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Representações arqueoastronômicas brasileiras: a supernova de1054 Rundsthen Vasques de Nader [email protected] UFRJ/HCTE Cíntia Jalles [email protected] MAST/MCTIC Todos os povos, em maior ou menor escala, sempre demonstraram reverência pelo céu e pelos objetos nele observados, tanto durante o dia quanto à noite. O movimento cíclico do Sol, a variação das fases da Lua, as trajetórias dos planetas se movendo entre as estrelas, que se sucediam e assinalavam as épocas certas para celebrações, atividades cotidianas e agrárias. Estas observações de acontecimentos, que se repetiam e eram previsíveis, representavam a perfeição e a harmonia do Cosmos e davam algo seguro e ordenado onde apoiarem seus conhecimentos e entendimento dos fenômenos que os influenciavam. Dependendo, fundamentalmente, da compreensão da terra e do céu para a sobrevivência, as diversas culturas espalhadas pelo planeta escolheram diferentes formas de entender esta complexa correlação. Todavia, às vezes alguns fenômenos celestes ocorriam de forma inesperada, e alguns eram especialmente espetaculares, tais como uma chuva de meteoros, um cometa ou uma nova estrela no céu. Este último fenômeno, chamado de supernova, é um evento astronômico resultante da explosão catastrófica de uma estrela, que às vezes aparece com um brilho muito intenso durante um período, declinando sua luminosidade com o tempo. Um fenômeno assim ocorreu em 1054 e foi registrada em vários locais na Terra. Em particular, um documento escrito na China (Figura 1) registra a data do aparecimento deste objeto, por ele chamado de estrela maligna, e que foi um evento tão intenso que era visível inclusive durante o dia por vários meses. A partir desta citação, várias outras narrativas e registros pictográficos sobre este específico aparecimento têm sido encontradas em locais tão variados como Austrália, Europa e Américas. Este trabalho pretende, por análise comparativa, demonstrar que um registro deste fenômeno também foi feito no

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Representações arqueoastronômicas brasileiras: a supernova de1054

Rundsthen Vasques de Nader

[email protected]

UFRJ/HCTE

Cíntia Jalles

[email protected]

MAST/MCTIC

Todos os povos, em maior ou menor escala, sempre demonstraram reverência

pelo céu e pelos objetos nele observados, tanto durante o dia quanto à noite. O

movimento cíclico do Sol, a variação das fases da Lua, as trajetórias dos planetas se

movendo entre as estrelas, que se sucediam e assinalavam as épocas certas para

celebrações, atividades cotidianas e agrárias. Estas observações de acontecimentos, que

se repetiam e eram previsíveis, representavam a perfeição e a harmonia do Cosmos e

davam algo seguro e ordenado onde apoiarem seus conhecimentos e entendimento dos

fenômenos que os influenciavam. Dependendo, fundamentalmente, da compreensão da

terra e do céu para a sobrevivência, as diversas culturas espalhadas pelo planeta

escolheram diferentes formas de entender esta complexa correlação. Todavia, às vezes

alguns fenômenos celestes ocorriam de forma inesperada, e alguns eram especialmente

espetaculares, tais como uma chuva de meteoros, um cometa ou uma nova estrela no

céu. Este último fenômeno, chamado de supernova, é um evento astronômico resultante

da explosão catastrófica de uma estrela, que às vezes aparece com um brilho muito

intenso durante um período, declinando sua luminosidade com o tempo. Um fenômeno

assim ocorreu em 1054 e foi registrada em vários locais na Terra. Em particular, um

documento escrito na China (Figura 1) registra a data do aparecimento deste objeto, por

ele chamado de estrela maligna, e que foi um evento tão intenso que era visível

inclusive durante o dia por vários meses. A partir desta citação, várias outras narrativas

e registros pictográficos sobre este específico aparecimento têm sido encontradas em

locais tão variados como Austrália, Europa e Américas. Este trabalho pretende, por

análise comparativa, demonstrar que um registro deste fenômeno também foi feito no

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Brasil, e foi encontrado no estado da Bahia, durante estudos feitos dentro do Projeto

Central, que tem por objetivo reconstruir a ocupação humana na região arqueológica de

Central, Bahia. A grande quantidade de representações rupestres nesta região, algumas

com fortes indicações de referências a objetos e eventos celestes, fazem da região que

abrange este Projeto o local ideal para que sejam feitas buscas sistemáticas a procura de

outras representações da supernova de 1054 (SN 1054), entre outras representações de

cunho astronômico. Esta abordagem poderá ser utilizada como uma forma de datação

indireta de sítios com registros rupestres com tais eventos.

Figura 1: Uma 'estrela convidada' identificada como a supernova de 1054 nas páginas da Lidai

mingchen zouyi (歷代 名臣 奏議), que data de 1414. As passagens em destaque referem-se à

supernova.1

Em 1928, Hubble (1928) sugeriu que o que foi chamado por astrônomos

chineses de “estrela convidada”, um objeto celeste de brilho intenso observado em

1054, estaria associado ao que hoje conhecemos como Nebulosa do Caranguejo (ou

1https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Chinese_report_of_guest_star_identified_as_the_supernova_of_105

4_(SN_1054)_in_the_Lidai_mingchen_zouyi_(%E5%8E%86%E4%BB%A3%E5%90%8D%E8%87%A

3%E5%A5%8F%E8%AE%AE).jpg

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Messier 12). Este objeto é o remanescente de uma supernova3, e está localizado na

constelação do Touro, sendo primeiramente observada por John Bevis4 em 1731.

Na tentativa de encontrar outras referências na literatura mundial, muitos

trabalhos têm sido publicados. Dentre eles podemos citar Ho et al (1972), que relata,

além de referências chinesas, também na japonesa. Já o trabalho de Brecher et al. (1978)

identifica uma citação do médico iraquiano Ibn Butlan (1001-1066 dC). O artigo de

Brandt e Williamson (1979) relata uma pintura rupestre que parece representar uma

explosão estelar que poderia ser associada à SN 1054. Na literatura europeia não se tem

notícia, até o presente momento, de referência a este evento, e algumas especulações

têm sido aventadas para explicar tal lacuna. Williams (1981) sugere que uma possível

explicação para esta ausência de registros poderia ser atribuída a condições

meteorológicas desfavoráveis, o que não se sustenta, pois a SN 1054 foi extremamente

brilhante e visível por mais de um ano, além de não ser aceitável que o céu estivesse

encoberto por toda a Europa.

Os trabalhos de Thomas (1979) e Zalcman (1979) levantam a hipótese de que

esta ausência de registros seria devida à uma censura da Igreja Católica Romana, por

conta do Cisma do Oriente5 no século XI dC.

Todavia, Williams (1981) também descreve o que parece ser uma alusão ao

fenômeno nas Crônicas de Rampona.6, citada no trabalho de Newton (1972). Nessas

crônicas há a descrição de uma estrela brilhante aparecendo na época da supernova:

Tempore huius stella clarissima in circuitu prime lune ingressa est, 13 Kalendas in

nocte inito (Durante esse tempo [reinado de Henrique III – Figura 2] uma estrela

2 O Catálogo Messier é um catálogo astronômico composto por 110 objetos do céu profundo, compilado

pelo astrônomo Charles Messier (1730-1817) entre 1764 e 1781, com o nome "Catalogue des Nébuleuses

et des amas d'Étoiles, que l'on découvre parmi les Étoiles fixes sur l'horizon de Paris" (Catálogo de

Nebulosas e Aglomerados Estelares Observados entre as Estrelas Fixas sobre o Horizonte de Paris), foi

construído com objetivo de identificar objetos que poderiam ser confundidos com cometas, objetos de

brilho fraco e difusos no céu noturno. 3 Evento astronômico que ocorre durante os estágios finais da evolução de algumas estrelas, e é

caracterizado por uma explosão muito intensa com um aumento abrupto da sua luminosidade. 4 Astrônomo inglês (1695-1771) 5 Evento que causou a ruptura da Igreja, separando-a em duas: Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja

Católica Apostólica Ortodoxa, a partir de 16 de julho de 1054, quando os líderes da Igreja de

Constantinopla e da Igreja de Roma excomungaram-se mutuamente. 6 O Corpus Chronicorum Bononiensium é uma coleção de crônicas da era renascentista que trata da

história de Bolonha. Esta coleção inclui a Cronaca Rampona e a Cronaca Varignana.

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extremamente brilhante apareceu no circuito da lua nova [no local da lua nova, ou seja,

a leste, próxima do Sol] no início da noite do dia 13 do calendário). A escolha da

expressão latina stella clarissima para descrever o objeto é tão enfática, indica que esta

era de fato uma estrela muito brilhante.

Em McCarthy e Breen (1997) citam referências nos anais irlandeses que

parecem se aludir a fenômenos astronômicos, possivelmente incluindo a SN 1054

(COLLINS II et al., 1999).

Figura 2: Rei Henrique III apontando uma “nova estrela”7.

Excetuando-se a referência chinesa, até agora todas as informações que podemos

ter acesso são oriundas de fontes que foram escritas, na maioria das vezes, séculos após

7https://en.wikipedia.org/wiki/SN_1054#/media/File:Heinrich_III._sieht_den_neuen_Stern_%C3%BCber

_der_Stadt_Tivoli_(Tyburtina).jpg

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o evento. Assim sendo, não é de estranhar que inconsistências nas narrativas sejam

facilmente observadas nos diferentes relatos. Para que se possa avaliar essas

informações, deve-se levar em conta o contexto sócio cultural em que foram produzidas.

Como bem lembram Guidoboni et al. (1992), devemos estar atentos aos anacronismos

introduzidos na transcrição das fontes primárias para a linguaguem da época em que

foram feitas. Neste trabalho eles lembram que algumas fontes são metafóricas e até

mesmo antropomórficas, o que não ocorre com as fontes orientais.

Todavia, devemos ter em mente que existem problemas culturais e

cosmogônicos a serem considerados. Para os orientais, a principal função da observação

e registro de fenômenos celeste estava focada em procurar por ‘sinais’ (presságios), mas

tendo como importante consideração medidas posicionais tão precisas quanto seus

intrumentos de medição permitissem. No trabalho de Ho et al. (1972) é citado que os

chineses não consideraram as estrelas como fixas. porém, é muito provável que eles

fizessem uma associação de uma evento celeste que ocorrese ao entardecer com um

outro semelhante ao amanhecer em uma data posterior. É pouco provável, pelo que

sabemos do modo de contagem de tempo utilizado no ocidente, que isso seja verdade na

Europa medieval.

Muito se descobriu sobre os mecanismos de formação de uma supernova nas

últimas décadas e isso nos permite atualmente determinar que, pelo estudo da

velocidade de expansão da Nebulosa do Caranguejo, há consistência em datá-la como

tendo ocorrido no século XI, como cita o trabalho de Nugent (1998).

Na Tabela I podemos visualizar uma cronologia de possíveis

avistamentos da supernova de 1054, local, fonte e aparência narrada.

Tabela I – Cronologia de possíveis avistamentos da supernova de 1054

DATA LOCAL FONTE APARÊNCIA

11 de abril Constantinopla Diário de Ibn Butlan Estrela

19 de abril Flanders Tractus de ecclesia Estrela brilhante

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24 de abril Irlanda Irish Annals Pilar flamejante

Fins de abril Roma De obitu santi Leonis ppIX Estrela brilhante

10 de maio China Sung-shih hsin-pien Estrela

14 de maio Armênia Hayton de Corycus Estrela

20 de maio Italia Crônica de Rampona Estrela muito brilhante

Fins de maio Japão Mei Getsuk Nova estrela

Junho Japão Mei Getsuk Estrela

04 de julho China Sung hui-yao Estrela/Cometa

27 de julho China Sung hui-yao Estrela

Abril de 1055 Constantinopla Diário de Ibn Butlan Estrela

17 de abril de 1056 China Sung hui-yao Estrela

É interessante notar-se que durante os primeiros dias da supernova uma fonte

pontual de cerca de, pelo menos, -6 de magnitude visual8 seria uma visão surpreendente

(como comparação podemos usar Vênus, que em seu brilho máximo teria magnitude de

- 4,8). Perto do amanhecer, o brilho e a variação de cor devido à refração atmosférica

teriam feito o objeto parecer ainda mais ativo. Não seria surpreendente se fosse

interpretado como mostrando um disco que pode explicar o uso da palavra “po”

geralmente reservada aos cometas pelos chineses. Mais tarde, quando diminuiu, se

tornaria uma “estrela convidada”. Finalmente, depois de quase dois anos, a estrela não

seria mais visível no céu noturno, levando à entrada final dos relatórios chineses.

Quando analisamos a tabela, há uma clara prevalência de uma data para a

explosão no meio da primavera, para o hemisfério norte, de 1054 dC. No entanto, todos

os relatórios europeus referem-se a eventos no céu noturno durante a primavera de 1054

dC, enquanto nenhum encontrado até agora se refere a eventos no céu da manhã de

meados de junho e além. Esta ausência é realmente de se estranhar, visto tais

intercorrências celestes serem de especial interesse para os habitantes da Europa

8 A magnitude visual, ou aparente,(m) de um corpo celeste é um número que mede o seu brilho como

visto por um observador na Terra. Quanto mais brilhante um objeto parece, menor é o valor de sua

magnitude (relação inversa). O Sol, com magnitude aparente de -27, é o objeto mais brilhante do céu.. A

escala da magnitude é logarítmica: a diferença de uma unidade na magnitude corresponde a uma mudança

no brilho por um fator de aproximadamente 2,512.

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medieval. Estas evidências parecem corroborar a hipótese sugerida por Thomas (1979) e

Zalcman (1979), e desenvolvida por Lupato (1995) de que tais escritos foram

suprimidos pela Igreja Católica Romana, por conta do já citado Grande Cisma, que

coincidiu com o aparecimento da SN 1054. Embora isto fosse praticamente irrelevante

no Oriente, no Ocidente, predominantemente Católico, isto assumia um papel de grande

importância simbólica. Conquanto esse argumento sej, basicamente, circunstancial, não

podemos ignorar o fato de que nos dá pistas para o entendimento da dificuldade de

encontrarmos referências, na literatura europeia, sobre (fundamentalmente calcada nos

dogmas da igreja católica) a SN 1054. Esses trabalhos nos levam a concluir que se

quisermos encontrar mais citações ao evento, devemos procurar na literatura secular e

nos relatos históricos não provenientes de fontes da Igreja Romana.

É interessante notar o protagonismo da SN 1054 história da Astronomia

contemporânea.

Foi procurando sem sucesso pelo cometa Halley, na constelação do Touro, que

Charles Messier pensou descobri-lo, enquanto ele realmente observava a nebulosa do

Caranguejo. Depois de algum tempo, notando que o objeto que não estava se movendo

no céu, Messier conclui que aquele objeto não era o cometa, e percebeu a utilidade de

criar um catálogo de objetos celestes (Catálogo de Messier) de aparência nebulosa, mas

fixos no céu, para evitar confundi-los com cometas.William Herschel (1738-1822)9,

após várias observações, conclui que seria composto de uma aglomeração de estrelas.

Em 1844, William Parsons (1800-1867)10 foi o primeiro a fazer um esboço da

nebulosa, que ele nomeia de "Nebulosa do Caranguejo" de 1848 (Figura 3), termo que

foi adotado rapidamente adotado na comunidade astronômica. Uma foto do objeto como

se encontra hoje pode ser vista na Figura 4.

9 Astrônomo e compositor alemão naturalizado inglês. Ficou famoso por sua descoberta do planeta

Urano, assim como de duas de suas luas, além de duas luas de Saturno e a existência da radiação

infravermelha. É também conhecido pelas vinte e quatro sinfonias que compôs. Foi o primeiro presidente

da Royal Astronomical Society 10 Astrônomo irlandês, foi responsável, na década de 1840, por construir um telescópio que foi, por

muitas décadas, o maior telescópio do mundo.

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Figura 3: Desenho da Nebulosa do Caranguejo, feita por Parsons em 1848.11

Figura 4: Objeto resultante da explosão da supernova de 1054.12

11http://www.astronomyprojects.ie/birr.html 12https://www.nasa.gov/feature/goddard/2017/messier-1-the-crab-nebula

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Em 1913, quando Vesto Slipher (1875-1969)13 registrou seu espectro, a

Nebulosa do Caranguejo foi mais uma vez o primeiro objeto com essas características

estudado.

O aspecto da nebulosa, sugerindo um pequeno objeto, é revelada por Carl Otto

Lampland (1873-1951)14 em 1921, mesmo ano em que John Charles Duncan demonstra

que ela está em expansão

Em 1921 Knut Lundmark (1889-1958)15 publica um artigo, em que faz um

inventário inventário dos fenômenos chamados "estrelas convidadas", catalogados pelos

astrônomos do mundo chinês, e que excluíam os cometas. Sua compilação corresponde

ao que eles foram chamados à época de novas e que eles eram realmente novas ou, mais

raramente, supernovas. Este trabalho permitiu que Edwin Hubble (1889-1953)16

identificasse a Nebulosa do Caranguejo como remanescente da explosão observada no

ano 1054 e seria correspondente à SN 1054.

Foi, em 1949, uma das primeiras nebulosas a terem a sua imagem no visível a

ser associada à uma radiofonte17.

Na década de 1960 foi levantada a hipótese teórica da existência de pulsares, e

novamente a SN 1054 tornou-se importante para validar essa teoria. Franco Pacini

(1939-2012)18 predisse em seu artigo de 1967, pela primeira vez, que somente a

existência de uma estrela de neutrons seria capaz de explicar a iluminação daquele

objeto. Essa estrela de nêutrons foi observada logo após, em 1968, confirmando a teoria

da formação desses objetos durante certas explosões de supernovas. A descoberta do

13 Astrônomo americano; mediu pela primeira vez a velocidade radial de uma galáxia e descobriu a

existência de gás e poeira no meio interestelar 14 Astrônomo americano; construiu telescópios e projetou câmeras para astrofotografia, inclusive, um

termopar para medir temperaturas em outros planetas. 15 Astrônomo sueco, conhecido por ter realizado os primeiros estudos sobre a natureza das galáxias. Foi

também o principal incentivador da Astronomia popular na Suécia na década de 1930 e nos anos

seguintes 16 Astrônomo americano, identificou que o que até então se conheciam como nebulosas, na verdade eram

galáxias fora da Via Láctea, e que estas afastam-se umas das outras a uma velocidade proporcional à

distância que as separa. 17 Estela que emite radiação na frequência das ondas rádio, que abrange, aproximadamente, de 3 kHz a

300 GHz. 18 Astrônomo italiano, trabalho principalmente no estudo de pulsares e estrelas de neutrons.

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pulsar do Caranguejo foi possível graças ao conhecimento do momento de seu

nascimento, o que possibilitou verificar as considerações básicas sobre a física desses

objetos (idade característica, taxa de diminuiçao da luminosidade,tamanho, campo

magnético etc). Nesse aspecto, a SN 1054 foi crucial, pois nenhuma outra supernova

histórica deu origem a um pulsar cuja idade poderia ser conhecida de maneira precisa.

Uma vez que podemos encontrar registros de fenômenos celestes não

previsíveis, como cometas e meteoros, em tradições orais e materiais por culturas em

todas as partes do mundo, é provável que supernovas também tenham sido registradas.

Mas identificar objetivamente um exemplo claro é tarefa difícil. Basicamente temos

duas dificuldades para fazer uma associação objetiva entre, por exemplo, uma arte

rupestre ou uma tradição oral a um evento como uma supernova. Primeiro, descrições

passadas por tradições orais costumam ser ambíguas. Segundo, representações

rupestres, tais como pinturas ou gravações, podem ser interpretadas de acordo com o

viéz da área de atuação do pesquisador. Um astrônomo e um antropólogo poderiam ter

interpretações completamente diferentes de uma mesma representação. Assim, fica

evidente que erros de identificação e interpretações de supernovas na cultura

principalmente de povos ágrafos são bastante comuns. Para que se possa interpretar

essas representações seria necessário que fosse criada uma lista de critérios objetivos,

todavia esta não é a proposta de trabalho.

Quando consideramos as Américas, encontramos artigos que se referem a

representações rupestres ameríndias no sudoeste dos Estados Unidos. Uma das mais

famosas interpretações dessas representações (e também a que gera maior controvérsia)

é a que é associada à SN 1054. Ela é atribuída à cultura Anasazi e está localizada em

Chaco Canyon, no Novo México e é analisada nos trabalhos de Brandt e Williamson

(1979) e Brecher et al. (1983) (Figura 5). É proposto que a imagem representa uma Lua

crescente com um objeto de grande brilho bem próximo a ela e com o decalque de uma

mão esquerda, que seria uma espécie de assinatura do artista. Esta hipótese seria

fundamentada nas datações efetuadas no sítio onde se encontra a pintura e com a

configuração que é relatada pelas observações feitas na China e o mapa de como seria

visível o fenômeno no céu, obtido pelo software para PC Starry Night (Figura 6) para o

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dia 5 de julho de 1054. Esta seria uma forte evidência de que esta seria realmente a

representação da SN 1054. Todavia também sabemos que a datação de pinturas

rupestres normalmente são feitas de forma indireta e têm um grande erro associado. Em

adição, alguns pesquisadores, tais como Koenig (1979) e Shaefer (2006), afirmam que

na realidade o objeto brilhante ao lado da Lua poderia ser Vênus ou Júpiter. Estas

hipoteses são validas, porém este não é um fenômeno incomum e a representação em

questão parece querer registrar que algo inédito estava ocorrendo no céu e que precisava

ser registrado.

Figura 5: Pintura rupestre em Chaco Canyon representando a supernova que criou a

Nebulosa do Caranguejo em 4 de julho de 1054.19

19https://listoffigures.wordpress.com/tag/william-parsons/

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Figura 6: Mapa de como seria a configuração do ceu no dia 5 de julho de 1054, data

obtida dos registros chineses (imagem obtida através do software Starry Night).

No Brasil, os trabalhos relacionados a Arqueoastronomia começaram a ser

abordados com mais consistência quando, a partir de 1982,20 uma equipe de

pesquisadores do Museu Nacional/UFRJ, coordenada pela arqueóloga Maria da

Conceição de Moraes Coutinho Beltrão21, através do Projeto Central, trazia à tona uma

série de descobertas feitas no município de Central, na Bahia, sendo que uma

quantidade significativa relacionada a eventos celestes. Essas informações recuperadas

por esse Projeto arqueológico têm servido de base para o estudo e respostas a questões

levantadas por outros projetos de pesquisa feitos no Brasil.

O Projeto Central pode ser considerado pioneiro na pesquisa arqueoastronômica

brasileira. Nas diversas publicações resultantes das pesquisas desenvolvidas na região,

podemos encontrar diversas possíveis interpretações de registros rupestres com viés

notadamente astronômico, como pode ser visto em Tavares e Beltrão (2014).

20 Cf. BOAVENTURA, Edivaldo (Org.) Maria Beltrão e a Arqueologia na Bahia: o projeto Central.

Salvador: Quarteto, 2014:41. 21 Profa. titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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A região definida pelo Projeto é de 100.000 km² e engloba a Planície Calcária,

as Serras Quartzíticas da Chapada Diamantina e a região oeste do estado da Bahia.22

Após mais de 30 anos de pesquisas em diversos municípios da região, foram registrados

mais de 400 sítios arqueológicos e paleontológicos, distribuídos em abrigos, grutas,

canyons, boqueirões, etc. Como a maior concentração de sítios encontra-se na planície

calcárea da Chapada Diamantina, as escavações e levantamentos dos registros rupestres,

também foram ali centralizados inicialmente, sendo posteriormente expandidos para as

serras quartzíticas, a leste e a oeste da planície23 (Figura 7).

Figura 7: Delimitação da área de abrangência do Projeto Central.24

Nessa área abarcada pelo Projeto há uma grande profusão de registros rupestres,

especialmente no que toca as representações celestes, tornando essa região um local

22 Cf.: BELTRÃO, Maria. O projeto Central. In: BOAVENTURA, Edivaldo (Org.) Maria Beltrão e a

Arqueologia na Bahia: o projeto Central. Salvador: Quarteto, 2014. p.41. 23<http://www.mariabeltrao.com.br/portfolio-item/pesquisas-arqueologicas-no-interior-do-estado-da-

bahia/> (acesso em outubro de 2016). 24http://www.projetocentral.com/historico-de-criacao/

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propício para a pesquisa de representações associadas a eventos astronômicos. Nela

podemos identificar diversas representações que podem ser interpretadas como cometas,

representações de ciclos temporais, como as fases da Lua e o movimento anual e do Sol,

agrupamentos de asterismos que parecem indicar agrupamentos de estrelas e um

provável local de observação do solstício de junho. Isto pode ser encontrado em

extensos painéis em cânions ou dentro de tocas.

Para que possamos avaliar com confiabilidade o conhecimento astronômico de

diferentes grupos humanos no Brasil pelas representações encontradas na arte rupestre,

é fundamental que um levantamento das representações astronômicas nas diversas

regiões brasileiras seja feito. Somente com um trabalho extenso e meticuloso será

possível termos um panorama geral da distribuição dessas representações. A partir

dessas informações, agrupar as imagens e correlacioná-las a fim de encontrar um padrão

que possa ser definido e comparado a imagens que tenha a sua interpretação bem

conhecida e embasada, sempre que possível, em documentação, escrita ou mesmo oral.

Não podermos, ainda na maioria dos casos, garantir a intenção dos povos que

produziram determinadas representações, mas isso não nos impede de especular,

baseados em informações colhidas de outras culturas ágrafas as intenções por trás de

representações que nos parecem estar associadas a eventos celestes. Ao contrário, é na

verdade um estímulo de exercício comparativo e analógico.

Nesse sentido, propomos interpretar, de forma comparativa com a representação

rupestre em Chaco Canyon (Figura 5), a representação encontrada na região do Projeto

Central conhecida como Fonte Grande I em imagem obtida em 1989 (Figura 8) como

sendo também uma representação da SN 1054. A imagem mostra notável semelhança

com a representação atribuída aos Anasazi. Infelizmente ainda não temos como fazer

uma datação direta da representação feita na Bahia, mas a semelhança entre as duas

pinturas nos parece evidente. Este tipo de comparação e associação pode, inclusive

servir como um modo de datação indireta não só para uma representação, mas de um

sítio inteiro.

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Figura 8: representação encontrada na região do Projeto Central conhecida como Fonte

Grande I em imagem obtida em 1989 (foto do autor).

A ideia deste trabalho não é chegar a uma conclusão fechada sobre um assunto

que tem se mostrado tão controverso, mas sim despertar o interesse em uma ciência que

é relativamente nova, e que no Brasil tem sido relegada a poucos trabalhos acadêmicos.

A área da agora definida como Astronomia Cultural tem um forte apelo inter e

transdisciplinar, e tem crescido de forma muito consistente, principalmente na América

Latina. Certamente que no caso do Brasil este trabalho é mais difícil que em outros

países que abrigaram culturas mais avançadas tecnologicamente, mas é também um dos

locais com a maior concentração (se não o maior) de pinturas e gravações rupestres do

planeta. O desafio está aí para quem ficou interessado.

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Referências

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