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António Santos Abrantes Geraldes 1 RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL - Quadro normativo e papel do Supremo Tribunal de Justiça na evolução do instituto 1 António Santos Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça) _________________________________________________________ Sumário: 1. Introdução 2. Uniformização de jurisprudência em sede de responsabilidade civil extracontra- tual 2.1. Concretização e clarificação de normas do Código Civil 2.2. Harmonização do regime jurídico da responsabilidade civil com o regime do seguro obrigatório e o direito da União Europeia 2.3. Desenvolvimento jurisprudencial no campo da responsabilidade civil extracontratu- al 3. Alguns temas em debate na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3.1. Transporte gratuito 3.2. Responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas 3.3. Quantificação de danos 3.4. Responsabilidade médica 3.5. Concorrência entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado ou de terceiro 3.6. Dano da privação do uso ________________ 1. Introdução: Como foi referido pelo Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça no discurso que marcou a Sessão Solene das Comemorações do Cinquentenário do Código Civil Português, “o Código Civil de 1966 integra-se na tradução codifica- dora, reunindo num grande documento normativo conjuntos coerentes e me- todologicamente harmoniosos da disciplina jurídica, reguladores dos momen- 1 Texto que serviu de guião à intervenção no Colóquio sobre o Código Civil (no âmbito das Comemorações do Cinquentenário), no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 27-10-2016.

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Page 1: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL - …...se na culpa, mas com inversão do ónus da prova; e para a decorrente da condução de veículos terrestres, o dos arts. 483º, nº 1,

António Santos Abrantes Geraldes

1

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL - Quadro normativo e papel do Supremo Tribunal de Justiça na evolução do instituto 1

António Santos Abrantes Geraldes

(Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça)

_________________________________________________________

Sumário:

1. Introdução 2. Uniformização de jurisprudência em sede de responsabilidade civil extracontra-tual

2.1. Concretização e clarificação de normas do Código Civil 2.2. Harmonização do regime jurídico da responsabilidade civil com o regime do seguro obrigatório e o direito da União Europeia 2.3. Desenvolvimento jurisprudencial no campo da responsabilidade civil extracontratu-al

3. Alguns temas em debate na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 3.1. Transporte gratuito 3.2. Responsabilidade civil das concessionárias de auto-estradas 3.3. Quantificação de danos 3.4. Responsabilidade médica 3.5. Concorrência entre a responsabilidade pelo risco e a culpa do lesado ou de terceiro 3.6. Dano da privação do uso

________________

1. Introdução:

Como foi referido pelo Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça no discurso que marcou a Sessão Solene das Comemorações do Cinquentenário do Código Civil Português, “o Código Civil de 1966 integra-se na tradução codifica-dora, reunindo num grande documento normativo conjuntos coerentes e me-todologicamente harmoniosos da disciplina jurídica, reguladores dos momen-

1 Texto que serviu de guião à intervenção no Colóquio sobre o Código Civil (no âmbito das Comemorações do Cinquentenário), no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 27-10-2016.

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tos essenciais da vida de todos e da construção dos equilíbrios fundamentais da sociedade”.

Apesar disso – ou por isso – não dispensa nem a Doutrina nem muito menos a Jurisprudência como factores de mediação entre a lei e a vida, o que é espe-cialmente relevante no campo da responsabilidade civil, área onde se revelam novas exigências da sociedade que ainda não encontraram nos textos legais o seu inequívoco tratamento, confrontando os Tribunais com a necessidade de soluções que, ultrapassando o mero resultado da aplicação silogístico-formal do direito positivo.

O lapso de tempo transcorrido desde a entrada em vigor do Código Civil, a multiplicidade de acórdãos em matéria da responsabilidade civil extracontratu-al ou a ausência de registo especificamente dedicado a esse tema dificultam a realização de um balanço sobre o papel do Supremo Tribunal de Justiça nessa área do direito. Mais fácil é seguir os diversos Assentos e Acórdãos de Uni-formização de Jurisprudência que permitem identificar as principais dificulda-des que foram sentidas na interpretação e aplicação das normas jurídicas e que revelam com mais firmeza as respostas que ao longo do tempo foram dadas às questões submetidas ao Pleno.

2. Uniformização de jurisprudência em sede de responsabilidade civil extracontratual

Sensatamente o legislador de 1966 não negou ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto órgão de cúpula do sistema judiciário, a possibilidade de traduzir em Assentos a interpretação jurídica uniformizada, concedendo-lhe, nos termos que então ficaram consagrados no art. 2º do Código Civil, uma função verda-deiramente legislativa, posto que circunscrita à escolha, temporalmente locali-zada, de um dos sentidos que legitimamente poderiam ser extraídos da norma interpretada.

Essa função é exercida pelo Tribunal Constitucional e encontra paralelo, ao nível do direito europeu, na atribuição ao Tribunal de Justiça da função de interpretar as normas da União Europeia, não se compreendendo, assim, que internamente tivesse sido declarada a inconstitucionalidade do art. 2º do Códi-go Civil que consagrava a força obrigatória geral dos Assentos e menos ainda que em lugar da revogação pura e simples de tal preceito se tivesse envereda-do por uma solução que mantivesse a força vinculativa da jurisprudência uni-formizada no quadro dos Tribunais.

Ainda que sem força obrigatória, neste momento, e beneficiando apenas da força persuasiva que emerge da natureza e da solenidade que os rodeia, ao

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longo dos últimos 50 anos foram proferidos Assentos2 e Acórdãos de Uni-formização de Jurisprudência3 que permitem percepcionar o papel desempe-nhado pelo Supremo Tribunal de Justiça na interpretação e desenvolvimento das normas que regulam o instituto da responsabilidade civil extracontratual.

Tais arestos podem subdividir-se em três vertentes essenciais:

a) Com função clarificadora ou concretizadora de normas do Código Civil de 1966

b) Visando a harmonização do direito nacional com direito da União Euro-peia e

c) Com natureza inovadora, superando certos obstáculos interpostos por uma visão formalista do direito positivo.

2.1. Concretização ou clarificação de alguns preceitos do Cód. Civil de 1966:

a) Assento do STJ, nº 1/80:

“O disposto no art. 493º, nº 2, do CC, não tem aplicação em matéria de acidentes de circu-lação terrestre.”

Nas primeiras décadas de aplicação do Código Civil e numa altura em que se vulgarizava a aquisição, detenção e circulação de veículos automóveis, com efeitos no aumento da sinistralidade rodoviária, discutia-se se, para efeitos do disposto no art. 493º, nº 2, do CC, condução automóvel constituía, por si, uma actividade perigosa “pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utili-zados”.

Tratava-se de uma questão importantíssima, numa ocasião em que ainda não tinha sido introduzido o seguro obrigatório de responsabilidade civil automó-vel. Uma resposta afirmativa aliviaria o ónus probatório a cargo do lesado, passando a beneficiar de uma presunção legal de culpa que recaía sobre o deten-tor, em desvio da regra geral que consta do art. 487º do CC. Simultaneamente facilitaria a integração dos casos no regime da responsabilidade subjectiva (por culpa presumida), evitando a sujeição da indemnização aos limites quantitati-

2 No âmbito do recurso extraordinário para o Pleno previsto na versão do CPC de 1961 que vigorou até 1997, agora com valor de Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência. 3 Estes no âmbito do julgamento ampliado de recurso de revista introduzido pela reforma do processo civil de 1996/97 e no âmbito de recursos extraordinário para uniformização de jurisprudência reintroduzido com a reforma do regime dos recursos de 2007 e que persis-tem no actual CPC.

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vos que então estavam fixados no art. 508º para a responsabilidade objectiva decorrente de acidentes de viação.

A solução assumida pelo Supremo foi a de excluir daquele preceito os veículos automóveis ou a actividade de condução automóvel, enquanto tal, tendo-se ponderado que a matéria encontrava regulamentação específica no art. 503º, norma que, a um só tempo, atribuía ao detentor do veículo a responsabilidade objectiva pelos danos ocorridos e ao condutor por conta de outrem a presun-ção de culpa transmissível àquele por via da relação de comissão, nos termos do art. 500º. 4-5

4 Extracto da fundamentação:

“Certo que a condução automóvel constitui uma actividade muito perigosa, se bem que quanto a nós o perigo resulte mais da forma como é exercida do que da própria activi-dade em si. Seja, porém, como for, considerou-se causa de frequentes e gravíssimos acidentes e foi em função disso que a responsabilidade pelos danos deles decorrentes se submeteu en-tre nós, como em outros países, à especial e excepcional disciplina da teoria objectiva ou do risco, que fora da matéria de acidentes de trabalho se não alargou ainda aos danos derivados de outras actividades perigosas, com relação às quais se teve como bastante, dentro do sistema regra da responsabilidade subjectiva, a dita norma especial do nº 2 do art. 493º, de inversão do ónus da prova quanto à culpa, pelo que também por essa razão não será a mesma de aplicar nos casos em que se trate de acidentes provocados por veí-culos. O que quer dizer que a responsabilidade civil por danos causados por qualquer veículo de circulação terrestre se encontra sujeita, quer ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos prevista nos arts. 483º, nº 1, e 487º, nº 1, do CC, quer ao regime excepcio-nal de responsabilidade pelo risco a que se refere o seu art. 503º, conforme se prove ou não uma actuação dolosa ou simplesmente culposa do responsável e somente a esses. O da presunção de culpa do nº 2 do art. 493º respeita aos casos de danos causados no exercício de outras actividades perigosas que não têm para a sua disciplina, como a da viação acelerada, o regime bem mais gravoso da responsabilidade objectiva ou indepen-dente da culpa. Pelo que há, em tais condições, como se acentuou no Ac. do STJ, de 17-10-78 (BMJ 280º, p. 266), regimes jurídicos distintos para cada uma das referidas actividades perigo-sas: para as de carácter geral, o do art. 493º, n.º 2, ou seja o da responsabilidade com ba-se na culpa, mas com inversão do ónus da prova; e para a decorrente da condução de veículos terrestres, o dos arts. 483º, nº 1, e 487º, nº 1, quando se prove a culpa, ou o do art. 503.º, quando ela se não prove e se não verifique qualquer dos casos de exclusão mencionados no art. 505º. … Este entendimento é o que corresponde à interpretação correcta da lei. Atendendo à es-pecial perigosidade inerente à circulação de veículos, o legislador admitiu neste domínio, para protecção dos lesados, a responsabilidade pelo risco (art. 503º). Mas não há qual-quer indício de que, além desta protecção - já de si excepcional, pois não vale para o comum das actividades perigosas, onde se não foi além do regime da culpa presumida -, o legislador tenha querido afastar também o princípio segundo o qual é ao lesado que

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Note-se, porém, que a doutrina do Assento incide essencialmente sobre os veículos de circulação terrestre enquanto equipamentos usados para desloca-ção de pessoas e bens, não retirando a possibilidade de a norma do art. 493º, nº 2, do CC, ser aplicada a acidentes com outro tipo de veículos ou a acidentes com veículos utilizados noutras circunstâncias especiais.

É por este motivo que a interpretação uniformizadora não tem impedido os Tribunais de considerar como “perigosas” certas actividades ligadas à circula-ção ou utilização de veículos de locomoção terrestre.6

b) Assento do STJ nº 1/83:

“A 1ª parte do nº 3 do art. 503º do CC estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como le-sante e o titular ou titulares do direito a indemnização.”

É questionável a base argumentativa da solução que ficou consagrada no art. 503º, nº 3, do CC, que faz recair a presunção de culpa sobre o condutor por con-ta de outrem, isto é, sobre aquele que esteja numa relação de comissão com o detentor efectivo do veículo. Presunção que, afectando, em primeiro lugar, tal condutor, se transmite ao respectivo comitente que assume, por essa via, a

incumbe provar a culpa do autor da lesão (art. 487º), quando a acção de indemnização se baseie na culpa e não no risco.”

5 Sobre este Assento cfr. o comentário publicado na RLJ 113º/152, assim como a análise crítica de Maria da Graça Trigo, nos Cadernos de Direito Privado, nº 32, págs. 22 e segs. 6 Assim o revelam, por exemplo, o Ac. do STJ, de 17-6-10, na CJSTJ, tomo II, pág. 109, que incidiu sobre um acidente com intervenção de uma empilhadora, o Ac. do STJ, de 6-4-95, BMJ 446º/217, em que estava em causa uma máquina de demolição e de perfuração com martelo, ou o Ac. do STJ, de 15-11-11 (escavadora), este em www.dgsi.pt. Cfr. ainda o Ac. da Rel. de Lisboa, de 14-1-10, CJ, tomo I, pág. 71 (utilização de retroescavadora), o Ac. da Rel. de Coimbra, de 9-2-93, CJ, tomo I, pág. 41) ou o Ac. da Rel. de Lisboa, de 23-3-93, CJ, tomo II, pág. 121 (utilização de máquinas). A actividade de condução e de circulação de veículos foi considerada concretamente peri-gosa em certos casos pelo Ac. do STJ, de 6-6-02, CJSTJ, tomo II, pág. 98 (karting), e pelo Ac. do STJ, de 17-11-05, CJSTJ, tomo III, pág. 117 (rally automóvel). Uma interpretação restritiva da referida jurisprudência uniformizada foi adoptada também no Ac. do STJ, de 7-12-99, CJSTJ, tomo III, pág. 231, considerando que a doutrina do As-sento não abarcava a condução em estado de embriaguez. Mais recentemente a mesma distinção marcou o Ac. do STJ, de 7-4-16 (www.dgsi.pt), em que estava em causa a actividade de transporte de uma grua, através de engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, considerando-se que tal constituía uma actividade perigosa. E no Ac. do STJ, de 9-7-15, relatado pelo signatário, considerou-se perigosa a actividade que envolvia o uso de auto-gruas telescópicas.

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responsabilidade objectiva. Trata-se, no entanto, de uma solução legal que re-sulta de uma opção do legislador e que o intérprete deve respeitar.

Questionava-se, no entanto, se tal presunção de culpa actuaria apenas nas re-lações entre o condutor comissário e o detentor comitente ou se, pelo contrá-rio, se destinava a beneficiar o lesado pelo acidente de viação, podendo ser por este invocada.

A interpretação que acolheu este sentido normativo foi de extrema importân-cia, sendo aquela que efectivamente melhor corresponde ao texto legal e aos desígnios do legislador, reforçando a protecção do lesado nos casos em que o aci-dente é provocado por veículo conduzido por conta do respectivo detentor efectivo. 7-8

Assim, ao mesmo tempo que é dispensado de demonstrar a culpa do condu-tor, o lesado acaba por beneficiar da transmissão da responsabilidade por cul-pa presumida ao comitente. Atenta a obrigatoriedade do seguro de responsa-bilidade civil que posteriormente foi introduzida, consolidou-se uma maior protecção dos lesados, na medida em que as indemnizações devem ser recla-madas directamente das Seguradoras e não dos segurados.

c) Assento do STJ nº 3/94:

“A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no art. 503º, nº 3, 1ª parte, do CC, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no art. 506º, nº 1, do mesmo Código”. 7 Extracto da fundamentação:

“A presunção de culpa do condutor por conta de outrem, estabelecida no nº 3 do citado art. 503º, de modo algum poderá considerar-se aplicável nas relações internas entre os vá-rios responsáveis pelo risco, mas sim nas relações entre o lesante e o titular do direito à indemnização, por ser inconcebível que, com a prova de exclusão de culpa sua, o comis-sário, no exercício dessas funções, afaste responsabilidade por risco, uma vez que a lei o não responsabiliza a tal título por não ter a direcção efectiva e interessada do veículo, o que constitui fundamento dessa responsabilidade. ... E, na verdade, não parece desajustada a solução encontrada, quer porque se não vê razão para não considerar excluída a presunção perante disposições legais que se mostre exi-girem a culpa efectiva, quer porque não é de admitir que o legislador pretendesse sancio-nar injustificadas disparidades, se as tivesse previsto. De qualquer modo, crê-se que no preceito em causa se estabelece uma presunção de cul-pa que não foi ainda desmentida por modo convincente”.

8 Cfr. o comentário a este Assento na RLJ 124º, pp. 279 e segs., e Maria da Graça Trigo, nos Cadernos de Direito Privado, nº 32, págs. 27 e segs. O Ac. TC nº 226/92 não considerou inconstitucional a norma do art. 503º, nº 3, do CC, nos termos em que foi interpretada pelo Assento.

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Este Assento acaba por complementar o anterior. Sendo uma parte substanci-al dos acidentes de viação resultantes da colisão de veículos, veio clarificar que o regime do art. 506º do CC, que aposta na distribuição da responsabilidade em função do risco inerente à circulação de cada veículo interveniente, cede nos casos e que sobre algum dos condutores incida a presunção de culpa pre-vista no art. 503º, nº 3.9

9 Extracto da fundamentação:

“O cerne da argumentação desta doutrina e jurisprudência pode sintetizar-se assim: a) Segundo o Assento de 14-4-83, a 1ª parte do nº 3 do art. 503º estabelece uma presun-ção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, apli-cável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemniza-ção; b) Há diversas razões, como o afrouxamento da vigilância do veículo e da sua manuten-ção e bom funcionamento, a fadiga do condutor, o subestimar do risco, o facilitar da condução, etc., que justificam se faça distinção entre o dono que conduz o próprio veí-culo e o comissário ou condutor por conta de outrem e se considere este último mais perigoso, a ponto de se presumir culpado, salvo se provar que não houve culpa da sua parte (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., p. 657, e RLJ 122º, pp. 178 e 179, e 121º, pp. 52 e segs.); c) O primeiro dos elementos a ter em conta na reconstituição do pensamento legislativo é a unidade do sistema jurídico (art. 9º, nº 1, do CC), o que pressupõe coerência e lógica no pensamento do legislador, que há-de traduzir-se na uniformidade de critérios dentro de toda a ordem jurídica, pelo que é de todo razoável transportar para a interpretação e aplicação do disposto no art. 506º, nº 1, a presunção legal de culpa do comissário esta-belecida no art. 503º, nº 3, 1ª parte, devendo entender-se que este último texto proclama a presunção legal de culpa do condutor por conta de outrem em termos gerais, que tan-to valem para os danos causados pelo simples atropelamento como para os danos pro-venientes da colisão de veículos; d) As razões supra-referidas na al. b), justificativas da distinção entre o condutor por conta de outrem e o condutor do seu próprio veículo, também valem para o caso da co-lisão de veículos prevista no art. 506º, nº 1; e) Este art. 506º, nº 1, não distingue entre culpa efectivamente provada e culpa presumi-da e não ilidida pelo condutor por conta de outrem, e, como já se disse, não se justifica que se faça tal distinção, porquanto as razões da justiça em que assenta a presunção legal de culpa do art. 503º, nº 3, 1ª parte, também colhem para a hipótese da colisão de veícu-los em que intervenha um condutor por conta de outrem e por isso a culpa referida no art. 506º, nº 1, tanto abrange a culpa efectivamente provada como a culpa apenas pre-sumida; f) Tanto é culpa a efectivamente provada como a presumida, apenas se diferençando pe-lo facto de aquela resultar de todos os elementos concretos de prova e de esta última de-rivar de uma presunção, mas claro é que as presunções são um meio de prova (arts. 344º, 349º e 350º do CPC)”.

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d) Assento do STJ nº 7/94:

“A responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do art. 503º, nº 3, do CC, não tem os limites fixados no nº 1 do art. 508º do mesmo diploma.”

Trata-se de Assento cuja utilidade prática se encontra ultrapassada pela actual redacção do art. 508º do CC, introduzida pelo Dec. Lei nº 59/04, de 19-3. Na medida em que o limite da responsabilidade objectiva passou a estar alinhado com o limite do capital do seguro obrigatório, serão raríssimas as situações em que a tutela do lesado, no que concerne ao limite quantitativo da indemniza-ção, possa ser negativamente afectada pela aplicação do regime da responsabi-lidade pelo risco.10

Tal não prejudica, no entanto, a apreciação de que tal Assento constituiu um passo importante no sentido da efectiva tutela dos lesados, na medida em que na época tornou claro que a aplicação do limite quantitativo da indemnização devida ao lesado, aferido através da alçada da Relação, se restringia aos casos de responsabilidade objectiva e que excluía não só aqueles em que houvesse culpa efectiva do condutor que fosse comissário, como ainda aqueles em que ao mesmo condutor fosse imputada a culpa presumida por via da relação de comissão, nos termos do art. 503º, nº 3, do CC.

10 Extracto da fundamentação:

“7 - Exegese da norma O nº 3 do art. 503º preceitua: aquele que conduzir o veículo por conta de outrem res-ponde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, po-rém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº 1. O elemento literal de interpretação leva à conclusão de que «aquele que conduzir o veí-culo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte». A lei não distingue e o intérprete não o deve fazer. Aliás, muito antes da publicação do Assento de 14-4-83, na RLJ, Vaz Serra afirmava categoricamente: Portanto o condutor por conta de outrem responde por culpa (presumida) salvo pro-vando que não teve culpa. A sua responsabilidade funda-se em culpa que a lei presume. (cfr. RLJ 112º, p. 119.) Ao contrário do responsável nos termos do nº 1 do art. 503º, o qual responde pelo ris-co, o simples condutor por conta de outrem só responde por culpa que é presumida pe-la lei (cfr. Antunes Varela, RLJ 122º, pág. 177). Assim, a solução consagrada no nº 3 do art. 503º do CC (de acordo com o sentido natu-ral do seu discurso gramatical) é perfeitamente lógica e compreensível, quer antes, quer depois do assento. 7.1 - Por outro lado, a solução que garante a coerência de pensamento do legislador, e que melhor serve a unidade do sistema jurídico, é, sem dúvida, a que estende a presun-ção de culpa consagrada no nº 3 do art. 503º do CC às situações contempladas nos arts. 506º e 508º do mesmo diploma (cfr. Antunes Varela, RLJ 122º, pág. 181)”.

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e) O AcUJ do STJ, de 30-4-96:

“O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500º, nº 1, do CC, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo”.

A clarificação feita pelo Assento nº 1/83 de que o art. 503º, nº 3, do CC, con-tinha uma presunção de culpa a valer nas relações entre o condutor (comissá-rio) e o lesado, agravando, desde modo, a responsabilidade do detentor do veículo (e da respectiva seguradora), deu relevo à questão que decorria do nº 1 no sentido de apurar se a base da assunção da responsabilidade era integrada apenas pela detenção efectiva do veículo ou se, pelo contrário, dependia da existência de uma relação de comissão, nos termos previstos no art. 500º, nº 1.

Foi esta a tese que acabou por prevalecer.11

11 Extracto da fundamentação:

“3. O art. 503º, nº 1, atribui responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos pró-prios do veículo a quem for detentor da direcção efectiva do mesmo e o utilizar no seu próprio interesse, sendo certo que tais elementos presumem-se na utilização do veículo pelo proprietário, porque os mesmos cabem perfeitamente dentro do conteúdo do direi-to de propriedade, que é dado pelo art. 1305º do CC. Tais elementos (os da direcção efectiva do veículo e os da utilização no seu próprio inte-resse - interesse que existe, ainda que por intermédio de comissário, conforme sublinha a norma em causa) apresentam-se como balizadores do campo de aplicação do art. 503º, nº 1. Não servem senão para a delimitação da responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Por outras palavras, não servem para definir o campo de aplicação do art. 503º, nº 3, 1ª parte. 4. O nº 3, 1ª parte, do art. 503º atribui uma responsabilidade por culpa presumida pelos danos causados pelo veículo conduzido por conta de outrem. Só a existência de uma relação de comissão faz presumir a culpa do condutor, sendo certo que essa relação de comissão tem de ser encontrada fora do campo de aplicação do art. 503º, nº 1, pois, conforme se sublinhou, as expressões aí referidas (direcção efec-tiva e interesse próprio) são tão somente elementos balizadores dessa norma, ou seja, "só dizem respeito à responsabilidade pelo risco e só servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, ainda que presumida (acórdão deste STJ, de 7-1-91 - BMJ 403º, p. 393). A relação de comissão tem de ser encontrada na definição dada no art. 500º, nº 1, do CC; o termo comissão não tem aqui o sentido técnico, preciso, que reside nos arts. 266º e segs. do Cód. Com., mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo esta actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc. (Pi-res de Lima e Antunes Varela, CC anot., vol. I, 4ª ed., pág. 507). 5. A relação de comissão, assim caracterizada, depende da alegação e prova dos factos que a tipifiquem.

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f) AcUJ nº 12/14:

“No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no nº 2 do art. 496º do CC não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte”.

O regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel cuja uni-formização no espaço da União Europeia tem sido promovido pelas sucessi-vas Directivas que cada um dos Estados Membros deve transpor para o orde-namento jurídico interno não interfere, ao menos de forma directa, no regime da responsabilidade civil que a cada Estado cumpre estabelecer. Aliás, em di-versos acórdãos o Tribunal de Justiça tem declarado que a harmonização de regimes do seguro obrigatório não retira a cada Estado Membro a legitimidade para proceder a uma regulamentação autónoma dos pressupostos da respon-sabilidade civil. Com um limite, no entanto: o de que não entre em contradi-ção ou não retire efeito útil às Directivas de Seguros.

Assim se compreende que, constituindo o seguro obrigatório um mecanismo de transferência da responsabilidade civil para as Seguradoras e não propria-mente um mecanismo autónomo destinado a ressarcir os lesados por aciden-tes de viação, a responsabilidade assacada às Seguradoras esteja dependente da responsabilidade imputada ao tomador do seguro.

Neste contexto, constituiria uma contradição nos seus próprios termos admi-tir que, em casos em que a morte derivou de acidente imputado exclusivamen-te ao próprio falecido, houvesse a possibilidade de reclamar da respectiva Se-guradora alguma indemnização, a não ser que se quisesse transmutar o seguro de responsabilidade civil automóvel em seguro de natureza social visando o ressarcimento de danos decorrentes de acidentes de viação com independên-cia relativamente aos demais pressupostos da responsabilidade civil.

O AcUJ nº 12/14 veio, assim, confirmar a natural dependência da responsabi-lidade assacada às Seguradoras da responsabilidade que, em concreto, seja im-putada ao tomador do seguro ou ao condutor do veículo automóvel.12

A alegação e prova dos factos que tipifique a relação de comissão que está na base da responsabilidade por culpa presumida estabelecida no nº 3, 1ª parte, do art. 503º, in-cumbirá ao lesado, na medida em que será ele a beneficiar da existência dessa relação. Verificado o mesmo, surge uma presunção de culpa do condutor, o que implica uma in-versão do ónus da prova (art. 350º, nº 1), uma vez que é ao lesado, de harmonia com os princípios válidos no capítulo do ónus da prova (art. 342º, nº 1) que incumbe provar a culpa do autor da lesão”.

12 Extracto da fundamentação:

“Em primeiro lugar e salvo o devido respeito, parece que a interpretação das normas in-vocadas (nºs 2 e 3 do art. 7º) não pode ser feita isoladamente mas dentro de todo o qua-

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g) AcUJ do STJ nº 4/02:

“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do art. 566º do CC, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3 (interpretado restritivamente), e 806º, nº 1, também do CC, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação”.

dro normativo pertinente. Assim e desde logo importa analisar as normas dos arts. 1º, nº 1, 5º, al. a), e 7º, nº 1, e 8º, nº 1, do mencionado DL 522/85. Estatui-se no primeiro preceito indicado: «Toda a pessoa que possa ser civilmente res-ponsável pela reparação de danos patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou mate-riais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por seguro que garanta essa mesma responsabilidade». Por sua vez, dispõe-se naquele art. 5º, al. a): «O seguro de responsabilidade civil previsto no art. 1º abrange: a) Relativamente a acidentes ocorridos no território nacional referido na al. a) do nº 1 do art. 4º, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil até ao montante do capital obrigatoriamente seguro, por sinistro e por veículo causador e relativamente aos danos emergentes de acidente não excepcionados no presente diploma». Finalmente diz o nº 1 do art. 7º «Excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro» (sublinhado nosso). Face às normas citadas, parece claro que a questão da obrigação de indemnizar pela se-guradora tem de ser analisada no quadro dos pressupostos da responsabilidade civil para o qual as normas citadas expressamente remetem. Sendo assim as coisas, como são, para o caso que nos ocupa, importa ter presente no-meadamente o disposto nos arts. 483º e 496º, nº 2, do CC. O caso: Se o marido e progenitor causou por culpa sua (sobre este ponto não há discussão) a própria morte, claramente não existe um terceiro a quem imputar este resultado (morte). Ora não havendo este terceiro responsável pela morte do condutor, como não há, os danos sofridos pelos filhos e viúva em consequência desta morte não são indemnizáveis, melhor, compensáveis. Na verdade (como resulta dos normativos citados), só havendo um terceiro que se hou-vesse constituído na obrigação de indemnizar o marido e progenitor é que os danos so-fridos pelos filhos e viúva poderiam ser compensáveis. Como se sabe, o sofrimento dos filhos e viúva só é indemnizável reflexamente, isto é, desde que o seu progenitor seja lesado. Ora, no caso, o condutor, marido e pai, porque causador com culpa da produção do acidente, não foi lesado (vítima) de conduta ilícita de outrem, como se reconhecerá. Finalmente importa ter presente que o disposto no nº 2 do artigo 496º não é fonte au-tónoma de obrigação de indemnizar. A obrigação de indemnizar há-de estar já reconhe-cida de acordo com os requisitos do art. 483º. Na verdade, naquele normativo (art. 496º, nº 2) visa-se tão só determinar a titularidade do direito à indemnização ali prevista. … A inquestionável função social e económica do contrato de seguro obrigatório automó-vel, no actual quadro normativo, não afasta, pelo contrário exige, a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil, todos e não apenas o dano”.

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Era clara a divergência interpretativa em torno da contabilização dos juros de mora nas acções de indemnização, acabando por prevalecer a distinção dos casos em que a indemnização já sofreu a actualização correspondente à desva-lorização monetária daqueles em que tal ainda não ocorreu, sendo reservada para estes a contagem dos juros de mora a partir da citação.13-14

13 Extracto da fundamentação:

“4.5 - Os juros moratórios exercem a função de indemnização pelo retardamento de uma prestação pecuniária (art. 806º, nº 1), sendo, assim, devidos a título de indemniza-ção. No entanto, e no seguimento do que já se disse, a partir da entrada em vigor do DL nº 200-C/80, aos juros moratórios passou a estar cometida não só a função específica de indemnizar os danos decorrentes do intempestivo cumprimento da obrigação, mas tam-bém a de contrabalançar a desvalorização monetária, numa indirecta reacção contra o princípio nominalista consagrado no art. 550º. Os efeitos conjugados da inflação e do protelamento das acções sobre os pedidos dos lesados era tal que o juiz não podia, muitas vezes, atribuir a indemnização que lhe impu-nha o nº 2 do art. 566º, isto é, uma indemnização à medida do valor da moeda à data da sentença. Chegados, porém, tempos, como os que correm, caracterizados por uma relativa estabi-lidade no valor da moeda, passou a acontecer, com frequência, que esse condicionalis-mo, associado à elevação dos pedidos indemnizatórios e ao desincentivo do protelamen-to das acções, resultante da já falada alteração introduzida ao nº 3 do art. 805º, passaram a permitir ao juiz, sem violar o princípio do pedido, atribuir indemnizações actualizadas em conformidade com a referida norma do nº 2 do art. 566º, levando já em conta não só todos os danos alegados, mas também a correcção monetária. … A aplicação simultânea do nº 2 do art. 566º e do art. 805º, nº 3, conduziria a uma dupli-cação de benefícios resultantes do decurso do tempo, pelo que o nº 3 do art. 805º cede-rá quando a indemnização for fixada em valor determinado por critérios contemporâ-neos da decisão. … Justifica-se uma advertência. A actualização monetária da obrigação pode, porém, não ocorrer apenas em 1ª instância, podendo ter lugar na Relação ou até, excepcionalmente, no STJ de Justiça. Considerando o carácter geral e tão abrangente quanto possível que deverá ter a solução uniformizadora, a qual deverá abarcar, sendo caso disso, a actualização monetária ex-pressamente efectuada nas decisões proferidas pelos tribunais superiores, será preferível que, na sua formulação, a norma interpretativa a adoptar, em vez de aludir à «sentença proferida em 1.ª instância», faça referência ao conceito de «decisão actualizadora», inter-pretado nos termos acabados de indicar”.

14 O AcUJ foi comentado por Pinto de Oliveira, em Cadernos de Direito Privado, nº 1.

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h) AcUJ do STJ nº 6/02:

“A al. c) do art. 19º do DL nº 522/85, de 31-12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela segura-dora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

Este aresto não incidiu sobre o regime da responsabilidade civil, antes trata do direito de regresso reconhecido à seguradora em situações de condução sob efeito do álcool. Mas a proximidade do tema justifica que seja integrado nesta análise.

Nele prevaleceu a tese que fazia recair sobre a Seguradora que pretendesse exigir o direito de regresso o ónus de provar o nexo de causalidade entre a alcoo-lemia e o acidente, tarefa praticamente impossível a não ser nos casos extre-mos em que o grau de alcoolemia fosse de tal modo elevado que notoriamente influísse na capacidade de condução automóvel. 15-16

15 Extracto da fundamentação:

“Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a pro-dução do acidente (art. 342º do CC), como se decidiu nos Ac. do STJ, de 19-6-97, BMJ 468º, pág. 376, de 14-1-97, CJSTJ, tomo I, pág. 39, e de 22-2-00, BMJ 494º, pág. 325. Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitu-tivos do direito que ao autor cabe demonstrar. A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apre-senta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condi-ções, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente. E, sacrifica-da a seguradora à função social de reparar os danos, estaria em condições bem mais fá-ceis para responsabilizar o condutor, tanto mais que a condução naquelas circunstâncias corresponde a um agravamento do risco no contrato. Uma seguradora não aceitaria, em geral, assumir o risco nas condições previstas na al. c) do art. 19º. … A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da al. c) do art. 19º o DL nº 522/85, de 31-12. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites le-gais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A ex-pressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Ac. do STJ, de 22-2-00, BMJ 494º, pág. 325)”.

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A solução uniformizada encontra-se, contudo, desactualizada, tendo caducado com a publicação do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, cujo art. 27º, nº 1, al. c), assegura agora o direito de regresso “contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida …”.

Basta a comparação desta norma com a anterior para se concluir que a Segu-radora já não tem de provar a aludida relação de causalidade. Basta que se apure que, para além de o condutor apresentar taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, é responsável pelo acidente, ou seja, que o acidente lhe é imputável a título de culpa efectiva ou presumida.17

Dentro da mesma temática do direito de regresso foi proferido também o AcUJ nº 11/15:

“O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da al. c) do art. 19º do Dec. Lei nº 522/85, de 31-12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.18

16 Sobre a matéria cfr. Mafalda Barbosa, nos Cadernos de Direito Privado, nº 50, págs. 22 e segs. 17 Neste sentido cfr. os Acs. do STJ, de 28-11-13 e de 9-10-14 (www.dgsi.pt), em contradição com o Ac. do STJ, de 6-7-11 (www.dgsi.pt). O Supremo tem incidido sobre outras normas que consagram o direito de regresso, desig-nadamente quando está em causa a falta de habilitação para conduzir (Ac. do STJ, de 20-5-03, CJSTJ, tomo II, pág. 63, e de 11-11-99, BMJ 491º/217). Recentemente a questão foi objec-to de tratamento no Ac. do STJ, de 28-4-16, www.dgsi.pt, relatado pelo signatário, com o seguinte sumário:

1. A Seguradora que, ao abrigo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automó-vel, satisfaz a indemnização decorrente de acidente de viação pode exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo abarcado pelo contrato de seguro que não esteja legalmente habilitado. 2. O exercício do direito de regresso não depende da prova do nexo de causalidade en-tre a falta de habilitação para a condução e o acidente em que interveio o condutor. 3. Deve ser reconhecido o direito de regresso numa situação em que o veículo tripulado pelo condutor não legalmente habilitado, circulando com velocidade excessiva, embateu noutro veículo que seguia na respectiva faixa de rodagem em sentido contrário.

18 Extracto da fundamentação:

“A questão que se suscita – e que, como se viu, vem merecendo respostas jurisprudenci-ais divergentes – tem que ver com o âmbito deste direito de regresso da seguradora: abarcará tal direito as próprias indemnizações pagas por danos que se consumaram ir-remediavelmente no momento do acidente, em relação aos quais não podia o facto pos-terior do abandono da vítima ter tido a menor influência causal na respectiva verificação e extensão?

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Trata-se, em suma, de saber se um facto ilícito do condutor (fortemente censurável, por revelador de uma indiferença ou hostilidade relativamente ao cumprimento de regras es-tradais básicas e à solidariedade e aos direitos fundamentais dos outros utentes da via pública), posterior à consumação do acidente, apesar de, pela natureza das coisas, não poder ter tido qualquer concreta relevância causal nos danos da vítima que se verifica-ram plenamente no momento do acidente e foram ressarcidos em primeira linha pela seguradora, deverá apagar ou precludir a garantia de cobertura que - se não fora o facto posterior do abandono – normalmente decorreria do contrato de seguro em vigor. … É, assim, indispensável que o vinculado à obrigação de regresso tenha, não apenas dado culposamente causa ao acidente- ou, no caso de abandono de sinistrado, que ora nos ocupa, responda ao menos objectivamente pelos danos causados pelo acidente, por se verificarem, os respectivos pressupostos, determinando o pagamento de uma indemni-zação ao lesado pela seguradora – mas também que haja actuado censuravelmente na prática do acto em que se alicerça directamente o direito de regresso da seguradora. Por outro lado, o princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade impõe que se deva necessariamente confrontar e comparar a gravidade da infracção cometida e da culpa do agente na prática do acto que vai despoletar o direito de regresso da seguradora e as consequências, nomeadamente em sede de ablação patrimonial, que podem emergir desse exercício: não pode admitir-se, em homenagem a tal princípio fundamental, que infracções muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam con-duzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso. … Porém, esta necessidade de concreta ponderação entre a gravidade e censurabilidade do facto constitutivo do direito de regresso da seguradora e a intensidade e onerosidade que a perda da garantia do seguro envolve, a realizar na óptica do princípio fundamental da proporcionalidade e da adequação e numa perspectiva de concordância prática, não se coloca seguramente na situação que nos ocupa, face à delimitação do conceito de aban-dono de sinistrado a que se procedeu – concluindo que só cabem no seu âmbito factos dolosos do condutor, envolvendo a formação e consumação de uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida à vítima. Não pode seguramente, perante esta delimitação factual do conceito de abandono de si-nistrado – e face às inequívocas gravidade e censurabilidade ético-jurídica deste compor-tamento – considerar-se inadequada ou desproporcionada a preclusão da cobertura que, em condições normais, decorreria do contrato de seguro em vigor. Não parece, por outro lado, que a perda da cobertura do seguro, ínsita na concessão à seguradora de direito de regresso pelos danos inteiramente consumados antes do facto do abandono de sinistrado, possa afectar, em termos intoleráveis - e em prejuízo do se-gurado – o equilíbrio contratual subjacente ao seguro; para além de se tratar de situação excepcional e perfeitamente delimitada, envolvendo um gravíssimo comportamento do segurado, a previsão legal (com as finalidades de prossecução do interesse geral atrás es-calpelizadas) constitui título bastante para o exercício da acção de regresso, sem que se possa invocar o enriquecimento sem causa da seguradora à custa do segurado: na verda-de, a causa da vantagem que a seguradora reflexamente aufere com o exercício da acção de regresso neste tipo delimitado de situações decorre da própria lei e das finalidades por ela prosseguidas, nela encontrando fundamento bastante.

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Embora reportada à norma que estava integrada no Dec. Lei nº 522/85, a aludida solução é de manter em face do actual diploma, considerando que nem a letra da lei nem os demais elementos que interferem na sua interpreta-ção sofreram modificação relevante.

i) AcUJ nº 3/16:

“A falta de pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo previsto no art. 29º da LUCh, pelo banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, não consti-tui, por si só, causa adequada a produzir dano ao portador, equivalente ao montante do título, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada, competindo ao porta-dor do cheque o ónus da prova de todos os pressupostos do art. 483º do CC, para ter direito de indemnização com aquele fundamento”.19

9. Impõe-se, pois, concluir, pelas razões apontadas, como no acórdão fundamento, que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamen-te o sinistrado não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente cau-sado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.”

19 Extracto da fundamentação:

“A partir da fixação de jurisprudência constante do AUJ nº 4/08 está consensualizado, na jurisprudência, que o banco que recusa o pagamento do cheque revogado, dentro do prazo de apresentação, pratica um acto ilícito e o seu contributo deixou claro que a ine-rente responsabilidade bancária é de natureza extracontratual, abrangendo as perdas e danos decorrentes de tal incumprimento. É aqui – ao nível da análise dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – que, no vertente caso, se centram, de modo claro e ostensivo, as divergências da juris-prudência sinalizadas, ao debruçar-se sobre a temática da responsabilidade bancária de-rivada da aceitação (ilícita) da revogação do cheque, porquanto uma das correntes sus-tenta que o banco sacado será sempre responsável pelo pagamento ao tomador de uma indemnização correspondente, em princípio, ao valor dos cheques, quando tenha ilici-tamente aceite a revogação desses títulos comunicada pelo sacador – durante o prazo le-gal de apresentação a pagamento –, existindo dano para o portador, mesmo que a conta sacada não tenha provisão, ao passo que a outra corrente ampara que o tomador dos cheques terá sempre de provar quer o dano resultante da aceitação da revogação, quer o nexo de causalidade entre a revogação ilegítima e aquele dano, o que implica que seja efectuada a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução do cheque apre-sentado a pagamento no prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado, uma vez que o dano não se presume. … Ou seja, a devolução dos cheques com fundamento na revogação e com invocação, in-justificada, de “Chq. Revog. por justa causa: falta/vício” – eventualmente para o sacador evi-tar o desconto ou se furtar às consequências penais emergentes da devolução dos che-ques com fundamento na “falta de provisão” –, apenas permite afirmar a existência de um facto ilícito imputável ao banco sacado, em resultado da violação de normas legais destinadas a tutelar direitos de terceiros – maxime, os arts. 32º da LUCh e 483º do CC –,

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Tal aresto veio na sequência de um outro AcUJ nº 4/08 que fixara a seguinte jurisprudência:

“Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no art. 29º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do art. 32º do mesmo diploma, res-pondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos arts. 14º, 2ª parte, do Decreto nº 13.004 e 483º, nº 1, do CC”.

Deste aresto uniformizador resulta que a aceitação por parte da entidade ban-cária da ordem de revogação injustificada dada pelo sacador do cheque integra a ilicitude que é pressuposto da responsabilidade civil aquiliana da referida enti-dade sobre o portador do cheque.

Mas não bastando ao reconhecimento do direito de indemnização a prova da ilicitude, faltava decidir, com a mesma força uniformizadora, sobre a demons-tração dos requisitos do dano e do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, aspectos que motivaram uma demarcada divisão jurisprudencial mesmo no Supremo Tribunal de Justiça. Foi então uniformizado o entendimento de que o dano não corresponde necessariamente ao valor inscrito no cheque, de-

mas, por si só, revela-se manifestamente insuficiente para o reconhecimento do direito de indemnização, que dependerá da prova real da existência de um dano. … Por conseguinte, na acção de responsabilidade civil extracontratual, visando a responsa-bilização do banco sacado decorrente da devolução de cheque apresentado a pagamen-to, com base na sua revogação ilícita, impende sobre o portador do cheque o ónus da alegação e prova da verificação do dano que visa reparar, assim como do nexo de causa-lidade adequada entre o invocado facto ilícito e aquele dano. C. Em conclusão: - Existindo provisão suficiente na conta sacada para pagamento dos cheques, o acata-mento ilícito da ordem de revogação dada pelo sacador, dentro do respectivo prazo de apresentação a pagamento, faz incorrer o banco sacado em responsabilidade civil extra-contratual, podendo, nessa eventualidade, a indemnização ter como medida, inclusiva-mente, o valor dos cheques não pagos. - Nessas circunstâncias, é a conduta (ilícita e culposa) do banco sacado que impede o pagamento, sendo certo que tal faculdade não está na sua disponibilidade, impondo a lei ao sacado a obrigação do pagamento dos cheques, desde que estes sejam apresentados para esse efeito no prazo legal e a conta sacada tenha provisão e sempre que não se veri-fique qualquer causa legítima que a tal obste. - Pelo contrário, na situação em que se prova que a conta sobre a qual os cheques foram sacados não tem provisão, considerando que a obrigação que recai sobre o banco saca-do de pagar os cheques que lhe são apresentados no prazo legal é condicionada à exis-tência de provisão na conta sacada, não se pode considerar, sem a prova dos demais re-quisitos da responsabilidade extracontratual, que exista qualquer prejuízo para o porta-dor e que o mesmo seja correspondente ao valor dos cheques, porquanto ele mantém todos os direitos referentes à relação jurídica subjacente”.

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pendendo a sua verificação e quantificação da demonstração de outros factos, designadamente do que sucederia se acaso o banco sacado não aceitasse a re-vogação do cheque.

Recaindo sobre o lesado a demonstração dos factos que permitam a confir-mação da existência de um dano e do nexo de causalidade entre a actuação ilícita e esse dano, defrontar-se-á com naturais dificuldades que, no entanto, não vão ao ponto de justificar, por si, a inversão do ónus da prova. Aliás, num sistema como o nosso em que o ónus da prova é perspectivado de forma ob-jectiva, a solução uniformizada é sequencial à actividade das partes no que concerne à alegação dos factos e apresentação dos meios de prova e de con-traprova, e não prescinde do exercício pelas instâncias dos poderes inerentes à livre apreciação dos meios de prova, ponderando designadamente as naturais dificuldades que o lesado enfrenta na demonstração dos factos constitutivos do seu direito.20

2.2. Harmonização do regime jurídico da responsabilidade civil com o regime do seguro obrigatório e o direito da União Europeia

a) AcUJ do STJ nº 3/04:

“O segmento do art. 508º, nº 1, do CC, em que se fixam os limites máximos da indemni-zação a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamen-

20 Já depois deste aresto o signatário relatou o Ac. do STJ, 28-4-16 (www.dgsi.pt), cujo sumá-rio é o seguinte:

“1. Na acção de responsabilidade civil extracontratual, é susceptível de integrar a matéria de facto provada a possibilidade de verificação de um certo resultado na eventualidade de o agente ter adoptado uma conduta diversa. 2. Numa situação em que a entidade bancária sacada aceitou a revogação injustificada de cheques, basta para a demonstração do dano patrimonial e do nexo de causalidade a possibilidade da sua verificação, designadamente quando esta decorra de um juízo de sé-ria probabilidade sustentado no facto de se verificar alguma circunstância que permitisse obter o pagamento dos cheques. 3. Apesar de não existir provisão suficiente nas datas em que os cheques foram apresen-tados a pagamento e em que foram devolvidos pelo banco sacado com fundamento na revogação injustificada, devem considerar-se suficientemente preenchidos os pressupos-tos do dano e do nexo de causalidade se as instâncias concluíram que, não fora a actua-ção do banco sacado, o tomador dos cheques «podia vir a receber» os montantes neles ins-critos”.

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te revogado pelo art. 6º do Dec. Lei nº 522/85, de 31-12, na redacção dada pelo Dec. lei

nº 3/96, de 25-1”. 21

Tal interpretação veio fazer jus ao efeito útil das Directivas em matéria de segu-ro automóvel, o qual acabou por ser directamente consagrado pela nova re-dacção introduzida pelo Dec. Lei nº 59/04, de 19-3.

Todavia, a solução está prejudicada pela alteração do art. 508º do CC que foi introduzida pelo Dec. Lei nº 59/04, de 19-3, que, em reforço da garantia de-vida aos sinistrados por acidentes de viação, veio prever explicitamente que o limite máximo da indemnização devida em caso de responsabilidade pelo risco é aferido através do valor do capital do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.22

A aludida interpretação uniformizadora apenas pecou por ser tardia, pois re-sultando da mesma que o disposto no art. 508º do CC se encontrava tacita-mente revogado, pelo menos desde a publicação do Dec. Lei nº 3/96, tal não evitou naturalmente que, durante um largo período os lesados por acidentes de viação, em casos de responsabilidade pelo risco, fossem confrontados com um dispositivo do direito interno que aparentemente limitava a indemnização que lhes era devida ao dobro da alçada da Relação em lugar dos valores que foram sucessivamente introduzidos reportados ao capital do seguro obrigató-rio.

21 Extracto da fundamentação:

“É que à garantia do seguro obrigatório terá de corresponder a inexistência de limites máximos de indemnização inferiores, sob pena de se privar de efeito útil aquela garantia. Seria um seguro sem objecto, em grande parte dos casos, deixando sem efeito útil uma medida que se pretendeu de largo alcance social. … Com efeito, as normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm ca-rácter de regras de direito material da responsabilidade civil. E, pelo menos nesta parte, «os diplomas que estabelecem os montantes mínimos do seguro obrigatório automóvel acima dos limites máximos fixados no art. 508º do CC revestem a natureza de normas materiais da responsabilidade civil automóvel. O que permite extrair a seguinte conclu-são: o princípio dos limites máximos da responsabilidade objectiva em acidentes causa-dos por veículos, consagrado no art. 508º do CC, continua a caracterizar o sistema por-tuguês; porém, esses limites máximos têm vindo a ser actualizados pelos diplomas que fixam o capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos do art. 6º do Dec. Lei nº 522/85 e para cumprimento do direito comunitário”.

22 Os valores mínimos do seguro obrigatório inicialmente fixados pelo art. 6º do Dec. Lei nº 522/85, de 31-12, foram sucessivamente aumentados pelo Dec. Lei nº 122-A/86, de 30-5, pelo Dec. Lei nº 436/86, de 31-12, pelo Dec. Lei nº 394/87, de 31-12, pelo Dec. Lei nº 18/93, de 23-1, pelo Dec. Lei nº 3/96, de 25-1, e pelo Dec. Lei nº 301/01, de 23-11.

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2.3. Desenvolvimento jurisprudencial no campo da responsabilidade civil extracontratual

AcUJ nº 6/14:

“Os arts. 483º, nº 1, e 496º, nº 1, do CC, devem ser interpretados no sentido de abrange-rem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobre-vivente, atingida de modo particularmente grave”.

O acórdão uniformizador veio quebrar um dos “dogmas” que influía na inter-pretação do regime da responsabilidade civil extracontratual, fruto, aliás, de uma adesão, por vezes acrítica, à tese defendida por Antunes Varela e em con-tradição com a tese defendida por Vaz Serra, ambos com intervenções decisi-vas na fase preparatória do Cód. Civil de 1966.

Tudo passa, afinal, pela interpretação do disposto no art. 496º, nº 2, do CC, como norma redutora da enunciação dos sujeitos com legitimidade para re-clamar o ressarcimento de danos decorrentes de facto ilícito, circunscrevendo a regra aos casos de morte do lesado ou, ao invés, integrada num sistema de responsabilidade civil mais vasto em que seja atribuído relevo à relação de causalidade adequada entre o facto ilícito e os sujeitos afectados, segundo a regra geral do art. 483º do CC.23

23 Extracto da fundamentação:

“Casos há, efectivamente, em que a relação entre o dano provocado a uma pessoa que se mantém viva e o sofrimento também infligido a outra é tão estreita, que se pode dizer que o atingimento desta tem lugar, se não necessariamente, pelo menos em regra. Apon-tam-se como exemplo as situações em que alguém presencia ofensa de intensa gravidade a pessoa relativamente à qual tem uma relação de muita afectividade ou em que um côn-juge vê o outro sexualmente afectado. Neste entendimento, quando o art. 483º, n.º 1 do CC alude a “outrem”, abrangeria os casos em que o atingimento duma pessoa também provocava danos noutra. A abran-gência não determinava sequer interpretação extensiva deste ou do nº 1 do art. 496.º, tudo repousando na relação de causalidade. … 22. Do que vem sendo dito, resulta que, para a solução do presente recurso e para a fi-xação do sentido da uniformização da jurisprudência: Ou se entende que se deve manter a interpretação dos arts. 483º, nº 1 e 496º, nº 1, refe-rida em 18 e reportada ao tempo em que vieram a lume; Ou se considera actualisticamente alterada tal interpretação, em ordem a abranger os danos sofridos pelo cônjuge da vítima sobrevivente. Relativamente ao entendimento de que este tipo de danos tem natureza indirecta, reflexa ou por ricochete, a interpretação actualista encerra interpretação extensiva, que, todavia, não é vedada, atento o disposto no artigo 11.º. … 24. O Código Civil entrou em vigor em 1967.

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A análise de determinadas situações revela-nos que, por vezes, certos efeitos de natureza não patrimonial são mais nítidos (senão mais graves) nas pessoas que rodeiam o sinistrado, designadamente quando é afectado por disfunção psicossomática que nem sequer lhe permite percepcionar o seu próprio estado de saúde (v. g. coma profundo). Outras vezes, o estado de saúde do lesado vai-se degradando lentamente convivendo com estados de angústia ou de deses-pero de quem o rodeia ou com a modificação radical do seu modo de vida em consequência da dependência funcional do lesado.

Dentro das cautelas que emergem da redacção da súmula uniformizadora com que se visou regular o caso concreto, é agora possível alargar a tutela a outros familiares do lesado em cuja esfera tais danos se manifestem, como efeito re-flexo de danos particularmente graves sofridos por outro familiar.

Numa sentença proferida pelo signatário, datada de 16-11-98, sustentei a atri-buição de uma indemnização autónoma aos pais de um menor de 9 anos de idade que sofrera graves lesões corporais decorrentes de um acidente inteira-mente imputável a outrem, tendo em vista compensá-los dos danos morais próprios que a situação de incapacidade do seu filho acabou por gerar.

Nessa conjuntura tanto a Jurisprudência, designadamente a emanada do Su-premo Tribunal de Justiça, como a Doutrina largamente maioritária assumiam para a referida questão uma resposta formal que se quedava pela letra do art. 496º, nº 2, do CC, de modo que tal sentença foi, nesta parte, revogada pelo

Então, a ideia de ressarcimento dos danos assentava fundamentalmente na culpa de ou-trem e, em casos muito limitados, no risco inerente a actividades perigosas. A frequência com que não eram objecto de ressarcimento era muito grande e bem aceite pelo cidadão comum. A intensificação dos direitos foi evoluindo intensamente, acompanhada de grande me-lhoria nas condições de vida. Uma das vertentes em que isso se manifesta diz respeito à ampliação do leque indemni-zatório. Com tradução no regime securitário em geral e no seguro obrigatório automóvel em es-pecial. Relativamente a este, o limite máximo inicial, particularmente reduzido, tem sido expo-nencialmente aumentado por imposição comunitária. … Tudo isto justifica que se vá para uma interpretação actualista do nº 1 do art. 483º e do nº 1 do art. 496º, em ordem a considerar ali tutelados este tipo de danos. … Temos de ter sempre presente que estamos a abrir uma brecha na dogmática geral de que é a vítima, se sobreviver, a pessoa a indemnizar. Não podemos interpretar o precei-to acabado de referir como se dissesse “Na fixação das indemnizações…”. Por isso, entendemos dever reservar a extensão compensatória apenas para os casos de particular gravidade”.

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Ac. da Rel. de Lisboa de 6-5-99, CJ, tomo III, pág. 88, posição que foi con-firmada pelo Ac. do STJ de 21-3-00, CJSTJ, tomo I, pág. 138. 24-25

Ora, contrariamente ao que flui dos arestos e da doutrina que apregoam a tese tradicional, não me parece inequívoco que a lei reguladora do direito de in-demnização vise, em exclusivo, os que são directamente atingidos na sua inte-gridade física ou psíquica, arredando todos quantos se encontram ligados ao sinistrado por especiais laços de parentesco e de afectividade e que, por esse motivo, também se vejam envolvidos, de forma grave, nas consequências do sinistro.

Não me parece que o direito positivo, posto que circunscrito às normas da responsabilidade civil, revele a intenção do legislador de excluir do leque de beneficiários as pessoas do círculo restrito do lesado, ou que a lei, na sua di-mensão racional ou teleológica, ou mesmo literal, imponha uma interpretação que sirva para denegar a tutela de situações cuja gravidade é evidente.26

O sentido a extrair das normas sobre responsabilidade civil extracontratual que visam a protecção de direitos subjectivos não poderá deixar de beneficiar de uma postura dinâmica que, contrariando o aparente imobilismo do legislador, responda, dentro de limites aceitáveis, a novas exigências que emergem da so- 24 Apesar disso – ou por isso - retomei a questão em trabalho intitulado Ressarcibilidade dos Danos não Patrimoniais de Terceiros em Caso de Lesão Corporal, na obra Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, vol. IV, págs. 262 a 289, e mais tarde, com outros desen-volvimentos, em Temas da Responsabilidade Civil, II vol., Indemnização dos Danos Reflexos. 25 A doutrina deste acórdão já servira de orientação ao Ac. do STJ de 13-1-70, BMJ 193º/349, comentado negativamente por Vaz Serra, na RLJ, ano 104º, pág. 14, no qual se decidiu que “só ao lesado é que a lei manda indemnizar por danos morais, daí que o pai do mesmo menor não tenha direito a indemnização pelo desgosto sofrido com o aleijão do filho”. No Ac. do STJ de 28-4-93, CJSTJ, tomo II, pág. 207, num caso de crime sexual cometido com menor, apesar de se reconhecer o “grande desgosto e sofrimento emocional” sofrido pelos pais da ofendida, recusara-se a ressarcibilidade com fundamento em que tal apenas ocorre nos casos excepcionais do art. 496º, nº 2. No mesmo sentido se orientaram o Ac. da Rel. do Porto de 25-6-97, CJ, tomo III, pág. 239, e o Ac. da Rel. de Coimbra de 28-4-93, CJ, tomo II, pág. 70. Também no Ac. do STJ de 2-11-95, CJSTJ, tomo III, pág. 220, se assumira que, “por ra-zões de segurança e de uniformidade de aplicação do sistema jurídico, só merecem tutela os danos não patrimoniais sofridos pelo próprio ofendido”. Outrossim no Ac. do STJ de 30-4-03 (sumariado em www.stj.pt). 26 Vaz Serra apontava para a incongruência resultante de uma lei que, “reconhecendo aos pais a satisfação pela dor sofrida por eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho”, defenden-do o recurso à interpretação extensiva, “ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte” (RLJ, ano 104º, pág. 15).

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ciedade ou a uma nova percepção do relevo que apresentam os problemas que tais normas visaram enfrentar.

Nesta tarefa de busca do verdadeiro sentido e alcance das normas jurídicas não me parece que possa presumir-se que o legislador (maxime o legislador que, idealmente, nas circunstâncias actuais, pretendesse uma regulação justa da vida em sociedade) tenha pretendido soluções ou a manutenção de soluções que contrariam o generalizado sentimento de justiça.

É neste quadro que cumpre assinalar o volte-face que se deu na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que deste modo melhor se enquadra nos pa-râmetros gerais definidos pela Resolução nº 75/7 do Comité de Ministros do Conselho da Europa de 14-3-75, com o objectivo de promover a harmoniza-ção dos regimes jurídicos europeus, tanto ao nível da legislação como da juris-prudência e da qual se destaca o princípio nº 13 segundo o qual «le père, la mère et le conjoint de la victime qui, en raison d’une atteinte à l’intégrité physique et mentale de celle-ci, subissent des souffrances psychiques, ne peuvent obtenir réparation de ce préjudice qu’en présence de souffrances d’un caractère exceptionnel; d’autres personnes ne peuvent pré-tendre à une telle réparation".

Postos de lado tanto os excessos a que levou o positivismo no campo da apli-cação da lei, como os que podem imputar-se a uma jurisprudência dos senti-mentos, mas atentando também nos interesses que as normas legais visam acautelar e que os Tribunais devem acolher, creio que o ordenamento jurídico contém instrumentos que conferem ao intérprete suficientes possibilidades de extrair dos textos legais soluções que não decorram apenas do seu elemento literal.

Assim, se, em resultado de um sinistro que afecta um dos elementos do agre-gado familiar, outro ou outros vêem seriamente perturbada a relação conjugal ou os laços de família, 27 isso representa um dano que não diz respeito apenas ao lesado directo, mas que atinge também os familiares que, por isso, também merecem a tutela conferida pelo instituto da responsabilidade civil aquiliana.

Aquilo que de mais importante cumpre assinalar a partir do referido AcUJ é o abandono paulatino de uma postura puramente positivista que vinha marcan-do a jurisprudência do Supremo, substituída por uma visão integrada do sis-tema jurídico que levou a procurar a solução para o problema colocado não apenas no art. 496º, mas também no art. 483º do CC. Inversão que já encon-trara exemplos em arestos anteriores, sendo de destacar o Ac. da Rel. do Por-to, de 23-3-06, www.dgsi.pt, que veio aceitar que o art. 496º, nº 2, do CC, “não abrange apenas aquele que é directamente atingido por lesões de natureza físi-

27 No Ac. do STJ, de 17-12-15 (www.dgsi.pt), considerou-se que apenas os familiares previs-tos no art. 496º poderão reclamar indemnização.

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ca ou psíquica graves, mas também os terceiros que só reflexa ou indirecta-mente são atingidos com tais lesões”.28

O avanço jurisprudencial constituirá um passo importante para o efectivo alargamento da tutela a outras situações, com destaque para aquelas em que na realidade o dano provocado num determinado sujeito acaba por produzir igual ou semelhante efeito noutro sujeito que com aquele estabelece uma vida de relação, como ocorre no casamento que, por via do seu estatuto legal, implica a interdependência dos cônjuges e em que certos danos provocados num deles acabam por repercutir-se, simultânea e directamente, no outro.

Nestes casos pode a imputação das consequências que afectam outros interes-sados verificar-se de uma forma directa e não meramente reflexa se considerar-mos que o casamento, nos termos do art. 1577º, visa “constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, implicando, além do mais, os deveres de coabita-ção, de cooperação e de assistência (art. 1672º), o que tudo nos reconduz à autonomização de uma verdadeira “sociedade conjugal” que constitui mais do que o somatório de duas personalidades distintas.

Assim poderá ocorrer em situações em que o facto ilícito determina a impo-tência ou outra disfunção sexual de um dos cônjuges, como já se acolheu no Ac. do STJ, de 8-3-05, no qual se assumiu que o art. 496º, nº 2, do CC, é sus-ceptível de interpretação extensiva de modo a abranger os danos não patri-moniais indirectos sofridos pela esposa cujo marido ficou incapacitado de manter relacionamento sexual e gravemente afectado na sua autonomia.

Assumindo este facto, em concreto, uma especial gravidade, poderá ser reco-nhecido ao outro cônjuge o direito de indemnização, como forma de compen-sação dos prejuízos de natureza pessoal.29

3. Alguns temas em debate na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

3.1. Transporte gratuito

O Pleno do Supremo Tribunal de Justiça não teve necessidade de intervir nu-ma outra área em que se entrechocavam o direito nacional e as Directivas em matéria de seguro obrigatório. Assim acontecia com o regime primitivo do art. 504º, nº 2, do CC, que negava aos lesados, em casos de transporte gratuito, o be-nefício da indemnização sem limite quantitativo, limitando-a aos valores que

28 Tese que também foi assumida no Ac. do STJ de 30-5-06, sumariado em www.stj.pt, no proc. nº 1295/06, da 6ª Secção, ou nos Acs. da Rel. de Coimbra, de 22-11-11, de 7-5-13 e de 1-4-14 (www.dgsi.pt). 29 Neste sentido cfr. os Acs. do STJ, de 8-9-09 e de 26-5-09 (www.dgsi.pt).

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resultavam da primitiva redacção do art. 508º para a responsabilidade pelo risco.

Com efeito, ainda antes de ter sido proferido o AcUJ nº 3/04 que considerou tacitamente revogado o art. 508º, nº 1, do CC, na parte em que estabelecia li-mites para a responsabilidade pelo risco, o legislador, fruto dos avanços que ocorreram ao nível do direito da União Europeia, viu-se obrigado a alterar o art. 504º, nº 2.

3.2. Responsabilidade civil dos concessionários de auto-estradas

Suscitou forte polémica na Doutrina e na Jurisprudência a responsabilidade assacada aos concessionários de auto-estrada em casos de acidentes de viação provocados por incidentes ocorridos aquando da circulação de veículos auto-móveis. Essencialmente tudo dependia do enquadramento jurídico no campo da responsabilidade extracontratual (em que o ónus de prova da culpa referen-te ao incumprimento de deveres de diligência ou de vigilância do concessioná-rio recaía sobre o lesado) ou na responsabilidade contratual (em que, demons-trada uma situação de incumprimento de dever de diligência ou de vigilância do concessionário, ficava este onerado com a demonstração da ausência de culpa).30

A polémica acabou por ser resolvida através do art. 12º da Lei nº 24/07, de 18-7, que, superando aquela distinção, fez recair sobre o concessionário a pre-sunção de incumprimento das obrigações de segurança que em concreto tenham sido causais do acidente.31

30 Vide Sinde Monteiro, RLJ, 133º, págs. 17 e segs., Menezes Cordeiro, ROA 65º, págs. 134 e segs., Ac. do STJ, de 17-2-00, CJSTJ, tomo I, pág. 107, de 25-3-04, CJSTJ, tomo I, pág. 146, de 22-6-04, CJSTJ, tomo II, pág. 96, e de 2-2-06, CJSTJ, tomo I, pág. 56. 31 Já depois da nova lei cfr. os Acs. do STJ, de 15-11-11, de 21-3-12 e de 14-3-13 (www.dgsi.pt), este relatado pelo signatário, com o seguinte sumário:

1. O art. 12º da Lei nº 24/07, ao definir os direitos dos utentes de auto-estradas, itinerá-rios principais ou itinerários complementares, faz recair sobre o concessionário a pre-sunção de incumprimento de obrigações de segurança quando os acidentes seja causal-mente imputados a objectos arremessados, a objectos ou líquidos existentes nas faixas de rodagem ou ao atravessamento de animais. … 3. Recaindo sobre a concessionária de auto-estrada uma obrigação reforçada de meios, a elisão da referida presunção, relativamente à entrada ou permanência de animais na faixa de rodagem, não se basta com a prova genérica de que houve passagens da equipa de as-sistência e de que não foi detectada ou comunicada a presença do animal”.

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3.3. Quantificação dos danos

Onde o Supremo Tribunal de Justiça tem verdadeira autonomia é na área da valoração dos danos, designadamente dos danos de natureza não patrimonial e dos danos patrimoniais futuros.

Não tendo o legislador enveredado por critérios mais objectivos, como aque-les que por exemplo, já se encontram em vigor em Espanha 32 e deixando co-mo critério essencial o recurso à equidade, pode dizer-se que nesta matéria não existem limites quantitativos absolutos, podendo o Supremo, como órgão de cúpula do sistema judiciário, decidir com a maior amplitude dentro dos factos apurados.

Apesar disso, perdurou durante muito tempo uma jurisprudência nesta maté-ria que muitos autores apelidaram de “miserabilista” e que na verdade não correspondia nem aos desenvolvimentos do direito da União Europeia, nem aos anseios da sociedade, situação que tem vindo a modificar-se no sentido da tutela do lesado, com atribuição de indemnizações mais significativas, desig-nadamente quando estão em causa danos não patrimoniais.

Na realidade, atenta a frequência com que o Supremo Tribunal de Justiça é confrontado com acções de indemnização emergentes de acidentes de viação, a integração na União Europeia deve fazer-se sentir não apenas na equipara-ção das normas de direito substantivo que regulam os pressupostos da res-ponsabilidade civil e do seguro obrigatório, mas também numa tendencial equiparação dos valores indemnizatórios que são atribuídos em face de danos de natureza semelhante.

Para isso intervém igualmente o facto de terem sido incrementados os limites do capital do seguro obrigatório, com reflexos na dimensão quantitativa da responsabilidade das Seguradoras, considerando igualmente que a qualidade e as condições de vida que são afectadas pelos acidentes de viação deverão ob-ter uma compensação paliativa que só pode ser traduzida num incremento indemnizatório.

3.4. Responsabilidade médica

Na resolução de litígios em torno da responsabilidade médica será importante a clarificação do regime que se aplica a determinadas situações em que conflu-em simultaneamente a responsabilidade contratual, dependente da verificação do incumprimento de obrigação assumida pelo devedor, e a responsabilidade extracontratual, centrada na violação de direitos absolutos.

32 Através do Real Decreto Legislativo nº 8/2004, de 29-10, recentemente alterado pela Lei nº 35/2015, de 22-9.

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Na verdade, não é indiferente a qualificação jurídica, a qual se reflecte essenci-almente na distribuição do ónus da prova quanto à existência de culpa. Presu-mindo-se esta na responsabilidade contratual (art. 799º do CC), deve ser de-monstrada pelo lesado na responsabilidade extracontratual (art. 487º do CC).33

Esta problemática reconduz-nos a uma outra que gira em torno na qualifica-ção da obrigação assumida pelo profissional médico como obrigação de meios ou obrigação de resultado. 34

Com ressalva de algumas situações em que é concebível uma obrigação de resultado, designadamente quando estão em causa exames de diagnóstico no campo da imagiologia (v.g. radiologia, ressonância magnética ou tomografia axial computorizada), das análises clínicas ou das análises anátomo-patológicas, é corrente o entendimento segundo o qual na actuação do profis-sional da medicina está em causa uma obrigação de meios, de tal modo que a apreciação da responsabilidade passa a ser centrada no respeito pelas lege artis no cumprimento da obrigação contratualmente assumida ou do dever de dili-gência destinado a evitar a violação de direito absoluto.

3.5. Concorrência entre a responsabilidade objectiva ou pelo risco, com a culpa do lesado ou de terceiro

A polémica assenta essencialmente na interpretação do art. 505º e na sua con-jugação com o art. 570º do CC.

33 Nos Acs. do STJ, 2-6-15 e de 28-1-16 (www.dgsi.pt) considerou-se que em matéria de res-ponsabilidade médica, deve aplicar-se o regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada. 34 No Ac. do STJ, de 13-9-11 (www.dgsi.pt) admite-se, ainda que em termos genéricos, que, traduzindo a obrigação do médico, em regra, uma obrigação de meios e não de resultado, tal não impede que dos contornos concretos do contrato de prestação de serviços celebra-do entre um doente e um médico ou clínica médica, nomeadamente, no campo das especia-lidades clínicas, possa resultar que o médico se obrigou em termos de garantir um resultado concreto, pelo que poderá ter de responder civilmente pelo seu incumprimento ou cum-primento defeituoso. Também no Ac. do STJ, de 22-03-07 (www.dgsi.pt), se afirmou que “no contrato dirigido à correcção estética do rosto, o qual enfermava de envelhecimento precoce, traduzido em rugas e flacidez da pele, estamos em presença de uma obrigação de resultado”, ainda que, em concreto, se tenha considerado que a actuação da paciente impedira a execução de to-das as fases necessárias tendentes à obtenção desse resultado. Já no Ac. do STJ, de 17-12-09 (www.dgsi.pt), alude-se a uma obrigação de quase resultado. Cfr. ainda os Acs. do STJ, de 26-4-16 (www.dgsi.pt), de 15-12-11, CJSTJ, tomo III, pág. 163, de 22-9-11, CJSTJ, tomo III, pág. 50, de 18-9-07, CJSTJ, tomo III, pág. 54, ou de 11-7-06, CJSTJ, tomo II, pág. 325.

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Para uns, a verificação de um comportamento do lesado, independentemente do grau de culpa, impede inelutavelmente a responsabilidade objectiva do de-tentor de veículo automóvel, nos termos do art. 503º, nº 1, do CC, afastando também, por inerência, a responsabilidade da respectiva Seguradora. Nesta perspectiva o art. 505º coloca apenas um problema de causalidade, sendo afas-tada a responsabilidade objectiva do detentor do veículo quando a contribui-ção dos riscos inerentes ao mesmo seja interrompida por acto do próprio le-sado ou de terceiro.

Para além do relevo atribuído ao elemento literal extraído do art. 505º do CC, do argumento por maioria de razão retirado do art. 570º, nº 2, ou do elemento histórico ligado ao processo legislativo (em que já então de digladiavam duas concep-ções diversas defendidas, respectivamente, por Antunes Varela e por Vaz Ser-ra), tal solução procura evitar um agravamento excessivo da posição do deten-tor do veículo em situações em que este não é mais do que um elemento aci-dental, sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro.

Tal solução obteve uma impressiva adesão da Doutrina e da Jurisprudência desde o início da vigência do Código Civil de 1967, a qual ainda continua a projectar-se em arestos mais recentes.35

Ora, não pode deixar de ser ponderada a necessidade e a obrigatoriedade de proceder a uma interpretação do direito nacional tendo como pano de fundo o Direito da União Europeia que emana das sucessivas Directivas do Seguro Automóvel agora condensadas na Directiva 2009/103/CE, de 16-9-2009, e cujo efeito útil – de protecção efectiva dos utentes, em especial os mais vulnerá-veis – não pode ser esvaziado por soluções que se mantenham ou que sejam consagradas pelos ordenamentos jurídicos internos no domínio da responsabi-lidade civil.36

Sem embargo dos argumentos que já haviam sido anteriormente expostos por Vaz Serra ou por Sinde Monteiro, a linha de fractura na Doutrina foi assinala-da especialmente pela posição assumida por Brandão Proença.37

35 Refiram-se a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ, de 27-3-14 e de 9-8-14 (em www.dgsi.pt). Mesmo depois dos contributos adicionais proporcionados pela mais recente jurisprudência do Tribunal de Justiça, maxime a que emerge dos acórdãos proferidos em sede do reenvio prejudicial C-409/09 (caso Ambrósio Lavrador) e C-96/12 (Domingos Freitas), essa tese foi acolhida nos Acs. do STJ, de 15-5-12, de 11-7-13 ou de 14-1-14 (todos em www.dgsi.pt). 36 Sobre a matéria cfr. Sinde Monteiro, Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil, na RLJ 142º, págs. 82 e segs.

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Já a ruptura jurisprudencial foi iniciada pelo Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt),38 no qual se defendeu que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.

Como é natural tal solução não evitou que noutros arestos continuasse a vin-gar a tese anterior, mas acabou por se projectar em acórdãos posteriores nos quais, em abstracto, se admitiu o referido concurso.39

Entretanto foram suscitados diversos reenvios prejudiciais perante o Tribunal de Justiça questionando a conformidade com o direito da União Europeia de uma solução normativa nacional que admitisse a exclusão absoluta da respon-sabilidade pelo risco nos casos em que o acidente fosse de imputar ao lesado. Inquiriu-se esse órgão se a necessidade de tutelar as vítimas de acidentes de viação prosseguida pelas referidas Directivas Europeias deveria levar à des-consideração da sua contribuição para os danos, à semelhança do que, relati-vamente a passageiros transportados em veículos, já fora declarado nos acór-dãos Candolin e Farrell.

A resposta dada no âmbito do reenvio prejudicial C-409/09 (Ambrósio Lavrador), pelo Acórdão datado de 9-6-11, foi no sentido de que as Directivas respeitan-tes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito

37 Em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs., e nos Cadernos de Direito Privado, nº 7, págs. 19 a 31, em comentário ao Ac. do STJ, de 6-11-03, e por Calvão da Silva, na RLJ 134º, págs. 115 e segs. 38 Comentado por Calvão da Silva, na RLJ 137º, págs. 35 e segs. 39 Ainda que, em concreto, se tenha considerado que se verificava uma relação de causali-dade exclusiva do lesado, como ocorreu no Ac. do STJ, de 8-1-09 (www.dgsi.pt), onde se refere que “resultando da matéria de facto provada … que o acidente foi devido unicamen-te à vítima (peão), sendo-lhe totalmente imputável, desencadeado por culpa exclusiva sua, não tendo para ele contribuído a típica aptidão do veículo automóvel atropelante para a criação de riscos, não há lugar a indemnização. Resultado também afirmado no Ac. do STJ, de 20-1-09 (www.dgsi.pt), referindo-se que “se o peão inicia a travessia da faixa de rodagem, atravessando-se subitamente à frente do condu-tor que não se pôde desviar, dada a proximidade entre ambos”, está afastada a responsabi-lidade pelo risco do condutor. Igualmente no Ac. do STJ, de 3-12-09 (www.dgsi.pt), segundo o qual “a exclusão da respon-sabilidade do lesante condutor ou dono do veículo, ou, por via do contrato de seguro, da respectiva seguradora, só pode ser excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agra-vamento dos danos – arts. 505º e 570º CC”.

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da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilida-de civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa aprecia-ção individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produ-ção do seu próprio dano”.

Mas o relevo de tal aresto não decorre apenas do segmento final, relevando também os respectivos fundamentos nos quais se refere que “as referidas Di-rectivas ficariam privadas desse efeito (efeito útil) se, apenas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano, uma regulamentação na-cional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizado pelo seguro automóvel obrigatório ou limitasse esse direito de modo desproporcionado. Por conseguinte, só em circunstân-cias excepcionais, com base numa apreciação individual, a extensão da indem-nização à vítima poderá ser limitada”. Concretizando em face do caso que jus-tificou o reenvio, esclareceu o Tribunal de Justiça que a solução adoptada par-te do pressuposto de que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente” (num contexto em que o lesado era um menor que tripulava uma bicicleta em contramão, sendo colhido por um veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), “quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima” e que “caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a pro-dução do dano ou para o seu agravamento, a indemnização desta, nos termos dessa legislação, é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade desse facto” (sublinhado nosso).40

Seguindo uma fundamentação substancialmente idêntica e numa situação se-melhante à que esteve na origem do reenvio prejudicial C-409/09, a mesma jurisprudência foi adoptada no Ac. de 21-3-13, no âmbito do reenvio C-96/12 (Domingos Freitas), insistindo nos mesmos argumentos:

- As “disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Directivas do seu efeito útil (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, n° 28, e Marques Almeida, n° 31);”

40 Também no âmbito dos reenvios prejudiciais C-484/09 (Ferreira Santos) e C-300/10 (Mar-ques Almeida), sobre uma questão semelhante mas atinente com o art. 506º do CC, sobre a colisão de veículos, foi assumido que as Directivas “não obstam a uma legislação nacional que, num caso em que da colisão entre dois veículos resultem danos sem culpa de nenhum dos condutores, prevê a repartição da responsabilidade pelos referidos danos na proporção da medida da contribuição de cada um dos veículos para a respectiva produção e, em caso de dúvida, considera igual essa medida de contribuição”.

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- As “Directivas ficariam privadas desse efeito se, com fundamento na contribuição do lesado para a produção do dano, uma legislação nacional, definida com base em critérios gerais e abstractos, recusasse à vítima o direito de ser indemnizada pelo seguro obrigató-rio de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis ou limitasse esse direito de modo desproporcionado. Por conseguinte, só em circunstâncias excepci-onais, com base numa apreciação individual, poderá este direito ser limitado (acórdãos, já referidos, Ambrósio Lavrador, n° 29, e Marques Almeida, n° 32);”

- A “legislação nacional aplicável (basicamente os arts. 503º, 504º e 570º do CC portu-guês), no âmbito de um litígio como o em causa no processo principal, só pretende afas-tar a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima. Além disso, em caso de culpa do lesado que tenha concorrido para a produção do seu dano ou para o seu agravamento, a indemnização deste, nos termos dessa legislação, é afectada numa medida proporcional ao grau de gravidade dessa culpa (acórdão Ambrósio Lavrador, já referido, n° 33);”

- A “mencionada legislação nacional não tem, portanto, por efeito, no caso de contri-buição da vítima de um acidente de viação, em concreto, um ciclista menor envolvido nesse acidente, para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o direito que lhe assiste a uma indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis que cobre o condutor do veículo envolvido no acidente (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Carvalho Ferreira Santos, n° 43, Ambrósio Lavrador, n° 34, e Marques Almeida, n° 37).

Ora bem, em cada um dos referidos arestos partiu-se do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a imputa-ção do acidente ao lesado e o risco do condutor cuja ponderação, para efeitos de concessão, limitação ou exclusão da indemnização, depende da apreciação casuística.

Daqui decorre que para que o direito nacional ultrapasse o filtro da conformi-dade com o direito da União Europeia (e para que, assim, seja respeitado o efeito útil das Directivas), é mister que seja interpretado de modo a que em ca-sos de imputação do acidente ao lesado a responsabilidade objectiva do deten-tor do veículo interveniente não seja liminarmente afastada com base em crité-rios gerais e abstractos, mas apenas quando tal resultar de uma apreciação in-dividual de circunstâncias excepcionais.41

A referida jurisprudência europeia projecta-se naturalmente nos Tribunais na-cionais que dispõem agora de um argumento reforçado para assumir a admis-

41 Vide Calvão da Silva, na anot. ao Ac. do STJ, de 4-10-07, na RLJ, ano 137º, pág. 60, e Maria da Graça Trigo, ob. cit., pág. 487, e Moitinho de Almeida, no trabalho intitulado Seguro obrigatório automóvel: o direito português face à jurisprudência do TJCE, acessível através de www.stj.pt.

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sibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelo risco e a imputação do acidente ao lesado.

Todavia, ainda que seja de admitir com mais naturalidade a concorrência entre a responsabilidade objectiva do condutor e a imputação (não exclusiva) ao lesado, na aplicação prática de tão promissora tese persiste uma tendência para na avaliação da causalidade do sinistro se acentuar a actuação do lesado, des-valorizando a contribuição decorrente dos riscos inerentes aos veículos e à dinâmica dos acidentes.

Assim aconteceu no Ac. do STJ, de 17-5-12 (www.dgsi.pt), relatado pelo signa-tário, em que sem negar a adesão àquela tese, se constatou que o risco da cir-culação do veículo não tivera a menor interferência no atropelamento, sendo este devido exclusivamente ao menor que inopinadamente se intrometeu na linha de marcha do veículo que seguia a uma velocidade moderadíssima.42

Neste contexto doutrinal e jurisprudencial, considero que é de admitir a con-corrência entre a responsabilidade objectiva do detentor e condutor do veícu-lo e a imputação do acidente ao lesado se acaso a apreciação dos factos revelar uma situação em que o veículo também represente um factor determinante para o acidente.

Para o efeito torna-se premente que se aproveitem todos os contributos que a doutrina e alguma jurisprudência vêm extraindo quer da interpretação do art. 505º e sua compatibilização com o art. 570º do CC, quer dos avanços que têm sido obtidos em sede de regulamentação do seguro obrigatório no âmbito da União Europeia.

Especificamente neste campo, se o efeito útil das Directivas em matéria de se-guro automóvel é incompatível com uma regulamentação nacional que, “ape-nas com fundamento na contribuição da vítima para a produção do dano”,

42 Já no Ac. do STJ, de 5-6-12 (www.dgsi.pt), aderindo claramente a “uma interpretação ac-tualista das regras da responsabilidade civil pelo risco, na consideração do binómio risco dos veículos/fragilidade dos demais utentes das vias públicas” e considerando que não é compatível com o direito comunitário “uma interpretação do art. 505º do CC da qual resul-te que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco prevista no art. 503º do CC”, a solução foi encontrada na regra da colisão de veículos constante do art. 506º do CC. No Ac. do STJ, de 5-11-13 (www.dgsi.pt) (à semelhança do que ocorreu no Ac. do STJ, de 10-1-12, na revista 308/02), decidiu-se que “ocorrendo um acto ou comportamento da vítima que se revele a causa exclusiva do acidente e do dano, sendo-lhe unicamente impu-tável, fica excluída a responsabilidade objectiva ou pelo risco, que poderia tornar admissível a responsabilidade do condutor do veículo, em concurso com a responsabilidade da vítima (ciclista), a título de culpa”. Tratava-se de uma colisão entre um veículo e uma bicicleta que vinha de um caminho de terra batida e que se atravessou à frente do veículo. Em abstracto a tese foi ainda defendida no Ac. do STJ, de 15-1-13 (www.dgsi.pt).

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com base em “critérios gerais e abstractos”, recuse à vítima o direito de ser indemnizado pelo seguro automóvel obrigatório ou limite esse direito de mo-do desproporcionado e se, por conseguinte, “só em circunstâncias excepcio-nais, com base numa apreciação individual, a extensão da indemnização à ví-tima poderá ser limitada” pelo direito nacional, então teremos consequente-mente de afirmar que a interpretação do art. 505º do CC implica que se pro-ceda a uma articulação entre a imputação do acidente ao lesado com a respon-sabilidade objectiva do detentor de veículo automóvel, mediante a apreciação casuística das circunstâncias que envolveram o acidente, de tal modo que a res-ponsabilidade objectiva apenas seja eliminada quando, numa apreciação indi-vidual, sejam detectadas “circunstâncias excepcionais”.

3.6. Dano da privação do uso

A problemática do ressarcimento de danos invocados com fundamento na privação do uso de bens materiais surgiu essencialmente no âmbito de acções de responsabilidade civil por acidentes de viação.

Na jurisprudência nacional, até certa altura, argumentava-se da seguinte forma:

a) Ao lesado cabe a demonstração dos danos causalmente imputados à prá-tica do facto ilícito ou do risco (art. 342.º, n.º 1);

b) Os danos não se presumem, devendo ser demonstrados por quem os invoca;

c) A responsabilidade civil não tutela danos abstractos, exigindo a sua con-cretização no património do lesado;

d) A mera privação do uso de um veículo automóvel (ou de outro bem ma-terial), por si, não representa um dano de natureza patrimonial;

e) Não basta que o lesado alegue e prove que ficou privado das concretas utilidades que extraía do veículo de que ficou privado, devendo demonstrar, além disso, a existência de um saldo negativo determinado através da com-paração entre a situação emergente da privação do uso e aquela em que o lesado estaria se acaso a mesma não tivesse ocorrido, relevando quer os da-nos emergentes (despesas acrescidas causadas pela falta do veículo ou pela substituição por outro de semelhantes características), quer os lucros ces-santes (benefícios ou proveitos que deixou de auferir em consequência da privação).

Isto apesar de não se poder ignorar que:

a) O lesado, por causa do acidente, tem o direito de exigir a reconstituição natural da situação, a qual pode ser alcançada mediante a entrega de um ve-ículo de substituição ou o pagamento de uma quantia correspondente ao seu aluguer (arts. 562º e 566º do CC);

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b) O veículo automóvel, quando usado quotidianamente como instrumento de trabalho ou de locomoção ou para o exercício de uma actividade lucrati-va não pode deixar de constituir um elemento com relevo patrimonial a cu-ja falta corresponde naturalmente um determinado prejuízo;

c) Mesmo quando não lhe seja dada uma utilização profissional, o veículo constitui um bem de uso corrente, não sendo, em regra, indiferente para o seu proprietário dispor ou não dispor do mesmo para os fins que bem en-tender, dentro da sua esfera de liberdade e de autonomia;

d) Mesmo o não uso de um bem ainda se integra no ius utendi et fruendi que caracteriza o direito de propriedade ou outros direitos reais de gozo, cor-respondendo-lhe um determinado valor económico que, em última análise, pode ser quantificado com ponderação do valor locativo, do valor de amor-tização usado para efeitos contabilísticos ou de outras circunstâncias rele-vantes para a aferição de uma indemnização equitativa.

Aprioristicamente parece-me insofismável que, representando um qualquer bem de natureza patrimonial um elemento positivo na esfera do titular do di-reito de propriedade ou de outro direito susceptível de proporcionar o seu uso e fruição, maxime quando se trata de um bem a cujo uso corresponda um de-terminado valor económico, o impedimento ao seu exercício, por razões im-putáveis a terceiro, importa, em regra, um desvalor que deve ser objecto de integração por um valor equivalente.

Assim o procurei justificar e demonstrar em “Temas da Responsabilidade Civil – Indemnização do ano da Privação do Uso”, com argumentos diversificados, envol-vendo quer a análise das pertinentes normas do Código Civil que regulam a matéria da obrigação de indemnização, quer de outras normas do mesmo di-ploma ou de diplomas avulsos que regulam situações paralelas em que tam-bém está em causa uma situação que na prática se traduz numa privação do uso. Nessa argumentação dei também realce aos elementos de interpretação das normas, maxime para o elemento racional ou teleológico, sem olvidar tam-bém aspectos de direito comparado.

Aquela tese eivada de um forte e incompreensível formalismo vem cedendo o lugar a uma corrente jurisprudencial que aposta na autonomização do dano da privação do uso, de tal modo que, mesmo em casos em que não se apure um aumento das despesas ou redução de proveitos, se defende o reconhecimento do direito de indemnização quantificado segundo o critério do valor locativo do bem ou, em última instância, de acordo com as regras da equidade, depois de ponderadas todas as circunstâncias envolventes.

É esta a tese que agora prevalece na jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, ainda que se apresente com duas variantes:

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A primeira variante, para a qual a privação do uso apenas é valorada em casos em que se apure que a situação deixou de proporcionar ao titular do bem as concretas utilidades que do mesmo vinha extraindo, exigindo-se, deste modo, a alegação e prova de uma concreta utilização relevante.43

A segunda variante para a qual basta que exista uma situação de privação do uso, a qual representa, por si, um prejuízo de natureza patrimonial, sujeito a quanti-ficação, de acordo com as circunstâncias que se apurarem e, na falta de outros elementos, com recurso à equidade.44

Creio que a formulação de juízos assentes em padrões de normalidade e, se necessário, com recurso a presunções naturais ou judiciais, facilmente permite inferir que, em regra, a privação do uso comporta um prejuízo efectivo na es-fera jurídica do lesado correspondente à perda temporária dos seus poderes de fruição. A amplitude das consequências pode variar em função das específicas circunstâncias objectivas e subjectivas, mas raramente será indiferente para o interessado a manutenção intangível do uso do bem ou a sua privação durante um determinado período de tempo por razões imputáveis a terceiro.

Afirmada, assim, a existência de um prejuízo de natureza patrimonial correspon-dente ao uso que, durante um determinado período, deixou de ser fruído, tor-nar-se-á mais fácil percorrer a etapa subsequente atinente à quantificação da in-demnização, atenta a diversidade de critérios de que os Tribunais podem fazer uso, quer por via das regras da normalidade, quer do recurso à equidade, me-diante a ponderação do circunstancialismo envolvente.45

A amplitude das consequências pode variar de acordo com as específicas cir-cunstâncias objectivas e subjectivas, mas raramente será indiferente para o interessado a manutenção do uso do bem ou a sua privação durante um de-terminado período de tempo por razões imputáveis a terceiro. Independente-mente da função desempenhada na esfera do respectivo titular e dos prejuízos

43 Cfr. os Acs. do STJ, de 3-5-11 e de 3-10-13 (www.dgsi.pt). É esta a tese defendida também por Paulo Mota Pinto, depois de extensa argumentação, conclui que “o dano de privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda de possibilidade de utilização do bem, a qual pode não ser concretizável numa determinada situação”, em Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, vol. I, págs. 594 a 596. 44 Cfr. os Acs. do STJ, de 5-7-07, de 8-5-13 e de 9-7-15 (www.dgsi.pt). 45 Cfr. Ac. do STJ, de 11-12-12 (www.dgsi.pt). As dificuldades que isso transporta podem ser superadas mediante considerações como a de Menezes Cordeiro quando afirma que o julgamento da equidade “será, em última análise, sempre produto de uma decisão humana que visará ordenar determinados problemas pe-rante um conjunto articulado de proposições objectivas” (O julgamento de equidade, em O Direito, ano 122º, págs. 272 e 273).

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que, em concreto, possam imputar-se à privação, seguro é que a utilização ou a possibilidade de utilização do bem patrimonial reportada ao período trans-corrido, jamais poderá ser “restituída” em espécie, nos termos em que para a generalidade das situações o determina o art. 566º, nº 1, do CC.

Se na ponderação dos resultados finais não deve admitir-se para o lesado um benefício indevido, também parece inadequado que seja o agente a beneficiar com uma injustificada poupança das despesas que decorre de uma tese que torne a indemnização dependente de uma mais ampla concretização dos da-nos.46

Mas ainda que não se admita esta solução mais favorável ao lesado, não pode negar-se, ao menos, a valia da primeira variante acima referida e que, para efeitos de ressarcimento, se basta com a demonstração da ocorrência de perda das concretas utilidades que o titular poderia extrair do bem se acaso não tivesse sido dele privado.

Trata-se, aliás, de uma solução que responderá à maior parte das situações da vida corrente, na medida em que, quer por prova directa, quer através das re-gras de experiência, facilmente o lesado poderá demonstrar que um bem (veí-culo, imóvel, etc.) tinha uma determinada utilização corrente que foi impedida ou perturbada pela prática do facto ilícito de natureza extracontratual ou pelo incumprimento contratual.

Se a privação do uso de um bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo é susceptível de proporcionar e se essa per-da não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição (substituição), justifica-se a imposição ao responsável da obrigação de compensar o lesado na medida equivalente, passo fundamental para que se restabeleça o equilíbrio patrimonial que existiria se acaso não tivesse ocorrido o evento lesivo.

Inequívoco é que o direito de propriedade integra, como um dos seus elemen-tos fundamentais, o poder de fruição exclusiva que envolve até o direito de não usar, já que a opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem.

Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, num quadro factual mais complexo, ao qual não deverá ser alheio o sujeito passivo, será possível afirmar que a concreta privação do uso durante um determinado pe-

46 Também assim Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 297, nota 627, quando conclui ser “manifesto que a conduta poupadora de despesas por parte do lesado não pode servir para obstar à indemnização do dano verificado, havendo, por isso, que proceder ao seu cálculo em termos reais”.

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ríodo não foi causa adequada de danos significativos merecedores de ajustada indemnização.

Os argumentos referidos ajustam-se às situações paradigmáticas que envolvem a privação de uso de veículos automóveis decorrentes de acidentes de viação, o que se explica pelo facto de se tratar de bens de uso corrente, imprescindí-veis ao exercício de determinadas actividades ou à concretização de desloca-ções. Mas, com as necessárias adaptações, podem ser transpostos para situa-ções que envolvam a privação de outros bens, assim como podem ser aplica-dos a outras situações em que a privação do uso se inscreve no âmbito da res-ponsabilidade contratual.

Em qualquer dos casos, a simples falta de prova de danos concretos não deve conduzir necessariamente à improcedência da pretensão indemnizatória, não devendo descartar-se o recurso à equidade para, no balanceamento dos factos e das regras de experiência, encontrar um valor razoável e justo que permita a reintegração da situação perturbada pelo incumprimento do credor.

Designadamente quando estão em causa bens imóveis adquiridos para habita-ção, para exercício de actividade comercial ou industrial ou para outros fins, perspectivada a questão sob o ângulo das regras da experiência comum, ressal-tam, com a naturalidade que o direito não deve ignorar, repercussões de pen-dor negativo na esfera de interesses patrimoniais do adquirente.

É, pois, a esta normalidade da vida que se deve atender quando se trata de apreciar e julgar as situações, em vez de assentar os juízos valorativos em comportamentos excepcionais que os factos não comprovem. Daí que a recu-sa de reconhecimento do direito de indemnização deva ser reservada para um quadro fáctico em que, pela positiva, seja legítimo afirmar que à concreta pri-vação do uso do bem não correspondeu, na esfera do titular, um dano patri-monial relevante.