resenha sobre "desconstruindo o conceito de 'barbárie'"

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Desconstruindo o conceito de “barbárie” Jean-François MATTÉI. A barbárie interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. Tradução de Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 363 páginas. Daniel Soczek 1 E stamos condenados à barbárie? Este é o problema sobre o qual o filósofo francês Jean-François Mattéi tenta lançar luzes considerando o contexto pós-moderno no qual nos encontramos. Entretanto, quando nos deparamos com um livro que se propõe a abordar o conceito de “barbárie” em um arco histórico que se inicia nos relatos épicos de Homero e alcança a contempora- neidade, é quase impossível que o senso crítico não nos dispo- nha a uma certa reserva ou mesmo ceticismo para com a leitura de tal texto. Esta reserva e ceticismo logo dissolvem-se, porém, quando percebemos a profundidade e erudição do modo de abor- dagem do tema em questão, atestado, por exemplo, pela recorrência contínua à gramática histórica e pela adoção da pers- pectiva analítica interdisciplinar que envolve a poesia, a sociolo- gia e a filosofia para fundamentação de suas idéias. Este conjun- to de qualidades oferece ao leitor uma agradável leitura, sem perder as características de um texto instigante e reflexivo. Num momento em que muitos pesquisadores se preocu- pam apenas em referendar um diagnóstico niilista e relativista do contexto contemporâneo pós-moderno, o autor preocupa-se em viabilizar o pensar alternativo aos conflitos e ambivalências que assumem uma característica quase que determinista na con- juntura atual. Se “nascemos póstumos”, como diagnostica o au- tor na introdução de seu livro, póstumos porque perdemos o sen- 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universida- de Federal de Santa Catarina e Professor de Sociologia no Centro Universitário UNIANDRADE – PR. Resenhas

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Resenha deJean-François MATTÉI. A barbárie interior. Ensaiosobre o i-mundo moderno. Tradução de Isabel MariaLoureiro. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 363 páginas.Por Daniel Soczek

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  • Desconstruindo o conceito de barbrie

    Jean-Franois MATTI. A barbrie interior. Ensaiosobre o i-mundo moderno. Traduo de Isabel MariaLoureiro. So Paulo: Editora UNESP, 2002. 363 pginas.

    Daniel Soczek1

    Estamos condenados barbrie? Este o problema sobre o qual o filsofo francs Jean-Franois Matti tenta lanar luzesconsiderando o contexto ps-moderno no qual nos encontramos.Entretanto, quando nos deparamos com um livro que se propea abordar o conceito de barbrie em um arco histrico que seinicia nos relatos picos de Homero e alcana a contempora-neidade, quase impossvel que o senso crtico no nos dispo-nha a uma certa reserva ou mesmo ceticismo para com a leiturade tal texto. Esta reserva e ceticismo logo dissolvem-se, porm,quando percebemos a profundidade e erudio do modo de abor-dagem do tema em questo, atestado, por exemplo, pelarecorrncia contnua gramtica histrica e pela adoo da pers-pectiva analtica interdisciplinar que envolve a poesia, a sociolo-gia e a filosofia para fundamentao de suas idias. Este conjun-to de qualidades oferece ao leitor uma agradvel leitura, semperder as caractersticas de um texto instigante e reflexivo.

    Num momento em que muitos pesquisadores se preocu-pam apenas em referendar um diagnstico niilista e relativistado contexto contemporneo ps-moderno, o autor preocupa-seem viabilizar o pensar alternativo aos conflitos e ambivalnciasque assumem uma caracterstica quase que determinista na con-juntura atual. Se nascemos pstumos, como diagnostica o au-tor na introduo de seu livro, pstumos porque perdemos o sen-

    1 Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universida-de Federal de Santa Catarina e Professor de Sociologia no Centro UniversitrioUNIANDRADE PR.

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    tido do comeo, j que este o momento do fim fim dasideologias, da histria, da arte, da metafsica , pe-se como im-perativo retomar a observao de Rilke de que tudo o que acon-tece sempre um comeo. Portanto, somos todos um comeo a idia que, expressa na ltima linha do texto, conclui compreciso e rigor toda a trajetria reflexiva desta obra.

    Segundo o autor, o projeto iluminista calcado na razoteria como objetivo levar a civilizao a todos aqueles queestavam, de alguma forma, longe dela, os chamados brba-ros. Em tese, os brbaros s existem por oposio civiliza-o, e por no compreend-la, simplesmente a destroem e sa-queiam. A disposio diametralmente oposta entre estes doisconceitos constitui-se num duplo somente explicvel individu-almente por oposio plena ao outro.

    A tese deste autor sustenta que a barbrie no algo exter-no que se afronta ao civilizado e que este deve dissip-la para,dialeticamente, produzir um processo de emancipao daquele mas sim uma face paradoxal civilizao, que vem tona no mo-mento em que ela se torna arrogante de si. Assim, o autor aceita atese pascaliana do homo duplex, que admite a interioridade dabarbrie na civilizao, em oposio ao racionalismo otimista damodernidade ou racionalismo crtico de Horkheimer e Adorno, quevem no homem um ser racional submetido tempestade dabarbrie. A proposta do autor oferecer uma resposta a toda pi-lhagem, destruio, saques e mortes que resultaram de um proces-so que queria opor barbrie o projeto moderno. Sendo assim, oautor admite que civilizao e barbrie so as duas mscaras,adversrias e cmplices, de uma mesma e nica humanidade.

    Para desdobrar a tese acima enunciada, o primeiro captuloda obra destina-se a tratar do conceito de barbrie na Grcia anti-ga e o segundo busca reencontrar o significado do termo no uni-verso cultural romano. Ao contrrio dos romanos, os gregos nonegavam que os brbaros tambm fossem uma civilizao, aindaque muito distinta da deles. Para o romano, ao contrrio, os br-baros eram todos aqueles povos que estavam, numa perspectivaexpressamente maniquesta, fora de seu domnio, sendo o mundoconstitudo, por definio, como Romania e Barbrie. em Roma

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    que o termo brbaro adquire o esteretipo antropolgico daqueleque est, a todo momento, ameaando a civilizao. Brbaro algum de fora, o externi que deve ser exterminado numinteressante jogo de palavras que o autor retoma de Ccero, masque se aplica e explica a viso de mundo deste momento histri-co. Nas palavras do autor, no h um mundo brbaro como pode-ria ser pensado nos moldes gregos, mas a ausncia e impossibili-dade de instaurao ou restaurao de uma ordem no mundo, queo autor designa como i-mundo ou a-cosmia. Brbaro a posiodiametralmente oposta realidade construtiva da civilizao. En-tretanto, a condio de expanso de Roma tornar civilizado opovo brbaro, uma patria comunis que originaria uma res pblica.Acrescentada a este aspecto a ascenso do cristianismo, fulmina-se a dicotomia civilizado/brbaro ao se afirmar que todo homem templo de Deus e que pode ser um romano tambm. A barbrie,pensada agora como uma perturbao da ordem da cidade, mastambm como perturbao da ordem da alma, deve ser combatidaenquanto uma diminuio das pulses de violncia presentes noesprito humano. Dos textos bblicos do Novo Testamento aos es-critos sobre a descoberta/dominao da Amrica, multiplicam-seas reflexes no sentido de mostrar como os civilizados atuam demodo violento (brbaro) com relao aos designados como brba-ros, que paradoxalmente possuem uma postura muitas vezes ci-vilizada com relao queles.

    Este movimento histrico desemboca no terceiro captulo,onde o autor desenvolve a idia de barbrie do sujeito. Essapostura significa admitir que a barbrie substancial, e mesmoconsubstancial ao homem, e no um acidente infeliz da histria.O autor reconhece a barbrie na exacerbao do conceito de su-jeito (processo que ocorre na modernidade), onde uma epistemo-logia notica engendra, como explicitado nos captulos seguin-tes do livro, as crticas ao processo educacional, cultura e poltica como paradigmas de barbrie e no de civilizao, comocomumente pensamos.

    Com relao ao primeiro item, o autor parte daconstatao dos aspectos falimentares dos sistemas educacio-nais e do comportamento dos alunos nos estabelecimentos

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    educacionais. Estes aspectos constituem-se em sintomas ine-quvocos de que o carter procedimental da educao, queenvolve educadores e educandos em processos avaliativos, ondeo reproduzir mais importante do que o pensar, como atestaBourdieu, nos leva a repensar a clssica diferenciaodurkheimiana entre funo e finalidade, aqui com relao educao, e a dificuldade que Rousseau j pressentira em es-colher entre fazer um homem e fazer um cidado.

    No segundo aspecto abordado, a cultura, o autor parte daclssica distino de Elias entre Kultur e Civilization, refletindo sobreo problema da segmentao da sociedade que desemboca norelativismo, como atestam as posturas de Comte de que tudo relativo, eis o nico princpio absoluto, e do anarquismometodolgico de Feyerabend, que postula o anything goes ovale-tudo. Esse tirar o tapete de debaixo de nossos ps no signi-fica que estamos inclumes ou desobrigados de refletir sobre osdesdobramentos polticos da sociedade moderna e ps-modernano mbito poltico tema do captulo final do livro. Frente a umavirtualizao dos processos democrticos pela diminuio do es-pao pblico, com a sobreposio do privado sobre este, torna-seinevitvel o desmantelamento da civilizao em barbrie, onde apostura totalitarista de esquerda e de direita a conseqnciamais exemplar, lgica e direta deste processo.

    Desse modo, a deficincia do projeto racional moderno es-taria na postura brbara, endmica ao prprio sistema. Se os efei-tos de tal processo so to desastrosos como abominveis, nosignifica, entretanto, que no haja possibilidade de uma sadadeste embuste. Ao afirmar na sua concluso que parece-me quequem quiser hoje delimitar os contornos do mundo moderno deveprimeiro traar as fronteiras de seus desertos interiores, o autorreafirma no sujeito, em sua subjetividade, uma possvel alterna-tiva sem perder-se no individualismo, que seria uma espcie debarbrie soft em oposio barbrie hard do totalitarismo.

    Esta obra, no obstante suas mltiplas qualidades, algu-mas delas destacadas acima, no est imune ou isenta de crticas.Ela inclui, em sua primeira traduo no Brasil, o prefcio tercei-

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    ra edio francesa, onde o autor tenta fazer a defesa dos seuspontos de vista contra algumas das proposies crticas que lheforam postas tanto por leitores como por aqueles que participa-ram de suas palestras dentro e fora do territrio francs. As crti-cas levantadas ao autor referem-se ao paralelismo entre comunis-mo e nazismo, no que diz respeito aos desmandos totalitrios,que o autor identifica com a barbrie; o alcance terico do termobarbrie, que muitos julgam amplo demais; a legitimidade dacrtica do sujeito, como posta pelo autor; e o conceito de i-mun-do enquanto barbrie sua aplicao analtica ao contexto atual.

    Do nosso ponto de vista, entendemos que a posio assu-mida pelo autor contra o determinismo da coexistncia da barbrieinerente condio humana no nos permite construir mtodosque possibilitem impedir a existncia de atos brbaros. Somosimpelidos naturalmente violncia, j que a barbrie inata efaz parte de nossa natureza humana, emergindo da um pessi-mismo com relao ao desdobramento dos processoscivilizatrios da humanidade.

    Outra suposio do autor a possibilidade de optarmospela no-barbrie, o que seria, por exemplo, em termos de arte, amassificao. Em certo momento do livro, ele afirma que se devedistinguir entre a cultura verdadeira, que sempre uma culturadurvel e aristocrtica, e uma cultura de massas que se atarefa naesfera do consumo passageiro (p. 277). O autor persegue umaidia de Bem/Beleza nos moldes postos por Plato para identifi-car a possibilidade de estar acima ou alm da barbrie, seja naarte ou em qualquer outra instncia. O autor no oferece, entre-tanto, nenhum critrio ou indicao para podermos fazer esta(possvel e desejvel (?)) opo.

    Um terceiro aspecto que gostaramos de ressaltar o noesclarecimento da abrangncia e implicao dos conceitos dei-mundo e barbrie, que o autor enseja delinear em seu pref-cio mas no o faz. Se a barbrie, mesmo que paradoxalmente, inerente comunidade humana, sua inerncia no implicatotalidade, haja vista a possibilidade de aes que orientam arealidade para o no-brbaro, como os avanos da democra-

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    cia, por exemplo. Assim, os conceitos de i-mundo e barbrietornam-se por demais vastos, o que prejudica a anlise de umfenmeno social qualquer.

    No obstante esses limites, salientamos a importncia des-ta agradvel leitura, que nos propicia elementos a serem agrega-dos em possveis anlises que permitam aprofundar o conturba-do entendimento dos paradoxais problemas da sociedade con-tempornea. Frente aos nebulosos acontecimentos recentes dahistria mundial, oxal tenha o autor razo em seu otimismo napossibilidade de um novo comeo frente barbrie multiformee multifocada, que se assenhora mundialmente nestes dias plm-beos e sombrios para a humanidade.

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