o emprego da responsabilidade civil extracontratual nas acções por wrongful life - admissível

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FUNDAÇÃO BISSAYA BARRETO INSTITUTO SUPERIOR BISSAYA BARRETO O EMPREGO DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL NAS ACÇÕES POR WRONGFUL LIFE: (IN)ADMISSIBILIDADE? Daniel Willyam da Silva Cordeiro, n.º 2557 Trabalho final para conclusão da unidade curricular de Direito Civil II, sob a docência do Prof. Dr. Nuno Oliveira. Coimbra, Janeiro de 2014

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  • FUNDAO BISSAYA BARRETO

    INSTITUTO SUPERIOR BISSAYA BARRETO

    O EMPREGO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    EXTRACONTRATUAL NAS ACES POR WRONGFUL LIFE:

    (IN)ADMISSIBILIDADE?

    Daniel Willyam da Silva Cordeiro, n. 2557

    Trabalho final para concluso da unidade

    curricular de Direito Civil II, sob a

    docncia do Prof. Dr. Nuno Oliveira.

    Coimbra,

    Janeiro de 2014

  • 2

    Daniel Willyam da Silva Cordeiro

    - Discente no Mestrado em Direito,

    especializao em Cincias Jurdico-Forenses -

    O EMPREGO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    EXTRACONTRATUAL NAS ACES POR WRONGFUL LIFE:

    (IN)ADMISSIBILIDADE?

    Trabalho final realizado no mbito da Unidade

    Curricular de Direito Civil II, sob docncia do

    Prof. Dr. Nuno Oliveira, referente ao ano lectivo

    de 2013/2014.

  • 3

    A responsabilidade uma curiosa noo. Foge-se dela como a

    procuramos. Descartamo-nos dela como tambm a

    ostentamosUsamos o mesmo vocbulo para designar um poder,

    para atribuir um erro, ou louvar uma assuno. Sada das suas pias

    baptismais jurdicas, a palavra circula da empresa at ao gabinete

    mdico, do campo poltico ao mundo meditico, igualmente solicitada

    pelos ecologistas e pedagogos, em famlia ou na escola. Pronunciada

    muitas vezes, muitas vezes valorizada, como se nos apercebssemos

    de uma forma confusa aqui e acol, de que uma referncia ao nosso

    tempo. Sofre o destino de todos estes termos ambulantes que perdem a

    sua clareza fora de serem invocados.

    A. Etchegoyen , In A Era dos Responsveis

  • 4

    ndice

    Resumo Pgina 5

    Lista de abreviaturas e siglas... Pgina 6

    Introduo Pgina 7

    Captulo I Breve anlise civilista e constitucional sobre o problema.. Pgina 10

    Captulo II A wrongful life ou vida indevida. Pgina 12

    1. Problemas ticos e sociais associados Pgina 12

    2. Figuras afins: wrongful birth, wrongful conception e wrongful

    pregnancy.

    Pgina 13

    Captulo III Responsabilidade Civil Pgina 16

    1. Responsabilidade Civil Contratual versus Responsabilidade Civil

    Extracontratual

    Pgina 16

    2. Responsabilidade Civil Extracontratual: Pressupostos... Pgina 17

    a) Facto do agente.. Pgina 17

    b) Ilicitude...... Pgina 18

    c) Culpa (imputao do facto ao lesante).... Pgina 19

    d) Dano Pgina 19

    e) Nexo de causalidade entre o facto e o dano... Pgina 21

    Concluso/Consideraes finais.. Pgina 22

    Bibliografia.. Pgina 24

    Nota. Pgina 26

  • 5

    Resumo

    Este trabalho desenvolve-se em torno da (in)admissibilidade do emprego da

    responsabilidade civil extracontratual nos casos de wrongful life.

    Partindo de uma anlise civilista e constitucional dos direitos de personalidade, bem

    como dos princpios gerais e direitos fundamentais, entra-se no problema da vida indevida

    como dano passvel de ser reparado.

    A wrongful life levanta grandes problemas, a nosso ver, ticos e sociais: ticos, porque

    ser contra natura, um filho demandar os seus pais por estes terem permitido o seu

    nascimento; bem como o facto de a vida ser uma ddiva, nunca um problema, mesmo quando

    esta deficiente; e sociais, pois ao Estado competir, por meio da Segurana Social, garantir a

    subsistncia de pessoas com deficincias.

    Ao falar de wrongful life, no podemos descurar figuras muito prximas como a

    wrongful birth (nascimento indevido), e a wrongful conception/pregnancy

    (concepo/gravidez indesejadas) que, muitas vezes partem do mesmo facto, mas que tm

    contornos muito diferentes e que lhe permitem ter procedncia em sede judicial.

    Analisando todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber: o

    facto do agente, a ilicitude, a culpa (imputao do facto ao lesante), o dano e o nexo de

    causalidade entre o facto e o dano, chega-se concluso que, nos casos de wrongful life,

    subsuno desta situao a cada um dos pressupostos acima descritos no uma tarefa fcil;

    e, s provando que verdadeiramente o dano da vida passvel de ser indemnizvel e que o

    facto do agente concorreu de forma adequada para a sua produo que poderemos aceder ao

    instituto da responsabilidade civil, neste caso, extracontratual.

    .

  • 6

    Lista de Abreviaturas e siglas

    Art./Arts. Artigo/Artigos

    CC Cdigo Civil

    CRP Constituio da Repblica Portuguesa

    v.g. verbi gratia (do latim, significa por exemplo)

  • 7

    Introduo

    presente trabalho foi realizado no mbito da Unidade Curricular de Direito Civil

    II, no segundo semestre deste ciclo de estudos, constituindo desta forma, um

    elemento de avaliao da mesma.

    Este trabalho versar, no geral, sobre a temtica da responsabilidade civil

    extracontratual e, em concreto, sobre a admissibilidade de aplicar as pretenses de wrongful

    life nas aces de responsabilidade civil extracontratual.

    A escolha do tema prende-se com o facto de tratar-se de uma questo muito delicada e

    sensvel que merece e reclama, cada vez mais, uma reflexo profunda acerca do mesmo

    porque o nosso legislador no previu tal situao e um tema que surge cada vez mais nos

    nossos tribunais e, mormente, nos tribunais estrangeiros.

    Relativamente escolha do ttulo O emprego da responsabilidade civil

    extracontratual nas aces por wrongful life: (In)admissibilidade?, o mesmo espelha a

    questo da admissibilidade de a prpria vida humana configurar um dano indemnizvel.

    O mtodo utilizado para a realizao deste estudo foi a recolha de dados secundrios,

    ou seja, foi desenvolvida a recolha e anlise de fontes de informao jurdica, e s

    posteriormente, desenvolveremos algumas ideias/consideraes acerca da admissibilidade da

    responsabilidade civil extracontratual nas pretenses por wrongful life.

    O trabalho est fragmentado em trs grandes partes: uma primeira parte relativa

    anlise civilista e constitucional inerente ao problema da wrongful life; uma segunda parte

    focada na wrongful life, nomeadamente na explicitao dos casos integrados nestas

    pretenses, dos problemas ticos e sociais associados, bem como das figuras afins; numa

    terceira parte, desenvolver-se- o estudo em torno da responsabilidade civil (extracontratual)

    pela anlise dos seus pressupostos aplicados s aces por wrongful life.

    Estas so, portanto, as linhas gerais a desenvolver neste trabalho.

    * * *

    Torna-se importante, a este nvel, referir, usando as palavras de SANTOS JUSTO, que

    nos primeiros tempos, a reaco suscitada pela violao ou ignorncia de um direito ter-se-

    O

  • 8

    traduzido no recurso fora para obter a satisfao que esse direito deve proporcionar:

    o sistema da autodefesa ou autotutela cujos vestgios encontramos, no campo do processo

    civil () que permitia vtima o exerccio da vingana.1.O mesmo autor refere que atravs

    da actio que se pode proteger um direito subjectivo reconhecido pelo ordenamento jurdico.

    Sendo a actio um meio, por excelncia, para defesa dos direitos violados, hoje em dia,

    as aces de responsabilidade civil so as mais acertadas para o efeito.

    ALMEIDA COSTA refere que, numa perspectiva clssica, a noo de responsabilidade

    constitui um corolrio do princpio de que o homem, sendo livre, deve responder pelos seus

    actos. Portanto, a condio essencial da responsabilidade civil, nesta ptica, incide na culpa,

    que pode traduzir-se num facto intencional, ou em simples imprudncia ou negligncia.2.

    Acrescenta ainda que, contemporaneamente, as vrias formas e modos de actuao humana

    multiplicaram os riscos e, neste sentido, a responsabilidade civil atingiu novos ngulos que

    podem no satisfazer os seus tradicionais esquemas.

    Como sabido, a responsabilidade civil tem subjacente a ideia de reparao (por meio

    patrimonial) do dano sofrido por outrem, podendo esta, revestir duas formas: responsabilidade

    civil contratual e responsabilidade civil extracontratual. Mas, sobre esta temtica, cuidaremos

    em lugar oportuno, no desenvolvimento do trabalho.

    J relativamente s chamadas wrongful actions, estas podem significar duas situaes

    distintas: a wrongful birth e a wrongful life (e, j se comea a ouvir tambm falar em wrongful

    conception e wrongful pregnancy).

    Na wrongful birth, a aco intentada pelos pais da criana, em nome prprio e no

    em representao da mesma. So, portanto, aces propostas pelos progenitores contra os

    profissionais mdicos, pelo facto do nascimento de uma criana no desejada, onde exigem

    uma indemnizao pelos danos resultantes da gravidez e da sade da criana. Trata-se de

    casos onde h a leso do direito informao necessria para que os progenitores decidam

    pela continuao da procriao ou pela interrupo voluntria da gravidez, nos termos

    previstos no artigo 142. do Cdigo Penal. Nas palavras de MOTA PINTO poder estar em

    1 JUSTO, Antnio Santos Direito Privado Romano I. Parte Geral (Introduo, Relao Jurdica, Defesa dos Direitos). In Stvdia Ivridica. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 3 Edio. 2006,

    234. 2 COSTA, Mrio Jlio de Almeida Direito das Obrigaes. Coimbra: Almedina. 12 Edio (Revista e actualizada reimpresso). 2011, p. 528.

  • 9

    causa, de algum modo, o poder de autodeterminao dos pais (e especialmente da me)

    quanto ao planeamento familiar.3.

    J na wrongful life pretende-se indemnizar o dano sofrido pela prpria criana, por ter

    nascido com graves deficincias fsicas e/ou mentais. Neste tipo de pretenses podemos

    distinguir dois tipos de aces: (1) Aces instauradas pela criana contra um ou ambos os

    progenitores com fundamento numa procriao levada a cabo contra indicao mdica e, em

    resultado desse comportamento, a criana nasceu fortemente diminuda fsica e/ou

    intelectualmente (v.g. nos casos em que a me toxicodependente e decida continuar a

    gravidez contra indicaes mdicas ou que tenham recusado os tratamentos mdicos

    indispensveis) e (2) as aces propostas pela criana contra os mdicos por estes no terem

    fornecido aos pais as informaes necessrias que teriam levado, em princpio, interrupo

    da gravidez, evitando o seu nascimento. De acordo com ANDR DIAS PEREIRA4, esta ltima

    aco dentro da wrongful life pode ocorrer de trs modos distintos: a) quando o mdico no

    informa (ou informa de forma insuficiente) ou progenitores da possibilidade de a criana vir a

    desenvolver uma doena congnita grave; b) quando h negligncia na seleco de um

    embrio para implantao no processo de procriao assistida (diagnstico pr-implantatrio

    negligente) e c) quando o mdico no avisa a me que o feto sofre de uma malformao

    grave.

    Posto isto, importa referir que o nosso trabalho incidir apenas sobre a admissibilidade

    wrongful life (ou a vida indevida) como possvel dano passvel de ser indemnizvel por meio

    da responsabilidade civil extracontratual, pese embora a wrongful birth seja um tema deveras

    interessante para investigar e at porque nos tribunais, estas aces tm muito mais

    procedncia do que as aces por wrongful life.

    3 PINTO, Carlos Alberto da Mota Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Coimbra Editora. 4 Edio (por Antnio Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto). 2005, p. 218. 4 PEREIRA, Andr Gonalo Dias O consentimento informado na relao mdico-paciente. Estudos de direito civil. Coimbra: Coimbra Editora. 2004, p. 376.

  • 10

    Captulo I Breve anlise civilista e constitucional sobre o problema

    O problema da wrongful life tem natureza jurdico-privada mas no pode ser pensado

    ou desconstrudo sem atendermos aos princpios constitucionais, nomeadamente no que tange

    aos princpios e direitos fundamentais.

    Dispe o art. 1. da CRP que Portugal uma Repblica soberana, baseada na

    dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construo de uma

    sociedade livre, justa e solidria.. Nas palavras de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, a

    dignidade da pessoa humana constitui um dado prvio (a precondio) da legitimao da

    Repblica () a dignidade do ser humano entendida como um valor (bem) autnomo e

    especfico que exige respeito e proteco5. Este princpio deve ser entendido como limitao

    do poder estatal, como respeito pela autonomia privada e ainda impedindo a degradao da

    pessoa.

    A CRP, ainda, no seu art. 24. prev o direito vida onde preconiza que esta

    inviolvel. O direito vida um direito fundamental da pessoa e radica a prpria

    personalidade. Os direitos fundamentais e os direitos de personalidade tm como

    caracterstica principal serem irrenunciveis. Nesta esteira de pensamento, refere GOMES

    CANOTILHO que se o direito vida fosse disponvel, no seria compatvel com a dignidade da

    pessoa humana6.

    Assim, o ser humano um sujeito de direito e neste sentido que o art. 66. n. 1 do

    CC lhe confere personalidade jurdica, adquirindo-a no momento do nascimento completo e

    com vida. Tambm enquanto nascituro ainda, a lei reconhece-lhe alguns direitos, os quais s

    ganham validade aquando do seu nascimento, como decorre do n. 2 do mesmo artigo.

    Inerente personalidade jurdica, o art. 67. do CC confere ao indivduo capacidade jurdica7,

    consistindo esta, na susceptibilidade de este ser sujeito de quaisquer relaes jurdicas; da

    qual ningum poder renunciar, nos termos do art. 69. do mesmo diploma.

    Reconhecendo-se a dignidade da pessoa humana, a CRP reconhece um leque alargado

    de direitos fundamentais a par dos direitos de personalidade conferidos pelo CC nos arts. 70.

    5 CANOTILHO, J. J. Gomes/ MOREIRA, Vital Constituio da Repblica Portuguesa Anotada. Volume I - Artigos 1 a 107.. Coimbra: Coimbra Editora. 4 Edio (Revista). 2007, p. 98. 6 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes Direito Constitucional e teoria da constituio. Coimbra: Almedina. Reimpresso da 7 Edio de 2003. 2013, p. 202. 7 A capacidade jurdica subdivide-se em capacidade de gozo de direitos e capacidade de exerccio (ou de agir). A primeira,

    consiste na susceptibilidade para se ser titular de um crculo, maior ou menor, de relaes jurdicas; a segunda, supe a

    aptido para actuar juridicamente por acto prprio e exclusivo (ou mediante um representante voluntrio ou procurador). A

    capacidade jurdica ser, ento, um contedo da prpria personalidade jurdica.

  • 11

    a 81.. Neste mbito, o art. 70. do CC, sob a tutela geral da personalidade, visa tutelar todos

    os direitos de personalidade que, por alguma razo, o legislador no previu ou tipificou nos

    artigos seguintes; e na qual se poder incluir o direito vida e outros com a mesma dignidade

    (v.g. o direito sade, integridade fsica e moral). Este ser o artigo mais importante a nvel

    civil nos casos de wrongful life, isto porque, como referimos anteriormente, nele cabem

    imensos direitos no previstos pelo legislador e, ele uma porta aberta para a aplicao do

    instituto da responsabilidade civil, mormente, nos casos de violao ilcita dos direitos de

    outrem ou de qualquer disposio legal destinada a proteger interesses alheios, nos termos do

    art. 483. do CC.

    No podemos olvidar que o art. 18. da CRP estabelece que os preceitos

    constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias so directamente aplicveis e

    vinculam as entidades pblicas e privadas, conferindo-lhes, desta forma, eficcia erga omnes.

    esta eficcia que faz com que o Estado e os outros particulares tenham um correspectivo

    dever de no perturbar ou impedir o exerccio dos direitos fundamentais. Na anotao de

    GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA pode ler-se que as normas contidas neste artigo

    condensam princpios fundamentais de uma doutrina ou teoria geral de direitos, liberdades e

    garantias constitucionalmente adequada. No n. 1 especifica-se a fora normativa de todos os

    preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias; nos n.os

    2 e 3

    estabelece-se o estatuto global das leis restritivas, individualizando-se os princpios

    constitucionais heteronomamente vinculativos das intervenes do legislador na esfera dos

    direitos, liberdades e garantias.8.

    8 CANOTILHO, J. J. Gomes/ MOREIRA, Vital Constituio da Repblica Portuguesa Anotada. Volume I - Artigos 1 a 107..

    Coimbra: Coimbra Editora. 4 Edio (Revista). 2007, p. 189.

  • 12

    Captulo II A wrongful life ou vida indevida

    Como fora anteriormente referido em jeito de introduo, os casos de wrongful life

    focam-se nas situaes onde nasceu uma pessoa com deficincias fsicas e/ou mentais: numa

    primeira hiptese, fruto de anomalias no diagnosticadas ou detectadas pelos profissionais

    mdicos (o que impossibilitou os pais, mais concretamente a me, de poder interromper

    voluntariamente a gravidez) ou, noutra hiptese, porque os pais sabendo da malformao da

    criana, escolheram prosseguir com a gestao.

    Estas so as duas hipteses possveis nas situaes de wrongful life, na qual, a criana

    pretende agir contra o mdico (na primeira hiptese) ou contra os seus pais (na segunda

    hiptese). Daqui resulta que a criana ser sempre a demandante deste tipo de pretenses, e

    ter de ser peticionado por ela prpria quando atingisse a maioridade, nunca podendo ser

    peticionado pelos pais, em nome do filho.

    1. Problemas ticos e sociais associados

    A nosso ver, a pretenso por wrongful life impe problemas tico e sociais

    importantssimos, desde logo porque, um filho vir demandar judicialmente os seus pais por

    considerar que a sua vida indigna e, consequentemente, visualiz-la como um dano passvel

    de ser indemnizvel contra natura, isto porque, mais do que peticionar um direito a no

    nascer ou um direito no existncia, poder vir a admitir-se, num futuro prximo, um

    direito a morrer (nomeadamente seria admitir a eutansia e o suicdio), o que no se coaduna,

    em nada, com o nosso sistema de direito focado integralmente numa proteco acrescida da

    dignidade da pessoa humana e na vida.

    Tambm entendemos que a vida (mesmo que insana) sempre uma ddiva, um

    presente e, admitir a procedncia das pretenses por wrongful life, seria ver a vida como um

    bem livremente disponvel; e no podemos deixar que a vida seja vista como uma comida

    que, quando no se gosta, empurra-se para a beira do prato.

    Um problema social levantado pelas wrongful life actions o facto de, mesmo

    podendo aferir-se a responsabilidade civil de algum, o Instituto de Segurana Social vai ser

    intimado a prestar auxlio, nomeadamente por forma de subsdio, subsistncia da criana

    pelo facto de esta padecer de doenas ou malformaes graves. A este respeito, refere o art.

    26. n. 1 da Lei 4/2007, de 16 de Janeiro (que aprova as bases gerais do sistema de segurana

  • 13

    social) que o sistema de proteco social de cidadania tem por objectivo garantir direitos

    bsicos dos cidados e a igualdade de oportunidades, bem como promover o bem-estar e a

    coeso sociais, acrescentando o n. 2 alnea d) que, para concretizao destes objectivos,

    compete ao sistema de proteco social de cidadania a compensao por encargos nos

    domnios da deficincia e da dependncia. J o art. 29. do mesmo diploma refora esta ideia

    estabelecendo que o subsistema de aco social assegura ainda especial proteco aos grupos

    mais vulnerveis, dentre os quais, as pessoas com deficincias.

    Certo que a Segurana Social foi pensada (tal como a responsabilidade civil) para

    reparar danos mas no se estar a sobrecarregar o Estado na manuteno dos seus cidados? A

    resposta ser sempre afirmativa, mas j o que resulta da ideia do Estado Social, visto que o

    Instituto da Segurana Social chamado a reparar os danos independentemente de se

    considerar que o facto que os produziu ilcito e culposo. A nosso ver, as prestaes da

    Segurana Social devero ter uma natureza subsidiria face indemnizao a vir receber a

    ttulo de responsabilidade civil, funcionando apenas nos casos em que esta se mostre

    insuficiente para a subsistncia desta criana.

    2. Figuras afins: wrongful birth, wrongful conception e wrongful

    pregnancy

    Muito prximos dos casos de wrongful life e tambm eventuais fontes de

    responsabilidade civil, so as figuras da wrongful birth, wrongful conception e wrongful

    pregnancy.

    Os casos de wrongful birth (ou nascimento indevido) inserem-se nas situaes onde o

    mdico no detectou ou informou (ou informou de forma insuficiente) os pais da criana

    acerca das enfermidades que esta padecia, o que veio a culminar no nascimento de uma

    criana com graves deficincias. Nestes casos, os demandantes sero os pais das crianas que,

    por culpa do mdico, viram o seu direito de liberdade de escolha na continuao ou

    interrupo da gravidez9. Ou seja, nestes casos, o erro do mdico conduziu ao nascimento da

    criana e, os seus pais vm peticionar uma indemnizao pelos danos patrimoniais e no

    patrimoniais sofridos com o nascimento da criana. Os danos patrimoniais, claro est, sero

    9 O art. 142. do Cdigo Penal, sob a epgrafe Interrupo da gravidez no punvel, no seu n. 1, alnea c) prev que a interrupo da gravidez (desde que realizada por mdico ou sob a sua direco; um estabelecimento de sade oficial ou

    oficialmente reconhecido; e acompanhado do consentimento da mulher gravida) no punvel: nos casos onde existe seguros

    motivos para prever que o nascituro vir a sofrer, de forma incurvel, de grave doena ou malformao, e for realizada nas

    primeiras vinte e quatro semanas de gravidez e, em casos em que o feto seja invivel, poder ser realizada a todo o tempo.

  • 14

    todos os encargos com a subsistncia, tratamentos e outros gastos futuros. J os danos no

    patrimoniais sero, normalmente, os desgostos e frustraes sofridos pelos pais por aquele

    nascimento indevido.

    Este tipo de aces tem tido grande procedncia nos tribunais, mormente nos tribunais

    estadunidenses onde se tem condenado os mdicos demandados no pagamento de

    indemnizaes pelos gastos extraordinrios provindos do nascimento da criana com

    malformaes. O primeiro caso conhecido acerca deste problema foi o caso Gleitman versus

    Cosgrove, no Estado de New Jersey, em 1967. Neste caso, o tribunal julgou improcedente tal

    demanda com o fundamento de que a criana no sofreu qualquer dano tutelado por lei e a

    dificuldade de mensurabilidade do dano. J o caso Becker versus Swartz, foi o primeiro caso

    de wrongful birth tido como procedente nos tribunais de New York, em 1977, pois o mdico

    no a aconselhou a realizar o exame de amniocentese e, com a falta deste, no se pde

    determinar que a criana detinha Sndrome de Down, o que veio a perceber-se apenas

    aquando do seu nascimento. Em Espanha, um dos casos de wrongful birth centrou-se na falta

    de informao por parte do mdico, tendo esta ocorrido em Valncia em 2003.

    Em Frana, a questo foi propagada por fora do arrt Perruche, que nasceu com

    graves deficincias (sndroma de Gregg), devido rubola contrada pela sua me durante a

    gravidez, mas como no foi detectada durante a gravidez, os seus pais demandaram o mdico

    e o laboratrio. O Cour de Cassation Franaise atribuiu aos pais uma indemnizao pela

    violao do direito a escolher prosseguir com a gravidez ou pr-lhe termo (autodeterminao

    reprodutiva), mas tambm criana, em virtude dos danos, por esta, sofridos10

    .

    Relativamente aos casos de wrongful conception e wrongful pregnancy (concepo e

    gravidez errnea/indesejada), estes ocorrem quando uma criana gerada, por exemplo, por

    uma esterilizao mal executada ou mesmo por falha dos mtodos contraceptivos. Nestes

    casos no est em causa a criana nascer com deficincias (porque seno conduziria a um

    caso de wrongful birth/life) mas sim a violao da autodeterminao dos progenitores no seu

    planeamento familiar. O que os pais desta criana vm peticionar no nada mais do que uma

    indemnizao associada s despesas que tero com (mais) aquela criana, nomeadamente a

    sua educao, subsistncia, sade, entre outras.

    Um caso importante, dos primeiros com procedncia judicial ao nvel da wrongful

    conception/pregnancy ocorreu na Califrnia em 1967 (o caso Custodio versus Bauer) onde, 10 Importa referir que o legislador francs, preocupado com a possibilidade de multiplicao de casos idnticos a este,

    publicou a Lei n. 2002-303, de 4 de Maro de 2002 (conhecida pela Lei Anti-Perruche) a qual previa, no seu art. 1., que o

    nascimento nunca poder ser visto como um prejuzo para ningum.

  • 15

    por um erro na realizao de uma laqueao das trompas gerou uma gravidez no desejada. O

    tribunal considerou procedente tal aco pois consideraram as despesas com a criao de mais

    um filho como um dano passvel de ser indemnizvel; bem como, foi tido em conta o facto de

    os outros filhos virem a perder a oportunidade de usufruir o dinheiro gasto com este filho

    indesejado.

  • 16

    Captulo III - Responsabilidade civil

    A responsabilidade civil frequentemente utilizada como meio de proteco da vida e

    da sua qualidade, bem como contra agresses fsicas ou morais. Ou seja, a amplitude dos

    direitos da personalidade exige a sua tutela, muitas vezes, por meio de aces de

    responsabilidade civil decorrentes da prtica do acto ilcito que os viola. Resta saber se a

    responsabilidade civil adveniente da wrongful life configura-se como contratual ou

    extracontratual e quais os pressupostos necessrios para que a pretenso chegue a bom porto

    judicialmente.

    1. Responsabilidade civil contratual versus Responsabilidade civil

    extracontratual

    Importa discutir a que nvel (contratual ou extracontratual) se situa as aces de

    wrongful life visto que o regime jurdico a aplicar a cada uma delas difere, desde logo, quanto

    culpa (que, presumida na responsabilidade civil contratual, contrariamente ao que sucede

    na responsabilidade civil extracontratual); tambm na fixao equitativa da indemnizao

    (ocorre, nos termos do art. 494. do CC, na responsabilidade civil extracontratual, no

    ocorrendo na contratual); relativamente prescrio (que, segundo o art. 498. do CC, situa-se

    nos 3 anos aps o conhecimento do direito a que lhe assiste, na responsabilidade civil

    extracontratual; e na responsabilidade civil contratual, vale o prazo ordinrio de 20 anos, do

    art. 309. do CC).

    Relativamente responsabilidade civil contratual (negocial ou obrigacional), pode

    dizer-se que esta ocorre quando um direito de crdito ou uma obrigao, decorrente de um

    contrato, bem como de negcios jurdicos unilaterais. J a responsabilidade civil

    extracontratual (delitual ou aquiliana) esta advm da violao de deveres jurdicos impostos a

    todas as pessoas por fora dos direitos absolutos; mas tambm se inclui aqui todas as condutas

    que, mesmo sendo lcitas, provocam dano a outrem. A primeira tem o seu regime previsto nos

    artigos 798. e seguintes do CC e, a segunda, nos artigos 483. e seguintes do mesmo diploma.

    Se estivesse em causa o estudo da wrongful birth, mais facilmente definiramos a

    responsabilidade civil da adveniente como contratual por se entende que, entre o mdico e o

    paciente (a mulher grvida) existe um contrato mdico (ainda que no escrito) que consiste no

  • 17

    acompanhamento da mesma com o objectivo de salvaguarda da sua sade e integridade fsica,

    com o dever subjacente de inform-la sobre a sua sade e a da criana.

    J na wrongful life, no se pode dizer que entre a criana e o mdico11

    ou entre a

    criana e os seus pais exista um contrato na qual este possa a vir deduzir pedido

    indemnizatrio fundado no incumprimento do contrato e, consequentemente, na criao do

    dano.

    Desta feita, analisaremos a aco de wrongful life fundada na responsabilidade civil

    extracontratual por factos ilcitos.

    2. Responsabilidade Civil Extracontratual: Pressupostos

    Situando, ento, as aces de wrongful life nas aces de responsabilidade civil

    extracontratual por factos ilcitos, deveremos cingir-nos ao art. 483. n. 1 do CC que

    estabelece que: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem

    ou qualquer disposio legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a

    indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violao.. Para que se subordine uma

    determinada situao responsabilidade civil, esta dever ser analisada luz de cada um dos

    cinco pressupostos indicados no art. 483. do CC e que so: o facto voluntrio do agente; a

    ilicitude; a culpa (imputao do facto ao lesante); o dano; o nexo de causalidade entre o facto

    do agente e o dano;

    S a sua subsuno a cada um destes requisitos e a sua correlao poder, com efeito,

    possibilitar criana aceder ao instituto da responsabilidade civil extracontratual. Ora,

    analisemos agora cada um dos pressupostos aplicados pretenso por wrongful life.

    a) Facto voluntrio do agente

    De acordo com ANTUNES VARELA, um dos pressupostos bsicos da responsabilidade

    civil o facto praticado pelo agente, ou seja, um facto dominvel ou controlvel pela

    11 Questionava-se se no existiria aqui um contrato a favor de terceiro na qual um dos contraentes (o promitente) atribui, por

    conta e ordem do outro (o promissrio), uma vantagem a um terceiro (o beneficirio), estranho relao contratual.

    Todavia, a criana no beneficirio directo mas sim a progenitora, no se podendo aplicar aqui o contrato a favor de

    terceiro. No mximo, poder-se-ia falar de um contrato com eficcia de proteco para terceiros. Este contrato admite que

    determinados negcios so susceptveis de conferir uma certa tutela a quem no neles parte, atravs da atribuio (a esses

    terceiros) da possibilidade de deduzirem pedidos indemnizatrios contra as partes nesse contrato, no em virtude do

    incumprimento de um dever de prestar mas pelo no acatamento de outros deveres que integram a relao obrigacional no

    seu todo, tendo por objecto ou finalidade a sua proteco.

  • 18

    vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana12. Ou seja, o facto gerador

    do dano no pode ser um facto natural, mas sim um acto humano (exclui os actos de animais).

    Alm disso, tem de ser um facto voluntrio, ou seja, relevante apenas os actos queridos pelo

    agente, a qual previu os seus efeitos, o que, facilmente exclui, os casos de negligncia

    inconsciente, onde o agente no prefigurou mentalmente os efeitos dos seus actos.

    Importa ainda referir que este acto humano pode ser um facto positivo (uma aco ou

    acto) ou negativo (omissivo)13

    .

    No caso da wrongful life, o facto que teria ocasionado o dano consiste exactamente na

    conduta do mdico, logo, um facto humano, perfeitamente controlvel. Mais precisamente, o

    acto mdico em questo constitui uma omisso a ausncia de um diagnstico ou a falta de

    informao deste, logo, o dever de agir era obrigatrio. Desta forma, a omisso mdica

    constitui um acto humano capaz de produzir danos, podendo preencher-se tal pressuposto da

    responsabilidade civil.

    J no caso de os demandados serem os progenitores, o facto lesivo, por estes,

    praticado ser o da no interrupo da gravidez, quando eles tenham sido informados pelo

    mdico que o feto padecia de malformaes.

    b) Ilicitude

    Segundo o artigo 483. do CC prev-se duas formas de ilicitude: a violao a um

    direito de outrem e a violao de qualquer disposio legal destinada a proteger interesses

    alheios. Mas ainda possvel apontar um terceiro tipo de ilicitude, o abuso de direito, previsto

    no art. 334 do CC. Desta forma, a ilicitude assenta na conduta do agente e no no seu

    resultado (o dano).

    Nas aces de wrongful life, foca-se a ilicitude na violao de um direito de outrem,

    neste caso, da criana. Assim, pretende considerar-se a possibilidade de leso de dois bens

    jurdicos distintos: o direito a uma vida digna e saudvel e o direito a no nascer (naqueles

    termos); como direitos de personalidade (direitos subjectivos), centrados na dignidade da

    pessoa humana.

    Para DAVID HIRSCH14

    , a pretenso da criana no assentar num direito a no nascer,

    mas sim em viver uma vida com sofrimentos e necessidades.

    12 VARELA, Joo de Matos Antunes Das obrigaes em geral. Coimbra: Almedina. 10 Edio. 2000, p. 527. 13 S ser omissivo quando exista um dever jurdico de praticar certo acto. Informa-nos, a este respeito, o art. 486. do CC

    que, as simples omisses do lugar obrigao de reparar danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por fora da lei ou de negcio jurdico, o dever de praticar o acto omitido. 14 Apud HOLANDA, Caroline Stiro de Violao liberdade reprodutiva: uma anlise dos pressupostos da responsabilidade civil para os casos de wrongful birth e wrongful life.

  • 19

    Na wrongful life, a vida indevida resultou ou da falha mdica em detectar a deficincia

    ou da falta de informao, quando o mdico o demandado. A doena, entretanto, no fora

    provocada por este erro mdico. A anomalia em causa no seria passvel de cura, assim, neste

    caso, a vida saudvel seria efetivada pela no-vida. J nos casos em que os progenitores da

    criana so os demandados, a ilicitude reside no facto de a vida com dignidade (postulada no

    princpio da dignidade da pessoa humana) ter sido afastada daquela criana porque os seus

    pais no interromperam a gravidez, sabendo que o feto comportava graves malformaes.

    c) Culpa (imputao do facto ao lesante)

    A culpa constitui um juzo de censura da conduta ilcita. Assim, para que exista o

    dever de indemnizar deve-se apreciar e demonstrar a culpa, isto , deve ser verificado se o

    agente procedeu com dolo. importante referir que tambm mera culpa (como negligncia e

    imprudncia) passvel de gerar uma obrigao indemnizatria, como resulta do prprio art.

    483. n. 1 do CC.

    Como pressuposto da culpa surge, num primeiro plano, a imputabilidade do agente, ou

    seja, ser imputvel aquele que tem capacidade natural para antever os efeitos dos actos que

    pratica. Por outras palavras, exige-se uma capacidade de querer e entender, como resulta,

    desde logo, do art. 488. n. 1 do CC. Excludos desta imputabilidade estaro, por mor do art.

    488. n. 2 do CC, os menores de sete anos e os interditos por anomalia psquica, a qual, a lei

    presume a sua imputabilidade. Num segundo plano, e como dissemos inicialmente,

    pressuposto da culpa do agente a prtica do facto com dolo (ou m-f) ou por mera culpa. Ou

    seja, o agente deveria e poderia ter agido de outro modo, perante aquelas circunstncias do

    caso.

    O art. 487 n. 2 do CC estabelece um critrio legal para apreciao da culpa,

    determinado por uma culpa em abstracto (a conduta diligente de um bom pai de famlia) mas

    sempre, segundo o caso em concreto.

    Relativamente prova da culpa, esta caber ao prprio lesado (como resulta do art.

    342. n. 1 do CC), que, no caso das aces de wrongful life ser a criana. Esta prova poder

    ser feita, v.g., mediante demonstrao de que durante a gravidez, era visvel que o feto tinha

    ms formaes.

    d) Dano

    O dano ser todo e qualquer prejuzo decorrente da violao de um direito de outrem.

    Constitui o principal pressuposto da responsabilidade civil, sendo at o seu fundamento, j

  • 20

    que o escopo da responsabilidade civil justamente indemnizar a pessoa pela leso sofrida.

    Sem dano, no h responsabilidade civil. Neste sentido, refere PINTO MONTEIRO que o dano

    o pressuposto e o limite da obrigao de indemnizar15.

    A finalidade da indemnizao , sobretudo, a restaurao da situao que existiria se o

    evento danoso no tivesse ocorrido. Esta indemnizao deve ser medida, nos termos do art.

    566. n. 2 do CC por uma diferena entre a situao real (com o dano) e a situao hipottica

    (sem o dano)16

    . Trata-se da chamada teoria da diferena, criada por FRIEDRICH MOMMSEN

    em 1855.

    sabido que os danos podem ter um carcter patrimonial (passveis de serem

    avaliados em dinheiro) e no-patrimonial (passveis de serem compensados em dinheiro). Os

    danos patrimoniais podem desdobrar-se em danos emergentes (na perda patrimonial sofrida);

    e lucros cessantes (lucro frustrado, ou seja, aquilo que se deixou de ganhar).

    Tratando-se de aces de wrongful life, o dano pode ser caracterizado de duas formas:

    o dano reside na prpria vida deficiente e/ou o dano seria a deficincia em si. Em qualquer

    dos casos, fala-se tanto em danos no-patrimoniais (sofrimentos, angstias), como em danos

    patrimoniais (custos subjacentes com tratamentos, infraestruturas necessrias, etc).

    Mas, analisar se o dano a prpria vida deficiente ou se a deficincia em si no surte

    efeitos prticos, pois em qualquer caso, no possvel aplicar nem o princpio da

    reconstituio natural nem a teoria da diferena. Para CARNEIRO DA FRADA no ser possvel

    a aplicao do princpio da reconstituio natural, pois tal induz no no pedido de

    indemnizao, mas num pedido de morte assistida, j que esta sim corresponderia a uma

    reconstituio dos factos. E de acordo com a teoria da diferena, a indemnizao tem por fim

    colocar o sujeito na situao hipottica que existiria se no fosse o dano. Neste caso, o sujeito

    teria de comparar a sua situao actual de viver com a situao hipottica de no viver17

    .

    O problema da avaliao destes danos exige uma anlise impossvel de ser efetivada: a

    comparao entre a existncia e a no-existncia. No se pode comparar uma vida deficiente

    com uma no vida ou uma no existncia. Por isso, quase sempre impraticvel a avaliao

    do dano e a sua consequente indemnizao. O dano s poderia ser avaliado e,

    consequentemente, indemnizado se a deficincia tivesse sido provocada, porque, neste caso, o

    contraponto seria a vida saudvel que se teria.

    15 MONTEIRO, Antnio Pinto Princpios Gerais da Responsabilidade Civil. In Revista da Escola Nacional de Magistratura Associao dos Magistrados Brasileiros. Ano II, n. 3, Abril. Braslia: [s.n.]. 2007, p. 111. 16 VARELA, Joo de Matos Antunes Das obrigaes, p. 907. 17 FRADA, Manuel Carneiro da A prpria vida como um dano? Dimenses civis e constitucionais de uma questo limite, 2011.

  • 21

    PAULO MOTA PINTO considera que existe um padro contrafactual de comparao

    o da pessoa sem malformaes e regularmente funcional 18. Mas esta tese no atende teoria

    da diferena, j que o nascimento saudvel nunca foi uma possibilidade.

    A atribuio de uma indemnizao prpria criana no atinge a sua dignidade, uma

    vez que no tem de assentar na concluso de que a existncia como deficiente menos valiosa

    do que a no-existncia. A vida sempre uma dvida, mesmo que deficiente, no podendo, a

    nosso ver ser valorada como dano.

    A deficincia, na maioria dos casos, impede a pessoa de trabalhar e, ao mesmo tempo,

    eleva os custos de manuteno da vida mas na wrongful life, tais danos no podem ser

    mensurados, posto que no possvel afirmar que a no-existncia prefervel.

    e) Nexo de causalidade entre o facto e o dano

    Para se determinar a causa do dano necessrio realizar o seguinte raciocnio: o dano

    teria ocorrido se a conduta humana em anlise no tivesse sido praticada? Ou seja, com esta

    questo procura saber-se se tal facto foi causa adequada a produzir aquele dano.

    Para analisar o nexo de causalidade na wrongful life, necessrio determinar que dano

    observar (a prpria vida deficiente ou a deficincia em si); depois cabe-nos relacionar o dano

    conduta humana lesiva (ao facto). Partindo do pressuposto de que a vida deficiente

    considerada como dano, impe-se-nos a questo de saber se sem o erro mdico ou a falta de

    informao por parte do mdico; ou se os pais, sabendo das graves malformaes do seu filho

    tivessem interrompido a gravidez, haveria vida deficiente? A resposta cruelmente negativa.

    Sem esta falha mdica, o aborto teria ou poderia ter sido realizado e, consequentemente, no

    haveria a vida deficiente.

    Tratando-se de wrongful life, ainda que o mdico tivesse detectado a anomalia ou m-

    formao, ele nada poderia fazer para assegurar o nascimento de uma criana saudvel. No

    se pode dizer que haja nexo de causalidade entre a conduta omissiva do mdico e o dano de

    vida deficiente, pois no havia um dever jurdico.

    Conclui-se que em relao wrongful life, difcil apurar-se o nexo de causalidade

    que liga o dano (vida deficiente ou deficincia) ao erro mdico (falha em detectar a doena ou

    falta de informao). E, faltando este pressuposto, a aco de responsabilidade civil fundada

    na wrongful life nunca poder ser improcedente.

    18 PINTO, Paulo Mota Indemnizao em caso de nascimento indevido e de vida indevida (wrongful birth e wrongful life), 2011.

  • 22

    Concluso / Consideraes finais

    Serviu o presente trabalho para situar-nos na temtica das aces de responsabilidade

    civil por wrongful life. Na verdade, este tipo de aces sempre nos despertaram curiosidade

    mas por inrcia, foi-se-nos passando ao lado.

    Trata-se, sem sombra de dvida, de uma temtica muito relevante, isto porque, toda a

    evoluo da sociedade tem conduzido a uma responsabilizao cada vez maior do cidado e,

    muitas das vezes, fugindo-se aos tradicionais esquemas da responsabilidade civil.

    verdade que a nossa Constituio funda-se na dignidade da pessoa (vida) humana

    mas admitir que as pretenses por vida indevida sejam procedentes, ser abraar um direito

    no existncia que, esvazia todo o contedo daquele postulado.

    Contrariamente, ser admissvel que as aces por nascimento indevido (wrongful

    birth) e por concepo/gravidez indesejadas (wrongful conception/ wrongful pregnancy)

    tenham procedncia em sede judicial visto que o que est na base , quase sempre, uma

    omisso por parte do mdico ou um acto insuficiente (quando este preste informaes

    insuficientes) o que, em sede de responsabilidade civil contratual, muito mais fcil de ser

    provado e mensurado (nomeadamente em sede de culpa e do dano).

    Relativamente aos casos jurisprudenciais portugueses, por wrongful life, o caso mais

    divulgado data de 19 de Junho de 2001 e foi julgado pelo Supremo Tribunal de Justia, cujo

    relator foi Antnio Pinto Monteiro. Neste caso, a criana, representada pelos seus pais por ser

    menor, vinha pr em causa o direito sua prpria no existncia. Entendeu-se neste aresto

    que o direito vida exige que o prprio titular do direito o respeite, ora, no se prevendo no

    nosso ordenamento jurdico qualquer direito no existncia, decidiu-se que no havia

    conformidade entre o pedido e a causa de pedir. Diferente situao ocorreria se os seus pais

    tivessem proposto a aco em nome prprio visto terem sido os lesados directos no erro ou

    falta do mdico em detectar as anomalias do feto; aqui enveredar-se-ia por uma aco de

    wrongful birth, a qual teria tido sucesso, efectivamente. Ao que pudemos apurar, o ultimo

    acrdo acerca deste problema, foi tambm um acrdo do Supremo Tribunal de Justia de 17

    de Janeiro de 2013, relatado por Ana Paula Boularot, na qual, com os mesmos contornos do

    aresto referido anteriormente, a me veio demandar em nome prprio e em representao do

    filho, um mdico e o centro de radiologia onde este laborava, pois, aquando da gravidez, o

  • 23

    mdico no detectou as anomalias de que padecia o feto, tendo a criana nascido com um

    sndroma polimalformativo. Neste aresto, discutindo toda a questo em torno da wrongful life,

    veio-se mais uma vez a decidir no sentido de no admisso da responsabilidade civil

    relativamente criana pois considera-se que teria de ser esta a demandar em nome prprio,

    quando atingisse a maioridade19

    .

    Por tudo que foi referido ao longo deste estudo, acreditamos que as aces de

    responsabilidade civil extracontratual por wrongful life sero, dentro do quadro legislativo que

    detemos, sempre inadmissvel.

    Entendemos que, relativamente s pretenses por wrongful life, muito dificilmente

    ser aberta uma brecha na lei onde se possam incluir estes casos pois caso isto acontea,

    desconstruiramos todo o leque de direitos que a CRP e o CC prevm e tutelam e estaramos a

    presenciar o nascimento de um direito a no nascer ou um direito no existncia.

    19 Neste sentido, o Conselheiro Pires da Rosa veio a votar vencido, referindo que: nem se diga que indemnizar o filho () atingir a dignidade da sua pessoa, diminuindo-o na sua condio humana. Indignidade ser, a meu ver, no lhe possibilitar

    pela via indemnizatria uma quantia que lhe permita suportar o enormssimo encargo da sua condio, de uma forma

    maisdigna.

  • 24

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  • 26

    Nota:

    - O presente trabalho foi redigido em lngua portuguesa anterior ao novo acordo

    ortogrfico