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Resgatando o sistema alimentar global

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Resgatando o sistema alimentar global

War on Want é um movimento de pessoascomprometidas com a justiça global.Nosso objetivo é um mundo livre da pobreza e da opressão,baseado na justiça social, igualdade e direitos humanos para todos.

Nossa missão é lutar contra as raízes da pobreza e da violaçãodos direitos humanos, como parte do movimento mundial porjustiça global.

Fazemos isto através:• do trabalho em parceria com movimentos sociais de base,sindicatos e organizações de trabalhadores, visando permitirque as pessoas conquistem seus direitos

• da condução de campanhas populares contundentes contra as origens da pobreza e da violação de direitos humanos

• da mobilização de redes de apoio e construção de alianças paraação política pelos direitos humanos e, particularmente, pelosdireitos dos trabalhadores

• da sensibilização do público em geral sobre as origens dapobreza, desigualdade e injustiça e ao incentivar as pessoas a se mobilizarem por mudanças

Junte-se a nós!O sucesso de nosso trabalho está em inspirar as pessoas a aderirem à luta contra a pobreza e o abuso aos direitoshumanos. Existem três maneiras simples de você fazer doações e juntar-se ao movimento:

Telefone (0044) (0)20 7324 5040

Internet www.waronwant.org/support-us

Correio War on Want44-48 Shepherdess WalkLondres N1 7JPInglaterra, Reino Unido

O escândalo da fome mundialenvergonha a humanidade. O fato deque exista um número recorde depessoas classificadas como famintas emum momento no qual há uma riquezamundial sem precedentes desafia opróprio conceito de progresso humano.Além disso, há um crescente consensode que a crise do sistema global dealimentos é resultado de escolhaspolíticas que favorecem interesses de corporações enquanto condenamcentenas de milhões de pessoas aodesalento. Este sistema está falido e precisa ser mudado.

A War on Want está comprometida com a luta contra a fome mundial desde suafundação há 60 anos. Nosso trabalho temcomo objetivo desafiar as causas origináriasda crise, especialmente no nível político, eapoiar esforços direcionados a soluçõespositivas que sejam socialmente justas, assimcomo ambientalmente sustentáveis. A War onWant estabeleceu parcerias duradouras commovimentos de agricultores ao redor domundo para promover o modelo da soberaniaalimentar como uma alternativa viável aosistema agroalimentar vigente.

O modelo de soberania alimentar posiciona-se firmemente em contraste ao conceito de"segurança alimentar" que domina as reaçõesoficiais às crises de fome mundiais. O governodo Reino Unido, em particular, tem defendidouma variante extrema da idéia de segurançaalimentar baseada no mito de que o livrecomércio e o mercado global irão saciar as necessidades de populações que perderama capacidade de produzir seus própriosalimentos. A explosão dos preços, as revoltaspor comida e os níveis recordes de famintosem anos recentes demonstram a urgente

necessidade de um novo paradigma parasubstituir essa abordagem falida.

Este relatório apresenta os princípios básicosque sustentam a soberania alimentar. Eletambém apresenta uma série de estudos decasos que demonstram como agricultores jáestão implementando estes princípios comsucesso em suas próprias comunidades aoredor do mundo. Os parceiros da War onWant – agricultores do Brasil, Sri Lanka eMoçambique – têm desenvolvido o uso daagroecologia, com protagonismo dascomunidades, de modo a oferecer soluçõespráticas contra a ameaça da fome. Ademais,este relatório apresenta um exemplo paralelode resistência à agricultura corporativa apartir da primeira fazenda comunitária doReino Unido.

Bem como o trabalho em parceria commovimentos de agricultores no hemisfério sul1, a War on Want também estácomprometida com a construção domovimento pela Soberania Alimentar naEuropa. Nos orgulhamos por ter coordenadoa delegação britânica que participou doprimeiro Fórum Europeu pela SoberaniaAlimentar em Krems, Áustria, em agosto de2011. Continuaremos a trabalhar com todosaqueles que buscam alternativas positivas esustentáveis no hemisfério norte, assim comono hemisfério sul. O escândalo representadopela fome mundial é uma prova da falência dosistema alimentar capitalista. Chegou a horada soberania alimentar.

John HilaryDiretor executivoWar on Want

Prefácio01

03 Resumo

05 1. Introdução: Um sistema alimentar em crise

08 2. A expansão do capitalismo corporativo2.1 A Revolução Verde2.2 Mudanças na dieta global2.3 Lavouras transgênicas2.4 Extraindo o lucro2.5 A grande usurpação de terras2.6 O planeta sitiado

26 3. Soberania Alimentar: a alternativa positiva3.1 Segurança Alimentar x Soberania Alimentar3.2 Agroecologia em ação

32 4. Agroecologia no Brasil4.1 As cooperativas da Fazenda Pirituba

36 5. “Agricultura natural” no Sri Lanka5.1 A ameaça do turismo5.2 Autonomia baseada na comunidade

40 6. Agricultura coletiva em Moçambique6.1 Mobilização pela Soberania Alimentar6.2 Resgatando o conhecimento tradicional

45 7. Agricultura comunitária na Grã Bretanha7.1 Fazenda Fordhall, Shropshire

49 8. Conclusões

Índice02

03

Em 2009, pela primeira vez na história dahumanidade, mais de um bilhão de pessoasforam oficialmente classificadas comofamintas. Conforme anunciado pelaOrganização das Nações Unidas paraAgricultura e Alimentação (FAO/ONU), estenúmero recorde não foi consequência decolheitas mal sucedidas ou desastres naturais.A fome nessa escala é o resultado de umaeconomia global na qual centenas de milhõesde pequenos agricultores, pescadores,pastores e povos indígenas estão sendoarruinados através da apropriação do sistemaalimentar pelo agronegócio e grandesvarejistas de alimentos.

A crise no sistema alimentar global origina-sena expansão do capitalismo corporativo. Esta expansão não tem apenas causado a saída forçada de milhões de famíliascamponesas de suas terras, mas também estátransformando completamente a maneiracomo os países praticam a agricultura. Muitossistemas agrícolas locais converteram-se àagricultura voltada à exportação, ao mesmotempo em que os países foram obrigados a abrir seus mercados aos alimentosimportados, que incluem os produtosdespejados pelas empresas americanas eeuropéias com valores inferiores ao custo de produção. Como resultado, milhões de pequenos agricultores estão assistindo seu modo de vida ser destruído.

O principal veículo para conseguirtransformar a agricultura no hemisfério sul foi a Revolução Verde, que trouxe enormelucro para as corporações envolvidas, masaumentou o número de pessoas famintas. Aprodução per capita de alimentos cresceu 8%na América do Sul e 9% no sul asiático entre1970 e 1990, porém a quantidade de pessoasfamintas aumentou nestas regiões (19% e 9%respectivamente), ambas alvos-chave dasnovas tecnologias. Esta história repetiu-se em outros países ao redor do mundo.

A origem da crise alimentar global pode ser encontrada em um sistema criado paragarantir o lucro das corporações ao invés de suprir as necessidades das pessoas. Noentanto, existe uma alternativa positiva: o modelo da soberania alimentar, “o direitodas pessoas a alimentos saudáveis eculturalmente apropriados produzidos deforma ecologicamente correta e métodossustentáveis, além do direito à escolha dos seus próprios alimentos e sistemas de agricultura”.

A soberania alimentar requer uma reformaagrária que contemple pequenos produtorese sem-terra; uma reorganização do comérciomundial de alimentos focada no mercadolocal e na auto-suficiência; controle muitomaior sobre as corporações transnacionaisde alimentos, além da democratização deinstituições financeiras internacionais. Estavisão defende um mundo no qual as decisõessobre a maneira de cultivar, processar ecomercializar os alimentos são resgatadas dasmãos do capital e são devolvidas às pessoas.

O principal fundamento através do qual a comunidade internacional decidiu tratar os escândalo global da fome é o da“segurança alimentar”. Esta é uma respostadeplorável ao perverso sistema alimentaratual. Trata a questão da fome como problemado bem-estar social que pode ser resolvidosimplesmente pela entrega de mais comida.Deixa de reconhecer que a fome éessencialmente um problema político quesomente pode ser resolvido a partir detransformações no equilíbrio de poder. Ao fim, a abordagem da segurança alimentar é uma defesa do status quo.

O Departamento para o DesenvolvimentoInternacional do Reino Unido (DFID, sigla eminglês) há muito tempo vem defendendo ummodelo de segurança alimentar baseado nomercado livre, tecnologias pertencentes às

Resumo

corporações e amplo controle privado da produção e distribuição de comida. Asdiretrizes do DFID no documento BuildingOur Common Future (“Construindo nossofuturo conjunto”), de 2009, buscaramaprofundar estas políticas através de umanova parceria com a Aliança para a RevoluçãoVerde na África, que tornaria os agricultoresmais dependentes das sementes eagroquímicos produzidos por poucas epoderosas corporações. Em resposta àescalada dos preços de gêneros alimentíciosem 2008, entre os líderes do G8, o governodo Reino Unido foi um dos principaisproponentes da remoção de restrições àexportação e fortalecimento do papel domercado livre no sistema alimentar, apesar do conhecido dano que isto causaria.

Na busca da alternativa positiva representadapela soberania alimentar, camponeses aoredor do mundo estão desenvolvendo suaspróprias formas de agricultura sustentável.Estas formas podem ser expressivamentemais produtivas que a agricultura industrial,além de oferecer uma solução certeira aocrescente desastre causado pela agricultura

intensiva ao emitir gases responsáveis pelo efeito estufa. No Brasil, Sri Lanka eMoçambique, como este relatório descreve,os parceiros da War on Want estão apoiandocomunidades a aplicar os princípios dasoberania alimentar na produção dealimentos e a retomarem o controle de suas vidas.

Entretanto, a soberania alimentar envolvemuito mais do que a produção de comida. Ela implica em uma mudança radical namaneira como a sociedade é organizada,retirando o poder das elites locais quefrequentemente estão associadas ao capitalcorporativo, devolvendo-o ao povo. Assim, aspróprias comunidades camponesas terão ocontrole de suas terras e o poder de decisãosobre o que será cultivado e de que maneira.Significa impulsionar mudanças nas políticasmacroeconômicas para que a produçãonacional de alimentos possa ser protegida da competição injusta com alimentosimportados. A soberania alimentar é umaparte integral do processo de construção da democracia participativa, a demonstrarque outro mundo é possível.

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Foto: War on W

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1 Um sistema alimentar em crise

Em 2009, pela primeira vez na história da humanidade, mais de umbilhão de pessoas foram oficialmenteclassificadas como famintas. Conformeanunciado pela Organização dasNações Unidas para Agricultura eAlimentação (FAO/ONU), este númerorecorde não foi consequência decolheitas mal sucedidas ou desastresnaturais.2 A fome nessa escala é oresultado de uma economia global naqual centenas de milhões de pequenosagricultores, pescadores, pastores epovos indígenas estão sendo arruinadosatravés da apropriação do sistemaalimentar pelo agronegócio e grandesvarejistas de alimentos.

• Hoje, apesar da riqueza mundial semprecedentes, uma em cada sete pessoas vão dormir com fome.3

• Em 2010, as quatro maiores empresasagroquímicas no mundo e as três maiorescomerciantes de grãos obtiveram lucros demais de US$20 bilhões.4 Esta soma seria osuficiente para assentar 20 milhões defamílias, cada uma em seu pedaço de terra,resolvendo permanentemente seu problemade fome.5

• No trajeto entre as fazendas e oscomerciantes, processadores de alimentos,lojas e supermercados, o sistema industrialde alimentos desperdiça entre um terço e metade de tudo que produz. Estaquantidade é seis vezes o suficiente paraalimentar as pessoas que estão passandofome no mundo.6

• O sistema industrial de alimentos éresponsável pela expulsão de milhões de pequenos agricultores de suas terras, exacerbando a pobreza rural.

• Na Índia, cerca de cento e cinquenta mil agricultores já cometeram suicídio,sobrecarregados por dívidas acumuladasapós a adoção de técnicas insustentáveis e dispendiosas.7

• Anualmente, como resultado da severadegradação e em boa medida devido apráticas agrícolas insustentáveis, até dezmilhões de hectares de terras agricultáveissão perdidas em todo o mundo.8

• O sistema industrial de alimentos éresponsável por cerca de um terço das emissões de gases de efeito estufaproduzidos pelo homem, o que estádestruindo o nosso planeta.9

Os setores mais abastados nunca antestiveram tantas opções. Ao longo do ano,todos os gêneros alimentícios concebíveisestão disponíveis nos grandes supermercadosao redor do mundo. Pessoas se irritamquando não conseguem encontrar o itemespecífico que estão buscando, mesmoquando procuram frutas ou verduras que nãocrescem em seu próprio país. Entretanto, emmeio a esta abundância existem claros sinaisde que o sistema industrial de alimentos estápolítica, social e ecologicamente falido. Trata-se de um sistema em crise.

Cerca de 2,5 bilhões de pessoas ao redor do mundo – homens, mulheres e crianças –vivem da terra, cultivando lavouras, criandoanimais e pescando.10 Muitos destesagricultores são pequenos produtores que vêm agregando conhecimento àqueleadquirido pelos seus antepassados ao longode séculos. No entanto, cada vez mais elesestão sendo expulsos da terra por umsistema agroindustrial que enxerga aprodução de alimentos como mais umafronteira econômica a ser conquistada na

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busca pelo lucro, liderado por grandescorporações.

As corporações procuram fazer dinheiro aolongo de toda a cadeia alimentar, do comérciode sementes, agrotóxicos e fertilizantes até avenda de alimentos nos supermercados.11

Mesmo as pesquisas agrícolas, antigamentedirecionadas a ajudar os agricultores a setornarem mais produtivos, têm sidoprivatizadas, seu foco deslocado à produçãode tecnologia que possa gerar lucros para ascorporações. O principal motivo pelo qual ostransgênicos ou organismos geneticamentemodificados (OGM) foram desenvolvidos nãofoi para aumentar o rendimento das safras,como alegam as corporações; ao invés, foipara controlar os agricultores. Com osOGMs, os agricultores são obrigados acomprar da mesma corporação um “pacote”de sementes, herbicidas, etc., à crédito.

Esta expansão da agricultura industrial estásendo facilitada por políticas de livrecomércio, frequentemente impostas peloFundo Monetário Internacional (FMI) aospaíses. Estes acordos fazem com que sejaextremamente difícil para os governosproteger seus produtores e prevenir ausurpação das terras por estrangeiros. Emalguns casos, grandes corporações usurpamas terras para si, expulsando os moradoresoriginais, e implantam monocultoras enormes,altamente mecanizadas. Mais frequentemente,no entanto, as corporações obrigam osagricultores locais a produzirem as lavourasou criarem os rebanhos para elas,transformando-os em um novo tipo detrabalhador contratado. Isso significa que ascorporações obtêm as commodities que elasprecisam, enquanto transferem todo o riscoda produção aos agricultores locais.

Instituições financeiras também têm sebeneficiado da expansão da agriculturaindustrial e do aumento no comércio

mundial de commodities. Bancos, hedge funds12,fundos de pensão e outros investidores têmdescoberto que a natureza desregulada dosmercados financeiros significa que é possívelgerar lucros enormes pela especulação sobrepreços futuros de alimentos. Assim como ascorporações, o desejo primordial é maximizaros lucros: poucas são as preocupações com o impacto de suas atividades sobre as pessoas e comunidades, biodiversidade esaúde do planeta.

A expansão da agricultura industrial está levando a uma assustadora perda debiodiversidade. Ao lançar a terceira edição daGlobal Biodiversity Outlook da ONU, AhmedDjoghlaf, Secretário Executivo da Convençãosobre a Diversidade Biológica, afirmou: “As notícias não são boas. Continuamosperdendo biodiversidade em um ritmo jamaisvisto na história: as taxas de extinção podemestar mil vezes mais elevadas do que a taxade fundo histórica”. O relatório confirma quea destruição de habitats devido à agricultura eà gestão de florestas de maneira insustentávelé a maior causa de extinção de espécies eadverte que as chances de perdas adicionaisde biodiversidade massivas aumentam cadavez mais, e ecossistemas importantes, como a floresta Amazônica e lagos de água doce em diversas partes do mundo podem serempurrados para além do limite, a partir do qual a recuperação poderá ser difícil ou impossível. A perda continuada dabiodiversidade, avisa, não pode mais ser vista como questão separada, mas sim comoquestão intrinsecamente relacionada àgarantia de prosperidade e segurança dasgerações presentes e futuras.13

Uma das alegações mais comuns feita pelascorporações é que, para se alimentar, omundo necessita de seu conhecimentoespecializado, particularmente no uso denovas tecnologias, como é o caso dosOrganismos Geneticamente Modificados

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(OGM). No entanto, a asserção por trás da pergunta é simplesmente falsa. A realidadeé que produzimos comida em quantidadesmais do que suficientes para alimentar novebilhões de pessoas (dois milhões a mais doque a população mundial atual) eprovavelmente o suficiente para alimentar 15 bilhões, pois comemos, no máximo,somente metade daquilo que produzimos.Uma parte da comida perde-se durante otransporte por longas distâncias. O maiordesperdício, porém, ocorre em seguida (ao menos em países ocidentais), quando o alimento chega ao consumidor: cerca de um quarto da comida comprada acabasendo descartada.14

Acima de tudo isso, grande parcela de safras como as de soja e de milho é destinadaà alimentação animal para produção de carne.É sabido, há muito tempo, que está é amaneira mais ineficiente de produzir comidapara consumo humano, já que é necessáriosete quilos de grãos (e enorme quantidade deágua) para produzir um único quilo de carnevermelha.15 70% das terras agriculturáveis domundo já estão voltadas à pecuária; projeta-seque a produção mundial de carne irá dobraraté 2050, passando das 229 milhões detoneladas atuais para 465 milhões detoneladas. A expansão da pecuária é um fator-chave para o desflorestamento, especialmentena América Latina. 70% das terrasanteriormente florestadas na Amazônia foramsubstituídas por pastagens, enquanto cultivos

para rações cobrem grande parte do restante.A atividade pecuária é responsável por 18%das emissões mundiais de gases do efeitoestufa, mais que todas as formas detransporte unidas.16

O principal motivo pelo qual as pessoaspassam fome é que elas não têm terrasuficiente para cultivar seus alimentos ou nãoganham o suficiente para comprar comida.Contudo, alternativas existem. Ao longo dosúltimos anos um novo movimento global temsurgido para desafiar o sistema alimentarcorporativo por meio do modelo dasoberania alimentar.

Este relatório da War on Want examina, inicialmente, como o sistemaalimentar industrial emergiu e como elefunciona na prática. Em seguida introduz os fundamentos da soberania alimentar de forma mais completa, contrastando-os com o modelo falido da "segurançaalimentar" que tem sido até o momento a opção predileta da maioria dos governos do hemisfério norte (e algumas ONGs).Finalmente, o relatório apresenta váriasiniciativas de base que estão sendodesenvolvidas por organizações parceiras da War on Want no Brasil, Sri Lanka eMoçambique, assim como um exemploparalelo do Reino Unido, para demonstrarque a soberania alimentar é uma alternativareal e praticável que pode ser adotada aoredor do mundo.

A crise do sistema mundial dealimentos tem sua origem, juntamentecom tantas outras mazelas do mundo, na expansão do capitalismocorporativo. Na década de 1970 muitascorporações nos Estados Unidos e naEuropa ocidental se viram em gravesituação de superprodução. Embora o crescimento do consumo no períodopós-guerra tenha sido grande, não foi o suficiente para absorver tudo que as corporações produziam. Para quecontinuassem a crescer, precisavamexpandir-se de forma muito maisagressiva pelo resto do mundo.

Ao mesmo tempo, muitos países nohemisfério sul haviam ficado presos em crises acarretadas por dívidas externas,causadas em parte por empréstimosexcessivos feitos por bancos americanos e europeus. A “solução” criada pelasinstituições financeiras mundiais foi a aberturado mercado dos países em desenvolvimentoaos produtos e investimentos estrangeiros,

em troca de injeções de dinheiro de fundos emergenciais. As corporações multinacionaisganhariam novos mercados e os países em desenvolvimento aumentariam suasexportações de modo a pagar osempréstimos e evitar a moratória, algo quecustaria caro ao sistema financeiro mundial. O instrumento para impor essas políticas foi o Programa de Ajuste Estrutural (PAE), do Fundo Monetário Internacional (FMI) que forçou os países do hemisfério sul areduzirem o papel do estado através deprivatizações e da desregulamentação,enquanto o comércio seria liberalizado pelodesmantelamento de “barreiras” comerciais,como as cotas e tarifas para a importaçãoalém de reorientar suas economias nacionaispara atender à economia global.17

Como resultado de uma maior ênfase dada sobre o que ficou conhecido como odesenvolvimento baseado em exportações, osgovernos introduziram incentivos fiscais paraencorajar empresas a entrarem em zonasespeciais de exportação agrícola, nas quais a

Em janeiro de 2003, organizaçõescamponesas, apoiadas por sindicatos,universidades e grupos da sociedadecivil foram em passeata até a praçacentral, Zócalo, na Cidade do México.Os quase cem mil manifestantesexigiam duas ações do governo: querenegociasse o ponto acerca daagricultura do Acordo de LivreComércio da América do Norte(NAFTA, sigla em inglês), e que secomprometesse com um programa de desenvolvimento rural novo e de longo alcance. O mote dosmanifestantes era: “o campo nãoaguenta mais”. A mobilização foi sinalde que havia uma grave crise no setorrural do país; os agricultores rejeitaramveementemente a idéia de que aprodução de alimentos para o mercado

local deveria estar sujeita às regras de livre comércio. 20

A enorme manifestação não convenceu o governo a mudar depolítica. Embora o NAFTA tenhaenriquecido bastante alguns poucos, foi um desastre para os camponeses e pobres do meio rural. A agriculturadeixou de empregar 8,1 milhões depessoas no começo da década de 1990 para empregar 6 milhões em2006. Uma perda de 2,1 milhões deempregos que foi primordialmentecausada pelo NAFTA.21 O êxodo e a destruição de várias antigascomunidades rurais contribuíram para ampla desintegração social e política do México nos últimos anos.

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2 O capitalismo corporativo

MÉXICO: UMA CRISE EM ANDAMENTO

produção seria canalizada exclusivamentepara o mercado mundial. Por exemplo, em2001 o governo indiano montou 60 zonas deexportação agrícola que produzem quarentacommodities agrícolas, desde mangas e lichiasao arroz basmati e cominho.18 Estas zonasforam duramente criticadas por lideranças de agricultores que defendem que o governodeveria ter utilizado terras inférteis ao invésde se apossar de terras ricas que já eramutilizadas para produzir alimentos destinadosao mercado doméstico. Também seindignaram com a expulsão de um grandenúmero de pequenos agricultores de suasterras para que essas zonas pudessem serimplementadas.19

As mudanças impostas sobre paísesindividuais pelos PAEs do FMI foramexacerbadas por mudanças nas regras queregem a economia global. No início de 1995entrou em vigor um extensivo AcordoAgrícola negociado como parte da Rodada do Uruguai pela Organização Mundial doComércio (OMC), a organização

internacional que promove a liberalização do comércio. Segundo o acordo, os paísestinham que comprometer-se a reduzir tarifas que incidem sobre alimentosimportados e a abolir os subsídios dados àscomunidades agricultoras. Estas diretrizesprescritas foram reforçadas por umaenxurrada de acordos bilaterais de livrecomércio que também obrigaram os países a abrirem seus mercados a produtosimportados. Um dos primeiros acordos deste tipo foi o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) entre os EUA, Canadá e México que passou a valer em 1994. Conforme os movimentos sociaishaviam alertado durante suas campanhas paraimpedir que o governo mexicano se juntasseao NAFTA, a exposição dos camponeses doMéxico aos produtos importados das maiorese mais ricas empresas agrícolas tem sidocatastrófica (ver quadro).

Esta profusão de acordos e políticaspromoveu grande crescimento do comérciomundial, o que foi má notícia para pequenos e

Os fazendeiros americanos sãobeneficiados por subsídios de bilhões dedólares que compõem um estrondoso40% da renda líquida das fazendas. Issosignifica que eles podem exportar suassafras a preços muito abaixo do custode produção, e ainda ter lucros. O nomeem inglês dado a esta prática é dumping(despejo) e, pelas regras da OMC, éilegal. Ao mesmo tempo, o México foiobrigado pelo FMI a cortar quase todosos seus programas de apoio àagricultura e manter as taxas de jurosdomésticas em um nível muito maiselevado do que os EUA.

Anteriormente autosuficiente emalimentos, agora o México importa 40% do alimento que consome. 22

Parte do milho importado dos EUA étransgênico e variedades nativas já

foram contaminadas.23 As consequênciaspráticas são alarmantes, pois significaque o mundo poderá estar perdendovariedades com características como aresistência à seca, algo que poderá sernecessário uma vez que o planetacomeçar a esquentar.

O México foi o primeiro país a produzir o milho. O milho sempre foi a base alimentar e está no centro das ricas tradições culturais indígenasdo país. Por este motivo, quando o milho americano foi despejado nomercado doméstico, a sobrevivência da produção nacional parecia incerta. Isso representou um golpe não somente contra milhares de camponeses mas também contra a própria identidade cultural do país.

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médios agricultores pelo mundo que, emgeral, produziam alimentos básicos para seus mercados domésticos. Alimentos baratos importados, como arroz e milho dos EUA, foram descarregados nessesmercados, custando menos que o seu custode produção. Por todo o mundo, milhões depequenos produtores viram seus meios devida serem destruídos.

O que está por trás do modelo de livrecomércio voltado à exportação é o flagrante auto-interesse das corporaçõesmultinacionais conduzidas pela sua obsessãopela maximização dos lucros. Isso se tornanítido quando se examina a maneira brutal

pela qual estas políticas são implementadasnos países mais fracos do mundo. O Haiti é um exemplo chocante de como estaspolíticas podem destruir os alicerces de umpaís – seus agricultores camponeses – ereduzi-lo a um estado falido (ver quadro).

2.1 A Revolução VerdeA expansão do capitalismo corporativo para o hemisfério sul não somente levou à expulsão de milhões de famílias camponesas de suas terras, mas também estátransformando a própria maneira como osagricultores produzem. Em um processo queestá longe de ser concluído, as corporações

Com uma renda per capita de menosde um dólar por dia, o Haiti é o paísmais pobre das Américas. Até a décadade 1980, era autosuficiente emalimentos, produzindo arroz, feijão,milho, batata doce e mandioca emquantidade suficiente para alimentar apopulação local. Contudo, após aderrubada do governo do ditadorDuvalier em 1986, o Haiti começou aliberalizar a sua economia.

“O FMI e o Banco Mundial decretaramque tínhamos que aplicar o ajusteestrutural”, disse Camille Chalmers daPlataforma Haitiana em Defesa de umDesenvolvimento Alternativo (PAPDA,sigla em francês). “Nos disseram queéramos vizinhos do maior produtoragrícola do mundo, então não haviamotivo para produzir nossa própriacomida, já que poderíamos comprá-lados EUA por preços baixos. Ao invés depraticar a agricultura, os camponesesdeveriam ir à cidade para vender seutrabalho às industrias têxteis eeletrônicas americanas, voltadas àexportação”.

Rizicultores foram severamenteatingidos. Até a década de 1980 o Haiti

produzia arroz o suficiente paraalimentar sua população; chegando nofinal da década de 1990, as importaçõesde arroz haviam superado a produçãodoméstica. Muitos rizicultores foramlevados à falência. Junto com eles,muitos comerciantes locais e moleiros.

Outros também sofreram o impacto.Antes da liberalização do comércio, opaís possuía uma próspera indústria deaves domésticas. Cerca de 6 milhões deovos eram chocados por ano fazendocom que os criadores de galinhacomprassem toneladas de milho local. Repentinamente, o mercado foi inundado com cortes de frango eperu extremamente baratos. Eramsobras da produção americana, poisconsumidores americanos só comempeitos e coxas de cor clara.“Diretamente e indiretamente, quandoa indústria de aves acabou, perdemosdez mil empregos”, declarou ummembro da já padecida Associação deProdutores Agrícolas a um jornalista;“em 1998, tudo já tinha acabado”.

Na esteira do terremoto devastadorque atingiu o Haiti em janeiro de 2010,a PAPDA reivindica novas políticas

HAITI: ESTADO FALIDO

multinacionais buscam controlar a produçãode alimentos das comunidades locais e dosgovernos nacionais e transformá-la em ummecanismo para obtenção de lucros para elase seus acionistas.

O principal meio utilizado para assumir essecontrole foi a muito alardeada RevoluçãoVerde. A gênese desta revolução é, por siprópria, um exemplo interessante da maneiracomo, mesmo meio século atrás, interessesgeopolíticos nacionais e a agenda corporativaestavam intimamente conectados. Nosprimeiros anos logo após a Segunda GuerraMundial, os EUA haviam distribuído umaparte de suas colheitas excedentes,

especialmente o trigo, como ajuda alimentarpara países do hemisfério sul. Fazia parte de sua estratégia da Guerra Fria para manteros países em desenvolvimento dentro de sua esfera de influência e de impedi-los dedesenvolver relações de proximidade com a União Soviética. Mas na década de 1970 a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) aumentou o preço dopetróleo no mercado mundial e os EUAdescobriram uma utilização nova, e, na suaperspectiva, mais recompensadora, para o seutrigo excedente: trocá-lo por petróleo daUnião Soviética.25

Isto significou que outra maneira tinha

radicais. Querema “ruptura com omodelo neoliberal de desenvolvimento;ruptura com a exclusão; ruptura com oimperialismo; e ruptura com o estadocentralizador”. A reconstrução devemobilizar quatro importantes forçassociais: as mulheres, o campesinato, ajuventude e os artistas e artesãos, diz o PAPDA.

Doudou Pierre, membro do MovimentoNacional de Camponeses do Congressode Papaia (MNPKP, sigla em francês),descreve o modelo alternativo. Elesustenta que a agricultura no Haiti deverecomeçar baseada em dois princípios.Um é a soberania alimentar, o quesignifica produzir internamente amaioria da comida do país:“Poderíamos produzir pelo menos 80%do que comemos aqui”. O segundoprincípio é a reforma agrária integrada:“Não podemos falar em soberaniaalimentar se as pessoas não têm terra.Nosso plano é retirar a terra dosgrandes proprietários e entregá-la aoscamponeses para que possamtrabalhar”. E, uma vez que tiverem

terra, os agricultores precisarão deapoio governamental. “O Estado temque nos dar crédito, apoio técnico e nosauxiliar com o armazenamento egerenciamento de água”.

Uma vez que essas mudançasestruturais estiverem implementadas,há diversas propostas sobre comopromover a agricultura camponesa.Uma proposição seria os apoiadoresinternacionais garantirem a compra detoda a safra haitiana de arroz a preçospré-combinados, pelos dois anosseguintes. Com esse incentivo,produtores locais poderiam aumentarem muito a sua produção. Assim, osetor camponês devastado estaria acaminho da recuperação. Outro gruporeivindica que o governo compre depequenos produtores todo o alimentopara as merendas escolares. Nãoobstante, nada disso está acontecendo.O Haiti dependente mais do que nuncade doações e caridades. Estárapidamente virando um “estadofalido”, com todo o caos, violência efalta de leis que isso implica.24

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que ser encontrada para impulsionar ofornecimento de alimentos ao hemisfério sul.Esta agenda coincidiu perfeitamente com asnecessidades das corporações agroquímicasque haviam sido criadas em meados doséculo XX, em um momento de grandesmudanças tecnológicas no setor agrícola. As corporações haviam descoberto queprocessos químicos utilizados durante aSegunda Guerra Mundial para produzirexplosivos e gases que agiam sobre o sistemanervoso podiam ser reorientados para afabricação de fertilizantes e agrotóxicossintéticos que em muito aumentariam aprodutividade no campo. Ao mesmo tempo,fabricantes começavam a produzir eficientemaquinário de grande porte, o que significouque os fazendeiros poderiam reduzir seuscustos cultivando grandes campos com umúnico cultivo (monoculturas) com poucostrabalhadores.

Houve também novos desenvolvimentos na tecnologia das sementes. Agricultoresselecionam e cruzam plantas há séculos,buscando as sementes das plantas com ascaracterísticas mais desejáveis e plantando-asno ano seguinte; mas na década de 1930,produtores descobriram como criar um híbrido de duas variedades, o queimpulsionaria as safras. Esta foi umadescoberta impressionante, mas para osfazendeiros havia uma desvantagem: oshíbridos perdem seu “vigor” no ano seguinte,com grande queda nas colheitas. Ao invés deguardar as sementes da colheita para plantarno próximo ano, como haviam feito hámilênios (e continuam fazendo em muitospaíses do hemisfério sul), estes produtores seviram obrigados a comprar novas sementeshíbridas a cada nova temporada de plantio.

O que era desvantagem para os agricultoresfoi uma grande oportunidade comercial para as corporações agroquímicas, poispossibilitou uma extensão de seu controle

sobre a agricultura. A hibridização não foi oúnico desenvolvimento agronômico na época,e possivelmente não foi o mais promissor,mas foi o que mais claramente beneficiou ascorporações. A Pioneer Hi-Bred, a primeiraempresa a fabricar milho híbrido, desfrutoude sucesso estrondoso. Desde então, ascorporações têm aproveitado sua posiçãovantajosa, cuidadosamente desviandopesquisas agrícolas do intuito de fornecerserviços públicos e gratuitos para odesenvolvimento de produtos que possamser patenteados e comercializados.

Já na década de 1970, as corporações haviam saturado o mercado dos EUA e da Europa ocidental, e almejavam expandir-se para o resto do mundo. Issolevou a um ambiente muito propício para adifusão da nova tecnologia para o hemisfériosul, já eufemisticamente apelidada deRevolução Verde. As corporações surgiramem profusão, trabalhando em parceria com as elites locais, persuadindo milhares de agricultores, geralmente os fazendeirosmaiores, a aceitarem “pacotes” de crédito,fertilizantes e agrotóxicos. Tudo parecia umsucesso estrondoso. De 1970 a 1990, as duasdécadas da disseminação mais veloz daRevolução Verde, o total de comida disponívelpor pessoa no mundo subiu em 11%. Onúmero estimado de pessoas passando fomecaiu de 942 milhões a 786 milhões, umaqueda de 16%.

Os lucros das corporações saltaram,especialmente os dos fabricantes deagrotóxicos, como a Bayer, a Syngenta, aMonsanto e a Dupont (que posteriormenteadquiriu a Pioneer Hi-bred). Na verdade, o número de pessoas famintas aumentoudurante a Revolução Verde. A produção de comida per capita cresceu 8% na Américado Sul e 9% no sul asiático entre 1970 e 1990,porém a quantidade de pessoas famintasaumentou nestas regiões (19% e 9%

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respectivamente), ambas alvo das novastecnologias. Os números que mostravam quea população faminta ao redor do mundo haviadiminuída na verdade devem-se às realizaçõesda China, que não havia seguido as políticasda Revolução Verde. Excluindo a China daequação, o número de famintos no mundoaumentou 11%.26

Não fosse o aumento na produtividadeviabilizado pela Revolução Verde, muitospaíses (como o Brasil) seriam forçados aredistribuírem a terra dos grandes latifúndiosimprodutivos para os pequenos agricultores,pois esta seria a única forma de garantir umsuprimento alimentício regular às crescentespopulações urbanas.27 Em outras palavras, a própria dinâmica do desenvolvimentocapitalista teria demandado a reforma agrária.Isso mudou com a Revolução Verde, pois ateoria propunha que relativamente poucosgrandes fazendeiros poderiam produzir osuficiente para alimentar as grandes cidades.Pequenos agricultores que não conseguiamcompetir com os baixos preços dessescultivos comerciais migraram aos milharespara as cidades.

Mesmo nos anos iniciais existiam sinais de que, a despeito do boom em produtividade,a agricultura industrial não era viávelsocialmente ou ambientalmente. Com ocrescimento da desigualdade de rendas rurais,a terra e os recursos ficavam cada vez maisconcentrados.28 Os agrotóxicos envenenavamgrande quantidade de trabalhadores rurais.Os fertilizantes poluíam os rios e lençóisfreáticos. A vida silvestre e a biodiversidadeestavam sendo dizimadas. Solos tropicaisfrágeis estavam sendo erodidos.29 Colheitasproduzidas em monoculturas eram alvo fácil para as pragas. No entanto, ao invés de questionar a viabilidade no longo prazodas tecnologias que vinham fabricando, ascorporações logo culparam os agricultorespor aplicarem incorretamente as novas

técnicas. Para problemas que não podiam ser renegados tão prontamente, ascorporações encontraram uma soluçãotécnica, uma reação que elas vêmempregando repetidamente. Por exemplo,elas mantêm que o problema da proliferaçãode pragas em monoculturas pode serresolvido através do uso de mais agrotóxicos,ignorando o fato que as pragas por sua vezdesenvolverão resistências aos novosprodutos.30

2.2 Mudanças na dieta globalAs corporações perceberam que, paramanter o crescimento da demanda pelos seus produtos, alterar os modos de cultivodos agricultores não seria o suficiente; seriatambém necessário alterar o que as pessoascomem. Um dos primeiros produtos a serpromovido nessa ofensiva alimentar foi a soja. Os chineses consomem essa sementeoleaginosa de forma fermentada há cinco mil anos, porém o seu uso foi transformadopela agricultura industrial.

A soja foi introduzida primeiro nos EstadosUnidos como resposta a uma crise ecológicae agrária (uma cruel ironia, tendo em vista os danos causados por plantações de sojaindustriais sobre preciosos ecossistemas,como na bacia Amazônica). Na década de1930, as pradarias dos Estados Unidos foramdevastadas por severas tempestades depoeira, causadas por secas, agriculturaextensiva sem rotação de cultivos e araçãomuito profunda da camada superficial (quehavia deslocado as gramíneas naturais deraízes profundas que mantinham o solo nolugar). A soja foi útil por ser uma leguminosa,o que significa que é capaz de capturarnitrogênio do ar e assim contribuir para a regeneração dos solos.

Os produtores então se depararam com o problema de o que fazer com os grãos de

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soja. Suas primeiras tentativas de vender sojacomo ração animal foram mal-sucedidas,especialmente devido ao fato de as galinhas e porcos não conseguirem digeri-la bem, e de seu gosto e cheiro não serem atrativos.Porém, após a Segunda Guerra, fabricantesutilizaram-se de tecnologia nazista paramelhorar a ração o suficiente para que osanimais a tolerassem. O mercado local logoficou saturado e, sobre o programa dereconstrução conhecido como o PlanoMarshall, a exportação de ração de sojaaltamente subsidiada foi fortementepromovida.31 De fato, a soja logo se tornou a ração animal predominante na Europa. Foientão descoberto que outro produto à basede soja, a lecitina, poderia ser utilizada comoemulsificante (que permite a mistura degorduras com água). Esta função éextremamente útil à indústria de alimentos, e a lecitina logo virou um ingrediente-chaveem muitos óleos vegetais e margarinas.

Não é surpreendente que a produção de sojatenha crescido enormemente de 30 milhõesde toneladas em 1965 para 250 milhões detoneladas em 2010.32 Seu cultivo alastrou-semundialmente, especialmente na América do Sul. Hoje os Estados Unidos permanecemcomo o maior produtor de grãos de sojacom uma produção de 80,7 milhões detoneladas na safra de 2009-10, mas o Brasil(57 milhões de toneladas) e a Argentina (32 milhões de toneladas) estão próximos.Embora possamos não saber, a maioria de nósjá consome muita soja, pois ela compõe quasetrês quartos dos produtos encontrados nasprateleiras dos supermercados.34

Esta revolução silenciosa dos hábitosalimentares foi acompanhada por umacampanha de publicidade muito mais visívelpara incentivar os consumidores a trocaremseus alimentos tradicionais por alternativasmais “modernas” cuja promessa era,

frequentemente, de ser mais saudável. Como resultado, pessoas cuja parte principalda dieta consistia, há poucas décadas, de itens cultivados por agricultores locais (como a mandioca, o milho, o inhame, o aipim,o milheto e o sorgo) mudaram sua dieta,passando a comer mais pão, macarrão e carne (principalmente de frango). A produçãomundial de frangos e perus subiu de 8,9milhões de toneladas em 1961 para 70,3milhões de toneladas em 2001.35

O desenvolvimento de técnicas como oenlatamento, o secamento por spray, aliofilização e a introdução de corantes epreservativos facilitou outra mudança, a saber,o rápido aumento no consumo de alimentosprocessados. O processamento de alimentosrepresenta uma benção à industria dealimentos, pois significa que ela pode adquirirgrandes quantidades de frutas e vegetaisfrescos a baixo custo, processá-los emfábricas gigantes e então distribuir a comidaenlatada ou congelada ao redor do mundo.Os supermercados são grandes beneficiados,pois frequentemente podem vender gênerosalimentícios processados por um valor maisbaixo do que os alimentos frescosequivalentes nas feiras de rua no lado de fora.

Mais uma vez, a propaganda, com suasimagens sedutoras de crianças saudáveisbrincando no campo, tem tranquilizadomuitos consumidores ao ponto de os fazeracreditar que esses alimentos são superioresà comida fresca. A forte propaganda alia-se aofato de que os governos repetidamente têmdeixado de informar os cidadãos sobre aperda do conteúdo nutritivo inerente aoprocesso de preservação. Cuba em particularteve problemas. Quando, após o colapso daUnião Soviética em 1989, Cuba se viu sem asgrandes quantidades de comida enlatadapreviamente importadas a preços altamentesubsidiados pela URSS, foi obrigada a voltar-se

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para técnicas tradicionais de agricultura seminsumos químicos e estabelecer hortas portoda Havana. No primeiro momento, arejeição dos consumidores foi tão grande queo governo teve que televisionar programasespeciais para promover os benefícios dosvegetais orgânicos.

Estas mudanças interligadas, apelidadas de “complexos” de trigo, pecuária e alimentos não-perecíveis,36 resultaram numa verdadeira revolução nos hábitosalimentares em muitas partes do mundo e em um deslocamento global para uma dieta mais padronizada. Como resultado, para metade da comida que consome, o mundo hoje depende somente de trêscolheitas: o milho, o trigo e o arroz. Isso tem implicações assustadoras, porque deixa o mundo vulnerável a doenças que poderãodevastar grandes áreas da produção global de alimentos.

A mudanças nos hábitos alimentares emmuitas partes do mundo claramentebeneficiou os EUA, o maior exportadormundial de soja e trigo, porém, enxergar aatual disputa pelo controle do mercado comoessencialmente uma batalha entre diferentesnações seria um equívoco. Nos bastidoresestão as corporações que controlam osistema alimentar e que agora operamtotalmente em um nível global.

Vejamos o exemplo da soja. Embora os EUAe o Brasil sejam apresentados como rivaisferozes, lutando pelo domínio no mercadomundial, em ambos os países o comércio defato é controlado pelas grandes corporaçõesagrícolas Cargill, Bunge e ADM. Além dedominar o comércio de soja dos EstadosUnidos, financiam 60% da soja produzida no Brasil. São os incontestáveis vencedoresdo grande boom da soja.37

Na batalha pelo controle sobre asexportações mundiais de carne, a história é outra. Com financiamento do banco dedesenvolvimento estatal, o BNDES (que acada ano fornece mais empréstimos que os empréstimos combinados do BancoMundial, do Banco Inter-Americano doDesenvolvimento e do US-Eximbank), o Brasil está criando algumas das corporaçõesagroindustriais mais poderosas do mundo.Após adquirir seu rival, a Sadia, em maio de2009, a empresa brasileira Perdigão passou a gigante norte-americana Tyson Foods paratransformar-se na maior empresa de frangose perus do mundo. Em uma história parecidade fusões que incluiu a aquisição de algumasempresas norte-americanas, a empresabrasileira JBS tornou-se a maior exportadora de carne do mundo.38

As corporações competem umas com as outras, mas todos os seus executivospertencem a uma elite global rica eextremamente poderosa que adere aosmesmos valores. Com aquisições e fusõesacontecendo todo ano, as corporações depaíses diferentes cada vez mais trabalhamjuntas. O empreendimento conjuntorecentemente anunciado pela Royal-DutchShell e a Cosan do Brasil, o maior produtormundial de açúcar e etanol, é o mais recenteexemplo desta nova tendência.

As principais vítimas são os índios Guaraní do estado do Mato Grosso do Sul no Brasil,cujas terras foram usurpadas. Enquanto aCosan continua comprando cana-de-açúcarde fazendeiros que ocupam as terrastradicionais dos índios, crianças Guaraní estão morrendo de fome, seus líderes têmsido assassinados e centenas já cometeramsuicídio.39 No mundo de hoje, a principaldivisão não se dá entre os estados-nação, mas entre a elite globalizada e o resto de nós.

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2.3 Lavouras transgênicasOs altos lucros obtidos pelas empresasagroquímicas durante a Revolução Verdepermitiram que financiassem o próximogrande passo em sua tentativa de controlar a agricultura mundial: o desenvolvimento delavouras GM. Há mais de 20 anos, quando ascorporações começaram a testar cultivos GM em laboratórios e no campo, perceberamque, indo além dos cultivos híbridos, amodificação genética transformaria a humildesemente na chave para a agricultura global. Ao monopolizar o mercado de sementes,agricultores ficariam sem alternativas senãocomprar, além das sementes GM, todos osprodutos associados ao seu cultivo. Da noitepara o dia, um mercado cativo seria gerado.

As corporações começaram então a comprar empresas de sementes. Ao longo das últimas duas décadas assumiram ocontrole de mais de mil empresas desementes antes independentes. Atualmente, as dez maiores empresas de sementes detêm73% do mercado mundial de sementes(somente as três maiores são detentoras de mais da metade do mercado). Estabelecidanos Estados Unidos, a Monsanto éespecialmente agressiva ao mirar pequenosfabricantes de sementes em países-chavecomo o Brasil. Em 1996 a Monsanto nãoestava sequer entre as dez maiores empresasde sementes globais, mas em 2009, já haviasaltado para a primeira posição, responsávelpor 27% do mercado global de sementescomerciais (ver Tabela 1).

vendas Quota do (milhões de dólares) mercado (%)

1. Monsanto (EUA) 7,297 27

2. DuPont (EUA) 4,641 17

3. Syngenta (Suíça) 2,564 9

4. Groupe Limagrain (França) 1,252 5

5. Land O’ Lakes (EUA) 1,100 4

6. KWS AG (Alemanha) 997 4

7. Bayer CropScience (Alemanha) 700 3

8. Dow AgroSciencies (USA) 635 2

9. Sakata (Japão) 491 2

10. DLF-Trifolium (Dinamarca) 385 1

Total das 10 maiores 20,062 73

Tabela 1 Dez maiores empresas globais de sementes, 2009

Fonte: Grupo ET

C

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A primeira semente transgênica, colocada no mercado pela Monsanto em 1996, foi uma variedade de soja chamada RoundupReady (RR), na qual um gene foi introduzidopara fazer com que fosse resistente aoherbicida Round-Up, também produzido pela Monsanto. No início, esse avançopareceu trazer grandes benefícios aosprodutores. Eles não precisariam mais arar os campos, e somente seria necessário aplicar o herbicida para matar o mato.Permitiu que pulverizassem suas terras nocomeço do ciclo de crescimento para quesuas lavouras, embora ainda compostas porplantas bem jovens e vulneráveis, não fossemafetadas. Logo depois foram colocados nomercado, também pela Monsanto, milho Bt e algodão Bt, nos quais um gene da toxinaBacillus thuringiensis (Bt) havia sido introduzidopara torná-los resistentes às pragas comuns.Para os grandes produtores, a vantagemprincipal destes novos produtos era quefacilitavam a monocultura e contribuíam com a redução de custos trabalhistas: doiselementos-chave nessa “corrida ao fundo do poço”.40

Não tardou, porém, para os problemascomeçarem a surgir. Plantas espontâneas mais “resistentes” logo desenvolveramresistência ao herbicida RoundUp, e insetosmais fortes começaram a comer as lavouras Bt. Repetidamente, as corporaçõesdizem aos agricultores que todos os seusproblemas se resolverão com a segundageração de safras GM, produzidas para serem mais tóxicas ou mais resistentes às pragas. Alguns destes produtos já estão nos mercados. Podem funcionar por algumtempo, mas é incontestável que as pragas e plantas espontâneas conseguirãodesenvolver resistência. Assim uma novageração de variedades GM será necessária.Os “ajustes” técnicos persistirãointerminavelmente.

2.4 Extraindo o lucro Embora em muitas partes do mundo tenha havido resistência considerável dosagricultores aos transgênicos, as corporaçõesagroquímicas continuaram a aumentar suasvendas, não somente de sementes GM, mastambém de agroquímicos em geral. Ohemisfério sul tem se tornado cada vez maisimportante para as empresas, com dados daindústria chegando a sugerir que as vendascombinadas de produtos agroquímicos naAmérica Latina e Ásia foram, pela primeiravez em 2010, maiores que as vendascombinadas desses produtos na América do Norte e Europa.41

No mundo cão da competição corporativa as empresas têm duas opções: comprar seusrivais ou serem compradas por eles. O setoragroquímico passou – e continua passando –por um intenso processo de concentração.No fim de 2007, as dez maiores empresaseram responsáveis por 89% das vendas (ver Tabela 2).

Estas empresas se tornaram tão poderosasque conseguem forçar o uso de técnicasnovas e potencialmente nocivas sobre osagricultores que em países sub-desenvolvidosfrequentemente são analfabetos edespreparados para avaliar os riscos datecnologia sendo oferecida. Um casochocante, pouco reportado, envolve osprodutores de algodão da Índia. Fortemente“incentivados” a utilizar sementes híbridas eGM de alto custo, ficaram aprisionados emum ciclo crescente de dívidas. Comoresultado, cerca de 150 mil produtoressuicidaram-se (ver quadro sobre a Índia).

Enquanto produtores camponeses, pequenosproprietários e povos indígenas lutam paracontinuar em suas terras, as corporaçõesaumentam seu controle e produzem lucros

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Vendas Quota do (em US$ milhões) mercado (%)

1. Bayer (Alemanha) 7,458 19

2. Syngenta (Suíça) 7,285 19

3. BASF (Alemanha) 4,297 11

4. Dow AgroSciences (EUA) 3,779 10

5. Monsanto (EUA) 3,599 9

6. DuPont (EUA) 2,369 6

7. Makhteshim Agan (Israel) 1,895 5

8. Nufarm (Austrália) 1,470 4

9. Sumitomo Chemical (Japão) 1,209 3

10. Arysta Lifescience (Japão) 1,035 3

Total 34,396 89

Table 2 As dez maiores empresas agroquímicas, 2007

Fonte: Agrow

World C

rop Protection New

s, agosto 2008

Na década de 1980, o governo estadualde Andhra Pradesh, no sul da Índia,prometeu aos agricultores locais queestes ficariam ricos se deixassem de cultivar seus tradicionais alimentos-base, especialmente o milheto e oarroz, e adotassem cultivos comerciaispara exportação, incluindo o algodãohíbrido. Os agricultores foramincentivados a comprar, através definanciamento, variedades de algodãohíbrido de alto rendimento, fertilizantese agrotóxicos fornecidos por grandescorporações.

Inicialmente, muitos agricultoreshesitaram, pois a proposta significavaque estariam começando o ano agrícola já endividados, algo quesempre tentavam evitar. No entanto,

agentes do governo e vendedores osasseguraram que sua produção seriamuito maior, e que os ganhos maioresfacilmente cobririam todos os gastos.Por alguns anos, parecia que osagricultores haviam ganhado na loteria.As safras aumentaram e, após pagarpelos empréstimos, terminavam o ano com mais capital disponível.

Contudo, as coisas começaram a andarpara trás. O solo passou a perder afertilidade incrementada ao longo de décadas pelos fazendeiros pormétodos tradicionais de agriculturasem produtos químicos. Assim, foipreciso mais fertilizante químico. As pragas se multiplicaram, comoacontece frequentemente com amonocultura, fazendo com que os

SUICÍDIOS DE AGRICULTORES NA ÍNDIA

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multibilionários para os seus acionistas.Embora os limites entre diferentes setores se confundam devido às mudançastecnológicas e ao fato de que as corporaçõesestão entrando em novas áreas, ainda existem dois grupos distintos: as empresas de biotecnologia, que fornecem aosagricultores insumos desde sementes eagrotóxicos até produtos veterinários (verTabela 3); e os comerciantes de alimentos,que compram a produção e a transportampelo mundo (ver Tabela 4). Ambos continuam a acumular a cada ano bilhões de dólares em lucros, mesmo durante a crise financeira.

Agora que o mundo está entrando em uma fase de incerteza climática, com secas,enchentes e outros eventos climáticosextremos se tornando mais frequentes, as corporações gostariam que acreditássemosque somente as suas sementes GM,especialmente criadas para resistirem às

secas ou salinização, poderão salvar o mundo da fome. Ignoram completamente o fato de que a fome é essencialmente umproblema político, causado pela pobreza epela falta de acesso à terra. A proliferação dos transgênicos simplesmente fará com que os agricultores dependam mais dascorporações agroquímicas.

Claramente dissuadidas pelos riscos muito reais, mas imprevisíveis, de perderem colheitas ou rebanhos comoresultado do mau tempo, desastres naturais ou pragas, até recentemente ascorporações tomavam cuidado para nãocomprarem terras ou se envolverem naprópria atividade agropecuária. Mas, como veremos na seção seguinte, isso está mudando. Com o estoque de terrasférteis ao redor do mundo em declínio, os investidores agora estão considerando a própria terra como oportunidade de investimento.

fazendeiros precisassem gastar mais com agrotóxicos. Então um sóevento de mau-tempo acabou com as colheitas, deixando os agricultorescom as dívidas assumidas no começo do ano e nenhuma renda da colheitapara pagá-las. A única saída era aceitarempréstimos dos agiotas locais quecobravam altas taxas de juros. E assimos agricultores caíam na armadilha das dívidas.

Já no final do século XX, quase todas as famílias rurais da região se viramforçadas a vender gado e terras emuma tentativa desesperada de escaparda falência. Oprimidos pela desonra deter reduzido suas famílias à indigência,agricultores começaram a se suicidar,muitas vezes tomando o herbicida queeles haviam comprado das empresas.

Além de ser a capital mundial dosagrotóxicos, Andhra Pradesh tornou-seum estado com uma das mais altastaxas de suicídio.

Em torno de cento e cinquenta milagricultores suicidaram-se na Índiaentre 1997 e 2005, muitos levados aesse ato de desespero pelas dívidas.42

Cartas deixadas mostram que o quemais alimentava seu desespero era uma sensação de impotência, umaconsciência de que haviam perdido acapacidade de gerenciar os própriosmeios de vida. O governo e ascorporações foram singularmenteirresponsáveis ao insistir queagricultores pobres comprassem um“pacote tecnológico” tão dispendioso,arriscado e não-sustentável, semexplicar os riscos envolvidos.

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2.5 A grande usurpação de terrasA usurpação de terras aconteceu durantetoda a história. Somente precisamos pensar na “descoberta” de Colombo das Américas e seu impacto brutal sobre sociedadesindígenas, ou na tomada de territórios Maori por colonizadores na atual NovaZelândia ou indígenas ao redor da África.Trata-se de um processo violento quecontinua ativo nos dias atuais.

O Camboja é outro exemplo: mais da metadedas terras aráveis do país foram recentementeconcedidas a empresas privadas para que cultivos agroindustriais e projetos de mineração possam ser desenvolvidos.

Ao longo dos últimos cinco anos, dezenas de comunidades rurais e indígenas foramexpulsas. Muitas outras perderam acesso àsterras que eram há muito tempo utilizadaspara a agricultura de subsistência ou parapastagem de animais. Outras encontramdevastadas as florestas onde antes coletavamalimentos e lenha. Muitas destas terras estãosendo doadas a empresas privadas para ocultivo da cana-de-açúcar, pois o açúcar ésupostamente um dos produtos que oCamboja pode fabricar com “vantagemcomparativa“. Além de contribuir comexcesso de açúcar que periodicamente afeta o mercado mundial e abaixa os preços,essas empresas cometem graves abusoscontra os direitos humanos e causam grandes danos ao meio ambiente, afetandomais de 12 mil pessoas.43

2010 2009 2008 2007 2006

Bayer 3,778 3,745 4,855 4,903 4,255

Dow 3,160 1,408 1,182 3,691 5,403

Syngenta 1,857 1,804 1,841 1,553 939

Monsanto 1,656 3,092 3,039 1,511 1,317

Tabela 3 Lucros anuais das gigantes da área de biotecnologia (em US$ milhões)

Fontes: Relatórios anuais das em

presas; os números

são referentes aos lucros de todos os setores.

2010 2009 2008 2007 2006

Bunge 3,348 428 1,898 1,554 802

Cargill 2,603 3,334 3,951 2,343 1,537

ADM 2,585 2,500 2,594 3,154 1,855

Tabela 4 Lucro anual dos maiores comerciantes de grãos (em US$ milhões)

Fontes: Relatórios anuais das em

presas.

21

Em anos recentes, novos fatores têmalimentado a usurpação de terras. Um deles são os biocombustíveis que sãopromovidos como forma de redução das emissões dos nocivos gases de efeitoestufa produzidos pelos meios de transporte.A União Européia aprovou legislação que requer que, até 2020, 10% doscombustíveis dos transportes sejabiocombustível. Ao mesmo tempo, os EUA gastam mais de US$6 bilhões por ano subsidiando os biocombustíveis.44

Atualmente, algumas das multinacionais mais predatórias têm suas sedes nohemisfério sul, especialmente na China e no Brasil, e são tão rápidas quanto seusrivais no hemisfério norte para beneficiarem-se do boom dos biocombustíveis. O Brasil jáadquiriu know-how extensivo sobre a produçãodo etanol a partir da cana-de-açúcar e estáativamente buscando tornar-se o principalparceiro da África em sua busca por maisenergia renovável.45

Moçambique apresenta um caso exemplar. Em julho de 2010 a Comissão Européia e os governos moçambicano e brasileiroanunciaram um acordo tríplice pelo qualtrabalharão juntos no desenvolvimento dosetor bioenergético. O acordo foi veementeatacado por ativistas moçambicanos, muitospertencentes à União Nacional deCamponeses (UNAC), parceira da War onWant. Manifestações dificultaram oprosseguimento da produção debiocombustíveis planejada pelo governo. Emdezembro de 2009, o governo moçambicanofoi obrigado a cancelar o contrato assinadodois anos antes com a empresa britânicaProcana para produção de etanol de umaplantação de cana-de-açúcar de 30 milhectares na província de Gaza.46

Outro novo elemento que aparecerelacionado ao caso das usurpações de terras

é a possibilidade de que países que deixaremde proteger seus agricultores locais ou quetenham problemas com a erosão de solospossam se deparar com escassez de alimentosno futuro. Países como a Índia, a Coréia doSul, a Arábia Saudita e o Kuwait atualmentedependem de alimentos importados, outemem se tornar dependentes de alimentosimportados no futuro. Agora estão à procurade terras em outros países nos quais possamproduzir alimentos para seus mercadosinternos. Mesmo a China, amplamente auto-suficiente em alimentos, está refletindo sobreo futuro e tem gradativamente terceirizado asua produção de alimentos. Em troca detecnologias, treinamento e fundos para odesenvolvimento de infraestrutura chineses,cerca de trinta acordos de cooperaçãoagrícola foram assinados nos últimos anospara ceder terras aráveis às empresas chinesasem “países amigos”.47

Assim como os governos dos países quebuscam alimentos, instituições financeiras,como os bancos de Wall Street e MorganStanley, estão envolvendo-se na compra degrandes porções de terra no hemisfério suluma vez que enxergam a terra como um bemvalioso cujo valor muito provavelmente iráaumentar fortemente em décadas futuras. O resultado é a usurpação de terras em umaescala sem precedentes, com enormes áreassendo compradas ou arrendadas na África,Ásia e América Latina.

A usurpação de terras preocupa muito Olivier de Schutter, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação. “Amaioria desses investimentos ocorrem comabsoluta ausência de transparência e semconsulta apropriada às comunidades locais emquestão. Beneficiarão investidores e talvezalgumas das elites locais, mas criarão muitomenos emprego e contribuirão muito menoscom o desenvolvimento rural do que iriam

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contribuir políticas que apoiassem pequenosprodutores e assegurassem o acesso à terra,”argumenta. “Existem perigos consideráveis na situação atual,” acrescenta. “A terra estátornando-se um bem especulativo e a corrida para garantir terras agricultáveis é frequentemente disputada por investidores,sejam eles públicos ou privados, que têmpouca consideração com o bem-estar geral das comunidades locais ou impactos de longo prazo”.48

ESPECULAÇÃOALIMENTAROlivier de Schutter tem demonstradosua preocupação sobre o impacto daespeculação de hedge funds, fundos depensão e bancos de investimentos nosmercados de commodities alimentares,que, segundo ele, tiveram um “papelsignificativo” na crise dos alimentos de 2008. Na busca por novas classes de ativos após as sucessivas quebras dasponto-com e do mercado imobiliárioamericano, um grande número dessesespeculadores entrou nos mercados de derivativos negociando alimentos,Criaram, assim, uma bolha especulativaque, por sua vez, resultou em altasseveras de preços de alimentos básicos como milho, arroz e trigo.Como consequência da crise de preçoalimentar, até 150 milhões de pessoasforam levadas à pobreza extrema e o número de famintos alcançouquantidade recorde.49

A mesma ação que os países ricos executampara assegurar seus próprios suprimentos de comida aumentará a chance de haver fomeem escala global no longo prazo. Embora osgovernos digam que somente estão vendendoterras “vazias” ou “marginais”, este conceito

simplesmente não existe para muitascomunidades tradicionais camponesas eindígenas na África, Ásia e América Latina.Muitas das terras usurpadas são utilizadas,pelo menos por parte do ano, por pessoaslocais. Estima-se que na África cinquentamilhões de criadores de gado praticam apecuária itinerante, sustentando suas famílias,suas comunidades e uma indústria massiva de carne, peles e couros. Com crescentefrequência, encontram os pastos que utilizampor alguns meses do ano cercados. Privá-losde seu sustento irá contribuir enormementepara o problema da má-nutrição rural, jámuito grave na África. Converter essaspastagens em áreas de grãos tambémcontribuirá para as emissões de gases deefeito estufa, já que pastagens armazenamcerca de um terço do estoque global de carbono.50

Num prazo mais longo, também, a usurpaçãode terras limita as alternativas para lidar com as mudanças climáticas. Há 7 mil anos,pastores e agricultores camponeses na África respondem rapidamente às variaçõesclimáticas, se deslocando para novas áreas ou cultivando itens diferentes. Com apoiofinanceiro adequado, os produtores poderiamconectar-se em uma grande rede demercados de sementes abrangendo todo ocontinente. Esses mercados poderiam ajudaras plantas a “migrarem” com a mudança das condições climáticas. É talvez a maioresperança africana de lidar com a incertezaclimática que está por vir. Contudo, a atualusurpação voraz de terras está forçandomuitas comunidades a deixarem seus territórios.

2.6 O planeta sitiadoAlém de desencadear a miséria para milhõesde pessoas pelo mundo, o sistema global dealimentos também está colocando o futuro

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do planeta em perigo. Os solos contêmenormes quantidades de organismos vivos,variando desde uma vasta gama de micróbios,bactérias e fungos invisíveis, até os maisconhecidos minhocas, besouros e cupins.Estes organismos formam ecossistemascomplexos e variados e desempenham muitasfunções úteis, incluindo a absorção de algunsgases de efeito estufa que contribuem para oaquecimento global.

A grande quantidade de agrotóxicos efertilizantes químicos utilizados na agriculturaindustrial está matando esses organismos do solo. Uma vez que esses processosnaturais são rompidos, a fertilidade pode ser mantida artificialmente por alguns anos,mas eventualmente a terra tem que serabandonada. A ONU estima que, a cada ano, trinta milhões de hectares de terrascultivadas (uma área equivalente à Itália) são perdidos devido à degradação ambiental,industrialização e urbanização.51 Com a população do mundo crescendocontinuamente, não podemos nos dar ao luxo de perder essas terras.

Outro problema associado é a perda dadiversidade de cultivos. No sistema global de alimentos, a uniformidade significa maislucros para as corporações. As corporaçõesagroquímicas querem fornecer o mesmo“pacote tecnológico” em todo o mundo.Comerciantes querem comprar as mesmasvagens e tangerinas, não importando se estasvêm do Egito, do Quênia ou da Guatemala.

As cadeias de supermercados desejamfornecer a mesma gama de gênerosalimentícios em todas as suas lojas. Oresultado é a uniformidade, transformandoem miragem a aparente diversidade emnossos supermercados. Ao longo do últimoséculo, cerca de 90% da diversidade genéticadas lavouras encontradas nos campos dosagricultores desapareceu.52

Contrastando com sistemas agrícolastradicionais que tendem a absorver carbono, o sistema industrial de alimentos se tornou um dos principais motores dasmudanças climáticas. Parte deste problema é causado pelos produtos químicos. Porexemplo, o nitrogênio encontrado emfertilizantes químicos é facilmentetransformado no solo, fazendo com que o óxido de nitrogênio seja emitido no ar. O óxido de nitrogênio emitido é 300 vezesmais potente que o dióxido de carbono.

Além disso, a agricultura por si só éresponsável por apenas um quarto da energiautilizada no sistema agrícola industrial paralevar comida às nossas mesas. O verdadeirodesperdício de energia acontece no seuprocessamento, acondicionamento,congelamento, cozimento e transporte. Aglobalização da cadeia produtiva leva estedesperdício a extremos absurdos. Dawnfresh,uma empresa escocesa de frutos do mar,envia seus lagostins para a China, a mais deoito mil quilômetros de distância, para quesejam descascados à mão e então retornem

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à Escócia para serem empanados e vendidosnos supermercados britânicos. A empresaYoung’s, líder do mercado no Reino Unido,envia todos os anos 600 toneladas de lagostinsà Tailândia para que trabalhadores tailandesesos limpem, depois são enviados de volta à Grã Bretanha para serem vendidos.56

O transporte de alimentos consome enorme quantidade de energia. Se somarmos o combustível utilizado porcaminhões para transportar insumos como fertilizantes e agrotóxicos às fazendas,papel e plástico às indústrias, e as viagens feitas por consumidores aos supermercadoscada vez mais distantes, teremos uma noção do tremendo volume de gases de efeito estufa emitidos pelo sistema agrícolaindustrial. É estimado que ao todo essesistema seja responsável por ao menos 30% das emissões mundiais que causam as mudanças climáticas.57

Tim Lang, uma das principais autoridadesmundiais no tocante a políticas alimentares, diz que corporações e grandes fazendeirosestão obcecados com o “producionismo,” ouseja, a produção de mais e mais comida, nãoimportando o custo ambiental. “De um pontode vista ‘producionista,’ o sistema alimentar é incrivelmente exitoso,” diz. “As lojas estãocheias. Há vinte e seis mil itens nas prateleirasdos supermercados nos países desenvolvidos.Mas do ponto de vista do desenvolvimentosustentável, esse modelo parece estar noslevando ao colapso planetário”.58 Mais cedo ou mais tarde, diz o Professor Lang, o sistematerá que ser radicalmente repensado: “Oimpacto ambiental da produção de alimentosquer dizer que teremos que voltar à estacazero e começar a pensar no que significariaum sistema de alimentos sustentável.Precisamos desenhá-lo em torno do que a terra pode fornecer e do que os corposhumanos precisam”.

MAÇÃS E PERASAs maçãs estão entre as primeirasfrutas a serem cultivadas pelos sereshumanos; na Grã Bretanha, jáexistiram seis mil variedades de maçãs para cozinhar e comer, ecentenas de variedades para fabricarcidra.53 Entretanto, desde 1970, metadedos pomares de pêras e dois terços dospomares de maçãs no Reino Unidodesapareceram.54

Devido à grande ênfase dada àaparência cosmética, ao tamanho e até mesmo à simetria da fruta, os grandes supermercadosdesempenharam um papel significativono declínio de maçãs produzidaslocalmente. Como resultado, maçãsperfeitamente boas para se comer sãorejeitadas pelo fato da cor da casca,manchas e forma não estarem deacordo com o padrão estipulado. Hoje,as duas variedades predominantes noReino Unido, Cox e Bramley, juntascompõem 70% dos pomares de maçãsbritânicos. Cada vez mais, até essesestão perdendo espaço paravariedades importadas da África do Sul, Chile, EUA, Nova Zelândia e mesmo da França, que temessencialmente a mesma temporadade plantio que o Reino Unido.

Um levantamento realizado em 2005 no Reino Unido demonstrou quesomente um terço das maçãs provinhado próprio país (entre os quitandeiros,essa quantia chegou à metade).Supermercados como o Tescocompravam localmente somente 28% de suas maçãs. Ao mesmo tempo,alegavam promover a produção local. A história é parecida em outros países.Essa redução incrível da diversidadegenética deixa o mundo vulnerável às doenças de plantas.

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A ASCENÇÃO DO SUPERMERCADO

O ritmo de crescimento desupermercados no Reino Unido temsido impressionante desde a década de1950. É fácil ver por quê. Oferecem umaampla gama de alimentos baratos, coma conveniência de permitir que secompre quase tudo para a casa em umsó lugar. Poucos podem resistir a essacombinação sedutora.

Está cada vez mais claro porém que os supermercados prejudicammuito os agricultores, trabalhadores e lojas por todo o Reino Unido, semfalar no dano causado a milhões de trabalhadores em países emdesenvolvimento que recebem salários de miséria enquanto ossupermercados continuam batendorecordes de lucros.

No Reino Unido, os “Quatro Grandes”(Tesco, Sainsbury’s, Morrison e Asda)controlam mais de três quartos domercado de gêneros alimentícios. Umem cada quatro consumidoresregularmente visita o maior de todos, o Tesco, que sozinho detém mais de 30% do mercado britânico de gênerosalimentícios. Lojas locais simplesmentenão têm como competir. Ao longo dosúltimos três anos, a construção de um novo supermercado, em média, por dia, é aprovada. Cerca de mil lojas

independentes foram obrigadas afechar a cada mês de 2009. 59

Uma investigação extensiva sobre os supermercados realizada pela UKCompetition Commission60 publicada em 2008 concluiu que são necessáriasações para intermediar a relação entre fornecedores e redes desupermercados.61 Dentre os abusosrevelados, estava o fato de que osfornecedores estavam sendo forçados a adaptarem-se a mudanças tardias nos acordos e, às vezes, recebiamabaixo do custo de produção pelos seus produtos. Muitos produtores nãoestavam recebendo o suficiente parainvestir de maneira adequada nas suasfazendas, tendo assim dificuldades para sobreviver. A CompetitionCommission observou ainda que ocódigo de conduta voluntário dossupermercados não prevenia essesabusos e recomendou a introdução de um mediador independente paravigiar a relação entre os supermercadose seus fornecedores. Em maio de 2011,o governo britânico publicou umprojeto de lei de modo a estabelecerum árbitro com poderes para fazervaler e fiscalizar o Código de GênerosAlimentícios, uma ação que ossupermercados estão determinados a barrar.62

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Está claro que o presente sistemaalimentar é insustentável. Uma série de corporações extremamentepoderosas está transformando aprodução de alimentos, algo tãoessencial para a sobrevivência humanaquanto o ar e a água, em uma atividadevoltada ao ganho monetário, na qual o objetivo é produzir lucros paraacionistas. Difundindo-se globalmente,estas corporações beneficiam-se daliberalização do comércio para despejarseus cultivos comerciais altamentesubsidiados em mercados estrangeiros,frequentemente fazendo com queprodutores locais sejam levados àfalência. Convencem agricultores locais a utilizarem seus “pacotestecnológicos,” sabendo que destaforma farão com que eles se tornemeternamente dependentes delas. Paramudar os hábitos alimentares fazem,ainda, uso de campanhas de propaganda

massiva visando que as populações-alvoconsumam mais alimentos importados,em especial comida processada, nasquais há grande utilização de trigo e soja.

Como consequência, milhões de pequenosproprietários, trabalhadores sem terra,pastores e pescadores estão sendo cada vez mais marginalizados. O conhecimentoprecioso que acumulam ao longo de milêniosacerca dos ecossistemas onde vivem édesprezado. Negligenciados pelas autoridades,estão sendo empobrecidos propositalmente.Muitos não têm opção senão migrar para as médias e grandes cidades. De fato, governantes têm aceitado semquestionamentos a visão predominante nasorganizações internacionais de que o êxodorural é inevitável e que o próprio processode desenvolvimento determina que somenteuma pequena parcela da população trabalhena terra. Na esfera oficial, não há discussão

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3 A alternativa positiva26

Acampamento do MST, Brasil

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sobre se esta forma de organizar a sociedadeé benéfica à maioria das pessoas ou mesmo,dada a utilização da monocultura com usointensivo de produtos químicos que issoimplica, se é compatível com a sobrevivênciado planeta.

A soberania alimentar é a alternativa positivapara este sistema falido. A soberania alimentarfoi definida no pioneiro Fórum pela SoberaniaAlimentar ocorrido em fevereiro de 2007 em Nyéléni, Mali, como “o direito das pessoas a alimentos saudáveis eculturalmente apropriados produzidos atravésde maneiras ecologicamente corretas emétodos sustentáveis, além do direito àescolha dos seus próprios alimentos esistema de agricultura”.63 A comunidadeinternacional ecoou a definição quando 58governos, em uma reunião em Joanesburgoem abril de 2008, aprovaram o resumo dorelatório de síntese da Avaliação Internacionalda Ciência e da Tecnologia Agrícolas (IAASTD,sigla em inglês) que definiu soberaniaalimentar como “o direito das pessoas e estados soberanos de determinardemocraticamente suas próprias políticasalimentar e agrícola”.64 Em agosto de 2011, o primeiro Fórum Europeu pela SoberaniaAlimentar explicitou suas conexões com a declaração de Nyéléni na qual clama pela reconquista do controle do sistema de produção de alimentos e peloestabelecimento da soberania alimentar na Europa.65

Uma das principais organizações quepromovem a soberania alimentar é La VíaCampesina (VC), que expôs os sete princípiosque sustentaram os trabalhos na CúpulaMundial de Alimentação, organizada pela FAOem 1996. La Vía Campesina é um movimentoque abrange organizações de camponeses,pequenos agricultores, sem-terra, povosindígenas e trabalhadores rurais de muitaspartes do mundo. Com o seu apoio,

organizações camponesas estão incentivandoseus membros a darem as costas à agriculturaque faz uso intensivo de produtos químicos e desenvolverem suas próprias alternativasagroecológicas, geralmente baseadas nas suaspráticas autóctones de agricultura. Comapoio adequado, a agricultura baseada nosprincípios da soberania alimentar pode sersignificativamente mais produtiva do que a agricultura industrial.66

Porém, a soberania alimentar envolve muitomais do que a produção de comida. Elaimplica em uma mudança radical na maneiracomo a sociedade é organizada, retirando opoder das elites locais que frequentementeestão associadas ao capital corporativo,devolvendo-o ao povo. Assim, as própriascomunidades camponesas terão o controlede suas terras, e o poder de decisão sobre o que será cultivado e de que maneira.Significa impulsionar mudanças nas políticasmacroeconômicas para que a produçãonacional de alimentos possa ser protegida da competição injusta com alimentosimportados. A soberania alimentar é umaparte integral do processo de construção da democracia participativa e a demonstraçãode que outro mundo é possível.67

3.1 Segurança alimentar x Soberania AlimentarO principal fundamento através do qual acomunidade internacional decidiu tratar oescândalo global da fome foi o da “segurançaalimentar”. De acordo com a definição em uso desenvolvida pela FAO nos anosseguintes à Cúpula Mundial de Alimentaçãode 1996, “Existe segurança alimentar quandotodas as pessoas têm a todo o momentoacesso físico, social e econômico a alimentosinócuos e nutritivos em quantidade suficientepara satisfazer suas necessidades nutricionaise alimentares a fim de levar uma vida ativa e saudável”.68

Esta é uma resposta lamentavelmenteinadequada ao perverso sistema alimentaratual. Trata a questão da fome como problemado bem-estar social que pode ser resolvidosimplesmente pelo acesso a mais comida.Falha em reconhecer que a fome éessencialmente um problema político quesomente pode ser resolvido a partir detransformações no equilíbrio de poder global. Ao focar exclusivamente no consumoao invés da distribuição e produção dealimentos, a abordagem da segurançaalimentar não discute nenhum dos problemasestruturais que ameaçam a sustentabilidadede longa duração do sistema alimentar global.Ao depender de mercados de commoditiesinerentemente instáveis e preencher aslacunas com iniciativas de caridade, estaabordagem cria uma insegurança extrema.Nas palavras do especialista em agroecologiaMichel Pimbert:

A definição predominante da segurançaalimentar endossada em reuniões de cúpulasobre alimentos, e em outras conferências de alto nível, discursa sobre as pessoas teremcomida boa em quantidade suficiente para comertodos os dias. Porém não discute questões comode onde vem a comida, quem a produziu ou sobquais condições. Isto permite que os exportadoresde alimentos argumentem que a melhor maneirade os países pobres alcançarem a segurançaalimentar é comprando alimentos deles ourecebendo-os gratuitamente por meio da “ajudaalimentar” ao invés de eles mesmos produzirem.Isto torna esses países mais dependentes domercado internacional fazendo com quecamponeses, pastores, pescadores e indígenas,que não podem competir com as importaçõessubsidiadas, deixem suas terras e mudem-se paracidades, agravando, ao fim, a segurança alimentardestas pessoas.69

Dada a persistente manutenção de altosníveis de desnutrição e fome ao redor do

mundo, algumas instituições internacionaisfinalmente começaram a reconhecer aslimitações deste modelo de desenvolvimento.Após a Cúpula Mundial de Alimentação de2002, a FAO passou a incorporar o “direito àalimentação” às suas operações adotando, emnovembro de 2004, uma série de diretrizespara promover o cumprimento destedireito.70 Entretanto, as diretrizes sãomeramente voluntárias e ainda enquadradas“no contexto da segurança alimentarnacional”, sem considerações acerca dospontos-chave relativos à produção dealimentos. A segurança alimentar permanececomo premissa principal através da qual acomunidade internacional perpetua asperversidades do sistema alimentar global.

O Departamento para o DesenvolvimentoInternacional do Reino Unido (DFID, sigla eminglês) há muito tempo vem defendendo ummodelo de segurança alimentar baseado nomercado livre, na tecnologia pertencente àscorporações e amplo controle privado daprodução e distribuição de comida. O guia do DFID, Building Our Common Future(“Construindo nosso futuro conjunto”), de 2009, buscou aprofundar estas políticasatravés de uma nova parceria com a Aliançapara a Revolução Verde na África. Istotornaria os agricultores mais dependentes das sementes e agroquímicos produzidos porpoucas e poderosas corporações. Em umterrível ataque ao direito à alimentação, esterelatório pressionou os governos de paísesem desenvolvimento a remover proteçõessociais de suas populações insistindo que os líderes políticos deveriam fazer “durasescolhas sobre o controle dos preços deitens agrícolas, políticas agrárias e o ambientede negócios no meio agrícola”.71 Em respostaà escalada dos preços de gêneros alimentíciosem 2008, entre os líderes do G8, o governodo Reino Unido foi um dos principaisproponentes a favor da remoção de

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1.Comida: Um Direito Humano Básico. Todos devem ter assegurado o acesso à comida saudável, nutritiva e culturalmente apropriada emquantidade e qualidade suficientespara sustentar uma vida saudável emplena dignidade humana. Cada naçãodeve declarar que o acesso à comidaé um direito constitucional e garantiro desenvolvimento do setor primáriopara assegurar a realização concretadeste direito fundamental.

2. Reforma Agrária. Uma reforma agrária genuína é necessária. Deve dar aostrabalhadores sem terra e pequenosprodutores, especialmente àsmulheres, a posse e controle da terra na qual trabalham e devolverterritórios aos povos indígenas. O direito à terra deve ser livre dediscriminação com base em gênero,religião, raça, classe social ouideologia; a terra pertence aos quetrabalham nela.

3. Proteção de Recursos Naturais. A soberania alimentar implica no cuidado e uso sustentável dosrecursos, em especial a terra, água,sementes e raças animais. O povoque trabalha na terra deve ter odireito de praticar o manejosustentável dos recursos naturais e manter a biodiversidade, livre dedireitos de propriedade restritivos.Isso somente pode ser feito partindode uma base econômica sólida com a posse assegurada, solos saudáveis e uso reduzido de agrotóxicos.

4. Reorganização do Comércio de Alimentos. A comida é, em primeiro lugar, umafonte de nutrição. Só então torna-seum item de comércio. Políticasagrícolas nacionais devem priorizar a produção para consumo domésticoe a auto-suficiência alimentar. Asimportações de alimentos não devem deslocar a produção local e tampouco devem desvalorizar os preços.

5.Acabar com a Globalização da Fome. A soberania alimentar é minada por instituições multilaterais e pelo capital especulativo. O crescente controle das corporaçõesmultinacionais (CMNs) sobrepolíticas agrícolas tem sido facilitadopelas políticas econômicas dasorganizações multilaterais como a OMC, Banco Mundial e FMI. Aregulamentação e tributação docapital especulativo e um Código de Conduta aplicado com rigor paraas CMNs é, portanto, necessário.

6. Paz Social. Todos têm o direito de viver livre da violência. A comida não deve serutilizada como arma. O aumento dosníveis de pobreza e a marginalizaçãono campo, junto com a crescenteopressão de minorias étnicas epopulações indígenas, agravamsituações de injustiça e falta deesperança. O deslocamento contínuo,a urbanização forçada, a opressão depequenos agricultores e o aumentona incidência de racismo contra elesnão podem ser tolerados.

7. Controle democrático. Pequenos agricultores precisamcontribuir diretamente naformulação de políticas agrárias em todos os níveis. As Nações Unidas e organizações relacionadasprecisam passar por um processo de democratização para fazer comque isso se torne uma realidade.Todos têm o direito à informaçãoverdadeira e precisa, e a tomada de decisões abertas e democráticas.Estes direitos compõem a base daboa governança, transparência eresponsabilidade, e participação igual na vida econômica, social epolítica, livre de todas as formas dedescriminalização. Mulheres rurais,especialmente, devem ter o direito a tomar decisões diretamente eativamente acerca de questõesalimentares e rurais.

O SETE PRINCÍPIOS DA SOBERANIA ALIMENTAR (Conforme Proposto Por La Vía Campesina)

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restrições à exportação e fortalecimento dopapel do mercado livre no sistema alimentar,apesar do conhecido dano que isto causaria.72

Desde o momento em que o novo governo assumiu o poder no Reino Unido em 2010, o Secretário de Estado para oDesenvolvimento, Andrew Mitchell, tempriorizado ainda mais o papel do setorprivado na área do desenvolvimentointernacional, o que inclui o fortalecimentodo compromisso do DFID em ajudar ascorporações a desenvolver novas variedadesde plantas.73 Um exemplo disso é a ajuda dadapelo DFID à Fundação Africana de TecnologiaAgrícola para expansão do uso de umavariedade de milho resistente a herbicidapatenteada pela empresa agroquímica BASF.74

Isto tornará os agricultores dependentes daempresa e vulneráveis à escalada dos preçosdos insumos, ameaçando sistemas depreservação de sementes centenários.

O modelo da soberania alimentar vai muitoalém do conceito de bem-estar socialadvogado pelo DFID e outros defensores daspremissas da segurança alimentar. Conformecompreendido por La Vía Campesina, asoberania alimentar requer uma reformaagrária que contemple pequenos produtorese sem-terra; uma reorganização do comérciomundial de alimentos que priorize o mercadolocal e a auto-suficiência; controle muitomaior das corporações no mercado mundialde alimentos e a democratização deinstituições financeiras internacionais. Esta é a visão de um mundo no qual asdecisões sobre como os alimentos sãocultivados, processados e comercializadosestão novamente nas mãos das pessoasatravés de um processo de transformaçãoque busca “regenerar a diversidade desistemas alimentares autônomos baseados na igualdade, justiça social e sustentabilidadeecológica”.75

3.2 Agroecologia em açãoAlém da construção do movimento pelasoberania alimentar ao redor do mundo,praticamente todas as organizações da La Vía Campesina ten tam implementar seuspróprios programas práticos para promover atransição à agroecologia, nome dado à versãode agricultura desempenhada segundo osprincípios da soberania alimentar. Aagroecologia tem ganhado cada vez maisapoio internacional. Olivier de Schutter,Relator Especial da ONU para o Direito aAlimentação, submeteu em 2010 o relatóriomais completo produzido até agora sobre a questão.76 Ele iniciou com uma claraexplicação do que é e como funciona:

A agroecologia é tanto uma ciência quanto umconjunto de práticas. Foi criada pela convergênciade duas disciplinas científicas: a agronomia e aecologia. Como ciência, a agroecologia é a“aplicação da ciência ecológica ao estudo,planejamento e manejo de agroecosistemassustentáveis”. Como conjunto de práticasagrícolas, a agroecologia busca meios de focarem sistemas agrícolas que imitam processosnaturais, criando assim interações biológicas esinergias benéficas entre os componentes doagroecosistema. Busca fornecer condiçõesfavoráveis ao crescimento das plantas,especialmente através do manejo da matériaorgânica e pelo aumento da atividade biótica dosolo. Os princípios fundamentais da agroecologiaincluem a reciclagem de nutrientes e energia dapropriedade, ao invés da introdução de insumosexternos; a integração de colheitas com osrebanhos; a diversificação de espécies e recursosgenéticos nos agroecosistemas ao longo do tempoe espaço; e o foco sobre interações eprodutividade ao longo do sistema agrícola, aoinvés de concentração sobre espécies individuais.A agroecologia é profundamente baseada noconhecimento e em técnicas que não sãopassadas de cima para baixo, mas desenvolvidas

sobre a base de conhecimento e experimentação dos produtores.

De Schutter fez uma análise dos estudoscientíficos acerca da eficácia da agroecologia.O estudo mais sistemático desenvolvido atéagora sobre a agroecologia, realizado porJules Pretty e outros, comparou os impactos de 286 projetos em 57 países emdesenvolvimento.77 Observou que através do sistema agroecológico a produtividadeaumentou, em média, 79%, ao mesmo tempo que “serviços ambientais” (como porexemplo, a polinização por insetos, estoquesde peixes e fornecimento de água) tambémmelhoraram. Citando evidências adicionais de outros estudos, De Schutter afirma que a agroecologia reduz a pobreza no campo,melhora a nutrição, eleva a resistência àsmudanças climáticas e aumenta a igualdade de gênero. Ele conclui convocando todos os Estados a incluir a agroecologia em seusplanos para reduzir a pobreza e mitigar asmudanças climáticas.

Outros estudos constataram que a agroecologia tem um potencialimpressionante em relação ao aquecimentoglobal. O Instituto Rodale na Pensilvânia, EUA,realizou um estudo de dez anos comparandoa agricultura orgânica (comparável com aagroecologia em que não há utilização deinsumos químicos) com campos arados damaneira convencional, com utilização defertilizantes químicos. Observou-se quecampos cultivados organicamente têm acapacidade de sequestrar (ou seja, capturar)da atmosfera até 227 kg de carbono por 1000 m² por ano. Em contraste, camposconvencionais que dependem de fertilizantesquímicos, liberam cerca de 34 kg por 1000 m² por ano.78

Estas constatações são extraordinárias. Em2006, emissões americanas de dióxido de

carbono resultado da queima de combustíveisfósseis foram estimadas em quase 6,5 bilhõesde toneladas. Se a agricultura orgânica fossepraticada em todos os 175.633.569 hectaresde terras cultivadas nos Estados Unidos,quase 1,6 bilhão de toneladas de dióxido de carbono seriam sequestradas cada ano, oque mitigaria quase um quarto do total dasemissões de combustíveis fósseis do país. Nonível global, de acordo com cálculos similaresfeitos pela organização não-governamentalGRAIN, se sistemas tradicionais deagricultura mista que fazem uso de poucosinsumos químicos fossem adotados pelomundo, cerca de dois terços do excesso atualde dióxido de carbono na atmosfera seriamcapturados em 50 anos.79

Como observado acima, soberania alimentare agroecologia são mais do que construçõesteóricas. Movimentos de agricultores aoredor do mundo estão agora implementandoseus próprios programas para introduzir aagroecologia em comunidade locais. Asseções seguintes apresentam experiênciaspositivas da introdução dos princípios dasoberania alimentar nas práticas agrícolas detrês parceiros da War on Want – no Brasil, Sri Lanka e Moçambique – e fornece umexemplo paralelo da Grã Bretanha.

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ar on Want

De muitas maneiras, a agriculturabrasileira representa uma admirávelhistória de sucesso. A produção temcrescido solidamente e o país nãosomente produz alimentos o suficientepara alimentar seus 190 milhões dehabitantes, como também se tornouum dos principais exportadores dealimentos do mundo. No entanto, esse sucesso veio a grande custo. Este processo, porém, custou caro. A despeito das reclamações demovimentos sociais e de ambientalistas,sucessivos governos decidiram quesomente a agricultura industrial podeproferir o tipo de crescimento quedesejam, e suprem os latifundiárioscom empréstimos subsidiados (muitos dos quais nunca são pagos,eventualmente sendo perdoados emanistias) para a implantação de grandeslavouras de soja, açúcar, algodão eoutras commodities. Agronegócio é o nome do jogo e com ele vem asgrandes corporações com seus“pacotes” de crédito, sementes,agrotóxicos e fertilizantes, e as grandestradings que dominam o comérciomundial de commodities agrícolas, comoa Cargill e a ADM.

Estas empresas apresentam grande influênciano Brasil. O caso mais escandaloso é o daMonsanto, que travou uma campanha longa,suja e por fim exitosa, contra um grupo deambientalistas, consumidores e movimentossociais para fazer com que o Congressovotasse a favor da soja geneticamentemodificada. Desde que alcançou seu objetivoem 2005, a Monsanto só cresceu: o Brasilultrapassou a Argentina como o país com asegunda maior área plantada com lavourasGM, e ao mesmo tempo tornou-se o segundomaior mercado no mundo para a Monsanto(mais uma vez, depois dos EUA).80

Outras corporações também prosperaram: o Brasil tornou-se o maior consumidormundial de venenos agrícolas. Além disso, sãopermitidos agrotóxicos, como o acefato (umorganofosfato) banidos em vários outrospaíses.81 A expansão descontrolada doagronegócio tem provocado grandes danos.Enormes plantações de soja, cana-de-açúcar,dentre outros, estão se disseminando emecosistemas vulneráveis como o cerrado nocentro-oeste do país e também na baciaamazônica. A agricultura industrial estácontaminando a comida do país, seusecosistemas e a saúde da nação, além deretirar a autonomia dos agricultores aotorná-los dependentes de corporaçõesmultinacionais.82

Entretanto, o agronegócio nem sempre faz o que quer. O Brasil tem 5,2 milhões deunidades produtivas, das quais 4,4 milhõestêm uma área menor que 10 hectares. Estas unidades familiares menores ocupamsomente 24% do total de terras aráveis,porém produzem mais da metade dosalimentos consumidos no Brasil. Suacontribuição à produção nacional de doisalimentos básicos, a mandioca (87%) e o feijão(70%), é impressionante. São responsáveis por uma parcela considerável da produçãonormalmente associada com o agronegócio,como o café (38%), o arroz (34%), avesdomésticas (50%), trigo (21%) e soja (16%). A auto-suficiência brasileira deve-se, emgrande medida, aos pequenos produtoresfamiliares, e este foi o motivo do Brasilpraticamente não ter sido afetado pela crisemundial de alimentos em 2008. Ademais, aspequenas fazendas empregam muitos maistrabalhadores do que o agronegócio, sendoresponsáveis por 75% dos empregos na agricultura.83

Quando o antigo sindicalista Luíz Inácio Lulada Silva foi eleito presidente do Brasil em

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4 A agroecologia no Brasil32

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2002, muitos esperavam que ele realizaria oprograma de reforma agrária radical que haviaprometido durante sua campanha eleitoral.No entanto, uma vez no poder, Lula nuncaconsiderou seriamente fazê-lo, convencido de que seu governo precisava trabalhar emproximidade com o agronegócio, sendo esteresponsável pela maioria das exportações do país. Contudo, Lula não abandonou aagricultura familiar completamente. Eleassegurou que tivessem acesso a mais fundosdo que no passado (embora o agronegócioconseguisse quase dez vezes mais) e realizouum modesto programa de reforma agrária.Também garantiu que pessoas simpáticas às demandas dos pequenos produtores,trabalhadores rurais e sem-terra ocupassemcargos em sua administração.

No entanto, a cada ano que passa fica mais evidente que o modelo agrícolabrasileiro não é sustentável. A despeito dosavanços feitos pelo governo Lula, a pobreza, o desemprego e a exclusão social continuamsendo problemas graves, todos relacionados à ausência de reforma agrária. O Brasil, que sofre crescentemente com o que échamado de “condições climáticas extremas,”ou seja, chuvas torrenciais, secas e ondas decalor, será seriamente afetado por mudançasclimáticas. Um dos principais institutosbrasileiros de pesquisa já prevê, comoconsequência, grandes quedas na produção agrícola.84

Um dos movimentos-chave que reivindicamudanças é o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST). Desde a sua criaçãono início da década de 1980, o MST setransformou em uma poderosa força,ganhando terra pela ocupação de latifúndiosimprodutivos e organizando marchas emanifestações para pressionar o governo aimplementar um novo projeto radical peloBrasil, incluindo um programa de reforma

agrária de longo alcance. A cada cinco anos omovimento realiza um Congresso Nacional,reunindo milhares de ativistas, no qualestabelece as diretrizes a serem seguidaspelos próximos cinco anos. Em seuCongresso em 2000, o MST recomendou quea agroecologia fosse o principal método a serutilizado em seus assentamentos. Mesmoassim, o progresso é inconstante. A maiordificuldade é a falta de apoio governamental.Os créditos oficiais, os programas do governode assistência técnica e as corporaçõesagroindustriais somente promovem os“pacotes tecnológicos” da Revolução Verde.

Não obstante, o MST consegue fazer comque cada vez mais assentamentos pratiquem a agroecologia. Em anos recentes o MSTtreinou estudantes, muitos deles filhos e filhasde assentados, em cursos universitários deagroecologia. Em novembro de 2010, aprimeira turma de 120 alunos graduou nocurso de três anos de agroecologia no estadode São Paulo. Os cursos foram financiadospelo PRONERA, o Programa Nacional deEducação na Reforma Agrária, comcontribuições da War on Want e outrasorganizações não-governamentais. Um destescursos foi ministrado em Itapeva, próximo aoassentamento Fazenda Pirituba, onde muitasfamílias estão começando a praticar aagroecologia.

4.1 As cooperativas da Fazenda Pirituba85Cerca de quatrocentas famílias vivem nas seis agrovilas que compõem o assentamento,localizado em área fértil para cultivo de grãosa cerca de 380 quilômetros a sudoeste docoração industrial brasileiro: a enorme cidadede São Paulo. Na década de 1980, grupos de famílias sem terra da região – meeiros,trabalhadores, cortadores de cana earrendatários descobriram que a Fazenda

Pirituba pertencia ao Estado, mas tinha sidotomada ilegalmente na década de 1960 porricos produtores de leite. As famíliascomeçaram a ocupar a terra e reivindicar suaexpropriação. Logo receberam apoio do MSTpara organizar acampamentos provisórios epara reocupar a área quando a polícia osexpulsava, o que acontecia com frequência.

Em 1992, a terra foi finalmente expropriada eentregue às famílias como parte do programada reforma agrária do governo. Cada famíliarecebeu uma casa em uma das agrovilas. Noprimeiro momento, as famílias praticavam aagricultura convencional, plantando feijão,trigo e milho. Compravam suas sementes,fertilizantes e agrotóxicos do representanteda empresa que viajava pelas agrovilas e,como não tinham alternativa, vendiam suaprodução a intermediários que pagavam umpreço abaixo do valor de mercado. O sonhode ter um pedaço de terra havia seconcretizado, porém, continuavam tão pobres quanto antigamente.

Iniciaram, então, um processo de debates aolongo de todos os assentamentos da região,culminando em um fórum realizado em 2003.Com o auxílio de agrônomos e assessores doMST, os assentados analisaram sua situação eoptaram por fazer mudanças fundamentais namaneira que praticavam a agricultura.Tomaram várias decisões: diversificar, reduzire eventualmente eliminar os agrotóxicos;estabelecer cursos de treinamento emagroecologia; iniciar um programa paramelhorar o meio ambiente, o que incluíarevigorar as nascentes de água (muitas haviamsecado) e plantar árvores.

Após o fórum, os assentados se encontrarampara planejar como iriam implementar as mudanças. Enquanto todos aceitavam em tese que seria interessante tornarem-seprodutores ecológicos, não conseguiamchegar a um acordo sobre a velocidade

desta transição. Ao se deparar com esteimpasse, a cooperativa finalmente decidiu em 2007 que a terra coletiva seria divididaem lotes individuais, e que cada famíliadecidiria o que fazer com seu lote.

A Agrovila 3 é uma pequena cidade, compadaria, oficina mecânica, bar, sede dacooperativa e de um bem-cuidado campo de futebol. Há uma grande horta e jardimcomunitário um chiqueiro, dois biodigestorese um pequeno alambique.

Um dos primeiros assentados a chegar, JoséAparecido Ramos (o Zezinho), tem 47 anos e quatro filhos. Ele era meeiro e juntou-se àocupação em 1986. Sua mulher trabalha napadaria. A casa da família, localizada próximaao centro da agrovila, é uma construção dealvenaria cercada por árvores. Atrás da casahá uma profusão de mangueiras, bananeiras,mamoeiros, abacateiros e pés de café. Asgalinhas correm soltas.

Assim como os outros, Zezinho começoucultivando cereais e fazendo uso de produtosquímicos. Após o fórum, associou-se a outrosque pensavam da mesma forma, e deraminício à transformação. Hoje há pessoas portoda parte, trabalhando na terra, andandocom carrinhos de mão, limpando o chiqueiro,concertando cercas. Um grupo de cerca dedoze mulheres limpam as hortas, tirando omato. Zezinho diz que, da mesma forma quefamílias de outras agrovilas fizeram, plantandoárvores nativas, eles revitalizaram umanascente que estava seca desde 2005. Aotodo, tinham plantado entre seis e sete milárvores, todas espécies nativas, inclusive parabarrar o vento forte e proteger a agrovila.Plantaram mais quatro hectares comeucalipto para abastecer de lenha a padaria,ao biodigestor (digestor de matéria orgânicaque produz gás e fertilizantes orgánicos), epara construção de cercas. As mulheres jáplantaram 120 espécies de ervas e flores em

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um trecho de solo protegido por uma cercaalta de arame. O grupo das mulheres, quecomeçou produzindo plantas medicinais há15 anos, passou há alguns anos a tambémfazer sabonete.

No centro da Agrovila 5 vive Ana Terra, uma jovem agrônoma bem-disposta, que veio morar no assentamento com o seucompanheiro há dois anos após graduar emum colégio agrícola e tornar-se militante doMST. Ela compõe a equipe de apoio do MSTque auxilia a cooperativa nas negociaçõescom diferentes agências governamentais eorganizações. Claramente impressionada comtudo que as famílias alcançaram, Ana Terradeclara que Itapeva é um lugar onde “areforma agrária deu certo”.

Ana Terra enumera os problemas que tiveram que superar. O primeiro foi atradição agrícola local, de somente plantargrãos, algo iniciado durante a Revolução Verdeda década de 1970. Depois, o fato de que estetipo de agricultura exigia sempre maisagrotóxicos, a custos cada vez mais

elevados, para forçar a terra a produzir três colheitas anuais de feijão, milho e trigo. O solo tinha ficado completamente exauridoe mesmo assim os produtores não recebiamum preço justo por estarem permitindo oesgotamento de suas terras. Ana Terra diz que os programas para os pequenosagricultores introduzidos durante o mandatodo Presidente Lula fizeram grande diferença.Permitiram que os assentamentos do MSTnão precisassem mais de intermediários epudessem vender seus produtos diretamente,e assim ganhar uma renda pequena, mas crescente.

Quase todas as hortaliças produzidas pelosassentados são orgânicos. Em contraste, aindacultivam a maior parte dos cereais utilizandoinsumos químicos. Porém, nesta área tambéminiciaram a difícil transição à produçãoorgânica. Para isso, eles recebem muito apoiodo MST; um dos seus cursos de agroecologiafoi ministrado na Agrovila 5. No entanto,todos concordam que a transição seria muitomais veloz se houvesse mais amparo técnicoe financeiro do governo.

Pequeno agricultor num assentamento do MST, Brasil

Foto: Elcio Carriço

O Sri Lanka se recupera de doisepisódios profundamente traumáticos.Um deles foi o tsunami do OceanoÍndico que abalou o país no dia 26 deDezembro de 2004, causando 36 milmortes e afetando diretamente a vida de 800 mil pessoas. O outro foi a longa guerra civil entre as forças governamentais e os Tigres da Libertação do Tamil Eelam,popularmente conhecidos como osTigres do Tamil. Além do grandenúmero de mortes e o deslocamentode centenas de milhares de pessoas,estes traumas causaram fortes danosao tecido social do país.

Mesmo antes desses acontecimentos, o SriLanka era um país pobre, com 45% de seuscidadãos vivendo com menos de dois dólarespor dia. A pobreza concentra-se nas áreasrurais, onde vive 72% da população. Porém,governos sucessivos fizeram pouco paraajudar agricultores que somente subsistem;ao invés, promoveram a indústria, asexportações e o turismo. A parcela daagricultura, silvicultura e pesca na produçãoeconômica total caiu de 38,8% em 1960 para19,4% em 2000.87

Existem dois setores agrários claramentediferenciados. Um é composto por grandesplantações de chá, borracha e coco paraexportação. Estas plantações ocupam quaseum quarto das terras aráveis do país epertencem ao Estado (em 1975, plantaçõespertencentes a estrangeiros foramnacionalizadas) que concedeu o seugerenciamento a 23 empresas privadas. Os cultivos funcionam com mão-de-obraintensiva, empregando pouco mais que ametade da força de trabalho do país. Tambémsão produtivas, contribuindo para cerca deum quinto da renda econômica total dopaís.88 No entanto, os salários dostrabalhadores, majoritariamente mulheres, são os mais baixos de todos os setores.

O outro setor agrário é constituído poragricultores empobrecidos que cultivamarroz, milho, soja, hortaliças e lavourasperenes. Vendem seus pequenos excedentesao mercado doméstico. Este setor ocupacerca de 76% do total das terras aráveis eemprega dois milhões de agricultores, 70%dos quais possuem menos de um hectare de terra. Os agricultores encaram sériosproblemas. Por décadas, seus lotes que jáeram pequenos foram divididos entre osfilhos após a morte do chefe da família.89

Além disso, foram seriamente prejudicadospela chegada descontrolada e caótica daagricultura moderna.

Os agricultores foram especialmenteatingidos pelo programa de liberalizaçãoeconômica que teve início no final da décadade 1970. Até então o país tinha uma tradiçãode bem-estar social arraigada.90 Em 1977, noentanto, o Sri Lanka se encontrou em umaséria crise de balança de pagamentos,parcialmente causada pela deterioração dostermos comerciais e altas sucessivas no preçodo petróleo mundial. O partido de direitaPartido Nacional Unido ganhou as eleições edeu início a um processo de liberalizaçãoeconômica, que incluiu um desmantelamentoparcial do setor estatal. Dentre outrasmedidas, foi decidido que o “Mecanismo dePreço Garantido” (Guaranteed Price Scheme,GPS), pelo qual os produtores tinham umpreço mínimo garantido para o seu arroz,seria radicalmente reduzido de 30% da safrapara 5%. Intermediários passaram a compraras safras por preços muito mais baixos,reduzindo drasticamente a renda dosprodutores. Alguns agricultores atécometeram suicídio.91

A transformação neoliberal da economiaprovocou ondas de protesto. A primeiracampanha aconteceu em 1980 quando seisorganizações de agricultores, lideradas pelo Congresso Camponês do Sri Lankaelaboraram um abaixo assinado que reuniu

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5 “Agricultura Natural”no Sri Lanka8636

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60 mil assinaturas contra as reformasneoliberais. As alterações ao processo deregularização de terras foi um dos pontosque mais causou indignação. Até então,quando trabalhadores sem terra seassentavam em terras públicas, o procedimento do governo era esperar até constatar que os assentamentos haviamchegado ao estágio de vila, e então instalava-se um kachcheri (uma vara judicial itinerante)para distribuir os títulos de terra aos colonos.O governo extinguiu esta prática, com aesperança de vender a terra aos grandesinvestidores privados. Ocupar terra vazia semautorização tornou-se um delito passível depunição. Isso representou um golpe contraagricultores sem terra, pois passou a bloquearseu principal meio de conseguir a titulação da terra. Os manifestantes não conseguiramreverter a nova legislação.

5.1 A ameaça do turismo O Sri Lanka não é um país grande, mas, sendo uma ilha, sua costa é extensa, cobrindo1.700 km. O governo acredita que a costaoferece uma bela oportunidade para o paísdesenvolver o turismo internacional. O planode turismo do governo foi projetado após o tsunami de 2004. Na época, o site doConselho de Turismo do Sri Lanka dizia: “Emironia cruel do destino, a natureza apresentouuma oportunidade única ao Sri Lanka: destagrande tragédia nasce um destino turístico de nível internacional”. Novas zonas turísticasestão sendo criadas e longas porções dasmelhores praias são entregues à indústria do turismo.

Um mês após o tsunami, o governo haviadesenvolvido um plano para transformar 15 cidades costeiras espalhadas por toda ilhaem resorts turísticos. O primeiro projeto foi o da Baía de Arugam, uma pequena cidade situada ao lado de uma lagoa de 300 hectares na costa leste do país. Além depraias maravilhosas, possui um dos locais mais

privilegiados do mundo para a prática de surfe.92

O Plano de Desenvolvimento de Recursos da Baía de Arugam vislumbra a transformaçãoda área, que há pouco tempo abrigava famíliasde pescadores e produtores agrícolas queincrementavam sua renda com hospedariasde temporada para visitantes, em um grandecomplexo de hotéis com um píer flutuantepara aviões e heliporto. Para liberar áreasexclusivas à atividade turística, cerca de 5 mil famílias estão sendo realocadas paracinco locais separados no interior. Tanto omar quanto a lagoa agora são praticamenteinacessíveis às famílias. Existem indicações deque esse modelo de desenvolvimento servirápara as outras áreas.

O Movimento Nacional por Terra e ReformaAgrária (MONLAR), formado em 1990 como rede de organizações de agricultores eONGs em resposta às crises sócio-políticasdo país, critica a maneira pela qual o turismovem sendo desenvolvido no Sri Lanka. Aodescrever a maneira como o governo tiraproveito do tsunami para promover oturismo, escreve: “Esta ‘oportunidade única’parece estar somente reservada aos agentesdo setor imobiliário e àqueles que podempagar por um destino turístico de nívelinternacional, mas para a maioria dossobreviventes do tsunami, a oportunidade de reconstruírem suas vidas com dignidade e de forma sustentável foi perdida. Para eles, a ‘cruel ironia do destino’ não foi o tsunami,mas se encontra no plano governamental de reconstrução orientado ao turismo e aos negócios”.93

5.2 Autonomia baseada na comunidadeO Sri Lanka tem uma ilustre história demanifestações e mobilizações, mas tinhamenos sucesso em construir alternativas. Issoestá mudando. O MONLAR mantém parceria

com uma organização chamada New Environment Resources Alliances (New Era) (Novas Alianças dos RecursosAmbientais, Nova Era) em diversos projetosde agricultura alternativa. A Nova Era trabalhacom comunidades na promoção e ensino daeco-agricultura e de práticas agroflorestais.Atualmente, trabalha para desenvolveralternativas à prática de chena (coivara) na qual os agricultores adentram a floresta,limpam um ou dois hectares de mataprimária, queimam a vegetação e plantam as sementes. Podem usar o mesmo trecho de terra para plantar mais uma lavoura, mas depois é preciso partir para um novolocal, pois a capacidade produtiva do soloesgota-se.

A Nova Era e o MONLAR estãocoordenando conjuntamente um projeto nosul do Sri Lanka que engloba 43 vilas e queenvolve 1.225 agricultores. Uma das vilas queparticipam do projeto é a Katuwanayaya, nodistrito de Monaragala. A vila tem 42 famílias,a maioria das quais praticavam o cultivo chenaaté pouco tempo atrás. Os agricultoresexpressaram a crescente dificuldade queenfrentavam em suas vidas. Os padrõesclimáticos vinham mudando, fazendo com que eles só obtivessem uma colheita ao ano,sendo que em tempos passados era possívelconseguir duas. Tornou-se cada vez mais difícil de praticar o chena devido aos anseiosdo governo com a destruição florestal. Aerosão dos solos havia se tornado umproblema grave. Enquanto a renda caía, opreço de insumos agroquímicos e maquinárioagrícola subia. Como resultado, a vila setornava cada vez mais empobrecida, o quelevou algumas das famílias a serem maisreceptivas a novas idéias.

Uma dessas famílias é a da A.A. Priyanthi eseu marido, Indika Nishantha. Enquanto Indikacuida do rebanho (gado e caprinos) em sua

terra, Priyanthi se ocupa com a lavoura.Priyanthi relata a história da família:

O meu pai chegou nessa vila em 1968. Naépoca, era uma área de floresta densa. Meusogro chegou um pouco depois. As nossas famíliaspraticavam o chena. Eu me casei com o Indika,tivemos dois filhos e continuamos com o chena,utilizando o lote do meu sogro. Trabalhávamosmuito, mas o rendimento do nosso trabalho erabaixo. Ficávamos com mais e mais dívidas.Tivemos que gastar muito dinheiro com insumosquímicos e sementes. A cada ano, tínhamos queaumentar a quantidade de produtos químicospara conseguir uma safra decente. Sentíamos que estávamos virando escravos. Ficamosdeprimidos, nos sentíamos impotentes. Nãovíamos alternativas senão continuar com aprática da chena.

Uma das primeiras coisas que a Nova Era e o MONLAR fizeram foi incentivar asfamílias a formarem uma organização baseadana comunidade (CBO, sigla em inglês), na qual podiam discutir seus problemas e asalternativas possíveis. Aos poucos, um planosurgiu. Pouco mais da metade (26) das 42famílias decidiu adotar práticas agrícolasecológicas. A família de Priyanthi foi umadelas. “Decidimos sair totalmente dautilização de produtos químicos e adotar‘princípios de agricultura natural’.Desenvolvemos a conservação dos solos, o manejo da água, a criação e utilização dacompostagem, e a agricultura consorciada”.Começaram a guardar sementes para osplantios seguintes, como os agricultores do passado faziam. E passaram a regenerar o solo e a biodiversidade. Priyanthi continua a história:

Antigamente plantávamos um só cultivo evendíamos nossa lavoura. A renda não erasuficiente nem para pagar as dívidas. Então era um problema conseguir comida para nos

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alimentar. Estávamos realmente morrendo defome, subnutridos. Com a agricultura natural,como pode ver, existem centenas de variedadesna nossa horta. Agora podemos ir ao jardim,colher qualquer coisa e cozinhar. Temos opções oano inteiro. Embora ainda estejam na escola, comsomente 13 e 9 anos de idade, minha filha emeu filho têm seus próprios canteiros, têmorgulho de contribuir com seus produtos para asrefeições familiares. Aprendemos a ter o nossoterreno com várias espécies que satisfazem asnecessidades de uma dieta saudável.

Nossa casa era muito básica, não tínhamosmóveis. Agora superamos aquela agonia econseguimos comprar móveis. Quando eu chegoem casa tarde, depois de visitar outras vilas parapromover a agricultura natural, meu maridocozinha para nós. Ele apóia muito meuenvolvimento com outros produtores. Meus doisfilhos também me ajudam a limpar a casa, lavara louça, cozinhar, e até com a plantação. Somos a prova que uma família pode levar uma vidasaudável praticando a agricultura natural. Somos uma família feliz.

Priyanthi diz que muitos fatores contribuírampara a melhoria de sua situação financeira.Quando praticavam o chena, tinham quecomprar quase toda comida nas mercearias.Agora precisam comprar muito menos:somente açúcar, sal, peixe seco e algumaspoucas coisas. O gasto semanal da família caiu em dois terços. Também guardam muitodinheiro por não ter que comprar insumosquímicos, já que preparam todos os adubosnaturais e caldas alternativas que precisam. A produtividade aumentou, ela diz. Com a agricultura diversificada, produzem hojenuma área de 2000 m² tanto quantoproduziam em 4000 m².

Os papéis de homens e mulheres mudaram.Devido ao seu papel preponderante nocultivo das lavouras, as mulheres

normalmente são maioria nos programas de treinamento e estão ganhando confiança. Priyanthi acrescenta:“Participávamos de programas detreinamento de gênero. Aprendemos que as pessoas podem ter papéis diferentes,sejam homens ou mulheres. Agora dividimostodo o trabalho em casa. Na nossaorganização, há muito mais mulheres do que homens. Antigamente, as mulheres eram confinadas em casa e na lavoura, nãoparticipavam das reuniões. Tudo isso mudou”.

Priyanthi apoia com entusiasmo asmanifestações contra a intervenção de multinacionais agroquímicas no setoragrícola do Sri Lanka organizadas pela Nova Era e o MONLAR. Além de participar, promove a participação de pessoas de outras vilas. Percebeu que aagricultura natural não pode ser sustentadaisoladamente, mas precisa fazer parte de um esforço coletivo, desde a base até níveisinternacionais. O MONLAR faz parte da La Vía Campesina, e através dele, Priyanthivisitou a Índia em um programa deintercâmbio. Lá aprendeu muito e agora está compartilhando sua experiência comprodutores no Sri Lanka.

Em seu trabalho, Priyanthi aprendeu sobre o conceito de soberania alimentar.Comenta: “Não é, de fato, uma nova idéia, mas algo que já tínhamos, antigamente. Agora muitos agricultores no mundo todo estão tentando reincorporar esteconceito, nos sentimos felizes com isso, e orgulhosos de fazermos parte destemovimento”. Priyanthi apóia a agriculturanatural por muitas razões, mas talvez suamaior motivação vai de encontro do pontocentral da idéia de soberania alimentar: “Para mim, o elemento básico neste conceitoda soberania alimentar é que nos permitesentir livres novamente”.

Há muito tempo, a terra é motivo de disputa em Moçambique. Em 1964,integrando o amplo movimento delibertação africana, a FRELIMO (Frentede Libertação de Moçambique) iniciouuma campanha de luta armada paraacabar com 400 anos de colonizaçãoportuguesa. Seu mote era “libertar a terra e os homens”. Moçambiqueganhou sua independência em 1975,mas o novo presidente de esquerda,Samora Machel, teve pouco tempo para realizar as reformas prometidas,incluindo a reforma agrária. Forças de oposição anti-comunistas reunidasna RENAMO (Resistência NacionalMoçambicana), apoiadas pelo governode apartheid da África do Sul e ogoverno dos EUA, iniciaram uma guerrapara tirar a FRELIMO (que tinha apoioda URSS) do poder. Seguiu uma guerracivil longa, violenta, e custosa.

Joaquim Chissano sucedeu Samora Machel,após este ser morto em um acidente de aviãoem 1986. Em 1987, com o país praticamentefalido, Chissano pediu ajuda ao FMI. Junto ao empréstimo econômico, veio a insistênciado FMI pela liberalização econômica, mesmocom a guerra seguindo com toda fúria. O FMI exigia duros cortes nos gastosgovernamentais e restrições ao crédito. A guerra finalmente terminou em 1992, noentanto o país encontrava-se em estado decalamidade. Escolas e hospitais haviam sidodestruídos e a dívida externa era enorme.

Desde então, a reconstrução tem procedidobem. Boa parte da dívida externa foiperdoada. O país tem usufruído decrescimento econômico de cerca de 8% aoano. Mesmo assim, Moçambique ainda é umdos países mais pobres do mundo, com 45%da população vivendo com menos de US$1por dia. Segundo o Secretariado Técnico de

Segurança Alimentar e Nutricional, cerca de 35% das famílias moçambicanas passamfome.95 Muitos não têm acesso a serviçosbásicos como água potável, educação eserviços médicos. Em seu relatório que mede o índice de desenvolvimento humano,em 2010, a ONU listou Moçambique comoum dos últimos da lista, na 165a posiçãoentre 169 países.96

O setor de agricultura de subsistência, no qual a maioria da população trabalha, tem sido em grande medida negligenciado. O governo concentrou-se na construção do setor exportador, principalmente decamarões, algodão, castanhas de caju, açúcar,frutas cítricas, cocos e madeira. Apesar disso,alguns avanços foram feitos para melhorar avida das pessoas no meio rural. Como a terraera uma questão tão importante durante a luta de libertação e guerra civil, umaComissão Interministerial de Terras foiestabelecida em 1995, encarregada dedesenvolver uma nova política e de projetaruma nova lei agrária. A Comissão decidiu quetítulos de terra individuais no estilo ocidentalque ignoravam a importância da propriedadecoletiva nas comunidades africanastradicionais não deveriam ser a única formade acesso legal à terra. A Comissão começouentão a desenvolver alternativas melhoradaptadas à realidade moçambicana.

Um projeto de lei foi formulado e equipes detrabalho foram enviadas às dez províncias dopaís para ouvir as opiniões das comunidadeslocais. Uma Conferência Nacional de Terrasfoi convocada em maio de 1996. Mais de 200representantes do governo, organizações dasociedade civil, partidos políticos, autoridadestradicionais, setor privado, instituiçõesacadêmicas nacionais e estrangeiras, gruposreligiosos, agências doadoras e as NaçõesUnidas debateram o projeto de lei.97 Osdebates foram intensos. Alguns estavam

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6 Agricultura coletiva em Moçambique9440

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preocupados que seria criada uma situação na qual haveria pouca terra livre disponível,pois quase toda terra pertenceria, de algumamaneira, a uma comunidade. Outros tinhamreceio de que o reconhecimento legal do direito consuetudinário “congelaria” a população rural em sistemas queperpetuariam a discriminação de gênero.

Finalmente, um consenso foi alcançado. Os cinco pontos principais da lei eram:98

que o direito à posse de terra deveria ser reconhecido sem haver a necessidadede título;

que o Estado deveria ser obrigado aconsultar os ocupantes da terra antes de conceder o direito de uso a terceiros;

que é mais importante prevenir conflitosdo que resolvê-los a posteriori;

que os impostos cobrados pelo Estadodeverão ser proporcionais ao tamanho da terra;

que o direito consuetudinário deve serreconhecido, contanto que não infrinjamprincípios constitucionais.99

Em julho de 1997, a Lei de Terras foiaprovada. Trata-se de uma das legislações para o meio rural mais avançadas da África. A despeito disso, esta legislação não setraduziu em avanços verdadeiros para apopulação rural: a agricultura continua sendo negligenciada pelo governo. Emboraempregue 81% da população do país, aagricultura contribui somente com 21% daprodução econômica total de Moçambique.Em parte devido à rede de estradas ser tãoprecária, a venda da produção é dificultada, ea extrema exploração por intermediários éfacilitada. Falta comida para muitas famílias no

período da entressafra (de janeiro a março).As mulheres são especialmente vulneráveis;muitas grávidas morrem no parto. Emborahomens e mulheres tenham direitos iguais naConstituição e acesso igual à terra pela Lei deTerras, as mulheres são geralmente tratadascomo cidadãs de segunda classe.100

A capacidade agrícola de Moçambique ainda é sub-utilizada. Em 2002, a FAO estimou quesomente 12% dos 36 milhões de hectares das terras potencialmente agricultáveis deMoçambique eram cultivados. Isso poderámudar: empresas estrangeiras estão de olho em oportunidades de terra, seja paraprodução de alimentos para enviar aos seus países de origem, ou para o cultivo de biocombustíveis. A Lei de Terras deMoçambique deveria proteger comunidadeslocais mas, segundo o ativista ambiental João Nogeiro, isto não está assegurado. “Ascomunidades não entendem que, ao entregartais quantidades de florestas, estão destruindoseu próprio sustento, porque é lá onde caçame coletam frutas, plantas medicinais emateriais de construção”.101

6.1 Mobilização pelaSoberania AlimentarA União Nacional de Camponeses (UNAC)há muito vem batalhando para melhorar a situação dos pequenos agricultores ecamponeses. Foi fundada em 1987 porpequenos agricultores que sentiram anecessidade de criar sua própria organizaçãopara combater as políticas econômicasneoliberais impostas pelo FMI. Atualmente a UNAC tem 65 mil membros, organizadosem 58 sindicatos, e 1.243 associações e cooperativas, além de seus membrosindividuais. Integrante de La Vía Campesina, a UNAC acredita que, se o país realmentequiser ter auto-suficiência alimentar e lidarcom o problema crescente de mudanças

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climáticas, pequenos agricultores com seussistemas ambientalmente sustentáveis decultivo diversificado de plantios precisamreceber muito mais apoio das autoridades.

Após um aumento no preço do pão, tumultos eclodiram em Maputo no final de agosto de 2010, causando várias mortes. A UNAC divulgou uma nota para a imprensana qual conclamou o governo a repensarradicalmente suas políticas alimentares:

O governo precisa atribuir alta prioridade à produção doméstica de alimentos paraminimizar a dependência em relação ao omercado internacional. Agricultores e pequenosprodutores deveriam ser incentivados com preçosmelhores pelos seus produtos a produzir comidapara si mesmos, suas comunidades e cidades.Isso se traduz em maior investimento naagricultura camponesa, assim como medidaspara controlar as importações de comida barata.Em contraste com a agricultura de exportação degrande escala, a agricultura camponesa significaconstruir sobre a experiência antiga e acumuladapelas comunidades camponesas em produziralimentos orgânicos de alta qualidade,respeitando hábitos e costumes locais, além de estar livre dos impactos maléficos da especulação.

Caso isso não seja cumprido, assistiremos mais e mais sérias revoltas devido ao preço dosalimentos, como a que aconteceu na últimasemana. A comida não é uma commodityqualquer. É inaceitável que uma população,majoritariamente pobre, fique a mercê dosmercados globais para decidir se comerá ou não,especialmente em um país como o Moçambique,que tem terra e recursos naturais o suficientepara garantir alimentos para todos que vivemtanto no campo quanto nas cidades. Ao invés decolocar o País numa situação vulnerável frente àespeculação dos alimentos, devemos conclamarao governo para adotar uma política desoberania alimentar.102

A UNAC está começando a apoiar ascomunidades rurais a desenvolverem projetos na área da soberania alimentar.Frequentemente trabalha em associação com a União Geral de Cooperativas Agro-pecuárias de Maputo (UGC), fundada pormulheres em situação de pobreza durante os piores anos da guerra civil. Muitos de seus membros fundadores eram viúvas ou tinham sido deixadas por seus maridosque trabalhavam na África do Sul como“trabalhadores imigrantes”.103 Hoje a UGC se tornou um empreendimento exitoso,fornecendo boa parte das frutas, legumes e frangos consumidos em Maputo. Suainfluência no campo está crescendo.

6.2 Resgatando oconhecimento tradicionalUma das comunidades onde a UNAC e aUGC tem trabalhado é Muezia, no distrito de Monapo, na província de Nampula noMoçambique central, próximo à costa. A única ligação da comunidade com o resto domundo é uma estrada de chão que se tornapraticamente intransitável durante a estaçãodas chuvas. Muezia é uma comunidade muitoantiga. Segundo Armando Vireque, o chefe da vila, foi fundada bem antes do períodocolonial. Durante a guerra civil teve que serevacuada, mas quando o conflito terminou, as pessoas voltaram. Hoje a comunidade temquase quatro mil moradores.

A comunidade possui um pequeno armazém que vende bens manufaturados.Além de uma feira local, operante somenteaos sábados, a principal via de saída para aprodução é uma feira maior no distrito deMeconta que fica a 35 km de distância. Aúnica maneira de chegar é de bicicleta ou apé. Durante a colheita, intermediáriosaparecem por ali, mas pagam preços muitobaixos. A comunidade tem, em tese, duasescolas, mas a maioria das crianças não as

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frequentam por falta de professores. Emvários aspectos, esta é uma típica comunidaderural que sofre dos mesmos problemas quemilhares de outras.

Além de cultivar seus lotes individuais,membros da associação trabalham no terreno coletivo, chamado de machamba. Os agricultores produzem milho, amendoim,mandioca, mapira (uma fruta), gergelim, arroz,feijão, banana e cana-de-açúcar. Decidemcoletivamente o que se deve plantar namachamba. O trabalho para promover asoberania alimentar vem sendo feito pelasassociações que foram estabelecidas nacomunidade. Alguns membros, conhecidoscomo facilitadores, receberam treinamentoem técnicas agroecológicas e eles, por sua

vez, treinam outros membros. O sistemafunciona bem porque as técnicas são simplesde aprender, além de serem claramentebenéficas. Incluem a produção de adubosverdes, feitos das folhas dos pés de amendoime feijão, esterco caprino e outros ingredientes.Os repelentes de pragas são feitos comsabonete, tabaco, pimenta e plantas nativas.Os agricultores também estão sendotreinados para combater a erosão do solo.

Na realidade, os agricultores estãorecuperando o conhecimento tradicional,aprimorado em alguns casos por agrônomosagroecológicos. Boa parte deles claramentesente-se satisfeita com o que estão fazendo.Assim como antigamente, reservam sementespara plantarem no ano seguinte. Ansiosos

Ana Achandre, líder comunitário da UNAC na Província de Inhambane, Moçambique

Foto: War on W

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para expandir seu “banco” de sementestradicionais, estão fazendo o que a UNAC e aUGC sugerem, trocando sementes comfamílias camponesas de outras áreas. Tambémjá expandiram para a criação de animais:galinhas, patos, cabras e gado. Os membrosdas associações gostariam de treinar outrascomunidades em técnicas agroecológicas, masé difícil fazê-lo, dizem, porque não há veículose a única forma de chegar às outrascomunidades é a pé ou de bicicleta.

Amina Vachaneque, uma mulher de 65 anos,diz que as associações trouxeram benefíciosindividuais e coletivos. Cita especialmente acompra de maquinário agrícola, a construçãode um engenho de açúcar, o suprimento decabras para cruzamento e os cursos detreinamento. Ela afirma que os métodosecológicos para o controle de pragas estão

funcionando; suas lavouras não são mais atacadas. Sua lavoura mais rentável é o gergelim, que fornece uma rendamonetária. Seus problemas principais, diz, vêm dos intermediários que proliferam na região durante a época da colheita e oferecem preços baixíssimos: “elesdeterminam o preço, não temos opção senão vender para eles”.

Atija Almeida, outro membro de uma dasassociações, declara que a situação dosagricultores melhorou, mas que ainda existemdificuldades: “Fevereiro é o pior mês porquenossas lavouras plantadas em dezembro nãoestão prontas para serem colhidas.Precisamos de dinheiro para enviar ascrianças à escola, para pagar o tratamentomédico se alguém adoecer, e para comprarroupas e outras coisas”.

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A história da agricultura no Reino Unido é uma história dedesapropriação e empobrecimento,mas também de resistência e coragem.Já no século XIII, grandes proprietáriosna Inglaterra começaram a cercar oque até então era terra comumutilizada pelos servos para cultivo ecriação. Este processo, conhecido comoenclosures (cercamentos) intensificou-senos séculos seguintes, quando ossenhores feudais buscaram apropriar-sede mais terras para desenvolverem alucrativa criação de ovelhas. Nashighlands (terras altas) escocesas, umprocesso parecido, lá conhecido comoclearances (varreduras), forçou asdezenas de milhares de pessoas asaírem de suas terras durante ondasbrutais de despejos. Muitos foramobrigados a emigrar, mesmo que issoenvolvesse uma viagem arriscada paraterras desconhecidas.

Camponeses e trabalhadores resistiram aolongo dos séculos, combatendo as enclosurese o empobrecimento do campesinato. Emjunho de 1381 uma insurreição nacional secongregou atrás de Wat Tyler, John Ball e JackStraw e marcharam até Londres no que ficouconhecido como a Revolta Camponesa.Embora tenha fracassado e seus líderestenham sido decapitados, a revoltaprenunciou o fim do feudalismo e estabeleceuuma tradição radical na política britânica. Esta tradição foi mantida no século XVII porgrupos como os Diggers (cavadores), queconclamou os pobres a organizarem-seatravés de ações diretas para tomarem aterra de volta. Seu mais conhecido líder,Gerrard Winstanley, declarou que um terçoda Inglaterra era composto por “terrasimprodutivas desperdiçadas, que os nobresnão permitem aos pobres cultivar”. Se essaterra fosse utilizada de forma apropriada,

disse, ela poderia fornecer em dez vezes os alimentos que a população necessitava,pondo um fim à mendicância e ao crime.Eventualmente os Diggers foram derrotados,porém seu legado também vive nas rebeliõesque sucederam e nas manifestações dos dias atuais.104

A despeito dessa resistência, a Grã Bretanha tornou-se o primeiro país nomundo no qual a maioria da populaçãoperdeu contato com a terra. Hoje somente1,5% da população trabalhadora estáenvolvida com a agricultura. Em termosestritos, a agricultura contribui com somente1% ao produto interno bruto (embora haja muito mais pessoas empregadas nossetores de processamento de alimentos e de varejo). Em boa medida devido aofato de que a população urbana tornou-

se ainda mais distante da agricultura nasegunda metade do século XX, com odesenvolvimento de grandes monoculturas de capital intensivo, a Grã Bretanha tornou-se uma nação de consumidorespassivos em um sistema verticalizado.105

Neste ambiente, não é de se surpreender que os supermercados conseguiram crescernum ritmo tão acelerado, encontrando pouca da resistência com a qual se depararamna França, por exemplo, onde a culturacamponesa segue viva e saudável. Ossupermercados oferecem um local de “paradaúnica” aos consumidores, onde podemcomprar quase tudo que precisam. Poucosconseguem resistir à enganosa oferta decomida barata e conveniente, e a maioriaignora o mal que essas cadeias estão fazendoaos fazendeiros e lojas locais, sem mencionaros milhões de trabalhadores no hemisfériosul que recebem salários baixíssimos comoresultado da pressão de cima para baixo que os supermercados exercem sobre seus fornecedores.106

7 Agricultura comunitária na Grã Bretanha

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Os supermercados têm bastante domíniosobre a cadeia de suprimentos. Os quatrograndes, Tesco, Sainsbury’s, Morrison e Asda,controlam mais que três quartos do mercadode gêneros alimentícios; um em cada quatroconsumidores compra somente no Tesco.Embora poucos fornecedores tenham acoragem de criticá-los abertamente portemerem perder seus contratos, elesreclamam do tratamento que recebem dossupermercados, que mudam os acordos deúltima hora e que pagam preços baixos quesequer cobrem os custos da produção.Mercearias locais têm sido gravementeafetadas. Alvarás de construção para novossupermercados são aprovados, em média,todos os dias; somente em 2009, doze millojas independentes foram obrigadas a fechar.

Como já apontado acima, a CompetitionCommission do governo britânico conduziuuma investigação de dois anos sobre a relaçãoentre os supermercados e os fornecedores,cujos resultados foram publicados em2008.107 O relatório conclui que ossupermercados estavam cometendo abusos e recomendou introduzir um mediador paravigiar a relação entre os supermercados eseus fornecedores. Em maio de 2011, ogoverno britânico publicou um projeto de leide modo a estabelecer um árbitro compoderes para fazer valer e fiscalizar o Códigode Gêneros Alimentícios. Mesmo que isto não reduza o controle geral que ossupermercados têm do sistema alimentar, a possibilidade de um forte mediadorrepresenta uma oportunidade para exigir queos maiores varejistas se responsabilizempelos piores abusos de poder que cometem.

Formas alternativas de agricultura e produçãoestão começando a criar raízes na GrãBretanha. É um meio de desafiar o domíniodos supermercados. Redes de alimentoslocais estão sendo criadas. Destas, talvez a de maior sucesso é a Making Local Food

Work (“Fazendo a comida local dar certo” –www.makinglocalfoodwork.co.uk), um portalpara diversas feiras de produtores (nas quaisos agricultores vendem seus produtosdiretamente aos consumidores), merceariascomunitárias, cooperativas e grupos decompra.108 Os parceiros trabalham juntosapoiando a distribuição local de alimentos,dividindo informações e auxiliando uns aosoutros na compreensão de regulamentação e legislação relevantes. Cerca de 600empreendimentos estão envolvidos, comcerca de 1,4 milhões de pessoas participandode alguma forma. Outros produtores,particularmente os agricultores orgânicos,estão vendendo diretamente em merceariasagrícolas ou estão montando mecanismos depostagem via internet.

O único membro britânico da La VíaCampesina é a Scottish Crofting Federation(Federação Escocesa de Crofting,109 SCF, sigla em inglês) que trabalha com pequenosagricultores nas Highlands escocesas. Aoanunciar a decisão de integrar a La ViaCampesina em 2009, Norman Leask,representantes da SCF, declarou:

A luta pelos direitos dos agricultores de pequena escala, ou camponeses, é algo que está acontecendo no mundo inteiro, algo que deveria ser preocupação de todos. Oscrofters fazem parte desta luta, batalham paraobterem um trato justo pelos seus esforços emodo de vida. Camponeses no mundo todo são a espinha dorsal das economias e comunidadesrurais; o dia de hoje pertence a eles.110

7.1 Fazenda Fordhall,ShropshireTalvez devido ao fato de a revoluçãoindustrial ter nascido na Grã-Bretanha, aagricultura do país é hoje profundamenteindustrializada. As terras agricultáveis são

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incessantemente forçadas a produzir cada vez mais com menor custo. Seus solos,outrora férteis, perderam seus principaisnutrientes, deixando suas frutas e vegetaissem gosto algum.

Uma das tentativas mais notáveis de sedesenvolver uma maneira mais saudável e ambientalmente adequada de produziralimentos vem acontecendo em uma fazendade 57 hectares ao lado da cidade de MarketDrayton, no condado de Shropshire. ArthurHollins era um arrendatário que arrendava asterras da fazenda Fordhall do proprietário. Eledeixou a escola aos 14 anos para cuidar dafazenda após a morte de seu pai. A terra eracultivada intensivamente, com a criação deanimais e horticultura. Além de leite,produzia-se iogurte: foi uma das primeirasfazendas no Reino Unido a fazê-lo.

“Meu pai sempre teve um pensamentoindependente,” diz sua filha Charlotte, de 28anos, que hoje administra a fazenda ao ladode seu irmão, Ben, de 26. “Ele percebeu comoo solo do bosque, que não tinha interferência,era cheio de vida em comparação com oscampos, nos quais fertilizantes eramutilizados,” conta. “Ele se perguntou porqueas plantas se desenvolviam tão bem láenquanto as lavouras iam tão mal. Elepercebeu que além de deixar os produtosquímicos destruírem a fertilidade do soloestava pagando muito dinheiro às empresasque os fabricavam!”

Hollins obteve pouca ajuda em sua busca porum modo de agricultura alternativo. Após a Segunda Guerra Mundial, ele desenvolveuum sistema que apelidou foggage, para manteros pastos férteis e reduzir sua dependênciasobre insumos externos custosos. Decidiu,então, que a qualidade do capim era a chavede tudo. Começou a cultivar uma diversidadede capins e ervas nos pastos (hoje há 45tipos) e fazer um rodízio com o gado para

prevenir que alguma parte ficasse desgastada.A variedade de plantas fornecia uma dietasaudável para os animais enquanto aestrutura firme das raízes significou que osanimais podiam passar o inverno nos campossem estragarem o chão. Arthur trabalhou em seus campos por mais de meio século e, segundo sua filha, somente um pouco antes de morrer que achou que tinhaacertado, em 2006.

Entretanto, os últimos anos de sua vida nãoforam felizes. O proprietário das terras queriaexpulsá-los para que pudesse vendê-las aempreendedores. Arthur foi obrigado a lutarnos tribunais contra sucessivas ordens dedespejo. Sempre ganhou, mas quando morreu,a fazenda se encontrava mal-cuidada e à beirada falência. Restavam somente onze vacas.

Devido às demoras, o proprietário perdeu o comprador, embora tivesse conseguidovender cerca de 4 hectares à Müller Dairies,uma grande fabricante de iogurtes alemã. Suasinstalações de última geração são claramentevisíveis da fazenda. “É irônico, não é,” comentaCharlotte. “A nossa fazenda leiteira, que foi apioneira em produção de iogurtes no ReinoUnido, foi obrigada a fechar e agora vemosessa gigante fábrica de iogurtes do outro ladoda cerca, todos os dias”.

Parecia que tinham perdido, mas Charlotte e Ben pensavam diferente. Decidiram salvar a fazenda lutando pela retaguarda.Conseguiram convencer o proprietário a lhes dar um ano para arrecadarem US$1,3milhões para comprarem a fazenda. Com o auxílio da Stroud Common Wealth, umaconsultoria que aconselha em negociações de terras comunitárias baseada no condadode Gloucestershire, montaram a FordhallCommunity Land Initiative (Iniciativa de terrasda comunidade Fordhall, FCLI – sigla eminglês). Começaram a divulgar seus esforçosna imprensa e a expedir ações

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da cooperativa: cada uma custava US$80.Surpreendentemente, a quantidade certa depessoas respondeu ao apelo e, bem a tempo,logo antes do prazo final de 1 de julho 2006, arrecadaram a soma. Ben agora arrenda a terra da Fordhall Community LandInitiative, que também emprega a Charlotte. É a primeira fazenda comunitária do Reino Unido.

Hoje em dia, Ben cuida dos animais: gado,ovelhas e porcos. Devido ao fato de quemesmo no inverno, suas 90 ovelhas e 75vacas se alimentam do pasto, ele não precisacomprar ração e assim fica protegido deaumentos no preço mundial de alimentos.Porém, ainda compra milho para seus 30porcos da raça Gloucester Old Spot. Suas vacas nunca dão cria no outono, apenas naprimavera, assim, durante o inverno não hávacas tentando alimentar novilhos e a simesmas. De forma parecida, as ovelhas dãocria na segunda metade de março, quando ocapim fresco está começando a brotar, o quepermite que desenvolvam bastante leite paraamamentar os cordeiros recém-nascidos.Embora a produtividade seja mais baixa doque nas fazendas industriais, Ben, que vende

a maior parte de sua carne direto aosconsumidores, está conseguindo tirar saldo positivo. Porém não há expectativa de reabrirem a leiteira, devido à baixa dos preços no Reino Unido.

Charlotte prossegue com as outrasatividades. Edita o boletim que é enviado a todos os acionistas e apoiadores, cuida da loja da fazenda e do centro educacional.Mantém contato com muitos grupos locais e ajuda a coordenar os vários voluntários que chegam durante o ano inteiro para ajudarno desenvolvimento do projeto. A antigaleiteira foi convertida em centro comunitárioque irá abrigar o escritório e a sala de aulapara os cursos, e possibilitar que recebammais visitas escolares e inaugurem um café.

Outras iniciativas deste tipo estão sendo desenvolvidas em outras regiões da Grã-Bretanha. “A maré está mudando,”afirma Charlotte. “As pessoas estãocomeçando a perceber que alimentos de boa qualidade, produzidos de maneiraverdadeiramente sustentável, são essenciais para a nossa saúde e para a saúde do planeta”.

Colheita de cultura de batata por voluntários na Fazenda Fordhall, Agosto 2011Foto: Fordhall Farm

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As comunidades que descrevemos no Brasil, Sri Lanka, Moçambique e Reino Unido estão mostrando o caminho paratermos um sistema de produção de alimentossustentável baseado na soberania alimentar. A despeito das diferenças nos modos de vidadas famílias nos quatro países, as semelhançasem suas histórias são surpreendentes. Todasas famílias compreendem a partir da própriaexperiência que os insumos químicos sãonocivos à terra e à saúde das pessoas; sabemcomo os “pacotes” tecnológicos parecemtentadores e quão rápido é o caminho para o endividamento que causam; sabem como é opressor viver em dívida com corporaçõesmultinacionais.

As experiências que descrevemos sãoanimadoras e inspiradoras, porém, sãofragmentadas e isoladas. Todas as famílias nos disseram que recebem pouco amparo das autoridades, e que poderiam realizarmuito mais se obtivessem financiamentoadequado e assistência técnica apropriada.Esta falta de ajuda dos governos não fazsentido. A agricultura agroquímica é uma das principais forças que estão empurrando o mundo para além de seus limites, emdireção à fome generalizada e aos desastresambientais, portanto os governos precisamincorporar urgentemente os princípios daagroecologia e da soberania alimentar às suas políticas nacionais.

A soberania alimentar oferece uma soluçãopolítica a uma crise política – a crise dosistema alimentar global. Para que estasolução crie raízes e torne-se eficiente, énecessário tanto a conscientização quanto a ação por parte de todos os atores sociais. A War on Want produziu este relatóriovisando desenvolver esta consciência e paraajudar a construir um movimento global pelasoberania alimentar. No entanto, mudançasestruturais na ordem econômica mundialserão necessárias de modo a transformar

o sistema alimentar e acabar com o escândaloda fome no mundo.

A War on Want acredita que:

• todos os governos, movimentos sociais eorganizações da sociedade civil pelo mundodeveriam apoiar fortemente iniciativas pelaconstrução da soberania alimentar;

• governos, movimentos sociais eorganizações da sociedade civil no mundotodo deveriam apoiar La Vía Campesina em suas iniciativas para criar alternativasagroecológicas à monocultura com usointensivo de insumos químicos;

• as instituições financeiras internacionaisdeveriam respaldar publicamente aconclamação do Relator Especial da ONUpara o Direito à Alimentação aos governosnacionais em todo o mundo para queincorporem a agroecologia em seus planosnacionais, e que forneçam financiamentoadequado e apoio à pesquisa;

• a agricultura deveria ser retirada dacompetência da Organização Mundial doComércio imediatamente, permitindo queos países possam proteger seus agricultorescontra a volatilidade dos mercados mundiaisde alimentos;

• especulações feitas por hedge funds e outrasinstituições financeiras na área de alimentosdeveriam ser declaradas ilegais;

• os governos deveriam estabelecer medidasurgentes para interromper a compraespeculativa ou arrendamento mercantil(leasing) por instituições financeiras ougovernos estrangeiros de terras em paísesmais pobres (a “usurpação de terra”);

• medidas fortes deveriam ser tomadas para prevenir o monopólio do varejo de alimentos pelos supermercados, o que leva ao fechamento de lojasindependentes e à exploração dos fornecedores.

8Conclusões

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Foto: Kris K

rug

Encontro de coordenação de La Vía Campesina, Cochabamba, Bolívia, Abril 2010

51

001. ‘O termo “hemisfério sul” será utilizado aqui paratraduzir o conceito Global South, para referirprincipalmente às nações da América Latina, África eÁsia; porém, alguns países do hemisfério sul geográfico,como a Austrália e Nova Zelândia, não pertencem aeste grupo de nações, por terem um Índice deDesenvolvimento Humano elevado; da mesma forma, algumas nações européias podem pertencer ao Global South.

002. ‘More people than ever are victims of hunger’.Informativo à mídia. Organização das Nações Unidaspara Agricultura e Alimentação (FAO), junho 2009

003. The State of Food Insecurity in the World, 2010:Addressingfood insecurity in protracted crisis. Roma: FAO, 2010

004. Ver ‘Extraindo o lucro’, na seção 2.4

005. JE da Veiga, ‘Poverty alleviation through access to land:the experience of the Brazilian agrarian reformprocess’, Land reform, Land Settlement and Cooperatives,2003/2, p. 59-68

006. Tristam Stuart, Waste: Uncovering the Global FoodScandal. Londres: Penguin, 2009

007. Ritambhara Hebbar, ‘Framing the Development Debate:The Case of Farmers’ Suicide in India’, In: C Sengupta & S Corbridge (eds.), Democracy, Development andDecentralisation in India: Continuing Debates. Nova Deli:Routledge, 2010

008. Improving Access to Land and Tenure Security.Roma: Fundo Internacional para o DesenvolvimentoAgrícola, 2008

009. Agriculture at a Crossroads. Relatório Global daAvaliação Internacional da Ciência e da TecnologiaAgrícolas (IAASTD). Washington DC, 2009

010. Michel Pimbert, Towards food sovereignty:reclaiming autonomous food systems. Londres: Instituto Internacional pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento, 2008

011. Bill Vorley, Food, Inc: Corporate concentration from farm to consumer. Londres: UK Food Group, 2003

012. Hedge funds são fundos que se caracterizam porinvestimentos agressivos e de alto risco alavancadosgeralmente por recursos oriundos do sistema bancário.

013. Global Diversity Outlook 3, Montreal: Programa dasNações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), 2010

014. Tristam Stuart, Waste: Uncovering the Global FoodScandal. Londres: Penguin, 2009

015. Agriculture at a Crossroads. Relatório Global daAvaliação Internacional da Ciência e da TecnologiaAgrícolas (IAASTD). Washington DC, 2009. Estimativasalternativas sugerem uma proporção de 16:1; ver EllenMesser & Laurie Derose, ‘Food shortage’, in: L DeRose,

E Messer & S Millman (eds.), Who’s hungry? And how dowe know? Food shortage, poverty, and deprivation. Tóquio:United Nations University Press, 1998, p. 53-91

016. Livestock’s Long Shadow: Environmental issues andoptions. Roma: Iniciativa LEAD (Produção Animal,Ambiente e Desenvolvimento, 2006

017. Para um panorama geral dos impactos dos programasde ajuste estruturais do FMI, ver : Structural Adjustment:The SAPRI Report. The Policy Roots of Economic Crisis,Poverty and Inequality. Londres: Zed Books, 2004; MChossudovsky, The Globalisation of Poverty: Impacts ofIMF and World Bank Reforms. Londres: Zed Books, 1997

018. ‘Agri Export Zones: An Update’, Agri Export Advantage,4/2. Banco de Exportação-Importação da Índia, 2005, p. 8-9.

019. RM Vidyasagar & KS Chandra, ‘Farmers’ Suicides inAndhra Pradesh and Karnataka: Debt Trap or SuicideTrap?’, Countercurrents.org, 20 de junho 2004

020. Laura Carlsen, ‘The Mexican Farmers’ Movement:Exposing the Myths of Free Trade”, Americas PolicyReport. Fórum Internacional sobre a Globalização, 25de fevereiro 2003

021. Trading Away Our Jobs: How free trade threatensemployment around the world. Londres: War on Want,março 2009

022. ‘Mexico imports 40% of the food it consumes,Universal reports’, Bloomberg, 31 de janeiro 2011

023. Mexican corn contamination confirmed’, AFP, 24 defevereiro 2009

024. ‘Haiti’s farmers call for a break with neoliberalism’,Seedling, julho 2010, p. 21-24

025. Eric Holt-Giménez & R Patel, Food Rebellions! Crisis and the Hunger for Justice. Oakland: Food First Books, 2009

026. Francês M Lappé, Joseph Collins & Peter Rosset, World Hunger: 12 Myths. Londres: Earthscan, 2a. ed,1998, cap 5

027. Sue Branford & Jan Rocha, Rompendo a Cerca – A História do MST. São Paulo: Casa Amarela, 2004

028. MW Rosegrant & Prabhu L Pingali, Confronting theenvironmental consequences of the Green Revolution inAsia. Washington DC: International Food PolicyResearch Institute, 1994

029. Miguel Altieri, ‘Ecological impacts of industrialagriculture and the possibilities for truly sustainablefarming’. College of Natural Resources. Berkeley:University of California, 2000

030. Mais de 500 espécies de insetos, ácaros e aranhasdesenvolveram algum nível de resistência aos

Notas

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agrotóxicos. Ver: JoyN Landis (ed.), Fruit Crop Ecologyand Management. East Lansing: Michigan StateUniversity, 2002

031. Felicity Lawrence, “Should we worry about soya in ourdiet?”, Guardian, 25 de julho 2006

032. Economist Intelligence Unit, Global Forecasting Service,‘Soybeans’, 15 de dezembro 2010

033. World Soybean Production, 2009; http://soystats.com

034. Raj Patel, Stuffed & Starved: Markets, Power and theHidden Battle for the World Food System. Londres:Portobello Books, 2007, p. 166

035. Fawzi A Taha, The Poultry Sector in Middle-IncomeCountries and Its Feed Requirements: The Case ofEgypt. US Department of Agriculture EconomicResearch Service, dezembro 2003

036. H Friedmann, ‘Feeding the Empire: The Pathologies ofGlobalized Agriculture’ In: C Leys & L Panitch, (eds.),The Empire Reloaded: Socialist Register 2005. Londres:Merlin, 2004, p. 124–43

037. R Patel, Stuffed & Starved: Markets, Power and theHidden Battle for the World Food System. Londres:Portobello Books, 2007, p. 166, 198.

038. Carlos Caminada, ‘Brazilian poultry processor Perdigãotakes over Sadia’, Bloomberg, 19 de maio 2009; ROrihuela, ‘Where’s the beef? Not in Argentina asdrought drives away Brazil’s JBS’, Bloomberg, 23 desetembro 2010

039. ‘Shell in row over Brazilian land grab’, SurvivalInternational, 29 de setembro 2010

040. Em inglês, a expressão race to the bottom é usadaquando empresas ou países barateiam seus produtosou sua moeda para tornarem-se mais “competitivos,” o que tem um efeito negativo sobre os trabalhadoresda empresa ou sobre os cidadãos do país, pois acabamtrabalhando mais, frequentemente em piorescondições, por menos.

041. A América Latina e a Ásia são responsáveis por quase 48% das vendas totais de US$40.737 milhões,comparados com 46% da América do Norte e Europa.Ver: A Beer, ‘Developing agchem markets dominate in2010’, Agrow.com, 10 de março 2011

042. Ritambhara Hebbar, ‘Framing the Development Debate: The Case of Farmers’ Suicide in India’, In: C Sengupta & S Corbridge (eds.), Democracy,Development and Decentralisation in India: ContinuingDebates. Nova Deli: Routledge, 2010

043. Bittersweet: A Briefing Paper on Industrial SugarProduction, Trade and Human Rights in Cambodia, Bridges Across Borders Cambodia, setembro 2010

044. John Vidal, ‘EU biofuels significantly harming foodproduction in developing countries’, Guardian, 15 defevereiro 2010; T Josling, D. Blandford & J Earley, Biofuel and Biomass Subsidies in the US, EU and Brazil:Towards a Transparent System of Notification. WashingtonDC: International & Agricultural Trade Policy Council,2010, p. 14

045. Simon Freemantle & J Stevens, ‘Economics BRIC andAfrica – Brazil weds itself to Africa’s latent agriculturalpotential’, Standard Bank, 1 de fevereiro 2011

046. ‘Mozambique cancels contract with Procana’,Checkbiotech.org, 4 de janeiro 2010

047. ‘Seized: the 2008 landgrab for food and financialsecurity’, GRAIN, outubro 2008

048. Ruelle A Castro, ‘Experts warn of risks in unbridledforeigners’ access to farmlands’, Malaya Business Insight,26 de novembro 2010

049. Olivier De Schutter, ‘Food Commodities Speculation and Food Price Crises: Regulation to reduce the risks of price volatility’, Briefing Note 02, setembro 2010; ver também: The GreatHunger Lottery: How banking speculation causes food crises. Londres: World Development Movement, 2010; P Wahl, ‘Food speculation the main factor of the price bubble in 2008’, Berlin: WEED, fevereiro 2009

050. Modern and Mobile – the future of livestock production in Africa’s drylands. Londres: International Institute forEnvironment and Development, 2009

051. ‘Pressure on farmland is increasing at anunprecedented rate, warns new UN report’,comunicado à imprensa do Escritório do AltoComissário das Nações Unidas para os DireitosHumanos, 21 de outubro 2010

052. ‘Biodiversity for Food and Agriculture: Crop Genetic Resources’. Roma: Departamento deGerenciamento de Recursos Naturais e do Meio Ambiente, FAO, 1998

053. Esta seção foi retirada principalmente de RosemaryHoskins ‘How green are our apples? A look at theenvironmental and social effects of apple production’,S.A.F.E. Alliance, Food Facts, 4, 1999

054. Maire Woolf, ‘Rotting away: demise of the Englishorchard is blamed on red tape and bland imports’,Independent, 19 de junho 2004

055. ‘British supermarkets still not supporting native apples’, Friends of the Earth, informativo à mídia,novembro 2005

056. Jon Ungoed-Thomas, ‘British prawns go to China to be shelled’, Sunday Times, 20 de maio 2007; T Yaqoob,‘British seafood shipped to Thailand – and back – justto have the shells removed’, Daily Mail, 16 denovembro 2006

057. Agriculture at a Crossroads. Relatório Global daAvaliação Internacional da Ciência e da TecnologiaAgrícolas (IAASTD). Washington DC, 2009; The Future of Food and Farming: Challenges and choicesfor global sustainability, Londres: Government Office forScience, 2011

058. Entrevista com o Professor Tim Lang, Seedling, julho2008, p 13-15

059. Para mais informações visite o website da Telescopy:www.tescopoly.org

53

60. A Competition Commission é uma instituição pública independente do Reino Unido que conduzinvestigações acerca de fusões, mercados eregulamentos dos grandes setores industriais. Verhttp://www.competition-commission.org.uk/

061. The Supply of Groceries in the UK Market Investigation.Competition Commission, Final Report, abril 2008

062. Draft Groceries Code Adjudicator Bill. Londres:Department for Business, Innovation and Skills, 2011;Alex Renton, ‘Supermarkets set to derail bill to protectsuppliers’, Observer, 3 de julho 2011

063. A definição completa está incluída na Declaração deNyéléni. Disponível em www.nyeleni.org

064. Agriculture at a Crossroads. Relatório de Síntese daAvaliação Internacional da Ciência e da TecnologiaAgrícolas (IAASTD). Washington DC, 2009. Apesar deendossar o resumo, o governo britânico entrou comuma ressalva nesta altura no sentido de que não háuma definição de Soberania Alimentarinternacionalmente aceita. Ver o Anexo do Resumo, p. 12, nota 3

065. ‘Food Sovereignty in Europe Now!’ Declaration final doFórum Europeu pela Soberania Alimentar 2011. Krems,Áustria, 21 de agosto 2011

066. Peter M Rosset, Bráulio M Sosa, Adiley M Roque Jaime, Dora Rocio A Lozano, ‘The Campesino-to-Campesino agroecology movement of ANAP in Cuba: social process methodology in the constructionof sustainable peasant agriculture and food sovereignty’,Journal of Peasant Studies, 38/1, janeiro 2011, p. 161–191

067. Para maior elaboração para além das fontes listadasaqui, ver : Hannah Wittman, Annette A Desmarais,Nettie Wiebe (eds.), Food Sovereignty: ReconnectingFood, Nature and Community. Oakland: Food FirstBooks, 2010; M Indfuhr , J Jonsén, Food Sovereignty:Towards Democracy in Localised Food Systems. Rugby:Practical Action Publishing, 2005

068. Trade Reforms and Food Security: Conceptualizing thelinkages. Roma: FAO, 2003, Cap. 2

069. Michel Pimbert, Towards food sovereignty. Londres:Instituto Internacional pelo Meio Ambiente eDesenvolvimento, novembro 2009

070. ‘Voluntary Guidelines to support the progressiverealization of the right to adequate food in the contextof national food security’, adotado pela 127a Sessão doConselho da FAO, novembro 2004; reproduzido emThe Right to Food Guidelines: Information papers and casestudies. Roma: FAO, 2006

071. Eliminating World Poverty: Building Our Common Future.Londres: Department for International Development,julho 2009, p. 35-37; ver também: ‘DFID/Defra PolicyNarrative on Global Food Security and SustainableAgriculture’, Londres: DFID, março 2010

072. ‘G8 Leaders Statement on Global Food Security’,Toyako, 8 de julho 2008

073. ‘Mitchell: Crops are key in fight against climate change’,comunicado à imprensa, DFID, 4 de dezembro 2010

074. ‘Ending Striga’s reign with IR maize’, briefing de estudode caso, DFID, 18 de março 2011

075. Michel Pimbert, Towards food sovereignty. Londres:Instituto Internacional pelo Meio Ambiente eDesenvolvimento, 2009

076. Relatório entregue por Olivier de Schutter, RelatorEspecial Sobre o Direito à Alimentação, Documento da ONU A/HRC/16/49, 20 de dezembro 2010

077. Jules Pretty et al. ‘Resource-conserving agricultureincreases yields in developing countries’, inEnvironmental Science and Technology, 40/4, 2006, p. 1114-111

078. Tim J LaSalle & Paul Hepperly, Regenerative OrganicFarming: A Solution to Global Warming. Kutztown:Rodale Institute, 2008

079. ‘Earth matters: tackling the climate crisis from theground up’, Seedling, outubro 2009, p. 9-16

080. C Matos, ‘Brasil é 2º mercado para a Monsanto’, Folha de S. Paulo, 11 de agosto 2010

081. ‘Brazil largest consumer of pesticides: study’, AgenceFrance Presse, 17 de abril 2009

082. Uma das organizações parceiras da War on Want noBrasil, a organização não-governamental AS-PTA,produz regularmente um boletim informativo comanálises atualizadas sobre as últimas tramas da indústriade GM no Brasil e outros países. BOLETIM Por UmBrasil Livre de Transgênicos; http://www.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/boletim/

083. Saulo Araujo, ‘Family farmers feed Brazil’ GrassrootsInternational, 16 de outubro 2009

084. Boletim Regional, Urbano e Ambiental, IPEA, 4ª edição,2010

085. Esta seção foi escrita conjuntamente por Jan Rocha eAlex Kawakami após visitarem o assentamento.

086. A seção sobre o Sri Lanka baseia-se em um relatórioescrito por Lalith Abeysinghe após visitarKatuwanayaya.

087. Dados do Banco Central do Sri Lanka. Ver GH Peiris,Sri Lanka: Challenges of the New Millennium. Kandy:Kandy Books, 2006, p. 183

088. Annual Report. Colombo: Banco Central do Sri Lanka, 2009

089. DM Melis, M Abeysuriya & N SILVA (eds.), Putting LandFirst: Exploring the Links between Land and Poverty.Colombo: Centre for Poverty Analysis, 2006

090. David Dunham & Saman Kelegama, ‘EconomicLiberalization and Structural Reform: the Experience of Sri Lanka, 1977–1993’. Haia: Institute of SocialStudies, 1994

091. NL Sirisena, ‘An evaluation of agricultural policy on thepaddy sector, 1950–1985’, Sri Lanka Economic Journal,1986; GM Henegedara, ‘Agricultural Policy Reforms inthe Paddy Sector in Sri Lanka: An Overview’, Sri LankaJournal of Agrarian Studies, 10/1, 2002, p. 2; S Fernando,artigo sobre Agricultura Camponesa apresentado emencontro na China, 17–21 novembro 2010

Soberania Alimentar Re

sgatando o sistem

a alimentar global

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092. ‘Rebuilding Sri Lanka for Tourists: A report on the latestsituation – Arugam Bay Master Plan’, MovimentoNacional por Terra e Reforma Agrária (MONLAR)setembro 2005

093. Ibid.

094. A seção sobre Moçambique é baseada na pesquisa deJosé da Silva.

095. Land grabbing in Kenya and Mozambique: A report on tworesearch missions – and a human rights analysis of landgrabbing. Heidelberg: FIAN International, abril 2010

096. The Real Wealth of Nations: Pathways to HumanDevelopment. Human Development Report, 2010; Programa das Nações Unidas para oDesenvolvimento, 2010

097. Nazneen Kanji; Carla Braga; Winnie Mitullah, PromotingLand Rights in Africa: How do NGOs make a difference?Londres: International Institute for Environment andDevelopment, 2002; Apêndice 2

098. Jose Negrão, ‘Mozambican Land campaign, 1997-1999’,artigo apresentado à conferência do MovimentoAssociativo de Moçambique, Maputo, dezembro 1999

099. Este ponto foi incluído como garantia às mulheres de que o reconhecimento de direitos costumeiros na legislação de terras não poderia ser utilizado como meio para restringir avanços alcançados na Constituição na questão de igualidade entre os gêneros.

100. Land grabbing in Kenya and Mozambique: A report on two research missions – and a human rights analysis of land grabbing. Heidelberg: FIAN International, abril 2010

101. ‘Moz farmers hurt by land rush’, Agence France Presse,15 de outubro 2010

102. Não à violência! Não à repressão! Sim à SoberaniaAlimentar! Posição da UNAC sobre as manifestaçõesde 1 e 2 de setembro 2010. Maputo, 8 de setembro2010

103. Ernest Harsch, ‘Women aim to transformMozambique’, Africa Recovery, 12/ 4, abril 1999, p. 11

104. Christopher Hill, The World Turned Upside Down.Harmondsworth: Penguin Books, 1975

105. CAP’s impact on productive structures and family-basedagriculture in Europe: UK Case Study. UK Food Group,abril 2010

106. Ver, por exemplo: A Bitter Cup: The exploitation of tea workers in India and Kenya supplying British supermarkets. Londres: War on Want, 2010; Sour Grapes: South African wine workers and British supermarket power. Londres: War on Want, 2009; Growing Pains: The human cost of cut flowers in British supermarkets. Londres: War on Want, 2007

107. The Supply of Groceries in the UK: Market Investigation. Competition Commission, final report, abril 2008

108. www.makinglocalfoodwork.co.uk

109. O croft é uma pequena unidade de produção agrícolaespecificada da Escócia.

110. Scottish Crofting Federation. ‘Crofters applaud peasantprotest’, Comunicado à imprensa, Scottish CroftingFederation, 17 de April 2009

War on WantWar on Want luta contra a pobreza nos países emdesenvolvimento em parceria e solidariedade com as pessoas afetadas pela globalização. Nós fazemoscampanhas pelos direitos humanos, especialmente osdireitos dos trabalhadores, e contra as causas profundasda pobreza global, a desigualdade e injustiça.

Foto da capa: marcha de protesto de La Vía Campesinana Cúpula de Mudança Climática (COP-16) em Cancun,México, Dezembro 2010. Foto: © Archivo do Proyectos.

Desenho por www.wave.coop

Este relatório foi produzido com o apoio financeiro do Departamento Britânico por o DesenvolvimentoInternacional (DFID – UK Department for InternationalDevelopment). O conteúdo do relatório é a únicaresponsabilidade da War on Want e pode, sob nenhumacircunstância, ser considerado como refletindo aposição do DFID.

Publicado: Outubro 2011

Escrito por Sue Bradford.

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