimado, mas real, da suacarne.27 Em suma, cada envelope que enforma o cadver acrescen-ta uma mscara ao sem sentido que ele representa e trai o nosso

    desejo de parar a putrefao e de alimentar a iluso de que o corpono est condenado ao desaparecimento.28 E os signos so assimdados em troca do nada segundo uma lei de compensao ilusria

    pela qual quanto mais signos temos mais existe o ser e menos o

    nada. Graas alquimia das palavras, dos gestos, das imagens oumonumentos posto que as sepulturas seguem a mesma lgica d-se a transformao do nada em algo ou em algum, de vazio numreino.29

    Para isso, o tmulo deve ser lido como uma totalidade signifi-cante que articula dois nveis bem diferenciados: o invisvel (situ-ado debaixo da terra) e o visvel, o que faz com que, como es-creveu Bernardin de Saint-Pierre e relembrava em 1868 a nossa

    Revista dos Monumentos Sepulcrais, o tmulo seja um monumen-to colocado entre os limites de dois mundos.30 Se a invisibilidadecumpre na clandestinidade a funo higinica da corrupo, acamada semitica tem por papel encobrir o cadver, transmitindo sgeraes vindouras os signos capazes de individuarem e ajudarem a

    21 Sobre o peso do esquecimento nos

    processos construtivos das memriassubjetivas (e coletivas), veja-se CAN-

    DAU, Joel.Anthropologie de la

    Mmoire. Paris: PUF, 1996. p. 56.

    22 ETLIN, Richard A. The Space of

    Absence. In: A. A. V. V. Uma

    Arquitectura para la Muerte. I

    Encontro internacional sobre los

    cemitrios contemporneos.Actas.Sevilla 4/7 Junio 1991, Sevilla, Junta

    de Andalucia, 1993. p. 596-600.

    23 RICOEUR, Paul, op. cit., p. 23.24 Cf. DCHAUX, Jean-Hugues.LeSouvenir ds Morts. Essai sur l lien

    de filiations. Paris: PUF, 1997. p.

    273-274, 281.

    25 Cf. DEBRAY, Rgis. Vie et Mortde IImage. Une histoire du regard em

    Occident. Paris: Gallimard, 1992.

    p. 20.

    26 Cf. URBAIN, Jean-Didier. op. cit.,

    p. 28, 149-152.

    27 Cf. DEBRAY, Regis. op. cit.,

    p. 22.

    28 Cf. THOMAS, Louis-Vicent.L

    cadavre. De la biologie aIantropologie. Paris: Complexe,

    1980. p. 202

    29 URBAIN, Jean-Didier.A Morte.

    In: ENCICLOPDIA Eunadi, v. 36.p. 383.

    30 REVISTA MONUMENTOS

    SEPULCHRAES, v. 1, p. 28, 1868.

    Os sublinhados so nossos.

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dos

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    v. 23, n. 2, p. 13-47,

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    re-presentao, ou melhor, a re-presentificao do finado. E por causa destas caractersticas que lcito falar, a propsito da lin-guagem cemiterial, de uma potica da ausncia.31

    Todo o jogo do simbolismo cemiterial parece apostado em

    suscitar a edificao de memrias e dar uma dimenso veritativaao ausente. Porm, aquilo que se pretende recordar emerge do imen-

    so e abscndito continente do recalcado. Isto , se toda a memo-rizao, enquanto construto mediado pelo presente (a existncia deuma memria pura uma iluso bergsoniana), tem a sua outraface no consciente ou inconscientemente esquecido,32 tambm ocemitrio, como lugar de memria, assenta num invisvel fundode amnsia. Em certo sentido, ele mostra algo que tambm se detec-ta no campo da conscincia individual: a memria e o esquecimen-to mantm a mesma relao que une a vida e a morte.33

    No que respeita s novas necrpoles oitocentistas, a projeoda necessidade existencial de se negar a morte e a sua traduo

    romntica, expressa na recusa exasperada da morte do outro e nacrescente colocao da memria como instncia supletiva de imor-talizao, deram origem a uma nova cenografia e a um novo cultosdos mortos, bem como renovao das velhas qualificaes damorte como morte-sono. Isto explica que a habitao do mortose tenha arquitetonicamente materializado no s como sucessorae sucednea do teto eclesistico (o jazigo-capela), mas tambmcomo casa, e que a sepultura, tal como a casa da famlia (dos

    pais, dos avs), tenha passado a ser centro privilegiado de identi-ficao e de filiao de geraes. E todas estas necessidades

    simblicas fizeram da necr pole um analogon da cidade dosvivos.34

    Compreende-se. O cemitrio burgus levou s ltimas conse-qncias um desejo de sobrevivncia individualizada que, embora

    potenciado pela concepo judaico-crist dopost-mortem e sobre-tudo pela promessa de ressurreio final dos corpos, s ganhoucurso nos alvores da modernidade. O homem medieval ainda noestava centrado sobre si mesmo, pois sentia-se comparticipante da

    comunidade santa dos crentes, isto , sentia-se na posse da ver-dadeira vida.35 Em tal horizonte, s podia brotar uma concepodominantemente comunitria do alm. Ao invs, com o crescimen-to da importncia do sujeito, teriam de aparecer projetos em quea nova dimenso sociabilitria no poderia subsumir o direito indi-vidualizao.

    Os sinais que apontam para a emergncia de atitudes indi-viduantes, como os jacentes e os orantes, comearam no sculoXIII, conquanto ainda circunscritos aos mais dignitrios da

    31 GMEZ, Ana Anaiz. La sepultura,monuento que construye la memriade la vida. In: A. A. V. V. Uma

    Arquitectura para la Muerte. p. 288.

    32 No mesmo sentido, leia-se

    TODOROV, Tzvetan.Les Abus de la

    Mmoire. Paris: Arla, 1995. p. 14;RICOEUR, Paul. op. cit., p. 28-29.

    33 Cf. AUGE, Marc.Les Formes de

    LOubli. Paris: Payot, 1998. p. 20.

    34 Cf. CATROGA, Fernando.AMilitncia Laica e a Descristianiza-o da Morte em Portugal (1865-1910). Coimbra: Faculdade de Letras,

    1988. v. 2, p. 680. (edio policopia-da).

    35 FEUERBACH, Ludwig.Pensessur la Mort et IImmortalit. Paris:Cerf, 1991. p. 42.

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    sociedade. Com o avano do processo civilizacional, nomeada-mente a partir dos finais do sculo XVIII, esta tendncia ir-se-democratizar e expandir, atingindo a sua mxima expresso nosnovos cemitrios do sculo XIX. Aqui a pr pria lei (ao exigirsepulturas individualizadas) e os prprios valores fundantes da novasociedade em construo a acenarem com a promessa de que, nem

    que fosse atravs da reatualizao mnsica, possibilitada por umculto dos mortos cada vez mais intersubjetivo e familiar, todos

    podiam finalmente aspirar perpetuao na memria coletiva. Dir-se-ia que as garantias de imortalizao foram passando de privil-gio de alguns a direito natural de todos.

    Neste contexto, a progresso da campa individual, do jazi-go, do epitfio, da esttua e, por fim, da fotografia (relembre-seque a descoberta da fotografia contempornea da revoluocemiterial romntica) que se detecta nos cemitrios modernos a

    partir do sculo XIX deve ser lida como traduo iconogrfica

    adequada rituali-zao dos novos imaginrios, quer estes apon-tem para fins escato-lgicos, quer se cinjam memria dos vivos.E para que o trabalho simblico do cemitrio (a localizao) cor-respondesse quelas ex-pectativas, a materializao dos signosque exigiu a fixao do cadver (isto , um monumento), demodo a ser ntida e inequvoca a evocao (a imagem, o sm-

    bolo ou o epitfio narrativos) e a identificao do ausente (aepigrafia onomstica).36

    Esta maior acentuao da memria ocorreu dentro de umamundividncia dominantemente religiosa, embora j minada por in-

    fluncias secularizadoras. A nova necrpole, rompendo com o cr-culo sacral dos enterramentos nas (ou volta das) igrejas e ficandosubordinada a uma gesto poltica, passava tambm a ter um amb-guo estudo profano. E as resistncias dos setores mais tradicionalis-tas, que se detecta em alguns pases catlicos, indiciam uma repul-sa para com os novos espaos. Mas faltar-se-ia verdade se no sefrisasse que, desde o sculo XVIII, muitos iluministas e eclesisti-cos j defendiam o exlio dos mortos, e basta atentar nas prerro-gativas que a Igreja continuou a ter em relao s novas necrpoles(considerando-as como campos consagrados) e ter em conta a fra-

    qussima expresso dos enterramentos civis (oficialmente possveisa partir de finais de 1878) para se confirmar, no caso portugus, acontinuidade da sobredeterminao religiosa do novo culto cemite-rial dos mortos.

    Todavia, esta dimenso no pode conduzir subalternizaode uma outra realidade que lhe coexistente, a saber: a seculariza-o provocada no s pelo modo mais profano de gerir os ce-

    36 Cf. URBAIN, Jean-Didier.LsBouleversements Actuls de lArt

    Funeraire. Autor du dveloppementde la cremation em France et de ss

    effets esthtiques. Coimbra:Septembre, 1993. (edio policopiada

    gentilmente cedida pelo autor).

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dos

    ritos comemorativos.Mimesis, Bauru,

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    mitrios (em Portugal, eles foram definidos como espaos pbli-cos de gesto municipal ou paroquial por leis de 1834), mas tam-

    bm pelas projees, no campo tanatolgico, das idias e dos valo-res de uma poca crescentemente polarizada pelos desejos de afir-mao da individualidade e de expectativas terrenas.37 Da que, noscomportamentos e nas atitudes em relao morte, sejam igual-

    mente detectveis as novas necessidades sociabilitrias decorrentesdo cariz contratualista, associativista e relacional da socieda-de moderna, e se encontrem projetadas as estratgias de legiti-mao dos vrios poderes e as tenses resultantes da gradual auton-omizao da memria histrica em relao imortalidade tran-scendente. Isto , o cemitrio objetiva esteticamente o prprioinconsciente da sociedade. E esta se d a ler mediante uma tramasimblica estruturada e organizada volta de certos temas e mitosunificados por esta funo: reforar, depois do caos, o cosmosdos vivos, e imobili-zar o devir, mesmo quando se recorre ao con-

    traste (ambguo) com transcurso irreversvel do tempo e da transi-toriedade da vida.

    Isto significa que, neste processo, facilmente se detectam

    investimentos simblicos no raro antagnicos entre si. Mas a suacondicionalidade de cariz histrico e social no deve fazer esquecerque essa rede de signos se eleva a partir de um impulso de raiz

    metafsica, o qual impele o homem a separar-se da natureza e daanimalidade e a emergir, na escala dos seres, como um cultuador de

    mortos, logo, como um produtor de cultura e de memria. Sem aangstia nascida da tomada de conscincia da precaridade humana

    no haveria necessidade de se construrem monumentos, pois saquele que se sabe e se recusa a ser transitrio pode aspirar perpe-tuao.38 Pode ento aceitar-se que, na linguagem prpria, o monu-mento funerrio tanto exteriorizao da tomada de conscincia deque o homem um ser-para-a-morte39 (HEIDEGGER) como afir-mao do direito memria.

    Na verdade, o signo funerrio tem uma significao monu-mental, dado que s o monumento assegura a imortalizao naterra.40 E quando os italianos de Gnova, Bari ou Messina chamams suas necr poles modernas Cemiterios Monumentales estosomente a ser fiis a uma realidade primordial que os campos san-tos oitocentistias, e particularmente os da ares mediterrnica,levaram s ltimas conseqncias.

    A palavra latina monumentum deriva da raiz indo-europiamen. Esta exprime uma das funes nucleares do esprito (mens), amemria. Deste modo, tudo aquilo que pode evocar o passado,

    perpetuar a recordaoincluindo os prprios atos escritos um

    37 Quando aqui se usa o conceito de

    secularizao no se pretende confun-di-lo com o de laicizao. Com efeito,e como se procurou esclarecer em ou-

    tro lugar, o primeiro denota o longo

    processo de automatizao, em todosos nveis da vida social, da esfera pro-fana da sagrada. Situa-se na longa du-

    rao e foi-se concretizando em tem-poralidades diferenciadas, ainda que

    sempre num horizonte pautado pelos

    valores cristos. Assim sendo, importarreter que o fenmeno da secularizaonem sempre se definiu em oposio aigreja (e muito menos a religio), apa-recendo muitas vezes como reivindica-

    es tendentes a desmitoligizar,desmagificar ou a desclericalizar asociedade, e no tanto a descristiani-z-la. O conceito de lai-cismo, se en-

    tronca no de secularizao, remete pa-ra o propsito militante de levars l-timas conseqncias e, assim, torn-laequivalente a descristianizao. Porisso, deve se referir to s aos projetosde transformao cultural que os movi-mentos anticlericais e anticatlicos dosfinais do sculo XIX e princpios dosculo XX (conjuntura em que se con-solidou a expresso laicismo), bem co-mo as suas expresses polticas (libera-is de esquerda, republicanas, socialista

    anarquista) procuram concretizar nas

    sociedades europias dominantementecatlicas. Dito isso, pode en-to se a-ceitar que, se o laicismo uma expres-

    so mais radical do secularismo, nemtoda a secularizao sinnimo delaicismo. CATROGA. op. cit., p. 6-34.

    38 Cf. DEBRAY, Rgis. op. cit., p. 25.

    39 KOSELLECK, R.Lxperience delHistoire. Paris: Gallimard-Seuil,1997. p. 137.

    40 No mesmo sentido, veja-se

    BOTTACIN, Maurizio. La tentazione

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    monumento.41 verdade que, com a Antigidade romana, aqueletinha dois significados: denotava uma obra comemorativa de

    arquitetura ou de escultura (arco do triunfo, coluna, esttua, trofu,prtico, etc.) e aplicava-se a edificaes funerrias destinadas aeternizar a lembrana de algum. Como sublinhou Aris, j na suaorigem o tmulo um memorial.42 E, mesmo nas sociedades de

    dominncia sacral, a sobrevivncia do morto no se concretizariasomente no plano escatolgico, mas tambm dependeria da famaque os tmulos (com os seus signos, as suas inscries) e os elogiosde escritores ajudavam a reativar.

    Esta funo no foi negada pela gradual cristianizao dealgumas das tradies pags do culto dos mortos, tanto mais que, noseu cerne, o cristianismo se anunciou como a memria de Jesustransmitida aos apstolos e aos seus sucessores, isto , como umareligio comemorativa, cujo culto (a eucaristia) presume o reaviva-mento de um fato real e histrico. Por isso, o ensino cristo

    memria e o seu culto comemorao. O que explica que anova religio tenha facilmente recuperado os ritos tanatolgicos deorigem pag que obrigavam os vivos a fazer memria,43 afirman-do-se como uma religio da recordao.

    Como toda a memria simblicaisto , opera por smbolosque exprimem um estado de esprito, uma situao, uma relao,uma pertena ou mesmo uma essncia inerente ao grupo44 entende-se que o cemitrio monumental na sua expresso arquitetnica e nasua funo de lugar de memria, e que as necrpoles modernas

    patenteiem de um modo ainda mais extenso e claro esse significado.

    O nexo entre a memria e o monumento, articulado com o jogodissimulador dos smbolos funerrios, obriga, porm, a ter-secautela na qualificao do cemitrio moderno como museu, uma dasexpresses privilegiadas da memria-saber. Cenrio de memrias-construdas, mas tambm de memrias-vividas (principalmenteno terreno da gesto familiar do culto), as necrpoles so os lugaresde memria por excelncia do sculo XIX (e do seu prolongamentono sculo XX), porque as recordaes que os seus smbolos sugeremno privilegiam somente a ordem do saber como t pico doracionalismo iluminista e da organizao museolgica ou bib-liotecriamas mais a ordem dos sentimentos e das intenes cvi-co-educativas.45Nas suas ex-presses mais afetivas, o dilogo que aevocao pressupe quase anula o distanciamento gnosiolgico entreo sujeito e o objeto e faz dela uma comemorao. que toda amemria se exprime, quaisquer que sejam as variaes culturais, a

    partir de uma relao dialgica em que, de uma certa maneira, asociedade pe questes que a memria procura responder.46 Por con-

    Del nulla. Giardini della memria perum eterno oblio. In: A. A.V. V. Utime

    Dimore. Veneza: Arsenale, 1987. p. 9.

    41 Cf. L GOFF, Jacques.Documento/Monumento. In:

    ENCICLOPDIA EINAUDI, v. 1,Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da

    Moeda, 1984. p. 95.

    42 Cf. RIES, Philippe.Essais deMmoire. Paris: Seuil, 1993. p. 346.

    43 Cf. L GOFF, Jacques.El Ordemde la Memria. El tiempo comoimaginrio. Barcelona: Paids Bsica,

    1991. p. 150.

    44 Id.,Documento/Monumento,p. 18.

    45 Ibid.. p. 37-38.

    46 Cf. NAMER, Gerard.Mmoire etSocite. Paris: Mridiens Klincksieck,

    1987. p. 232.

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    seguinte, a comemorao ser sempre uma partilha. Nela, o recordar,mesmo sendo um dilogo do sujeito consigo mesmo, no se esgo-ta num ato ensimesmado ou meramente subjetivo, mas diz-se na lin-

    guagem pblica, coletiva e instituinte da celebrao ritual,numa teatralizao que pretende gerar efeitos que ultrapassem o

    pragmatismo da transmisso dos saberes.

    Com efeito, se, como sustenta Pierre Nora, os lugares de me-mria sugerem a paragem do tempo47 e, de certa maneira, a imor-talizao da morte, outro no o valor mnsico do cemitrio, poisnele se encontra uma das caractersticas essenciais daqueles espa-os: a sua estruturao como um sistema de significantes que, a parda face veritativa que referenciam, tambm visam gerarefeitosnormativos e, de certo modo, afetivos. Mas, embora os smbolos

    possuam contedo ou histria, eles revelam algo caracterstico detoda a simblica encobridora da corrupo do tempo: organizam ocampo imaginrio como um templo, cavando uma censura de

    indeterminao do espao e do tempo profanos, e escrevem umcrculo de sacralidade no interior do qual os signos s valem no teci-do das suas relaes. Assim, as liturgias desenrolam-se num espa-o-tempo especfico, distinto do espao e do tempo cotidianos, e ocemitrio freqentado como uma espcie de santurio. Ora his-toriquement, cela na dailleurs pas toujours t le cas; ce nestquau XVIII sicle et sourtout au XIX sicle, au moment o laspulture saffirme comme support du souvenir et o le culte desmorts devient culte des tombeaux, que le cimetire accde la sanc-tuarisation.48 Devido a este estatuto, as necr poles modernas, ao

    contrrio dos cemitrios antigos, tinham de ser lugares de excesso,fechados sobre si mesmo, espaos em que o pr prio muro fsicofunciona como proteo contra as profanaes e como uma espciede smbolo-fronteira, campo semntico onde mesmo o mais secu-lar dos significantes se aura de sacralidade.

    Nesta perspectiva, e ao contrrio das peas de um museu, osobjetos cemiteriais no so psicologicamente dissociveis da estru-tura em que se integram. Isto , o lugar (topos) e o signo (sema)esto de tal modo imbricados um no outro, so de tal modo com-

    preendidos como co-extensivos, que nenhum dos dois fenomeno-logicamente separvel,49parecendo natural a relao entre o signifi-cante, o significado e o referente (ausente). Mas esta naturalidade

    recobre-se de sacralidade, j que, como lugares de consagrao ede comemorao, neles se convoca o invisvel atravs do vis-vel, suscitando-se simultaneamente atrao e medo, ao contrriodo que acontece com o museu, territrio em que os objetos expos-tos aparecem descontextualizados, ou melhor, surgem inseridos

    47 Cf. NORA, Pierre.Les Lieux de

    Mmoire. I La Republique. Paris:Gallimard, 1984, p. XLI.

    48 DCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,p. 68.

    49 Cf. URBAIN, Jean-Didier.La

    Socit de Conservation.p. 31-32.

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    num conjunto artificial e erudito. Sem dvida, a conscincia dodefasamento existente entre o topos e osema que leva a deplorar-se

    o cariz decepcionante, por estarem separadas da sua arquitetura e do

    seu ambiente,50 das esculturas funerrias quando isoladamente vis-tas em exposies.

    Pretende-se com tudo isto defender que o smbolo funerrio

    metfora de vida e apelo, uma peridica ritualizao revivificadora;ele para ser vivido e para ajudar a viver,51 oferecendo-se assim co-mo um texto cuja compreenso mais afetiva (a dos entes queri-dos) envolve toda a subjetividade do sobrevivente.

    Com a sua linguagem de recolhimento e do silncio, o novorito cemiterial ir ter na visita peridica (com maior incidncia noDia dos Defuntos2 de novembro) a sua expresso pblica mais re-levante, atitude que ganhou um incontornvel tom comemorativo ede celebrao, como exemplarmente se comprova pela anlise dasromagens, sobretudo pelas que foram diretamente animadas por

    intenes cvicas. certo que lhe faltam algumas caractersticasque Durkheim definiu para o rito comemorativo, mormente oaspecto diretamente representativo, recreativo e esttico da manifes-tao. Mas a tendncia para a individualizao que nela se detectano era de pendor narcsico, solitista ou associal; recordao ecomemorao ainda no estavam dissociadas: a evocao, que onovo culto fomenta, um modo de reconhecimento, isto , uma

    prtica de legitimao que retrospectivamente apela para a autori-dade simblica dos mortos, elevando-os a antepassados norma-tivos e paradigmticos de um grupo.

    Defende-se assim que, mesmo escala da visita ao cemi-trio, possvel surpreender as caractersticas que, numa evidentetransferncia analgica, as comemoraes polticas de raiz tana-tolgica explicitavam de uma maneira ainda mais evidente. A idiade comemorao herdeira no s da solenidade da cerimnia p-

    blica de elogio e de meno de um nome, como implica a sacraliza-o do evocado, desenrolando-se, em similitude com a sua matrizo ato religioso, num rito eficaz para a memria dos mortos e parao destino dos vivos.

    A partir de figuras ou acontecimentos fundadores, a comemo-

    rao, ou melhor, o espetculo da comemorao que requer umlugar, um teatro, um tempo e a sua fico, uma mensagem, a recor-dao e o esquecimento, uma prtica sociabilitria apostada emunificar a diversidade e at o antagonismo de memrias coletivascom uma gnese mais espontnea.52 Da que, conquanto s os indi-vduos possam recordar, o rito comemorativo, tal como o rito reli-gioso propriamente dito, prolongue, modernizando-as, as prticas

    50 FRANA, Jos Augusto.A arte em Portugal no sculo XIX. v.

    2. Lisboa: Bertrand, 1966.p. 20. Num outro sentido,

    veja-se: TEIXEIRA, Madalena Braz.

    Do objecto ao museu.

    In prelo, n. 5, 1984. p. 45.

    51 Cf. URBAIN, Jean-Didier, op. cit.,

    p. 33.

    52 Cf. NAMER, Gerard. op. cit., p.

    201, 204-205.

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dos

    ritos comemorativos.Mimesis, Bauru,

    v. 23, n. 2, p. 13-47,

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    de vocao holstica, bem como a sua funo instituinte de socia-bilidades. E estas caractersticas sero tanto mais evidentes quantomenor for a espontaneidade e a fora normativa do rito e maior fora sua sobredeterminao cvica.53

    A visita ao cemitrio um rito de repetio. E nele se veri-fica esta vertente essencial da comemorao: esta, depois do ato

    fundador, ser sempre comemorao de comemorao, a qual setransformar em tradio se a anamnesis deixar de ser uma neces-sidade vital para os vivos. Com efeito, naquele ato, repetem-secomportamentos-tipo (a deposio de flores, o recolhimento em si-lncio, por exemplo) e a sua corporizao coletiva e pblica (asvisitas individuais so exceo), incitando-se recordao domorto e ao reforo do cosmos (a comear pela famlia) dos vivos. que a memria reavivada pelo rito tem uma funo pragmtica enormativa, consubstanciada no intento de, em nome de um

    patrimnio (espiritual e material) comum, integrar os indivduos em

    cadeias de filiao identitria, distinguindo-os e diferenciando-osem relao aos outros, mas exigindo-lhes igualmente, em nomeda perenidade do grupo, deveres e fidelidades. Para isso, o seu efei-

    to tende a saldar-se numa mensagem. E esta, ao unificar recor-daes pessoais ou outras memrias coletivas, constri e conservauma unidade que domestica a fluidez do tempo num presente que

    dura.54

    O ncleo forte desta reconstruo a famlia. E como defen-deu Halbwachs, a este nvel, o trabalho de unificao ser sobretu-do uma norma: recorda-se o esprito de famlia porque

    necessrio retransmitir e reproduzi-lo. Em graus de sociabilidadesmais extensacomo, nas classes e grupos sociaisa memria seraquela feita sob um critrio unificante anlogo ao do sistema deavaliao nobilitria.55 Mas importa no esquecer que nos ritosrememorativos (e comemorativos) se encontra sempre uma tensoentre afeio e conhecimento e entre memria e normatividade. Oque gera esta experincia interativa: como a memria normativa,ela oferecida como uma mensagem, e esta, ao criar uma pulsoe uma corrente, inunda os indivduos participantes no rito, apela aser interiorizada e a socializa-se como um dever.56

    certo que a gesto memorial, quando se cinge ao ncleofamiliar, parece fugir s caractersticas das comemoraes (ela mais singela, espontnea, restrita e silenciosa). Porm, tal como emtodo o ato comemorativo, tambm ela se concretiza como um gran-de movimento simblico atravs do qual um grupo assegura a suaidentidade, voltando-se para a face do passado que, num dado pre-

    sente, considera definidora da sua unidade e continuidade. E no

    53 Para uma circulao das relaesentre retrospeco, celebrao ecomemorao do passado nas atitudesligadas ao fenmeno da religiosidadecvica, leia-se ORY, Pascal. Une

    Nation Jour Mmoire. 1889, 1939,1989 trois jubiles rvolutionnaires.Paris: Presses de la Fondation

    Nationale des Sciences Politiques,

    1992. p. 8-9.

    54 Cf. NAMER, Gerard. op. cit.,

    p. 224.

    55 Ibid., p. 226.

    56 Ibid., p. 236.

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    caso das comemoraes de finalidade cvica, a celebrao enforma-se de componentes estticos, dinmicos (o desfile) e orais (os dis-cursos), de modo a realizar programadamente suas intenes pai-dticas e o seu trabalho sociabilitrio. Pode mesmo afirmar-se que,quanto maior e mais massificada for a escala sociabilitria maisaumenta a estranheza entre os indivduos e se requer um mais

    constante investimento simblico na construo e reproduo damemria unificadora. Por conseguinte, se no rito de centraoexclusivamente familiar o culto mais quente e espontneo, asromagens e as comemoraes, movidas por uma mais marcanteinteno coletiva e pblica, implicaro, regra geral, a existncia deuma coordenao (isto , uma organizao), de um desfile, de sig-nos com significado social (bandeiras), e contaro amide com a

    presena de oficiantes (oradores), tendo em vista sublimar o esque-cido com o significado de palavras que relembrem e enalteam.57

    No entanto, tambm, nestas liturgias cvicas se encontram, por

    extenso e imitao, os propsitos de filiao, integrao e deidentificao caractersticos do culto familiar dos mortos.58

    Outra no a funo das liturgias da recordao: criar senti-do e perpetuar o sentimento da pertena e de continuidade. O imagi-nrio da memria sociabiliza, dado que o recordar liga os indivdu-os no s verticalmente, isto , a grupos ou entidades que holistica-mente se impem, mas tambm a uma vivncia horizontal e longado tempo social. Por conseguinte, a memria socializa a identifi-cao e a filiao e, simultaneamente, ajuda a esconjurar a an-gstia da irreversibilidade do tempo e da morte, inserindo a finali-

    dade da existncia finita numa filiao escatolgica. Neste hori-zonte, os indivduos so integrados na cadeia das geraes e em umideal de sobrevivncia na memria dos vindouros.59 O que pres-supe uma experincia continusta do tempoa memria, vinda do

    passado, poder perdurar num futuro aberto e implica que se es-quea que, tarde ou cedo (duas ou trs geraes?), os mortos aca-

    baro por ficarrgo de seus prprios filhos.Por tudo isto, defende-se que as liturgias da recordao tm

    por finalidade federar atomismos e diferenas sociais e recalcar(pelo menos no tempo curto do rito) as tenses que atravessam osgrupos. Portanto, no ser descabido dizer-se que, em certa medida,a necr pole desempenha um papel anlogo ao dos velhos Librimemoralis (tambm chamados necrfagos ou obiturios a par-tir do sculo XVII). Estes continham o nome de pessoas, geral-mente j mortas, de quem se pretendia guardar memria atravs dorecurso a frmulas como estas: aqueles ou aquelas cuja memrialembramos; aqueles de quem escrevemos os nomes para guardar-

    57 Cf. DCHAUX, Jean-Hugues. op.cit., p. 75-76.

    58 No estado sobreA MilitnciaLaica e aDescristianizao da Morte

    em Portugal(v. 2, p. 891-999)explicitamos as relaes estreitasexistentes entre o culto cemiterial e

    romntico dos mortos e as festascvicas polarizadas volta das

    comemoraes centenrias. Estasanlises foi posteriormente por ns

    retomadas emRitualizaes daHistria. In: TORGAL, Luis Reis;

    MENDES, Jose Maria Amado;

    CATROGA, Fernando.Histria daHistria em Portugal. Sculos XIX-

    XX. Lisboa: Crculo de Leitores,1996. p. 547-671. Para o caso francs,

    pode-se ler-se os j citadosestudos de Pierre Nora, de Pierre Ory

    e de Gerard Namer. Paraoutros pases (Estados Unidos,

    Inglaterra, Iraque, Frana, Israel,Alemanha), leia-se por todos GILLIS,

    John R. (ed) Commemorations .

    Princeton-New Jersey: Princeton

    University Press, 1994.

    59 Cf. DCHAUX, Jean-Hugues. op.cit., p. 231-232.

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    mos na memria. A escrita (a leitura) elevada a garante memori-al da memria, no deixando de seu sintomtico que, desde o scu-lo VIII, a excomunho tenha passado a ser sinnimo de damnatiomemoria (Conclio de Reisbach, 798; de Elne, 1027), numa evi-dente cristianizao de uma atitude antiga: j na velha Grcia, osque desapareciam no esquecimento do Hades tornavam-se nnum-

    noi, isto , annimos, sem nome.60Recentemente, Jean-Didier Urbain caracterizou os cemitrios

    como bibliotecas e os tmulos como livros que se abrem, certo,mas que se consultam como t buas mesopotmicas ou sumrias,

    pois a sua significao no imediata e transparente.61 Se estaimagem acertada na perspectiva do investigador, ela no chega paraapreender a intencionalidade simblica da necr pole. Esta no seesgota na escrita. J no sculo XIX, o clebre Monsenhor Gaume,em obra publicada no perodo da Comuna contra os enterramentoscivise logo traduzida para portugus em 1874definia explicita-

    mente o cemitrio como o livro mais eloqente que pode haver,porque fala simultaneamente aos olhos, ao esprito e ao corao.62

    A necrpole um livro escrito em linguagem metafrica.Ento isto quer dizer que o culto dos mortos, como todo ato consti-tutivo de memrias, tambm um dilogo imaginrio do sujeitoconsigo mesmo, feito com os olhos, o esprito e o corao, a fim dere-presentificar o evocado. Logo, se, enquanto vivncia ritualista,a sua leitura, como todo o rito, denota algo da esfera das intenes,o seu significado , porm, irredutvel pura racionalidade. Comono se procura construir uma memria-saber, evocar serrecor-dar e comemorar, pelo que o territrio dos mortos funcionasimultaneamente como um texto objetivador de sonhos escatolgi-cos (transcendentes e/ou memoriais) e como um espao pblico ede comunho, cenrio miniaturizado do mundo dos vivos eteatro exemplar de afetividades e de produo e reproduo dememrias, de imaginrios e de sociabilidades. E s depois de umadequado e extrovertido tempo de luto ganhar fora o distancia-mento racional, que cura e normaliza, porque s a razo que podedistinguir um antes e um depois da morte, ao passo que o imagi-

    nrio se recusa a aceitar a ruptura e continua a ver naquele queacaba de morrer algum que ainda no deixou a vida.63

    A reproduo da(s) memria(s)

    Pelas razes aduzidas, entende-se que, no cemitrio oito-centista, a assuno da irreversibilidade do tempo surja sobrede-

    60 Cf. VERNANT, Jean-Pierre.

    Lindividu dans la cite. In: SURlindividu. Paris: Seul, 1987, p. 2;CANDAU, Joel. op. cit., p. 3.

    61 Cf. URBAIN, Jean-didier.

    LArchipel de Morts. L sentiment dela mort et ls derives de la mmoire

    dans ls cimetires dOccident. Paris:Payot, 1998, p. 10.

    62 Cf. MONS. GAUME.

    O Cemitrio no Sculo XIX ou asltimas palavras solidrias.Porto: E. Chardron, 1874, p. 106.

    63 Cf. THOMAS, Louis-Vincent.

    Prface, In: BAYARD, Jean-Pierre,op. cit., p. 13.

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    terminada por uma idealizao utpica e ucrnica , cuja ex-presso cnica devia traduzir simblica e esteticamente o acessode todos sobrevivncia individualizada. Isto no surpreende,

    porque a necr pole romntica uma criao cultural t pica deuma sociedade-memria (PIERRE NORA), portanto, de umsociedade que procura no passado a legitimao (ou a crtica) do

    presente. O que explica que, no culto cemiterial dos mortos, arecordao uma memria-vivida seja sentida e interiorizada

    por muitos como sendo natural, espontnea, eterna e vocaciona-da para instituir e reforar a coeso e identidade dos evocadorese vocacionada (indivduo, famlia, associao profissional ou

    poltica, grupo de amigos, Nao, etc.). E se a sua matriz foi alinhagem e a continuidade da famlia, cada vez mais nucleariza-da, esta concepo horizontal do tempo casava-se bem com o his-toricismo subjacente viso romntica da histria: o passado, oumelhor, uma certa leitura idealizada dele, elevado, numa explo-

    rao do papel pragmtico da memria, a lio do presente e (ou)do futuro.

    Com efeito, depois das propostas iluministas para a expulsodos mortos do territrio dos vivos, nasceu um novo afeioamentocaracterizado pela crescente personalizao do funeral e dramatiza-o da perda. A sensibilidade romntica ir explicitar o sofrimentocausado pela morte do outro, e a sepulturatal como outrora navelha Romaimps-se como a pea central do culto.

    Como tem sido assinalado (ARIS, VOVELLE, JEAN-HUGUES DECHAUX), sero os espritos mais imbudos de ideais

    iluministas e se-cularizadores a atacarem a Igreja por esta ter negli-genciado o destino dos corpos e dos tmulos e a impulsionarem estenovo culto. Os cemitrios so pensados em termos higinicos ecomo lugares a serem visitados. E novo culto, de base dominante-

    mente familiar, animado pelo propsito de se tambm reforar a perenidade da prpria polis. Esta funo social, bem patente nashomenagens aos grandes homens, fez com que no decurso dosculo XIX a mediao religiosa e as expectativas transcendentesviessem a coexistir com uma espcie de religio cvica(ROUSSEAU), dimenso que, a partir de meados de Oitocentos, o

    positivismo de Comte ajudar a sistematizar. Tal caldeamento foipossvel porque ele estava en consonance avec les nouvelles atti-tudes fortement teintes de romantisme face la mort et le regainde lesprit commemorative qui a caracteris le ftes rvolutio-naires, anunciando assim une nouvelle re du culte des morts.64

    A sobrevivncia memorial do grande homem era to-s atraduo maior desta crescente reivindicao: o direito sobre-

    64 DCHAUS, Jean-Hugues,op. cit., p. 42.

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    vivncia individualizada e igualitria, aspirao assente na men-sagem evanglica e confirmada pelos direitos naturais do homemque a modernidade estava a acentuar.

    No entanto, a sua concretizao, tal como acontecia entre osvivos, saldou-se numa flagrante desigualdade. certo que, em algu-mas propostas avanadas ainda no sculo XVIII no contexto do

    otimismo iluminista, os desejos de igualdade poltica e social inspi-ram projetos de cemitrios monumentais e coletivistas (projetos deLedoux e Boull),65 e que a Conveno chegou a impor a vala co-mum para todos, ou quase todos, embora rapidamente tenha quebra-

    do esta regra com a criao do Panteo Nacional em Sainte Gene-vive.66 Porm, os valores em processo na nova sociedade iam emsentido contrrio: uma sociedade alicerada na afirmao do indi-vduos tinha de exigir tmulos diferenciados e de prometer que to-dos podiam sonhar com uma inequvoca sobrevivncia memorial. E

    basta analisar o modo como os novos cemitrios, principalmente os

    das grandes metrpoles dos pases mediterrnicos, foram se urba-nizando e decorando para se verificar como as hierarquias sociais

    en-tre os vivos ditaram uma anloga desigualdade no acesso efeti-vo s condies semiticas necessrias construo e durao damemria.

    Nos nossos cemitrios do sculo XIX, o mausolu, o jazigo-capela, a concesso perptua passaram a constituir bens imveis,

    privados e transmissveis por herana como quaisquer outros. Dir-se-ia que funcionavam como uma espcie de prova ltima segundoa qual a eternizao da memria do proprietrio (logo, de toda a lin-

    hagem familiar) ficava dependente da capacidade que os seus des-cendentes teriam para perpetuar a totalidade do patrimnio (mate-rial e espiritual) herdado; em certo sentido, o cemitrio passou a seruma espcie de familistrio de mortos. O que se entende: em pri-meira instncia, o culto, na sua incidncia mais profana, sobretu-do um rito familiar; ele no s se celebra em famlia, como estinvestido de uma carga simblica especificamente familiar, ao reite-rar e reforar os elos de parentesco. Com isto, reaviva o sentimentode pertena. Fio invisvel que a memria partilhada e ligada a umaherana e a uma tradio enraza.67 Deste modo, o monumentofunerrio dos novos cemitrios tem de ser entendido luz dasestratgias de transmisso, comumente carismadas por uma fi-gura-fundadora.

    Pode assim concluir-se que, se a sepultura, o mausolu, o jazi-go e os respectivos signos pretendiam preservar a memria dosdefuntos oriundos das classes abastadas (ou de artesos remedia-dos), a sua funo tambm era a de materializar uma exemplaridade

    65 ETLIN, Richard A. The

    Architecture of Death . The

    Transformations of the cemetry in

    Eighteenth-Century. Paris:

    Cambridge, the Massachusetts

    Institute of Technology, 1984. Para a

    articulao entre o geometrismo

    igualitrio destas idealizadasnecrpoles e o utopismo iluminista,leia-se BACZKO, Bronislaw.

    Lumires de lUtopie. Paris: Payot,1978. p. 325.

    66 RAGON, Michel. op. cit.,

    p. 267-268.

    67 DCHAUX, Jean-Hugues,op. cit., p. 98.

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    normativanesta vertente, o cemitrio igualmente um lugar deesquecimento de tudo o que possa diminuir a depurada recordaodo finado que educasse e reforasse a crena na perenidade dasrespectivas famlias ou grupos. E esta ilao leva a concluir que oculto no almejava salvar somente a alma do evocado, mas tambma ratificao sacralizada das posies histricas e sociais dos evo-

    cadores. Afinal, a diferena entre, num extremo, o mausolu, o jazi-do, e no outro, a vala comum, acabava por assinalar a distncia quecontinuou a existir entre o direito virtual de todos sobrevivnciaindividualizada e a efetiva possibilidade de acesso aos suportes sim-

    blicos necessrios sobrevivncia na memria coletiva.Em suma, as atitudes perante a morte, que a modernidade

    foi gerando, acentuaram a monumentalidade funerria ao postu-larem a memria como um segundo alm imortalizador. Estehorizonte foi-se impondo em coexistncia ou em sincretismo coma crena na ressurreio final, afirmando-se como uma espcie de

    compensao paligensica e/ou historicista derivada do aumentoda incerteza na imortalidade transcendente. E embora a valoriza-

    o ana-mnsica no tenha substitudo as escatologias transcen-dentes, ser igualmente correto atribuir-lhe um papel teraputico:a sua liturgia tambm contribua para atenuar a angstia da morte,oferecendo a possibilidade da manuteno de uma continuidadevirtual; e o rito, ao pr em cena uma troca simblica entre osvivos e os mortos, alimentava e reatualizava essa crena,68 dandoassim um contributo decisivo, tal como o ltimo rito de pas-sagem, para a superao do luto e para o regresso e reproduo da

    normalidade.Entre ns, alis, significativa a forte presena de smbolosda vitria da imortalidade sobre a morte na iconografia dos cemi-t-rios oitocentistas e o aparecimento de expectativas diretas eexclusi-vamente colocados sob os auspcios do culto da memria,ou me-lhor, do culto memria de. E mesmo as represen-taes escatolgicas no dispensavam, conquanto de um modosupletivo e complementar, a sobrevivncia memorial, consubstan-ciando-a, em primeiro lugar, no desejo de filiao do indivduonuma memria familiar, ou em grupos portadores de tradio, luzdas quais a vida individual e coletiva pudesse adquirir um sentido

    prospectivo e terreno. Como concluiu (recentemente) Jean-Hugues

    Dchaux la symbolique de lancrage lignager (appartenir quelque chose) vient consolider celle de la rssurrection des morts.Elle est croyence en la permanence dun groupe qui dote le sujetdun soutien existentiel permettant de contenir les vestiges de lin-dividuation.69 Ora, se a romagem passou a constituir a manifes-

    68 Ibid., p. 276.

    69 Ibid., p. 280.

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    tao por excelncia desta produo memorial, deve sublinhar-seque, numa repetio mais cuidada e significativa do annciofunerrio, tambm ganhou particular relevo a publicitao, naimprensa, da passagem dos aniversrios da morte de quem se pre-tendia recordar.70

    verdade que existia a conscincia de que a eternizao

    garantida por todos estes meios seria sempre precria, pois, na evo-cao, o que se re-presentifica a imagem idealizada do evoca-do, e o que se confirma a vida do vivo. E neste reino de ilusoucrnica, o dilatamento da sobrevivncia dos traos do morto,mas mais de um julgamento pstumo baseado numa escala demritos decorrentes da construo de sua exemplaridade comoantepassado, ou seja, do presumvel contributo que o f inado terdado para a consolidao de uma famlia, para o prestgio de umlugar, para o progresso de uma associao, de uma classe, de umiderio, de uma Nao ou da humanidade. Todavia, como a durao

    da lembrana, que a conscincia ingnua acredita ser eterna, serdeterminada pelo investimento mnsico dos vivos, os juzos sobreo defunto, feitos no presente de sua morte, tambm no socondio suficiente, j que a continuidade da sobrevivnciadepende igualmente das necessidades futuras de comemorao (oude desmemorizao). E como a memria um construto seletivo,relativo e histrico, isso conduz a que os sonhos de uma eternidadeatualizada pelos vivos estejam sempre ameaados pela queda daamnsia, permanente direito de portagem que a anamnesis temde pagar ao esquecimento.

    A partir destes pressupostos, compreende-se que a encenaodo cemitrio oitocentista tenha plasmado as atitudes tpicas da so-ciedade de conservao71a reteno, acumulao e reproduodos vestgios do morto (no sero os traos dos mortos os

    primeiros documentos da histria?)em ordem a acreditar-se tantonas expectativas salvficas como na continuidade histrica. O que seentende, porque, se o sculo XIX foi o sculo do culto dos mor-tos, foi tambm o sculo da histria, ou melhor, do historicismoe do apogeu das ideologias da memria derivadas da necessidadeque os indivduos, as famlias, as novas associaes e Estados-

    Nao tiveram de reinventar as suas razes histricas e de legitimaros seus sonhos de futuro. Recordar os finados possibilitava a insti-

    tuio e o reconhecimento de identidades, bem como o delinea-mento de esperanas escatolgicas (transcendentes e terrenas), poisa anamnesis oferece ao evocador uma histria com um passado eum futuro, num encadeamento contnuo de geraes que, comonum outro registro afirmavam as filosofias da histria da moder-

    70 Cf. RINGLET, Gabriel. Ces Chers

    Disparus. Essai sur ls annoncesncrologiques dans la press

    francophone. Paris: Albin Michel,

    1992. p. 177.

    71 URBAIN, Jean-Didier.La Socitde Conservation, passim.

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    nidade (CONDORCET, KANT, HEGEL, MARX, COMTE), ultra-

    passa o tempo da existncia individual.72 Deste modo, lcito con-cluir que, apesar do rito implicar repetio, recordar e sobretudocomemorar ser sempre teatralizar uma prtica de reescrita da(s)histria(s); ser, em sntese, praticar coletivamente uma memriaque veicula mensagens num tempo fictcio em que o passado-pre-

    sente e o futuro coabitam.73

    No foi assim por acaso que a hegemonizao de uma idiatridimensional e irreversvel do tempo, fomentada peloIluminismo, consolidou, numa evidente secularizao da escatolo-gia judaico-crist, o papel da memria no culto dos mortos. Como

    bem escreveu Baudrillard, a imortalidade somente uma espciede equivalente geral ligado abstrao do tempo linear.74 E s odesconhecimento dos mecanismos de legitimao por enraizamen-to75poder conduzir a que se confunda a invocao do passado comuma utilidade passadista ou nostlgica. Como a memria ativa, a

    recordao nunca resultante da oposio entre o passado, o pre-sente e o futuro. Ao contrrio, toda a retrospectiva sempre umaprotenso, podendo mesmo defender-se que, em certa medida,lavenir nest pas une cration ex nihilo: le pass collabore ld-ification du futur.76 O que ajuda a compreender a dialtica entrememria e esquecimento, em certo sentido, se este a abscndita

    presena do inconsciente ou conscientemente recalcado, ele tam-bm fonte que, atravs da recordao, possibilita a existncia defuturos para o presente e de futuros para o passado. A memria e oesquecimento so, portanto, irmos siameses necessrios ao tran-

    scurso do tempo, ensinando que, para se conhecer uma vida ouuma sociedade, to importante recordar como no se esquecer doesquecido.77

    J Santo Agostinho (CONFISSES, XI) tinha elevado a me-mria a garante da continuidade irreversvel do tempo subjetivo,intuindo-a como ponto de tenso entre a recordao do passado e assaudades do futuro. E a experincia do rito comemorativo modernono contradiz esta intuio agostiniana. Nenhuma dimenso dotempo pode ser pensada fazendo abstrao das outras, e o rito exem-

    plifica a dinmica e coletivamente a tenso, no presente, entre a

    memria e a expectativa, organizando a passagem de um antes a umdepois, dos quais o presente simultaneamente o intrprete e areferncia.78

    Embora se deva ser cauteloso na transposio das analogiasentre a memria dos indivduos e da sociedade, importa sublinharque nunca como no sculo XIX essa comparao foi to acredi-

    72 Cf. DCHAUX, Jean-Hugues,op. cit., p. 224.

    73 Cf. NAMER, Gerard. op. cit.,

    p. 210-211.

    74 BAUDRILLARD, Jean.

    A troca Simblica e a Morte. Lisboa:Edies 70, 1997. v. 2, p. 16.

    75 WEIL, Simme.LEnracinement.Paris: Gallimard, 1990. p. 61.

    76 DCHAUX, Jean-Hugues,op. cit., p. 265.

    77 AUGE, Marc. op. cit.,

    p. 121-122.

    78 Ibid., p. 75-76.

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dos

    ritos comemorativos.Mimesis, Bauru,

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    tada.79 Essa tambm foi a poca em que se assistiu gradualentificao da idias coletivas (DURKHEIM), processo queconduziu objetivao do prprio conceito de memria coleti-va (HALBWACHS)80 e definio de sociedade como umorganismo evolutivo.81 Este pressuposto, de fundo holstico,explica que lhommage ritualis aux defunts est, du transcen-dence de la colletivit qui, pardel les individus qui la composent,se prpetue,82 funcionando como uma espcie de elo visvel quevisava compatibilizar a tendncia ato-mizada da modernidadecom novas totalidades sociabilitrias de raiz contratual e associa-tiva. E se o desenvolvimento contemporneo do direito subje-tividade veio a pr em causa a excessiva on-tologizao do par-adigma dos fatos sociais e o seu cariz holstico e coa-tivo emrelao aos indivduos (BURDHON, SCHTZ, PETER BERG-ER, LUCKMANN JOSETTE COENEN-HUTHER), o certo

    que a construo da anamnesis tem o seu hmus nos quadrossociais e na historicidade do pr prio evocador, situao que,embora no seja determinante, condiciona os indivduos a man-terem uma relao dialtica, dentro de um processo socializador,entre os valo-res da(s) sociedade(s) em que se situam e o seu

    prprio passado.83

    Tal como acontecia no seio das famlias, as novas prticas co-memorativas tambm pretendiam evitar que o crescimento do indi-vidualismo e do contratualismo sociais degenerasse em anomia: o

    culto dos mortos, tal como a festa cvica, enraza a filiao e o

    evolucionismo histricos (dos grupos e da humanidade) e ajuda-va a reforar o novo consenso social (COMTE). E mesmo nosmeios em que, por razes ideolgicas ou devido s condies mate-riais de existncia e diluio das formas tradicionais da sociabil-idade, a secularizao foi maior, se encontra a mesma atrao,socialmente mimtica, pela visita ao cemitrio. Ora, se esta car-acterstica uma conseqncia da sobrevalorizao cvica do culto,importa salientar que ela s se radicar com fora na segundametade do sculo XIX (sobretudo nos pases dominantementecatlicos), com a consolidao de liturgias da recordao fomen-

    tadas pelas novas famlias burguesas em ascenso e posteriormentealargadas ao imaginrio de todos os grupos sociais. Como jsalientamos em outro lugar, e Jean-Hugues Dchaux confirmou emestudo recente, la s pulture est aussi un symbole famillial. Cenest pas par hasard si le culte des morts est devenu culte destombeaux au moment mme o se diffusait dan toute la bour-

    79 Fazendo uma crtica s teses sobrea existncia de uma similitude entre amemria individual e a memria cole-tiva, Gerard Namer sublinhou que a

    aceitao desse postulado leva a es-quecer as diferenas entre unificaodas memrias numa sociedade e aunificao das recordaes numa me-mria. Dir-se-ia estar-se perante umacorrespondncia mgica do microcos-mo e do macrocosmo, segundo a qual,

    maneira de Leibniz, a memria indi-vidual um reflexo do sistema dossistemas de mnados, isto , a unifi-cao ltima das memrias coletivasnuma memria da sociedade global.Cf. NAMER, Gerard, op. cit., p. 225.

    80 Cf. HALBWASCHS, Maurice.Es

    Cadres Sociaux de la Mmoire. Paris:Albin Michel, 1925; ______.La

    Mmoire Collective. Paris: PUF, 1950(edio pstuma). Para uma bibli-ografia sobre a defesa da enticidade

    da memria coletiva, veja-se a listainserida em CONNERTON, Paul.

    Como as Sociedades Recordam.

    Oeiras: Celta, 1993. p. 1, nota 1.

    81 Sobre as cautelas a ter em relaos analogias entre a memria subjeti-va e a chamada memria coletiva,veja-se CANDAU, Jol. op. cit., p. 62.

    82 DCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,p. 45.

    83 Cf. COENEN-HUTHER, Josette,

    op. cit., p. 34-38.

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    geoisie le caveau de famille. Dans largumentaire laque et posi-tiviste de ses promoteurs, le rite doit tre la fois famillial etcivique. Bien plus, il nacquiert une dimension civique que sichaque famillie a dj le souci dhonnorer ses propres morts. Lacontinuit de la cit, de lhumanit, commence avec la continuitde chaque famille et sachve, avec le Panthon, par le culte desgrands hommes.84

    Sabe-se que a memria das linhagens desempenhou, nasclasses superiores do Ocidente, um papel de distino decisivo. Aordem de Antigo Regime estribava-se numa forte transmisso de

    posies e de privilgios, realidade que obrigava a invocaes dopassado como prtica legitimadora dessas situaes. Por isso, noraro, se a memria aristocrtica remontava a centenrios antepassa-dos fundadores, a burguesia, ao contrrio, no podia ir to longe. Noentanto, a extenso da sua memria, ainda que curta, maior do quea existente nas famlias mais pobres, talvez em conseqncia de as

    capacidades de retrospeco dos indivduos (e dos grupos) depen-derem do uso e importncia da anamnesis na justificao dos res-

    pectivosstatus, prtica que bem menos nas camadas mais desfa-vorecidas da populao.85

    Se estas diferenas parecem indiscutveis, a verdade que ohorizonte historicista do sculo XIX democratizou um poucomais as recorrncias de fundo genealgico, j que, ao impulsionar aconstruo ou a redefinio de memrias e ao ultrapassar a escalados indivduos e das famlias, alargou os seus propsitos: a partir daevocao de antepassados fundadores procurou-se radicar uma

    histria evolutiva e contnua para as famlias, para os grupos, paraas associaes, para as classes, para a Nao e at para a prpriahumanidade. Pode mesmo sustentar-se que este trabalho se tornou

    tanto mais necessrio quanto mais baixa e massificada era a basesocial que se visava identificar e consensualizar.

    Tal preocupao explica que os meios mais interessados namediao paidtica do novo culto dos mortos, logo na recriao damemria, tenham postos os olhos no que a Revoluo Francesa en-sinou sobre educao cvica, nomeadamente no terreno das festascvicas e dos novos cultos (incluindo o culto pantenico), bemcomo na releitura que Comte e seus disc pulos fizeram dessasnovas prticas sociabilitrias. No admira, sobretudo quando sesabe que as necessidades simblicas das novas famlias e dosnovos Estados-Nao exigiam a reinveno de memrias, aomesmo tempo que o positivismo (tanto ortodoxo como hetero-

    doxo) se esforar, a partir de meados de Oitocentos, para darcobertura terica a essas ritualizaes, apresentando-as como

    84 DCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,p. 90.

    85 Sobre esta questo, leia-seCOENEN-HUTHER, Josette.

    op. cit., p. 50-51.

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    sucessoras (e sucedneas) dos ritos catlicos. E a convico destanecessidade tocou alguns liberais de esquerda e sobretudo muitos

    republicanos, socialistas e livres-pensadores. Estes setores,

    descontando rarssimas excees, no iro contestar o valor educa-tivo do culto dos mortos e a estrutura formal do rito de passagem

    gerada pelas novas necrpoles oitocentistas. Pelo contrrio, limi-

    tar-se-o a descristianiz-la e a dar-lhe um significado de home-nagem e de celebrao comemorativa, enfatizando pragmatica-mente a sua importncia cvica.

    Relembre-se que, para o positivismo, explicitando e levando

    s suas ltimas conseqncias as atitudes que animavam o cultoromntico dos mortos, s um segundo enterramento possibilitariaum ritualismo propcio imortalizao da individuo na memriacoletiva, garantindo a sua eternidade subjetiva (com os cortejos,as sepulturas, as inscries, os bustos, as esttuas),86 forma mitiga-da de dar continuidade ao ritual da passagem do morto a an-

    tepassado, isto , a figura exemplar finalmente depurada para acomemorao. Em certo sentido, tambm a visita ao cemi-trio, em um eco degradado e secularizado de velhos ritos aqui-etadores da ameaa do duplo, garantiria a transformao doculto dos mortos em culto dos antepassados. Para isso, asobredeterminao luminosa, que os cultuadores cvicos faziam damorte, necessitava conservar os vestgios do corpo, dissimulan-do a inevitabilidade do seu aniquilamento, de modo a dar credibil-

    idade revivescncia ritual do defunto e sua evocao e cele-brao paradigmticas.

    De fato, se este trabalho simblico atravessou todas asexpresses sacrais do ltimo rito de passagem, ele ganhou ummaior relevo nos funerais civis e nas romangens e comemoraescvicas. certo que estas manifestaes se afirmaram como umaespcie de ritos profanos.87 Mas, ao seculizarem o religioso, noestariam a prolongar as caractersticas essenciais do rito (sagra-do)? Fomentadas por indivduos ou grupos que perfilhavam visesagnsticas ou materialistas da vida, dir-se-ia que a sua descrenaescatolgica era compensada por um forte investimento nas litur-gias da recordao e pela elevao da memria (e do futuro

    histrico) a uma espcie de verso terrena e secularizada da escat-ologia crist. Nesta perspectiva, igualmente compreensvel quetenham sido eles os que mais empenhadamente sublinharam o

    valor do culto dos mortos para formao da cidadania, ideal que,como palco, exigiu o reconhecimento dos cemitrios comoespaos pblicos.

    86 COMTE , A. Catechisme

    Positiviste. Paris: Garnier Flamarion,

    1965. p. 182.

    87 Sobre a estrutura formal

    (e sucednea) destas manifestaes,leia-se RIVIRE, Claude.Ls Rites

    Profanes. Paris: PUF, 1995.

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    CATROGA, Fernando.Recordar e comemorar.A raiz tanatolgica dosritos comemorativos.Mimesis, Bauru,v. 23, n. 2, p. 13-47,

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    2 - Esquecer a morte e a memria

    Hoje, parece evidente que a crise dos vrios historicismos(conservadores ou progressistas) coincide sintomaticamente com o

    recalcamento e a quase desclandestinizao da morteesta ter-se- tornado pornogrficae com o crescimento dos sinais de aban-dono no prprio culto dos mortos. Numa certa medida, existe ummaior distanciamento em relao ao cadver e aos seus vestgios,talvez em conseqncia do enfraquecimento e subalternizao dasvelhas formas que permitiram tecer as solidariedades sociais. E a

    razo de tudo isto parece radicar no fato de estar a desaparecer omundo que lhes deu origem,88 substitudo por um outro mais cen-trado na individualidade89 (no homo clausus) e na sua resultante

    coletiva: a massificao.A solido na vida conduz morte isolada.90 Historiadores,

    socilogos, antroplogos e filsofos tm assinalado alguns dosmotivos que, a seu ver, explicam a passagem da velha mortesolidriamorte solitria hodierna. A desertificao do mundorural, o desenvolvimento das cidades com as suas novas exignciasde espao e de tempo, a reduo e maior precariedade das famlias,as novas condies de habitabilidade, as emigraes (externas einternas), a crena no poder da cincia e da tcnica que leva amorte a ser definida como uma doena, anormalidade que a medici-na acabar por vencer, o crescimento do individualismo e doanonimato, bem como a simultnea crise das Igrejas e dos medi-

    adores do culto memorial e respectiva ideologia (associaes, par-tidos, sindicatos) tm sido algumas das razes apresentadas para

    justificar a emergncia dos sinais de degradao do culto romnti-co dos mortos e das liturgias da recordao.91

    Sintoma de tudo isto a medicalizao da morte. Na Frana(1986), duas em cada trs mortes j ocorriam no hospital, embora agrande maioria dos franceses (75%) declare preferir falecer em casa

    e somente 6% em centros de sade.92 E em Portugal, aquela porcen-tagem situa-se atualmente entre os 50 e 60%.93 Por sua vez, assiste-

    se estandartizao, mercantilizao e profissionalizao do ltimo

    rito de passagem. A azfama da vida moderna faz diminuir a du-rao deste processo (di