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Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior Ano 24 Nº 36 Jun. de 2006 RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR: CONTRIBUIÇÕES D A REDE UNIVERSITÁRIA DE ÉTICA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO BID

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Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior

Ano

24

36Ju

n.

de

2006

RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR: CONTRIBUIÇÕESD A REDE UNIVERSITÁRIA DE ÉTICA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO BID

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Associação Brasileira de Mantenedorasde Ensino SuperiorSCS Quadra 07 – Bloco “A”Torre Pátio Brasil Shopping - Sala 52670 330-911 - Brasília - DFTel.: (61) 3322-3252 Fax: (61) 3224-4933E-mail: [email protected] page: http://www.abmes.org.br

PRESIDÊNCIA

PresidenteGabriel Mario Rodrigues

Vice-PresidentesAntonio Carbonari NettoFabrício Vaconcellos SoaresCarmen Luiza da Silva

CONSELHO DA PRESIDÊNCIAAna Maria Costa de SousaAndré Mendes de AlmeidaCandido Mendes de AlmeidaÉdson FrancoHermes Ferreira de FigueiredoJosé Loureiro LopesLuiz Eduardo Possidente TostesManoel Ceciliano Salles de AlmeidaMara Manrubia TramaPaulo Newton de PaivaPedro Chaves dos Santos FilhoRoque Danilo BerschTerezinha Cunha

Suplentes

Eduardo Soares OliveiraJorge BastosJosé Odilon de OliveiraManoel J. F. de Barros Sobrinho

Wilson de Mattos Silva

CONSELHO FISCAL

Cláudio Galdiano CuryDécio Corrêa LimaGeraldo Maria Brocca CasagrandeJosé Janguiê Bezerra DinizPaulo César Martinez y Alonso

SuplentesDora Silvia Cunha BuenoEliziário Pereira Rezende

DIRETORIA EXECUTIVADiretor GeralGetúlio Américo Moreira Lopes

Vice-Diretor GeralDécio Batista Teixeira

Diretor AdministrativoValdir Lanza

Diretor TécnicoAdivar Ferreira de Aguiar

Secretária ExecutivaAnna Maria Faria Iida

AssessoriaCecília Eugenia Rocha HortaAnna Maria Faria IidaFrederico Ribeiro RamosIzabel Cristina Bezerra e Santiago

ApoioArlete Gonçalves RibeiroLeandro Rodrigues Uessugue

E82 Estudos: Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras deEnsino Superior / Associação Brasileira de Mantenedora deEnsino superior. – Ano 24, n. 36 (Jun. 2006). – Brasília :Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior,2006-

v. ; 28 cm.SemestralInício: 1982Descrição baseada em: Ano 24, n. 36 (Jun. 2006)

ISSN 1516-62011. Ensino superior – responsabilidade social. 2. Ensino

superior – ética. 3. Ensino superior – periódico. I. AssociaçãoBrasileira de Mantenedoras de Ensino Superior. II. Título:Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de EnsinoSuperior.

CDU 378(05)

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Associação Brasileira deMantenedoras de Ensino Superior

EditorGabriel Mario Rodrigues

OrganizadoraCecília Eugenia Rocha Horta

TraduçãoRosinda Ramos

Conselho EditorialAntônio Colaço MartinsMaria Ottília Pires LanzaÉdson FrancoPaulo César Martinez y AlonsoRonald BragaSylvia Helena Cyntrão

Projeto GráficoGorovitz/Maass Arquitetos Associados

Editoração EletrônicaValdirene Alves dos Santos

SUMÁRIO

RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EDUCAÇÃO SUPERIOR: CONTRIBUIÇÕESD A REDE UNIVERSITÁRIA DE ÉTICA E DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO BID

Apresentação .......................................................................................... 5

Textos

Responsabilidade social universitária: contribuições para ofortalecimento do debate no BrasilAdolfo Ignacio Calderón...................................................................... 7

A ética e a responsabilidade social da universidadeBernardo Kliksberg............................................................................. 23

A urgência da responsabilidade social universitáriaAlan Wagenberg ................................................................................. 27

Que significa responsabilidade social universitária?François Vallaeys ............................................................................... 35

Responsabilidade social universitária: uma experiênciainovadora na América LatinaMónica Jiménez de la JaraJosé Manuel De F. FontecillaCatalina Delpiano Troncoso............................................................... 57

Conhecimento e responsabilidade social: ameaças edesafios para a universidade transdisciplinarLuís Carrizo. ...................................................................................... 75

Normas para apresentação de originais............................................... 91

Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior

Ano

24

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APRESENTAÇÃO GABRIEL MARIO RODRIGUES*

A Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) reúnenesta edição da revista Estudos artigos de especialistas da Rede Universitária de Ética eDesenvolvimento Social do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), organizaçãoque tem estimulado as discussões sobre ética e Responsabilidade Social Universitária emparceria com mais de 109 universidades da América Latina, especialmente as de línguaespanhola.

Graças ao empenho e à colaboração do Professor Dr. Adolfo Ignacio Calderón, coordenadore pesquisador do Núcleo de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Mogi das Cruzes,Mogi das Cruzes, SP – responsável pelos contatos com os especialistas e autor do textointrodutório aos artigos – tornou-se possível a realização deste trabalho.

Neste sentido, agradecemos ao mencionado professor bem como aos demais articulistas daedição – Professores Bernardo Kliksberg, diretor do Programa Iniciativa Interamericana deCapital Social e Desenvolvimento do BID; Alan Wagenberg, coordenador da RedeUniversitária de Ética e Desenvolvimento Social do BID; Luís Carrizo, pesquisador e

* Presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES)

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docente do Centro Latino Americano de Economia Humana (Uruguai); François Vallaeys,professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru e da Universidade Ruiz de Montoya;Mónica Jimenez de la Jara, reitora da Universidade Católica de Temuco, fundadora epresidente da Corporação Participa (Chile); José Manuel De F. Fontecilla, coordenadorexecutivo do Projeto Universidad Construye País (Chile) e coordenador da CorporaçãoParticipa e Catalina Delpiano Toncoso, chefe de projetos da Corporação Participa e doProjeto Universidad Construye País.

A ABMES espera que os textos ora publicados possam atingir seus objetivos quais sejamindroduzir, no cenário brasileiro, as discussões realizadas em outros países sobre o temaResponsabilidade Social Universitária e mostrar a importância de repensar a universidadeincorporando na sua agenda a ética, a solidariedade e a responsabilidade, por meio dapesquisa séria e rigorosa dos grande temas afetos aos países em desenvolvimento.

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7APRESENTAÇÃO GABRIEL MÁRIO RODRIGUES

ADOLFO IGNACIO CALDERÓN2

Introdução

A Responsabilidade Social Universitária(RSU) constitui-se temática emergente que, especi-ficamente no cenário universitário brasileiro, ficou emevidência a partir das tendências delineadas pelasestratégias de marketing das instituições de ensinosuperior (IES) do setor privado, uma conseqüênciadireta da expansão da Responsabilidade SocialEmpresarial (RSE) e do Terceiro Setor.

RESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA:CONTRIBUIÇÕES PARA OFORTALECIMENTO DO DEBATENO BRASIL1

1 O autor agradece as contribuições da professora Cecília Eugenia Rocha Horta,assessora da ABMES, e da equipe de pesquisadores do Núcleo de Ciências SociaisAplicadas da Universidade de Mogi das Cruzes, professores doutores (as)Francisco Cláudio Tavares, Tatiana Platzer do Amaral e Wagner Wuo. Contudo, asidéias expostas neste artigo ficam sob sua inteira responsabilidade.

2 Sociólogo; doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo (PUC-SP); coordenador e pesquisador do Núcleo de Ciências SociaisAplicadas da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC); pesquisador do Programade Pesquisas em Políticas Públicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estadode São Paulo (Fapesp); Bolsista da Fundação de Amparo ao Ensino e Pesquisa(Faep); consultor da superintendência executiva da Universidade Solidária;membro do comitê científico do Fórum de Extensão das IES Particulares e doconselho de gestores do Programa Alfabetização Solidária.

Apesar de incluída recentemente na agenda públicaeducacional, após o governo federal tê-la apontadocomo uma das dimensões a ser avaliada nas IES, comoparte do Sistema Nacional de Avaliação da EducaçãoSuperior (Sinaes), as discussões em torno da RSU têmgerado certa resistência na comunidade acadêmicadevido a existência de um viés ideológico muitopresente na intelectualidade brasileira.

Para alguns, trata-se de um conceito procedente deuma matriz empresarial que não se adequaria ànatureza pública das IES, uma vez que a universidadenão seria uma empresa. Para outros, trata-se de umconceito que se enquadra na lógica neoliberal e queresponde aos interesses de um projeto de sociedadeexcludente, impulsionado pelas grandes agênciasmultilaterais (Banco Mundial, FMI, entre outros), comos quais a universidade não poderia compactuar.

Diante desse cenário, o presente artigo enquadra-sedentro dos esforços para desmistificar essas visõessobre a RSU, revisitando-as, mostrando a sua

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importância para refletir sobre a gestão universitária eprincipalmente sobre o papel da universidade nasociedade contemporânea, num período marcado porvários fatores tais como a institucionalização domercado da educação superior; a transferência dasresponsabilidades estatais para o mercado; ofortalecimento da livre iniciativa e a hegemonia depolíticas educacionais de corte neoliberal.

Sem dúvida alguma, a RSU é um tema que mereceuma discussão profunda e isenta pela comunidadeacadêmico-científica e pelas autoridades universitáriasque lideram os diversos fóruns nacionais existentes nasáreas de extensão de ensino e de pesquisa.

Para tanto, analisaremos as contribuições de autoresque fazem parte da Rede Universitária de Ética eDesenvolvimento Social do Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID), organização que vemestimulando as discussões sobre a ética e a RSU, emparceria com mais de 109 universidades de AméricaLatina, principalmente as de língua espanhola.

Acreditamos que tais contribuições serão capazes deestimular, subsidiar e fortalecer o debate sobre o temano meio acadêmico brasileiro3.

Visões diferentes sobre o mesmo tema

Embora a RSU tenha-se destacado a partirda expansão da ideologia do Terceiro Setor em suasinterfaces com o setor empresarial, convém ressaltarque não se trata de uma temática nova nas discussões arespeito do papel e da identidade da educação superior eda universidade.

As discussões em torno dos rumos da universidadepossuem uma conotação político-ideológica, a mesmaque tem permeado toda sua trajetória histórica.

Sob esse prisma, a defesa e disseminação da RSU,fazem parte de uma tradição universitária, latino-americana, pautada pela defesa de ideais huma-nísticos, em prol de uma universidade comprometidana luta contra a pobreza e pela construção de umasociedade mais justa e democrática. Neste sentido,não se alinham às forças conservadoras atualmentehegemônicas em âmbito global.

Como aponta Carrizo (2006), o que surpreende, deforma lamentável, é o fato de que ainda subsistem, semsolução, problemas já apontados, há quase meio séculoatrás, por educadores como Paulo Freire e DarcyRibeiro, entre outros, nas propostas por eles apresen-tadas de reformas necessárias para a construção deuma universidade, visando a responder aos anseios dascomunidades da América Latina, historicamentehomogeneizadas pela pobreza e exclusão social.

Seguindo esta tradição, discutir a RSU torna-se numconvite para revisitar, com rigor e não como modismo

3 Tomamos como referência os textos dos seguintes autores: Kliksberg (2006),diretor da Iniciativa Interamericana de Capital Social, Ética e DesenvolvimentodoBID; Wagenberg (2006), coordenador da Rede Universitária de Ética eDesenvolvimento Social do BID; Carrizo (2006), docente-pesquisador do CentroLatinoamericano de Economía Humana e consultor do BID em temas de Ética eDesenvolvimento da Universidade; Vallaeys (2006), professor da PontificiaUniversidade Católica do Peru e consultor em temas de Responsabilidade SocialUniversitaria da Iniciativa Interamericana de Ética, Capital Social y Desarrollo doBID; e Jimenez et alii. (2006), reitora da Universidade Católica de Temuco (Chile), diretorado Projeto Universidad Construye País – interessante experiência na área de RSUdivulgada pela Rede Universitaria de Ética e Desenvolvimento Social do BID.

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9RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

passageiro, debates iniciados no início da década de1962, como aqueles realizados em Montevidéu,durante um Congresso Internacional intitulado LaResponsabilidad Social de La Universidad, repre-sentando uma tendência prevalecente em univer-sidades européias e norte-americanas, cujos resultadosse mantêm vigentes e atuais (Calderón, 2005). Jánaquela época, RSU dizia respeito aos deveres que auniversidade tem com a sociedade que a financia,referindo-se principalmente à procura de soluçõespara os principais problemas sociais, à necessidade deuma melhor distribuição de renda e à criação demecanismos de promoção social de setores histori-camente marginalizados.

Analisando a atual conjuntura brasileira, a partir doartigo de Jimenez et al. (2006) a respeito da realidadechilena, chama atenção o fato de que os dirigentes dasuniversidades públicas do Brasil e do Chile –exatamente daquelas que reúnem grande parteda intelectualidade desses países – fazem leiturasdiferentes da RSU e apresentam posturas diametral-mente opostas.

Se no Brasil existem resistências em relação àutilização do termo RSU, é interessante constatar queno Chile as principais instituições públicas, nãonecessariamente estatais, se reuniram em torno doconceito de RSU com intuito de aprimorar a gestãouniversitária e de criar uma cultura coletiva a partir daimplantação de um Projeto em comum, denominadoProjeto Universidad Construye País, que busca

expandir o conceito e a prática da RSU no sistemauniversitário chileno. Iniciado em 13 universidadespúblicas, o Projeto começa a se expandir e pretendetambém atingir aproximadamente 30 universidadesprivadas existentes no Chile.

De acordo com Jimenez et al. (idem), o Projeto sefundamenta no fato de serem as universidadesencarregadas da formação das elites intelectuais, dasquais surgem profissionais e acadêmicos, compotencial de liderança na sociedade, que precisamtomar consciência da realidade chilena e de suasprementes necessidades. Sustenta-se em princípios evalores tais como – fraternidade, solidariedade, digni-dade da pessoa, liberdade, integridade, bem comum eeqüidade social, desenvolvimento sustentável, apreço àdiversidade, entre outros – os quais deveriam nortear ofazer acadêmico, sem se restringir à procura dacompetência, eficiência e êxito pessoal (idem).

A experiência chilena constitui-se caso paradigmático.Dirigentes universitários e suas respectivas comuni-dades acadêmicas se debruçaram sobre a temática daRSU desenvolvendo uma interessante proposta depromoção da responsabilidade social universitária, amesma que pode servir para repensar os sistemasuniversitários dos diversos países irmãos da AméricaLatina e do Caribe. Trata-se de uma proposta queenvolve conceitualização, princípios, valores eferramentas de gestão universitária, com o intuito deobservar, avaliar e realizar ações corretivas quandonecessário.

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A universidade chilena: a meninados olhos do Banco Mundial

A leitura da experiência chilena na área deRSU abre a possibilidade de conhecer a realidade deum sistema universitário diferente do brasileiro, emalguns aspectos. Trata-se de um modelo visto no Brasilcom muita resistência por intelectuais e pesquisadoresda área da educação superior por ser, entre outrosmotivos, recomendado pelo Banco Mundial (1985),como exemplo de experiência bem sucedida na áreado ensino superior para os diversos países da AméricaLatina.

Para os setores da intelectualidade brasileira que seopõem a essa proposta, o risco maior diz respeito àdependência da universidade ao mercado e à perda desua autonomia. Assim, a universidade deixaria de serum espaço crítico e produtor livre e desinteressado deconhecimentos.

Sob esta ótica, Chauí (1995, p. 58-60) observa que aadoção desse modelo de universidade, que ela chamade Universidade Operacional, significaria levar a idéiae a prática da privatização do público às suas últimasconseqüências, pois decretaria: a) o fim da autonomiana criação e transmissão de conhecimentos; b) o fimda universidade pública como instituição social e comoinstituição democrática de garantia de direitos; c) asubmissão do trabalho docente e de pesquisa a padrõese finalidades externas, determinados pelas exigênciasdo mercado; d) a substituição da universidade por

centros, núcleos e institutos de pesquisas diretamentesubvencionados pelas empresas, cujos critérios deseleção e admissão de estudantes e pesquisadoresserão a eficiência e a produtividade medidas não pelasexigências intrínsecas à produção de conhecimentos,mas por sua rentabilidade econômica.

Mesmo considerando as críticas de Chauí e de outrosautores4, o sistema universitário chileno representa aconcretização de uma importante e polêmica proposta,amplamente recomendada e divulgada pelas agênciasmultilaterais, como o Banco Mundial, para superar acrise de financiamento das universidades públicas, istoé, a diversificação das fontes de financiamento e acorrespondente criação do arcabouço institucional quepossibilite a flexibilidade necessária para competir nomercado pela captação de recursos.

Por diversificação das fontes de financiamento,entende-se novas receitas que fariam parte dofinanciamento das universidades, além daquelesrecursos repassados pelo governo. Assim, nessadiversificação incluem-se as cobranças de mensa-lidades dos alunos e outras atividades geradoras derecursos, principalmente a prestação de serviços e aoferta de produtos para o atendimento da demanda domercado, sobretudo nos cursos de educaçãocontinuada (capacitação e atualização), pesquisasaplicadas, assessorias e consultorias para as empresase indústrias (Calderón, 2003).

4 Oliveira (1999), Romano (1998), Silva & Sguissardi (1999), Sobrinho (1999),Trindade (1999).

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11RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

Dentro do modelo universitário proposto pelo BancoMundial, as universidades estatais teriam de realizarmudanças no seu processo gerencial, criando umaestrutura mais dinâmica, ágil, enxuta, que possibilitasseo equilíbrio financeiro, a obtenção de lucros e a rapidezno atendimento da demanda e na elaboração deprojetos. Nessa perspectiva, o Estado não assumiria agestão direta das universidades, focando sua atuaçãoem políticas de investimentos e repasse de recursosdestinados à inclusão de setores sociais sem condiçõesde cobrir os custos do ensino superior. Aliás, umarecomendação do Banco Mundial é a eliminação dadicotomia público-privado no repasse de verbaspúblicas aos estudantes que apresentam problemasfinanceiros para arcar com a totalidade dos custos daformação universitária.

O Projeto Universidad Construye País, originário dosistema universitário chileno – que consideramosparadigmático por servir de referência e subsídio àsdiscussões das universidades de outros países daAmérica Latina – pode gerar resistências no meioacadêmico brasileiro, ainda mais pelo fato de ter achancela de uma instituição vinculada ao BID, que é aRede Universitária de Ética e Desenvolvimento Social.Convém lembrar que a crítica e a oposição ideológicas,a tudo o que procede das agências multilateraisconstitui-se um dos alicerces das abordagens ditasprogressistas do ensino superior brasileiro.

Contudo, esse projeto deve ser analisado com cautelae sem preconceitos, uma vez que ele representa umainiciativa de dirigentes universitários que deve serenquadrada no campo contra-hegemônico e na lutacontra a supremacia dos valores neoliberais.

A partir das teorias desenvolvidas pelo cientistaportuguês Boaventura de Souza Santos (1995, p. 110),pode-se afirmar que o projeto em questão é umaresposta de uma comunidade interpretativa local,composta por dirigentes universitários chilenos, quefazem uma crítica radical aos pseudovalores impostospara as universidades em tempos de globalização.Nesta ótica, prevalece a tarefa de “reconstruir umarquipélago de racionalidades locais”, “adequadas àsnecessidades locais”, “democraticamente formuladaspelas comunidades interpretativas”, uma vez que,“enquanto mais global for o problema, mais locais emais multiplamente locais devem ser a soluções”.

Novos cenários para o conceito da RSU

Se por um lado, o entendimento da RSUque se tinha há mais de quatro décadas ainda mantémvigência, podemos afirmar que ele tem adquirido novosmatizes em decorrência das rápidas mudançasocorridas no mundo, em termos políticos, econômicos,culturais, informacionais decorrentes da crise doEstado de Bem-Estar, da hegemonia do neoli-beralismo, da aceleração do processo de globalizaçãoeconômica, do surgimento da sociedade global deinformação e do conhecimento e, principalmente, dofim da guerra fria. Tais mudanças determinaram arápida obsolescência de muitas análises e discursosteóricos, historicamente recentes a respeito dauniversidade.

Alguns intelectuais, há mais de 40 anos atrás,concebiam a universidade na visão althusseriana da

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existência de aparelhos ideológicos do Estado. Porexemplo, Álvaro Vieira Pinto (1994:19-25) apontavaem seus escritos que a universidade era

uma peça do dispositivo geral de domínio pelo quala classe dominante exerce o controle social,particularmente no terreno ideológico, sobre atotalidade do país.

Tratava-se de um “instrumento das classes domi-nantes”, “o instrumento mais eficiente para asseguraro comando ideológico da classe dirigente (ao lado deoutros, subsidiários, como a imprensa, o púlpito etc.)”.

Ao lançar o livro A Universidade Necessária, DarcyRibeiro (1991) apontava a necessidade de tornar auniversidade um “instrumento acelerador do processoe da revolução social” e afirmava que o maior desafioconsistia em elaborar um modelo teórico deuniversidade capaz de reverter seu papel tradicional deperpetuadora do sistema predominante, convertendo-aem um “agente de transformações da sociedade”.

Na época, Florestan Fernandes (1975:266) apontavaque a análise de Ribeiro constituía-se em um recadotípico da “intelligentzia esclarecida” que atribuía àuniversidade a missão de mudar o ritmo da história e oprocesso de transformação da civilização a partir dacriação de uma ação pedagógica e revolucionária.Fernandes (idem) ao contestar Ribeiro afirmava que a“reforma radical”, a “revolução dentro da ordem” e a“revolução contra a ordem” deveriam ser procuradosnão dentro da universidade, mas fora dela, muitoprovavelmente, na massa dos excluídos e dosmarginalizados.

Hoje dificilmente encontram-se autores que pensem auniversidade como um instrumento para a revoluçãosocial, ou como sujeito da revolução. No entanto,encontram-se professores e alunos que a partir dauniversidade querem fazer sua própria revolução, suaprópria mudança, no plano micro, no cotidiano, à suamaneira. É a aluna de classe média-alta que trabalhacom alfabetização de adultos. É o aluno que investeseu tempo explicando à população sobre a importânciada preservação do meio ambiente. São os professorese alunos que realizam cursos de formaçãoprofissionalizante para adolescentes de baixa renda oucursinhos gratuitos para possibilitar o acesso àinacessível universidade pública, ou aindadesenvolvem ações com homens de rua, crianças comnecessidade especiais etc.

Trata-se de professores, pesquisadores e estudantesque acreditam na sua própria revolução. E agem numcenário universitário marcado por múltiplasrevoluções, diversos caminhos sem rumos certos, semas grandes metanarrativas que orientavam os“antigos” projetos utópicos revolucionários, mas com omesmo espírito humanista que os norteava.

As mudanças em curso no âmbito global, o fim dosonho com uma sociedade alternativa em decorrênciado colapso do socialismo no mundo, bem como, o fimdas metas narrativas, contribuíram para a prevalênciade uma universidade desnorteada que repensa seupapel na sociedade contemporânea. Nesse contexto,ganha relevância as discussões em torno da RSU.

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13RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

Um novo contrato social para odesenvolvimento

Analisando os artigos de Wagenberg(2006), Kliksberg (2006), Vallaeys (2006), e Carrizo(2006), a respeito da RSU, podemos constatar queexiste um fio condutor que perpassa a necessidade deestabelecer um novo contrato ou pacto social entre auniversidade e a sociedade, tendo como norte odesenvolvimento humano.

De acordo com Carrizo (2006), o novo pacto deveincidir na responsabilidade social da universidade nummundo de crescente complexidade. Existem de um lado,inúmeros desafios gerados pela mundialização e, deoutro, as demandas dos países pobres do hemisfério sulfocadas, principalmente, na erradicação da injustiçasocial, da pobreza e das desigualdades de oportunidades.

Nesse cenário o conceito de desenvolvimento é funda-mental. De acordo com Kliksberg (2006), a ONU, em1989, aprovou uma resolução estipulando que sedeveria garantir a todo ser humano o “direito aodesenvolvimento”.

Se considerarmos que as teorias do desenvolvimentoforam profundamente debatidas décadas atrás,ficando de certa forma ultrapassadas, convémquestionar: Por que uma nova teoria do desenvol-vimento? De qual desenvolvimento está-se falando?

Como diz Carrizo (2006), não é mais possível manteros mitos que entusiasmaram a passagem do desen-volvimento em décadas passadas, concebendo ten-dências lineares do Progresso Humano, apostando

com euforia na capacidade da revolução tecnológicapara garantir o crescimento econômico e suaeqüidade.

Edgar Morin (2002), em seu trabalho Estamos numTitanic? aponta alguns elementos importantes paracompreender a idéia de desenvolvimento humano quepermeia o novo contrato social. Para ele, odesenvolvimento no sentido unicamente técnico eeconômico provoca o agravamento das duas pobrezas,tanto a pobreza material dos socialmente excluídos,quanto a pobreza da alma e da psiquê. Morin acreditaque é necessário repensar o desenvolvimento parahumanizá-lo, colocando a ética no centro da idéia dedesenvolvimento humano, o que significaria integração,combinação e diálogo permanentes entre os processostécnicos e econômicos e as afirmações do desen-volvimento humano que englobam as idéias éticas desolidariedade e responsabilidade.

Neste novo contrato social, para Kliksberg (2006), aUniversidade deve incorporar urgentemente na suaagenda a ética do desenvolvimento, lutando peloconhecimento da realidade, por meio da pesquisa sériae rigorosa dos grandes temas da pobreza e dadesigualdade social que estão no cerne da vidacotidiana de grandes contingentes populacionais, bemcomo, pela formação ética dos estudantes, por meio dareflexão e a vivência de experiências de solidariedadee voluntariado com a comunidade.

Nesta mesma linha, Wagenberg (2006) aposta nadimensão formadora da educação superior, ultra-passando meramente a formação acadêmica einformativa. Acredita que a universidade deve

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14 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

contribuir para que o estudante aprenda a pensar por sisó, ajudando-o a nutrir seus próprios ideais, sonhos eidéias e mostrando a realidade de um mundo com mais1 bilhão de pessoas em situação de pobreza, das quais815 milhões em estado de desnutrição.

No desenho do novo contrato entre a universidade e asociedade, no qual se repensam as atividadesuniversitárias, como o ensino, a pesquisa e a extensão,Vallaeys (2006) considera que existem três grandeseixos que poderiam dar maior consistência e susten-tação à universidade comprometendo-se esta a:a) garantir a responsabilidade social da ciência;b) promover a formação da cidadania democrática,por meio da formação de estudantes e cidadãosresponsáveis; e c) contribuir para o desenvolvimento,por meio da formação do estudante como agente dodesenvolvimento, instituindo a problemática dodesenvolvimento como tema transversal e prioritárioem todas as carreiras.

Como se pode observar, trata-se de contrapartidascontratuais que Vallaeys lança com o intuito deestimular a reflexão e alimentar o debate entreprofessores, gestores, estudantes e a sociedade. Noentanto, permanece a questão: como operacionalizar,em termos de gestão, cada uma dessas contrapartidassem cair nas armadilhas das práticas corporativas?

Como construir uma universidadesocialmente responsável?

Teoricamente, a universidade é umainstituição que tem por missão transmitir e produzir

novos conhecimentos por meio de três atividadesfundamentais: ensino, pesquisa e extensão.

Tradicionalmente, a construção das pontes entre a uni-versidade e a sociedade, a concretização do compro-misso social da universidade e a reflexão ética sobre adimensão social do ensino e da pesquisa têm sido umaatribuição da chamada extensão universitária.

Entretanto, a realidade da extensão universitária éoutra. No Brasil, é comum afirmar que a extensãouniversitária é a “prima pobre da universidade”, porvários fatores dentre os quais destacam-se:compreensão equivocada de seu conceito; despreparodos professores que não possuem o mesmoreconhecimento acadêmico nem o mesmo status dodocentes que atuam nas outras áreas; falta de recursose inexistência, na maioria das vezes, políticasinstitucionais extensionistas sérias e consistentes.

No Dicionário da Crise Universitária, CristovamBuarque (1994) fez uma afirmativa interessante:

a extensão universitária é apenas um método paraensino e pesquisa. Não deveria ser uma categoriaespecial. Mas pelo desprezo com que professores ealunos tratam a extensão, foi necessário fazer delaum tipo especial de atividade acadêmica.

Sob esta mesma perspectiva, Boaventura de SousaSantos (1995) tem afirmado que:

a legitimidade da universidade só será cumpridaquando as atividades, hoje ditas de extensão, seaprofundem tanto que desapareçam enquanto tais epassem a ser parte integrante das atividades deinvestigação e de ensino.

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15RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

Na mesma linha posiciona-se José Henrique Santos(1993), ex-reitor da Universidade Federal de MinasGerais, quando afirma que

a extensão é atividade que resulta de um excesso dedons, que dizer da superabundância de bensculturais gerados pela universidade e transferidos àsociedade. A universidade de bom nível, que possuiensino e pesquisa de qualidade, inseridaconvenientemente no seu contexto social eeconômico, já cumpre a função para qual asociedade a instituiu. O que a recomenda e legitimaé a competência, a qualidade de seu produto e não aprática mais ou menos assistencial que às vezes seconfunde com extensão.

Ora, a operacionalização da extensão universitáriacomo uma categoria especial dentro da engenhariainstitucional da universidade, determinou que emboraseja uma filosofia institucional, um espírito norteador,um ethos ético-cultural que deveria estar impregnadono ensino e na pesquisa, acabou se tornando, namaioria dos casos, uma ONG dentro da universidade,um departamento, uma pró-reitoria, uma sala comcomputadores, um gueto, mais um feudo que tambémdeve ser defendido, por seus donos, diante as ameaçase confabulações acadêmicas (Calderón, 2005).

Diante desse cenário, o conceito de RSU pode nosajudar a refletir sobre a universidade, sua engenhariainstitucional, suas atividades acadêmicas e, principal-mente, sua estrutura gerencial, a mesma que permite ofuncionamento da universidade como um todo.

De acordo com Vallaeys (2006),

a RSU exige, numa visão holística, articular asdiversas partes da instituição em um projeto de

promoção social com princípios éticos e dedesenvolvimento social, eqüitativo e sustentável,para a produção e transmissão de saberesresponsáveis e pela formação de cidadãosigualmente responsáveis.

A partir do entendimento de Vallaeys (idem), podemosrelacionar a RSU com a convergência da instituiçãocomo um todo na promoção de princípios éticos quesustentem a nova compreensão do desenvolvimentohumano. Neste sentido, o autor em questão, faz umapolêmica afirmação, quando diz que a RSU exige que auniversidade supere o enfoque da extensão univer-sitária como apêndice, bem intencionado, da formaçãoestudantil e da produção de conhecimentos.

Em termos mais pragmáticos, a experiência chilena,permite visualizar melhor o entendimento de RSU,quando Jimenez et al. (2006) afirma:

entendemos por RSU a capacidade que possui auniversidade de difundir e colocar em prática umconjunto de princípios e valores, gerais eespecíficos, por meio de quatro processosconsiderados chaves: gestão, docência, pesquisa eextensão universitária, respondendo socialmentedesta forma perante a própria comunidadeuniversitária e o país onde está inserida.

Ao analisar a conceitualização realizada pelosrepresentantes das 13 universidades chilenas queparticipam do Projeto Universidad Construye País,verificamos duas grandes contribuições: a) aimportância dada à gestão da universidade, peladefinição de mecanismos gerenciais que viabilizam oensino, a pesquisa e a extensão; b) os princípios evalores que devem nortear toda a engenharia insti-tucional postos no centro da estrutura da universidade.

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16 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

Quais seriam esses princípios e valores? Na propostachilena, os princípios e valores estariam divididos emtrês planos: pessoal, social e universitário. No planopessoal pode-se destacar: a dignidade da pessoa, aliberdade e a integridade. No plano social: o bemcomum e a eqüidade social, o desenvolvimentosustentável e o meio ambiente, a sociabilidade esolidariedade para a convivência, a aceitação e apreçoà diversidade, a cidadania, a democracia e a par-ticipação. No plano universitário: o compromisso coma verdade, a excelência, a interdependência e atransdisciplinariedade.

Dentro dessa visão, existe uma estreita relação entreas práticas acadêmicas e as práticas gerenciais, asquais deveriam irradiar os princípios e valores queestariam na base da responsabilidade socialuniversitária.

Os textos de Vallaeys (2006), Carrizo (2006) eWagenberg (2006) mostram uma preocupação chaveem relação ao chamado “currículo oculto”, conceitodesenvolvido por Michael Apple (1982), especi-ficamente para compreender a educação básica, mashabilmente incorporado por esses autores nacompreensão da educação superior.

Ao aprofundar a questão do currículo oculto, Vallaeys(2006) mostra grande preocupação pela coerênciamoral que deve existir entre o discurso e a práticaacadêmica e institucional. Ele aponta que existemrealidades acadêmicas diversas que negam, na prática,os valores ligados à solidariedade e ao desenvol-vimento eqüitativo e sustentável que são ensinados emsala de aula. Ele questiona, por exemplo: de que

adiantam os discursos sobre os cuidados com o meioambiente se a universidade não se obriga a usar papelreciclado? De que adianta ensinar em sala de aula aimportância da vida democrática e da participação semuitas vezes não há transparência nem espaços departicipação, não somente para alunos, mas tambémpara professores, na vida universitária como um todo?

Da mesma forma podemos questionar, de que adiantaensinar o respeito aos direitos das pessoas comnecessidades especiais, se as universidades nãodesenvolvem ações específicas de inclusão social, quecomeçam pela adaptação da infra-estrutura para ascadeiras de rodas? Ou ainda, ensinar a importância daluta contra o racismo, se há resistências veladas para acontratação de professores ou professoras negras?Ou ainda pregar o respeito aos idosos se a univer-sidade não possui uma política institucional de respeitoe valorização de seus professores e funcionáriosidosos?

Wagenberg (2006) é enfático ao afirmar que a lutapara a formação de líderes éticos e solidários estaráperdida se as universidades continuam com seu duplodiscurso – ensinam em sala-de-aula ética e respon-sabilidade social mas se envolvem em práticascontrárias a sua missão.

RSU: construindo a pirâmideinstitucional

A contribuição da experiência chilena paraa compreensão da RSU suscita muitas inquietações equestionamentos.

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17RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

Sem dúvida alguma, a gestão das universidades,independentemente da sua natureza institucional,estatal ou privada, é uma temática que se fortalececada vez mais em tempos de crise fiscal do Estado ede institucionalização dos mercados de ensinosuperior.

Se por um lado, a experiência chilena faz um grandeavanço ao dar a mesma importância à gestão, à

pesquisa, ao ensino e à extensão, dentro da suaconceitualização de RSU, por outro lado, convémressaltar à diferenciação que existe entre essasatividades.

A nosso ver, a universidade deve ser consideradacomo uma grande pirâmide de base triangular. Emborasendo uma única construção, possui uma base e trêsfaces entrelaçadas na sua essência.

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18 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

As faces visíveis da pirâmide representam o ensino, apesquisa e extensão erguidas numa base representadapela gestão universitária.

Convém ressaltar que entendemos por gestãouniversitária o conjunto de processos e estruturasadministrativo-gerenciais que possibilitam àuniversidade atingir sua missão institucional.

No exemplo da pirâmide, a gestão universitária (abase) está profundamente interligada com cada umadas faces, as quais se complementam entre sim,possibilitando a existência de uma construção sólida ecoesa.

Neste exemplo, os princípios e valores da RSU,apontados por Jimenez et al. (2006), constituem-sealicerces da pirâmide, ou seja, de toda a universidade.Trata-se de grandes pilares que sustentam, penetram eirradiam toda a estrutura gerencial, a mesma que emdecorrência disto, estaria voltada à viabilização dadimensão pública do ensino superior, que ganha formapor meio das atividades universitárias.

A grande contribuição da experiência chilena é tercolocado os princípios e valores, voltados aodesenvolvimento humano, como “faróis que orientam”,“guias de comportamento humano”, “fundamentais epermanentes” em uma universidade socialmenteresponsável (Jimenez et al. 2006).

O grande problema das estruturas administrativas dasuniversidades privadas é que elas acabam se tornandoestruturas autônomas, conduzidas por especialistas emadministração empresarial, que desconhecem a

dimensão pública do ensino superior. Desta forma,geram-se atritos entre as estruturas gerenciaisimpostas pelos executivos das universidades e asdemandas e pontos de vista do corpo docente eautoridades acadêmicas que viabilizam as atividadesde ensino, pesquisa e extensão.

Assim, acreditamos que seja importante preservar aliberdade de mercado no ensino superior, pensando,principalmente, na contribuição do setor privado naampliação do atendimento da demanda por ensino demassas. Mas deve-se ressaltar que os pilares dapirâmide não podem ser meramente a procura dolucro, ou seja, a acumulação desenfreada de capitalpor meio da comercialização de serviços educacionais.Isto, em hipótese alguma, significa negar anecessidade de manter uma boa saúde financeira dainstituição.

Sob a ótica da RSU, o mercado de ensino superiorpossui suas especificidades. Trata-se de um cenário noqual deveriam interagir instituições voltadas aointeresse público e, portanto, às atividades univer-sitárias que seriam reflexos de uma estrutura gerencialirradiando princípios e valores (institucionais, pessoaise sociais) e acenando para o desenvolvimento humano,numa clara demonstração de que seria possível enecessário, como diz Kliksberg (2006), superar adicotomia economia-ética.

À guisa de conclusão

A partir do que foi exposto, consideramosimportante disseminar e fortalecer a discussão da RSU

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19RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA: CONTRIBUIÇÕESPARA O FORTALECIMENTO DO DEBATE NO BRASIL ADOLFO IGNACIO CALDERÓN

como uma alternativa de mudanças não só emambientes universitários predatórios e mercantilistascomo também naqueles abertos às mudanças(Calderón, 2000).

Diante da hegemonia neoliberal, a RSU representaavanço teórico no fortalecimento da dimensão públicado sistema universitário brasileiro, no qual interagem,segundo o Instituto Nacional de Estudos e PesquisasEducacionais (Inep) do Ministério da Educação,2.329 instituições de ensino superior (IES), das quais2.093 são particulares, representando 90% do total(Brasil, 2004).

Para compreender a importância do setor privado emtermos da ampliação do acesso à educação superiorde massas, deve-se considerar que as quatro maioresuniversidade brasileiras, em número de alunos, sãoprivadas: Universidade Estácio de Sá, com 104.346 milalunos; Universidade Paulista, com 93.210 alunos; aUniversidade Luterana do Brasil, com 47.883 milalunos e a Universidade Salgado de Oliveira, com47.557 mil alunos (Brasil, 2004).

De acordo com o Censo da Educação Superior de2003, dos 3,9 milhões de alunos matriculados no ensinosuperior brasileiro, 2,7 milhões estavam na redeprivada, correspondendo a 71% do total de alunosmatriculados (BRASIL, 2003). Aliás, o elevadopercentual de alunos matriculados no setor privado éconsiderado por Nunes et al. (2005) com um casodesviante se consideramos que nos países daOrganização para a Cooperação e DesenvolvimentoEconômicos (OECD) 79% dos alunos estãomatriculados em IES Públicas. Mais ainda: em 14

países parceiros da OECD o setor público respondepor 64,2% das matrículas no ensino superior. Noentanto, o caso brasileiro não é único. Chile, Coréia doSul, Filipinas, Indonésia e o Japão mantém aproxima-damente 2/3 de seus estudantes em IES particulares.

Ainda de acordo com Nunes et al. (idem), a educaçãosuperior privada emprega diretamente cerca de500 mil funcionários entre docentes e servidores. Em2002, a educação superior foi uma atividadeeconômica que gerou um rendimento médio duasvezes maior que o rendimento médio de todos ostrabalhadores formais; situou-se entre os 20 maioresempregadores e entre os 10 maiores geradores demassa salarial, segundo a Classificação Nacional deAtividades Econômicas (Conae) e a Relação Anualdas Informações Sociais (Rais). Além disso, aeducação superior registrou uma das mais baixas taxasde rotatividade no conjunto de 11 grupos cuja idademédia era igual ou superior a 40 anos.

Como diz Nunes et al. (idem), hoje a educaçãosuperior brasileira é um setor econômico robusto e, doponto de vista político, é um ativo participante dasbatalhas político-eleitorais, contando hoje com boabase de apoio no Congresso, e velada simpatia emnúcleos rarefeitos do poder.

Se a RSU representa no setor privado, um farol quepode nortear a atuação daqueles que trabalham pelofortalecimento da dimensão pública do ensino superior,no setor estatal, ela representa o desafio de refletirsobre as reais contribuições das universidadesfinanciadas pelo Estado para o desenvolvimentohumano. Esse desafio perpassa a discussão de

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20 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

estratégias que superem as daninhas açõescorporativas que geram práticas acadêmicas egerenciais – profundamente questionadas e repudiadaspela sociedade que a financia – muitas vezessustentadas em políticas de desperdício de recursospúblicos, como por exemplo, a generalização docontrato de docente-pesquisador, em período integral,com dedicação exclusiva, em todo o sistema federal.

Se o Estado realmente quer investir em pesquisa sólidae competitiva, por que então continua jogando fora osrecursos públicos em vez de focalizá-los somente nasinstituições que realmente fazem pesquisa? Consi-derando a crise fiscal do Estado, por que não seadotam salários diferenciados, de acordo com aprodutividade de cada docente ou pesquisador? Porque o professor-pesquisador que tem uma produçãoirrelevante deve ganhar o mesmo que aquele queproduz, cria e inova? (Calderón, 2004).

Todas essas questões estão no cerne da chamadareforma universitária e da chamada crise dauniversidade pública brasileira, diante da qual éfundamental que as IES estatais assumam suaresponsabilidade social sob risco de que a sociedade,cada vez mais decepcionada, se recuse a assinar onovo contrato social do qual Vallaeys (2006) nos fala.

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22 ESTUDOS 36 JUNH0 DE 2006

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23A REFORMA QUE NÃO É REFORMA GABRIEL MARIO RODRIGUES

BERNARDO KLIKSBERG1

A ÉTICA E ARESPONSABILIDADE SOCIALDA UNIVERSIDADE

Uma região sob risco social

Algo muito importante não se conclui naseconomias latino-americanas. A meta final de umaeconomia é assegurar a todas as pessoas seus direitosao desenvolvimento. A propósito, a Assembléia Geraldas Nações Unidas aprovou, em 1989, uma resoluçãosobre a obrigatoriedade de garantir-se a todas aspessoas “o direito ao desenvolvimento”. Na América

1 O autor obteve cinco diplomas universitários, dentre os quais dois doutorados, emEconomia e Administração. Foi agraciado com os títulos de Professor Honorário,Professor Emérito e Doutor Honoris Causa de várias universidades do Continente.Prestou assessoria a mais de 30 países e a diversos Presidentes em áreas críticas dodesenvolvimento, tendo sido assessor da ONU, do BID, da Unesco, da OIT, daOEA e da OPS, além de outros organismos internacionais. Entre outras funçõesexerceu a de Diretor do Projeto de Modernização Estatal para a América Latina, daONU, sendo, atualmente, Diretor do Programa Iniciativa Interamericana de CapitalSocial, Ética e Desenvolvimento, patrocinado pelo BID e pelo Governo daNoruega. Dentre suas obras mais recentes, destacam-se: Más ética, más desarrollo(Temas, 2004, Best Seller Continental); Ética y economia (El Ateneo); Hacia umaeconomia con rostro humano (14 edições, Fondo de Cultura Econômica); Elcapital social: dimensión olvidada del desarrollo” (Universidad Metropolitana,Venezuela, 2002); Toward an intelligent State (ONU, IIAS, New York, 2001):Mitos e falácias sobre o desenvolvimento social (Unesco, Brasil, 2002); Socialmanagement: some strategic issues (ONU, New York, 1999).

Latina, continente com enormes riquezas potenciais,grande quantidade de matérias-primas de caráterestratégico, fontes de energia baratas, amplaspossibilidades de produção agropecuária, excelentelocalização geoeconômica, maravilhas turísticas, essedireito não se encontra ao alcance de amplos setoresda população. Um em cada dois latino-americanosvive abaixo da linha de pobreza, seis entre dez criançassão pobres, um de cada quatro jovens está fora domercado de trabalho e do sistema educacional,aumentam as taxas de criminalidade juvenil, a taxa demortalidade materna é 23 vezes superior à dos paísesdesenvolvidos, enquanto a de mortalidade infantiltambém se encontra 20 vezes acima da média domundo desenvolvido.

Por que tantos pobres em uma região tão rica? Umadas razões primordiais é o fato de tratar-se docontinente mais desigual dentre todos. Os 10% maisricos detêm 48% da renda nacional; os 10% maispobres, apenas 1.6%. É a maior desigualdade social

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24 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

existente no planeta. Segundo dados atuais, as grandesdisparidades apresentam toda ordem de desacertoseconômicos. Reduzem o tamanho do mercado interno,limitam a formação da poupança nacional, tornamregressivo o sistema educacional, geram gravesfragilidades para a governabilidade democrática.Minam, portanto, de várias maneiras, a possibilidade dechegar-se a um desenvolvimento sustentável.

Segundo numerosos estudos realizados nos últimosanos, por trás do crescimento das disparidades naregião – maior, hoje, que os elevados índicesregistrados no início dos anos 60 – acham-se aspolíticas econômicas. A Argentina da década de 90 éum exemplo muito claro. Em poucos anos, triplicou adistância entre os 10% mais ricos e os mais pobres,sendo que o coeficiente Gini, que mede a desigualdadeem termos de distribuição de renda, deu um saltopoucas vezes constatado. Estima-se que, na referidadécada, 7 milhões de pessoas deixaram de integrar aclasse média e passaram a ser pobres.

Que tem a ver a ética com tudo isso? Provavelmenteuma das lacunas mais importantes no debate sobreessa pobreza injustificável e essas enormesdesigualdades é sua abordagem exclusivamentetécnica. É imprescindível discutir a racionalidadetécnica do modelo adotado, mas, ao mesmo tempo, éextremamente relevante incorporar à discussão aquestão de sua racionalidade ética. Uma dasdebilidades que mais se destacam no debate é acircunstância de que o pensamento econômicoconvencional transmitiu a mensagem, explícita ouimplícita, de que introduzir valores éticos seria

contaminar uma matéria que supostamente deveria serasséptica. Segundo essa mensagem, economia e éticaseriam dois contextos separados e que precisam sermantidos desta forma. A economia, para os técnicos; aética, para as igrejas; a filosofia, no mundo do espírito.Com isso, consegue-se, de fato, escamotear a análiseética. Quando tal desvinculação se desfaz e o tema éabordado de modo sério, emergem duas importantesindagações. Quando é que uma economia se tornarealmente eficiente? Quais deveriam ser os parâ-metros finais para medir sua eficácia?

Sem dúvida, entre eles aparecerão valores éticosbásicos, tais como assegurar o direito ao desen-volvimento, propiciar plenas possibilidades de saúde amães e filhos, possibilitar a inclusão produtiva dosjovens, proteger os mais velhos. Sem isto não se podefalar em eficiência. Com muita clareza, no início de seumandato, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula daSilva repetiu, várias vezes, que, ao concluí-lo, ele seráavaliado por um parâmetro, ou seja, se terá conseguidoque os brasileiros tenham passado a comer três vezespor dia, dada a existência, hoje, no Brasil, de 44 milhõesde pessoas com fome.

A ética deveria constituir a essência da racionalidadeeconômica. Por outro lado, incluí-la no debate significaabrir uma nova agenda, que não substitui as discussõescomuns, mas amplia a pauta do debate, superandodesavenças. Tal agenda envolve temas como o daresponsabilidade ética das políticas públicas, a respon-sabilidade social da empresa privada, a responsa-bilidade ética dos meios de comunicação de massa, das

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25A ÉTICA E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA UNIVERSIDADE BERNARDO KLIKSBERG

universidades, das ONGs, dos sindicatos e demaissetores da sociedade civil.

De igual modo, significa inserir o tema referente aosvalores éticos que se destacam na conduta cotidianade todos os atores, assim como seu impacto noprocesso econômico.

Vários desses temas estavam inseridos na origem daciência econômica, que nasceu como ciênciafortemente vinculada à questão ética. Se deixados delado, criam-se as condições propícias para destituir aracionalidade econômica de sua “consciência ética” epara criar um vazio de valores que pode tornar-sebastante útil para as políticas mais antiéticas, emtermos de seus resultados finais.

O papel da universidade

Na América Latina há uma imperiosanecessidade de ampliar a pauta do debate das décadasanteriores, bem como de superar a dicotomiaeconomia-ética. A universidade pode cumprir umpapel fundamental a este respeito. Nestes últimosanos, diversas universidades do Continente têmcontribuído significativamente para o debate público,destacando-se entre os atores sociais quepossibilitaram experiências avançadas. Contudo, dadaa magnitude dos desafios a enfrentar e o claro impulsoque no Continente vêm tomando as lutas da cidadaniavisando a construir um modelo de desenvolvimentointegrado que responda às suas necessidades reais,urge reforçar ainda mais a ação universitária.

É preciso que as universidades se situem no front daluta pelo conhecimento da realidade, muitas vezesdissimulada por trás dos bastidores. Devem contribuirpara o enriquecimento da qualidade do debateeconômico-social, nele centralizando, por intermédiode pesquisa séria, rigorosa, de alto nível, os grandestemas da pobreza e da desigualdade que se encontramno âmago da vida cotidiana da maior parte dapopulação. A ética do desenvolvimento precisa serativamente incorporada à sua agenda. Tanto no campoda pesquisa quanto na formação de seus graduados.Formar eticamente é algo complexo, transcendedeclarações, exige, entre outros aspectos, discutirseriamente, em aula, as implicações éticas do exercícioprofissional. Não em uma única disciplina, mas,transversalmente, em todas elas. Ao mesmo tempo,uma excelente maneira de formar eticamente é nutrir oestudante com experiências reais de trabalho junto àcomunidade, de solidariedade ativa, de voluntariado.

Na América Latina de hoje, onde renasceu aesperança, há uma “sede de ética” permeando toda asociedade. Há uma demanda de padrões éticos muitomais exigentes em relação a todos os setores. Auniversidade tem a grande oportunidade de colocar-sena vanguarda dos esforços que visam a responder atão justificado clamor.

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26 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

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27A ÉTICA E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA UNIVERSIDADE BERNARDO KLIKSBERG

A URGÊNCIA DARESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA1 ALAN WAGENBERG 2

os últimos anos, cresceu emimportância a Responsabilidade Social Universitária(RSU) nos diferentes âmbitos acadêmicos, dada suacontribuição para a formação de estudantes ecomunidades socialmente responsáveis. Contudo, oque se pretende, primordialmente, com este artigo, nãoé definir o que se entende por RSU, mas, sim, expor anecessidade de as universidades da América Latinadedicar-lhe maior atenção, bem como de compartilharexperiências que tragam novas idéias para suaimplementação.

N A universidade de hoje

O atual modelo universitário encontra-seem decadência. Cada vez mais é questionado o papelda universidade como cultivadora de identidade ecultura da Nação-Estado. Reduz-se cada vez mais onúmero de faculdades em áreas como humanidades,letras, filosofia, literatura, dentre outras. Emcontraposição, aumenta o de estudantes que buscamgarantir seu futuro seguindo carreiras em admi-nistração e direito. Dos 147.600 diplomados, noscursos de licenciatura em universidades mexicanas, noano de 2003, 37% provinham das áreas de admi-nistração de empresas, direito e contabilidade.3

O panorama é similar no resto do continente.

Apesar disso, a universidade de hoje – aquela quecapacita seus estudantes para serem futuros

1 A Verônica García um agradecimento especial, por seu apoio, bem como aosintegrantes da RED, por seu compromisso social.Tradicionalmente, a revista Estudos, editada pela ABMES, tem alcançado muitosucesso ao tratar de temas relacionados com a gestão universitária e a educaçãosuperior. De indiscutível relevância, portanto, são seus esforços visando aincentivar e divulgar os debates a respeito da Responsabilidade SocialUniversitária (RSU) no cenário universitário brasileiro. A propósito,especialistas como Bernardo Kliksberg, François Vallaeys, Mónica Jiménez de laJara e Luis Carrizo, dentre outros, são alguns dos importantes colaboradores dapresente edição, que chega ao leitor preocupado com o aperfeiçoamento dasinstituições vinculadas à educação superior.

2 Coordenador da Rede Universitária de Ética e Desenvolvimento (RED) do BancoInteramericano de Desenvolvimento – BID.

3 Dirección de Estadísticas de la Anuies. Anuario Estatístico 2003. Licenciaturaen Universidades e Institutos Tecnológicos, 2003. Disponível em:http:// www.anuies.mx/index800.html

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28 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

profissionais – também se encontra sob risco dedesaparecer. Dos 234 maiores bilionários dos EstadosUnidos, 18% não têm diploma universitário.4 Maisimpressionante, ainda, é o fato de que a renda médiados bilionários que não completaram a universidaderepresenta o dobro da renda dos que possuemdoutorado. Esta porcentagem continuará aumentando,à medida que os estudantes deixem de sentirnecessidade de uma educação de terceiro grau paragarantir seu futuro.

Sucesso financeiro requer caráter, criatividade,motivação e persistência. E estas, precisamente, sãoas mesmas características exigidas para a formaçãode lideranças éticas e responsáveis. É possível, porexemplo, ensinar ética a um estudante até a exaustão,mas, quando ele se vir diante de uma circunstância emque não seja capaz de resistir a um grupo de pressão,tudo o que houver aprendido deixará de terimportância. Lamentavelmente, muito poucasuniversidades são capazes de transmitir taiscaracterísticas, o que se deve, principalmente, ao fatode, em geral, não ser possível ensinar esses valores,somente aprendidos mediante observação eexperiência própria.

Segundo François Vallaeys,

a Responsabilidade Social Universitária exige, apartir de uma visão holística, a articulação dasdiversas partes da instituição, em um projeto depromoção social de princípios éticos e dedesenvolvimento social eqüitativo e sustentável,

com vistas à produção e transmissão de saberesresponsáveis e à formação de profissionaiscidadãos igualmente responsáveis.5

Outra definição da RSU, segundo Construye País”,rede integrada pelas principais universidades chilenas, é

a capacidade da universidade de difundir e colocarem prática um conjunto de princípios e de valoresgerais e específicos, com base em quatro processosconsiderados primordiais na universidade, ou seja,gestão, docência, pesquisa e extensão universitária,atendendo, assim, do ponto de vista social, àprópria comunidade universitária, à região e ao paísem que se insira.6

Vejamos como se aplicariam esses conceitos,exemplificando com um caso prático. Em 1969, foicriada a Universidade Ben-Gurion, em Israel, parapromover o desenvolvimento do deserto de Neguev,área que abrange mais de 60% de Israel, mas querepresenta apenas 7% de sua população. Atualmente,a universidade é um centro de ensino e pesquisa, comaproximadamente 16.000 alunos matriculados; exerceum papel chave na promoção da indústria, daagricultura e da educação na região e é líder mundialem pesquisa de zonas áridas, tendo colocado suaexperiência a serviço dos países em desenvolvimento.Além disso, a universidade coordena um programa queenvia seus estudantes para povoados da periferia, ondeatuam como orientadores de crianças com problemasde aprendizagem. Ao contrário de outros programassimilares subsidiados pelo Estado para trabalhos junto

4 Herper, Matthew. Some billionaires choose school of hard knocks, Forbes, 29 dejunho de 2000. Disponível em: http://www.fortes.com/2000/06/29/feat.html

5 Vallaeys, François. Qué es la responsabilidad social universitária?, 2005.6 Jiménez de la Jará, Mónica. Invitación a vivir los valores centrales de la

responsabilidad social universitaria, 2003.

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29A URGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA ALAN WAGENBERG

à comunidade, a Universidade Ben-Gurion paga aoEstado o aluguel dos apartamentos em que sehospedam seus estudantes. Deste modo, incute noestudante o compromisso social da instituição e deseus integrantes para com a comunidade. Esseprograma já atendeu a mais de 15.000 crianças,mediante a mobilização de 6.000 estudantes.

Segundo o Ministério da Educação do Brasil, apesar docrescimento de matrículas nos cursos de graduação,nos últimos anos, somente 7% de jovens entre 20 e 24anos encontram-se matriculados em instituições deensino superior. Na Guatemala, o total da populaçãoregistra uma média de 4,5 anos de estudo ao longo davida, enquanto no Haiti a média é de 3,9 anos e emHonduras, 5,5 anos. Em comparação, nos paísesdesenvolvidos, os indivíduos estudam, em média, maisde 12 anos7. No Peru, apenas 4% dos jovens pobresingressam no nível superior, contra 50% dos ricos; naCosta Rica, 71% dos estudantes que freqüentam asinstituições de nível superior integram o grupo dos 40%mais ricos, enquanto somente 13% provêm dos 40%mais pobres.8 Quer dizer, quem consegue ingressar nauniversidade é privilegiado e tem o dever de utilizarseus conhecimentos para criar melhores condições devida para todos. Simón Bolívar dizia que “um povoignorante é instrumento cego de sua própria

destruição”. A universidade, portanto, tem aresponsabilidade de fazer com que este compromissoseja cumprido.

Há, aproximadamente, 100 milhões de estudantesuniversitários no mundo, número que, segundoestimativas, duplicará em 2025. Destes 100 milhões, ametade vive em países em desenvolvimento9, os quaisrepresentam poderosa força de mudança: sem elesnenhuma mudança se torna possível. Afinal, a maioriase compõe de jovens comprometidos com areconstrução do mundo em que vivem. Eles têm idéiasinovadoras, vontade de trabalhar, são otimistas e, o queé ainda mais importante, são idealistas; para eles nãoexiste o impossível. Por isto, a universidade tem derepensar sua função e converter-se em um catalisadorque facilite aos estudantes as ferramentas necessáriasà construção de um melhor amanhã.

Quando, em 2004, a Costa Rica se encontrava imersaem um mar de corrupção, foram as universidades queconclamaram a população a uma marcha multi-tudinária, a fim de demonstrar sua repulsa à corrupção.A universidade, juntamente com seus estudantes,conseguiu transmitir a mensagem de que a corrupção éinaceitável sob qualquer forma. Isto pode levar a umbom resultado, mas, surpreendentemente, grandeporcentagem de estudantes está convencida de que,para alcançar sucesso no mundo empresarial, éimprescindível e inevitável subornar e praticar atoscorruptos.

9 Bacon, Lawrence S. How universities can teach public service, Boston Globe,2005.

7 Banco Mundial, World development report, 2006. Disponível em: http://wdsbeta.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/IW3P/IB/ 2005/09/20/000112742_20050920110826/Rendered/PDF/322040World0Development0Report02006.pdf

8 Rama, Cláudio. La compleja dinâmica de la inequidad en la educación superioren América Latina y el Caribe, p.7-34, en La universidad se reforma II, RigobertoLanz (comp.), MES, UCV, Otrus, Upel, Iesalc, 244 pp. Caracas, 2004.

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30 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

Cabe à universidade facilitar o desenvolvimentoindividual de seus alunos. Entretanto, é necessárioreconhecer que o desenvolvimento não é simples-mente algo acadêmico e informativo. Desenvol-vimento consiste em ensinar ao estudante a pensar porsi mesmo; ajudá-lo a fortalecer seus próprios ideais,opiniões e idéias e ensinar-lhe a realidade do mundo.Realidade que nos mostra um mundo onde existemmais de um bilhão de pessoas vivendo em situação depobreza10, 815 milhões das quais desnutridas11, entreoutros horrores inconcebíveis. Ao ensinar estarealidade, a universidade passa a assumir seucompromisso social e o estudante começa acompreender sua própria responsabilidade. É aqui quea transformação se inicia – quando se constrói auniversidade ao redor de um núcleo social e não comoum processo paralelo como o da projeção social.

Em resumo, a RSU é o elo entre dois mundosdiferentes: a universidade, com seus tecnocratas,docentes, estudantes, missão, currículo, pesquisa e oresto de sua bagagem – tanto desejada quantoindesejada – e a realidade de nossos países, com suainiqüidade, sua pobreza, seus antagonismos e suaglobalização. Dois mundos que vivem em uma relaçãosimbiótica e conflituosa. A RSU deve, portanto, imporordem e equilíbrio entre estes dois mundos.

Mitos a respeito da RSU

Vimos observando o crescimento daResponsabilidade Social Empresarial (RSE) comoconseqüência da globalização e da formação daEmpresa-Estado – cinqüenta e uma dentre as cemmaiores economias do mundo são empresas12. A RSEé uma resposta da sociedade, na busca de soluçõespara problemas como a poluição, trabalho forçado eoutros efeitos negativos da Empresa-Estado. Asuniversidades se esforçam por implementar cátedras,cursos, seminários e pesquisas sobre o tema, nasuposição de que isto seja suficiente para tornar“éticos” os estudantes. Mas não é assim. A exemplodo que ocorre com uma aula de ética, uma aula de RSEnão é suficiente. Para o estudante estas aulassignificam apenas meras propostas, cuja aplicação ficaa seu critério, o que lhe permite tomar decisõesfundadas, simplesmente, em se estas resultarão, emalgum aumento, em sua renda ou na de sua empresa.

O estudante é exposto a contínuos sermões sobrepreservação do meio ambiente e importância dareciclagem tanto na universidade como em sua futuraempresa; contudo, a própria universidade não reciclanem respeita seu entorno. Fala-se de corrupção, detransparência e de participação; mas, quantas reuniõesadministrativas são realizadas abertamente? Quantosescândalos relacionados com roubo têm surgido nopróprio âmbito dos centros de ensino?

10 United Nations Development Programme. Human development report 2005,2005. Disponível em: http://hdr.undp.org/reports/global/2005/pdf/HDR05_complete.pdf

11 Food and Agriculture Organization of the United Nations. State of foodinsecurity in the world 2004, 2004. Disponível em: http://www.fao.org/documents/show_cdr.asp?url_file=/docrep/007/y5650e/y5650e00.htm

12 Anderson, Sarah. Top 200: The rise of corporate global power. Institute forPolicy Studies, 2004. Disponível em: http://www.ips-dc.org/reports/top200text.htm

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31A URGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA ALAN WAGENBERG

Recentemente, um dos 20 reitores mais bem pagos dosEstados Unidos foi obrigado a renunciar após 11 anosno cargo, por haver sido considerado culpado dedesviar recursos da universidade para seu uso pessoal.Enquanto os estudantes pagavam mais de US$30.000por ano para educar-se, esse reitor percebia um saláriosuperior a US$500.000 anuais. Mais escandalosa,porém, foi a decisão da diretoria da universidade, aqual, considerando-o inocente, permitiu-lhe renunciar,em vez de demiti-lo, e indenizando-o com US$3,75milhões. Uma decisão como esta anula, por si só,qualquer nível de credibilidade que a universidade hajacriado, no que concerne ao ensino da ética. Amensagem transmitida é taxativa e clara: de fato,roubar vale a pena.

Outro caso é o do Ministério da Educação Superior daVenezuela, que descobriu irregularidades nasnomeações feitas por várias universidades públicas.Uma delas contava com 66 diretores, embora sótivesse sete faculdades. É de indagar-se, mais umavez: de que serve ensinar ética e responsabilidadesocial, se com uma das mãos se estraga o que se fazcom a outra?

É lamentável não serem poucos os casos de práticasirregulares em universidades. A luta para produzirlideranças éticas e solidárias estará perdida, caso asuniversidades continuem com seu duplo discurso, ouseja, ministrando aulas de ética e responsabilidadesocial, de um lado, e, de outro, envolvendo-se empráticas contrárias à sua missão.

Hoje em dia, as instituições – inclusive asuniversidades – são forçadas a adaptar-se ao novoregime Empresa-Estado. A universidade terá eprecisará adaptar-se, conseguindo manter suas duasessencialidades: a continuidade do conhecimento e apromoção do desenvolvimento da sociedade. Querdizer, um desenvolvimento que não seja apenaseconômico, mas também social.

Que fazer?

Há dois anos, o programa IniciativaInteramericana de Capital Social, Ética eDesenvolvimento, do Banco Interamericano deDesenvolvimento, vem apoiando iniciativas de RSU,por intermédio de sua Rede Universitária de Ética eDesenvolvimento Social (RED). A RED buscaestimular a integração, aos currículos educativos, deprogramas sistemáticos de ensino da ética para odesenvolvimento, bem como oferecer uma base quepermita o intercâmbio de idéias e a discussão deexperiências relevantes e passíveis de serem repetidassobre a RSU. O objetivo da RED é tentar reforçaruma consciência cívica e ética, mediante a aplicaçãode programas curriculares e da realização de diversasatividades nas universidades da América Latina. Paratanto, foi criado um curso a distância, cujo objetivo é acapacitação de docentes para o ensino de ética ecapital social na universidade. Até o final de 2006deverão estar formados cerca de 500 docentes.O curso começa com metodologias que levem osdocentes a analisar o ethos universitário (comparar o

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discurso institucional com o comportamento atual) efinaliza com a elaboração, pelos docentes, de umaestratégia para “transversalizar” a ética no currículouniversitário por meio da RSU. Em menos de um ano,desde a conclusão do primeiro curso, tornou-sepossível apreciar alguns dos frutos produzidos por estecurso inovador. Um caso exemplar é o da UniversidadNuevo León, México, onde, além de ter sido elaboradoum código ético institucional, estabeleceu-se umcompromisso para capacitar mais de 100 professoresno ensino da ética e programou-se a inclusão de umMestrado em Ética e Capital Social.

Em mais de uma dezena de universidades da RED,foram criadas cátedras de pesquisa em respon-sabilidade social, bem como programas para apromoção de projetos de extensão universitária eaprendizagem-serviço, além de cursos de ética para odesenvolvimento, entre outras iniciativas. A Uni-versidade Columbia, no Paraguai, por exemplo, desdeo ano 2003 vem oferecendo um programa de bolsas deestudos, denominado Becas de Excelência de VidaRubén Urbieta Valdovinos, destinado a jovens quese destacam por seu trabalho social e cultural. Ospostulantes são selecionados de acordo com seucompromisso social, por haverem participado dealguma iniciativa em favor de suas respectivascomunidades. De acordo com o programa,

neste caminho que começam a trilhar, nós noscomprometemos a acompanhá-los na busca daexcelência de vida, sendo requerido dos bolsistasque, ao longo de seus estudos, assumam ocompromisso, aquele mesmo considerado tãoimportante no momento em que foramselecionados. Assim, a cada ano, os bolsistas

deverão criar, apresentar e desenvolver um projetode caráter cultural/artístico, empresarial ou social,em retribuição à oportunidade que lhes foi dadapela sociedade13.

Quando da crise econômica da Argentina e da falta deoportunidades de emprego para estudantes, o InstitutoIcep de Enseñanza y de Investigaciones desenvolveuuma série de oficinas para facilitar a interação entre oestudante e a sociedade civil. O programa, inicialmenteconcebido para assessorar o estudante na busca deemprego, rapidamente converteu-se em um espaço emque ele busca apoio para seus problemas pessoais. Asoficinas se converteram em palestras motivadoras,tutorias e consultoria jurídica gratuita. O programaatua em conjunto com advogados, assistentes sociais,estudantes e a comunidade em geral, alcançando,assim, a formação de um capital social. O Institutoajuda, ainda, na criação de entidades civis comoelemento de luta contra a exclusão, fornecendo apoiotécnico na sua legalização e na criação deempreendimentos produtivos.

A RED e as 109 universidades e instituiçõesacadêmicas que a compõem não constituem as únicasinstituições comprometidas com a construção de umasociedade mais justa. A Associación de Univer-sidades Confiadas a la Compañia de Jesús(Ausjal), quando indagada se suas universidadesestavam formando “profissionais bem sucedidos parasociedades fracassadas”14, desenvolveu um planoestratégico para as 26 universidades que a integram.

13 Universidad Columbia. Guía de becas de excelencia en el servicio.14 Ugalde, Luis. Ausjal y la responsabilidad social de la universidad, 2003.

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33A URGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA ALAN WAGENBERG

O referido plano situa a responsabilidade social comoprioridade. Afinal, se as universidades não estãodispostas a colaborar para o progresso de suacomunidade, de que adianta educar sem garantiroportunidades para os jovens? Em seu programa, aAusjal compromete-se a buscar alternativas viáveispara os problemas sociais, econômicos e educativosdos jovens. Por exemplo, focaliza sua pesquisa noestudo da pobreza, da administração do sistema desaúde, da participação cidadã, dentre outros temassociais, ao tempo em que forma estudantescomprometidos com o social.

De igual modo, em meados de 2005, vinte e oitouniversidades de vinte e dois países reuniram-se naFrança e subscreveram uma declaração reco-nhecendo o potencial social dos estudantes eafirmando que tal potencial não se torna possível sem aativa participação da universidade.15 Estas univer-sidades criaram uma rede global para atuar emconjunto na questão da responsabilidade social. Porseu lado, a Universidade de Santiago de Compostelatornou-se a primeira universidade da Espanha aapresentar uma “memória de sustentabilidade”. Aprimeira parte da memória detalha a visão e aestratégia relacionadas com os objetivos dauniversidade no contexto da sociedade. A segundaparte descreve o perfil da instituição, enquanto aterceira focaliza o sistema de administração etransparência. Por último, o documento apresenta

indicadores de atuação, em que são especificados osfatores econômicos, de meio ambiente e sociais dauniversidade.

O mundo se encontra em um processo de mudanças, oEstado torna-se cada vez menor, e as empresas detêmcada vez mais poder. Em conseqüência, o mercado detrabalho busca profissionais jovens que compreendama globalização e que tenham especialidades técnicas.A universidade teve êxito ao satisfazer a estasnecessidades. No entanto, ao mesmo tempo em que aglobalização criou maior riqueza, também geroualgumas injustiças. As empresas se conscientizaramdisto e, deste modo, hoje em dia, a RSE converteu-seem norma. Tanto assim que, ao redor do ano 2008, aInternational Organization for Standardization(ISO) introduzirá um certificado de RSE. A exemplodo que ocorre com as empresas, as universidades quenão se dispuserem a repensar seus objetivos ficarãofora do jogo.

A sociedade está a exigir, cada vez mais, que asuniversidades prestem contas sobre a maneira comocapacitam seus estudantes para evitar futuros casosde corrupção e para que tenham melhor consciênciasocial. Já existem, atualmente, várias universidadesdesenvolvendo suas próprias análises de cunho social,por estarem conscientizadas do perigo que consistepermanecer no status quo de somente formarprofissionais. Estas são as universidades do amanhã,as quais serão reconhecidas como instituições queterão contribuído para o desenvolvimento dahumanidade. É tempo de a universidade reconhecer ofato de que possui uma responsabilidade social que15 Bacon, Lawrence S. How universities can teach public service, Boston Globe,

2005.

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extrapola a simples doação de serviços comunitários.Atualmente, as universidades latino-americanas – emcomparação com outras regiões – estão perdendoem competitividade acadêmica, mas ficar atrás naformação de estudantes e cidadãos responsáveis teriaconseqüências ainda mais graves.

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35A REFORMA QUE NÃO É REFORMA GABRIEL MARIO RODRIGUES

QUE SIGNIFICARESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS 1

ltimamente, muito se tem falado daresponsabilidade social como uma dimensão ética quetoda organização ou instituição deveria ter como visãoe promover em sua atividade diária. Há bastantetempo, o mundo empresarial aceitou e desenvolveu aidéia, mas a reflexão acerca da responsabilidade socialsó recentemente teve início no âmbito universitário.Nossa intenção, com o presente trabalho, é contribuirpara o novo debate, definindo o conceito de modonão reducionista e sem utilizar a farsa de plagiara definição empresarial de responsabilidade social

U (a universidade não é, nem deve ser uma empresa2).Desejamos, igualmente, indicar o “horizonte deradicalização” – se é que se pode chamar assim – ouseja, até onde deverá ir todo o esforço acadêmico einstitucional, caso pretendamos colocar em práticaa Responsabilidade Social Universitária (RSU) demaneira responsável e não como simples receitacosmética.

1. Responsabilidade SocialEmpresarial

Antes de apresentar um modelo do quesignifica Responsabilidade Social Universitária,parece-nos interessante analisar, em primeiro lugar ede forma sucinta, o conceito de ResponsabilidadeSocial Empresarial, mais difundido atualmente, e quenos mostra o tipo de enfoque que se pretende com a

1 O autor é professor de Filosofia na Pontificia Universidad Católica de Peru e naUniversidad Ruiz de Montoya. Especializado em temas de ética aplicada aodesenvolvimento, liderança e gestão organizacional, exerce também a função deconsultor em assuntos relacionados com a Responsabilidade Social Universitáriano programa Iniciativa Interamericana de Ética, Capital Social y Desarrollo, doBID, dirigido por Bernardo Kliksberg. Participou, recentemente, do ForoInternacional La formación en Ética para el Desarrollo y la ResponsabilidadSocial Universitaria, organizado pelo BID e pela Universidad Autónoma deNuevo Leon, na cidade de Monterrey (México). É, ainda, autor do curso virtualComo enseñar Ética, Capital Social y Desarrollo en la Universidad, paracapacitação de docentes universitários nestes temas. O referido curso é iniciativado BID e pode ser acessado no portal da OEA. [email protected]

2 De fato, não se pode considerar os alunos como “clientes” que desejam “comprar”alguns estudos como “mercadoria”, confundindo, assim, universidade com loja.

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36 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

idéia de responsabilidade social em uma organizaçãomoderna.

O primeiro aspecto mencionado, hoje, em relação àResponsabilidade Social Empresarial, é o de que vaialém do altruísmo3. Não quer ser pura filantropia(clássica doação caritativa, que nenhuma relação temcom a atividade da empresa), tampouco filantropiainteressada (doação caritativa do produto da empresapara promovê-lo e abrir novos mercados), já que estessão conceitos que não se sustentam ao longo do tempo,não guardam relação com a própria atividade daorganização e não permitem uma visão integral dasociedade e do lugar nela ocupado pela organização.

Evidentemente, Responsabilidade Social Empresarial éum conjunto de práticas da organização que integrasua estratégia corporativa e que tem como finalidadeevitar danos e/ou gerar benefícios para todas as partesenvolvidas na atividade da empresa (clientes,empregados, acionistas, comunidade, periferia etc.),com finalidades racionais, que devem redundar embenefício tanto da organização como da sociedade. Apublicação Libro Verde, da União Européia, a definecomo “um conceito com base no qual as empresasdecidem colaborar, voluntariamente, com o aperfei-çoamento da sociedade e a preservação do meioambiente. As empresas se conscientizam do impactoque sua atividade terá sobre todos e assumem ocompromisso de contribuir para o desenvolvimento

econômico e, de igual modo, para a melhoria daqualidade de vida dos trabalhadores e suas famílias, dacomunidade local em que atuam e do conjunto dasociedade”.4 Outra definição:

Entendemos a Responsabilidade Social Empre-sarial como a ação conjunta de toda a empresa,conscientizada (trabalhadores, diretoria e proprie-tários) de seu papel como unidade de negócio queagrega valor e que subsiste em um espaço em queobtém lucros. Conscientização no plano social (deajuda aos mais desfavorecidos e de respeito aosconsumidores), ambiental (de sustentabilidade eresponsabilidade em relação ao meio ambiente) eeconômico (de práticas fundadas na confiabilidade,transparentes no manejo de suas finanças e deinvestimentos socialmente responsáveis).

Ou seja, a Boa Empresa5 segundo Alejandra Ospina,autora do referido artigo, o contexto da Res-ponsabilidade Social Empresarial abrange quatroaspectos:

• Aspecto trabalhista: cumprimento dasnormas de trabalho, respeito ao trabalhadorem todos os níveis hierárquicos e aplicaçãodos códigos de conduta e princípiosestabelecidos pela Organização Internacionaldo Trabalho (OIT).

• Aspecto econômico: preparação de contastransparentes e públicas, além de inves-timentos socialmente responsáveis (a partir

3 Há muita literatura disponível sobre o tema, mas nos parece importante destacar umtrabalho muito interessante, uruguaio, referente a um Manual de primeros pasos,que visa a criar a responsabilidade social em uma empresa: http://www.deres.org.uy/archivos/docs/manual.pdf

4 http://europa.eu.int/comm/off/green/index_es.htm5 V. artigo La empresa buena: http://www.iigov.org/dhial/?p=46_05

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37QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

de critérios éticos e de exclusão, no momentode investir).

• Aspecto ambiental: respeito ao meioambiente e utilização de selos de qualidadeecológica, ou de informação direta aoconsumidor sobre como terá sido obtido oproduto, ou se o serviço foi prestado.

• Aspecto social: investimento de certaporcentagem da receita em programas quevisem a melhorar o nível de vida de pessoassem recursos. Ou dispor de projetosrelacionados com comunidades carentes.

2. Responsabilidade Social emgeral

Após esse breve resumo da noção deResponsabilidade Social Empresarial, podemosdestacar várias características bastante úteis àResponsabilidade Social Universitária:

• A responsabilidade social se desenvolvequando uma organização toma consciênciade si mesma, de seu entorno e do papel quenele representa. Pressupõe a superação deum enfoque egocêntrico. Além disto, estaconsciência organizacional passa a ser globale integral (inclui tanto as pessoas quanto oecossistema, tanto os trabalhadores como osclientes) e, ao mesmo tempo, a contagiartodos os setores da organização (todas as

pessoas da organização devem poderalcançar esse nível de consciência).

• Esta conscientização envolve preocupaçõestanto éticas quanto interessadas. Trata-se deuma vontade ética e, ao mesmo tempo,interessada em fazer “bem” as coisas, paraque todos os beneficiários internos e externosdos serviços prestados pela organizaçãofiquem “bem”. A ética, então, surge nãocomo freio do interesse egoísta da orga-nização, mas, ao contrário, como estímulo, emseu próprio benefício. Cria-se, assim, umaarticulação poucas vezes praticada entreética e eficácia.

• Com base em tal articulação, definem-secertos princípios e valores como parâmetrosde “boa” ação para a empresa, os quais sãoincluídos na estratégia global e nofuncionamento rotineiro da organização, a fimde impregnar todos os âmbitos de atividadesda organização e suas conseqüências(âmbitos econômicos, sociais, trabalhistas eambientais). Em conseqüência, a açãocoletiva da organização é concebida comoum todo, complexo, regulamentado eatendendo às exigências e necessidades dossegmentos potencialmente envolvidos6.

6 É demasiado dizer que a responsabilidade social implica o respeito aos limiteslegais. Obviamente, como “a lei tem que ser cumprida”, aqui nos interessamosapenas pela parte “voluntária” da responsabilidade social, ou seja, a que defineações que transcendem o exigido pela lei.

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38 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

• A definição do que é “bom” fazer ou deixarde fazer depende de uma negociação oudiálogo entre os interessados e os envolvidosnas atividades da empresa, ou de umaprevisão dos interesses dos afetados(sobretudo quando estes não podemparticipar realmente do debate, como, porexemplo, as futuras gerações). A éticapraticada é, portanto, a seguinte:

a) Ética atenciosa e de responsabilidade pelasconseqüências das ações levadas a cabo.

b) Ética do diálogo e do consenso entre todos osparticipantes e os afetados.

c) Ética democrática e solidária entre todos osparticipantes e afetados, para garantirigualdade de condições na reivindicação derespeito a seus interesses, igualmente válidos(trata-se, na medida do possível, de favorecera todos por igual).

d) Ética da complexidade, que demanda umavisão holística e global de todos os aspectos“entrelaçados” (complexus), subjacentes àsatividades da empresa.

e) Ética reguladora para fins de auto-organização:servir aos interesses de todos permitecorrigir, de modo permanente, os erros (retro-alimentação) e assegurar a sustentabilidade eo equilíbrio da organização (qualquerinteresse não atendido terminaria, com otempo, por afetar seu funcionamento).

A partir dessa visão global, podemos, agora, tratar depensar no que deve ser a Responsabilidade SocialUniversitária.

3. A Responsabilidade SocialUniversitária

A exemplo da empresa, que precisousuperar o enfoque filantrópico do investimento social(como despesa extra) para entender a si mesma emfunção do novo paradigma da responsabilidade social,a universidade precisa tratar de superar o enfoque da“projeção social e extensão universitária” como“apêndices” bem intencionados de sua função centralde formação estudantil e produção de conhecimentos,a fim de poder atender ao que de fato está a exigir aResponsabilidade Social Universitária.

Tudo decorre, a nosso ver, de uma reflexão dainstituição acadêmica sobre si mesma, no contexto deseu entorno social, de uma análise de suaresponsabilidade e, sobretudo, de sua parcela de culpanos problemas crônicos da sociedade, deixando deconsiderar-se um oásis de paz e racionalidade em meioà tormenta em que se debate o “Titanic planetário”,conforme Edgar Morin denomina nosso “barco Terra”,essa luxuosa nave técnico-científica, porém sem rumo7.A verdade é que todos os líderes que hoje dirigem asinstituições públicas e privadas que pilotam este Titanicsaem das melhores universidades e aplicam,diariamente, ciências e tecnologias ali aprendidas, as

7 V. Edgar Morin, “Estamos en un Titanic?”: http://www.iadb.org/etica/Documentos/dc_mor_estam.doc]

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39QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

quais, no entanto, criam e reproduzem o maudesenvolvimento no qual a maior parte da humanidadetrata de sobreviver. A relação entre a crise do sabertécnico-científico, hiper-especializado (fragmentado) esua cegueira crônica quanto aos efeitos globais deladecorrentes, por um lado, e a crise social e ecológicamundial, por outro, há de ser o ponto de partida parauma reforma universitária de responsabilização socialnão meramente cosmética, mas, sim, produto de umaprofunda reflexão sobre o significado social daprodução de conhecimento e da formação profissionalde líderes na era da ciência.

Após reconhecer que não se trata apenas de reformaras más políticas, mas também os maus conhecimentos

e as más epistemologias, em cuja produção etransmissão a universidade colabora – e que induzem aestas más políticas – cada universidade poderá darinício à elaboração de seu próprio diagnóstico e aoplanejamento de sua própria reforma. A Respon-sabilidade Social Universitária exige, a partir de umavisão holística, a articulação dos diversos setores dainstituição, em um projeto de promoção social deprincípios éticos e de desenvolvimento social eqüitativoe sustentável, com vistas à produção e transmissão desaberes responsáveis e à formação de profissionaiscidadãos igualmente responsáveis8. O esquema aseguir pode ajudar a visualizar o caráter global ecentral da reforma universitária desejada:

Gestão da universidade como

uma organização socialmente

responsável e exemplar

(Dupla aprendizagem: O estudante

aprende “na” e “da” universidade)

Cultura democrática, gestão eco-

lógica, bem estar social, luta

contra segregações, imagem

institucional responsável etc.

A REFORMA RSU NA UNIVERSIDADE

A crise do saber e do

mundo atual

(Fragmentação dos saberes,

crises sociais, econômicas,

culturais, ecológicas, necessi-

dade do controle social

da ciência)

Docentes e pessoala d m i n i s t r a t i v oformados no enfoquede RSU

RSU

A aprendizagembaseada em projetoscom impactos sociais

A pesquisa visando àsolução de problemas sociais( I n t e r d i s c i p l i n a r i e d a d e ,

pesquisa aplicada, desenvol-

vimento sustentável, desenvol-

vimento humano)

Desenvolvimento do país

(Projeção social, extensão

universitária, transferência

tecnológica, consultoria,

associação estratégica com

municípios, capacitação de

profissionais, funcionários

públicos, docentes etc)

O voluntariadoestudantil

Capacita

Organiza

Dá-se conta de

Orienta

Ensina

Apóia

Promove

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40 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

A profundidade e o radicalismo da reforma podeassustar, mas não devemos esquecer que o processopode ser gradual e começar a partir de simplesmudanças de caráter organizacional. Além do mais,muitos dos fatores da reforma de responsabilidadesocial já se encontram presentes na maioria de nossasuniversidades (como, por exemplo, a pesquisainterdisciplinar, a articulação, em certos cursos dedocência, com a projeção social9, o desenvolvimentodos métodos pedagógicos do Aprendizado Baseadoem Problemas e do Aprendizado Baseado emProjetos10etc.), embora um tanto desarticulado e semuma perspectiva institucional integrada.

Para se ter uma idéia precisa das orientaçõesestratégicas gerais de responsabilidade socialuniversitária, vale a pena focalizar quatro linhas deação institucional:

1. No que concerne à gestão interna dauniversidade: a meta é orientá-la no sentidoda transformação da universidade em umapequena comunidade exemplar de democracia,eqüidade (supressão das discriminações ecorreção dos privilégios), transparência (política e

econômica), e torná-la um modelo dedesenvolvimento sustentável (política deproteção do meio ambiente, utilização de papelreciclado, tratamento dos dejetos etc.). Seráimportante o uso de procedimentos já utilizadospelas empresas para atingir níveis dequalidade, como a Norma SA 8000, porexemplo, ou o Balanço social11. Tornar auniversidade uma comunidade socialmenteexemplar é usufruir uma dupla fonte de apren-dizagem: o estudante aprende na universidadeo que interessa à sua carreira, mas tambémaprende com a universidade hábitos e valorescidadãos. Mais que os cursos de ética, cujoimpacto comportamental é discutível, a práticacotidiana de princípios e bons hábitos comuns éque transmite valores às pessoas.

2. No que concerne à docência: a meta écapacitar os docentes em relação ao enfoqueda Responsabilidade Social Universitária epromover, nas respectivas especialidades, aAprendizagem Baseada em Projetos de cunhosocial, abrindo a sala de aula à comunidadesocial como fonte de ensino significativo eprático, aplicado à solução de problemas reais.No caso, trata-se de ser criativo e de imaginar(não apenas mediante práticas profissionais decunho social, mas também nos cursos teóricosde cada carreira) de que forma o estudante

8 Como exemplo de Responsabilidade Social Universitária na América Latina, cite-se a muito interessante experiência chilena Universidad Construye País, queintegra várias universidades em torno de um projeto baseado em uma visão integralde responsabilidade social no âmbito da universidade (cobrindo os aspectos degestão, docência, pesquisa e extensão): http://www.construyepais.cl

9 Vale destacar o fato de os cursos de Proscode (Projeção Social Direito), daFaculdade de Direito da PUCP, constituírem um perfeito exemplo de integraçãoentre a docência e o voluntariado de finalidade social, que pode servir de modelopara o planejamento de novas metodologias de ensino. Ver: http:// www.pucp.edu.pe/unid/facul/derecho/prosode/index.htm

10 Para uma boa análise do método de ensino baseado em projetos, consultar:http://www.sistema.itesm.mx/va/dide/documentos/inf-doc/proyectos.PDF

11 Sem dúvida, estes procedimentos de gestão deveriam ser especialmentereplanejados para a universidade. Será preciso criar, por exemplo, um BalançoSocial Universitário.

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41QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

pode aprender o que tem de aprender fazendocoisas socialmente úteis e formando-se comocidadão informado e responsável. Istofomentará a criação de oficinas deaprendizagem nas faculdades, bem comomaior articulação entre as disciplinas (dada anecessidade de um enfoque multi einterdisciplinar para cuidar dos problemassociais) e entre a docência, a pesquisa e aprojeção social.

3. No que concerne à pesquisa: a meta épromover pesquisa para fins de desenvol-vimento, sob todas as formas possíveis.Por exemplo, uma estratégia possível é auniversidade firmar convênios de confra-ternização com as periferias ou com asregiões rurais e convidar os departamentosresponsáveis pelos diversos cursos adesenvolver pesquisas interdisciplinaresaplicadas a tais localidades. Assim, pes-quisadores e docentes se encontram, traba-lhando sobre a mesma problemática, nomesmo lugar, em suas respectivas especia-lidades, criando, portanto, uma sinergia desaberes, fazendo com que a interdisciplina-ridade deixe, por fim, de ser o “elefantebranco” do qual todos falam, mas queninguém jamais pôde domar e montar.

4. No que concerne à projeção social: a metaé proceder a uma interface com os departa-mentos de pesquisa e com os docentes dasdiversas faculdades, a fim de implementar e

administrar projetos de desenvolvimento quepossam tornar-se fonte de pesquisa aplicada ede recursos didáticos para a comunidadeuniversitária. Deixando para trás a margi-nalização institucional das iniciativasvoluntárias de caráter humanitário, dada afragilidade de seu vínculo com a formaçãoprofissional e a didática universitária, a idéia éconseguir uma integração da projeção socialno âmago da instituição, graças a uma DireçãoAcadêmica de Responsabilidade SocialUniversitária que administre as iniciativasestudantis e docentes e seja capaz de controlarsua qualidade. É desnecessário enfatizar queesta união estreita entre projeção social,docência e pesquisa resultará, sem dúvida, emsignificativo aumento do voluntariadoestudantil, eis que o alunado, durante suaformação, terá podido usufruir os benefícios deum aprendizado baseado em projetos.

A articulação entre as linhas de ação institucional e osdiversos cursos oferecidos em cada universidadedá-se por intermédio dos diferentes tipos de eixostemáticos que o campo do desenvolvimento oferece eque as ONGs e os organismos internacionais inseriramna agenda social: desenvolvimento humano e qualidadede vida, desenvolvimento econômico, desenvolvimentotécnico-científico sustentável, desenvolvimento dacidadania e da democracia, desenvolvimento deaptidões e cultural etc. Tantos temas podem ser dointeresse de todas as carreiras universitárias possíveis,desde as de engenharia até as de artes plásticas,passando pela psicologia ou pela educação.

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42 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

Originalmente concebido com a equipe de trabalho daDapseu, da Pontifícia Universidade Católica do Peru(Pucp), dirigida pelo Dr. Luis Bacigalupo, juntamentecom o autor, o quadro abaixo pode servir de matrizpara formular e avaliar a qualidade e a riqueza deiniciativas vinculadas à Responsabilidade SocialUniversitária, à medida que um projeto consigaabranger o máximo possível das divisões indicadas noquadro, enriquecer e tornar complexos seus compo-nentes. Por exemplo, uma prática profissional deestudantes de educação em um centro educativo deum bairro periférico (componente: docência + desen-volvimento de capacidades) pode desembocar numainiciativa de geração de emprego para jovens(projeção social + desenvolvimento econômico), compesquisa de estudantes de engenharia, em métodosalternativos de coleta e reciclagem de dejetos no bairro(pesquisa + desenvolvimento sustentável), promoção,

pela faculdade de sociologia, de um conselho municipaljuvenil com alunos da referida escola assessorados porestudantes de um curso ligado à carreira (docência +projeção social + democracia), e, finalmente, dar lugara um convênio institucional entre a universidade e ocentro educativo (gestão + desenvolvimento humano+ desenvolvimento de aptidões).

As possibilidades de integração entre as iniciativas deensino, pesquisa e projeção social são quase infinitas.Convém apenas prestar apoio institucional adequadoàs pessoas criativas de cada núcleo universitário eproceder à permanente reciclagem das ações sociaisque visam a aperfeiçoar a formação acadêmica eprofissional da comunidade universitária, como únicamaneira de garantir, a longo prazo, para a comunidade,a dinâmica da Responsabilidade Social Universitária.

Ajuda humanitária, assistência

Desenvolvimento humanosustentável, qualidade de vidae bem estar

Desenvolvimento econômico,geração de emprego

Desenvolvimento técnico-científicosustentável, proteção do meioambiente

Democracia, capital social ecidadania

Desenvolvimento de capacidades,desenvolvimento cultural

EIXOS TEMÁTICOS

LINHAS DE AÇÃO GESTÃO DA DOCÊNCIA, PESQUISA, PROJEÇÃORSU QUALIDADE PEDAGOGIA, PRODUÇÃO DE SOCIAL,

ORGANIZACIONAL, FORMAÇÃO CONHECIMENTO VOLUNTARIADOVIDA INSTITUCIONAL ACADÊMICA

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43QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

4. Diagnóstico institucional: ocurrículo oculto da universidade

Se a universidade demorou tanto (emrelação à empresa privada) em inserir a respon-sabilidade social em sua agenda, foi por múltiplasrazões que não nos cabe detalhar aqui, mas devemossuspeitar, pelo menos, da existência de resistênciasinstitucionais arraigadas, com as quais, sem dúvida,além de exercer liderança, a reforma daResponsabilidade Social Universitária precisa secompor. Neste sentido, um diagnóstico institucionalpara a Responsabilidade Social Universitária é umadas primeiras tarefas a se empreender, levando-se emconta o fato de que:

• nenhuma organização, por sua própriaexistência e por sua maneira de funcionar, éeticamente neutra, mas, ao contrário, levaseus usuários a legitimar uma série decomportamentos e hábitos de vida;

• boa parte destes valores espontaneamentepromovidos não o são de maneira consciente,mas, sim, “velada”, sem a devida relação como discurso público que os dirigentes daorganização utilizam como autodefinição doconjunto.

O conceito de “currículo oculto” é uma ferramenta útilpara saber até que ponto o ensino acadêmico participa(quer dizer, “sofre de” e, ao mesmo tempo, reforça),muitas vezes inconscientemente, da reprodução dasinjustiças e patologias do mundo de hoje – participaçãoque somente se pode negar a partir da ingênua e falsa

autonomia da instituição educacional em relação a seucontexto social.

Apple definiu o conceito de “currículo oculto” como

o conjunto de normas e valores que sãoimplicitamente, mas eficazmente ensinados nasinstituições escolares, dos quais, em geral, não secostuma falar quando da enunciação das finalidadese dos objetivos dos professores.12

Para percebê-lo, é necessário fazer uma análisehermenêutica, quase psicanalítica, dos processoseducativos, a fim de constatar os significados ocultosno que é apresentado nos currículos. Parte-se dacerteza de que todo discurso educativo se baseia emconjecturas implícitas, freqüentemente ignoradas pelopróprio discurso. Daí o currículo oculto revelar-se,sobretudo, nas falhas, nas omissões, nas hierar-quizações, nas contradições e nos desconhecimentosconstatados no próprio currículo oficial e na práticadocente diária, que – supõe-se – o aplica. Ou seja, aexemplo do que se verifica com os desejosinconscientes de uma pessoa, os quais se revelam,antes de mais nada, nos atos falhos do dia-a-dia.

Muito mais do que o conteúdo curricular dosprogramas, a noção diz respeito ao ethos geral, oculto,da instituição acadêmica, bem assim aos aspectos davida cotidiana, tanto administrativa e organizacionalquanto pedagógica, os quais não se encontramabertamente formulados e explicitados, mas existem etêm efeitos, em termos de atitudes e de valoração, quecondicionam o processo normal de aprendizagem dos

12 Apple, M.W. (1986): Ideologia y currículo. Madrid. Akal.

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estudantes. Assim, trata-se de desvelar uma espéciede pedagogia invisível, estreitamente relacionada coma aplicação de rotinas na instituição, rotinasintersubjetivas que legitimam, de maneira sutil e nãotão sutil, preconceitos, valores pouco defensáveis,discriminações etc.

Que valores promove, efetivamente, minha instituiçãoacadêmica na educação dos estudantes? Quecomportamentos e atitudes são estimulados pelocotidiano em minha universidade? Que discriminaçõese hierarquizações atuam silenciosamente nosprogramas e currículos dos cursos ministrados emminha casa de estudos? A busca de coerência moralentre o discurso (as declarações de princípiosreferentes à missão e à visão) e a prática acadêmicae institucional é a meta deste diagnóstico.

Existe uma série de realidades acadêmicas muitocomuns e que promovem o “desensinamento” dosvalores ligados à solidariedade, ao desenvolvimentoeqüitativo e sustentável e à promoção do CapitalSocial. São elas:

• Os “guetos” universitários entre estudantesricos e pobres em países como os nossos,onde, por falta de recursos públicos, as áreasde estudos mais prestigiadas se encontramem caras universidades privadas. A roupa eaté a cor da pele são fatores que permitemaos jovens reconhecer seus pares e atribuirníveis hierárquicos entre universitários deprimeiro, segundo ou terceiro níveis. No caso,a universidade reproduz, por si mesma, afragmentação e a dominação social.

• A metáfora do sujeito isolado, individualista,aculturado e a-histórico, em permanente lutacontra seus semelhantes em um espaçosocial “darwiniano”, como um modelo parapensar a sociedade e a racionalidade dohomo economicus nos cursos dominadospelo “individualismo metodológico” daepistemologia da “economia pura”.

• A verticalidade e o caráter unidirecional daspráticas pedagógicas, em que o “sábioprofessor” transmite sua ciência a “estu-dantes ignorantes”, tendo com estes quedevolver seus trabalhos para serem avaliadosapenas por aquele, a partir do poder que seusaber lhe confere.

• A não transparência e a não participação naorganização e no planejamento da vidaacadêmica e universitária, que faz com que oestudante (e o professor?) não possa, em suacasa de estudos, considerar-se um cidadãoativo, mas apenas um súdito ou um cliente, enenhuma outra opção tenha a não ser aresignação ou o protesto.

• O não contar com uma política de gestãosustentável da instituição, tanto no que serefere à escolha dos administradores quantoao cuidado com o entorno, no dia-a-dia daorganização, a partir de um enfoqueecológico. De que servem os discursos sobreo cuidado com o meio ambiente, se a própriauniversidade não sabe obrigar-se a utilizarpapel reciclado?

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45QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

• A visão geral, do ponto de vista instrumental,da educação superior, considerada essen-cialmente um meio para aprendizagem deuma ocupação profissional e que restringe ocurrículo dos cursos a disciplinas estritamentetécnicas, diretamente vinculadas (ima-gina-se) à especialidade ensinada.

Pode-se constatar que os âmbitos de análise docurrículo oculto são múltiplos e sutis, desde oscontextos sócio-históricos de ordem geral, os símbolossociais associativos, os conteúdos explícitos ensinados,as atitudes dos professores, os detalhes da vidacotidiana universitária etc. Por conseguinte, têm razãoos líderes do movimento chileno da ResponsabilidadeSocial Universitária, intitulado UniversidadeConstruye País”, ao dirigir suas ações a todos osníveis da gestão, da docência, da pesquisa e daextensão universitárias.

Quatro contextos nos parecem decisivos, do ponto devista da pedagogia invisível, para determinar aqualidade dos valores efetivamente promovidos pelaUniversidade:

• Primeiro, o conteúdo e a articulação entre osconteúdos dos programas dos diversos cursosoferecidos pela universidade. Estudar amalha curricular, analisar o saber trans-mitido, permite revelar as omissões e ashierarquizações/discriminações neles ocultase que definem como se valoriza e entende osaber e sua relação com a sociedade.Permite, ainda, expor o problema da trans e

da interdisciplinaridade das profissões ensi-nadas. O enfoque de ética e desenvolvi-mento, por exemplo, ajuda na crítica à falta deinterrelação das especialidades, dos depar-tamentos e das faculdades integrantes dainstituição, bem como a falta de articulaçãoque termina afetando a própria qualidade doprofissional formado e sua capacidade paraentender, de forma global e lúcida, osproblemas relacionados com o desenvol-vimento. Em especial, a análise crítica damalha curricular propicia saber em quemedida o estudante se beneficia com umaformação ao mesmo tempo humanista ecientífica, quer dizer, em que medida ele poderefletir e utilizar seus conhecimentosespecializados em problemas gerais metadis-ciplinares de ordem ética, como os dodesenvolvimento, do futuro do planeta, dademocracia, da eqüidade etc. Isto nãosignifica, necessariamente, que devam serincluídas mais disciplinas humanistas nosdiversos cursos, mas, sim, um espírito lúcido eculto, que saiba questionar o saber, situá-loem diversos contextos e utilizá-lo de modopertinente. Trata-se, aqui, de responder àseguinte pergunta: nosso conteúdo progra-mático permite, de fato, ao estudanteformar-se, do ponto de vista técnico e ético,em enfoques complexos e com uma visãoholística, a fim de ser capaz de refletir sobre aligação responsável de sua profissão com osproblemas relacionados com o desenvol-vimento do país, ou, na verdade, forma

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especialistas que se desinteressam pela áreade sua especialidade, aplicando somente demodo acrítico os conhecimentos queaprendeu, com critérios simplistas em relaçãoà realidade e praticando uma “inteligênciacega?” (E.Morin).

• Segundo, os métodos de ensino e a culturadocente praticada na entidade educacional.Analisar como se transmite o saber minis-trado permite diagnosticar como o estudantese relaciona globalmente com o que aprende.Este aspecto, muito relacionado com oanterior, permite prever como o futuroprofissional se comportará com o saberadquirido, reproduzindo o comportamento deseus professores. Uma relação vertical entreprofessor e estudante, sem possibilidade deintercâmbio simétrico entre as pessoaspresas aos papéis que representam e asfunções hierarquizadas, ensina de modopermanente, ainda que invisível, que o saber éum poder para quem o detém, poder que lhepermite dar ordens aos demais, na qualidadede seu superior, poder que é vantajosoconservar para manter seu próprio statussocial e fonte de reconhecimento. Assim, acultura docente e os métodos pedagógicosempregados (mais ligados ao prestígio dodocente como integrante do “magistério”, oumais ligados ao aprendizado do aluno comomeio para solução de problemas, porexemplo) influem muito no ethos institucionale na ética realmente ensinada. A pergunta é:nossa universidade ensina que o saber écompartilhado entre cidadãos autônomos e

ativos para a melhoria da vida, ou que o saberé um instrumento de poder que outorgaprivilégios aos que o detêm sobre os demais?

• Terceiro, a vida organizacional da univer-sidade, seus estatutos e costumes, seuambiente de trabalho e suas relaçõesinterpessoais. Permite analisar até que pontoa comunidade universitária atua como umapequena democracia ou, ao contrário, comouma sociedade hierarquizada, autoritária, semtransparência, nem diálogo, servindo,portanto, de modelo de vida coletiva para oestudante. Em conseqüência, pode-seperceber que tipo de capital social permeia osestudos dos jovens e de que forma é ou nãoreconhecida sua condição de cidadãos ativosno âmbito da vida universitária. Em particular,é preciso diagnosticar em que medida auniversidade facilita as iniciativas estudantis(voluntariado e atividades de promoção davida universitária) e os torna partícipes dasdecisões que os afetam diretamente. Apergunta é: nossa universidade, em seu fun-cionamento diário, forma, de fato, estudantescidadãos iguais e responsáveis, que amam ademocracia e podem tornar-se líderes dodesenvolvimento de seu país, ou, na verdade,profissionais egocêntricos, atomizados,acostumados a relações hierárquicas e queentendem a vida comum em termos de lutapelo poder, de dominação e de autoritarismo?

• Quarto, a autopromoção produzida pelauniversidade, visível tanto em suas cam-

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bom!) da instituição e promovem vazioséticos como “o êxito”, “ser o melhor”,“destacar-se” etc. A pergunta é: nossauniversidade, por meio de suas campanhaspublicitárias, sua autopromoção e seusvalores, promove uma visão da sociedadecomo um “lar comum”, em que todosdependem de todos, bem como uma visão dosignificado da vida e da formação humana,em termos da participação solidária do serhumano como agente do desenvolvimentosocial, ou, ao contrário, promove arepresentação da sociedade e do outro14 emtermos darwinianos de luta e competência eentende o sentido da vida do ser humanocomo a busca individual do êxito pessoal,apesar de, e muitas vezes, fazê-lo emdetrimento dos demais?

O estudo desses quatro aspectos essenciais, ou seja,“Que saber é transmitido?”, “Como se transmite?”,“Em que ambiente geral se transmite?” e “Comorepresentamos a nós mesmos transmitindo-o?”, assimcomo o emprego de procedimentos de pesquisasociológicos e psicológicos idôneos, deve permitirresponder à pergunta nuclear: que ética, que forma devida e valores transmitimos realmente a nossosestudantes? Na diferença entre o currículo prede-terminado (tal como proclamado pela instituição) e ocurrículo realmente aprendido pelo estudante (talcomo se forma pela instituição), encontra-se o

panhas publicitárias, em suas estratégias demarketing, quanto nos símbolos que seusintegrantes imaginam e instituem como formade identificar-se e distinguir-se das demaisuniversidades do entorno. Os símbolos e asrepresentações imaginárias sociais sãoconstitutivos da legitimidade e existência detoda instituição social, a exemplo do que nosensinou Castoriadis13. Nenhuma instituiçãohumana pode deixar de autopromover-se e,desta forma, representar seu entorno,qualificar e julgá-lo. É preciso entender queesta espécie de “clausura simbólica”organizacional instituída por uma univer-sidade como esta e não outra, e com umdeterminado “afeto” em relação a seusintegrantes (esta emoção especial, indes-critível, produzida por pertencer à instituição),é de suma importância para a cultura e oshábitos (o ethos) que seus integrantesassumem e reproduzem, eis que determina otipo de reconhecimento social que irãovalorizar e buscar no futuro. O enfoque daResponsabilidade Social Universitáriapermite valorar a qualidade ética dossímbolos e ideais que os integrantes de umainstituição acadêmica produzem e repro-duzem, na condição de membros dela e comoseres sociais em geral. Permite tambémfiscalizar e questionar campanhas publi-citárias discriminatórias ou reducionistas queconflitem com o discurso “oficial” (sempre

13 Cf. C. Castoriadis (1997): El avance de la insignificancia, Ed. Eudeba, Bs. As.

14 Esta definição do “outro” estrutura o vínculo social: o outro é aquele que limitaminha liberdade ou, ao contrário, a permite e a expande até o infinito? Eis uma belapergunta para um debate com nossos alunos.

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currículo oculto (aquele que, sem que se saiba, étransmitido na instituição), que precisamos conhecer econtrolar na medida do possível.

A universidade não poderá escapar desse dolorosoauto-exame, caso tenha que tornar-se responsável porsi mesma e por seu impacto social em nosso frágilentorno latino-americano, continente que continuasendo o mais desigual do mundo e no qual ademocracia, lamentavelmente, ainda não conseguiuconvencer totalmente as pessoas.

Queremos destacar o fato de que a “projeção social” ea “extensão universitária” não nos parecem representarárea tão decisivas (apenas secundárias) para seremestudadas no contexto da problemática do ethosuniversitário oculto. Isto, por tratar-se, justamente, de“extensão”, de “projeção”, ou seja, de apêndices, quenão são, em geral (e infelizmente), fundamentais nofuncionamento da instituição, mas, ao contrário, podemservir facilmente de máscara de responsabilidadesocial, para melhor esconder uma formação básicavoltada para a promoção de um profissionalindividualista em um contexto “darwiniano”. Apropósito, e recordando que a análise do currículooculto se parece com um trabalho psicanalítico deestudo dos esquecimentos, dos atos falhos, dasdiscriminações dissimuladas, é preciso desconfiar umpouco das boas ações solidárias (muito divulgadas)empreendidas com base na projeção socialuniversitária, sobretudo se demonstrarem uma relaçãobastante frágil com os cursos e métodos de avaliaçãodos estudantes. Ou seja, um diagnóstico dos problemaséticos de uma universidade não pode deixar-se seduzir,necessariamente, por esse tipo de atividades com fins

sociais. “Projeção social e extensão universitária”seriam melhor utilizadas se voltadas para a solução dosproblemas éticos no ensino universitário, caso sequeira, de fato, um ensino fundado em projetos dedesenvolvimento.

5. Responsabilidade socialuniversitária: um novo contratosocial para a universidade

Por fim, para esboçar a visão de longoprazo que se deseja instituir com a ResponsabilidadeSocial Universitária, queremos apresentar algumasidéias que poderiam servir de modelo para o desenhode um novo “contrato social” entre a universidade e asociedade. Os diversos aspectos que sugerimos paraeste “novo contrato social” pretendem apenasestimular a própria reflexão e nutrir o debate entreacadêmicos, dirigentes universitários, estudantes esociedade civil. Convém que cada universidade e cadagrupo docente planejem sua próprias atividades, emfunção de suas próprias identidades e de seuespecífico contexto social.

Desejamos propor três grandes eixos para este novocontrato social universitário:

• A responsabilidade social da ciência;

• A formação visando à cidadania demo-crática;

• A capacitação para o desenvolvimento.

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49QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

Estas, a nosso ver, parecem ser as novas eimprescindíveis propostas para superar a criseinstitucional, dar novamente um sentido histórico àaventura universitária e promover uma verdadeiraResponsabilidade Social Universitária. Ressalte-seque, nos últimos tempos, certas universidades vêm, dealgum modo, e espontaneamente, fomentando taismudanças. Mas agora deveríamos buscar umconsenso mais amplo, a fim de poder “firmar”oficialmente esse “pacto social” com a sociedademoderna latino-americana.

5.1 Garantir a responsabilidade socialdas ciências

É preciso reconhecer que, até agora, apósdois séculos de desenvolvimento da democraciamoderna, temos fracassado no controle do poder dastecnociências, o que tem resultado, entre outras coisas,nos problemas ecológicos globais que todo o mundoconhece e no incremento do poder tecnocrático,menos visível, mas bastante perigoso para ademocracia. A ciência jamais foi neutra, mas nunca foimenos neutra como agora. Historicamente, a ciênciamoderna nasceu e se desenvolveu na Europaocidental, contra o Estado aristocrático e suavinculação ao dogmatismo religioso. Hoje em dia, noentanto, já não se trata de proteger as ciências contra oEstado, mas, ao contrário, de proteger o Estado, asociedade e o planeta contra o perigoso poder dasciências. A exemplo do que há décadas vêm fazendomuitos outros intelectuais, K.O. Apel nos advertesobre a “urgente necessidade de novos fundamentos

racionais, filosóficos, da ética, na era da ciência”15.Isto, porque, pela primeira vez, desde o surgimento dohomo faber, a atividade humana é capaz de suprimir,definitivamente, toda ação futura.

Essa nova visão que o homem tem de si mesmo e deseu poder – precisamente do poder de seu saber –implica nova definição da responsabilidade em umaescala planetária, que não pode, simplesmente, serconcebida no contexto da moral tradicional vigente. Asciências são o ponto arquimédico* desta éticaplanetária: de fato, são elas que inventam os novosproblemas da agenda ética (poluição, riscos da energianuclear, manipulações genéticas etc.), mas, ao mesmotempo, elas são necessárias para solucionar taisproblemas. Portanto, é preciso submeter a atividadecientífica a um controle moral, social e político. Asociedade democrática precisa recuperar o podersobre a produção e o uso do saber tecnocientífico,controlar o destino da ciência, agora intimamenteligado ao destino da humanidade16. E, do ponto de vistaético, não é justo que os afetados pelo progressocientífico (ou seja, todos nós) não possam opinar sobre

15 K.O.Apel (1980). Notwendigkeit, Schwierigkeit und Möglichkeit einerphilosophischen Begründung der Ethik im Zeitalter der Wissenschaft, em Libro dehomenaje a Constantino Tzatzo, Atenas. Tradução castelhana em Estudos Éticos,Barcelona, Alfa,1986.

* (N. da T) - Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (ABL, 1998). Tb.utilizado o termo “arquimediano”, em O Novo Aurélio – Século XXI (Ed NovaFronteira – 1999).V.tb. Google (Internet), referência de busca Descartes e o pontoarquimediano: “Descartes busca o ponto arquimédico, o ponto seguro que poderiaservir de fundamento à construção de um sistema válido de filosofia”.

16 Logicamente, a situação social das ciências, hoje, não pode, em termos razoáveis,nos levar a temer um impedimento do avanço científico por culpa desse controlecidadão. Já não nos encontramos em situação idêntica à do século XVI. Somentegrupos muito marginalizados (pouco atuantes no debate) poderiam desejar umainterrupção unilateral da pesquisa científica.

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50 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

decisões fundamentais que comprometem sua vida eseu futuro. Um lugar estratégico para instituir epromover a responsabilidade social da ciência éjustamente a universidade, por ser o local deconvergência entre a produção do saber científico(pesquisa), a reprodução deste saber (transmissãodos conhecimentos e formação dos cidadãosprofissionais que socializam as ciências e tecnologias)e a informação à opinião pública sobre o trabalhocientífico (a universidade é um espaço social aberto aodebate público).

Isso implica reconhecer não haver nenhuma desuniãoentre ciência, ética e política – nunca houve – e que,portanto, a atividade científica é uma atividade socialcomo qualquer outra (nem neutra, nem inocente) eque, mais que qualquer outra, necessita, hoje, sercuidadosamente pensada e decidida, por envolvertodos os cidadãos do mundo e a mesma biosfera. Paratanto, faz-se necessário o gigantesco esforço deinformação cidadã acerca das mudanças, potencia-lidades e riscos das descobertas tecnocientíficas, paraque a vigilância cidadã da ciência possa trans-formar-se em algo real e racional. Não cabeunicamente ao Estado levar a cabo esta tarefadiretamente, tampouco aos meios de comunicação,mas, sim, à universidade (tanto particular quantopública), em seu duplo papel de produtora de ciência eeducadora do indivíduo, articulando seus esforços coma sociedade civil, as empresas e o setor público.

A universidade tem a responsabilidade social depromover o debate, como também de facilitá-lo,conduzi-lo e enriquecê-lo, propiciando ao públicocidadão os meios para informar-se, proceder a

reflexões e julgar e, às empresas, os conhecimentosadequados à aplicação de sua própria responsabilidadesocial. O pluralismo e a racionalidade dos acadêmicospodem servir de garantia a que esse debate seja o maistransparente e livre possível. A organização deconferências, mesas-redondas, seminários, em que sereúnem cientistas comprometidos com a divulgação,de forma compreensível, dos resultados de suaspesquisas, assim como estudantes e o público em geral,é o modelo dessa Responsabilidade Social Univer-sitária para a culturalização científica da cidadania e aculturalização cidadã da ciência. Obviamente, precisaser complementado com atividades estratégicas, dedifusão da informação científica pertinente e decontínua capacitação das pessoas com vistas àcompreensão crítica da atividade científica.

O contrato social aqui referido coloca, pois, auniversidade em uma nova posição. Já não tem quedefender a ciência contra o Estado, mas, sim, asociedade contra ou com a ciência, assumindo, porconseguinte, um novo papel público, isto é, o de zelarpelos interesses sociais na própria atividade científica.

5.2 Promover a capacitação dacidadania democrática

Outro grande fracasso da democraciamoderna foi também sua incapacidade de transmitir àspessoas o uso racional de seus direitos cidadãos. Apartir da publicação da primeira Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão, em 1789, os direitoshumanos não têm deixado de fortalecer-se no mundo,mas os direitos do cidadão não progrediram. Em

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muitos casos, o que há, hoje, é uma certa redução daatividade cidadã à simples dimensão pontual do direitode votar, com muito pouco controle sobre a seleçãodos candidatos, dos processos eleitorais cada vez maisonerosos e contaminados pela ação dos meios decomunicação, bem assim sobre o cumprimento doprometido pelos eleitos. Quando se passa daproblemática nacional para a problemática mundial, emque importantes decisões são tomadas sem nenhumpoder de fiscalização pelos respectivos povos, asituação torna-se, inclusive, dramática, no que serefere aos direitos da cidadania. A vida cotidianarestringe-se apenas, para o cidadão-consumidor, ameras atividades de serviços e produtos privados epúblicos, tendo ele, apenas e simplesmente, o direito dequeixar-se e “fazer valer seus direitos”, mas sempossibilidade de orientar e controlar o futuro da vidacomum, quer dizer, sem possibilidade de exercer, defato, a cidadania autônoma enquanto tal. O ato deopinar, foi confiscado, desde há muito tempo, pelasagências de pesquisa que, por um lado, atomizam osindivíduos, reduzidos unicamente à opinião particularque emitem de imediato e, por outro, controlam,mediante a manipulação dos assuntos e das perguntasobjeto das pesquisas, o tipo de respostas possíveis.Estamos muito longe de atuar politicamente com vistasà formação de uma opinião pública inteligente, comum,baseada em debates, tal como se sonhava no “Séculodas Luzes”.

Contudo, essa atividade cidadã de fomento de umaopinião pública inteligente não é imediata. Implicaformação, informação, capacidade de opinar, diálogo,raciocínio, decisão, militância, enfim, toda uma série deatividades humanas racionais, públicas e políticas, que

não são naturais, mas complexas, necessitando decerta aprendizagem, ou seja, aprendizagem ao mesmotempo livre (do contrário, não terá sentido) e comum(senão, será ineficaz)17. Um dos espaços sociais maispropícios à obtenção desta formação de cidadãosadultos e responsáveis é a universidade.18. É umespaço privilegiado para a formação cidadã, para oenriquecimento da capacidade de reflexão e de tomardecisões de forma sensata, em um mundo no qual amaioria dos meios de comunicação tem demonstradosua incompetência em fazê-lo, por não ter nem avontade, nem a independência de critérios diante dopoder econômico e do poder político, nem suficienteconhecimento, nem a capacidade formativa própriados docentes universitários. Curiosamente, concluímosque, em nossas sociedades ditas democráticas, faltaum verdadeiro espaço público de aprendizagem eexercício da cidadania.

A tarefa específica de formar cidadãos informados,capazes de refletir e de dialogar, significa, obviamente,que a universidade precisa abrir-se muito mais àeducação do adulto, à formação continuada e à criaçãode espaços cidadãos de debate e de reflexão,instruídos sem ser especialistas (cultura humanística enão cultura científica). Esta meta de ResponsabilidadeSocial Universitária – repita-se – se vê, em parte,alcançada em todos os congressos e semináriosabertos ao público, mediante breves, simples e

17 A falta de uma instituição social que cumpra esta tarefa explica por que os direitoshumanos são tão promovidos, enquanto os direitos de cidadania têm tão poucapromoção: não é preciso aprender a ser humano, mas, sim, a ser cidadão.

18 A escola primária e a secundária são essenciais à formação cidadã do jovem, massomente a universidade tem condições de preparar, nos debates políticoscomplexos, adultos com direito a voto e com responsabilidade jurídica.

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sintéticas palestras feitas por experts comprometidosem difundir a informação pertinente e útil para acidadania. Falta, porém, incluir a meta da educação dacidadania na política institucional das universidades eno currículo de suas diversas áreas de estudo.

Por certo, poder-se-á objetar que confiar à univer-sidade a tarefa de formação cidadã de seus estudantese, mais que isto, de sua sociedade, é correr o risco defazê-la cair no ativismo político e no doutrinamento deseus estudantes. Este temor é legítimo, mas acredi-tamos que é justamente a atual situação de pseudoneutralidade universitária que constitui, considerada aperspectiva do currículo oculto, o pior tipo de ativismopolítico (porque dissimulado) e a pior forma de doutri-namento (porque invisível e negado). Ao contrário, umespaço aberto e declarado de debate cidadão sobre osproblemas sociais da agenda não tardará em propiciara denúncia dos desvios, das tendências e intenções de“recuperação”. Toda a estratégia responsável dauniversidade precisa atentar para os procedimentos daformação e dos debates cidadãos, quer dizer, aimplementação do “espaço público” do debate, amesma dinâmica, permitindo, desde logo, que osargumentos mais universalizáveis, cheguem, com otempo, a um consenso majoritário. A única coisa quedevemos temer, neste sentido, é a promoção de umauniversidade onde se declare: “aqui não se faz política,apenas formação científica”. Na verdade, esta é amais perigosa posição política possível, posiçãopositivista cientificista que, negando ser uma“posição”, do alto de sua pretensa neutralidadeaxiológica, impede, de antemão, qualquer crítica contraela, remetendo-nos ao primeiro perigo mencionado, ouseja, o de uma atividade científica não fiscalizada.

5.3 Educar o estudante como agentedo desenvolvimento

O terceiro grande fracasso da democraciamoderna é de ainda não haver podido suprimir osprivilégios sociais, reduzir as grandes iniqüidades egarantir uma qualidade de vida decente eautonomamente decidida para a maioria da populaçãomundial, dentro do respeito às diferenças culturais. Ademocracia avança, mas a pobreza e a injustiçacontinuam presentes. Entretanto, os últimos estudossobre eficientes processos de desenvolvimentotendem a ressaltar a importância do capital humano edo capital social nas experiências bem sucedidas19.Não é utopia, portanto, pensar que o principal pilar deum desenvolvimento sustentado e sustentável seja aformação dos profissionais com um enfoque dedesenvolvimento social. Tudo o que nos falta é osentimento de urgência para que esta meta reorienterapidamente a atual formação acadêmica, centradaem uma profissionalização que instrumentaliza oestudante e o docente, desvinculando-os da vidacomum, fazendo-os ansiar pelo patético “êxitopessoal” da sociedade de consumo.

A universidade joga, aqui, mais uma vez, um papelcentral. Sua responsabilidades social deve ter osentido de orientar a formação geral e especializadado estudante, com vistas à promoção dodesenvolvimento justo e sustentável, criando, assim,um novo perfil do estudante universitário:

19 Consultar, no caso, a biblioteca digital do programa Iniciativa Interamericana deCapital Social, Ética e Desenvolvimento, do BID (www.iadb.org/etica) e, emparticular, os trabalhos de B. Kliksberg.

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53QUE SIGNIFICA RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA? FRANÇOIS VALLAEYS

• Preocupado com as injustiças existentes emseu redor e com vontade de comprometer-secom ações concretas. Um estudante quetenha tido condições de desenvolver suaprópria capacidade solidária em atividades devoluntariado de iniciativa da universidade.

• Informado, capaz de contextualizar seu saberespecializado, visando à solução dosproblemas cruciais de sua sociedade.

• Capaz de escutar, trocar idéias e ter empatiacom o outro, ou seja, que tenha podidobeneficiar-se com experiências sociaisformativas, em nível emocional. Umestudante formado na ética do diálogo.

• Promotor da democracia e da participação,que sabe ser cidadão, isto é, que “sabegovernar e ser governado”, como diziaAristóteles.

Sem dúvida, isto faz com que a universidade sejaobrigada a instituir a problemática do desenvolvimentocomo tema transversal prioritário em todos os cursos eprover-se de todos os meios para formar seusprofessores sob tal enfoque, reintegrando os saberesno âmbito da solução dos problemas do desenvol-vimento. Também a obriga a uma nova relação, ao:

• Integrar a cultura humanista à culturacientífica, sendo que a primeira é a quelhe dá sentido, sintetiza, posiciona e zela pelasegunda.

• Formar equipes de docentes e pesquisadoresem comunidades capazes de submeter-se auma autoaprendizagem interativa, com baseem problemas complexos.

• “Desidolatrar” o saber, transmitindo aoestudante não apenas o dado informativo,mas, sim, informando-o sobre como chegar aesse dado, ou seja, ensinando-o a conhecer oconhecimento.

• Reconhecer a diferença entre informar eformar: a informação já não é privilégio dosexperts e professores na hora do “google.com”. O fato é que a Internet não é umauniversidade.

O novo contrato social conduz a novas relações na salade aula ao:

• Incentivar uma cultura docente maisdemocrática, visando a facilitar a auto-aprendizagem do estudante20.

• Promover novas técnicas pedagógicas, comoa Aprendizagem Baseada em Problemas(ABP) a aprendizagem lúdica e a aprendi-zagem baseada em projetos.

20 V. artigo La universidad como espacio de aprendizaje ético, de Miguel MartinezMartín, Maria Rosa Buxarrais Estrada e Francisco Esteban Bara: http://www.campus-oei.org/valores/monografias/monografia03/reflexion02.htm

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• Organizar a aula como um espaço social quepode ser, em grande parte, confiado aosestudantes, a fim de se responsabilizarem porsua autogestão.

• Combinar o trabalho presencial com o usodas tecnologias de informação e comu-nicação (TICs) e a aula virtual etc.

5.4 Boas razões para subscrever estecontrato social

Muito boas razões nos levam aconvencer-nos a firmar este novo contrato social entreuniversidade e sociedade.

Se a sociedade não firma este contrato social,condena-se a perder, pouco a pouco, a democracia, embenefício do poder tecnocrático dos experts. Aespecialização e a complexidade cada vez maior dasdiversas esferas da vida pública dificultam cada vezmais, para os eleitores, entender quais são as soluçõesrazoáveis e eficazes para os problemas sociais epolíticos existentes. Se a política se transforma emassunto de especialistas e experts, é óbvio que não épossível, de modo racional, incumbir um povo“ignorante” de eleger os experts sábios que deverãozelar pelo bem público. Se não existe uma “instituiçãoponte” entre a sociedade civil e a administração da“coisa pública” (República) capaz de vedar, de algumaforma, a brecha e educar o cidadão, o próprioparadigma da democracia representativa está emperigo.

Se a sociedade não firma este contrato social,arrisca-se a continuar com a desestabilidade socialque, em certas situações de crise, pode gerarmovimentos populares irracionais, obscurantistas emuito violentos, que facilmente derrubam ademocracia, sempre frágil. Daí por que asdemocracias de hoje não podem dar-se ao luxo (alémdo mais, imoral) de ter um povo “ignorante” na era datecnociência e da globalização. Não só existemargumentos econômicos contrários, mas tambémpolíticos e geoestratégicos. Não nos esqueçamos deque no próprio país de Kant e Humboldt o povofanatizado colocou-se sob as ordens de um Führer; quea Iugoslávia desmoronou sob as eclosões incon-troláveis do ódio racista; que nossos povos famintos daAmérica Latina, não poucas vezes, aplaudiram golpesmilitares que sepultavam a democracia; que, no Peru,um movimento terrorista tão sangrento como oSendero Luminoso nasceu da marginalização ediscriminação social de pequenos universitáriosprovincianos mal formados. Há que existir umainstituição, um lugar de formação e auto-aprendizagempara o debate público e a expressão pacífica, maseficaz, dos problemas sociais e políticos, um espaço deformulação de propostas de progresso socialconsensual, que tenha um papel fundamental deregulador das tensões sociais, mediante a reflexão, aargumentação e a descoberta de soluções adequadasao desenvolvimento eqüitativo e sustentável.

Se a sociedade não subscreve este contrato social,arrisca-se a perder, globalmente, o controle sobre seufuturo, em decorrência de uma atividade técno-científica descontrolada, sem limites e que aliena,sistematicamente, o poder político, incapaz de tomar a

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iniciativa no planejamento de políticas públicas, se nãoapenas capaz de administrar, a duras penas, os novosproblemas que a tecnociência acelerada inventa todosos dias. Arrisca-se a perder o controle cidadão sobreas medidas globais necessárias à manutenção dosgrandes equilíbrios ecológicos. Não nos esqueçamosde que o controle ecológico do planeta não precisa,necessariamente, ser exercido no âmbito dademocracia. Uma ditadura ecológica mundial éperfeitamente pensável a priori. É necessário instituiruma responsabilidade social da ciência capaz deprevenir e controlar os riscos futuros desta ou daquelaaplicação tecnológica.

Se a sociedade tem interesse em firmar o contratosocial, é óbvio que a universidade também o tem, pelasmesmas razões. Na realidade, trata-se de dotar a atualorganização social de um sistema imunológicopensante, que possa relacionar ciência com culturahumanista e democracia participativa, fomentando,assim, uma cultura geral de paz e de desenvolvimentoeqüitativo e sustentável.

Além do mais, esta nova função social permitirá àuniversidade reencontrar o significado e a legitimidadesociais perdidos desde que entrou em crise oparadigma de Humboldt. Assim, terá como escapar doperigo de tornar-se mera instituição mercantil decapacitação profissional, além de reencontrar-se como interesse estudantil, mediante novos enfoques emétodos de ensino; reequilibrar seu papel político,dividido entre a revolução e a submissão; reequilibrarsua relação com seu entorno social, abrindo-seamplamente à sociedade civil, não para adaptar-se aela, mas, sim, para prepará-la culturalmente, segundo

seus valores e princípios endógenos. E, talvez o maisimportante, reencontrar um ethos legítimo paraprosseguir inventando-se em seu segundo milênio deexistência.

Assim, o novo contrato social entre a universidade e asociedade poderia ser formulado nos seguintes termos:Tu, sociedade, me garantes autonomia e recursos e eu,universidade, te dou mais democracia, por meio daformação de estudantes e cidadãos responsáveis, maisciência responsável, lúcida e aberta à solução dosproblemas sociais da humanidade e melhor desenvol-vimento, eqüitativo, inovador e sustentável, comprofissionais competentes e comprometidos.

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RESPONSABILIDADE SOCIALUNIVERSITÁRIA: UMAEXPERIÊNCIA INOVADORA NAAMÉRICA LATINA

MÓNICA JIMÉNEZ DE LA JARA1

JOSÉ MANUEL DE F. FONTECILLA2

CATALINA DELPIANO TRONCOSO3

1. Contexto e desafio

O século XXI chegou com grandesmudanças. Todos sentem o chão vibrar. A isto pode-sechamar globalização do mundo, fim da modernidade,advento da sociedade de informação ou de uma novacivilização. O fato é que entramos em uma zona deturbulências, com áreas que nos são desconhecidas.

1 Assistente Social pela Pontifícia Universidade Católica do Chile; mestre emEducación para el Trabajo Social, da Catholic University of América,Washington, D.C; Tutoria em Ontologia; reitora da Universidade Católica deTemuco; presidente do Diretório e fundadora da Corporación Participa; membro doDiretório e fundadora da Corporación Aprender; diretora do ProjetoUniversidad Construye País. [email protected]

2 Formado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile; doutor emTeologia do Centro de Estudos Superiores (CES) de Belo Horizonte, Brasil;graduado em Capacitación y Desarrollo pela Faculdade de Administração eEconomia da Universidade de Santiago do Chile; tutoria em Ontologia; consultorda Corporación Participa e coordenador executivo do Projeto UniversidadConstruye País. [email protected]

3 Assistente Social pela Pontifícia Universidade Católica do Chile; graduada emParticipación Ciudadana y Gestión Ambiental, pela Universidade AlbertoHurtado – Casa de la Paz; chefe de projetos da Corporación Participa e doProjeto Universidad Construye País. [email protected]

Esse fenômeno tem afetado as sociedades em geral, jáque sua própria estrutura vem se modificando, em suamaneira de organizar o trabalho, o poder e a cultura. Aeconomia baseada em conhecimentos e as redes deinformações em torno das quais ela se articula, passama ser parte do futuro, estando presentes nassociedades mais desenvolvidas e nas áreas avançadasda América Latina.

As universidades não estão isentas dessas turbu-lências. O saber e o “saber fazer” são agora geradosem muitos pontos, na maioria das vezes no âmbito deespaços de aplicação e solução de problemas. Destaforma, as tradicionais atividades acadêmico-disciplinares vêem-se suplantadas por novas práticasde conhecimento.

A sociedade chilena encontra-se igualmente emprocesso de permanente evolução, que se manifestanas diversas facetas da vida das pessoas. Há umaspecto positivo, qual seja, o de que o país conta com

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um modelo de desenvolvimento econômico que há,aproximadamente, quinze anos vem sendoimplementado de uma forma técnica e politicamenteconsensual, controlado e bem sucedido, inserido ereconhecido no âmbito da economia mundial. Talcrescimento é constantemente comprovado nas cifrasmacroeconômicas, sendo também perceptível na vidada população, que tem maior acesso a bens e serviçosde melhor qualidade.

Todavia, constata-se, que a melhoria dos padrões devida e de desenvolvimento econômico pouco tem a vercom o compromisso das pessoas e com a identificaçãodestas com o resto do país. Percebe-se uma falta devisão e de sentimento por parte das pessoas no sentidode considerarem-se parte de uma mesma sociedade,na qual uns dependem dos outros; de perceberem queo bem comum é algo desejável e atrativo e deconseguirem ser protagonistas do próprio desen-volvimento do país. Tudo isto, com o tempo, podecolocar em perigo a sustentabilidade da melhoria e dodesenvolvimento alcançados.

Por outro lado, e de forma positiva, percebe-se agestação, no Chile, de um novo tipo de sociedade, quetem tido boa receptividade em diversos setores, quedela cuidam, ajudando a desenvolvê-la. Foi-setomando consciência de que os grandes problemas queenfrentamos, como a pobreza, a desigualdade social ea marginalização, não podem ser resolvidos por umúnico ator da sociedade, isto é, de que é preciso que oEstado, o setor empresarial e a sociedade civil se aliempermanentemente, para que tais flagelos sejamsuperados. Ao mesmo tempo, quando se pensa nacriação de uma cultura democrática e na preservação

dos recursos naturais e no cuidado com o meioambiente, surge a necessidade de contar com aparticipação de cidadãos comprometidos, socialmenteresponsáveis, integrantes de organizações da socie-dade civil, do empresariado e do Estado.

Nota-se uma crescente superposição entre o público eo privado. O Estado vem cedendo espaços àquelessetores desejosos de atuar publicamente, desdeorganizações da sociedade civil ao empresariado,havendo, ainda, aqueles capazes de seguir adiante, embusca de novas situações, onde o direito e aresponsabilidade social sejam importantes.

Realiza-se intenso e novo debate relativamente àresponsabilidade social: surgem novos atores, que sealiam aos antigos para discutir os problemas, além denovos paradigmas, que animam a ação. De uma açãocentrada na caridade, passou-se para uma ação cidadãbaseada na justiça, nos “direitos e deveres” e na“necessidade” que temos uns dos outros. Aceita-seque somos interdependentes, que existe a necessidadedo outro, bem como a importância de consolidar ocompromisso entre as pessoas, a fim de alcançar umdesenvolvimento humano para todos e para cada umde nós.

Um dos novos atores que acabamos de mencionar é aempresa. No caso, uma empresa cidadã, que aja cominteligência e responsabilidade social e que, ao fazê-lo,adquira legitimidade social, credibilidade e obtenha aconfiança da comunidade local. É uma empresa que sepreocupa com seu ambiente imediato, com suacomunidade local e que também se interessa pelosproblemas globais de desenvolvimento social e

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59RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA:UMA EXPERIÊNCIA INOVADORA NA AMÉRICA LATINA

MÓNICA JIMÉNEZ DE LA JARAJOSÉ MANUEL DE F. FONTECILLACATALINA DELPIANO TRONCOSO

cultural. É uma empresa que, logicamente, oferecepostos de trabalho, paga salários justos, preocupa-secom a qualidade de vida de seus trabalhadores e geraidentidade em função de sua responsabilidade social.

Faz-se necessário, também, levar em conta ofuncionário público, cuja concepção é a de que seutrabalho é o de um cidadão que se encontra a serviçode outros cidadãos. A atenção aos usuários dosdiversos serviços vem mudando em termos dequalidade. Admite-se que o usuário é um cidadão comdireitos e deveres, eventualmente um contribuinte que,com seus impostos, ajuda a manter o Estado; umeleitor que com seu voto contribui para eleger asautoridades do país; um beneficiário de programassociais que tem direito à assistência do Estado paraminimizar sua pobreza e resolver os problemas sociaisque o afetam. Este funcionário é socialmenteresponsável, à medida que melhora a qualidade doserviço que presta aos cidadãos e abre-se a relaçõesde trabalho com outros atores socialmenteresponsáveis, da sociedade civil ou da empresa.

Outro ator é o cidadão, ou a cidadã, que participaativamente de organizações da sociedade civil.Cidadão que se associa a outros que, da mesma formaque ele, tem finalidades altruístas e dispõe-se a dedicartempo, dinheiro e capacidade profissional para resolverproblemas sociais de pobreza, desnível social,insegurança cidadã, além de questões relacionadascom o meio ambiente e com a defesa dos direitos deconsumidores e de pessoas ameaçadas de váriasmaneiras em sua dignidade e integridade pessoal.

Cidadão que, voluntariamente ou de forma remu-nerada, dedica parte de sua vida a servir aos demais eà causa pública. Este tipo de cidadão encontra-se nadireção de Associações de Moradores, de Associaçõesde Consumidores, de Defesa do Meio Ambiente, bemcomo em fundações e entidades dedicadas aoatendimento de problemas sociais e voltadas paradiversos grupos e setores. Este cidadão é socialmenteresponsável, a partir de sua ação na sociedade civil.

Vem surgindo uma nova ética, altruísta, dereciprocidade, de responsabilidade social, ou uma novaforma de contrato social em que se aceita nossainterdependência?

Será que entendemos que o êxito de nosso negóciodepende das condições sociais que o cercam?

Será que se está entendendo o conceito de inves-timento social e que, portanto, interessa trabalhar parao futuro, que a sustentabilidade do desenvolvimentopassou a ser um valor social? Estaremos aceitandonossa cidadania, que nos torna responsáveis pelo paísem que vivemos e nos convida a agir individualmente ejuntamente com outros, a fim de contribuir para asuperação da pobreza, zelar pela convivência e pelomeio ambiente e desenvolver uma cultura demo-crática?

Desses dilemas e de outros surge a motivação dapresente iniciativa, cuja intenção é, precisamente,colaborar para a construção desse novo tipo desociedade, no Chile, guiada pela:

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60 ESTUDOS 36 JUNHO DE 2006

• Ética da responsabilidade: em que nós,cidadãos, nos concebamos como sujeitos dedireitos e deveres. Cada um de nossosdireitos traz, como contrapartida, a responsa-bilidade ou o dever. Ao mesmo tempo, enten-demos não estarmos sozinhos no mundo.Vivemos com outros que também têmdireitos e responsabilidades. Juntos forjamoso tecido social, as relações que nos articulame que nos permitem conviver com base natolerância e no respeito à dignidade de cadaum. A reciprocidade nos convida ao plura-lismo, à aceitação das diferenças e também àrealização de ações de justiça social.

• Ética da cooperação: a maior complexi-dade gerada pelo processo de globalizaçãoaumenta a necessidade que uns têm dosoutros. Os problemas têm melhores soluçõesquando deles participam diversos atores. Daparticipação surgem idéias, que aperfeiçoamas decisões e a ação. Entende-se sermosdiferentes observadores do mundo e que asdiversas perspectivas enriquecem a ação.Urge nos associarmos, conversar com outros,manter relações afetuosas e tambémoperacionais, por meio do trabalho e daconvivência social em geral.

• Ética da generosidade e do altruísmo: énos reconhecermos portadores de virtudes eriquezas, estruturando relações baseadas nosprincípios da vida. Descobrir que o ciclo dodar e receber conclui-se com uma novadoação, mediante a qual o outro adquire uma

dimensão de questionamento e interpelação,que nos leva a reagir ao seu olhar, que nosprovoca ação, que nos compromete a daruma resposta à sua pergunta.

A partir desta reflexão é que se elaborou o projetoUniversidad Construye País, com vistas a expandir oconceito e a prática da responsabilidade social nosistema universitário chileno.

Decidiu-se situar o projeto nas universidades, nasuposição de que no âmbito da sociedade civil há umconjunto de atores que se destacam de modo especial.Trata-se dos que participam do mundo acadêmico, domundo das universidades, particularmente de seusalunos e docentes.

As universidades são, no Chile e no mundo, asencarregadas da formação das elites intelectuais.Delas surgem os profissionais e os acadêmicos que seespera tenham liderança na sociedade. Nas univer-sidades deveriam formar-se as pessoas, homens emulheres, encarregadas de criar as condiçõeshumanas para que a responsabilidade e os talentos doresto da sociedade possam se desenvolver e seexpressar ao máximo. Essas pessoas são consideradaslíderes. Pessoas com capacidade de visualizarmudanças e realizá-las; pessoas cujos atos afetamoutros; pessoas capazes de estabelecer objetivosque mobilizam; pessoas com desenvolvido auto-conhecimento, com locus de controle interno, capazesde observar, de ver a realidade e colocá-la em umcontexto maior, mas, acima de tudo, pessoas capazesde se comprometer, eficientes, que utilizam sua

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61RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA:UMA EXPERIÊNCIA INOVADORA NA AMÉRICA LATINA

MÓNICA JIMÉNEZ DE LA JARAJOSÉ MANUEL DE F. FONTECILLACATALINA DELPIANO TRONCOSO

capacidade de raciocinar e de emocionar para, maisadiante, conseguir atingir seu objetivo. Tais pessoassão reconhecidas por seus pares – são eles os que osconsideram líderes, são pessoas abertas, que criamespaços de participação e de trabalho em equipe, quecompartilham informação e que sabem comunicar-secom os demais. Estes são os líderes de quenecessitamos para nos conscientizarmos sobre arealidade do Chile e imaginar o futuro desejado para oano 2010.

As universidades têm por missão criar conhecimento eformar cientistas e outros profissionais voltados para oatendimento das necessidades de desenvolvimento dopaís. Os temas referentes à pobreza, à desintegraçãosocial, ao desenvolvimento do capital social, à proteçãodos recursos naturais – em outras palavras, odesenvolvimento sustentável – deveriam estar nocentro das preocupações de todos. Não tem sidoassim, porém, nos últimos anos.

Segundo declarações dos reitores das universidadesintegradas a este Projeto, faz-se mister colocá-las,novamente, diante de um projeto para o país, quepropicie desenvolvimento humano para todos e que, apartir daí, sejam definidas as especificidades da funçãouniversitária. Valores como fraternidade, solidariedadee responsabilidade social é que deveriam orientar otrabalho acadêmico e não apenas competência,eficiência e êxito pessoal, como tem ocorrido nosúltimos anos.

A Declaração de Glion, subscrita por um grupo dereitores e professores das mais prestigiadas

universidades da Europa e dos Estados Unidosreconhece que

os acadêmicos têm sido lentos na aplicação de suashabilidades em questões sociais urgentes; em parte,imagina-se, pela complexidade inerente a taisquestões; em parte, talvez, pelo alto risco defracassar, dada a característica controversa destasquestões4.

O projeto Universidad Construye País , promovidopela Corporación Participa e pela Fundação Avina5, eao qual se incorporaram treze universidades chilenas6,considerou impostergável a inclusão das universidadesnesse contexto. As universidades, portanto, sãoinstadas a redefinir sua relação com a sociedade e aestabelecer novos pactos fora do campus.

Este universo de instituições da área da educaçãosuperior representa a metade das universidadespúblicas do país, as integrantes do “Conselho de

4 V. artigo de José Joaquín Brunner – La universidad frente al próximo milênio –apresentado na XIII Asamblea de la Unión de Universiddes de América Latina(Udual), em Santiago do Chile, no mês de outubro de 1998.

5 Participa é uma organização privada, sem fins lucrativos e com objetivospúblicos,criada no Chile em 1988, e cuja finalidade é colaborar para a formação deuma cidadania responsável e participativa, com vistas ao fortalecimento dademocracia. A entidade é responsável pela execução do projeto UniversidadConstruye País. Quanto à Avina, é uma fundação criada pelo filantropo suíçoStephen Schmidheine, a qual, mediante aporte de recursos e supervisãoadministrativa, associa-se a lideranças que, com seu talento e sua orientação,promovam projetos relacionados com o desenvolvimento sustentável. Em 2001,decidiram levar adiante o projeto Universidad Construye País, com o objetivo deexpandir o conceito e a prática da Responsabilidade Social Universitária (RSU),em universidades e no sistema universitário chileno.

6 Na Quinta Região participam as Universidades Técnicas Frederico Santa María,Playa Ancha, Católica de Valparaíso. Na Oitava Região, a Universidad deConcepción e a Universidad del Bío-Bío; na Nona Região, a Universidad LaFrontera e a Católica de Temuco: na Décima Região, a Universidad Austral deChile, e na Região Metropolitana participam a Universidad de Chile, a PontifíciaUniversidad Católica de Chile, a Universidad de Santiago e a UniversidadAlberto Hurtado.

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Reitores”. Além das universidades públicas, no Chileexistem pouco mais de trinta universidades privadas.Atualmente, o projeto encontra-se em fase deexpansão, visando a abranger todas as universidades,públicas ou privadas, que se interessem em integrar arede Universidad Construye País, o que de iníciohavia sido limitado em razão de uma estratégia deavanço gradual e também pela escassez de recursos.

Inspirados em valores humanistas de diferentes fontes,os dirigentes dessas universidades, ao lado de docentese estudantes, decidiram pela elaboração conjunta deuma proposta destinada a promover a responsabilidadesocial universitária. Neste sentido, questionaram eprocederam a uma reflexão sobre os desafios impostospor nosso país às universidades, enfatizando suaresponsabilidade social. Analisaram, debateram echegaram a acordos em relação ao que significa ser,hoje, no Chile, uma universidade socialmenteresponsável, visualizando suas características.Posteriormente, explicitaram os princípios e valoresque inspiram a identidade de uma universidadesocialmente responsável. Para tornar realista estavisão, foi elaborado um conjunto de indicadores deresponsabilidade social universitária, os quais dãocondições à universidade de supervisionar e expandirsua responsabilidade, tanto no que concerne àcomunidade universitária quanto ao entorno, ao país eà sociedade global. Para aprofundar a responsa-bilidade social na função docente, um grupo de seisuniversidades revisa, sistematicamente, sua tarefadocente, a fim de adequá-la à formação deprofissionais com responsabilidade social. Parale-lamente, em um esforço conjunto com outros atores, asuniversidades promovem o projeto Chile Regional

2020, a partir do qual se pretende produzir um projetopara o país, amplamente discutido e consensual, e quesirva de referência às tarefas de cada segmento dasociedade comprometido com um projeto comum.

Este é o caminho percorrido até agora pelasuniversidades e pelas organizações vinculadas aoprojeto Universidad Construye País.

2. Visão de uma universidadesocialmente responsável

Em consonância com o que determina aDeclaração Mundial sobre Educação Superior para oSéculo XXI, aprovada na Conferência Mundial sobreEnsino Superior, organizada pela Unesco e realizadaem Paris, no período de 5 a 8 de outubro de 1998, osdocentes que participam do projeto UniversidadConstruye País proclamaram:

Visualizamos uma universidade socialmenteresponsável, quando ela:

• Preserva e cria o capital social do saber e dopensamento, mediante a reflexão e apesquisa interdisciplinar e difundindo-o pordiversos meios: formação de intelectuais eprofissionais; apoio ao planejamento depolíticas públicas, de iniciativas particularesrelacionadas ao desenvolvimento; atendi-mento às necessidades do movimento social ecultural dos diferentes segmentos do país,para que se torne de fato eficaz sua missão

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de colaborar para o desenvolvimento susten-tável e melhoria do conjunto da sociedade.

• Constitui-se verdadeira comunidade deaprendizagem e de geração de conheci-mentos, criando vínculos entre docentes,alunos e funcionários. Isto, com base emvigorosa política de aperfeiçoamento dopessoal e de estímulo à renovação curriculare à metodologia de ensino-aprendizagem.

• Forma mulheres e homens, altamentequalificados, íntegros e totalmente compro-metidos com os valores que ativamentedefendem e difundem; que vêem suaprofissão como uma possibilidade de serviraos demais, sendo capazes de, na qualidadede cidadãos, contribuir para a construção dasociedade e responder, de forma criativa, aosdesafios de um projeto para o país.

• Inclui um currículo transversal, tendente aenfocar, com visão universal, a realidade dopaís, em toda a sua amplitude, e dando àsequipes de docentes e alunos a oportunidadede prestar serviços a pessoas e grupos semcondições de acesso aos benefícios dodesenvolvimento.

• Oferece formação permanente, facilitando oreingresso de graduados ao ensino superior,para atualização e complementação de suaformação, a fim de que possam educar para oexercício da cidadania e participação ativa nasociedade, levando em conta as tendências

no mercado de trabalho e nos setorescientíficos e tecnológicos.

• Abre-se às mudanças, valorizando eincorporando o conhecimento e a experiênciado entorno, criando e mantendo espaços dedebate no seio da instituição, buscando,expressando-se e atuando com a verdade.

3. Que entendemos porresponsabilidade social

Ao iniciar o trabalho, o grupo de docentesconsiderou indispensável definir mais precisamente oque se entende por responsabilidade social,concordando em trabalhar com um conceito que nãopretende seja definitivo, mas que propicie asnecessárias linhas de ação para refletir e atuar combase em uma orientação comum.

Entendemos por responsabilidade social universitária acapacidade que tem a universidade de difundir ecolocar em prática um conjunto de princípios e valoresgerais e específicos, por meio de quatro processosconsiderados essenciais, quais sejam, gestão,docência, pesquisa e extensão universitária. Compro-metendo-nos, assim, do ponto de vista social, com aprópria comunidade universitária e com o país em quese insere.

Trata-se, agora, de definir “por quê” somosresponsáveis, “perante quem” somos responsáveis e“de que modo” somos responsáveis.

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• “Por quê” somos responsáveis? As univer-sidades socialmente responsáveis colocamem prática os princípios gerais da vidauniversitária, que derivam da qualidade doentorno em que elas se desenvolvem, e osvalores específicos que deveriam orientá-la.Todos deveriam estar implícitos na gestão enas funções tradicionais da docência, dapesquisa e da extensão.

• “Perante quem” somos responsáveis? Emprimeiro lugar, perante a própria comunidadeuniversitária, com os docentes, funcionários ealunos, perante cada um em particular eperante todos em termos de comunidade.Logo, se se compromete com o país, com oChile de hoje e do futuro, a universidadeprecisa visualizar o futuro e antecipar-se àdemanda por novos serviços que lhe seráfeita pelo país. Além do mais, em umasociedade globalizada, a universidade temque responder às reivindicações da AméricaLatina e do mundo.

• “De que modo” somos responsáveis? Pormeio do desenvolvimento dos processosessenciais de gestão, docência, pesquisa eextensão universitária, interpostos porinstâncias de reflexão que lhes garantam aprofundidade e a circunstância social exigidaspela atuação universitária.

O contexto em que vivem as universidades, e, aomesmo tempo, a capacidade que têm de abranger oconceito de responsabilidade social em toda a suaamplitude, fez com que algumas o restrinjam a alguns

aspectos. É o que reflete a pesquisa realizada, na qualprojetos semelhantes que foram encontrados podemser classificados segundo o tipo de sociedade em quese inserem: projetos relativos ao mundo desenvolvido(Europa e Estados Unidos) e projetos de países emvias de desenvolvimento (principalmente AméricaLatina)7. Tais avaliações deixam claro as preocu-pações ou os problemas que aparecem comorelevantes em cada uma destas regiões,observando-se grandes diferenças em termos dosobjetivos finais que pretendem alcançar.

Os projetos próprios de países desenvolvidosrelacionam-se, principalmente, com o compromisso dauniversidade com a comunidade em termos cívicos(Salzburg Seminar, Campus Compact e NationalAssociation of State Universities and Land-GrantColleges). Em contrapartida, no que diz respeito aosprojetos existentes na América Latina, todos sereferem à questão das desigualdades sociais quecaracterizam a realidade da região (Associação deUniversidades Confiadas a la Compañia de Jesús enAmérica Latina, Consórcio Perú e PerúPromesa).Neste sentido, as diferenças são substanciais,referindo-se a concepções de sociedade e problemassociais radicalmente distintos, estabelecendodiferenças no modo como se deve desenvolver aresponsabilidade social que compete às universidades.

A relevância do exame de outras iniciativas que serefiram à responsabilidade social nas universidades dizrespeito às distintas formas assumidas pelo conceito,

7 Informação obtida e analisada por Magdalena Opazo e Cláudia Giacoman, em suapesquisa Responsabilidad social y sistema universitário chileno: visión yexpectativas de los jóvenes estudiantes”.

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MÓNICA JIMÉNEZ DE LA JARAJOSÉ MANUEL DE F. FONTECILLACATALINA DELPIANO TRONCOSO

conforme a realidade ou o contexto que a envolve,permitindo uma aproximação mais profunda do con-ceito subjacente a estas interpretações particulares.

4. Princípios e valores dauniversidade socialmenteresponsável

A universidade atua com base em trêsfunções tradicionais (docência, pesquisa e extensão) e

em uma atividade indispensável em toda organização,isto é, a gestão. No centro destes quatro processoschaves encontram-se os princípios e valores, como umsol do sistema. Esses quatro processos da tarefauniversitária devem ser iluminados pelos princípios evalores anteriormente definidos. Por sua vez, no que serefere a tais processos, deve se verificar na tarefauniversitária a prática destes princípios e valores. Emconseqüência, a relação entre os princípios e valores eos processos essenciais se expressa, graficamente, daseguinte maneira:

Extensão

Gestão

Pesquisa

Docência PROCESSOS CHAVESDA UNIVERSIDADE

Princípios e ValoresGerais e Específicos

Desenvolvimento e Difusão

SOCIEDADE – INTERDEPENDÊNCIA

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No centro do modelo apresentado encontram-se osprincípios e valores gerais e específicos que orientam econstituem o cerne da responsabilidade social univer-sitária. Os princípios e valores são faróis a orientar, aguiar o comportamento humano. São, pois, funda-mentais e permanentes em uma universidade social-mente responsável. Os princípios e valores definidos,citados a seguir, estruturam-se em uma constelação ousistema e podem ser ordenados em três níveis, a saber:

4.1 Princípios e valores do planopessoal

• Dignidade da pessoa: a pessoa humananasce livre e igual em dignidade, direitos edeveres, vivendo a partir de várias dimensões(físico-biológica; psíquico-espiritual, socio-cultural), e constituindo, portanto, umaunidade indissolúvel. A pessoa é um serracional, capaz de pensar e refletir; é um sercapaz de aprender e, assim, capaz deaperfeiçoar-se; tem vontade própria, o quelhe permite dirigir sua conduta oucomportamento; possui afetividade e,conseqüentemente, sentimentos, podendoaliar-se a pessoas, coisas ou valores; éconsciente de si mesma; pode, por conse-guinte, relacionar-se com outros e com atranscendência e, deste modo, superar suaimanência. Estas características essenciaisdo ser humano permitem reconhecer a digni-dade humana de cada pessoa. Isto se traduz,na vida da universidade, na afirmação teórica

e prática de que o ser humano é um fim em simesmo e não um meio ou instrumentovisando a atingir determinado objetivo. Otrabalho da universidade sempre estarávoltado para a formação de pessoas capazesde ter autonomia, razão e consciência, bemcomo de construir relações solidárias nasociedade à qual pertence, e de um saber queembase tal propósito. Para que a dignidadehumana alcance sua expressão na vidauniversitária, é preciso que sejam criadascondições nas quais cada integrante dacomunidade possa entregar, inteiramente, suacolaboração original e própria de suastarefas. Ao mesmo tempo, os propósitos efins das atividades universitárias têm quejustificar-se na promoção da dignidadehumana em todos os campos da vida social.

• Liberdade: é o ímpeto de vida da pessoahumana por meio do qual cada um é capaz derealizar-se em todas as dimensões de suadignidade, responsabilizando-se efetivamentepor sua própria vida e pela sociedade à qualpertence. A concretização desta hipótese naespecificidade da vida universitária seexpressa no respeito aos direitos e liberdadesde todos os membros da comunidadeuniversitária: liberdade de pensamento, dediscernimento e de religião; de pesquisa, deopinião, de expressão e de ensino; de reuniãoe associação; de desenvolvimento de suapersonalidade, entre outros.

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• Integridade: qualidade de pessoas einstituições coerentes com seus princípios evalores, tanto em suas declarações quantoem suas ações; sendo disciplinadas,transparentes e honestas.

4.2 Princípios e valores do plano social

• Bem comum e eqüidade social: conjunto decondições materiais, socioculturais eespirituais que permitem à sociedade e aosque a integram (as pessoas) acesso a umavida humana digna e a uma melhor qualidadede vida. Igualdade de oportunidades parasatisfazer às necessidades e desenvolver acapacidade de pessoas e grupos, apoiando aremoção – e eliminando-os – dos obstáculosde caráter econômico e social, assim como osculturais e políticos que impedem odesenvolvimento humano. A concretizaçãodeste pressuposto no âmbito universitáriosignifica o desenvolvimento equilibrado detodas as unidades que o compõem,desfrutando todas de uma participaçãoeqüitativa dos recursos humanos e materiaisda universidade, com vistas ao desenvol-vimento de suas atividades acadêmicas e deextensão. A isto se agrega a necessidade deapoiar, na medida do possível, a valorizaçãosocial dos profissionais formados nauniversidade e dos resultados da pesquisa edos estudos acadêmicos.

• Desenvolvimento sustentável e meio am-biente: processo que permite que a vidahumana continue indefinidamente, que osseres humanos e a sociedade participem eprosperem, que as culturas humanas sedesenvolvam e que os efeitos da atividadehumana (econômica) se mantenham dentrode seus limites, de tal modo que não destruama diversidade, a complexidade e ofuncionamento do sistema ecológico queserve de sustentação da vida, assim como docapital social que assegura a governabilidadedemocrática. É um desenvolvimento quesatisfaz às necessidades do presente, semcolocar em perigo a capacidade das futurasgerações de atender às suas própriasnecessidades. Intervenção consciente edeliberada para encontrar soluções válidaspara o problema da destruição da natureza epromover iniciativas de proteção dosprocessos naturais que preservam a vida. Naconcretização de tudo isto no âmbitouniversitário, a universidade precisa velarpelo permanente desenvolvimento de seucapital humano e pelo aperfeiçoamento dasrelações internas entre suas diferentesunidades e atividades, visando a criar assinergias de complementação e aperfei-çoamento. Ao lado disto, deverá fazer comque a incidência do aporte da universidade àsdiversas atividades da sociedade se traduzano fortalecimento do desenvolvimentosustentável e auto-sustentável.

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• Socialização e solidariedade, para fins deconvivência: tendo em vista que os sereshumanos não podem dar asas à suaoriginalidade senão por intermédio de suaparticipação na comunidade, deverão atenderàs exigências relativas à qualidade daconvivência. Ao mesmo tempo, dado opotencial de sua liberdade, a pessoa é capazde atos que atendem gratuitamente àsnecessidades dos outros, praticando, assim, asolidariedade como dimensão estética ecriadora da convivência. A concretizaçãodisto na vida universitária implica ofortalecimento da semelhança de atribuiçõese de afirmação de si mesma, dos queintegram a comunidade universitária, oreconhecimento explícito da colaboração decada um para sua construção e a consi-deração ponderada, por meio do exercício dacrítica positiva, em um diálogo baseado nocompromisso solidário com a missãouniversitária.

• Aceitação e reconhecimento da diversi-dade: capacidade de valorizar o outro eintegrar-se, sem discriminação por motivo deraça, sexo, idade, condição religiosa, social epolítica.

• Cidadania, democracia e participação:prática da pessoa que se conscientiza de seusdireitos e obrigações, que são adquiridos pelosimples fato de pertencer a uma comunidadesocial e/ou política, de caráter nacional,regional ou local, e por meio da qual colabora

para a construção e mudança da própriacomunidade. Forma de governo e estilo devida. Como forma de governo, tem atributospermanentes e variáveis. Os permanentessão essenciais para assegurar a existência deum regime democrático, dentre os quais sedestacam valores (dignidade da pessoa,liberdade e igualdade), princípios (respeitoaos direitos humanos e autodeterminação elivre determinação dos povos) e regras dojogo e compromisso real com o estado dedireito como conjunto de normas obrigatóriasbásicas para a convivência social (governo damaioria com respeito pela minoria; disputapacífica e com igualdade de oportunidades,por meio de eleições democráticas;pluralismo ideológico e político; poderdistribuído por diferentes órgãos; relativaautonomia de setores intermediários). Osatributos variáveis são os que permitemdeterminar a qualidade e a intensidade doregime democrático, entre os quais seencontram a intensidade e a freqüência daparticipação da cidadania, a distribuição dopoder de gestão da vida social e oatendimento às necessidades básicas daspessoas, dos grupos e das comunidades;confiança no que o sistema eleitoralrepresenta para os cidadãos; mecanismos defiscalização das autoridades eleitas; garantiasefetivas dos direitos das minorias; nível deprática efetiva e progresso das liberdades edos direitos políticos, sociais, econômicos eculturais exercidos pelos habitantes; e realpossibilidade de organização e atuação da

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oposição no sentido de obter apoio dacidadania e apresentar seu posicionamento.A democracia, como forma de vidademocrática, implica atitude do espírito queclama pelo respeito ao próximo, pelo diálogo,pela compreensão, pela não discriminação,pela tolerância e pela lealdade mútua. O estilode vida democrático busca desenvolver oespírito reflexivo, a opinião pessoal, asolidariedade fraterna e a atitude de parti-cipação livre e responsável. A concretizaçãode tudo isto na vida universitária implica aconstrução de uma ordem baseada empessoas sujeitos de direitos e deveres, em umregime normativo em que estes se encontramestabelecidos e na existência de órgãosuniversitários nos quais, a partir de princípiosfixados pela universidade, são resolvidos osconflitos passíveis de ser gerados.

4.3 Princípios e valores do planouniversitário

• Compromisso com a verdade: é a alma dosaber. A verdade é fruto de uma série deconhecimentos e está sempre em evolução.Exige um conjunto de princípios éticos:respeito às verdades das diferentesdimensões do conhecimento; a humildade,que nasce do fato de que ela sempre sebaseia na superação das [verdades] atéagora alcançadas; a capacidade de diálogo, a

fim de incorporar os aportes das váriasdisciplinas à construção [da verdade];honestidade, para fixar os limites da verdadealcançada; a prudência, para que [a verdade]não se torne uma imposição que coloque emrisco a dignidade humana. O compromissocom a verdade faz prevalecer a gratuidade dosaber e os valores fundamentais, no queconcerne ao uso ou imediata aplicaçãodestes.

• Excelência: expressão de qualidade oubondade superior que distingue e torna objetode especial apreço a tarefa de pessoas ouorganizações. Interessa tanto aos fins, aosmeios e aos procedimentos e se expressa nagestão e nas atribuições universitárias,correlacionando-se com a responsabilidade aestas inerente.

• Interdependência e transdisciplinaridade:relação dinâmica entre a universidade e asociedade, que reconhece sua mútuanecessidade e que, por este motivo, requerpermanente diálogo. Por um lado, asociedade afeta a universidade, nela influi e acondiciona; por outro, a universidade cooperacom a sociedade, dedica-lhe seus talentos ehabilidades para gerar conhecimentos que abeneficiem e lhe sejam úteis. Além do mais,em uma sociedade globalizada, a univer-sidade não pode isolar-se da realidadeinternacional e deixar de vincular-se auniversidades e instituições estrangeiras.

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Esta interdependência da universidadetambém se torna cada vez mais complexapela necessidade de uma visão transdis-ciplinar de sua ação, que incorpora umenfoque e reconhece a complexidade dosproblemas da sociedade, abordando-os apartir da maior quantidade de pontos de vistapossíveis, abrindo espaços para que cada um,do âmago de sua disciplina, contribua comaportes que se integrem às perspectivas dooutro, alcançando interações capazes deconduzir a uma compreensão mais holísticados fenômenos e soluções que contemplamas diversas dimensões do problema, a partirda força integradora do humanismo e de suasdemandas.

5. Indicadores

O último passo para unir o conceito e aprática foi o desenvolvimento de indicadores decondutas concretas que deverão se verificar nauniversidade, para que se constate estarem sendo nelaadotados os princípios e valores antes definidos. Taisindicadores não esgotam as condutas com elescoerentes nas tarefas dos universitários, mascontribuem para que se tenha uma referência capaz deservir de espelho para observar, avaliar e planejarações corretivas relacionadas com a responsabilidadesocial. Os indicadores foram projetados para seremutilizados como uma ferramenta de gestão relacionadacom a responsabilidade social universitária.

A seguir, uma lista de indicadores para cada princípio/valor:

Dignidade da pessoa

• Tratar com respeito seus integrantes.

• Manifestar preocupação pelo respeito que osprofessores demonstram por seus alunos.

• Investir para garantir boas condições detrabalho para os funcionários.

• Apoiar individualmente pessoas que seencontram em dificuldade.

• Elaborar critérios e parâmetros claros para aspesquisas com seres humanos.

• Investir no aperfeiçoamento e desenvol-vimento de recursos humanos.

Liberdade

• Respeitar as decisões tomadas por seusintegrantes.

• Dar espaços para a livre expressão de idéiasou crenças.

• Respeitar a liberdade dos docentes no quetange à utilização de metodologiasinovadoras.

• Dar liberdade para a abordagem de temas deinteresse atual.

• Acolher as idéias ou iniciativas de seusfuncionários.

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71RESPONSABILIDADE SOCIAL UNIVERSITÁRIA:UMA EXPERIÊNCIA INOVADORA NA AMÉRICA LATINA

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• Promover a discussão aberta de temas quegeram conflitos na sociedade.

Cidadania, participação e democracia

• Facilitar a participação de seus integrantesem instâncias de representação.

• Ter interesse em conhecer as opiniões einquietações de seus integrantes.

• Incorporar a opinião dos funcionários nadefinição de suas tarefas e responsabilidades.

• Formar para uma participação ativa nasociedade.

• Formar com base no respeito aos direitoshumanos.

• Contribuir para formar opinião comreferência a temas públicos relevantes para acomunidade.

Sociabilidade e solidariedade

• Incentivar a prestação de serviços gratuitos agrupos ou comunidades carentes de recursos.

• Estimular a solidariedade entre os membros.

• Promover um tratamento respeitoso a todasas pessoas, indistintamente.

• Promover atividades de integração entre seusprofessores, funcionários e alunos.

• Orientar a formação dos estudantes para quevejam em sua profissão uma forma de serviraos demais.

• Dar importância ao desenvolvimento dashabilidades sociais de seus alunos.

Bem comum e eqüidade

• Destinar, de modo eqüitativo, os recursos aseus respectivos setores.

• Dar importância à justiça social na formaçãode seus estudantes.

• Facilitar o ingresso de alunos carentes.

• Dispor de um sistema para ajudar a resolveros problemas econômicos de pessoal comescassez de recursos.

• Definir política salarial com base no critérioda eqüidade.

• Dispor de política de ascensão profissionalclara, transparente e justa.

Meio ambiente e desenvolvimento sustentável

• Capacitar seus integrantes a se cuidarempara prevenir certas enfermidades.

• Preocupar-se, de modo especial, com aformação dos alunos no cuidado com o meioambiente.

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• Incentivar seus membros, de modopermanente, a economizar água, energia etc.

• Estabelecer normas que limitam o consumode cigarros em espaços públicos fechados.

• Dispor de depósitos para separação do lixosegundo o tipo de material (vidros, papéis eoutros).

• Conscientizar a comunidade universitáriasobre os problemas ambientais enfrentadospor nossa sociedade.

Aceitação da diversidade

• Atuar com respeito à diversidade humana,sem discriminação de raça, nacionalidade,cultura etc.

• Facilitar a expressão das diversas tendênciasreligiosas.

• Permitir que as diversas tendências políticassejam respeitadas.

• Realizar conferências e seminários para queseus membros tomem conhecimento dasdiversas posturas existentes na universidadee relacionadas com problemas de interessenacional.

• Facilitar o acesso a grupos de alunosespeciais (deficientes, indígenas etc.).

• Possuir infra-estrutura especialmente adap-tada para deficientes.

Compromisso com a verdade

• Realizar pesquisas com vistas à verdade.

• Desenvolver o espírito crítico dos alunosmediante atividades de aprendizagem.

• Realizar uma comunicação interna honesta etransparente.

• Realizar um marketing honesto etransparente na comunidade.

• Ratificar o compromisso com a verdade deseus integrantes.

• Estimular a busca da verdade nas atividadesde seus docentes.

Integridade

• Contar com critérios éticos, do conhecimentoda universidade, para orientar a conduta deseus membros.

• Demonstrar coerência entre seus princípios esuas ações.

• Demonstar inflexibilidade diante de atos dedesonestidade cometidos por seusintegrantes.

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• Exercer controle para que seus recursossejam utilizados de forma honesta para asrespectivas finalidades institucionais.

• Considerar, de forma equilibrada, a avaliaçãopessoal e técnica, na promoção de seusfuncionários.

• Garantir o respeito à propriedade intelectualem suas atividades.

Excelência

• Adotar política clara no aperfeiçoamento deseus funcionários e política de docência quepromova o desenvolvimento integral dosalunos.

• Aplicar sistemas de avaliação dedesempenho com base em padrões deexcelência, conhecidos pelos funcionários.

• Incentivar, de modo especial, as atividades depesquisa de seus acadêmicos.

• Promover a renovação curricular e dametodologia de ensino.

Interdependência e transdisciplinaridade

• Atuar para que os cursos tenham um enfoqueinterdisciplinar.

• Implementar grades curriculares capazes deexigir que os alunos cursem outras disciplinas.

8 Este documento é fruto do trabalho conjunto de integrantes da Equipe deCoordenação do Projeto Universidad Construye País, com representantes dasuniversidades integrantes do Projeto, em um processo participativo e submetidoa sucessivas revisões. Correndo o risco de esquecer alguns nomes, aqui citam-sealguns de seus autores: Mônica Jiménez, José Manuel De Ferari Fontecilla,Catalina Delpiano e Luis Andrade (Equipe de Coordenação);Waldo Valderrama,Luis Hevia (U. Técnica Federico Santa Maria); Gladis Jiménez, Ezio Passadore,Jorge Mendoza (U. Católica de Valparaíso); Miguel Reyes, Cláudio Valenzuela (U.de Playa Ancha); Gracia Navarro, Cecília Collado, Patrícia Astroza, Oscar Sáez,Albertina López (U. de Concepción), David Oviedo, Sergio Araya (U. del BioBio); María Villanueva, Javier Villar, Cristián Valdés (U. Católica de Temuco);Reginaldo Zurita, Paula Boero, Pámela Ibarra (U. de la Frontera); Ximena Rojas,María Elena San Martín (U. Austral de Chile);Ximena González, AntonioMondaca (U. de Chile); Carlos Portales, Andrés Raineri, Andrés Iacobelli, AndrésDominguez, Jorge Jiménez, Paula Bedregal, Marisa Torres, Claudia Giacoman,Magdalena Opazo, María Teresa Salinas, Sebastián Zulueta (P. U. Católica deChile); Francisco Javier Gil (U. de Santiago); Fernando Verdugo, RodrigoMontserrat, Ana María del Valle (U. Alberto Hurtado)

• Incentivar os docentes a realizar trabalhosem equipes interdisciplinares.

• Buscar solucionar problemas juntamente comas pessoas ou setores diretamente envol-vidos.

• Fazer com que as atividades acadêmicaslidem com os desafios ou problemasenfrentados por nossa sociedade.

• Promover vínculos entre as atividadesuniversitárias e a comunidade local.

Este trabalho de definição e elaboração de princípios evalores, de caráter geral e específico, deu origem atrês instrumentos de avaliação da responsabilidadesocial, aplicáveis a docentes, executivos e alunos, osquais foram utilizados por várias universidades, parafins de observação de seu comportamento em termosde responsabilidade social e de elaboração de planospara melhorá-la8.

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MÓNICA JIMÉNEZ DE LA JARAJOSÉ MANUEL DE F. FONTECILLACATALINA DELPIANO TRONCOSO

CONHECIMENTO ERESPONSABILIDADESOCIAL – AMEAÇASE DESAFIOS PARA AUNIVERSIDADETRANSDISCIPLINAR 1 LUÍS CARRIZO2

Apresentação

Pretende-se, com este trabalho, contribuirpara o debate que atualmente se verifica sobre umnovo e necessário “contrato social” entre universidadee sociedade. Hoje é comum discutir a respeito dareforma universitária, em especial no que tange aosdesafios inerentes à responsabilidade socialuniversitária, à ética do conhecimento e à necessidadede novos paradigmas dada a crescente complexidadedas problemáticas globais e locais.

A freqüência desses debates implica, por si mesma,uma conscientização cada vez mais abrangente sobrea urgência em consolidar uma nova visão da educaçãosuperior. Uma visão que seja crítica de suas insti-

1 O presente trabalho baseia-se no artigo Producción de conocimiento y políticaspúblicas, publicado na Revista Reencuentro, n. 40, México, UniversidadAutónoma Metropolitana-Xochimilco, agosto de 2004 pp.89-100, nosCuadernos del CLAEH, no. 89, dezembro de 2004, bem como no texto Producciónde conocimiento y ciudadanía: retos y desafios de la universidadtransdisciplinaria, apresentado no Seminário Internacional Diálogo sobreInterdisciplina, organizado pelo Iteso, Guadalajara, México, Setembro de 2004.

tuições, da relação entre saber e poder, além deinspiradora de uma missão cidadã na produção edifusão de conhecimento.

Que universidade exige o século XXI?, Univer-sidades: o que fazer?, Reforma universitária: paraquê?, Universidade: qual é o seu futuro?,Universidade: por que e como reformar?3 – sãoquestões a sinalizar, claramente, um momento históricoparticularmente fértil no sentido indicado.

2 Luís Carrizo (Uruguai) é psicólogo e mestre em Desenvolvimento Regional eLocal, além de pesquisador e docente do Centro Latino-americano de EconomiaHumana (CLAEH), onde exerce a função de coordenador acadêmico da Cátedra deCondición Humana y Complejidad do Instituto Universitário. Foi SecretárioExecutivo do Programa de Gestão das Transformações Sociais (Most), da Unesco,tendo sido, ainda, presidente do Comitê Técnico-Assessor de Ciências Sociais eHumanas da Comissão Nacional da Unesco, no Uruguai, bem como integrante doOrus (Observatório de Reformas Universitárias) e coordenador do Curso Comoensinar ética, capital social e desenvolvimento na universidade?, do Instituto deEstudos Avançados das Américas, da OEA, em associação com a IniciativaInteramericana de Capital Social, Ética e Desenvolvimento, órgão do BID, do qualfoi também consultor em temas relacionados com ética e desenvolvimento nauniversidade. E-mail: [email protected]

3 Trata-se de títulos de diversas publicações (editadas em diferentes países, ao longode 2003) que o autor escolheu para ilustrar esta tendência de questionamento.

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Muito foi escrito, e continua sendo – semnecessariamente buscar nem gerar consensos – entreoutras coisas, sobre autonomia universitária, governoinstitucional, estruturas acadêmicas e curriculares,papel do conhecimento na transformação do mundoatual. O desafio a enfrentar é a superação deperspectivas comprovadamente insuficientes, no queconcerne a contribuir de maneira decisiva para umaordem mais justa da coisa pública e do universo devalores e produções.

Em diversos âmbitos vêm sendo propostas, hádécadas, novas visões para entender e transformar deforma lúcida o papel da universidade nas sociedadescontemporâneas. Fala-se de um novo “pacto social”,que precisa dar ênfase à responsabilidade social dainstituição universitária em um mundo de crescentecomplexidade. Os desafios da globalização, a incor-poração das novas tecnologias da comunicação e dainformação, os avanços tecnológicos sem precedentes,formam um cenário em que a tarefa da universidadeexige uma transformação à altura de tais desafios. Poroutro lado, em nossa região, esta mesma tarefa édemandada por uma realidade latino-americana decrescente injustiça social, pobreza e desigualdade deoportunidades, em um continente em que, não obstanteseus enormes recursos para a produção de alimentos,44% da população vive em condições de pobreza. Estaincrível situação, que Bernardo Kliksberg4 não hesitaem qualificar como pobreza paradoxal, está a exigiroutra forma de conceber e de utilizar a produção do

conhecimento científico, bem assim de repensar,urgentemente, a formação de universitários vis-à-vissuas realidades sociais.

Neste sentido, e em particular na América Latina,podemos seguir a recomendação dos autores deUniversité: quel avenir?:

Os desafios específicos a serem destacados pelauniversidade são, de um lado, seu papel naprodução e difusão de saberes e, de outro, seuespaço em termos de cidadania, seu papel social,cultural e político e as responsabilidades geradaspor este espaço. (PENA-VEGA e MORIN, 2003).

Educação na América Latina:“vinho novo em velhos barris” 5

Esse debate, em especial em nossa região,não é novo. Há mais de trinta anos, Darcy Ribeiro –antropólogo e educador brasileiro que no início dadécada de 60 concebera uma nova universidade, alocalizar-se em Brasília – expressava seu

descontentamento com a mediocridade dodesempenho cultural e científico da experiênciauniversitária latino-americana e, mais ainda, comsua irresponsabilidade diante dos problemas dospovos que as mantêm.

Com base nesta advertência, o autor apresentou seuprojeto de uma nova universidade, que

pode e deve não apenas contribuir para o discursosobre o homem e a natureza, mas também para criar

4 Coordenador-geral do programa Iniciativa Interamericana de Capital Social, Éticae Desenvolvimento, do Banco Interamericano de Desenvolvimento. 5 (N. da T.- Cf. Evangelho – S. Marcos,18-22)

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os multiplicadores da pesquisa que permitam odesenvolvimento da ciência, o autoconhecimentoda realidade nacional e a busca de soluções paraseus problemas. (RIBEIRO, 1973:44).

Ainda antes, há cerca de quatro décadas, umapergunta era o prólogo da obra de Paulo FreireA educação como prática da liberdade:

que significa educar, em meio às profundas edolorosas transformações por que vêm passandonossas sociedades latino-americanas nesta segundametade do século XX? (FREIRE, 1972, prólogo deJúlio Barreiro).

A isto Freire responde dizendo que “a verdadeiraeducação é práxis, reflexão e ação do homem sobre omundo, a fim de transformá-lo. (op.cit., em itálico nooriginal).

Surpreende a vigência de tais inquietudes em quasemeio século de questionamentos acerca da educação,da universidade e da necessidade de reforma dasestruturas de formação e produção de conhecimento.Enquanto isto, o continente avançou em sua pobreza,em sua fragmentação social, na marginalização deamplos setores e na injusta distribuição de sua riqueza.

Por isso mesmo – e por estarem mais próximas notempo – não devem soar estranhas as reflexões feitasem 2004 por Cristovam Buarque, então Ministro daEducação do Brasil:

No século XXI, o século da globalização, auniversidade convive com a tragédia de umahumanidade dividida em duas partes. De um lado,encontram-se os incluídos, ou seja, os quedesfrutam dos benefícios técnicos do mundo

moderno; de outro, os dele excluídos. A cortina deferro foi derrubada e o mundo passou a ser divididopor uma cortina de ouro, erguida, em parte, graçasao saber universitário, que beneficia apenas um dosdois lados.4

Tanto do ponto de vista social, político, cultural eeconômico, quanto da perspectiva da crescentecomplexidade do mundo real, a função do conhe-cimento é a chave, em termos de transformação e emtermos de cidadania e responsabilidade social. Nestaurgente tarefa ética, o papel da universidade torna-se acada dia mais estratégico e decisivo.

Na qualidade de instituição produtora de conhe-cimentos e formadora de opinião e tendências, auniversidade detém inquestionável responsabilidadesocial.Talvez sua tarefa prioritária, hoje, deva serrepensar-se, elucidando as condições em que constróio conhecimento, em que concebe a condição humanapara conhecer e atuar. A posição estratégica própriada universidade, no âmbito de uma sociedade,conclama sua responsabilidade, sempre. Hoje, porém,mais do que nunca, isto se torna imperioso.

A universidade tem de integrar-se neste contexto. Umtriplo vínculo precisa ser fortalecido, com vistas àgeração de um desenvolvimento humano sustentável: atrilogia ciência-política-cidadania. Neste círculovirtuoso, o papel da universidade se destaca por suarelevância na produção de conhecimento científicopertinente e útil às exigências de nosso tempo, masesta posição privilegiada lhe exige a responsabilidade

4 Trabalho apresentado na Conferência Mundial de Educação Superior + 5, Paris,23-25 de junho de 2003, e publicado em A universidade na encruzilhada,Ed. Unesco, Brasília, 2003.

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Por sua parte, a universidade tem importante papel arepresentar, tanto em um campo quanto no outro. Emrelação aos modos de produção do conhecimento, épreciso dar ênfase ao “que”, ao “como” e ao “com”quem conhecer. Na ligação entre conhecimento e polí-ticas, a pergunta fundamental é: “para que conhecer”.

Do ponto de vista clássico, encerrado na torre demarfim da aridez e da neutralidade, a ciência temestado divorciada do componente político – no sentidomais nobre – da sua tarefa, bem como alijada doobjetivo social e humanista de sua missão. No pior doscasos – com surpreendente freqüência – tem estadomais ligada ao Poder do Saber (com maiúsculas portratar-se de instituições do social), do que àpossibilidade de poder fazer com que o saber a brinda.Nesta associação, o Saber está mais voltado – comomostra Bruno Latour (2001) – à manutenção docontrole sobre a “turba indisciplinada” do que a umacontribuição para o avanço do conhecimentocompartilhado e pertinente. Uma nova humildade e umnovo compromisso ético tornam-se necessários.

O complexo mundo real

Nenhum outro século semeou tanta vergonha,amargura, confusão, questionamentos, esperança e medonos corações da humanidade. Nunca o progresso da ciênciasuscitou tantas promessas e tantas dúvidas. (CharlesKleiber Secretário de Estado para Ciência. Berna, Suíça,2000).

As perspectivas apontadas, assim como os cenáriosdescritos anteriormente de maneira muito sintética,falam de realidades complexas, contraditórias,

de dialogar com os demais atores do sistema: cidadãose políticos. (ver Figura) Deste modo, a partir daelaboração de uma agenda social, política ou científica,até a impostergável revisão dos paradigmasdominantes na formação e na pesquisa, os desafios dauniversidade do século XXI são, ao mesmo tempo,complexos e decisivos.

• Universidade• Centros de

Pesquisa• Think Tanks• Outros

• Cidadãos• ONGs/Terceiro setor• Empresas• Mídia

SISTEMA DECONHECIMENTO E DECISÃO

• Governo• Decisões

AGENDA

Nesta pespectiva, abrem-se dois campos querequerem atenção:

1. Primeiro, os modos de produção deconhecimento, tanto no que se refere, porum lado, estritamente ao saber científico eacadêmico, quanto, por outro, à participaçãodo ator social na referida produção.

2. Segundo, a vinculação entre conhecimento epolíticas, elo estratégico para a definição deações públicas que respondam às necessi-dades do mundo real, com fundamentoscientíficos de qualidade.

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dinâmicas e desafiantes. Alguns aspectos chamam aatenção por sua permanência ao longo deste quase meioséculo, dentre as quais, por exemplo, o clamor pormudanças. Nesse meio tempo, aqui e ali algumascorrentes de pensamento foram propondo novosparadigmas que melhor abranjam e transformem esseestado de coisas. Essas correntes de pensamentorecuperam, igualmente, formulações éticas que impre-gnaram o espírito dos velhos mestres da revoluçãoeducacional e universitária na América Latina.

Um pensador como Edgar Morin, que desenvolveusubstanciais propostas neste sentido, quando de umdebate sobre a relação entre ética e desenvolvimento,enfatizou que

é preciso também mudar a estrutura do sistemaeducacional, eis que desenvolvimento envolve umconceito da especialização de cada pessoa, e cadapessoa especializada encontra-se em seu espaçoparticular e esquece a responsabilidade da solida-riedade com o todo. Se mudamos a estrutura daeducação, não mais na especialização, mas lidandocom os problemas fundamentais e globais, geramos,então, uma nova mentalidade. Devemos ajudar aeducação, mas não a educação que, ao final,conduza à impossibilidade de perceber osproblemas mais importantes. (CARRIZO, 2003)

Hoje já não é possível manter os mitos que, emdécadas passadas, tornavam ilusória a paisagem dodesenvolvimento, concebendo tendências lineares doprogresso humano, ou apostando, euforicamente, nacapacidade de a revolução tecnológica conduzir aocrescimento econômico e à eqüidade. A realidadesolapou as idéias simples e jogou por terra postuladosentusiastas que consideravam alguns dados apenasparcialmente. Deste modo, juntamente com a revo-

lução do conhecimento e da tecnologia, vem-seinstalando uma segunda revolução associada: a douso que se faz do conhecimento e da tecnologia.E há, ainda, uma terceira revolução, que há temposvem brotando de forma insistente neste circuito: a doconhecimento do conhecimento. Talvez, comonunca antes, esteja a impor-se um imperativo éticoe estratégico no campo do conhecimento: interro-garmo-nos sobre o que fazer com o que sabemos,sobre as implicações do que fazemos, acerca do quefazemos para conhecer. Estas três ordens de questio-namento permeiam os debates atuais na filosofia daciência; no entanto, ao mesmo tempo em que denun-ciam desacertos, também estimulam oportunidades.Trata-se de desafios pendentes, a exigir discussões eações urgentes.

De outro lado, observa-se crescente conscientizaçãosobre a complexidade do mundo real em diferentesdiscursos e debates. É um sinal alentador para ofuturo. Em diferentes foros, insiste-se na necessidadede compreender de outra maneira a interdependênciados fenômenos, os fatores de incerteza e os destinosprevisíveis e imprevisíveis da ação. Desta perspectiva,a insuficiência dos modos de conhecer atualmentedominantes se torna também crescente convicção.

Assim, em diferentes contextos, postula-se anecessidade de uma perspectiva mais integrada do quea tradicional, no tratamento de realidades complexas.Neste sentido, há algumas décadas, certos sinais(p.ex.: a Conferência da Organização para Coope-ração e Desenvolvimento Econômicos – OCDE, em1972, e outras posteriores) mostram, com crescenteênfase e sistematização, a necessidade de apro-

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ximação interdisciplinar do conhecimento de nossassociedades. Um ponto que tem sido abordado, quasesem exceção, nesses encontros, é o das condições edos limites do desenvolvimento da capacidade visandoà interdisciplinaridade. No Documento Base de SunitaKapila, que abriu o seminário “Conhecimento semBarreiras” (Unbroken Knowledge), do Interna-tional Development Research Center (CIID/IDRC)7

(Montevidéu, 1995), são feitas algumas recomen-dações neste sentido. Segundo Kapila,

a capacidade para a interdisciplinaridade deve serdesenvolvida em instituições de aprendizagem epesquisa, tanto em relação ao conhecimento sobre adisciplinaridade como para a capacitação eminterdisciplinaridade. É necessário que a capa-citação nestes dois aspectos seja reconhecida eestimulada em instituições de aprendizagem, nocírculo de doadores e no mercado. (...) É precisocriar instituições que promovam a interação e osvínculos entre as diversas disciplinas. É necessáriopromover serviços de capacitação e de pesquisaque cultivem ativamente a apreciação mútua e oreconhecimento das diferentes disciplinas.

Por seu lado, de um ponto de vista histórico, osdiscursos sobre transdisciplinaridade progredirambastante em relativamente poucas décadas. De acordocom Julie T. Klein (2003), é possível, aí, diferenciartrês momentos:

• Primeiro momento (1970): diálogo entredistintos saberes e estruturas sistêmicas doconhecimento (mais associado ao campo dainterdisciplinaridade – cf. Piaget, Jantsch,Conferência da OCDE).

• Segundo momento (l987): entre, através dee além das disciplinas (pesquisas trans-disciplinares de tipo orientado/aplicado,em que se envolvam atores estranhos àárea acadêmica) (Nicolescu, Congresso deLocarno).

• Terceiro momento (1990-2000): pesquisaorientada, transcendendo o disciplinar,prática, participativa e processual: camposem que o desenvolvimento social, técnico eeconômico interagem com componentesde valores e cultura. (HÄBERLI et al.,Congresso de Zurique).

Três importantes questões emergem nesta evolução.Em primeiro lugar, a crescente convicção danecessidade de abordagens que, sem menosprezar osdesenvolvimentos de caráter disciplinar, transcendamos campos de saber clássicos, a fim de melhor poderconsiderar a complexidade dos fenômenos obser-vados. Em segundo lugar, a necessidade de ampliar aconvocação de atores à mesa de diálogo doconhecimento, aí não apenas contando com saberessistematizados e cientificamente rigorosos, mas comaqueles que são fruto da tradição (saberes nãodisciplinares) e dos interesses de partes. No querespeita à participação, verifica-se um deslocamentodo campo científico para o campo social, includente eintegral. Em terceiro lugar, a reflexão ética sobre asformas e a destinação do conhecimento. A ciência jánão se encontra isenta de responsabilidades éticas enormativas (o campo dos valores), como talvez sepudesse presumir nas origens da universidade: muito7 http://www.idra.org

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ao contrário, a enorme capacidade de produção edestruição potencialmente concentrada na ciência e natecnologia as torna, em conseqüência, maisnecessitadas de parâmetros éticos que orientem suaação. Quanto a este último aspecto, no dizer de EdgarMorin, nós nos encontramos em um Titanic, deimpressionante desenvolvimento tecnocientífico, massem um piloto capaz de conduzir a destinos em que odesenvolvimento seja verdadeiramente humano.Segundo o grande pensador francês,

o conceito utilizado durante muitos anos era a idéiade que o desenvolvimento técnico-científicoeconômico era suficiente para rebocar, como umalocomotiva, os vagões de todo o trem dodesenvolvimento humano, ou seja: liberdade,democracia, autonomia, moralidade. Porém, o quese constata, hoje em dia, é que estes tipos dedesenvolvimento trouxeram, muitas vezes,subdesenvolvimentos mentais, psíquicos e morais.(MORIN, 2002)

Ameaças e desafios àtransdisciplinariedade

A nosso ver, a complexidade que aca-bamos de referir (realidades dialógicas, multidi-mensionais, contraditórias) pode ser abordada combase em uma perspectiva transdisciplinar, como adescrita por Klein para caracterizar a terceira geraçãoconsiderada em sua análise evolutiva do conceito.Transdisciplinaridade e complexidade, a partir destavisão, encontram-se intimamente associadas emuma produtiva díada. O “binômio complexidade/

transdisciplinaridade”, como Caetano, Curado eJacquinet denominavam esta relação, refere-se:

• De um lado, às realidades pesquisadas,complexo de fenômenos irredutível a umaúnica dimensão e cujos significadosdependem fortemente do contexto.

• De outro, ao esforço intelectual paracompreendê-las, por meio da elaboração demodelos que levem em conta o contexto, bemcomo as inter-retroações entre seuselementos constituintes.8

No desenvolvimento desta relação diádica, umaemergente visão universitária – a “Nova Academia”,segundo Klein – deve assumir seu posto, a fim depromover as necessárias transformações, tanto naformação de seus estudantes quanto na produção deconhecimento e na relação com a sociedade da qualfaz parte.

1. Um primeiro e básico nível de desafios aenfrentar diz respeito a repensar o ethosuniversitário, questão “transversal” àtransversalidade que estamos propondo.

Pode-se afirmar que uma das razões da mudança é deordem ética. Já mencionamos este aspecto em outras

8 Cf. João Carlos Caetano, Enrique Curado, Marc Jacquinet: On transdisciplinaryorganizations, innovation and law, em Transdisciplinarity: joint problem-solving among science, Technology and Society”, Workbook I:528. HaffmansSachbuch Verlag, Zurique, 2000.

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partes deste documento, mas é importante destacá-lo.O grande desafio, hoje, no campo da formaçãouniversitária e na produção e disseminação doconhecimento, é ir além de certa “neutralidade”científica, hoje obsoleta e contraproducente. Urgereformular o ethos universitário, questionar seu“curriculum oculto”, esclarecer as condições dedependência de forças conservadoras ou socialmenteirresponsáveis, de maneira a gerar um processode auto-análise institucional que conduza ao fortale-cimento da responsabilidade social da universidade.

2. Um segundo nível de desafios envolveobstáculos à consolidação de um pensamentoe de uma organização universitária transdis-ciplinar.

Estes obstáculos são freqüentes no sistema disciplinardominante, não obstante existirem importantesesforços, em diferentes universidades e centros depesquisa, vinculados a reformas no âmbito da

formação que estimulam essas transformações. Épossível caracterizá-los no quadro abaixo.

2.1 Obstáculos epistemológicos

Referem-se, fundamentalmente, a para-digmas reducionistas do conhecimento.

A universidade moderna tem baseado sua produção deconhecimento em um sistema de hegemonia disciplinarque, longe de promover articulações econtextualizações, facilita a hipertrofia do desen-volvimento especializado, cego às repercussões doconhecimento. Aqui se aplica a inquietante perguntade Helga Nowotny: que implica o que fazemos? Quemimplica o que fazemos?

A construção disciplinar, em si mesma, não éresponsável por essa situação. O risco resulta dahegemonia disciplinar do sistema de produção doconhecimento. Neste sentido, é válido precisar alguns

Obstáculos à formação transdisciplinar

Epistemológicos Paradigmas reducionistas do conhecimento

Culturais Brechas entre cultura científica, cultura humanística ecultura popular

Institucionais Saber/Poder em universidades, escolas e poderpúblico

Teórico-Metodológicos Instrumentos de formação (currículos, avaliação,capacitação de formadores)

Organizacionais Arquitetura, comunicação, concepções editoriais

Psicossociais Crise e transformação de identidades profissionais

Econômicos Mercado de trabalho e fontes de financiamento

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conceitos freqüentemente modificados em seusignificado.

Quais são as relações entre disciplinaridade,interdisciplinaridade e transdisciplinaridade? Pararesponder a esta pergunta, é preciso considerar as trêsoperações lógicas que Edgar Morin nos apresenta naarquitetura do pensamento complexo: distinção,conjunção, implicação. Basicamente, elas permitemdistinguir sem reduzir, conjugar sem confundir, emuma tarefa permanente de implicação entre distinguire associar. A operação lógica de distinção conduz àdisciplinaridade, distinguindo campos de saber, comsuas estruturas teóricas e metodológicas próprias e seuobjeto de estudo definido. A conjunção, de sua parte,nos abre um campo de diálogo da interdisciplinaridade,que não nega, nem reduz, nem mutila as áreasdisciplinares envolvidas, mas as potencializa,associando-as. Finalmente, por meio da implicação –operador lógico que relaciona os outros dois –compreendemos a atitude transdisciplinar, situada emum metanível sistêmico sobre a relação discipli-naridade/interdisciplinaridade. Tal atitude permite umaobservação que torna possível, a partir do trabalhoestritamente disciplinar, do trabalho interdisciplinar e,ainda, do conhecimento extradisciplinar compreenderas riquezas do diálogo multinível e horizontal.

Daí ser possível avançar, caracterizando:

• Transdisciplinaridade, como:

a) Atitude: formação de um espírito aberto aosvínculos e ao desconhecido;

b) Estratégia: conjugação de diferentes tipos deconhecimento (disciplinares e extradis-ciplinares), que permite – propõe – aarticulação de atores diversos para aprodução de um conhecimento pertinente.

Estas acepções representam o núcleo de significadoda equação: entre, através de e além das disciplinas.

• Interdisciplinaridade, como traduçãodestas abordagens epistêmicas em umprojeto concreto, que, multidimensional, nãose satisfaz apenas com o somatório demúltiplas observações disciplinares fragmen-tadas (multidisciplinaridade), mas, naverdade, é desenvolvido por diferentesdisciplinas pertinentes, com metodologiasespecíficas e rigorosas para seu plane-jamento, sua implementação e sua avaliação.

Esta categoria de obstáculo epistemológico apresentaigualmente outra condição, ou seja, a incapacidadepara pensar em si mesmo, o que, desde GregoryBateson, é proposto como “conhecer o conhecer”.

Desta perspectiva, encontram-se duas vertentesfundamentais em termos de necessidades. De um lado,a exigência de reformulações epistemológicas quepermitam a construção de um pensamento integrado,aberto à diversidade e à incerteza, com a consciênciade seus próprios desacertos e de suas limitações. Poroutro lado, a construção de uma atitude disposta a ummaior grau de humildade no tratamento dos dados darealidade e aberta à busca dos vínculos e dasintegrações imprescindíveis à produção de umconhecimento não mutilado nem mutilante. Neste

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sentido, a descrição feita por Julie Klein é pertinente,ao referir-se a alguns desenvolvimentos “interdis-ciplinares” que, ao longo do século XX, se sustentavamem visões “instrumentais”, “oportunistas” ou“pragmáticas”, sem considerar inquietudes episte-mológicas, reflexivas e críticas.

2.2 Obstáculos culturais

Referem-se, fundamentalmente, às gran-des fissuras existentes entre cultura científica, culturahumanista e cultura do saber popular.

O que acabamos de abordar no item anteriorarticula-se com este, a partir de uma perspectiva deintegração dos conhecimentos. Se, no plano doconhecimento acadêmico sistematizado, reivindica-seuma transformação epistemológica capaz de levar auma nova visão científica, no mesmo sentido se exige areunificação de domínios de saber que têm estadotradicionalmente separados e esvaziados de suarecíproca potencialidade. Referimo-nos ao que Morindenuncia como a frágil – se não inexistente – conexãoentre “as três culturas”: a cultura científica, a culturahumanística e a cultura de massas. Três culturas que,cada qual com seus modelos e suas dinâmicas – e,poder-se-ia dizer, desde o rumor ao algoritmo –apresentam enorme riqueza em seu âmago e quedeveriam potencializar-se por intermédio da fertiliza-ção cultural cruzada que aqui propomos. Novamente,como mencionado no item anterior, faz-se necessáriodistinguir, faz-se necessário associar. Também nestesentido, cabe à universidade abrir-se à possibilidade e àriqueza de um diálogo entre suas próprias e internas

culturas e aquela tradicionalmente entendida como“extra-muros” universitário. E que não deixa derepresentar uma muralha para a comunicação.

Isso implica, de igual modo, um componenteético-democrático. Neste sentido, vale mencionar oque disse Paulo Freire:

...a necessidade que sentimos de uma indispensávelvisão harmônica entre a posição verdadeiramentehumanista, cada vez mais necessária ao homem deuma sociedade em transição como a nossa, e a visãotecnológica. Harmonia, que implica a superação dofalso dilema humanismo-tecnologia, a fim de que,na preparação de técnicos para nosso desen-volvimento – sem o qual morreremos – eles nãotenham que enfrentar, em sua formação ingênua eacrítica, problemas outros que não os de suaespecialidade. (FREIRE, 1972:115).

2.3 Obstáculos institucionais

Referem-se, fundamentalmente, à defesade áreas de saber/poder nas universidades, escolasprofissionalizantes, entidades científicas e poderpúblico.

É possível permanecermos alijados das lutas e dosconflitos que, do ponto de vista institucional, permeiamo conhecimento e, portanto, a formação? No caso, háinumeráveis exemplos da função “policial” deorganizações que, com certo poder científico oupolítico, exercem vigilância sobre tipos e estratégias deprodução de conhecimento, inibindo ações empreende-doras e criativas. Esta, porém, é somente uma forma,dominante, mas não única, em que o poder do saberpode manifestar-se. A possibilidade de criar espaçospara pensar de maneira alternativa, sem pagar tributo

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às condições dominantes do establishment científico,são uma prova das tentativas de mudança e transfor-mação que emergem aqui e ali.

Recordemos Foucault:

É preciso admitir que o poder produz saber; quepoder e saber encontram-se diretamente implicadosum com o outro; que não existe relação de podersem que, de forma correlata, se constitua um campode saber, nem de saber que não implique e nãoconstitua, ao mesmo tempo, certas relações depoder. (...) Não seria a atividade do sujeito deconhecimento o que produziria um saber, útil ouadverso ao poder, mas o poder-saber, os processose as lutas que o permeiam e o constituem, é quedeterminam as formas, assim como os domíniospossíveis do conhecimento. (FOUCAULT, 1976)

Ilustrativo trabalho de Marie Langer, psicanalista eativa participante de lutas sociais, nos remetediretamente a esse ponto. Em um ciclo de debatesorganizado pela Faculdade de Ciências Políticas eSociais e pelo Colégio Psicanalítico Mexicano, MarieLanger abordou as vicissitudes do movimentopsicanalítico argentino. Relatou, por exemplo, que dosregulamentos de todas as entidades psicanalíticas“oficiais” (daquela época) constava, com variações, aseguinte norma:

Só é considerado psicanalista, tendo o direito deassim denominar-se, o associado a uma entidadepsicanalista [que seja] membro da AssociaçãoPsicanalista Internacional.

E comenta Langer:

Creio ser esta a única vez em que uma ciência édefinida por meio de um domínio institucional. Estanorma é a base do prestígio científico e do podereconômico que manipulará a instituição.(SUÁREZ et al., 1978:62).

2.4. Obstáculos teórico-metodológicos

Dizem respeito, fundamentalmente, aosinstrumentos da formação (programas, currículos,avaliação, capacitação de formadores etc.)

Talvez seja neste aspecto – juntamente com a reflexãoepistemológica – que se realizam as tentativas maisnotórias para sua gradativa transformação. Noentanto, as reformas educacionais – e na AméricaLatina estas têm sido dependentes de políticasneoliberais também relacionadas com o contexto daeducação – tentam mudanças muitas vezes de caráterapenas administrativo e poucas vezes associadas a umaprofunda revisão filosófica, ética e epistemológica dosfundamentos do ensino. Por seu lado, as universidades– e a educação superior, em geral – com regulamentosautônomos em sua maioria, vêm, lentamente, proce-dendo a reflexões que não chegam a concretizar-seem reformas efetivas, no sentido aqui proposto.

De igual modo se expressa Rigoberto Lanz, ao falar,entre outras coisas, da vulgarização do currículo e daadministração. Referindo-se ao temor às reformas,

Lanz comenta:

É provável que os males que afligem todo o sistemade educação superior representem um insumo emque as pessoas reconhecem, genericamente, certanecessidade (igualmente genérica) de mudanças,mas este nível de reconhecimento pareceinsuficiente para estimular processos deenvergadura, para apoiar projetos qualitativos detransformação, e para construir uma forçaintelectual com ânimo e transcendência. (LANZ,2003:266)

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Em conseqüência, também neste sentido cabe aosresponsáveis por programas, planejamento e avaliaçãocurricular, envolver-se em várias tarefas: a da análisedas necessidades reais, a das estruturas orçamentáriasuniversitárias, a das demandas da sociedade e domercado de trabalho, e last but not least, a da buro-cracia institucional conservadora no âmbito doprocesso decisório.

2.5 Obstáculos organizacionais

Referem-se, fundamentalmente, às condi-ções de ensino e de disseminação do conhecimento(arquitetura edilícia, estruturas de comunicação emediação entre campos do saber, concepçõeseditoriais para publicações científicas etc.)

Este ponto inclui, em seu extenso cabeçalho, diferentesassuntos, mas que, em seu conjunto, também impli-cam a dificuldade organizacional de estabelecerperspectivas alternativas ao clássico pensamentodisciplinar/departamental no seio da universidade.Felizmente, neste sentido, algumas concepçõeseditoriais assumiram uma visão transversal, não maissetorial ou disciplinar, em que confluem múltiplasobservações sobre um campo problemático, maispreocupadas com o campo em si do que com o caráterantes de tudo disciplinar. Torna-se possível, assim,gerar diálogos cruzados, criatividade e sinergia, que semanifestam a partir de outra perspectiva sistêmica –complexa no tratamento de assuntos de interessesocial. Planejamento urbano, tratamento dos recursoshídricos, políticas de saúde, discriminação, prevençãode catástrofes, segurança e desenvolvimento

econômico-social são alguns dos temas sobre os quaisincide uma nova visão, sob a exigência de umtratamento idôneo e urgente.

Pouco a pouco as universidades se abrem paraconsiderar esses assuntos complexos e multidi-mensionais de maneira transdisciplinar. Contudo, aindafalta proceder a mudanças em setores organizacionais,que permitam uma instrumentação mais eficiente dasnovas metodologias a serem aplicadas para seudesenvolvimento.

2.6 Obstáculos psicossociais

Referem-se, fundamentalmente, à crise e àtransformação das identidades profissionais, com seuscorrelatos nos imaginários individuais e coletivos.

As transformações de nossa época, de altacomplexidade, e que envolvem, em um sistema dereciprocidade, componentes econômicos, sociais,políticos e culturais, exigem mudanças corres-pondentes nos modos de intervir no mundo real e naformação para tal intervenção. Daí ser possívelcompreender o crescente e sustentado surgimento deinúmeras novas “disciplinas”, que tentam abordagensinovadoras e pertinentes em sua aplicação a novoscampos de problemáticas. Estes novos campos sãodefinidos mais por sua estrutura complexa do que pelavisão disciplinar. Em conseqüência, torna-se possíveltambém compreender a necessidade de inventarfórmulas de conexão e sinergias múltiplas entre osconhecimentos, superando os clássicos compar-timentos estanques do sistema de dominação

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disciplinar. Sabemos, por igual, que estes novos modos,ainda em elaboração, interpelam e questionam asclássicas “identidades” profissionais ou disciplinares.O conceito de “identidade profissional” encontra-se,hoje, em crise, não só no que se relaciona com osgraduados, mas também com os estudantes univer-sitários da pré-graduação, sujeitos, muitas vezes, asofrer a contradição de serem obrigados a se manterfiéis a uma cultura ou identidade institucionalfortemente arraigada em departamentos disciplinares,não obstante seus anseios pessoais e as demandas darealidade se voltem para outro lado.

Essa crise de identidade anuncia também o risco donão reconhecimento, por parte de certa comunidadeacadêmica e de certo mercado de trabalho, que muitasvezes parece sentir-se mais atraído por normasprofissionais conhecidas e legitimadas pelo pensa-mento dominante do que por uma busca deconhecimentos novos e intervenções profissionais apartir de outros paradigmas. Por certo – e apro-veitamos para destacar tal fato – este obstáculo àformação transdisciplinar paga tributo a condiçõesinstitucionais, epistemológicas e teóricas, das quais jáfalamos antes. Forma-se, assim, um circuito quedeverá ser abordado com fundamento em diferentesestratégias concorrentes e complementares, a fim deavançar em sua superação.

2.7 Obstáculos econômicos

Referem-se, fundamentalmente, por umlado, às possibilidades ofertadas por um mercado detrabalho crescentemente tecnocrático e hiper-

especializado; por outro, às fontes de financiamentopara pesquisa e desenvolvimento de áreastransdisciplinares.

O mercado de trabalho – baseado na concepçãodominante do “especialista” – oferece escassasoportunidades para que um graduado “transdisciplinar”tenha acesso a áreas de trabalho estimulantes,compatíveis com sua prática e economicamentesustentáveis. Entretanto, registre-se, basicamente nosetor tecnológico e na indústria de vanguarda,experiências altamente estimulantes para umpensamento e para uma prática transversal no campodo conhecimento. Vale destacar não ser esta umaprática freqüente, e muito menos na América Latina,onde a cristalização de modelos clássicos e em geralinoperantes ou deficitários mantém-se resistente aqualquer tentativa de mudança.

Aí vale igualmente resgatar as múltiplas experiênciasde reforma que no âmbito universitário latino-americano vêm sendo gestadas e produzidas, hámuitos anos, ainda que com múltiplas dificuldades pelafalta de potencialidade e influência.

Por outro lado, no que se refere às fontes definanciamento para pesquisa, é digna de nota aocorrência de certa mudança nos parâmetros dereferência dos últimos anos, incorporando importantesperspectivas transdisciplinares, como a perspectiva degênero e a interdisciplinaridade das abordagens.Trata-se de tendência sustentada e crescente, que nosconvida a questionar se a formação universitáriadominante se encontra pronta para oferecer a seusestudantes as condições de aptidão – epistemológicas,

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teóricas, metodológicas – para ingressar no circuito dapesquisa destes parâmetros.

Todavia, quanto a esse aspecto do financiamento,também é correto dizer que se trata de uma tendênciarecente e que seu corpus teórico encontra-se emprocesso de “maturação”. Isto é particularmenteverdadeiro quando se fala de estratégias de avaliaçãode projetos transdisciplinares. Embora exista um bomnúmero de sistematizações a respeito da avaliaçãotransdisciplinar9, este é um capítulo ainda em processode desenvolvimento e em relação ao qual as univer-sidades latino-americanas também deveriam trabalhar.

As categorias de obstáculos que acabamos de resumirrapidamente, sem pretender exauri-las, constituembarreiras importantes no desenvolvimento de umanova mentalidade na produção e utilização doconhecimento. Cada uma delas apresenta relevantecomplexidade e se encontra, em boa parte, cativa deextensas histórias de cristalização e resistência amudanças. Por outro lado, a despeito de essaclassificação pretender identificar núcleos proble-máticos, é evidente que cada um incide de maneirarecursiva sobre os demais, gerando um circuito cujaabordagem demanda diferentes e particularesestratégias em cada caso, e a partir de uma concepçãocoerente. Espaços de reflexão e de intercâmbio, comoa Escuela Regional de Verano Management ofSocial Transformations (Most), da Organização das

Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura(Unesco)10, para América Latina e Caribe, oferecemexcelente oportunidade de contribuir para astransformações necessárias que urge implementar,por imperativo histórico da realidade latino-americana.

Assim, poderemos, com justiça, recuperar um vínculofortalecido entre produção de conhecimento ecidadania, formular um novo “contrato social” entre auniversidade e sociedade.

Bibliografia

CARRIZO, Luís. Transdisciplinariedad yComplejidad en el Análisis Social. Paris: Unesco,2003.

CIID/IDRC. Conocimiento sin barreras.Montevidéu: Nordan, 1996.

DEFILA, Rico e DI GIULIO, Antonietta.An assessment instrument for inter-and trans-disciplinary research. In: HABËRLI, et al. (Ed.):Transdisciplinarity: Joint problem-solving amongScience, Technology and Society. Zurique: HaffmansSachbuch Verlag, 2000. Workbook 1

FOUCAULT, Michel. Vigilar y castigar. nacimientode la prisión. México: Siglo XXI, 1976.

9 Nossa colega Julie Klein realizou magnífico esforço neste sentido (cf., por exemplo,Carrizo et al., 2003). Também, entre muitos outros, Rico Defina e Antonietta DiGiulio realizaram substanciais aportes netes sentido (cf. Defina y Di Giulio,2000:109). 10 http: www. unesco.org/most, http://www.unesco.org/mosthtm

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89CONHECIMENTO E RESPONSABILIDADE SOCIAL: AMEAÇASE DESAFIOS PARA A UNIVERSIDADE TRANSDISCIPLINAR LUÍS CARRIZO

FREIRE, Paulo. La educación como práctica de lalibertad. Montevidéu: Tierra Nueva, 1972.

KLEIN, Julie T. et al. Transdisciplinarity: jointproblem solving among science, technology andsociety. Basiléia: Birkhäuser Verlag, 2001.

KLEIN, Julie T. Transdisciplinariedad: discurso,integración y evaluación. In: CARRIZO, Luíz et al.Transdisciplinariedad y Complejidad en el AnálisisSocial: Documento de Debate. MOST. Paris: Unesco,2003.

LANZ, Rigoberto. (Comp.). La Universidad seReforma. Caracas: Unesco-Orus-UCV, 2003.

LATOUR, Bruno. L’espoir de Pandore. Paris: LaDécouverte, 2001.

MORIN, Edgar. Estamos en un Titanic?. Revista“Observatorio Social”, Buenos Aires, n. 10, agosto2002.

PENA-VEGA, Alfredo; MORIN, Edgar. Université:quel avenir?. Paris: Ed. Charles Lépold Mayer, 2003.

RIBEIRO, Darcy. La universidad nueva: unproyecto. Buenos Aires: Ciência Nueva, 1973.

SUÁREZ, Armando et al. Razón, locura y sociedad.México: Siglo XXI, 1978.

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91NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS

NORMAS PARAAPRESENTAÇÃO DEORIGINAIS

Associação Brasileira de Mante-nedoras de Ensino Superior (ABMES), por meio darevista Estudos, de conteúdo temático, priorizará apublicação de textos apresentados nos semináriosrealizados pela entidade.

A revista Estudos poderá, excepcionalmente, publicartrabalhos (ensaios, artigos de pesquisa, textos dereferência e outros) sobre temas e questões deinteresse específico das instituições de ensino superiorassociadas, os quais deverão ser submetidos àaprovação da Diretoria da ABMES e do ConselhoEditorial.

Em ambos os casos, os trabalhos devem ser inéditos eenviados para a publicação exclusiva da revista.

Observar as seguintes normas na apresentação dosoriginais:

A 1. Título acompanhado do subtítulo, quando foro caso, claro, objetivo e sem abreviaturas;

2. Nome do autor e colaboradores por extenso,em itálico e negrito, com chamada (*) pararodapé, onde serão indicadas credenciaisescolhidas pelo autor;

3. Dados sobre o autor – nome completo,endereço para correspondência, telefone,fax, e-mail, vinculação institucional, cargo,área de interesse, últimas publicações.

4. Resumo de dez linhas que sintetize ospropósitos, métodos e principais conclusões.

5. Texto digitado em espaço duplo, fonte 12,versão Word 7.0 ou superior, evitando tiposinclinados e de fantasia. Salvo casos

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absolutamente excepcionais e justificados, osoriginais não devem ultrapassar o limite de 15a 20 páginas digitadas. O texto deverá serenviado por e-mail ([email protected]).

6. As margens devem ser de 3 cm à esquerda, àdireita, em cima e embaixo. Entrelinhasdevem conter as seguintes especificações:espaço dois no texto corrido e nastranscrições; espaço três entre as seções esubseções.

7. O início de parágrafos e de alíneas deve terseis toques a partir da margem esquerda enas transcrições espaço de doze toques paratodas as linhas, a partir da margem esquerda.

8. Os títulos e subtítulos devem ser claramenteidentificados e hierarquizados por meio derecursos sucessivos de destaque, tais como:caixa alta (letra maiúscula) com sublinha;caixa alta sem sublinha; caixa alta e baixacom sublinha; caixa alta e baixa sem sublinha.

9. As citações a autores, no correr do texto,bem como nas referências bibliográficas,devem seguir as orientações da NBR10520(Citações em documentos) e NBR6023(Elaboração de referências).

10. As citações, as chamadas pelo sobrenome doautor, pela instituição responsável ou títuloincluído na sentença devem ser iniciadas emletra maiúscula e as seguintes em minúscula,mas quando não houver a chamada na

sentença, devem ser apresentados entreparênteses e com todos os caracteres emletras maiúsculas. Exemplo: De acordo comBarbosa (2002, p.26), “o protestantismo noBrasil foi encarado como intruso durante todoo século XIX, tanto pelos missionários quelutaram para superar as difíceis barreiras, masprincipalmente pelos representantes da IgrejaRomana”. Ou: “O protestantismo no Brasil foiencarado como intruso durante todo o séculoXIX, tanto pelos missionários que lutarampara superar as difíceis barreiras, masprincipalmente pelos representantes da IgrejaRomana”. (BARBOSA, 2002, p.26) E, aindana citação da citação: Analisando a marchaabolicionista no Brasil, perguntou-se à época:“o que nós queremos que o Brasil se torne?Para que é que trabalhamos todos nós, osque, com a opinião dirigimos seus destinos?”(RODRIGUES, 1871 apud BARBOSA,2002, b. p. 115).

11. Obras do mesmo autor e do mesmo anodevem ser ordenadas em ordem alfabética,seguidas de letras do alfabeto: 1997a,1997b,1997c, discriminado-as, no corpo dotexto, sempre que forem citadas.

12. Notas exclusivamente de natureza substantivadevem ser numeradas seqüencialmente.

13. Ilustrações complementares – quadros,mapas, gráficos e outras – podem ser, se for ocaso, apresentadas em folhas separadas dotexto, com indicação dos locais onde devem

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93NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS

ser inseridas, numeradas, tituladas, com aindicação da fonte. Sempre que possível,devem estar confeccionadas para reproduçãodireta.

14. A primeira citação de nome ou título quetenha siglas e abreviações deverá aparecerregistrada por extenso, seguido da siglaseparada do nome por um traço (hífen). Se asigla tiver até três letras ou se todas as letrasforem pronunciadas deve-se gafar todas asletras da sigla em maiúsculas. Exemplo: CEF,MEC, BNDES, INSS. E as siglas de mais detrês letras formando palavras devem aparecerem caixa alta e baixa. Exemplo: Unesco,Semesp, Funadesp.

15. As citações diretas, no texto, de mais de trêslinhas devem ser colocadas com recuo de 4cm da margem esquerda, na fonte 10, espaçosimples e sem aspas.

16. As palavras e/ou expressões em línguaestrangeira devem aparecer em itálico.

Referências bibliográficas

1. Livros

DIAS, Gonçalves. Gonçalves Dias: poesia.Organizada por Manuel Bandeira. Revisão críticapor Maximiano de Carvalho e Silva. 11.ed. Rio deJaneiro: Agir, 1983. 175p.

BARBOSA, José Carlos. Negro não entra naigreja: espia na banda de fora. Protestantismo eescravidão no Brasil Império. Piracicaba: Ed.Unimep, 2002. 221p.

COLASANTI, Marina. Esse amor de todos nós.Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 231p.

OLIVEIRA, José Palazzo et al. Linguagem APL.Porto Alegre: CPGCC da UFRGS, 1973. 15p.

2. Artigos em revistas

MOURA, Alexandrina Sobreira de. Direito dehabitação às classes de baixa renda. Ciência &Trópico, Recife, v.11, n.1, p.71-78, jan./jun. 1983.

METODOLOGIA do Índice Nacional de Preços aoConsumidor – INPC. Revista Brasileira deEstatística, Rio de Janeiro, v. 41, n. 162, p. 323-330,abr./jun. 1980.

3. Artigos em jornais

COUTINHO, Wilson. O Paço da Cidade retornaseu brilho barroco. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,6 mar. 1985. Caderno B, p. 6.

BIBLIOTECA climatiza seu acervo. O Globo, Riode Janeiro, 4 mar. 1985. p.11, c. 4.

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4. Leis, decretos e portarias

BRASIL. Lei n.º 9.887, de 7 de dezembro de 1999.Altera legislação tributária federal. Diário Oficial[da]República Federativa do Brasil, Brasília, DF,8 dez. 1999. Seção 1 p.13.

5. Coletâneas

ABRANCHES, Sérgio Henrique. Governo,empresa estatal e política siderúrgica: 1930-1975.In: LIMA, O . B.;

ABRANCHES, S. H. (Org.). As origens da crise.São Paulo: Vértice, 1987.

6. Teses acadêmicas

MORGADO, M. L.C. Reimplante dentário. 1990.51 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Espe-cialização) – Faculdade de Odontologia, Univer-sidade Camilo Castelo Branco, São Paulo, 1990.

O envio de trabalhos implica cessão de direitosautorais para a revista.

Serão fornecidos ao autor principal de cada artigocinco (5) exemplares do número da revista em queseu artigo foi publicado.

Os textos assinados são de responsabilidade de seusautores.

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Esta obra foi composta em Times New Roman eimpressa nas oficinas da Athalaia Gráfica eEditora Ltda, no sistema off-set sobre papeloff-set 90g/m2, com capa em papel couchê fosco240g/m2, para a Associação Brasileira deMantenedoras de Ensino Superior (ABMES),em junho de 2006.