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8 Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 17, JUL/DEZ 2014 RESTRIÇÃO ÀS MEDIDAS CORRETIVAS A CRIANÇAS E ADOLESCENTES: LIMITAÇÃO AO PODER FAMILIAR E SEU CONTEÚDO. Thamires Venturini Nunes 1 Marcela Morales Corrêa de Souza 2 RESUMO O objetivo geral do presente trabalho é confrontar os princípios norteadores do Direito de Família, notadamente, do melhor interesse da criança e do adolescente, da afetividade, da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, além do princípio da intervenção estatal mínima, em conjunto com as demais fontes, quais sejam, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Civil com a Lein.º 13.010/2014, analisando até que ponto o Estado tem poder interventivo na relação de educação dos pais sobre os filhos e procurando avaliar o limite da intervenção estatal e a razoabilidade das medidas corretivas que os genitores utilizam para educá-los. Palavras-chave: Princípios. Lei Menino Bernardo. Intervenção Estatal.Medidas Corretivas. Poder familiar. 1 Bacharel pelo Instituto Metodista Granbery. 2 Especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogada e professora de Direito Civil no Instituto Metodista Granbery.

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Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery

http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377

Curso de Direito - N. 17, JUL/DEZ 2014

RESTRIÇÃO ÀS MEDIDAS CORRETIVAS A CRIANÇAS E ADOLESCENTES:

LIMITAÇÃO AO PODER FAMILIAR E SEU CONTEÚDO.

Thamires Venturini Nunes1

Marcela Morales Corrêa de Souza2

RESUMO

O objetivo geral do presente trabalho é confrontar os princípios norteadores do

Direito de Família, notadamente, do melhor interesse da criança e do adolescente,

da afetividade, da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, além do

princípio da intervenção estatal mínima, em conjunto com as demais fontes, quais

sejam, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o

Código Civil com a Lein.º 13.010/2014, analisando até que ponto o Estado tem poder

interventivo na relação de educação dos pais sobre os filhos e procurando avaliar o

limite da intervenção estatal e a razoabilidade das medidas corretivas que os

genitores utilizam para educá-los.

Palavras-chave: Princípios. Lei Menino Bernardo. Intervenção Estatal.Medidas

Corretivas. Poder familiar.

1 Bacharel pelo Instituto Metodista Granbery. 2 Especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogada e professora de Direito Civil no Instituto Metodista Granbery.

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1 INTRODUÇÃO

O Estado, com a sanção da Lei n.º 13.010/2014, interveio no âmbito familiar,

pelo que se indaga até que ponto há o direito e a obrigação de intervir no seio da

família para não apenas dar diretrizes, mas especialmente para punir a educação

propiciada pelos genitores.

Princípios como o do melhor interesse da criança e do adolescente, da

afetividade, da doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente e da

intervenção estatal mínima, assim como normas constitucionais e

infraconstitucionais que tem como centro o amparo jurisdicional das garantias às

crianças e aos adolescentes serão confrontadas à nova legislação.

A evolução histórica do poder familiar, antigo pátrio poder, seu conteúdo e as

sanções que eram previstas e aplicadas em caso de exercício em excesso ressalta

os seus aspectos positivos e negativos da Lei e seu impacto na sociedade.

A restrição ao poder corretivo dos genitores imposta pela Lei 13.010/2014

contraria o princípio da menor intervenção estatal, pelo que, partindo de uma

diferenciação entre Direito Público e Direito Privado,impera o limite de o Estado

tutelar e o poder de fiscalizar as relações familiares, demonstrando as falhas na

edição da referida lei e apontando algumas soluções que poderiam ser adotadas

pelo Estado, a fim de dar maior efetividade às normas já existentes.

2 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

2.1. Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente

O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente está

previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, caput, com redação

dada pela Emenda Constitucional 65 (13 de julho de 2010): É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de

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negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 9.069/1990) regulamenta a

proteção às crianças e aos adolescentes, sendo criança a pessoa com idade entre

zero a doze anos incompletos e adolescentes a que tem entre doze e dezoito anos

completos.

O parágrafo único do artigo 4º do Estatuto da Criança e Adolescente

dispõe:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito à liberdade e â convivência familiar e comunitária.

Por sua vez, especifica, de forma meramente exemplificativa, quais as

políticas públicas que podem ser efetivadas, visando alcançar a garantia

constitucional de absoluta prioridade dessa parcela da população, enquanto o artigo

6º classifica a criança e o adolescente como sendo pessoas em desenvolvimento,

que têm garantido, de forma absolutamente prioritária, o seu melhor interesse.

É importante ressaltar que, no ano de 1959, o princípio foi inserido na

Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, que, em suma, determina

que todas as ações relativas às crianças deveriam considerar, especialmente, o

interesse maior da criança.

Destarte, é possível perceber que o Princípio do Melhor Interesse da

Criança e do Adolescente possui status de direito fundamental, pelo que deve ser

necessariamente observado pela sociedade, incluindo-se aí o Estado, os pais, a

família, os magistrados, os professores, enfim, as pessoas de um modo em geral.

Segundo Tânia da Silva Pereira:

O desafio é converter a população infanto-juvenil em sujeitos de direito, para que ela possa deixar de ser tratada como objeto passivo, passando a ser, como os adultos, titular de direitos juridicamente protegidos (PEREIRA, 2006 apud PEREIRA, 2006.).

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É possível observar que a ordem de prioridade de interesses foi invertida,

visto que, antigamente, se houvesse algum conflito decorrente da posse do estado

de filho, entre a filiação biológica e a filiação sócioafetiva, os interesses dos pais

biológicos se sobrepunham aos interesses do filho, porque se primava pela

hegemonia da consanguinidade.

Atualmente, quando o assunto é filiação, ressalta-se sempre o interesse

da criança e/ou adolescente, observando o que realmente é o melhor para ela(e), de

modo a favorecer sua realização pessoal, independentemente da relação biológica

que tenha com seus pais, pois muitas vezes encontram-se ligados apenas pelo

parentesco sanguíneo, não existindo qualquer tipo de ligação afetiva capaz de uni-

los verdadeiramente como pais e filhos, formando uma família.

Segundo Eeclkaar:

O melhor interesse da criança assume um contexto, que em sua definição o descreve como ‘basic interest’, como sendo aqueles essenciais cuidados para viver com saúde, incluindo a física, a emocional e a intelectual, cujos interesses, inicialmente são dos pais, mas se negligenciados o Estado deve intervir para assegurá-los (EECLKAAR, 2005 apud PEREIRA, 2006.).

Por fim, para exemplificar a amplitude de aplicação do princípio, o

Superior Tribunal de Justiça entende que não cabe alegar qualquer tipo de nulidade

processual, mesmo arguida pelo Ministério Público, em casos em que a adoção for

realizada de acordo com os ditames que protegem o menor, in verbis:

Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Adoção. Intimação do Ministério Público para audiência. Art. 166 da Lei 8069/1990. Fim social da lei. Interesse do menor preservado. Direito ao convívio familiar. Ausência de prejuízo. Nulidade inexistente. Não se declara nulidade por falta de audiência do Ministério Público se – a teor do acórdão recorrido – o interesse do menor foi preservado e o fim social do ECA foi atingido. O art. 166 da Lei 8069/1990 deve ser interpretado à luz do art. 6 da mesma lei (BARROS, 2008).

2.2. Princípio da Afetividade

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Nas relações familiares, o afeto pode ser considerado, talvez, como

principal fundamento.

Para João Batista Vilela, em sua obra “desbiologização da paternidade”

escrita em 1979, o afeto faz surgir uma nova forma de parentesco civil, a

parentabilidade socioafetiva, baseada na posse de estado do filho.

A paternidade em si não é um fato da natureza, e sim cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes do serviço e no amor na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para de afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade do futuro, que radica essencialmente a ideia de liberdade” (VILELA, 2007 apud TARTUCE, 2012, 23)

Paulo Lôbo afirma que:

O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. (...) Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo” (LÔBO, 2006 apud TARTUCE, 2012, 23)

Na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça

Federal, sob a chancela do Superior Tribunal de Justiça, foi aprovado o Enunciado

n. 103:

O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além da adoção, acolhendo assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou

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mãe) que não contribuiu com sua matéria fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”. Também nessa jornada aprovou-se o enunciado n.108 CJF/STJ “No fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consaguínea e também socioafetiva.

Na III Jornada de Direito Civil, realizada em 2004 e promovida também

pelo Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o enunciado n. 256 CJF/STF: “A

posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de

parentesco civil”.

Já na IV Jornada de Direito Civil, realizada em 2006, foram aprovados

três novos enunciados. O primeiro n. 399: “A paternidade socioafetiva, calcada na

vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”. O

segundo, n. 341: “Para os fins do art. 1.969, a relação socioafetiva pode ser

elemento gerador de obrigação alimentar”. E o terceiro, n. 336: “O parágrafo único

do art. 1.584 aplica-se também aos filhos advindos de qualquer forma de família”.

Sendo assim, entende-se que o princípio da afetividade deve reger todas

as relações familiares, haja vista o conceito atual de família não mais se restringir à

filiação biológica, dando, pois, lugar à filiação socioafetiva, que é aquela

caracterizada essencialmente pelo afeto existente entre pais e filho.

Julie Cristine Delinski pondera:

na família atual para a integração pai-mãe-filho é fundamental a presença de outro elemento, o elemento “afetivo”,valorizando o pai de afeto, para poder finalmente constituir-se a paternidade jurídica (DELINSKI, 1997, apud PEREIRA, 2006, p. 19).

2.3. Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente

O Princípio da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente está previsto

no artigo 227, caput, da Constituição Federal de 1988, assim como no artigo 3º do

Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90:

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Art. 3º, ECA: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Observa-se que o artigo 6º do mesmo Estatuto esclarece que, na

interpretação desta Lei, deverá ser levada em conta, dentre outras coisas, a

condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

Foi dado ao princípio status de prioridade absoluta, o que ocasionou o

surgimento de uma vasta gama de meios de proteção a tal garantia constitucional.

Nesse sentido, Eliane Araque Santos (2006, apud PEREIRA, 2006, p.

130) esclarece:

Crianças e adolescentes são sujeitos especiais porque pessoas em desenvolvimento. O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a serem protegidos pelo Estado, pela sociedade e pela família com prioridade absoluta, como expresso no art. 227, da Constituição Federal, implica a compreensão de que a expressão de todo o seu potencial quando pessoas adultas, maduras, tem como precondição absoluta o atendimento de suas necessidades enquanto pessoas em desenvolvimento.

Para Antônio Carlos Gomes da Costa:

A doutrina da proteção integral da criança e do adolescente afirma o valor intrínseco como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e os adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos (COSTA, 2004 apud MADALENO, 2013).

Com o surgimento do Princípio da Proteção Integral à Criança e ao

Adolescente se consolidou uma nova maneira, mais justa e eficaz, de se conferir

proteção à criança e ao adolescente, posto que se verificou a circunstância especial

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por eles vivenciada, pois em desenvolvimento, ao tempo em que se percebeu que

somente com o apoio e incentivo permanentes da família, da sociedade e do Poder

Público é que tal princípio poderá ser realmente efetivado.

Ademais, assevera-se que o princípio da proteção integral à criança e ao

adolescente, de maior abrangência, além de ter consolidado o princípio do melhor

interesse da criança e do adolescente como critério interpretativo, evidenciou sua

natureza eminentemente constitucional, considerando-o como uma cláusula

universal que se revela por meio dos direitos fundamentais da criança e do

adolescente contidos na Constituição.

Há que se ressaltar que a criança e o adolescente são considerados

pessoas ainda em desenvolvimento, pelo fato de necessitarem de cuidados

especiais para a sua formação física, psíquica e mental. Fisicamente, esses

cuidados especiais tornam-se necessários, desde o nascimento, porque não

possuem condições de, por si só, suprirem essa necessidade, dependendo, dessa

forma, integralmente, da participação dos maiores responsáveis, para que possam

se desenvolver adequadamente.

Psíquica e mentalmente os menores, tanto crianças como adolescentes,

necessitam da participação dos pais, da comunidade, da sociedade e do próprio

Poder Público, para que possam formar seu caráter, o que se dá através do convívio

familiar harmonioso, dos estudos adequados, das relações com a comunidade de

forma salutar, com a participação efetiva do Poder Público no auxílio das obrigações

decorrentes do poder familiar, fornecendo escolas, saúde, segurança, esportes,

lazer, dentre outros.

Em 1959 foi aprovada a Declaração dos Direitos Humanos da Criança

pela ONU (Organização das Nações Unidas), reforçando a importância da proteção

e dos cuidados com as crianças e os adolescentes no plano internacional.

Os principais direitos da Doutrina da Proteção Integral, estabelecidos na

Declaração de 1959:

(i) Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos em relação ao mundo adulto, ou seja, titularizam faculdades a serem exercidas em seu interesse em face de suas famílias, da sociedade e dos poderes públicos;

(ii) Crianças e adolescentes são seres humanos em situação fática peculiar, qual seja, a de pessoas em fase de desenvolvimento de sua

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potencialidade humana adulta, sendo que essa peculiar condição ocasionará o reconhecimento de direitos especiais dos quais desfruta esse público especial, além dos direitos franqueados de forma homogênea a todos os cidadãos;

(iii) Todas as crianças e adolescentes, independentemente da situação fática em que se encontrem, merecem tratamento em bases de plena igualdade jurídica, estando a salvo de tratamentos discriminatórios;

(iv) Os direitos fundamentais dos quais desfrutam crianças e adolescentes são prioritários em detrimento de outros que com eles eventualmente concorram.

Com a Declaração dos Direitos da Criança, ficam assegurados no plano

internacional que crianças e adolescentes são considerados sujeitos de direito e

passam a ser tratados de forma diferenciada, pois necessitam de proteção em todas

as etapas do crescimento.

2.4. Princípio da Intervenção Estatal Mínima

O princípio da Intervenção Estatal Mínima está consagrado no artigo

1.513 do Código Civil: “É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito

privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”.

Ao aplicar esse princípio, vincula-se a ideia de autonomia privada, indo

muito além de direito patrimonial. Para o professor Francisco Amaral, que é contra a

aplicação de tal princípio:

Sua esfera de aplicação é, basicamente, o direito patrimonial, aquela parte do direito civil afeta a disciplina das atividades econômicas das pessoas. Não se aplica, assim, a autonomia, ou se aplica de modo restritíssimo, em matéria de estado e capacidade das pessoas e família. Seu campo de realização é o direito das obrigações por excelência, onde o contrato é lei, nas suas diversas espécies de liberdade contratual, nas promessas de contratar, nas cláusulas gerais, nas garantias, etc (AMARAL, 2003 apud PEREIRA, 2006, p. 349.)

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No seio familiar, quem dita o comportamento são seus próprios

integrantes, geralmente, de forma a respeitar os mais idosos. Sendo assim, o Estado

e a sociedade devem respeitar os membros individualizados como unidade familiar.

Para analisar a defesa da autonomia privada em detrimento da

intervenção estatal na família, é necessário fazer um breve resumo histórico. O

Estado pode ser dividido em três fases históricas: absolutista, marcado pela vontade

soberana do monarca; liberal, menor intervenção estatal, que se justifica pela

ascendência da burguesia ao poder e defesa da cidadania, do respeito à dignidade

humana e da liberdade de aquisição, domínio e transmissão da propriedade; e a

terceira fase, o Estado Social, em que o Estado volta a ser intervencionista e o poder

político varia da democracia social ao socialismo. Sendo assim, a família sofreu

interferência direta diante das mudanças estatais.

Antigamente, a família era numerosa, edificada no casamento, em que o

pai era o poder de vida e morte sobre a mulher, filhos e escravos. “Até a Revolução

Industrial, a mulher, filhos, bens, tudo era considerado propriedade do homem e, no

caso de separação do casal, naturalmente os filhos ficariam com o pai” (NAZARETH,

1997 apud PEREIRA, 2006, 155).

No Código Civil de 1916, a família era patriarcal, sustentada basicamente

pelo poder do pai, nas desigualdades de direitos entre marido e mulher, na

discriminação dos filhos e no predomínio dos interesses patrimoniais em detrimento

do aspecto afetivo.

Com as mudanças sociais, políticas e econômicas, o declínio patriarcal e

hierarquizado foi inevitável. Surge então uma nova forma de família, em que há

valorização do afeto, solidariedade e cooperação entre os membros. Há uma

igualdade entre direitos e deveres, encontrando-se uma autonomia de vontade que

deve ser respeitada, sobretudo, pelo Estado. O indivíduo passa a ser mais

valorizado que o patrimônio.

O Estado então abandona a figura de protetor-repressor, para assumir

postura de Estado protetor-provedor-assistencialista, em que a tônica não é de

ingerência, mas para cobrir qualquer tipo de lacuna que a família não preencha,

como no caso de saúde e educação dos filhos.

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O marco histórico da Declaração Universal dos Direitos do Homem,

votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, estabeleceu em seu artigo 16.3: “A

família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da

sociedade e do Estado”. Com isso, a função do Estado é de dar amparo, tutelar, dar

garantias à família.

Na Constituição Federal de 1988, o papel de “Estado-protetor”, e não

mais “Estado-interventor”, fica clara no artigo 226: “A família, base da sociedade,

tem especial proteção do Estado”.

Com isso, quando o Estado elege a dignidade da pessoa humana bem

como todas as garantias do artigo 5°, passa a conferir a proteção à família fora da

órbita patrimonial, o que importa realmente é o respeito à autonomia privada.

Além dos princípios acima explicitados existem no ordenamento jurídico

normas constitucionais, infraconstitucionais e tratados internacionais, que, assim

como eles, visam garantir e resguardar os direitos das crianças e dos adolescentes.

Essas normas têm papel fundamental na sociedade, já que são as

responsáveis pela proteção da criança e do adolescente e, juntamente com as

políticas públicas, permitem ao “Estado-protetor” cumprir com sua função.As

crianças e os adolescentes precisam de proteção integral e, somente com normas

eficientes, essa garantia constitucional terá efetividade.

3 PODER FAMILIAR

Os romanos utilizavam da autoridade advinda do princípio do pater

famílias para exercer incontestável chefia sobre as pessoas a eles subordinadas.

Sendo os chefes de famílias, senhores absolutos do lar, todos lhe deviam

obediência, fosse a esposa, os filhos, os netos. O pater famílias poderia também

vender sua prole, por um período de cinco anos, com objetivo de suprir eventuais

dificuldades financeiras da família, com pensamento de sacrificar um dos integrantes

da família em beneficio do grupo. Poderia também se utilizar danoxae deditio, em

que o filho era entregue à vítima de um dano por ele causado como forma de

compensação pelo prejuízo sofrido e, além dessas prerrogativas utilizadas pelo

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chefe de família, tinha-se o abandono do filho recém-nascido (ius exponendi), como

direito de seleção eugênica quando nascesse uma criança débil.

O cristianismo foi se perpetuando como religião oficial dos romanos,

sendo assim tornaram-se inconciliáveis as antigas leis despóticas de poder de

mando sobre a vida e a pessoa do filho, proibindo-se a venda, morte ou entrega do

filho a um credor.

No Brasil colonial, o pai tinha domínio quase absoluto sobre os filhos, com

poder de correção, sendo permitidas as reprimendas e os castigos corporais

moderados e que não resultassem em ofensas físicas sérias. O pater famílias

colonial era exercido não só para com os filhos, mas também para com a esposa e

os escravos, fazendo com que todos em casa cumprissem sua autoridade.

Com a chegada do cristianismo no Brasil, o poder familiar começou a

seguir pelo caminho protetivo, tornando-se uma imposição de ordem pública, com

objetivo de os pais zelarem pela formação integral dos filhos, sendo determinado

pelo artigo 227 da Constituição Federal brasileira, em razão da Emenda

Constitucional n. 65/2010, que se assegure prioridade e assistência integral à

criança e ao adolescente.

Por conseguinte, os pais deixam de exercer um verdadeiro poder sobre

os filhos para assumirem um dever legal de proteção, em um constante

acompanhamento durante o processo natural de amadurecimento e formação de

personalidade, sempre na execução conjunta dessa titularidade ou de forma

unilateral, na ausência ou impossibilidade de um dos pais ou com o consentimento

de outro genitor que reconhece a validade dos atos praticados em prol dos filhos.

O poder familiar, na época em que denominado pátrio poder, era assim

definido:

conjunto de direitos concedidos ao pai, ou à própria mãe, a fim de que, graças a eles, possa melhor desempenhar a sua missão de guardar, defender e educar os filhos, formando-os e robustecendo-os para a sociedade e a vida (CARVALHO, 1995 apud GONGALVES, 2012 p. 412).

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Porém, com as reformas constitucionais surgidas do princípio do melhor

interesse dos menores e da paridade dos cônjuges, que cuida de estabelecer

igualdade absoluta nas prerrogativas e deveres atribuídos aos pais na tarefa de

criarem e educarem os filhos há novas definições e nomenclatura. Atualmente, fala-

se poder familiar, que,segundo Silvio Rodrigues (2004 apud Gonçalves, 2012, p.

412), “é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e

aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes”.

O poder familiar não apresenta mais o caráter absoluto de que se revestia

no Direito Romano, foi se transformando em instituto de caráter eminentemente

protetivo, que vai além de direito privado e passa a ser direito público, pelo que o

Estado tem interesse em assegurar proteção das gerações novas, que representam

o futuro da sociedade.

A denominação “pátrio poder” utilizada pelo Código Civil de 1916 foi

substituída por “poder familiar”, porém há uma crítica por essa não ser a forma mais

adequada, pois ainda se reporta à expressão poder, o que alude à ideia de posse,

domínio, hierarquia.

O poder familiar faz parte do estado das pessoas, sendo assim não pode

ser alienado, renunciado, delegado ou substabelecido. A única exceção é a prevista

no artigo 166, caput, do Estatuto da Criança e Adolescente, sob a forma de adesão

ao pedido de colocação do menor em família substituta, mas realizada em Juízo (em

pedidos de adoção, que transfere aos adotantes o poder familiar), cuja situação será

examinada pelo juiz em caso concreto. É também imprescritível, no sentido de que o

genitor não o perde por não exercitá-lo, mas somente nos casos previstos em lei.

Além de ser incompatível com a tutela, pois não se pode nomear tutor a menos se

os pais foram suspensos ou destituídos do poder familiar.

A titularidade do poder familiar é atribuída aos pais, em igualdade de

condições e está prevista no artigo 1.631 Código Civil:

Artigo 1.631: Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único: É assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução de desacordo.

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Há uma crítica pertinente a esse dispositivo, haja vista que o poder

familiar não está necessariamente vinculado ao casamento e à união estável, e sim

ao reconhecimento dos filhos por seus genitores, independente da origem do

nascimento.

É importante ressaltar que, embora o Código não mencione as demais

entidades familiares tuteladas pela Constituição, a norma a elas abrange,

competindo o poder familiar também aos que se identifiquem como pai ou mãe do

menor, na família monoparental.

O divórcio, a dissolução da união estável, a separação judicial3:

Art. 1.632: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

Com relação ao filho havido fora do casamento, o poder será do genitor

que o reconheceu; se ambos o reconhecerem, ambos serão os titulares, mas a

guarda será, em regra, compartilhada, mas dependendo da situação fática que

permear a relação entre os genitores, ficará com aquele que revelar melhores

condições para exercê-la.

O conteúdo do poder familiar encontra sua gênese no artigo 229 da

Constituição Federal, ao prescrever como deveres inerentes aos pais os de

assistirem, criarem e educarem seus filhos menores, sendo secundado pelo artigo

22 do Estatuto da Criança e Adolescente, ao estabelecer incumbência dos pais o

dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores.

Por sua vez, o artigo 1.634 Código Civil enumera especificamente os

direitos e deveres que incumbem aos pais com relação aos filhos menores, quais

3A Emenda Constitucional n. 66 de 13 de julho de 2010 suprimiu da legislação brasileira o instituto da separação conjugal que existia nas versões judicial e extrajudicial, facilitando assim a vida pessoal e afetiva dos cônjuges desavindos, que não mais precisam passar por dois processos judiciais ou lavrar duas escrituras públicas, para, em primeiro momento promoverem a dissolução do casamento, e, em segundo estágio, dissolver o vínculo conjugal do casamento pela conversão do divórcio, salvo se preferissem aguardar dois anos de ininterrupta separação de fato ou de corpos, para gerarem o divórcio direto. Assim, o acesso ao divórcio é direto e objetivo, sendo direito potestativo de quem é casado, sem necessidade de demonstração de causa, culpa e decurso do tempo não alteram o poder familiar, apenas representam um pequeno fracionamento desse, pois há uma repartição de atribuições.

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sejam,dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda;

conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; nomear-lhes tutor por

testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o

sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representá-los, até aos dezesseis

anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem

partes, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e

condição.

Para Paulo Luiz Netto Lôbo, as hipóteses elencadas estão a demonstrar

que significam:

expressão do poder doméstico, segundo o antigo modelo de pátrio poder, sem referência expressa aos deveres, que passaram à frente na configuração do instituto. Sendo o Código Civil omisso quanto aos deveres que a Constituição cometeu à família, especialmente no artigo 227, de assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, â educação, ao lazer, à profissionalização, a cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e À convivência familiar, e no artigo 229 comete aos pais o deve de assistir, criar, educar os filhos menores (LÔBO, apud GONÇALVES, 2012, p. 417.).

Com relação aos atributos na ordem patrimonial, dispõe o artigo 1.689 do

Código Civil, que o pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar, são

usufrutuários dos bens dos filhos e têm a administração dos bens dos filhos menores

sob sua autoridade.

Os pais são os administradores legais dos bens dos filhos menores sob

sua autoridade, sendo assim, tem igualdade de condições, não podendo ultrapassar

os limites da simples administração. Nesse exercício, tem a função de zelar pela

preservação do patrimônio que administram, não sendo possível a prática de atos

que resulte numa diminuição patrimonial. Para que ocorra alienação de bens

imóveis, é necessária uma autorização judicial, mediante demonstração de

necessidade, ou evidente interesse da prole.

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Caso ocorra conflito de interesses dos pais com o filho, será nomeado

curador especial em decisão judicial para defesa dos interesses do filho.

A extinção do poder familiar ocorre por fatos naturais, de pleno direito ou

por decisão judicial. O artigo 1.635 do Código Civil elenca as hipóteses, que são a morte dos pais ou do filho; a emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único; a

maioridade; a adoção; a decisão judicial, na forma do artigo 1.638 do Código Civil.

A perda por ato judicial pode ocorrer nas situações previstas no artigo

1.638 Código Civil, que compreendem o castigo imoderado imposto ao filho; deixar o

filho em abandono; praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; e incidir,

reiteradamente, nas faltas previstas no artigo 1637 do referido diploma legal.

Essas sanções apresentam menos um intuito punitivo aos pais do que o

de preservar o interesse dos filhos, afastando-os da nociva influência daqueles.

Tanto é assim que, cessada as causas que conduziram à suspensão ou à

destituição do poder familiar, pode o poder ser devolvido aos antigos titulares.

Com a morte dos pais, desaparecem os titulares do direito de poder

familiar; se um deles sobrevive, a este é aludido o poder. Se ambos falecem, é

nomeado um tutor para dar sequência aos interesses pessoais e patrimoniais do

órfão, sendo certo que a morte do filho, a emancipação e a maioridade fazem

desaparecer a razão de ser o instituto, qual seja, a proteção do menor.

A adoção extingue o poder familiar na pessoa do pai natural, transferindo-

o ao adotante, sendo irreversível, de acordo com o que defendem os tribunais,

tornando ineficaz posterior arrependimento daquele se a criança foi entregue em

adoção mediante procedimento regular.

O castigo imoderado ao filho é incompatível com o poder familiar, sendo

certo que demonstra abuso de autoridade paterna/materna. Esse fato autoriza o juiz

a suspender temporariamente o poder familiar, sendo que a reiteração pode levar à

sua destituição.

Abandonar o filho vai contra o já mencionado artigo 227 da Constituição

Federal. O abandono priva o menor do direito de convivência familiar e comunitária,

além de prejudicá-lo, colocando em risco a saúde e sobrevivência, o que configura

crime de abandono de incapaz, previsto no artigo 133, Código Penal: “aquele que

abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade e, por

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qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes de abandono”. A

pena varia de um a cinco anos se resultar lesão corporal de natureza grave e de

quatro a doze anos se resulta morte, além de serem aumentadas de um terço

quando o abandono ocorre em lugar ermo, se o agente é ascendente ou

descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima.

Além do crime de abandono de incapaz, há previsão expressa do crime

de maus-tratos, no artigo 136 do Código Penal, de punição àquele que expuser a

perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para

fins de educação, ensino, tratamento ou custódia, abusando de meios de correção

ou disciplina. A pena varia de dois a um ano e multa e, ainda, se o fato resultar de

lesão corporal de natureza grave a pena é de reclusão de um a quatro anos e, se

resultar na morte, a punição é de reclusão de quatro a doze anos. Ressalta-se que a

pena aumenta um terço se o crime é praticado contra menores de quatorze anos.

A suspensão do poder familiar constitui sanção aplicada aos pais pelo

juiz, não tanto como intuito punitivo, mas para proteção do menor, sendo imposta

nas infrações menos graves e que representam infrações genéricas aos deveres

paternos, a teor do artigo 1.637 do Código Civil.

A suspensão é temporária, perdurando somente até quando se mostre

necessária; cessada a causa que a motivou, os pais voltam a exercer o poder

familiar, pois sua suspensão deixa intacto o direito como tal. A lei não estabelece

limite de tempo, será aquele que o juiz julgar necessário e conveniente aos

interesses do menor, sendo certo que a suspensão pode ser total, envolvendo todos

os poderes inerentes ao poder familiar, privando totalmente o pai ou a mãe de

exercê-los, ou parcial, cingindo-se a alguns deles.

Por fim, é notório que a perda do poder familiar é permanente, mas não

definitiva, pois os pais podem recuperá-lo em procedimento judicial, de caráter

contencioso, desde que comprovem a cessação das causas que a determinaram,

exceto se houver adoção.

Em julho de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou ao

Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 7.672/2010, que altera a Lei nº 8.069, de 13

de julho de 1990, que trata do Estatuto da Criança e do Adolescente, para

estabelecer o direito de a criança e de o adolescente serem educados e cuidados

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sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante. Essa lei foi

aprovada pela Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2014 e foi aprovada no

Senado no dia 4 de junho.

A Lei, anteriormente nominada de Lei da Palmada foi batizada como Lei

“Menino Bernardo” em homenagem ao garoto gaúcho Bernardo Boldrini, de 11 anos,

cujo corpo foi encontrado no mês de abril do mesmo ano, enterrado às margens de

uma estrada em Frederico Westphalen (RS). O pai e a madrasta são suspeitos de

terem participação na morte.

A Lei nº 13.010/2014 (Lei da Palmada – Lei Menino Bernardo) trata de

forma punitiva os pais ou responsáveis que punem fisicamente seus filhos, além de

alterar dispositivos da Lei nº 8.069 de 1990, o Estatuto da Criança e Adolescente

(ECA), ressaltando que uma interpretação excessivamente literal e rigorosa poderia

resultar na indevida ingerência do Estado no âmbito familiar.

O artigo 18-A dispõe que as crianças e os adolescentes têm direito a não

serem submetidos a castigos físicos, mesmo com o intuito educacional:

Art. 18-A. A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de atendimento público ou privado ou em locais públicos.

Parágrafo único – Para efeito deste artigo será conferida especial proteção à situação de vulnerabilidade à violência que a criança e o adolescente possam sofrer em consequência, entre outras, de sua raça, etnia, gênero ou situação sócioeconômica.

Por sua vez, o artigo 18-B assegura que, constatada a hipótese de

punição corporal, os pais, o professor e os responsáveis ficarão sujeitos a uma série

de sanções como, por exemplo, encaminhamento a cursos ou programas de

orientação.

Art. 18-B. Verificada a hipótese de punição corporal em face de criança ou adolescente, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, os pais, professores ou responsáveis ficarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129, incisos I, III, IV e VI desta lei, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável:

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I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; III - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV - encaminhamento a cursos ou programas de orientação; VI - obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado11.

Ainda, o artigo 18-D traz a responsabilidade do Estado no estímulo de

ações educativas, divulgação de meios à proteção contra a violência e promoção de

reformas curriculares:

Art. 18-D. Cabe ao Estado, com a participação da sociedade:

Estimular ações educativas continuadas destinadas a conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra criança e adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos;

II. Divulgar instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente;

O banimento das palmadas, milenarmente aplicadas pelos pais ou

responsáveis nos bumbuns de crianças, como medida pedagógica visando corrigir

erros que possam comprometer a sua boa formação e educação pode ser

considerado como medida proibitiva, se entendido como qualquer tipo de ação que

envolva violência física que degrada a dignidade da criança e infrinja seu direito à

integridade.

Hoje, dar umas palmadas em filho, com intuito de correção, configura

delito. Pode ser maus-tratos, lesão corporal ou crime previsto no Estatuto da Criança

e do Adolescente.

Analisando a Lei 13.010/2014, é possível identificar como definição de

castigo físico a ação disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em

sofrimento ou lesão. Ressalta-se que essa definição não é específica, ficando,

portanto, a critério do Conselho Tutelar e da Justiça decidir quem deve ou não ser

punido. Sendo assim, a lei deverá ser utilizada com bom senso, sua aplicação na

prática que irá mostrar o que é castigo, ou seja, o que é lesão e sofrimento para a

criança e o adolescente.

As medidas punitivas previstas na lei não são severas, sendo que os pais

denunciados podem ser encaminhados para programas de proteção à família ou de

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orientação, onde irão receber acompanhamento de psicólogos e/ou psiquiatras. Em

alguns casos haverá obrigatoriedade de encaminhamento da criança ou do

adolescente para tratamento especializado. Há de se ressaltar que o texto legal

prevê uma advertência, mas não a especifica.

Essas medidas punitivas elencadas não são tão rigorosas pelo fato de

que há no ordenamento jurídico brasileiro leis destinadas especificamente à punição

de agressão contra crianças e adolescentes, quais sejam a Constituição Federal, o

Código Civil, o Código Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de

Tortura.

Outra crítica a ser feita sobre a Lei em voga é a obrigação de médicos e

assistentes sociais denunciarem casos de agressões às autoridades, sendo que, se

descumprirem tal imposição, estarão sujeitos a multa que varia de 3 (três) a 20

(vinte) salários mínimos. Sabe-se que excesso de agressão já configura crime de

lesão corporal, previsto no artigo129, Código Penal, pelo que não há necessidade de

tal punição.

Praticamente nada mudou com a nova lei, pois os castigos físicos e o

tratamento cruel ou degradante já eram punidos por outras normas existentes, como

o Código Civil, o Código Penal e o próprio ECA. A Lei n.° 13.010/2014, que não

cominou sanções severas aos eventuais infratores, assumiu um caráter mais

pedagógico e programático, lançando as bases para a reflexão e o debate sobre o

tema.

Mas é fato que, com a aplicação da Lei “Menino Bernardo”, o Estado está

intervindo na educação dos filhos de forma a deixar a democracia de lado,

governando através de práticas totalitárias, adentrando na vida privada e

desarticulando o papel do poder familiar, mesmo já havendo dispositivos legais

específicos, além de princípios que orientam como os pais devem agir na educação

dos filhos. Ou seja, o Estado pretende destituir a relação moral familiar, impondo

uma relação jurídica, o que vai de encontro ao conteúdo do poder familiar.

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4 A RESTRIÇÃO AO PODER CORRETIVO DOS GENITORES EM CONTRAPOSIÇÃO AO PRINCÍPIO DA MENOR INTERVENÇÃO ESTATAL

O limite público e privado com relação ao Direito de Família, ou seja, a

inserção, ou não, de regras que disciplinam e regem a relação de família é estreito.

A família é uma “instituição – grupo social ordenado e organizado segundo a disciplina

própria que é o Direito de Família, que se encontra suscetível às mudanças da sociedade, o

que dá vazão à presença do Estado na disciplina de suas relações jurídicas”, nas palavras

de PEREIRA, 2006.

Mister a diferenciação entre Direito Público e Direito Privado para

compreender até que ponto o Estado tem o direito e o dever de intervir nas relações

familiares. As normas de Direito Público tratam das relações do Estado com os

cidadãos, da organização do próprio Estado e, ainda, das relações internacionais

entre Estados, sendo assim, os atos só podem ser praticados dentro do que é

expressamente autorizado por lei. Já as normas de Direito Privado tratam das

relações das pessoas entre si, especialmente na vida civil e comercial, que, segundo

Rao (1997 apud PEREIRA, 2006.), são “desprovidas de natureza política ou

jurisdicional”, podendo se realizar atos que a lei não proíbe.

Para Silvio Rodrigues, o Direito de Família está na inserção de Direito

Público, com maior ingerência do Estado:

o interesse do Estado pela família faz com que o ramo do direito que disciplina as relações jurídicas que se constituem dentro dela se situe mais perto do direito público do que do direito privado. Dentro do Direito de Família o interesse do Estado é maior do que o individual. Por isso, as normas de Direito de Família são, quase todas, de ordem pública, insuscetíveis, portanto, de serem derrogadas pela convenção entre as particulares (RODRIGUES, 2004 apud PEREIRA, 2006, p.153.).

Porém, para a maioria dos doutrinadores, o Direito de Família integra o

Direito Privado, posto regular a família, que não é um órgão/ente estatal, mas,ao

contrário, a família é uma instituição particular. Afirma Orlando Gomes que:

pelos sujeitos das relações que disciplina, pelo conteúdo dessas relações, pelos fins de seu ordenamento e pela forma de atuação, o Direito de Família é direito privado, e parte integrante do direito civil (GOMES, 1998 apud PEREIRA, 2006, p. 152.)

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Pontes de Miranda (apud PEREIRA, 2006, p. 153.) ressalta que o Direito

de Família tem por objeto a exposição de princípios jurídicos que regem as relações

de família e que, para tanto, vale-se de normas que não pertencem rigorosamente

ao Direito Civil, mesclando-se aos demais ramos (Direito Penal, Direito Processual).

O Direito de Família está inserido no âmbito do Direito Privado, na medida

em que os interesses protegidos são predominantemente individuais, tratando-se de

uma relação entre particulares, embora haja interesses coletivos. É certo que os

interesses da família e dos membros que a compõe não devem sofrer a intervenção

direta e ostensiva do Estado, a quem compete apenas tutelá-los.

O ponto central da interferência Estatal no Direito de Família está no limite

da tutela com o poder de fiscalização e controle, de forma a restringir a autonomia

privada, limitando a vontade e a liberdade dos indivíduos. Essa delimitação é

fundamental para servir de freio à liberdade do Estado e sua intervenção.

O princípio da menor intervenção estatal está vinculado ao princípio da

autonomia privada, definida por Daniel Sarmento como sendo o poder que a pessoa

tem de regulamentar os próprios interesses, sendo que:

esse princípio tem como matriz a concepção do ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, e que deve ter a liberdade para guiar-se de acordo com as escolhas, desde que elas não perturbem os direitos nem violem outros valores relevantes para a comunidade (SARMENTO, 2005 apud PEREIRA, 2006.)

A liberdade é um dos principais atributos do ser humano, maior

fundamento constitucional do princípio da autonomia privada.

Sendo assim, no seio familiar, são seus integrantes que devem se

organizar entre si, ditando o regramento próprio interno de convivência. Nesse

contexto, surgem disposições que fazem com que a sociedade e o Estado respeitem

e reconheçam tanto a família, enquanto unidade, como seus membros

individualizadamente.

No Código Civil de 1916, a família era patriarcal pela suposta hegemonia

do poder do pai, na hierarquização das funções, na desigualdade de direitos entre

marido e mulher, na discriminação dos filhos e no predomínio dos interesses

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patrimoniais em detrimentos do aspecto afetivo. Porém, com as modificações

políticas, econômicas e sociais, o declínio do caráter patriarcal foi inevitável. Com o

fim da hierarquização dos componentes da família, os direitos e deveres se

igualaram, mostrando-se presente então a autonomia de vontade, sendo que esta

deve ser respeitada por todos, sobretudo, pelo Estado.

O indivíduo deixa de ser elemento de força produtiva e passa a ser o

centro da família, havendo assim sua valorização. Essa valorização trouxe uma

remodelação dos valores, antes, o patrimônio era o alvo, agora, o indivíduo é o

centro das atenções na família. Porém, essa situação significa tão somente uma

recolocação de valores. Carmem Lúcia Silveira Ramos explica:

Essa despatrimonialização do Direito Civil não significa a exclusão do conteúdo patrimonial no direito, mas a funcionalização do próprio sistema econômico, diversificando sua valorização qualitativa, no sentido de direcioná-la para produzir respeitando a dignidade da pessoa humana e distribuir as riquezas com maior justiça (RAMOS, 1998 apud PEREIRA, 2006, p.156.).

Para Luiz Edson Fachin, ocorreu um processo de privatização das

relações, com propagação mínima do Estado no âmbito das relações privadas,

nomeando-o de “privatização do Estado” e “desinstitucionalização da família”:

Num mesmo arco, duas pontas de análise ligam o núcleo deste trabalho: de um lado, a denominada privatização do Estado, e de outro, a desinstitucionalização da família. Quanto à primeira, tem-se que a nova vestimenta do liberalismo se mostra, na teoria política, como fator do Estado que governe o menospossível ou, como se diz hoje, do estado mínimo (isto é, reduzido ao mínimo necessário). Quanto à segunda, leva-se em conta que a família perdeu suas funções públicas e passou a ter apenas funções privadas, deixando de ser uma instituição para chegar à informalidade (FACHIN. 1996 apud PEREIRA, 2006, p. 157).

A intervenção do Estado deve apenas e tão somente ser a de tutelar a

família, dando-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que

seus membros vivam em condições dignas e propícias à manutenção do núcleo

afetivo. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada em 10 de dezembro

de 1948, pela ONU (Organização das Nações Unidas), estabeleceu em seu artigo

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16.3: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à

proteção da sociedade e do Estado”.

A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 226, caput, deixa claro o

papel do Estado com relação à família, sendo de Estado-Protetor, e não Estado-

Interventor: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Com

esse dispositivo, fica evidente que a Carta Magna procurou unir a liberdade do

indivíduo à importância que a família representa para a sociedade e para o Estado.

Pode-se dizer então que a proteção da família pelo Estado é um direito

subjetivo público, sendo que a família, por estar estabelecida em bases

aparentemente frágeis, constitui uma unidade que necessita de proteção. Dessa

forma, cabe ao poder estatal assegurar o amparo a cada um de seus integrantes,

criando mecanismos para coibir a violência no âmbito dessas relações (artigo 226,§

8, Constituição Federal). Contudo, a intervenção estatal encontra limites, não

podendo o Estado, sem nenhum pretexto aparente, intervir coercitivamente no

âmbito familiar, sob pena de colocar em risco o plano de vida e felicidade de seus

membros. Nesse contexto, a proibição da palmada como forma de castigo para fins

educativos e a imposição de sanções para tal comportamento traduz uma afronta a

esse pressuposto.

O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.513, define “é defeso a qualquer

pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão da vida instituída pela

família”. Percebe-se, assim, que o controle perante a família cabe aos pais e a

decisão acerca de sua função ao Estado conjuntamente com a sociedade, ao

perceber que os atos estão sendo praticados contrários à lei.

Silvo de Salvo Venosa assevera:

Não pode também o Estado deixar de cumprir sua permanente função social de proteção à família, como sua célula mater sob pena de o próprio Estado desaparecer, cedendo lugar ao caos. Daí por que a intervenção do Estado na família é fundamental, embora deva preservar os direitos básicos de autonomia. Essa intervenção deve ser sempre protetora, nunca invasiva na vida privada. (VENOSA, 2005 apud PEREIRA, 2006.).

O artigo 229, da Constituição Federal, dispõe que é dever dos pais

garantir aos filhos menores: assistência, criação e educação, os quais são deveres

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de natureza jurídica, material e moral, respectivamente. É possível perceber que

todos esses deveres podem ser exigidos pelo Estado em função dos pais; no

entanto, é necessário respeitar o seu livre exercício enquanto não configuram em

abuso de poder. O Estado só deve agir de forma subsidiária, na falha dos pais, em

ocasiões em que prevaleça o interesse coletivo ou público, em que as decisões

deixam de ser tomadas pela família como um ente particular.

Fica evidente, pois, a contradição existente entre a Lei Menino Bernardo,

que é o extremo da restrição do poder corretivo dos genitores, e as demais fontes

que regulamentam os direitos da criança e do adolescente. Isso porque a família

possui o direito de eleger qual a forma de educação será dada ao menor, bem como

as formas empregadas para tanto, desde que não afronte nenhuma regra de direito

material e, tampouco, prejudique o desenvolvimento da criança e do adolescente. O

Estado deve agir quando a forma de castigo que o poder familiar resolve empregar

deixa de ser apenas uma palmada educativa e se torna um ato de espancamento. E,

diante da existência de previsões constitucionais e infraconstitucionais, além dos

princípios e tratados internacionais que garantem a proteção integral e o melhor

interesse da criança e do adolescente, mostra-se redundante a criação da referida

lei se se partir do pressuposto que ela tem finalidade de punir excessos.

É possível perceber que não é qualquer castigo físico que é caracterizado

como maus-tratos, sendo a palmada educadora diferente dos castigos abusivos, que

comprometem a integridade física, moral e psíquica do indivíduo. Mostra

imprescindível, ademais, avaliar a real necessidade da lei em comento, haja vista

que a interpretação sobre que tipo de castigo resulta em sofrimento ficará a cargo da

Justiça, como já acontece. A lei não traz nenhuma alteração nesse ponto, apenas

advertências, inclusão da família em programas sociais e multas para quem não

denunciar os maus tratos. Nesse sentido, o presidente da OAB, Ophir Cavalcante,

pondera:

A lei sozinha pode ficar sem eficácia, pois a palmada como forma de educar é algo cultural neste país. Temos de ter campanhas educativas e de planejamento por parte do Poder Público para informar as famílias sobre a melhor forma de ensinas as crianças. Esse é um dever do Estado que, lamentavelmente, não tem estrutura para isso. A lei pode cair no vazio.

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A questão a se analisar é que a educação das crianças e dos

adolescentes exige limites e, tendo em vista toda argumentação apresentada,

palmadas não afetarão o desenvolvimento infantil, muito menos os deixará com

traumas psicológicos. O bom senso é fundamental e deve ser utilizado sempre, na

forma de palmada corretiva, o que se difere totalmente de maus tratos infantis. Com

a Lei 13.010/2014 em vigor, o Estado está impedindo os pais de educar seus filhos,

estes que poderão perder o senso do que é certo ou errado e, quiçá, propiciar o

cometimento de pequenos delitos ou crimes maiores por terem sido crianças que

não tiveram modelo e estruturas a serem seguidos, diante da não correção de suas

atitudes no meio social em que vive.

Impera ressaltar que o princípio da proteção integral da criança e do

adolescente deve ser aplicado de forma harmônica com o princípio da intervenção

mínima estatal.

Falar em intervenção mínima é falar em intervenção necessária. O Estado

deve intervir no direito privado somente quando for estritamente necessário, quando

o agente extrapolar os limites da razoabilidade e proporcionalidade, afrontar

preceitos legais e expor um bem jurídico a perigo.

No direito da criança e do adolescente, tal princípio não poderia ser

interpretado de maneira diversa. O Estado-protetor deve garantir à criança e ao

adolescente a proteção integral, deve resguardar e dar efetividade a todos os seus

direitos previstos no ordenamento jurídico. Todavia, não pode se tornar em Estado-

interventor e intervir deliberadamente no seio familiar, ditando regras abstratas,

vazias e redundantes.

A Lei Menino Bernardo se contrapõe diretamente ao princípio da

intervenção mínima, restringindo o poder corretivo dos pais e, de certa forma,

mitigando o referido princípio.

Analisando a lei, pode-se perceber claramente a face do Estado-

interventor. O direito da criança e do adolescente já tem em sua seara normas que

os protegem e os resguardam, garantindo que não sejam expostos a perigo pelos

seus responsáveis, educadores, sociedade ou pelo próprio Estado. Assim, deve o

Estado intervir quando essas normas forem desrespeitadas, quando os

responsáveis não agirem com razoabilidade e proporcionalidade, expondo a criança

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e o adolescente a perigo. Nesses casos, os agentes deverão ser responsabilizados

pelos seus atos e o Estado deve utilizar de meios eficientes para proteção e

salvaguarda do menor.

As normas já existem, estão vigentes e devem ser aplicadas, impingindo

ao Estado, como protetor, dar efetividade àquelas, criando políticas públicas para

conscientizar toda a sociedade e fazê-la compreender que as crianças e os

adolescentes precisam de atenção especial e devem ser protegidos por todos.

Percebe-se, pois, que o desafio fundamental para a família e das normas

que a disciplinam é ponderar o direito à autonomia e à liberdade de escolha com os

interesses de ordem pública, que se consubstancia na atuação do Estado apenas

como protetor, sendo essa conciliação feita mediante hermenêutica baseada nos

princípios já expostos, quais sejam, os fundamentais para o Direito de Família,

desconsiderando tudo aquilo que põe o sujeito em posição de indignidade e o

assujeite ao objeto da relação ou ao gozo de outrem sem o seu consentimento.

5 CONCLUSÃO

A criança e o adolescente, tratados como objetos quando o pai detinha

poder absoluto sobre eles e sobre toda a família, passou a gozar de proteção

especial diante da necessidade de o Direito acompanhar as transformações sociais.

Os filhos, alvo da proteção integral que lhes deve ser conferida, tornaram-se sujeitos

de direito. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em seu artigo 1º,

consagra a proteção integral à criança e ao adolescente; o ordenamento brasileiro,

ao celebrar a Convenção sobre os direitos da criança, inserida através do Decreto

Lei nº. 28 de 14 de setembro de 1990 trouxe mais garantias e proteção a eles e, no

mesmo sentido, seguiu a Resolução nº 44, da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Por sua vez, a Constituição Federal, em seu artigo 227, estabeleceu parâmetros de

direito, antigamente ignorados. Já o Código Civil tem uma parte destinada à

regulamentação do Direito de Família, amparada por seus princípios norteadores,

trazendo, também, proteção ampla à criança e ao adolescente.

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Essas fontes constitucionais e infraconstitucionais asseguram a proteção

da criança e do adolescente, sendo certo que, dentro de todo seu conteúdo, é

possível protegê-los de circunstância que os exponham a perigo.

Com todas as normas e princípios apontados resta evidenciada a

mitigação do princípio da intervenção estatal mínima com a promulgação da Lei n.º

13.010/2014, haja vista que o Estado está interferindo na família, não sendo sua

função dizer o que fazer ou o que pensar, ou ainda, mensurar, nessa hipótese, o que

é ético ou não. Agindo dessa forma, invade a área privada, desarticulando o papel

do poder familiar de forma abusiva.

O ordenamento jurídico não admite castigos e agressões corporais e

psicológicas às crianças e aos adolescentes. Somente havendo extrapolação do

limite razoável de correção, o Estado deverá intervir para proteger e tutelar as

garantias da criança e do adolescente, pelo que não se afiguram necessárias e

legítimas leis que tragam definições de castigos toleráveis.

Acrescenta-se que a lei em voga traz definição vaga do que qualifica

como castigo físico, qual seja, “ação disciplinar punitiva aplicada com o uso da força

física que resulte em sofrimento ou lesão”. Trata-se de definição que deixa a critério

do Conselho Tutelar e da Justiça a decisão de quem deverá ser punido, por

depender de uma interpretação do que seria resultar em sofrimento ou lesão.

O Estado não deve intervir de forma deliberada na correção das crianças

e dos adolescentes, ditando regras vazias de como corrigi-los e educá-los,

amedrontando os pais com punições leves, por meras palmadas que decorrem do

poder familiar, este que tem dentre seu exercício, a liberdade de correção. O Estado

deve intervir, de forma efetiva, quando há o excesso na punição, quando o castigo

de fato expõe a criança e o adolescente a sofrimento, a perigo e o, principal, deve

adotar medidas sociais educativas, a fim de conscientizar e orientar todos aqueles

que lidam com seres frágeis como as crianças e os adolescentes.

Pode-se considerar, pois, a referida lei como uma lei política, não sendo

compreensível sua necessidade e sua efetividade, vez que existentes meios

constitucionais e infraconstitucionais para ressalvar os direitos da criança e do

adolescente, bem como não se deve esvaziar o conteúdo do poder familiar e poder

diretivo dos pais em relação aos filhos, sendo solução a melhor aplicação das

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normas já existentes, garantindo-se que cada agente, Estado, sociedade e família

saibam utilizar seus limites para educar e proteger as crianças e aos adolescentes.

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