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A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia, estruturas de apoio à vítima e empoderamento
Ricardo Manuel da Costa Gouveia
M2017
Ricardo Manuel da Costa Gouveia
A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia,
estruturas de apoio à vítima e empoderamento
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Sociologia orientada pela Professora
Doutora Maria Isabel Correia Dias
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
setembro de 2017
A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia,
estruturas de apoio à vítima e empoderamento
Ricardo Manuel da Costa Gouveia
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Sociologia orientada pela Professora
Doutora Maria Isabel Correia Dias
Membros do Júri
Professor Doutor Carlos Gonçalves
Faculdade de Letras – Universidade do Porto
Professora Doutora Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti
Universidade Católica do Salvador (Brasil)
Professora Doutora Maria Isabel Correia Dias
Faculdade de Letras – Universidade do Porto
Classificação obtida: 17 valores
Sumário
Agradecimentos.................................................................................................................8Resumo..............................................................................................................................9Abstract............................................................................................................................10Índice de tabelas..............................................................................................................11Lista de abreviaturas e siglas...........................................................................................12Introdução......................................................................................................................13Capítulo 1 – Violência Doméstica: da contextualização histórica à abordagem sociológica.......................................................................................................................17
1.1. Violência na família..............................................................................................171.2. A violência doméstica como um problema sociológico.......................................201.3. A construção do género........................................................................................231.4. Definição de conceitos..........................................................................................30
Capítulo 2. – A violência doméstica: caracterização socio-legal e estatística..........332.1. A violência doméstica em Portugal – evolução legal do crime............................332.2. Os principais intervenientes no processo de denúncia do crime..........................37 2.2.1. Os órgãos de polícia criminal.......................................................................37 2.2.2. O Ministério Público.....................................................................................39 2.2.3. O Juiz............................................................................................................40 2.2.4. A Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica..................402.3. O Processo de denúncia no crime de violência doméstica...................................422.4. Breve referência estatística - Contexto nacional..................................................43 2.5. Breve referência estatística – Contexto local........................................................46
Capítulo 3. – Abordagem metodológica e análise das entrevistas.............................503.1. Metodologia..........................................................................................................503.2. A identificação das instituições............................................................................523.3. Análise das entrevistas..........................................................................................55
3.3.1. O início da relação – o período de namoro...........................................553.3.2. Viver juntos – o início da violência e estratégias de sobrevivência.....583.3.3. Lua de mel – a continuação das agressões............................................633.3.4. A denúncia do crime.............................................................................663.3.5. Reação do agressor à denúncia do crime .............................................70
3.3.6. A separação do agressor.......................................................................733.3.7. Uma nova vida?....................................................................................753.3.8. Avaliação do processo de denúncia......................................................82
3.4. O empoderamento das vítimas de violência doméstica........................................88Conclusão.......................................................................................................................95Referências bibliográficas.............................................................................................99ANEXOS......................................................................................................................110
Anexo 1 – Caracterização dos intervenientes nas ocorrências de violência doméstica....................................................................................................................111
Anexo 2 – Art.º 152º Violência Doméstica.......................................................112Anexo 3 – Ficha de Avaliação de Risco............................................................113Anexo 4 - Profissão das vítimas de acordo com a Classificação Portuguesa das
Profissões....................................................................................................................114Anexo 5 - Tipo de violência denunciada pelas vítimas (2015/2016)................115Anexo 6 – Tipos de crimes mais participados (2015/2016)..............................116Anexo 7 – Análise da categoria de crimes contra as pessoas (2016)................117Anexo 8 – Taxa de feminização da vítima segundo a tipologia de vitimação
(2016)..........................................................................................................................118Anexo 9 – Grau de parentesco entre a vítima e o denunciado (2016)...............119Anexo 10 – Deluth Model.................................................................................120Anexo 11 - Guião de entrevista - Vítimas de Violência Doméstica..................121Anexo 12 – Guião de entrevista - Técnicos de Intervenção Social...................122Anexo 13 – Guião de entrevista - Advogada.....................................................123Anexo 14 – Guião de entrevista - Graduado da PSP........................................124
Agradecimentos
Quero deixar um agradecimento especial às vítimas que tiveram a amabilidade e a
confiança de partilhar comigo as suas vidas.
Agradeço também aos técnicos das várias instituições, parceiros valiosos com
quem trabalho diariamente, que gentilmente me concederam entrevistas enriquecedoras
onde foi possível trocar experiências profissionais e novas aprendizagens.
Agradeço à minha orientadora, Professora Doutora Isabel Dias, pela sua
orientação nesta investigação.
Agradeço e peço desculpa à Isabel e ao João pelo tempo que estive ausente, mas
fica a promessa que muito em breve o vamos recuperar.
8
Resumo
Esta investigação pretende perceber a implicação da denúncia do crime de
violência doméstica no fim do ciclo de violência em relações de intimidade abusivas,
bem como estudar o impacto da ausência de uma estrutura especializada no atendimento
a estas vítimas no seu processo de empoderamento. O nosso trabalho foi desenvolvido
no concelho de Santo Tirso, onde entrevistamos onzes vítimas de violência doméstica,
seis técnicas de intervenção social, uma advogada e um elemento da Polícia de
Segurança Pública. Seguindo uma abordagem qualitativa, procuramos interpretar os
resultados obtidos através da análise de conteúdo das entrevistas. Constatamos que,
apesar do aumento da violência nos momentos posteriores à denúncia, e, quando
aconteceu, após a separação do agressor, a queixa é decisiva para terminar com o ciclo
da violência. Por sua vez, a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima dificulta o
processo de empoderamento das vítimas que, após a saída da relação abusiva, não
encontram respostas para os problemas que resultam da separação do agressor. Esta
investigação vem assim confirmar o impacto positivo da denúncia do crime no fim do
ciclo da violência, bem como a necessidade da criação de uma estrutura de apoio à
vítima no concelho uma vez que a sua inexistência foi identificada por todos como uma
lacuna que importa colmatar.
Palavras-chave: Violência Doméstica, Denúncia do crime, Empoderamento.
9
Abstract
This research aimed at understanding the effect of the denunciation of the crime of
domestic violence in ending the cycle of violence within abusive intimate relationships.
It also intended to analyse the impact of the lack of a specialised structure to care for the
victims on their empowerment. Our work took place in the county of Santo Tirso where
we interviewed eleven victims of domestic violence, six social intervention technicians,
one lawyer and one Police Officer. Following a qualitative approach, results were
interpreted based on a content analysis of those interviews. We concluded that in spite
of an increase of violence after the complaint and whenever the separation from the
aggressor took place this is a decisive step to end the cycle of violence. On the other
hand, the absence of a victim support structure complicates the process of
empowerment of the victims who, after leaving an abusive relationship, cannot find
answers to the problems resulting from their separation from the aggressor. As such,
this research confirms the positive impact of the denunciation of the crime in ending the
violence cycle, as well as the importance of setting up a victim support structure in the
county since its absence has been unanimously identified as a problem that needs to be
addressed.
Keywords: Domestic violence, Criminal Complaint, Empowerment.
10
Índice de tabelas
Tabela 1 – Estratégias para o empoderamento de vítimas de violência doméstica nos
níveis Intrapessoal, Interpessoal e Institucional..............................................................93
Tabela 2 – Passos e níveis para o empoderamento: Declarações de uma vítima ...........95
11
Lista de abreviaturas e siglas
APAV – Associação de Apoio à Vítima
APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas
ASAS – Associação de Solidariedade e Ação Social de Santo Tirso
CIG – Comissão para a Igualdade de Género
CMST – Câmara Municipal de Santo Tirso
EPAV – Equipa de Apoio à Vítima
EPES – Equipa Projeto Escola Segura
FS – Forças de Segurança
GAS – Gabinete de Ação Social do ASAS
GNR – Guarda Nacional Republicana
LNES – Linha Nacional de Emergência Social
MAI – Ministério da Administração Interna
NLIS – Núcleo Local de Inserção Social de Santo Tirso
PSP – Polícia de Segurança Pública
RASI – Relatório Anual de Segurança Interna
ISCMST – Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santo Tirso
UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta
VRI – Violência nas Relações de Intimidade
12
Introdução
A violência doméstica é um assunto que diariamente nos interpela e que, apesar
do trabalho que tem sido desenvolvido nas últimas décadas quer pelos sucessivos
Governos, quer por várias organizações relacionadas com este fenómeno, continuamos a
assistir quase diariamente à difusão de notícias trágicas, envolvendo sobretudo
mulheres, divulgadas pelos órgãos de comunicação social. De acordo com relatórios
estatísticos dos últimos anos, o número de participações criminais tem-se mantido
relativamente estável, continuando a verificar-se milhares de crimes em cada ano,
apesar de todas as campanhas de sensibilização que são realizadas anualmente pelas
várias associações de apoio à vítima e Forças de Segurança, estas últimas, através dos
seus programas de proximidade que anualmente desenvolvem milhares de ações de
sensibilização sobre o tema nas escolas em todo o país.
Parece-nos, de certa forma evidente, que a sensibilização dos cidadãos, a
formação dos intervenientes no processo e o investimento legislativo que se verificou
nos últimos anos, pode explicar, em certa medida, esta visibilidade do fenómeno da
violência doméstica. Contudo, os profissionais que lidam diariamente com este
problema, entre os quais, o autor desta investigação1, sentem, por vezes, algum
desalento por lhes parecer que o seu trabalho não está a dar os resultados esperados,
sendo um bom exemplo deste aparente insucesso, a violência manifestada nas relações
de namoro que registou nos últimos anos um aumento do número de participações. Se
este incremento pode, por um lado, refletir algumas alterações legislativas que
clarificaram o conceito de “namoro” e a crescente visibilidade pública do fenómeno, por
outro, sentimos no contacto diário que mantemos com os jovens e em várias ações de
sensibilização que realizamos sobre o tema nas escolas do concelho, uma normalização
generalizada de alguns comportamentos violentos logo no início das relações afetivas
que, como demonstraremos ao longo deste trabalho, podem ser preditores de violência
nas relações afetivas no futuro.
1 O autor deste trabalho é Agente da PSP na Esquadra de Santo Tirso e presta serviço no Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade (MIPP), mais especificamente, no Programa Escola Segura (PES) e Apoio à Vítima (EPAV).
13
O trabalho que desenvolvemos com vítimas de violência doméstica passa, umas
vezes pelo recebimento da denúncia e posterior avaliação do risco inerente à sua
situação perante o agressor, outras, apenas pela avaliação do risco uma vez que a
denúncia já foi realizada no local do crime ou na Esquadra. Apesar de a legislação em
vigor prever um conjunto de medidas de proteção à vítima que podem ser acionadas
quase de imediato quer pelos agentes que tomam conhecimento do crime, quer pelo
Tribunal, a realidade é que, por diversas razões, algumas das quais abordadas neste
trabalho, a vítima deposita muitas vezes a sua confiança nas Forças de Segurança a
quem denuncia o crime e acaba por abandonar o posto policial mais desprotegida do que
quando ali entrou, por um lado, pelo risco de ter denunciado o agressor, por outro, pela
complexidade do processo que terá que enfrentar. O nosso trabalho vai centrar-se nestas
denúncias efetuadas na PSP de Santo Tirso, por vítimas residentes no concelho.
Como veremos existem várias razões que explicam a continuação da relação
afetiva após uma agressão ou mesmo depois da denúncia do crime. Da nossa
experiência, sentimos que na maior parte dos casos, as denúncias resultam mais de atos
de desespero e pedidos de ajuda em situações limite, do que de ações devidamente
planeadas e com a antecipação de como resolver questões emergentes do processo que
vai ser desencadeado pela queixa-crime. Esta preparação prévia pretende dotar a vítima
de ferramentas que lhe permitam enfrentar o processo judicial e promover o seu
empoderamento para abandonar a relação abusiva. Atualmente, no concelho de Santo
Tirso, não existe qualquer estrutura especializada no atendimento a vítimas de violência
doméstica pelo que muitas vezes sentimos falta de uma estrutura com estas
características para lhes oferecer um apoio e um conforto que não nos cabe atribuir,
dada a inerência das nossas funções.
Neste trabalho pretendemos perceber a relação entre o processo desencadeado
pela denúncia do crime no fim do ciclo da violência, bem como as consequências da
inexistência de uma estrutura especializada de apoio à vítima no concelho de Santo
Tirso no processo de empoderamento das vítimas. Para isso, entrevistamos onze
mulheres que denunciaram o crime na PSP desta cidade, assim como vários
14
profissionais que lidam com este fenómeno no âmbito das suas competências nas várias
organizações de cariz social do concelho.
No que concerne à sua estrutura, a presente tese encontra-se organizada em 3
capítulos, seguidos de uma conclusão, das referências bibliográficas e alguns anexos.
Assim, no capítulo I dissertamos sobre o fenómeno da violência no seio da família e
como de um problema social se transformou num problema sociológico. Daqui
emergiram várias teorias, salientando-se a corrente feminista que atribui esta violência a
uma sociedade marcadamente patriarcal que subalterniza as mulheres e lhes confere um
papel menor na sociedade. Neste contexto importa entender o conceito de género e
explicar a relação entre este e a violência conjugal que afeta maioritariamente as
mulheres. Com a evolução dos estudos nesta área foram surgindo vários conceitos que
clarificaram determinadas definições como a de “violência doméstica” ou “violência de
género”, as quais serão também abordadas neste capítulo.
No capítulo II fazemos uma breve abordagem a algumas questões de índole
jurídica sobre a evolução do crime de violência doméstica em Portugal e traçamos uma
linha temporal onde podemos observar as alterações legislativas que foram produzidas
ao longo das últimas décadas. De seguida, explicamos o trabalho que é desenvolvido
por algumas das principais instituições intervenientes num processo-crime de violência
doméstica e descrevemos, de forma sucinta, o decorrer deste processo. Ainda neste
capítulo, recordamos alguns dados estatísticos sobre a prevalência do ilícito criminal no
contexto nacional, através da informação que é disponibilizada anualmente pela
Secretaria Geral do MAI, por via do Relatório Anual de Segurança Interna, e
relacionamos essa informação com os dados do concelho de Santo Tirso, recolhidos
pela divisão de ação social do município.
No capítulo III apresentamos as estratégias metodológicas e as técnicas de
investigação utilizadas, a par dos objetivos que nos propomos atingir com a realização
deste trabalho. Como já dissemos, entrevistamos vários profissionais que trabalham em
instituições do concelho diretamente relacionadas com o apoio social. Nesta parte,
fazemos uma breve descrição de cada uma delas e do trabalho que desenvolvem na
cidade. De seguida, analisamos as entrevistas que realizamos e que decidimos dividir
15
em períodos-chave, tendo como base teórica o ciclo da violência doméstica: o início da
relação, onde analisamos a fase inicial da relação afetiva e a existência, ou não, de
comportamentos preditores de violência. De seguida, tratamos do período em que
tiveram início os comportamentos violentos e tentando-se perceber, por um lado, que
estratégias foram usadas pelas vítimas para suportar a relação e, por outro, que motivos
as levaram a não abandonar o agressor. Na fase seguinte, por norma, a da lua-de-mel,
descrevemos o comportamento do agressor e as estratégias que este utiliza para coagir e
ludibriar a vítima a manter-se na relação.
Um momento marcante na relação abusiva, pela importância que pode ter no fim
do ciclo da violência, é o momento da denúncia do crime. Nesta fase, percebemos
muitas vezes que a sua vontade quando apresentam queixa passa simplesmente por
desejar que o seu sofrimento termine, depositando em meia dúzia de folhas a esperança
do fim do seu tormento. Contudo, como veremos, raramente isso acontece. Importa, por
isso, perceber os motivos que as levaram a efetivar a denúncia, qual a sua reação e que
avaliação fazem de todo o processo, desde que ele foi iniciado até à sua conclusão. A
maior parte das vítimas entrevistadas não abandonaram de imediato o agressor após a
denúncia do crime. Em alguns casos, voltaram para as suas casas e coabitaram com os
agressores durante algumas semanas ou meses. No entanto, com a exceção de um caso,
que explicaremos mais tarde, todas abandonam os agressores. Desta forma,
pretendemos saber o que aconteceu após esta separação e se a ausência de estruturas de
apoio à vítima no concelho influenciou o seu processo de empoderamento.
Na conclusão deste trabalho fazemos uma síntese da nossa investigação e
apresentamos os resultados obtidos, assim como algumas propostas de trabalho que
consideramos serem importantes implementar no concelho, mas também para melhorar
o atendimento na Esquadra da PSP, uma vez que é esta a nossa área de atuação pela
inerência das nossas funções.
16
Capítulo 1 – Violência Doméstica: da contextualização
histórica à abordagem sociológica
1.1. Violência na família
A violência no seio da família não é um fenómeno recente, sendo conhecidos
relatos de práticas conjugais violentas desde que praticamente se conhecem registos da
civilização humana. De acordo com as teorias feministas emergentes na década de 60 do
séc. XX, estas práticas resultaram do papel central do homem na organização social que
lhe conferiu um poder quase absoluto sobre as mulheres que as relegou para funções
subalternas e menos relevantes socialmente (Anderson e Umberson, 2001). Aristóteles
numa reflexão sobre a organização da cidade refere-se às diferenças existentes entre
homens e mulheres afirmando que os homens tinham o dever de ditar “a lei aos filhos e
às mulheres” (Aristóteles, 1998 [trad. Amaral e Gomes], p. 53). Apesar de diferenciar o
tratamento que o homem deveria dar à mulher (cidadã) e aos filhos (súbditos), era
utilizado o argumento biológico para a distinção de funções entre os sexos, afirmando
que o homem estaria mais predisposto para mandar do que a mulher, existindo como
que uma hierarquização natural de um face ao outro. Se recuarmos aos tempos da Roma
Antiga, como recorda Thompson (2006, p. 6), de acordo como o princípio Patria
Potestae o homem tinha o poder/direito de castigar severamente a sua esposa pelo crime
de drunkness ou, em caso de adultério, a matar. No entanto, se fosse o homem a cometer
a infidelidade, a mulher não teria o mesmo direito.
Entre os séculos XIII e XVIII através da influência crescente do direito romano
verificou-se um aumento da subordinação da mulher ao marido (Lebrun, 1983;
Flandrin, 1995; Oliveira e Oliveira, 2011) que a viria a tornar juridicamente incapaz não
podendo gerir os seus bens, intentar uma ação em tribunal sem a sua autorização ou
mesmo prestar qualquer depoimento naquela instância. Em caso de adultério o marido
podia pedir a separação da mulher, sendo o contrário impossível. Esta subalternação da
mulher viria a ser justificada por alguns moralistas dos séculos seguintes como resultado
17
da sua fisionomia (o sexo fraco), de acordo com argumentos bíblicos2 e com a
necessidade desta se reservar em exclusivo às tarefas domésticas3, ocorrendo uma
“domesticação da mulher” (Oliveira e Oliveira, 2011, p.307).
Durante o Antigo Regime, na família tradicional, o homem continuou a manter a
sua posição dominante adquirindo através do casamento a posição de chefe de família
que lhe conferia um poder sobranceiro sobre todos os restantes elementos do agregado
familiar (Lebrun, 1983). Depois de casar, a mulher era transferida de propriedade do seu
pai para o seu marido que, até à sua morte, dada a indissolubilidade do casamento, era o
seu dono. Shorter (1995) recorda que neste período a taxa de mortalidade era muito
elevada e que a sexualidade, para a mulher, se resumia exclusivamente ao dever de
procriar4. Como refere o autor, “os papéis da esposa eram todos subservientes […] o
marido deveria assumir o papel ativo, a mulher, o papel passivo” (Idem, p. 81),
esperando-se que os homens fossem “dominadores, aterradores na sua autoridade
patriarcal, egoístas, brutais e nada sentimentais; as mulheres deviam ser leais,
apagadas e submissas” (Idem, Ibidem, p. 88).
Na Gália do séc. XV dizia-se, “mulher que fala como o homem e a galinha que
canta como o galo não prestam para guardar […] Bom cavalo ou mau cavalo precisa
de espora. Boa mulher ou má mulher precisa de pau” (Meurier cit. Flandrin, 1995, p.
133). Mais tarde, na França oitocentista o papel da mulher era reproduzido em
provérbios populares: “Mort de femme et vie de cheval font l`homme riche […] Deuil de
femme morte dure jusq`à la porte” 5 (Lebrun cit. Shorter, 1997: p. 67), recordando os
autores o domínio dos homens sobre as mulheres a quem podiam bater e castigar, na
maior parte dos casos, desde que não lhes causassem a morte.
Se nas famílias tradicionais os afetos parecem ter ficado ausentes, “na família
moderna o amor e a felicidade tornam-se centrais […] triunfa a lógica do sentimento” 2 Epístola de S. Paulo aos Efésios (5,22 a 6,9) “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor”, “Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo.”; “De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.” 3 Apesar de nas classes populares a mulher também executar tarefas fora de casa, mas claramente definidas como as menos exigentes fisicamente.4 Ao contrário dos homens para quem os rituais iniciais da sexualidade eram socialmente aceites, sendo frequente o recurso à prostituição.5 “Morte de mulher e vida de cavalo tornam o homem rico. […] Luto por mulher morta, dura até à porta”.
18
(Dias, 2004a, pp. 45-46). Começando nas classes superiores e mais tarde passando para
as classes populares, a família moderna centra em si o ideal de felicidade e realização
pessoal (Vaquinhas, 2011). No entanto, a mulher permanece dentro de casa e tem como
principais funções o cuidado do lar e dos filhos. Apesar de este modelo ser
caracterizado por um ideal de harmonia e segurança, apresentava também focos de
tensão entre o que realmente se esperava e o que realmente acontecia, nomeadamente a
violência que era exercida contra as mulheres e crianças e a expetativa social que
relegava para a esfera privada a resolução dessas questões.
Nesta época, o casamento torna-se central na organização familiar, ocorrendo uma
apologia ao casamento sendo o matrimónio encarado por muitas mulheres como a
independência dos pais e o único caminho para a sua liberdade (Dias, 2004a).
Vaquinhas (2011) diz-nos que o séc. XIX é visto como o século da vida privada em que
a família se fecha sobre si própria, passando simultaneamente o homem a pertencer a
esfera pública e a mulher ao privado e ao recato do lar6, passando a casa a ser uma
espécie “de muro da vida privada” (Cascão, 2011, p.21), que ocultava tudo o que no seu
interior acontecia. Esta proteção socialmente aceite, quer pelo papel atribuído às
mulheres (e crianças), quer pela moral judaico-cristã que reforçava esta visão do mundo
contribuiu de forma indelével para o perpetuar da violência ocultando-a da esfera
pública, levando a que fosse tratada como um assunto de exclusiva responsabilidade do
casal.
Até aos anos 60 do séc. XX a família parecia estar estabilizada dada as raras
ruturas familiares e a demarcação claramente hierarquizada e definida dos papéis de
género (Leandro, 2001). Contudo, com o surgimento da segunda vaga feminista,
sobretudo nos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, aliada à luta pela igualdade
de direitos, associa-se a denúncia da violência cometida no seio da família contra as
mulheres, transportando para a esfera pública uma questão que até então permanecia
encerrada no lar.
6 Segundo a autora, no período oitocentista reforça-se a posição determinista da divisão sexual em torno das diferenças biológicas. A mulher incumpridora da ocupação do seu espaço no interior do lar era acusada de “mulher pública”, e conotada com práticas associadas à prostituição.
19
1.2. A violência doméstica como um problema sociológico
Numa pesquisa realizada em 1971 por O´Brian (1971) no índice do Journal of
Marriage, verificou-se que entre 1939 e 1969 em nenhum título deste periódico
constava a palavra “violência”. Neste período, como refere Gelles (1980), as raras
investigações existentes no âmbito da violência no seio da família, reportavam-se aos
abusos sobre as crianças, sendo a sua principal explicação para a violência cometida
pelos agressores, a sua psicopatologia, excluindo-se nesse período qualquer aspeto de
índole social. Nesta fase, houve também alguma dificuldade em definir a “violência
legítima” da “violência ilegítima” no seio da família, justamente devido à perceção que
existia sobre o modelo ideal de família, onde o homem, em determinadas situações, teria
o dever de punir a sua mulher por práticas consideradas contrárias ao modelo social
idealizado (Idem, Ibidem, p. 875).
De uma forma sucinta Gelles (1980) afirma que as pesquisas realizadas nos anos
70 do mesmo século sobre violência doméstica se centravam em três questões
fundamentais: 1) fazer uma estimativa fiável do número de casos existentes; 2)
identificar os fatores associados aos vários tipos de violência existente no lar; 3)
desenvolver modelos teóricos das causas da violência na família. Do ponto de vista
teórico surgem também três abordagens: a intraindividual ou psiquiátrica, que focava o
problema nas características psicológicas do indivíduo (e.g. a violência era causada por
doença mental ou devido ao consumo excessivo de substancias aditivas); o modelo
psicossocial que atendia já ao ambiente externo da família e relacionava-o com as
causas da violência, observando-se, por exemplo, a ocorrência passada de episódios de
violência ou outros fatores de stress, e o modelo sociocultural, onde se assumia que a
violência era o resultado de tensões produzidas por uma sociedade desigual e
estruturada.
Neste período o movimento feminista, sobretudo nos Estados Unidos da
América e na Grã-Bretanha, defende que a violência contra as mulheres resulta da
dominação masculina mantida por uma sociedade patriarcal cujos pilares dessa
existência assentavam justamente na violência cometida contra as mulheres (Anderson e
Umberson, 2001). Em 1974 é publicada a primeira obra em que este problema é
20
abordado de uma forma clara (Pizzey, 1974) tendo a sua divulgação tido uma forte
influência em várias organizações feministas7. Num período em que as investigações
sobre a violência contra as crianças se encontrava em crescimento, tendo para isso
contribuído a publicação de Kempe (et al. 1962), onde se estudaram e denunciaram os
abusos cometidos sobre as crianças em consultas hospitalares, a investigação sobre a
violência contra as mulheres foi sendo impulsionada por outras publicações que surgem
alguns anos depois (Martin, 1976; Dobash e Dobash; 1979). Da “síndroma da criança
batida” surge posteriormente a “síndroma da mulher batida” que se definiu como um
“conjunto de sintomas psicológicos, normalmente transitórios, que são frequentemente
observados, num padrão reconhecível e específico, em mulheres que afirmam terem
sido física, sexual e/ou psicologicamente maltratadas de uma forma grave pelos seus
parceiros masculinos” (Walker, 1993, p.135).
Em 1978 é publicado um artigo que defende a bidirecionalidade da violência entre
parceiros, ou seja, a violência praticada entre cônjuges é simétrica quanto à sua natureza
e intensidade (Steinmetz,1978). Este trabalho foi amplamente criticado pelos
movimentos feministas e pelos investigadores que defendiam que a violência é
assimétrica e que resulta da dominação masculina emergente de uma sociedade
patriarcal. Desta forma, passamos a ter duas abordagens teóricas distintas: a feminist
perspective sustentada por metodologias qualitativas e que centram o seu estudo na
violência cometida contra as mulheres, tendo como causa fundamental a sociedade
patriarcal8 e a consequente dominação masculina e, por outro, a family violence
perspective que investiga a violência que ocorre em contexto familiar e que não centra a
atenção na mulher vítima, mas em qualquer elemento da família sobre o qual ocorram
episódios de violência (Casimiro, 2008).
7 Em 1971 Erin Pizzey organiza em Chiswick um dos primeiros espaços para acolhimento de mulheres vítimas de violência. Com a publicação deste livro são denunciados publicamente vários episódios de violência contra as mulheres através de cartas recebidas pela autora, onde as vítimas narram a sua experiência de abusos. Mais tarde seria também disponibilizado um documentário televisivo, sobre o mesmo tema (http://player.bfi.org.uk/film/watch-scream-quietly-or-the-neighbours-will-hear-1974/).8 Outra das críticas atribuídas a esta investigação resultou do uso das Conflit Tactic Scales (C.T.S.) e ao enviesamento do resultado A CTS foi criada por Straus (1979) nos EUA e consistia numa série de questões que eram colocadas ao casal sobre como resolveriam os seus conflitos sendo medida em três vertentes: discussão racional e argumentação; agressão verbal; a violência. Um dos problemas prende-se com o tipo de respostas fechadas colocadas.
21
Estamos de acordo com Johnson (1995), quando o autor alerta para a necessidade
de distinguir-mos estes dois tipos de violência, uma vez que nos estudos onde se
defende a bidirecionalidade destas práticas, por norma, referem-se ao que o autor define
como “common couple violence”, ou seja, práticas violentas menos severas9 que podem
ser cometidas por ambos os parceiros e que, sendo ocasional, não provoca na vítima
consequências tão graves como nos casos em que ocorre o “patriarchal terrorism”,
caracterizado por agressões severas, com efeitos mais gravosos e duráveis nas vítimas10.
Nestes casos, a violência é cometida sobretudo por homens que pretendem controlar,
dominar as suas vítimas e mantê-las na relação afetiva, sendo este o tipo de violência a
que se referem geralmente os meios de comunicação social, os tribunais, hospitais e
forças de segurança, quando se referem a esse conceito (Idem, Ibidem).
No mesmo sentido, Anderson (2005) argumenta que o investigador deve clarificar
os seus princípios teóricos que sustentam a sua análise da violência conjugal uma vez
que esta pode condicionar/direcionar o resultado da sua investigação. Assim, define três
tipos de abordagens: 1) individualista, que parte do princípio que a violência é, em
parte, herdada geneticamente e adquirida através da socialização; 2) estruturalista, onde
o género existe de uma forma independente dos indivíduos e eles inserem-se nessa
estrutura e assumem os seus papéis sociais. O género, neste caso, é uma estrutura que
contém em si homens e mulheres que per si não são violentos. No entanto, na sociedade
há diferentes oportunidades11 e recompensas para cada um dos indivíduos, decorrendo
daí uma desigualdade que potencia comportamentos diversos (como a violência) para a
obtenção de determinados benefícios; 3) interacionista, que surge para contrariar a
posição individualista explicando que o género resulta das interações entre os sujeitos e
não de qualquer passado genético. Nesta abordagem teórica, a violência é um meio
através do qual o agressor afirma e impõe o seu poder. De acordo com esta perspetiva, o
género é também construído através de práticas de violência contra as mulheres, na
medida em que estas reforçam a sua masculinidade, como veremos mais à frente.9 Por exemplo insultos verbais. O autor afirma que apesar de ser comum e não ter como objetivo o controlo do parceiro, pode, em alguns casos, apresentar alguma gravidade.10 O autor veio mais tarde rever o conceito de patriarchal terrorism passando a denomina-lo de intimate terrorism.11 Se os homens recebem encorajamentos para o uso da força (ex. através dos filmes, publicidade, …), as raparigas são incentivadas a tratar de temas menos violentos (ex. brincar com bonecas, princesas, etc.).
22
Dada a expressividade dos dados no que diz respeito ao género dos agressores de
violência doméstica em Portugal (Anexo 1), entendemos ser pertinente a utilização do
conceito de intimate partner violence (Johnson, 2005) para definir o tipo de violência a
que nos referimos. Desta forma, e de acordo com esta definição, é para nós claro que a
violência doméstica participada às Forças de Segurança é assimétrica.
1.3. A construção do género
Por que é que os homens agridem as mulheres em contexto de intimidade? As
explicações desta realidade variam de acordo com a abordagem teórica que sustenta a
argumentação. Dado o nosso objeto de estudo e problemática, sobre os quais nos vamos
debruçar mais adiante, vamos fundamentar a nossa pesquisa seguindo uma abordagem
que atribui a génese da violência contra às mulheres a um modelo de sociedade que
constrói a identidade de género que favorece práticas que legitimam a dominação
masculina (Anderson, 2005).
Laqueur (1990, p.21) recorda que as diferenças de género são uma “invenção”
do séc. XVIII na medida em que até esse período apenas existia um género: o
masculino, pois a fêmea era encarada como um macho incompleto. Com o início dos
estudos de género, percebeu-se que “o determinismo biológico não é suficiente para
compreender a variedade de modos de ser que se encontram entre homens e mulheres,
nem a diversidade de configurações que as relações entre homens e mulheres assumem
em diferentes contextos sociais” (Amâncio, 2004, p. 9). Neste período, do ponto de vista
académico, as investigadoras tentaram contrariar uma tendência que, de acordo com os
papéis sexuais de cada um dos sexos, atribuía aos homens um lugar de destaque nas
famílias, dado o seu papel de bread winners, responsáveis pela subsistência da família, e
à mulher o garante da harmonia e bem-estar emocionais (Idem, Ibidem). Até este
período, a ciência tinha sido dominada por homens tendo as feministas percebido que o
conhecimento científico estava enviesado por uma visão androcêntrica do mundo social.
Nos anos 60 do século XX, emerge um novo conceito que pretendeu separar o sexo
biológico do sexo “social”, o género (Crawford, 1995). O género começou por ser
definido como um conjunto de características inatas e estáveis que estavam associadas a
23
cada um dos sexos. Nesta perspetiva essencialista, esta categoria era caracterizada como
“uma propriedade estável, inata e bipolar de diferenciação sexual, tendo um carater
eminentemente determinista” (Nogueira, 2001, p. 140).
Como explica a autora, esta estabilidade e imutabilidade do género, muito
associada ainda a um posicionamento positivista e determinista da ciência, foi criticada
por uma outra perspetiva teórica que defendia que o género não era determinado por
características biológicas, mas por constrangimentos sociais e culturais que eram
apreendidos através da socialização. Segundo a perspetiva empiricista, desde a
nascença, as crianças aprendem a comportar-se de acordo com o que a sociedade espera
de cada uma delas e que se comportem de acordo com o seu sexo. Esta nova perspetiva,
como defende Nogueira (2001), apesar de ter sido importante por ter permitido descolar
o género da biologia, “continua a definir o género em termos de diferença dicotómica”
(Idem, Ibidem, p. 141), uma vez que continuava a estar diretamente relacionada com
cada um dos géneros que seria, depois de interiorizado, estável e imutável, acabando no
entanto esta corrente teórica, por estar limitada, “à natureza dos seus conceitos,
sustentados por uma visão de mundo baseada em dualidades relacionadas com o
género” (Morawski, 1990).
Alguns anos mais tarde, Harding (1986) propõem uma nova perspetiva centrada
na compreensão da construção social das categorias apropriadas pelos sujeitos onde a
sua identidade deixa de ser estável e imutável e passa a ser entendida como constituída
por retalhos mutáveis que variam de acordo com as condições de apreensão dessas
mesmas categorias. Nogueira (2001) argumenta que esta perspetiva pós-moderna do
feminismo se distingue das restantes porque, “aceita a multiplicidade, a incoerência e o
paradoxo (…) Nega a aparente rigidez da linguagem sobre os significados
estabelecidos, e é céptica acerca da natureza fixa da realidade” (Idem, Ibidem,145).
Um dos aspetos relevantes da 2.ª vaga feminista foi a conquista de questionar a
divisão sexual do trabalho, a qual era até então explicada de acordo com argumentos
biológicos que limitavam a capacidade analítica do problema porque a questão se
centrava nas diferenças físicas, (evidentes) entre homens e mulheres. O que o
feminismo veio demonstrar é que essas diferenças (de género) não eram naturais, mas
24
artificialmente criadas por uma sociedade dominada por um modelo patriarcal que
protegia os homens em detrimento das mulheres12. Mais tarde, durante a década de 70,
juntar-se-iam outras mulheres que lutavam pelo direito a sentirem-se seguras no seio da
família, as “mulheres batidas”, passando a reclamar, “a denúncia da opressão das
mulheres, da sua exploração pelo homem, do androcentrismo e do patriarcalismo
passaram a estar no centro das lutas feministas” (Dias, 2015, p. 84).
Neste período, as feministas consideravam que a violência dos homens exercida
sobre as mulheres, resultava de uma sociedade patriarcal, “a social system in which
structural differences and in privilege, power and authority are invested in masculinity
and the cultural, economic and/or social positions of men” (Cranny-Francis et al., 2003,
p. 15), conceito adaptado da antropologia que o usou para definir sociedades em que o
poder e a autoridade estavam atribuídos ao homem mais velho do clã, devendo-lhes os
mais novos subserviência, onde as mulheres estavam excluídas do poder. Tal como
nesse período, a dominação masculina explicava o poder que os homens exerciam na
sociedade, quer na esfera privada (no seio da família), quer na esfera pública (no
trabalho, política ou cultura). A autora refere que, tal como no passado, onde as
mulheres se encontravam afastadas das decisões relevantes e do poder, exceto quando
isso servia os interesses da reprodução dessa ordem desigual13, tal ocorria nas
sociedades patriarcais “modernas”14.
Dias (2015) explica que dada a complexidade e pluridisciplinaridade do conceito
de género, este tem sido estudado por várias disciplinas e campos científicos como é o
caso da Sociologia. Antes de mais, importa distinguir o conceito de sexo, que diz
respeito às características biológicas dos indivíduos, do conceito de género. Este refere-
se às características socialmente adquiridas, portanto, variáveis de acordo com o
contexto onde se manifesta, “a feminilidade e a masculinidade são conceitos culturais e
12 Foi muito importante o contributo de Simone de Beauvoir que denunciou uma sociedade desigual onde as mulheres eram dominadas pelos homens “não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”.13 Exemplo das professoras primárias do Estado Novo a quem o Estado atribuía o poder de doutrinar os jovens na ideologia do regime (Gouveia, 2009).14 Este conceito (sociedade patriarcal) viria mais tarde a ser revisto devido à sua redutibilidade e ao facto de não conseguir explicar, por exemplo, o domínio de mulheres poderosas sobre homens com menos recursos (por não incluir variáveis como classe social, estatuto social, etc.). Hoje em dia é mais comum a utilização do conceito de masculinidade hegemónica para caracterizar um sistema social onde o poder do masculino se sobrepõe ao feminino.
25
como tal possuem significações flutuantes” (Idem, Ibidem, p. 78), como tal, “o género
não é um fenómeno que existe dentro dos indivíduos (…) pelo contrário, o género é um
acordo que existe nas interações sociais” (Nogueira, 2001, p. 56). Os papéis que cada
um dos géneros representam na sociedade decorrem de uma interiorização do que é
aprendido pelos indivíduos no seu processo de socialização e é justamente por haver um
desequilíbrio de oportunidades entre ambos que decorre a subordinação e
desvalorização das mulheres relativamente aos homens (Idem, Ibidem).
De acordo com Hare-Mustin e Marecek (1990) o conceito de género é uma
invenção com múltiplas facetas que possibilita a manutenção de representações sociais
distintas. Howard e Hollander (1997) defendem que da linguagem e da interação social
quotidiana contruímos a realidade, desta forma o género “é o significado que
concordamos imputar a determinada classe de transações entre indivíduos e contextos
ambientais” (Nogueira, 2001, p. 35). Assim, esta troca de interações é determinada pelo
contexto social, ela não é intrínseca aos indivíduos. Por outro lado, a ação ou o
comportamento dos géneros varia de acordo com o ambiente em que os mesmos se
encontram, podendo assim entender-se comportamentos não normativos dos papéis de
género como, por exemplo, o comportamento “masculinizado” das mulheres em
posições de liderança (Nogueira e Amâncio, 1996).
Esta classificação de género surge da necessidade que os indivíduos sentem,
logo desde a nascença, de se encaixarem nas categorias previamente definidas pela
sociedade, “esta identificação com a compreensão socialmente contruída de género,
guia o comportamento, dirigindo as pessoas a conformar-se com as expetativas
genderizadas e deste modo a fazer o género de uma forma compatível com a sua
construção num determinado contexto social” (Nogueira, 2001, p. 58). Numa sociedade
onde o masculino é mais valorizado do que o feminino, as mulheres acabam por ser
mais afetadas pelos efeitos de género do que os homens15. Ocorre assim um
questionamento sobre o feminino e sobre as reais capacidades das mulheres em
conseguir executar tarefas associadas normalmente aos homens (e.g. a perícia na
15 A autora refere alguns exemplos de linguagem exclusiva. Este tema foi abordado em alguns Planos Nacionais Conta a Violência Doméstica. Connell (1995) defende também que os modelos das sociedades ocidentais favorecem o posicionamento dos interesses da masculinidade através do patriarcado que é o garante desse domínio.
26
condução de veículos ou o exercício de determinadas tarefas), acabando, na realidade,
por haver uma divisão sexuada das profissões16.
Amâncio (2004) afirma que a masculinidade não se refere apenas aos homens
nem a feminilidade se refere apenas às mulheres, uma vez que ambos os conceitos
“constituem formas de pensar, dizer e fazer, socialmente construídas em diversos
planos da vida em sociedade” (Idem, Ibidem, p. 10). No mesmo sentido, Badinter
(1993) diz-nos que a masculinidade apenas faz sentido se a relacionarmos com a
feminilidade, pois, um conceito está, em certa medida, em oposição ao outro. Connell
(1996) afirma que das investigações já realizadas sobre a masculinidade se podem tirar
várias conclusões. Podemos afirmar que há vários conceitos de masculinidade que
variam de acordo com a cultura e com diferentes períodos da história. Contudo, ela
assume múltiplas definições que podem coexistir na mesma cultura e contexto temporal.
Como exemplo refere o conceito de masculinidade existente nas classes trabalhadoras e
nas classes socialmente mais favorecidas. Sabemos também que há uma hierarquia entre
essas masculinidades na medida em que nem todas assumem igual relevo social. Umas
são valorizadas, representadas por ideais de masculinidade, outras marginalizadas,
dependendo do contexto onde predominam17.
Apesar desta coexistência de masculinidades, há uma que é predominante e que
Connell (1996) denominou de “masculinidade hegemónica” que é aquela que assume
maior relevo e poder sobre as outras formas de masculinidade. Esta masculinidade pode
não ser maioritária, mas é dominante sobre as outras (masculinidades) e a própria
feminilidade, na medida em que representa uma expressão de privilégios dos homens
sobre as mulheres. O género é independente dos indivíduos e estes, através das suas
condutas, adaptam-se ao que consideram mais ajustado à sua identidade. No entanto,
quando essa conduta choca com os padrões da masculinidade hegemónica ou das
16 É frequente no ensino profissional a existência de turmas de determinadas áreas, como por exemplo mecânica ou eletrotecnia, exclusivamente frequentadas por rapazes e outras turmas, por exemplo de Termalismo, exclusivamente frequentadas por mulheres.17 Nas classes menos favorecidas, as figuras de cantores de música rap, como e.g. Tupak, são idealizados como ideais de masculinidade e os jovens tendem a seguir/imitar os comportamentos associados a essas personagens. O mesmo músico, para jovens de camadas sociais mais favorecidas, pode não ser relevante, tendo esses rapazes outros ideais mais de acordo com o seu contexto social.
27
instituições onde se inserem os sujeitos, é alvo de críticas18. A masculinidade
hegemónica manifesta-se de várias formas e oferece recompensas pela sua
manifestação. Por exemplo, o futebol é, apesar de algumas alterações recentes, um
desporto praticado por homens, exibindo como representante máximo o português
Cristiano Ronaldo. O jogador surge como modelo e expoente máximo do que deve ser
um desportista de sucesso, sendo muitas vezes apontado como o “futebolista perfeito”
cujo trabalho, dedicação, garra e espírito de sacrifício é recompensado com fama e
muito dinheiro. Este modelo de masculinidade contém muitas características do que
Connell (1996) define como traços que os rapazes pretendem alcançar e adquirir desde
cedo (modelos de masculinidade).
A masculinidade é também construída ativamente, ela existe nas manifestações
dos indivíduos no seu quotidiano e configuram práticas sociais. O autor defende que em
determinados contextos a criminalidade é uma manifestação objetiva e necessária para
alcançar um determinado conceito de masculinidade, seja nos pequenos delitos
cometidos durante a adolescência, seja mais tarde para demonstrar que se tem o que é
necessário para fazer parte de um grupo19. A masculinidade também é estratificada e
complexa, na medida em que é geradora de tensões entre o que eu sou e o que a
sociedade espera que eu seja (Badinter, 1996) e é, ainda, dinâmica, pois varia de acordo
com a época e o contexto histórico20.
Connell (1996) afirma que as escolas, apesar de não serem as únicas agências de
socialização dos rapazes e raparigas, assumem um papel fundamental na construção do
género que assenta em quatro componentes fundamentais: relações de poder, onde se
inscreve a figura de autoridade e supervisão entre professores. Trata-se da associação
que os alunos fazem nas escolas entre o poder e a masculinidade. A figura do diretor ou
do funcionário mais severo que detém o poder e o controlo. A divisão do trabalho que
18 Quando um homem não segue os padrões de masculinidade definidos por um determinado contexto social ou institucional, por exemplo, quando manifesta uma orientação sexual não normativa, no seio de uma organização marcadamente masculina, é vítima de críticas por parte dos seus pares.19 Neste sentido, podemos também relacionar algumas práticas violentas cometidas pelos homens contra as suas mulheres para o garante de uma certa ideia de masculinidade e domínio sobre elas.20 Beynon (2002) defende que a masculinidade resulta do contexto histórico, idade, orientação sexual, educação, estatuto social, estilo de vida, localização geográfica, etnia, religião, classe social, profissão e cultura ou subcultura.
28
está relacionada com a especialização das áreas disciplinares dos professores – ainda
hoje podemos verificar que, por exemplo nas escolas do ensino secundário, há
determinadas áreas científicas que são maioritariamente ensinadas por mulheres, e.g. as
ciências sociais e linguísticas, e outras em que é mais frequente a presença de homens,
as engenharias (e.g. mecânica ou eletrónica). Os padrões emocionais, que correspondem
às imagens associadas a determinados papéis desempenhados na escola – sobre o
tratamento que é dado pelos pares, por exemplo, aos colegas com uma identidade de
género não normativa. Este tratamento, por vezes, homofóbico, poderá contribuir para a
construção de uma masculinidade enviesada. A simbolização, a escola, enquanto espaço
de interações sociais, contém códigos e condutas inerentes ao seu funcionamento. Por
vezes, há uma uniformização (e.g. na indumentária, saia para meninas e calção para
meninos) que é ela própria responsável pela atribuição de características e codificações
distintas a cada um dos géneros.
Da interceção destas estruturas, as escolas criam uma definição do que é a
masculinidade e a feminilidade que, apesar de serem impessoais, têm um poder de
atração para os jovens que através do seu comportamento se adaptam (ou não) às
estruturas de género21. Barbosa e Nogueira (2004) recordam que na escola ocorrem
diariamente comportamentos de assédio sexual por parte dos rapazes às raparigas e que
essas práticas reforçam a ideia de que estes assumem sobre elas uma posição dominante.
Barbosa (2004) refere também que as formas de violência mais comuns nas escolas são
caracterizadas por práticas relacionadas com violência de género. Quando esta violência
é dirigida às raparigas tem um efeito gerador de medo nas vítimas e simultaneamente de
enraizamento do poder da dominação masculina.
Stanko e Newburn (1994, p. 41) defendem também que a violência é sobretudo
uma prática manifestada pelos homens e define dois tipos de violência: a violência
expressiva, que surge de uma forma não premeditada, é instintiva; e a violência
instrumental, quando é calculada e planeada para conseguir um determinado intento.
21 Quando existe uma inconformidade de conduta relativamente à masculinidade hegemónica ocorre uma ação de coação que pode passar pelo uso de linguagem sexista que associa o inconformado com o género não dominante. Desta forma resulta que, não raras vezes, os rapazes recorram, à violência para repor a ordem natural das coisas, ou seja, que sejam vistos pelos pares como “verdadeiros homens” (Connell, 1996).
29
Polk (1994, p. 188) explica que o uso extremo de violência em defesa da honra é
definitivamente masculino. Connell (2002, p. 15) considera que a violência é uma
marca da masculinidade. Os homens, desde novos, são educados para serem duros,
competitivos, insensíveis, em suma, para não demonstrarem afeto. Para eles, o género é
algo natural e não questionável. Ele não é imposto, existe e agimos de acordo com o
padrão onde nos encaixamos. Contudo, como explica o autor, essas práticas não são
inatas e devem ser discutidas, elas decorrem da pressão que é exercida por diversas
instituições como, por exemplo, a escola (Idem, Ibidem). No mesmo sentido, Amâncio
(1994) afirma que a violência normalmente associada aos rapazes não se deve a
qualquer predisposição genética, mas à construção social de género, ou seja, a violência
é aprendida e interiorizada como um aspeto legitimador do seu domínio sobre as
raparigas. Badinter (1996), no mesmo sentido, explica que durante a construção da
identidade masculina, os rapazes devem abandonar uma parte de si mesmos (ou da sua
vontade) e reprimir comportamentos associados, por norma, ao sexo oposto como, por
exemplo, sentimentos de afeto ou emoção, associados à fraqueza das mulheres, dado
que um verdadeiro homem se deve assumir pela sua audácia, bravura e agressividade.
Badinter (1996) conclui que a masculinidade resulta de uma série de
relações/imposições/medidas (económicas, sociais e políticas) e Gilmore (1992), no
mesmo sentido, argumenta que esta assume diversas formas e varia consoante as várias
culturas22. Dias (2015) explica que as mulheres, “são mais sensíveis aos efeitos de
género pelo facto de viverem num mundo onde a norma é masculina” (Idem, p. 78).
Desta assimetria e deste desequilíbrio de forças resulta a violência no seio das relações
de intimidade e que afetam sobretudo as mulheres.
1.4. Definição de conceitos
Com o avançar dos anos e com o aprofundamento teórico, político e jurídico do
fenómeno, o conceito de violência doméstica foi sendo revisto e atualizado, tendo
22 Através de uma pesquisa alargada a várias comunidades, o autor pretendeu saber se existiria alguma estrutura universal que definisse a masculinidade, ou seja, se existiria algum arquétipo de masculinidade. As suas conclusões mostram não só a impossibilidade de tal definição, como a forte dependência do conceito face a certos rituais de iniciação. Na verdade, o que o autor demonstra é a inutilidade da tentativa de provar a existência de um padrão positivista de masculinidade culturalmente generalizável.
30
passado por várias definições que expressavam o entendimento técnico, cultural e
ideológico do momento em que foi sendo sucessivamente definido23 (Manita, et. al.,
2009). O conceito de violência doméstica pode ter vários sentidos que convém
esclarecer. Desde logo, o conceito jurídico tipificado no Código Penal Português e
previsto no Art.º 152.º do mesmo diploma legal (Anexo 2) onde se definem, por um
lado, quais as práticas violentas e, por outro, as circunstâncias e a relação entre os
sujeitos que tipificam o ilícito num crime de violência doméstica.
Do ponto de vista sociológico o conceito é mais amplo e abrangente e não
atende a alguns detalhes que o conceito jurídico procura salvaguardar como, por
exemplo, a relação de dependência entre o agressor e a vítima quando não há uma
relação de conjugalidade ou análoga24. Manita et. al. (2009) define violência doméstica
como “um comportamento violento continuado ou um padrão de controlo coercivo
exercido, direta ou indiretamente, sobre qualquer pessoa que habite no mesmo
agregado familiar (e.g., cônjuge, companheiro/a, filho/a, pai, mãe, avô, avó), ou que,
mesmo não co-habitando, seja companheiro, ex-companheiro ou familiar” (Idem,
Ibidem, p. 10 e 11).
Nesta investigação vamos centrar-nos apenas na violência cometida contra as
mulheres, definida como “todo o ato de violência que tenha ou possa ter como
resultado o dano ou sofrimento (físico, sexual ou psicológico) da mulher, ou a sua
morte, incluindo a ameaça de tais actos, a coação ou a privação de liberdade,
realizado na esfera pública ou privada, violência que é exercida sobre a vítima por ser
mulher.” (Idem, Ibidem, p.10), num contexto de intimidade. Este alargamento surge da
necessidade de englobar na violência conjugal, a que se referem as definições
anteriores, a violência exercida sobre o conjugue/ex-cônjuge, companheiro/ex-
23 Recordo-me que no final da década de 90 havia uma enorme dificuldade no seio da Polícia em tipificar o crime, dada a falta de esclarecimento sobre o tema e redação do diploma pouco clara. A reiteração do crime (e.g. se o agressor tinha apenas dado uma bofetada ou mais à vítima) era apenas um dos exemplos que levava muitas vezes os agentes a não consideraram essa agressão como um crime de “maus tratos e infração às regras de segurança” (violência doméstica) mas como um simples crime de “ofensas à integridade física simples”. 24 Como exemplo e de uma forma simplificada, podemos dizer que do ponto de vista jurídico se um filho agride um pai e este não está numa relação de dependência/fragilidade em relação ao agressor, em regra, estamos perante um crime de ofensas à integridade física qualificado e não perante um crime de violência doméstica.
31
companheiro a outras relações de intimidade, como é o caso das relações de namoro ou
outros tipos de relacionamentos, como as relações homossexuais.
Nesta investigação vamos usar os conceitos de acordo com o que considerarmos
mais apropriado para cada momento analítico. Se nos estivermos a referir às questões
jurídico-legais, usamos o termo “violência doméstica” e conferimos-lhe o sentido dado
pelo Artigo 152.º do Código Penal. Quando usamos o conceito sociológico, evocamos o
conceito de Violência nas Relações de Intimidade (VRI) pela amplitude teórica que nos
confere.
32
Capítulo 2 – A violência doméstica: caracterização socio-legal
e estatística
2.1. A violência doméstica em Portugal – evolução legal do crime
A violência doméstica em Portugal não é um fenómeno recente, contudo como
refere Dias (2000) só a partir da década de oitenta do século XX é que começou a ser
encarada como um problema social. Para isso, segundo a autora, contribuíram vários
fatores, como a intolerância ao fenómeno da violência, a sensibidade crescente dos
profissionais da justiça e da saúde, o surgimento de algumas organizações de apoio à
vítima que deram visibilidade ao problema que, em conjunto com a comunicação social,
alertaram a população para este flagelo, ocorrendo simultaneamente um incremento nas
medidas e serviços de apoio à vítima.
Perista et. al (2010), recorda que apenas no final dos anos 60 do séc. XX, se
vislumbrou uma ténue mudança no que se refere à mudança social da mulher, dado a
sua entrada no mercado de trabalho remunerado, deixando por essa razão, de estar
centrada na agricultura, em parte, como resultado da forte vaga de emigração masculina
e escassez de mão-de-obra. Com a Revolução de Abril de 1974 e a posterior alteração
constitucional em 1976 e 1977, ocorrem importantes mudanças legislativas que visaram
uma aproximação da igualdade de direitos entre os sexos. Esta publicação permitiu a
revogação de algumas normas discriminatórias onde ser considerava, por exemplo, que,
“O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir
em todos os actos da vida conjugal comum, sem prejuízo no disposto nos artigos
subsequentes.” (Art.º 1647.º, Decreto-Lei n.º 47344 de 25 novembro).
Contudo, apesar desta conquista constitucional, a violência contra as mulheres
nas suas relações de intimidade continuou a ser praticamente ignorada até 1982, ano em
que foi publicado um artigo no Código Penal referente aos maus tratos entre cônjuges
(Art.º 153.º, Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 setembro) que, ainda que referindo-se
especificamente aos maus tratos físicos ou tratamentos cruéis, foi um passo importante
para a futura criminalização da violência doméstica em Portugal.
33
Este problema já havia sido abordado, dois anos antes, na Conferência Mundial
da Década das Nações Unidas para a Mulher, em Copenhaga, assim como no 6.º
Congresso da ONU sobre a Prevenção Criminal e o Tratamento de Agressores, em
1985, onde foi aprovada a Resolução n.º 40/36 específica sobre violência doméstica e se
pretendia criar uma estratégia concertada no combate a este fenómeno.
Em 1991 é publicada pela primeira vez uma Lei que visa a proteção de mulheres
vítimas de violência doméstica (Lei n.º 61/91, 13 de agosto), apesar de nunca ter sido
regulamentada. Alguns anos depois foi publicada a Resolução da Assembleia da
República n.º 31/99 de 4 de abril, que chamava à atenção para a regulamentação da Lei
referida anteriormente bem como para a necessidade de formação dos elementos das
Forças de Segurança para o atendimento nas Esquadras da PSP e Postos da GNR a
vítimas de violência doméstica.
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de março, o crime de maus
tratos anteriormente previsto no artigo 153.º do Código Penal, passou a ter uma nova
redação, incluindo os maus tratos psicológicos, passando a aceitar também relações
análogas à dos cônjuges, assumindo o crime a natureza de semipúblico. Neste período a
coação cometida sobre o cônjuge era um crime autónomo e também semipúblico, o que
impedia não só a denúncia pública como a vontade expressa da vítima em avançar com
o inquérito criminal. Dois anos depois é publicada a Lei n.º 65/98 de 02 de setembro
que introduz uma novidade: a possibilidade do Ministério Público, por interesse
público, poder prosseguir com o processo caso houvesse a concordância da vítima. No
entanto, a possibilidade da desistência do procedimento criminal (responsável por uma
parte significativa do arquivamento dos processos na época) continuava a existir.
Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/97 de 24 de março, é criado o
Plano Global para a Igualdade de Oportunidades onde se pretendia promover um
conjunto de iniciativas que fossem ao encontro de um maior equilíbrio entre os direitos
de ambos os géneros. Em 1998 surge o primeiro conceito “técnico-normativo” de
violência doméstica em dois Despachos do MAI (15 e 16/98 de 9 de março) visando a
criação de um instrumento estatístico onde estivessem registadas todas essas
ocorrências. Definia-se então assim o conceito: “Deverá entender-se como ato de
34
violência doméstica qualquer crime previsto no Código Penal, alegadamente cometido
contra a vítima por alguém que com ela resida habitualmente da relação de
parentesco, de consanguinidade ou afinidade, ou qualquer outra relação entre agressor
e amigo” (Despacho MAI n.º 15/98, 9 março). Neste ano é lançado um programa
pioneiro no combate à Violência Doméstica, o Projeto Inovar (Resolução Conselho
Ministros n.º 6/99, 15 janeiro). Promovido pelo MAI, visava a criação de medidas de
apoio e proteção às vítimas de violência doméstica e o início da formação de elementos
das forças de segurança no atendimento a este tipo de vítimas. Este programa foi
importante para o despertar do problema nas forças de segurança, na medida em que
foram implantadas várias medidas, sobretudo de sensibilização, mas também alterações
nos procedimentos técnicos adotados até então25.
Em 1999 é publicada a Resolução da Assembleia da República n.º 31/99 que
vem reforçar a necessidade do cumprimento das medidas estipuladas na Lei n.º 61/91 de
13 de agosto, nomeadamente a criação de uma rede nacional de casas abrigo para as
vitimas de violência doméstica, bem como a criação de uma série de medidas de apoio e
proteção as vitimas, entre as quais, a criação de secções especializadas de apoio à vitima
no seio das Forças de Segurança. O I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica é
criado com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99 de 15 de junho que vem
compilar um conjunto de intensões manifestadas em anteriores medidas legislativas,
onde se pode ler, “É altura de agir concretamente e com lucidez: a eliminação da
violência doméstica é um elemento indispensável na construção de uma sociedade
verdadeiramente democrática, fundada no respeito dos direitos da pessoa e na
dignidade humana” (Idem, preâmbulo). Com a Lei n.º 107/99 de 3 de agosto é
publicado o regime jurídico das Casas Abrigo, ampliando-se as medidas de apoio e
proteção às vítimas de violência doméstica.
Em 2000 há uma importante alteração no Código Penal que transforma a
natureza do crime, que passa a ser público. É também tipificado no crime a ofensa que
ocorra em situações que exista um descendente comum, bem como a possibilidade de
afastamento do agressor da vítima como pena acessória (Lei n.º 7/2000, 27 maio). É
25 Por exemplo, foi implementado um Auto de Denúncia padronizado para situações de violência doméstica, inexistente até então.
35
também nesta alteração legislativa que é introduzida a possibilidade de suspensão do
processo até ao limite máximo da moldura penal do crime. A alteração da natureza do
crime bloqueou a possibilidade da vítima desistir do procedimento criminal apesar de,
face à sua relação com o agressor, ter a possibilidade de não prestar declarações nas
fases subsequentes do processo (Art.º 134.º da Lei n.º 78/87 de 17 fevereiro), o que,
quando esse direito é exercido, pode impossibilitar a acusação do suspeito por falta de
prova, dado que a vítima ou os seus filhos (também abrangidos pelo mesmo artigo)
constituem, muitas vezes, a única prova (testemunhal) do crime.
Em 2007 ocorre uma nova alteração à Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro que vem
autonomizar o crime de violência doméstica, introduzido alterações significativas,
nomeadamente a equiparação das relações conjugais a casais homossexuais e a não
necessidade da reiteração do ato violento para a configuração do crime de violência
doméstica. Dois anos depois, é publicada a Lei n.º 112/2009 de 16 setembro, que inclui
como “conduta típica do tipo legal da violência doméstica os maus tratos físicos ou
psíquicos, incluindo os castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais”
(DGAI, 2013, p. 23). Esta publicação passou assim a integrar “um conjunto de
dispositivos normativos avulsos que estabelece um regime unificado da prevenção da
violência doméstica, da proteção e das suas vítimas” (Idem, Ibidem, p. 24).
Com a publicação da Lei n.º 19/2013 de 21 de fevereiro, é novamente alterada a
redação do Art.º 152.º que passa também a abranger de forma mais clara as relações de
namoro bem como passou a estar contemplada a possibilidade do afastamento do
agressor da residência da vítima e do seu local de trabalho sendo esse controlo efetuado
por vigilância eletrónica. Ao longo dos anos a definição legal de vítima foi assumindo
diversas interpretações que se ajustavam a visão que o legislador e a própria sociedade
tinham do fenómeno. Atualmente a Lei define como vítima, “a pessoa singular que
sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua dignidade física ou mental, um dano
moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do
crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal” (Art.º 2.º, al. a),
Lei n.º 112/2009 de 16 setembro).
36
A legislação em vigor prevê um conjunto de medidas especiais de proteção às
vítimas de violência doméstica, como a possibilidade de proteção por teleassistência
(Artigo 20.º, n.º 4, Lei n.º 112/99 de 16 setembro), o direito de não contactar com o
agressor em locais que impliquem diligências processuais (Art.º 20.º, n.º 2 e 3, Lei n.º
112/99 de 16 setembro) quando ordenado pelo Ministério Público ou Juiz, bem como o
direito de ter acompanhamento policial à sua residência para a recolha exclusiva dos
seus bens de primeira necessidade (Art.º 21.º, n.º 4, Lei n.º 112/99 de 16 setembro).
O agressor está também sujeito a medidas de controlo que passam pela detenção
em flagrante delito e fora de flagrante delito (Art.º 30.º, Lei n.º 112/99 de 16 setembro)
quando tal for admissível, e pelas medidas de coação como a proibição de permanência
na residência onde o crime tenha sido cometido ou a vítima habite e/ou pela proibição
de contacto com a vítima (Art.º 31º, n.º1, al. c) e d), Lei n.º 112/99 de 16 setembro,)
sendo neste caso possível o controlo da medida com o recurso a vigilância eletrónica
(Art.º 35.º, Lei n.º 112/99 de 16 setembro).
2.2. Os principais intervenientes no processo de denúncia do crime
2.2.1. Os órgãos de polícia criminal
As denúncias do crime de violência doméstica são na maior parte dos casos
encaminhadas ao Ministério Público pelos órgãos de polícia criminal26, sendo mais
frequente, dada a natureza das suas funções, que essa comunicação seja realizada pela
PSP ou GNR (RASI, 2016). Sobretudo na última década, o MAI tem disponibilizado
meios e recursos para efetivar o combate ao fenómeno da violência doméstica, criando
um conjunto de instrumentos que visam melhorar as respostas das Forças de
Segurança27 (DGAI, 2013). De acordo com este manual, esta intervenção assenta em
seis princípios fundamentais: 1) O fenómeno da violência doméstica é um crime grave
que afeta a família e a sociedade, sendo por isso necessário um sistema judicial eficaz e
26 Há casos (menos frequentes) em que a denúncia é efetuada diretamente ao Ministério Público ou noutros órgãos de polícia criminal (e.g. Polícia Judiciária).27 Como exemplo, podemos referir a criação da Ficha de Avaliação de Risco para vítimas de Violência Doméstica, que foi implementada em novembro de 2014.
37
eficiente; 2) Cabe às Forças de Segurança o dever de cooperação com as restantes
organizações que intervém no processo, no sentido de reduzir e prevenir situações de
violência doméstica, e se necessário, garantir o cumprimento das medidas penais
impostas aos agressores pelo sistema penal; 3) A resposta das polícias deverá ser
adequada à especificidade de cada vítima, tendo em conta, e.g. a sua cultura e tradições,
trabalhando em conjunto para reduzir a incidência do fenómeno no seio dessas
comunidades; 4) As forças de segurança devem trabalhar em conjunto com as
comunidades onde estão inseridas e participar ativamente na prevenção do fenómeno; 5)
Deve ser tido em conta a proteção de crianças e jovens mais vulneráveis que sejam
vitimadas de forma direta ou indireta, nos lares onde haja situações de violência; 6) A
intervenção das polícias junto das vítimas de violência doméstica deve sempre ser
imparcial, construtiva e sem julgamentos preconceituosos (Idem, Ibidem).
O modelo de policiamento da violência doméstica adotado em Portugal
aproxima-se do existente nos restantes países da União Europeia e assenta na
proximidade com a vítima, dado ter-se percebido que um “policiamento mais reativo
não era a abordagem mais eficaz para a prevenção sustentada da revitimação” (DGAI,
2013, p. 14). Desta política de proximidade, surgiu em 2013 o GAIV da PSP28, que
pretendeu justamente oferecer um serviço especializado e dedicado exclusivamente a
este ilícito criminal.
No processo de violência doméstica, cabe às polícias a recolha e o levantamento
de todos os indícios e meios de prova do crime e o seu envio, no espaço mais curto de
tempo, ao Ministério Público (Art.º 243.º, Decreto-Lei n.º 78/87 de 17 fevereiro). O
contacto dos elementos policiais nestas situações ocorre, na maior parte dos casos, no
posto policial onde o elemento de atendimento ao público é informado diretamente pela
vítima do sucedido, ou quando é solicitado o seu apoio no local do crime (DGAI, 2013).
Em qualquer das situações, a ação dos polícias que intervém em primeira linha é
fundamental para transmitir à vítima um sentimento de segurança e compreensão
28 O GAIV é um gabinete especializado da PSP, “para onde são encaminhadas todas as vítimas de violência doméstica do concelho do Porto para efeitos de atendimento personalizado e especializado por equipas policiais multidisciplinares, das valências policiais de Investigação Criminal e do Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade.” (www.psp.pt, consultado em 4 setembro 2017). Excetua-se deste encaminhamento as vítimas que denunciam os crimes em Divisões destacadas do COMETPOR como é o caso da Esquadra de Santo Tirso.
38
relativamente ao crime que acaba de denunciar, uma vez que “uma resposta insuficiente
ou inadequada, pode inviabilizar futuras iniciativas da vítima em procurar ajuda,
deixando-a de novo desprotegida e em risco de ser alvo de novos episódios de
violência” (DGAI, 2013, p.34).
Compete às polícias, quando atuam em primeira linha, tomar as primeiras
medidas de proteção da vítima que passam, quando há contacto direto com o agressor,
pelo cessar imediato da agressão ou, caso o atendimento seja realizado no departamento
policial, reencaminhar a denunciante para a sala de apoio à vítima29 e efetuar as
diligências necessárias de forma a salvaguardar a sua segurança e a dos demais
envolvidos, e.g filhos (Idem, Ibidem). Durante a elaboração da denúncia, deve também
ser avaliada a situação de risco inerente à ocorrência e informada a vítima sobre todos
os procedimentos subsequentes, nomeadamente, sobre o decorrer do processo-crime que
irá correr no tribunal competente.
2.2.2. O Ministério Público
O crime de violência doméstica é de natureza pública, ou seja, qualquer cidadão
que tenha conhecimento da sua existência, pode denunciá-lo ao Ministério Publico
(Art.º 244.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro), cabendo a este órgão a legitimidade
para a promoção do processo penal (Art.º 48.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro) e
a sua direção (Art.º 53.º, al. b), Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro) coadjuvado pelos
órgãos de polícia criminal (Art.º 55.º, n.º1, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).
Quando o crime é do conhecimento de funcionários30 ou elementos pertencentes aos
órgãos de polícia criminal, a denúncia é obrigatória (Art.º 242.º, Decreto-Lei n.º 78/87,
17 de fevereiro), lavrando neste caso Auto de Notícia (Art.º 243.º, Decreto-Lei n.º
78/87, 17 de fevereiro). Compete também ao Ministério Público o requerimento das 29 De acordo com o RASI (2016) praticamente todas as Esquadras da PSP e Postos da GNR têm uma sala de atendimento especialmente reservada para as vítimas de violência doméstica, onde, à partida, existe maior recato e condições para as atender estas situações.30 A definição de funcionário de acordo com o diploma legal que prevê o conceito, diz-nos que, “Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.” (Art.º 386.º, n.º1, al. d), Decreto-Lei n.º 48/95, 15 de março)
39
medidas de coação a aplicar ao agressor sendo posteriormente aplicadas, ou não,
consoante despacho do juiz (Art.º 194.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).
2.2.3. O Juiz
O juiz é o decisor do processo, de acordo com a fase em que o processo se
encontra (inquérito, instrução, julgamento ou recurso), cabe-lhe a ele tomar as decisões.
O juiz de instrução exerce a sua função durante a fase de investigação que decorre no
processo-crime. Se for requerida a instrução do processo, cabe-lhe também proferir o
despacho de pronúncia ou não pronúncia e decidir se o arguido vai, ou não, a
julgamento (Art.º 17.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro). Mediante a decisão
anterior, se o processo seguir para julgamento, cabe ao juiz decidir se o arguido é ou não
culpado da prática dos crimes que foi acusado. Se houver recurso, compete aos juízes
desses tribunais superiores apreciarem e decidirem se o recorrente tem ou não razão e
manter ou alterar a decisão da instância anterior.
2.2.4. A Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica
Atualmente existem várias estruturas de apoio à vítima em Portugal
disseminadas por todo o país31. Estes recursos integram a Rede Nacional de Apoio às
Vítimas de Violência Doméstica, que foi estabelecida com a publicação da Lei n.º
112/99, de 3 de agosto, onde se incluem também outros locais de atendimento à vítima,
de vários organismos públicos, com as Forças de Segurança ou serviços da Segurança
Social (Art.º 53º, 62.º, Lei n.º 112/99, 3 de agosto).
A CIG, constituída ainda antes da Revolução de Abril de 197432 e a APAV,
criada em 1990, são as organizações de referência no apoio a vítimas de violência
doméstica no país33. A utilidade destas organizações é demonstrada pelo trabalho que
31 Pesquisamos na página web da CIG, no seu Guia de Recursos, por “estruturas de apoio à vítima” e obtivemos um total de 130 estruturas referenciadas em todo o país, não existindo nenhuma no concelho de Santo Tirso.32 Na altura denominada Comissão para a Política Social relativa à Mulher, criada com o objetivo de fazer um levantamento das discriminações legais contra as mulheres (CIG, 2017)33 Salientamos também o trabalho desenvolvido pela UMAR na área da igualdade de género e, mais recentemente, na elaboração de trabalhos realizados na área da violência no namoro (UMAR, 2017) e a APMJ pelo apoio, sobretudo de âmbito jurídico, que tem desenvolvido junto da comunidade.
40
têm efetuado ao longo dos últimos anos, bem como no envolvimento que ambas têm
desenvolvido na divulgação, definição de estratégias e combate ao flagelo da violência
doméstica em Portugal.
A CIG, com delegações em Lisboa e no Porto, apresenta como missão, a
promoção da: “igualdade entre mulheres e homens é um princípio fundamental da
Constituição da República Portuguesa, sendo tarefa fundamental do Estado a sua
promoção. A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) é o
organismo nacional responsável pela promoção e defesa desse princípio, procurando
responder às profundas alterações sociais e políticas da sociedade em matéria de
cidadania e igualdade de género (CIG, 2017). O seu trabalho é desenvolvido no âmbito
da investigação científica e divulgação de recursos técnicos na área da violência
doméstica, pela formação de profissionais, (e.g. polícias), bem como por esclarecer e
apoiar as vítimas, fornecendo-lhes apoio jurídico e psicossocial (Idem, Ibidem).
A APAV tem atualmente 17 gabinetes de apoio à vítima (e três de apoio à vítima
migrante e de discriminação) dispersos por várias zonas do país, sobretudo nos centros
de maior aglomerado populacional, existindo também extensões locais em vários
municípios que resultam de vários protocolos de colaboração. A sua atuação é
desenvolvida no apoio, “emocional, jurídico, psicológico e social à vítima de crime”
(APAV, 2017).
Uma das finalidades da elaboração da Lei n.º 112/99, 16 de setembro, foi
justamente, “Incentivar a criação e o desenvolvimento de associações e organizações
da sociedade civil que tenham por objetivo atuar contra a violência doméstica,
promovendo a sua colaboração com as autoridades públicas” (Art.º 3.º, al. j), Lei n.º
112/99, 3 de agosto). Assim, decorrente deste objetivo, sobretudo ao longo da última
década, têm surgido em Portugal várias estruturas de apoio que visam auxiliar
localmente as vítimas de violência doméstica.
2.3. O processo de denúncia no crime de violência doméstica
41
Não pretendemos neste trabalho desenvolver em pormenor todos os trâmites
legais de um processo-crime de violência doméstica, até porque essa não é a nossa área
de formação académica. No entanto, julgamos ser pertinente para a compreensão do
discurso das vítimas, descrever de forma sucinta, mas esclarecida, as suas fases
principais. Como referimos anteriormente, um processo-crime por violência doméstica
tem o seu início quando o Ministério Público, após ter tido notícia da prática do crime,
investiga ou, atribui às Forças de Segurança, a investigação do crime. A primeira fase
do processo é o momento da investigação (inquérito) onde se pretende recolher todas as
provas que possam levar à descoberta do autor do ilícito criminal (Art.º 262.º, 267.º,
Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro)34.
No final da investigação, caso ela tenha decorrido num OPC, o agente
responsável deve enviar o relatório final para que o magistrado (Procurador) decida se
irá proceder, ou não, à acusação do suspeito, ou ainda, sugerir à vítima (com a
necessária concordância do agressor) a suspensão provisória do processo. Se não houver
matéria (prova recolhida) para acusar o suspeito, ou seja, se o Ministério Público
considerar que não é provável que o suspeito seja condenado em julgamento com a
prova existente, o processo é arquivado. Se pelo contrário, o magistrado considerar que
há fortes indícios que o crime foi cometido35 e que existem fortes possibilidades de ser
condenado em julgamento, promove o despacho de acusação e o processo passa para a
fase seguinte (instrução ou julgamento).
34 Nesta fase o investigador vai ouvir a vítima, as testemunhas e o agressor em declarações. Poderá adicionalmente, por exemplo, solicitar relatórios médicos de agressões ocorridas no passado, solicitar às operadoras móveis uma lista onde constem as mensagens enviadas pelo suspeito à vítima, solicitar ao Ministério Público a promoção de busca domiciliária para apreensão de armas, etc. Há também medidas de polícia, previstas no Código Processual Penal, que poderão ser tomadas logo após o conhecimento da prática do crime (antes do início da fase de inquérito) como por exemplo, a notificação para comparência no Instituto de Medicina Legal a fim de ser submetida a exames médico-legais para que esse relatório possa servir de prova em como a vítima foi fisicamente agredida.35 “Fortes indícios da prática de um crime são aqueles que, com alguma segurança, permitem antever que o arguido possa vir a ser condenado com base neles” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 2011)
42
Nos casos em que seja admissível a suspensão provisória do processo36, este será
suspenso, de acordo com os requisitos legais e, caso o agressor cumpra as medidas
(injunções) aplicadas pelo Juiz, o processo é arquivado37. Se tal não ocorrer, o processo
é reaberto e o agressor julgado pelo crime/s que cometeu (Art.º 281º, n. º3, Decreto-Lei
n.º 78/87, 17 fevereiro).
Quando é proferido despacho de acusação ou arquivamento pelo Ministério
Público, poderá iniciar-se uma nova fase processual, a fase de instrução. Pode ser
requerida pela vítima ou agressor, por não concordarem com a decisão despachada
(Art.º 287º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 fevereiro). Mais uma vez, caberá ao Juiz
(instrução) decidir se estas novas provas são relevantes e se se justifica uma alteração da
decisão proferida anteriormente pelo Ministério Público38.
Terminada esta fase, e caso o despacho do Juiz seja de pronúncia, irá seguir-se o
julgamento do suspeito. Nesse momento estarão presentes os intervenientes do processo
que são ouvidos pelo Juiz e representante do Ministério Público (Procurador). Após a
audição de todas as partes e perante todas as provas ali produzidas, o juiz vai decidir se
o suspeito é condenado ou absolvido. No final do julgamento e após a decisão do juiz,
segue-se a fase de recurso (caso tal aconteça) em que as partes envolvidas podem
recorrer da decisão do Juiz de 1.ª instância.
2.4. Breve referência estatística – Contexto nacional
Como referimos anteriormente, sobretudo nas duas últimas décadas o Estado
tem investido no combate ao fenómeno da violência doméstica, tendo sido criados um
36 São condições necessárias para a aplicação da suspensão provisória do processo, “a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de antecedentes criminais do arguido; c) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; d) Carácter diminuto da culpa; e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir; e) Ausência de um grau de culpa elevado; e f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.” (Art.º 281.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).37 As injunções podem passar, por exemplo, pela obrigação em frequentar programas de desintoxicação alcoólica, proibição de contactar a vítima por qualquer forma, proibição de frequentar determinados lugares, prestação de trabalho a favor da comunidade, etc..38 Esta fase culmina com um debate (instrutório) onde estão presentes o Juiz de Instrução, o Ministério Público, os advogados e os seus constituintes. Em regra, quando há um despacho de pronúncia, ou seja, a decisão de julgar o arguido, não há lugar a recurso, não acontecendo o mesmo quando há um despacho de não pronúncia (decisão de não julgar o arguido) em que é suscetível a existência de recurso.
43
conjunto de instrumentos legais e operacionais que visaram combater o problema e, ao
mesmo tempo, trazê-lo para a esfera pública. Um desses instrumentos foi a criação de
bases de dados oficiais para que se pudesse aferir e medir a evolução da incidência do
crime na sociedade portuguesa. O RASI é um documento emitido pela Secretaria Geral
da Administração Interna onde constam as estatísticas oficiais do Estado sobre a
criminalidade registada em Portugal recolhida diretamente dos OPC39 e coligida pela
Direção-Geral de Política de Justiça (MAI, 2016).
De acordo com este relatório, no ano de 2016 o crime de violência doméstica
contra cônjuges ou análogos foi o segundo tipo de crime mais registado nos processos
que originaram uma pena ou medida de coação no território nacional (Idem, Ibidem, p.
138). De acordo com este documento, o crime de violência doméstica teve, em 2016, 22
773 participações correspondendo ao segundo crime mais participado em Portugal,
apenas atrás das “Ofensas contra a integridade física voluntária simples” (Idem,
Ibidem, p. 2). Se compararmos com os dados do ano anterior, notamos que houve um
aumento de 1,4% (mais 304 casos) que foi responsável pela subida do 4.º para o 2.º
lugar do ilícito criminal mais verificado em Portugal40 (Anexo 6). Se olharmos apenas
para a categoria dos crimes contra as pessoas, verificamos que o crime de violência
doméstica contra cônjugue ou análogo, representa mais de ¼ de todos os crimes
participados (28,1%), com números próximos do crime, “Ofensa à Integridade Física
voluntária simples” (28,6%) (Anexo 7). As vítimas do crime são sobretudo mulheres
39 Julgo ser importante notar que devemos ser cautelosos na análise destes dados, sobretudo nos casos em que a informação recolhida depende do critério, por vezes arbitrário, dos OPC no momento em que registam o crime. Se, por exemplo, considerarmos o número de ocorrências presenciadas pelos filhos menores, que como veremos mais à frente acontece em cerca de 1/3 dos casos reportados, constatamos que esse item, que se encontra no auto de notícia padronizado de violência doméstica, se refere à presença física do menor (se o menor presenciou a ocorrência) e não se ele tem ou não perceção/conhecimento da violência que existe entre os seus pais (que poderá incluir vários tipos de maus tratos que vão para além das agressões físicas). Se a pergunta fosse efetuada de uma forma mais aberta, por exemplo, se os filhos alguma vez presenciaram, ou têm conhecimento, de algum tipo de violência (e.g. verbal) manifestada entre os pais, o resultado seria, em nossa opinião, bem diferente. Quando isto acontece, por norma, não há uma comunicação à CPCJ desta situação o que vai prejudicar o apoio emocional ao menor. A este propósito, Sani (2006) considera que existe ainda uma “despreocupação social sobre o fenómeno da vitimação indireta, pois é menos expressivo face a um atentado direto à integridade da pessoa. A consideração de que algumas crianças, especialmente as mais novas e imaturas, poderão não ser afetadas pela exposição à violência na família, pois na maioria dos casos não compreendem o que se passa, é também um dos motivos que levam ao escamotear deste problema” (Idem, Ibidem, p. 851)40 Em 2015 o crime de violência doméstica foi o 4.º mais participado, antecedido dos crimes de furto em veículo motorizado, Ofensas à Integridade Física voluntária simples e condução sob efeito de álcool.
44
(80%) e a sua maioria (80%) têm mais de 25 anos. Contudo, se considerarmos apenas a
violência praticada entre cônjuges/companheiros e ex-cônjuges/ex-companheiros, a taxa
de vitimação das mulheres sobe para 86,7% e 83,7% respetivamente, uma vez que nos
casos em que a violência é cometida contra ascendentes ou descendentes o número de
homens vítimas sobre ligeiramente (Anexo 8).
Se observarmos os tipos de violência denunciados pelas vítimas, verificamos que
a violência psicológica assume maior relevo tendo ocorrido em 82% dos casos, seguida
da violência física, 68%, violência social, 16%, violência económica, 9%, e em 3% dos
casos, foi também denunciada violência sexual, sendo importante recordar que, por
norma, uma situação de violência doméstica, contempla vários tipos de violência onde
está implícita, quase sempre, a violência psicológica.
Quando analisamos o grau de parentesco entre a vítima e o agressor, de acordo
com os dados recolhidos em 2016, verificamos que em 55% dos casos o agressor é
conjugue/companheiro da vítima ou ex-cônjuge/ex-companheiro da vítima (17%),
havendo também 14% de denúncias que correspondem a atos de violência por parte dos
filhos/enteados (Anexo 9). A intervenção policial, na maior parte dos casos (77%),
surge na sequência do pedido da vítima e apenas 9% das situações são sinalizadas por
familiares ou vizinhos. Outro dado importante prende-se com a presença de crianças
menores no momento da agressão. De acordo com o mesmo relatório tal acontece em
35% dos casos registados pelos OPC (MAI, 2016).
A partir de 1 de novembro de 2014, começou a ser elaborada uma Ficha de
Avaliação de Risco (Guerra e Gago, 2016, p. 143), no momento da denúncia ou
participação do crime, que pretende avaliar o grau de risco a que a vítima está sujeita
nessa data. Este instrumento, um questionário com 20 questões (Anexo 3), é “aplicável
a qualquer vítima de violência doméstica, seja ela do sexo masculino ou feminino, de
idade adulta ou menor de idade, que coabite ou não com o/a agressor/a…; ou seja:
todas as situações previstas no Art.º 152.º do Código Penal” (Castanho e Quaresma,
2014, p. 3). Apesar de esta avaliação ser de caráter obrigatório para todos os elementos
das Forças de Segurança que recebem notícia do crime, nem sempre é possível
concretizá-la por motivos operacionais ou por discordância da vítima. Em 2016 a
45
avaliação de risco foi realizada em 98% das situações tendo o grau de risco elevado sido
calculado em 22% dos casos, o risco médio em 50% e o risco baixo em 28% das
situações. Decorrente desta avaliação, a reavaliação de risco, terá que ser efetuada no
prazo de 3 dias (risco elevado), 30 dias (risco médio) e 60 dias (risco baixo). Se a vítima
for acolhida em Casa Abrigo, cessa a necessidade de se efetuar qualquer reavaliação
(Idem, Ibidem).
Inerente ao grau de risco, poderão estar associadas a aplicação de medidas de
coação ao agressor. Estas medidas, aplicadas pelo Juiz, são fundamentais para transmitir
um sentimento de segurança à vítima (como veremos mais à frente). Constatamos que o
recurso à vigilância eletrónica resultante de uma pena ou medida de coação pela prática
de um crime de violência doméstica representam 52% do total das penas ou medidas
aplicadas no âmbito deste ilícito criminal (MAI, 2016, p. 138). Em 2016 foram findados
27 935 inquéritos referentes ao crime de violência doméstica, tendo 4 163 culminado
em acusação do suspeito e 20 119 sido arquivados (Idem, Ibidem).
2.5. Breve referência estatística – Contexto local
Se observarmos os dados referentes ao distrito do Porto, verificamos que em
2016 foram registados 4 903 crimes de violência doméstica, mais 121 casos do que no
ano anterior, o que correspondeu a um aumento de 2,5% e a uma taxa de incidência de
2,8% casos por cada 1000 habitantes. O concelho de Santo Tirso pertence ao distrito do
Porto e está integrado na NUT III do Grande Porto (Decreto Lei n.º 244/2002, 5 de
novembro). Com uma área de 140 Km2, 14 freguesias e com uma população residente
de 71 530 habitantes esta região concentra nas suas duas maiores freguesias a maior
parte da sua população41 (CLAS, 2016). De acordo com o mesmo documento, o
combate à violência doméstica é uma área estratégica na intervenção social do
concelho. Assim, a prevenção primária assume especial relevo sendo para isso, em
primeiro lugar, necessário conhecer a prevalência do problema no concelho.
41 De acordo com os censos de 2011, a freguesia de Santo Tirso tinha 14 107 habitantes e a Freguesia de Vila das Aves, 8 458 habitantes que juntos, correspondem a 31,5% da população do concelho. Se observarmos a densidade populacional, verificamos que é também nestas freguesias que o valor é mais elevado, 1 589 habitantes/Km2 e 1 373,2 habitantes/Km2 respetivamente.
46
Em 2015, a Divisão de Ação Social da CMST decidiu incluir no seu Relatório de
Diagnóstico Social (CLAS, 2015) informação relevante sobre este ilícito criminal. Desta
forma, foi possível constatar que a tendência dos dados recolhidos e disponibilizados
acompanham a tendência do contexto nacional. Em 2015 foram participadas pelas
Forças de Segurança com jurisdição no concelho de Santo Tirso, PSP e GNR, 140
ocorrências pelo crime de violência doméstica (CLAS, 2016) e no ano seguinte 149
situações, verificando-se um aumento de 6,4% da prevalência do crime (CLAS, 2017).
Quanto ao sexo das vítimas, constatamos que em ambos os anos, a percentagem de
mulheres vítimas supera os 90% dos casos participados, verificando-se, neste caso, um
valor acima do contexto nacional (MAI, 2016). Se considerarmos a relação entre a
vítima e o agressor, observamos que em mais de metade das participações (51% em
2015 e 55% em 2016) os envolvidos eram casados ou divorciados, apesar de existir
também uma percentagem considerável de casos em que a vítima e o agressor são
solteiros (19%).
Relativamente ao nível de escolaridade das vítimas, constatamos que em 2/3 das
ocorrências registadas no concelho, as vítimas não possuem mais do que o 9.º ano de
escolaridade. Sabemos que a violência doméstica não é um fenómeno exclusivo das
classes menos favorecidas ou menos instruídas (Pais, 1998). Contudo, é uma evidência
que é nestas classes que o problema é mais visível: “a violência doméstica conhece uma
certa transversalidade no seio das sociedades actuais. Apesar de ser um fenómeno mais
visível nas classes com fracos recursos económicos e culturais ela existe, igualmente,
nas classes médias e altas, apesar destas defenderem com mais afinco a sua
privacidade” (Dias, 1998, p. 197). No Anexo 4, podemos observar a distribuição da
profissão das vítimas42, classificadas de acordo com a Classificação Portuguesa das
Profissões.
Estas agressões ocorreram, na maior parte dos casos, em contexto de intimidade,
entre cônjuges ou em relações análogas à dos conjugues (66% dos casos registados em
2015 e 2016), apesar de cerca de 1 em cada 4 casos terem ocorrido após a separação do
42 Os dados referem-se apenas às situações em que foi possível identificar a profissão das vítimas. Em alguns casos, este dado não consta no Auto de Denúncia e, por isso, não é possível conhecer a atividade profissional da denunciante.
47
agressor (CLAS, 2017). Estes dados estão, aliás, de acordo com o contexto nacional e
demonstram que a violência doméstica continua a ser um fenómeno que ocorre
sobretudo entre “quatro paredes” o que dificulta ainda mais a sua denúncia e
visibilidade como vermos mais à frente.
Outro dado relevante que podemos observar no relatório da CMST refere-se ao
tipo de violência denunciada pelas vítimas43, que, como percebemos, é maioritariamente
psicológica e física (Anexo 5). Importa salientar que a violência doméstica está ainda
muito associada à crença de que apenas ocorre quando há violência física. Este mito,
muito marcado no discurso das vítimas e em vários estudos realizados no âmbito da
violência no namoro, onde se verificou uma desvalorização de outros tipos de violência
“menos visível” como a posse ou o controlo das vítimas (UMAR, 2016). No entanto,
como sabemos, a violência doméstica é exercida através de diversas formas, sendo a
mais comum, a violência emocional e psicológica, que “consiste em desprezar,
menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por
palavras e/ou comportamentos (…)” (Manita, 2009, p. 16). Este tipo de violência é
seguida da violência física, que “consiste no uso da força física com o objetivo de
ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes [ou outras
formas de violência que] (…) podem ir de formas menos severas de violência física até
formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade
permanente ou mesmo a morte da vítima” (Idem, Ibidem, p. 17). 43 Importa referir que o “tipo de violência” é um campo de preenchimento obrigatório do Auto de Notícia padronizado de violência doméstica que é assinalado pelo elemento das FS no momento da sua elaboração. Se não restam grandes dúvidas sobre o conceito de violência física perfeitamente identificado por todos os profissionais, já nos restantes tipos de violência poderá ocorrer um enviesamento por defeito, dada a não compreensão do conceito ou a inclusão desse tipo de violência na mais visível (por norma a física ou psicológica). Da nossa experiência no terreno, constatamos que muitas vezes o elemento policial que regista a ocorrência de violência doméstica, tende a tratá-la como qualquer outro tipo de crime, não dedicando especial importância a detalhes fundamentais para a avaliação da situação, com por exemplo, o tipo de vitimação inerente ao ilícito criminal. Se a resolução da ocorrência se desenvolve no local do crime, a dificuldade em detalhar e tratar essa informação é obstaculizada por vários aspetos operacionais, desde logo, muitas vezes, pela presença do agressor. Contudo se a denúncia é registada na esquadra, esse problema deixa de existir. Notamos que muitas vezes a violência social, por exemplo, é ignorada e “engolida” por outro tipo de violência mais “visível” ou mais marcada pela vítima. Por outro lado, nem sempre a vítima verbaliza (quase nunca) os episódios que a vitimaram, apresenta por norma um discurso confuso, desconexo e centrado no episódio que a motivou a denunciar o crime. Neste sentido, é importante ter em conta que estes dados dependem da “sensibilidade” do elemento policial que regista o crime e das circunstâncias em que a vítima o denuncia, sendo por isso necessário relativizar os resultados.
48
No mesmo sentido dos dados divulgados pelo MAI (2016), a violência física e
psicológica são os tipos de agressão mais participada pelas vítimas no concelho de
Santo Tirso, tendo ocorrido uma inversão da sua prevalência entre os anos de 2015 e
2016 conforme podemos observar no Anexo 5.
A violência social, que “resulta de estratégias implementadas pelo agressor
para afastar a vítima da sua rede social e familiar” (Manita, 2009, p. 16), foi também
referida em cerca de 10% das situações, bem como o abuso económico, “associado
frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o
agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou bens, incluindo, muitas vezes, bens de
necessidade básica para esta e para os filhos” (Idem, Ibidem, p. 18), que esteve
associado a 8% dos casos em 2015 e a 9% em 2016.
A relação entre o consumo de substâncias psicoativas (e.g. álcool e drogas) e a
violência doméstica está também muito presente no discurso das vítimas de violência
doméstica44, sendo frequente ouvir durante a denúncia de muitos destes crimes frases
como a que foi proferida por uma das entrevistadas: “Ficava muito mal disposto… se
bebesse, por isso é que eu digo que ele é uma pessoa fantástica, se não bebesse…”
(Fátima). Esta relação será analisada mais à frente, contudo é importante referir que os
dados disponíveis do concelho estão claramente abaixo do contexto nacional pois, de
acordo com o MAI (2016), estes consumos verificam-se em mais de metade dos crimes
participados (53%). Se observarmos os dados do concelho em 2015, verificamos que
essa prevalência ocorreu em 27% das denúncias, tendo esse número subido no ano
seguinte para 36% (CLAS, 2017). De uma forma sucinta, podemos descrever o perfil
das vítimas de violência doméstica do concelho de Santo Tirso, como sendo do género
feminino, com idades compreendidas entre os 40 e os 50 anos, casadas ou numa relação
de união de facto, com baixa escolaridade, trabalhadoras por conta de outrem (com
profissões pouco qualificadas), predominado as agressões físicas e psicológicas
cometidas pelos seus maridos/companheiros (Idem, Ibidem).
44 Da nossa amostra, cerca de metade dos agressores são consumidores habituais de álcool ou drogas.49
Capítulo 3 – Abordagem metodológica e análise das
entrevistas
3.1. Metodologia
Com esta investigação pretendemos perceber a implicação do processo
desencadeado pela denúncia do crime no fim do ciclo da violência bem como o
contributo das instituições intervenientes no processo, nas estratégias de
empoderamento adotadas/adquiridas pelas vítimas na reconstrução de um novo projeto
de vida. No plano metodológico a nossa abordagem foi de cariz qualitativo uma vez que
esta privilegia o uso de instrumentos que permitem obter uma análise mais intensiva e
aprofundada do fenómeno (Bryman, 1988). Como refere Bryman (1988), a
característica fundamental desta abordagem é permitir ao investigador captar expressões
e significantes diretamente dos sujeitos, enquanto na abordagem quantitativa, o que se
procura, não são as particularidades, mas a representatividade e a extensividade.
No mesmo sentido, Dias (2004) recorda que algumas autoras feministas, mais
próximas da abordagem qualitativa, consideram que “a análise da violência doméstica
não está completamente desprovida de valores, até porque implícita à investigação,
está a finalidade de intervenção na realidade” (Idem, Ibidem, p. 20). Neste sentido,
esta investigação assume dois objetivos fundamentais: melhorar e qualificar
tecnicamente o atendimento às vítimas de violência doméstica na esquadra policial onde
o autor presta serviço e analisar a pertinência da criação de uma estrutura de apoio
específica para estas vítimas no concelho de Santo Tirso.
A nossa técnica principal de recolha de dados será a entrevista pelas vantagens
que esta nos oferece, nomeadamente a possibilidade de uma exploração mais
aprofundada dos temas que pretendemos estudar, a possibilidade de ajustar o ritmo das
questões às entrevistadas, uma vez que pela complexidade emocional do tema, pode ser
necessário fazer pausas, a reformulação do guião de entrevista à medida que vamos
avançando na investigação, ajustando-o aos nossos objetivos.
As entrevistadas são mulheres vítimas de violência doméstica, todas residentes no
50
concelho de Santo Tirso, que têm em comum não só a experiência de terem sido vítimas
de violência nas suas relações de intimidade e denunciado o crime na PSP, mas também
terem terminado a relação abusiva e abandonado os agressores45. Estas mulheres, todas
elas com filhos, com diferentes níveis de escolaridade e tempo de
convivência/coabitação com os agressores, foram acompanhadas pelo autor no âmbito
do seu processo de denúncia e acompanhamento de pós-vitimação46, pelo que esta
relação de proximidade deve ser assumida. Apesar de ter existido uma tentativa de
afastamento entre o “polícia” e o “investigador” sobretudo nos momentos da entrevista,
entre “o polícia” e “a vítima”, sabemos que essa relação não desapareceu e está presente
em ambos os discursos (investigador e da vítima).
Esta proximidade e a relação de poder (simbólico) desigual com as vítimas, não
foi ignorada, bem como o rigor e a isenção na transcrição do sentimento das vítimas,
referindo aspetos positivos e enaltecedores do trabalho da Polícia, mas também
procedimentos menos corretos e, no mínimo, deontologicamente condenáveis de
elementos desta instituição. Contudo, a objetividade absoluta é um mito, “na medida em
que é mediada pelo próprio investigador com os seus valores e quadros de referência,
mas também não é completamente relativa, uma vez que é construída em interação com
o mundo empírico, que opõe a sua resistência às concepções que sobre ele se
constroem” (Dias, 2004, p. 21).
A análise das entrevistas foi precedida por uma sua prévia codificação usando,
para o efeito, uma grelha onde a par da classificação da informação, procedemos à
elaboração de sinopses que nos permitiram uma análise de conteúdo das mesmas. Um
dos primeiros trabalhos conhecidos a utilizar esta técnica foi o estudo sobre a integração
dos imigrantes polacos na Europa e nos EUA (Thomas e Znaniecki, 1927), onde os
autores analisaram centenas de cartas de correspondência entre esses e as suas famílias,
assumindo a técnica neste período, um carácter quantitativo. Mais tarde, durante a II 45 Uma das entrevistadas regressou a casa para junto do agressor após a realização da entrevista. Mais tarde, voltamos a contactar a vítima que nos informou que continua a ser maltratada pelo seu companheiro e que pretende abandonar a relação brevemente.46 Todas as vítimas foram acompanhadas pelo autor na avaliação/reavaliação de risco inerente à denúncia do crime de violência doméstica e durante o decorrer do processo-crime, sobretudo no apoio operacional (e.g. registo de aditamentos à denúncia ou acompanhamento de outras diligências de ordem técnica), mas também no contacto com outras instituições no sentido de procurar respostas (sociais, psicológicas e jurídicas) inerentes às necessidades das vítimas.
51
Grande Guerra, a análise de conteúdo serviu para analisar os discursos políticos e
militares do inimigo, começando a ser utilizada, após o final do conflito, por várias
ciências surgindo dois modelos epistemológicos distintos no que se refere ao modo
como se pretende descodificar o seu conteúdo: um “instrumental” e outro
“representacional” (Bardin, 1977). Se o primeiro se preocupa sobretudo com a
mensagem explícita – medindo, por exemplo, a sua frequência –, o segundo vai um
pouco mais além, pois tenta compreender também o significado do que não está
presente, visando compreender os significados latentes da mensagem. Estes dois
posicionamentos estão relacionados com o tipo de abordagem metodológica, sendo o
primeiro próximo da análise quantitativa e o segundo da análise qualitativa (Idem,
Ibidem). O debate teórico entre ambas as abordagens parece estar hoje ultrapassado uma
vez que, tal como defende Vala (2005), ambas as perspetivas são válidas e fazem
sentido, desde que sejam cumpridas as regras de aplicação dos instrumentos utilizados.
A justificação do uso desta técnica no nosso trabalho reside na possibilidade da
sua amplitude de análise que nos permite ir além dos significados imediatos da
mensagem, permitindo também compreender o que não é revelado, ou seja, a motivação
subjacente à produção de sentidos, daí a nossa opção pelo modelo representacional. No
entanto, como recorda Bardin (1977), esta técnica exige uma rutura com a banalidade e
com o senso comum e assenta em dois princípios fundamentais: a procura do rigor, na
medida em que cabe ao investigador interpretar a extensão da representatividade da sua
interpretação, bem como a busca de mensagens implícitas (significantes). Para isso
iremos aproveitar a sua capacidade heurística e, através da construção de grelhas
sistemáticas, que nos permitiram a realização de uma análise de conteúdo temática e
consequentemente a construção progressiva do nosso modelo teórico.
Dada a necessidade absoluta de proteção da identidade das vítimas, não será
revelada qualquer característica que as possa identificar, tendo-se optado por diferenciar
os excertos transcritos apenas por um nome fictício, omitindo-se a sua idade e quaisquer
outras características.
52
3.2. A identificação das instituições
Apesar da inexistência de uma estrutura especializada no atendimento e
acompanhamento às vítimas de violência doméstica do concelho, existem outras
instituições de cariz social que, pontualmente, prestam algum apoio a vítimas de
violência doméstica. Com o objetivo de conhecer o seu trabalho nesta área e perceber a
sensibilidade dos técnicos de intervenção social sobre esta temática, entrevistamos sete
profissionais (Assistentes Sociais e Psicólogas) com cargos de direção nas organizações
que identificamos de seguida e que intervêm diretamente em várias vertentes sociais do
concelho. Estas organizações pertencem ao CLAS47 do município e o critério da escolha
deveu-se à sua proximidade com o cidadão e à relevância da sua intervenção social no
concelho.
A Casa Abrigo de Santo Tirso (estrutura pertencente à Irmandade da Santa Casa
da Misericórdia de Santo Tirso), criada em 2004, está, pela sua definição legal48,
diretamente relacionada com a problemática da violência doméstica sendo uma
referência especializada no concelho nesta temática. Atualmente, com capacidade para
acolher 25 utentes residentes (mais 13 em vaga de emergência), tem ao seu dispor
técnicas especializadas em diversas áreas científicas49 que trabalham diariamente com as
vítimas de violência doméstica acolhidas na instituição provenientes de todo o país.
A Divisão de Ação Social da Câmara Municipal de Santo Tirso é uma secção
relevante da autarquia na medida em que responde e intervém diretamente com a
população. O seu trabalho de proximidade com as pessoas e a recolha direta de
informação privilegiada possibilita uma fonte próxima dos problemas dos munícipes.
Das suas competências, realçamos o apoio à habitação para vítimas de violência
doméstica, sendo justamente no desempenho desta competência que são conhecidas
uma parte substancial destes casos.
47 Conselho Local de Ação Social. 48 As Casas Abrigo “são as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores” (Art.º 60.º da Lei n.º 24/2017, 24 de maio).49 De acordo com a legislação em vigor as Casas Abrigo deverão dispor “…para efeitos de orientação técnica, de, pelo menos, um licenciado nas áreas sociais ou comportamentais, preferencialmente psicólogo e ou técnico de serviço social, que atua em articulação com a equipa técnica.” (Art.º 64.º da Lei n.º 24/2017, 24 de maio). No presente caso a equipa técnica é constituída por duas psicólogas e uma assistente social.
53
A Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Santo Tirso, é também uma
estrutura relevante, dado o seu trabalho, “junto das pessoas que estão expostas a
situações que ameaçam a sua sobrevivência com dignidade, nomeadamente as
situações caracterizadas por ausência ou insuficiência de condições sociais e
económicas” (Cruz Vermelha, 2017). A sua área de atuação é vasta, salientando-se o
acompanhamento especializado a cidadãos que beneficiam do RSI50 por ser nessa
vertente que surgem mais situações de denúncia/conhecimento de casos de violência
doméstica.
A ASAS é uma instituição de referência do concelho de Santo Tirso,
reconhecida pelo seu trabalho de acolhimento de crianças e jovens em situações
socialmente desfavorecidas. Contudo, a sua área de atuação estende-se para além do
trabalho desenvolvido com as crianças e jovens, tendo também uma resposta social,
através do seu Gabinete de Ação Social, que passa pelo acompanhamento de famílias
com problemas de exclusão social, podendo também atuar em situações de emergência
como, por exemplo, articulação com a LNES para o encaminhamento do acolhimento
de vítimas de violência doméstica. De acordo com um protocolo realizado com a
Segurança Social, as situações sinalizadas pela LNES à Segurança Social que não têm
técnico de acompanhamento, são reencaminhadas para o GAS que assume essa
orientação técnica, sendo também daqui que resulta grande parte das situações
conhecidas de violência doméstica. De acordo com fontes da própria instituição, a
ASAS é responsável por cerca de 20% do apoio de ação social do concelho (ASAS,
2017).
O Centro Comunitário de Geão, estrutura criada em 2001 pela Irmandade da
Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, surge inicialmente como um projeto que
visou combater a pobreza no concelho, mas que se assumiu mais tarde como uma
resposta social polivalente que abarcou várias áreas, onde se destaca a cantina social.
Atualmente é uma das estruturas que faz o acompanhamento técnico de crianças e
50 Em 2005 foi celebrado um protocolo de colaboração entre a Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de
Santo Tirso e o Instituto de Segurança Social/Centro Distrital da Segurança Social do Porto, que atribuiu
a este núcleo competências no âmbito do acompanhamento de cidadãos beneficiários do RSI.54
jovens em risco sinalizadas pela CPCJ local, com especial relevo para as crianças
expostas a violência doméstica pelos seus progenitores.
O Núcleo Local de Inserção de Santo Tirso é o representante local do Instituto
da Segurança Social e a estrutura central para onde são encaminhados os pedidos da
LNES para apoio ou alojamento de emergência a vítimas de violência doméstica. Para
além disso, dada a natureza da sua missão de auxílio e apoio aos mais desfavorecidos, é
um espaço onde, por vezes, são sinalizadas situações de violência doméstica que
posteriormente são encaminhadas para outras estruturas mais especializadas.
No sentido de conhecermos melhor o funcionamento do sistema judicial e o
tratamento que este confere aos processos de violência doméstica, entrevistamos
também uma advogada com vasta experiência nesta área. Dada a nossa posição de
elemento da PSP/investigador, para apresentar uma visão mais distanciada deste
fenómeno, entrevistamos também um graduado desta Polícia para conhecermos a sua
perspetiva da abordagem deste OPC à violência doméstica. Importa destacar que a PSP
é a Força de Segurança responsável pelo policiamento da cidade, juntamente com a
GNR, com quem divide a jurisdição territorial do concelho. Dada a natureza da sua
missão51 e a relevância que tem assumido no combate ao fenómeno da violência
doméstica em Portugal, a PSP é uma estrutura de referência do concelho no que diz
respeito à denúncia e ao combate da violência doméstica52.
3.3. Análise das entrevistas
A análise das entrevistas foi estruturada de acordo com o percurso de vida das
entrevistadas, desde o momento em que se iniciou o período de namoro até ao final da
relação com o agressor, tendo estas etapas coincidido, de certa forma, com as fases do
ciclo da violência doméstica. Verificamos que após o momento da denúncia, ocorreram
mudanças significativas na vida das vítimas, pelo que percorremos esse caminho
51 De acordo com a sua Lei Orgânica “A PSP tem por missão assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei.” (Lei n.º 53/2007, 31 de agosto).52 Através dos elementos afetos ao programa Escola Segura, a PSP realiza anualmente dezenas de ações de sensibilização nas escolas do concelho sobre a temática da Violência Doméstica/Namoro, efetuando também várias palestras para técnicos e encarregados de educação sobre o tema.
55
analisando com detalhe algumas consequências da separação dos agressores, bem como
apontando insuficiências e constrangimentos que foram referidas pelas vítimas ao longo
de todo este processo.
3.3.1. O início da relação – O período de namoro
Como sabemos, a violência no namoro é muitas vezes um preditor da violência
doméstica (Machado, et al., 2006). Nas entrevistas que realizamos, pudemos constatar
que praticamente todas as vítimas identificaram (no momento da entrevista), no início
das suas relações afetivas com os agressores, comportamentos violentos. O controlo e o
ciúme, assim como o sentimento de posse, foram os comportamentos mais denunciados
pelas vítimas,
“Andava sempre a controlar-me, sempre a telefonar-me para casa dos meus
pais (…) ia lá a várias horas e eu ficava envergonhada. Não era ir lá e ficar, era ir lá
só para me controlar e depois ia embora. Mas na altura não liguei nada a isso”.
(Maria)
“Na escola era igual, eu ia para a escola da escola ia para casa, ele ia todos os
dias a minha casa e o bocadinho que eu estava com os meus amigos era na escola… a
gente vai-se afastando de todos. Fins-de-semana, sair, passeios da escola… zero, ele
proibia-me de sair.” (Alzira)
Estes comportamentos, segundo Machado et. al. (2006), podem ser explicados
pela socialização dos rapazes que encontram nestas manifestações de poder uma
legitimação da sua autoridade sobre as raparigas. No mesmo sentido, Matos (2006)
refere que estes comportamentos são atitudes que nos alertam para prováveis
complicações futuras nestas relações. Por outro lado, o isolamento social, identificado
nestas relações, assume também uma dupla função de vitimização quer fragilizando a
vítima, quer ocultando a violência que o agressor comete sobre ela (Idem, Ibidem).
“Afastei-me dos meus amigos todos, perdi os meus amigos todos… não podia
falar com ninguém, eu não podia sair com ninguém, o meu refúgio era o meu
trabalho… era a única situação em que saía sozinha e voltava sozinha”. (Maria)
“No namoro, tudo normal… eu também só tinha amigos rapazes por isso nunca
falava muito com eles, ele não gostava. Mas nunca liguei a isso”. (Florbela)56
Apesar de haver evidências claras de comportamentos violentos em praticamente
todos os casos identificados, registamos duas situações em que as vítimas afirmaram
que a violência só teve início após o casamento, mas devido a fatores exógenos aos
agressores, seja por consumo abusivo de álcool/drogas ou por motivos de doença do
foro mental:
“Namoramos alguns anos. Era simpático, era meigo, mas depois começou a
beber muito (…) no namoro nunca fez nada, era normal”. (Cristina)
“Não durante o tempo de namoro, não aconteceu nada… era meigo, era uma
pessoa supersimpática, embora andasse nos consumos [drogas] e tal, era uma pessoa
normal (…). Tratava-me mal e depois pedia-me desculpa, já nem lhe ligava porque
sabia que ele era assim por causa da doença”. (Sílvia)
Importa lembrar que as vítimas têm idades distintas e que, por isso, o próprio
conceito e práticas de namoro não é igual para todas as entrevistadas. Por exemplo,
quando falamos sobre esse período, a Cristina, com mais de 60 anos, recordou que no
seu tempo era costume “namorar à porta de casa e, muitas vezes, na presença dos
pais”, tendo afirmado que o seu namoro tinha sido normal, não tendo detetado qualquer
forma ou ato de violência nesse período (que durou cerca de dois anos), até porque não
passava muito tempo com o seu namorado. No entanto, não deixa de ser relevante notar
que a Florbela, apesar de ter menos de metade da idade da entrevistada anterior, não
relevou o facto de o seu namorado não gostar que falasse com outros rapazes, ignorando
o controlo e a posse evidenciada pelo jovem no período de namoro. Na verdade, esta
falta de perceção do comportamento violento e a legitimação da violência no período de
namoro por parte dos jovens, tem vindo a ser estudada, por exemplo, pela UMAR
(2017) que vem alertando para a importância da sua sensibilização sobre estas práticas
nada saudáveis e potencialmente perigosas no período de namoro53.
53 Durante as sessões de sensibilização que realizamos nas várias escolas do concelho sobre o tema da Violência no Namoro e no contacto diário que mantemos com vários jovens, notamos essa desvalorização de comportamentos de controlo e posse, até de isolamento social, por parte dos namorados/as. É muito frequente haver o controlo do telemóvel do namorado/a, proibição de vestir determinadas peças de roupa, pressão para não frequentar determinados locais (e.g. bar/discoteca) sem a presença do namorado e, quando questionados sobre estes comportamentos, consideram-nos normais e, por vezes, provas de amor do parceiro. Nestas situações, parece haver uma certa bidirecionalidade da violência, uma vez que estes
57
Numa investigação realizada com jovens universitários, Machado, et al., (2006),
identificaram também no seu trabalho, a presença frequente nas relações de namoro, do
que consideraram “formas menores” de violência: insultar, difamar ou fazer
afirmações graves para humilhar ou ferir, gritar ou ameaçar com intenção de meter
medo, partir ou danificar objectos intencionalmente e dar bofetadas.” (Idem, Ibidem, p.
60). De acordo com a nossa análise, podemos concluir que, tal como noutras
investigações, “de uma forma geral, os casamentos abusivos são precedidos de
relações de namoro violentas e caracterizadas por estratégias de controlo e restrição
da autonomia da mulher” (Caridade e Machado, 2006, pp. 485-486).
3.3.2. Viver juntos – Início da violência e estratégias de sobrevivência
Da análise que efetuamos percebemos que a violência manifestada durante o
namoro, raramente entendida pelas vítimas como tal nesse período, não só se manteve
como aumentou de intensidade após a união do casal, o que vai ao encontro da
constatação de Hamberger, L. K., e Holtzworth-Munroe, A. 1994 (cit. Caridade e
Machado, 2006), que afirmam que quando a relação abusiva se prolonga no tempo a
violência tende a aumentar a sua frequência e gravidade. No nosso estudo, verificamos
que na maior parte dos casos, pouco tempo após o casamento, os agressores
intensificaram e agravaram os comportamentos violentos que já tinham manifestado
anteriormente no período de namoro. O domínio da vítima manifestou-se de várias
formas como, por exemplo, através do controlo das suas rotinas diárias ou da proibição
do uso de determinado tipo de indumentária:
“Começou a tentar controlar a minha vida, a não querer que eu andasse com os
meus amigos, que andasse só com os amigos dele, não queria que eu vestisse certas
coisas, não queria que eu andasse maquiada, não queria que eu fosse para o trabalho
maquiada, era muito controlador”. (Rita)
“Controlava-me, não me deixava sair, se saísse tinha que sair com os meus
filhos… sair sozinha, nem pensar, sair tarde do trabalho, nem pensar, tinha horas para
comportamentos são também observados nas raparigas. 58
chegar. Eu tinha horas para chegar a casa, ele sabia a que horas eu saía e dava-me
tempo para chegar a casa”. (Alzira)
Este controlo reforçou o isolamento social de Alzira, proibindo e dificultando a
sua convivência com amigos ou familiares mais próximos:
“Eu era a verdadeira mulher de sonho! Dona de casa, não saía para lado
nenhum, não tinha amigos, vivia exclusivamente para a família (…) vivia para a
família, para a casa, aquilo era a minha vida”. (Alzira)
Paula passou por uma situação semelhante: “Ele chegava a casa e depois ia
para o café jogar às cartas. Nessa altura começou a proibir-me de falar com as outras
pessoas, não sei o que se passou, pensava coisas… na cabeça dele não sei. Eu tinha
que ficar sempre em casa e não podia falar com ninguém”.
O ataque à autoestima com afirmações que mostram desprezo pela identidade da
vítima, recorrendo por vezes à humilhação pública, constitui outra estratégia violenta
por parte dos agressores:
“Sempre que iam lá para casa amigos nossos, o que não acontecia muitas
vezes, ele tentava sempre dar a cravadela «Porque esta tua amiga… não sabe por os
pratos na banca… é uma despassarada, esquece-se de tudo» sempre… a apontar o
dedo e isso magoava-me… acabava por me humilhar”. (Carla)
As manifestações de posse e ciúme foram identificadas por todas as vítimas nas
suas relações:
“Fui obrigada a deixar de trabalhar com homens por causa dele, ele chateava-
me a cabeça por estar a trabalhar com homens… imagine, se isto é possível”. (Sílvia)
“Agredida psicologicamente, começou muito cedo e era praticamente todos os
dias […] era aquele sentimento de posse, ela agora não pode sair daqui… é a minha
opinião”. (Alzira)
As vítimas, por sua vez, afirmaram que desde o início da relação, assumiram
uma posição de submissão perante os agressores, conformando-se com a sua situação,
desvalorizando o comportamento dos cônjuges, tentando justificá-los como se tratasse
de uma doença ou se devesse ao “mau feitio” dos agressores. Em todos os casos, a 59
submissão aos agressores, foi a estratégia usada pelas vítimas para defender o bem
maior: a família e, sobretudo, os filhos:
“Eu acho que nessa altura não sentia nada, nem queria sentir… é uma
autodefesa, digamos assim… estranho dizer isto… tenho o meu trabalho, tenho o meu
filho… vamos vivendo. Vamos… ver até onde é que aguento”. (Carla)
“Eu para amenizar isto lá lhe dizia…«O pai é doente, ele anda em consultas de
psiquiatria, isto não é normal, tu não podes fazer isto e tal…» e lá fui amenizando as
coisas”. (Maria)
Assim, para evitar o confronto com os agressores ou para não potenciar a
agressão, estas mulheres não os contrariavam e cediam às suas exigências, dedicando
parte do seu tempo às tarefas do lar como forma de os agradar e adiar uma possível
rutura que só mais tarde viriam a ter como certa:
“Tratava da roupa dele, fazia-lhe o almoço, fazia-lhe o jantar e dava-lhe
dinheiro. Era para o que eu servia… foi assim durante anos (…) não se podia contar
com ele para nada, para ir buscar o filho à escola… não se podia contar para ele em
nada, era como se não tivesse ninguém, eu é que tratava de tudo.” (Sílvia)
“Metia-se na adega com os frades e chegava a casa sempre bêbado. Mas
quando chegava tinha tudo pronto, o comerzinho na mesa e tudo, ele comia, mas não
dizia nada.” (Cristina)
Questionadas sobre as circunstâncias em que ocorreu a primeira agressão54, a
maior parte as vítimas responderam que aconteceu após um período (mais ou menos
longo) de tensão e, na maior parte dos casos, pouco tempo após o casamento. Esse
acumular de tensão foi caracterizado por discussões sobre temas do quotidiano, como o
trabalho da vítima, o incumprimento das regras estipuladas pelo agressor (e.g. a hora de
chegada a casa após o trabalho), ou a desconfiança de traição com outros homens. Estes
argumentos, eram os mesmos que serviam para justificar as agressões:
“Implicava muito com o meu trabalho e muitas vezes ia chorar… ele não me
via… mas muitas vezes ia para [local de trabalho] chorar… [logo apos o casamento?]
Poucos meses depois, porque implicava… [o local de trabalho] está sempre em
54 Percecionada pelas vítimas como um ato violento.60
primeiro lugar, tu só pensas no trabalho, tu não queres saber de mim para nada…
passo muitos fins-de-semana sozinho”. (Carla)
“Nesse dia esqueci-me de levar o telemóvel e quando me apercebi disso, tive a
plena perceção que aquilo não ia correr bem. Quando cheguei a casa ele estava à
minha espera, foi a primeira vez que ele me agrediu”. (Alzira)
“Depois começou a dizer que eu tinha amantes… e até me vieram as
lágrimas aos olhos porque era uma ofensa muito grande, porque quem me conhece
sabe que não preciso disso para acabar… eu acho que ele dizia isso porque era a única
explicação que tinha para eu acabar.” (Natália)
“Eu saí para ir comemorar o dia da mulher e ele ficou em casa, estávamos só
mulheres, estávamos todas juntas a festejar e ele ligou-me, «Onde estás?» e eu «Estou
aqui com a minha irmã!» E ele «Não estás nada, tu estás com o amante, eu estou a
ouvir que estás com o amante» e eu a dizer-lhe que não (…) foi-me buscar e eu estava à
porta, eu fui ter com ele e ele deu-me assim uma sapatada e disse, «Eu vi-te a saíres do
carro com o teu amante!» e eu disse, «O quê? Não viste que estava com a minha
irmã?» (Sílvia)
Algumas destas agressões, ocorreram quando os agressores estavam sobre o
efeito de substâncias psicotrópicas ou alcoolizados:
“Começou logo após o nascimento do meu filho, quando ele começou a beber,
isso foi a “primeira sapatada”. Até ele ter um ano nunca lhe ligou, aí começou também
a tratar-me mal, pela falta de dinheiro, começou a beber quase todos os dias.”
(Florbela)
“A primeira agressão aconteceu ainda enquanto namorávamos, eu estava
grávida e estava ao telefone com alguém, e ele tinha fumado e eu nem sei o que é que
ele ouviu da minha conversa, porque agrediu-me violentamente”. (Fátima)
O consumo abusivo de álcool ou drogas pelos agressores foi identificado por
seis das nossas entrevistadas. Em dois casos, os agressores já eram consumidores de
produtos estupefacientes durante o período de namoro, tendo os restantes quatro
iniciado o consumo abusivo de álcool já depois do casamento com as vítimas. Em
alguns casos, atribuíram a violência dos seus maridos ao consumo excessivo de álcool
61
ou drogas uma vez que as agressões mais severas, por norma, físicas, ocorreram quando
se encontravam sob o efeito dessas substâncias:
“Ele ficava muito agressivo quando misturava o haxixe com o álcool. Se me
visse a falar com algum colega ou com algum amigo ficava logo… furioso! (…) Se
bebesse… por isso é que eu digo que ele é uma pessoa fantástica, se não bebesse… eu
tenho muita pena de ter perdido essa pessoa”. (Fátima)
A relação entre o consumo excessivo de álcool ou substâncias psicotrópicas e a
violência foi já estudada por várias disciplinas das ciências sociais, tendo-se verificado
uma associação clara entre ambas as variáveis, sobretudo nos crimes mais graves como
homicídios ou ofensas sexuais, verificando-se que uma parte significativa dos
agressores, quando cometeram os crimes, estavam sob a influência dessas substâncias
(Klostermann e Fals-Stewart, 2006). Num estudo recente realizado em Portugal sobre os
homicídios conjugais, verificou-se que em cerca de 13% dos casos, o homicida estava
sob efeito de álcool ou drogas ilícitas (Agra, 2015, p. 66).
Parece haver um certo consenso na comunidade científica que, “the occurrence
of violence between intimate partners is the culmination of multiple interacting
contextual, social, biological, psychological, and personality factors that exert their
influence at different times, under different circumstances” (Klostermann e Fals-
Stewart, 2006, p. 589). Contudo, apesar de ser conhecido o papel desibinidor que o
consumo abusivo destas substâncias desempenha no potenciar da agressão, não é
pacífico se esse consumo é ou não responsável pelo cometimento da agressão55. Importa
realçar que, talvez o mais importante, independentemente do papel que o álcool
desempenha na agressão, ele torna-se “corrosive to relationship quality. Thus, long-
term alcohol use creates an environment that sets the stage for partner conflict and,
ultimately, partner violence” (Idem, Ibidem, p. 590). Ora, foi justamente este desgaste
que foi confirmado pelas vítimas cujos agressores consumiam abusivamente bebidas
alcoólicas e que foi também um contributo para o fim da relação:
55 Por exemplo, Leonard e Quigley (1999) afirmam que o consumo abusivo de bebidas alcoólicas pode contribuir para a ocorrência de comportamentos mais violentos por parte dos agressores, sobretudo no período seguido ao casamento.
62
“Enquanto vínhamos da nossa casa para casa da minha mãe, ele parava em
todo o lado para beber cervejas e quando o chamava à atenção para ele não beber
mais, ele dizia, “O que é que tu queres?” Pegava no menino ao colo e dizia, “Não
estás bem? O menino é meu! Põe-te no caralho e desaparece-me da frente! (…) já não
aguentava aquilo!” (Rita)
3.3.3. Lua-de-mel – A continuação das agressões
De acordo com a nossa experiência no acompanhamento de situações de
violência doméstica e através do discurso das vítimas, podemos perceber que o modelo
explicativo do ciclo da violência doméstica (Walker, 1984) se ajusta às situações em
análise. Este modelo evidencia as estratégias usadas pelo agressor durante a relação com
a vítima e de que forma a controla e domina dificultando o seu rompimento com o ciclo
da violência. Contudo, Dutton (2009) critica este modelo por não se verificar em todos
os casos de violência conjugal. Aliás, a autora (Walker, 1984), assumiu que “only some
of the woman interviewed in her study reported patterns of abuse consistence with this
theory, with 65% of all cases reporting evidence of a tension-building phase and 58% of
all cases reporting evidence of loving contrition afterward” (Dutton, 2009, p. 2).
No entanto, como veremos de seguida, de uma forma geral, todas as
entrevistadas assumiram ter experienciado as três fases identificadas por Walker (1984),
com, obviamente, diferentes tempos de duração e sequência. De acordo com este
modelo, numa primeira fase ocorre um acumular de tensão que é caracterizada por
pequenos desentendimentos entre o casal onde podem ocorrer discussões sobre, por
exemplo, temas do quotidiano (e.g. falta de dinheiro, consumos abusivos) ou decisões
em que há desacordo, que vão aumentar de intensidade e resultar numa escalada de
tensão que poderá ser gradual. A segunda fase é o culminar da anterior, e é denominada
por fase de agressão, onde a escalada de violência acaba por resultar numa agressão
física, sexual ou psicológica. Por fim, surge a fase lua-de-mel, onde o agressor, após ter
agredido a vítima, se desculpabiliza e promete que a violência não mais se irá repetir.
Contudo, passado algum tempo, a relação volta a entrar numa fase de acumulação de
tensão que irá culminar numa nova agressão continuando o ciclo até que a vítima
63
consiga libertar-se. De acordo com Walker (1984), esta estratégia do agressor provoca
na vítima um sentimento de confusão uma vez que esta acredita que ele vai mudar,
ficando desta forma cada vez mais dependente emocionalmente dele e sentindo mais
dificuldade em romper com este ciclo.
A violência doméstica nas relações afetivas é manifestada de diversas formas
existindo várias estratégias usadas pelos agressores para condicionar e impossibilitar as
vítimas de reagir: “o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em
que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela
ansiedade e pelo medo” (Guerra e Gago, 2016, p. 31). As vítimas, acabam assim por ser
enredadas numa teia complexa de emoções que as impossibilita de se libertarem com
facilidade. No início dos anos 80 do séc. XX, foi desenvolvido na cidade de Deluth
(Minesota) o Deluth model, um programa de intervenção junto das vítimas que
pretendeu combater o fenómeno da violência doméstica naquela cidade. Este modelo,
entretanto adotado em várias cidades dos EUA, ajuda-nos a também a compreender as
várias táticas usadas pelos agressores para controlarem e dominarem as suas vítimas
(Anexo 10).
De acordo com este esquema, após a agressão, os agressores pediam desculpa
pelos seus atos e, por vezes, justificavam o seu comportamento pelo amor que tinham
por elas:
“Ele sabia levar bem as pessoas (…) dizia-me que não ia voltar a acontecer
mais, que iria ser tudo diferente, que ia a um psicólogo, que só fez aquilo porque estava
desesperado com a ideia de me perder e por isso é que reagia assim, prometia mundos
e fundos, e a pessoa acaba por acreditar”. (Rita)
“E depois eles veem, prometem mundos e fundos, prometem que nunca mais
volta a acontecer, “porque eu estava com a cabeça perdida” e pronto. A gente acredita
e acha que foi um episódio que não se repete, que aconteceu.” (Alzira)
Apesar de em todos os casos analisados as agressões terem ocorrido diversas
vezes, não se observou nenhuma situação em que tenha acontecido uma denúncia logo
após a primeira agressão:
64
“Ele depois pedia desculpa, pedia imensas desculpas, mas depois, passado uns
tempos, já estava a fazer a mesma coisa, voltava sempre ao mesmo!” (Sílvia)
“A gente zangava-se e depois vinha aquela fase que ficava tudo bem, durante
uns tempos a coisa funcionavam bem, mas como eu costumava dizer, o saco enchia e
depois rebentava sempre dentro de casa”. (Natália)
A continuação do ciclo da violência não ocorreu apenas pelas promessas de
mudança dos agressores, mas por outros fatores que pudemos identificar. Por um lado,
todas as vítimas acreditaram na possibilidade de mudança dos agressores:
“Eu acreditei que sim, que ele ia mudar, sempre pensei que pudesse ser uma
pessoa diferente, mais sociável até porque eu consegui mudá-lo muito.” (Maria)
Por outro lado, pelo medo que sentiam do agressor e pela elevada probabilidade
de voltarem a ser agredidas perante as ameaças que sofriam, elas permaneciam junto
deles:
“Também tinha esse medo… uma pessoa que nada tinha a perder… perdia-me a
mim, os filhos (…) uma pessoa que não tem nada a perder também é uma cabeça
perdida e eu tinha um bocado de medo. Depois mata-me a mim, mata-se a ele…e é este
o nosso desfecho. A minha filha ainda hoje diz, “só vais ter paz quando o pai morrer”.
(Alzira)
“Eu pensava, «Eu saio daqui e vou para onde? Ele vai-me seguir e vai fazer das
dele», compreende? Ele era obcecado… também tinha receio. Para onde é que eu ia?
Só se fosse para longe, entende? Porque ele ia-me seguir, ele dizia-me, “se tu me
deixares ficar, eu mato-te a ti e ao amante!” (Sílvia)
O receio de ficarem sozinhas, sem um companheiro, a sua perspetiva sobre o
casamento, a vergonha e a crítica social foram também razões apontadas pelas vítimas
para não terem abandonado a relação após o primeiro contacto com a violência
doméstica:
“Porque tinha medo de tudo… ele falava-me tantas vezes que ninguém me
queria, com duas filhas… «Vais conhecer um gajo… o que é que ele vai dizer? Que
65
tens uma filha de cada pai!» Aquilo era horroroso e ainda hoje isso me angustia!”
(Fátima)
“Fui criada num ambiente em que a gente quando se casa é para a vida toda. O
que se passa em casa, entre mulher e homem, é com eles, ninguém tem nada que se
meter e a gente tem que aguentar”. (Paula)
“Fora de portas, para os outros, nós eramos o casal ideal, nunca ninguém
suspeitou de nada (…) eu tinha vergonha de dizer, isto nunca se tinha passado em
minha casa, nunca aconteceu. Aquilo fazia-me confusão, eu dizia, «Não foi para isto
que me casei» eu queria ficar velhinha com ele”. (Natália)
Um dos motivos referidos por todas as vítimas para a manutenção da relação
após as sucessivas agressões que as vitimou foi a proteção dos filhos. Disseram ter
acreditado, logo desde o início da violência, que os seus filhos estariam melhor com
ambos os pais do que só com um deles. Este foi o principal argumento para a
continuidade da relação:
“Eu achava que o melhor para os meus filhos era estar em casa, ter o pai e a
mãe, quando me apercebi que afinal não era assim, já estava decidida a sair de casa
(…) a gente pensa sempre que o melhor para os filhos é ficar em casa com o pai e
realmente é a pior coisa que se pode fazer. Se eu pudesse aconselhar alguém nunca
diria para aguentar tantos anos”. (Alzira)
“O que eu fiz durante estes anos todos, o que eu aguentei, foi em prol dos meus
filhos.”. (Paula)
3.3.4. A denúncia do crime
Todas as entrevistadas, de uma forma direta, apresentando denúncia na Esquadra
ou, de forma indireta, através da participação das forças de segurança que se deslocaram
ao local do crime, tiveram contacto com a PSP e, posteriormente, com o Ministério
Público56. Um dos nossos objetivos foi perceber qual o impacto da denúncia do crime no
cessar do ciclo da violência. Walker (2004) recorda que o abandono do agressor não
56 Uma das entrevistadas não foi ouvida pelo Ministério Público, uma vez que o processo foi arquivado sem a sua audição. Esta situação é pouco comum encontrando-se um recurso pendente no Supremo Tribunal de Justiça.
66
implica o fim da violência, no entanto, apesar de tal se ter verificado, havendo até em
alguns casos, um incremento da violência, na verdade, esta decisão acabou por
contribuir de forma decisiva para o afastamento do agressor e, mais tarde, para cessar
com o ciclo da violência.
Questionadas as vítimas sobre os motivos que as levaram a denunciar o crime,
referiram, praticamente todas, que foi sobretudo a necessidade de proteger os filhos da
violência que as vitimava que as levou contactar a PSP:
“Em agosto, bateu-me bastante e a minha filha pega numa cadeira e diz assim:
«Ah meu filho da puta não bates mais à minha mãe!». A minha filha dizer uma coisa
dessas, chocou-me. No dia seguinte fui ao primeiro advogado que encontrei e pedi
ajuda para pedir o divórcio. Ela tinha perdido o respeito pelo pai e eu achei que já não
valia a pena continuar a batalhar (…) ela [a filha] estava numa fase de crescimento, de
desenvolvimento… é uma fase de transição, é uma fase muito difícil em que têm que
fazer escolhas e podem enveredar por caminhos muito difíceis e o meu grande medo é
ela enveredar por caminhos menos bons e preocupava-me essencialmente o bem-estar
dela”.
(Maria)
Outro motivo apresentado pelas vítimas, foi a sua situação de desespero e
fragilidade psicológica em que se encontravam no momento em que denunciaram o
crime, que serviu como um pedido de ajuda:
“Quando me enviou quinze emails de uma vez só numa noite disse, «Acabou!
Não aguento mais!». O meu pai a ver-me a chorar todos os dias, eu a agarrar-me à
minha mãe a dizer-lhe que não aguentava mais… não fiz isto por vingança, mas porque
não aguentava mais, fi-lo pela minha sanidade mental! (…) Independentemente de lhe
ter dado o dinheiro, as joias, tudo… ele não parava!” (Carla)
Como referimos, nem sempre a denúncia do crime parte da vítima. Há situações
em que a vítima não manifestou vontade de apresentar queixa, mas dada a natureza do
67
crime (público) quando acontece uma intervenção de qualquer entidade pública (e.g.
Forças de Segurança) é, por norma, elaborado Auto de Notícia57:
“Nesse dia chamei novamente a Polícia e quando eles chegaram viram um
colchão no chão e perguntaram-me o que era aquilo. Eu disse que era onde estava a
dormir com o meu filho, porque nessa altura eu já nem ia para casa porque ele ia lá
sempre à noite bater-me à porta, bater à janela e eu tinha muito medo. Aí a polícia
interveio e disse que eu não ficava lá nem mais um minuto. Ligaram para a APAV e
levaram-me para a Esquadra”. (Paula)
Noutras situações, a decisão de denunciar o crime foi impulsionada por
familiares ou técnicos que já tinham conhecimento da situação e convenceram as
vítimas dessa necessidade e pertinência:
“A minha mãe obrigou-me a fazer queixa, disse que as coisas não podiam
continuar como estavam, mas eu não queria porque sabia que as coisas iam piorar”.
(Rita)
“Fiz queixa porque senti o apoio da psicóloga e do Agente (…), que me
explicaram que era muito importante denunciar o que tinha passado. (Fátima)
Pretendemos também saber qual o sentimento das vítimas após a denúncia do
crime, tendo percebido nesse momento que se verificou sobretudo uma mistura de
sentimentos negativos, marcado pelo medo, sentimento de culpa e desorientação:
“Medo, muito medo. Eu estava apavorada. Pensei, é desta que ele vai matar,
porque se se apresentou queixa… e quando o Agente me disse, «Isto vai demorar algum
tempo», eu disse, «Então eu não apresento queixa!». Eu ainda tenho medo dele, porque
se estiver com cabeça quente, não pensa, leva tudo à frente.” (Rosa)
“É engraçado… eu disse isto à Dr.ª da APAV… parecia que estava a traí-lo,
que estava a fazer as coisas nas costas dele (…) ainda hoje digo que a culpa é minha
em muita coisa”. (Carla)57 Por vezes esta participação dos factos é enviada ao Ministério Público sem o consentimento ou a vontade da vítima. Esta é uma questão delicada com que muitos profissionais lidam, pois se por um lado existe o dever legal de participar o crime, por outro, fazê-lo sem uma prévia preparação da vítima para enfrentar o que está para vir pode ser contraproducente não só pela sua ineficácia legal, como pela sua segurança.
68
“Depois de ter feito a queixa, aí é que eu precisava de ter uma explicação de
como a coisa ia correr… os senhores que lá foram a casa foram muito atenciosos,
ouviram a minha filha, registaram tudo. A partir daí, senti-me perdida. Acredite que
não sabia quais eram os trâmites que isto ia levar (…) Senti-me muito sozinha,
acredite, sinto-me só… e trabalho com tanta gente, é uma solidão no meio da confusão,
trabalho com tanta gente e sinto-me só. É um sentimento de solidão e confusão
emocional muito grande, é uma grande confusão são muitas coisas a acontecer ao
mesmo tempo, não acredita… é a policia é a assistente social, é a CPCJ… é muita
coisa a acontecer ao mesmo tempo, mas vamo-nos adaptando.” (Maria)
Mas também aconteceram sentimentos positivos, como alívio e orgulho pelo
passo que acabava de ser dado:
“Senti um grande alívio e que tive coragem. Eu tinha dois handicaps para não
fazer queixa, o meu filho e a profissão dele, não o queria prejudicar.” (Carla,)
“Na esquadra soube-me bem, porque estava com aquela vontade que ele
percebesse que tinha feito mal.” (Fátima).
Como referimos anteriormente, apesar da penosidade do processo inerente à
denúncia, em praticamente todos os casos,58 esse passo foi determinante para o
abandono do agressor:
“Sim, valeu a pena [denunciar o crime] e se fosse hoje voltava a fazer o mesmo.
Foi um empurrão para abandonar a vida que eu tinha. Hoje vejo isso… além de não ter
tido o apoio que deveria ter tido, sinto que fiz bem, apesar de ter passado tudo o que
passei com ele. Foram 20 anos em que tive pouca felicidade.” (Paula)
“Sim, claro que sim. Se fosse hoje faria o mesmo, apesar de achar que para ele
isso não alterou nada. Mas na altura ajudou-me a afastar-me dele.” (Sandra)
“Valeu [a pena apresentar queixa], porque ele parou…. Quer dizer, o massacre
que não me deixava viver (…) Fazia queixa na mesma, divorciava-me dele na mesma,
mesmo que me dissessem que ia passar por isto tudo, fazia tudo igual.” (Carla)
58 Uma das vítimas voltou a reatar a relação com o agressor, tendo, contudo, já procurado apoio psicológico para abandonar o agressor (que a continua a agredir).
69
“Eu pensava que se fizesse queixa ele ia perceber que o que fez estava errado…
mas isso não aconteceu… sinceramente acho que se não tivesse apresentado queixa
acho que ele se teria reaproximando e eu tinha caído novamente no mesmo inferno. Se
calhar, só por isso já foi bom.” (Fátima)
Decorrente da denúncia, só em duas situações foram aplicadas pelo Juiz medidas
de afastamento aos agressores que resultaram num aumento do sentimento de segurança
das vítimas:
“Serviu para ele ter a pulseira [vigilância eletrónica] … para isso serviu, sinto-
me mais segura.” (Florbela)
“Ele achava que podia fazer tudo porque não havia controlo. E efetivamente
não havia, não sentia que ele fosse controlado (…) só depois de ter a pulseira
eletrónica, que digo-lhe é excelente, é que me senti mais segura.” (Maria)
3.3.5. A reação do agressor à denúncia do crime
O momento em que o agressor toma conhecimento que é suspeito da prática do
crime, representa, por norma, perigo para a vítima, sendo aliás um argumento
apresentado por vezes, pelas vítimas para não denunciar o crime. Na verdade, na maior
parte dos casos que analisamos, a violência (psicológica) e a perseguição às vítimas
(stalking) aumentou logo após o agressor ter tido conhecimento que a vítima o tinha
denunciado:
“Aí é que as coisas começaram a piorar, dizia que não ia ficar descansado
enquanto não me matasse, disse-me que não ia parar enquanto não me visse morta.
Depois começou também a ameaçar as minhas amigas, foi mesmo muito mau.” (Paula)
“Ligou-me logo a insultar-me… disse, «Fizeste queixa contra mim? Fizeste uma
queixa contra mim? Então já vais ver!» E eu disse, «Sim, foi para entenderes o mal que
fizeste!» e três ou quatro dias depois assumiu publicamente no Facebook que tinha uma
namorada e que a amava e que era a mulher da vida dele. (…) Foi mesmo para me
magoar, foi horrível, até porque ainda havia muita gente que não sabia que estávamos
separados.” (Fátima)
70
“Pois, aí a coisa piorou muito! Começou a ameaçar-me, começou a perseguir-
me, começou a ligar-me todos os dias a todas as horas, começou a controlar a minha
vida de todas as maneiras… saía de casa e ele seguia-me de carro, eu não podia sair,
andava sempre acompanhada.” (Rita)
Verificamos também que em dois dos casos analisados, os agressores
apresentaram, de seguida, uma denúncia contra as vítimas também por violência
doméstica59.
“Eu sei que ele anda a arranjar estratégias e mais estratégias para ver se me
consegue denegrir de forma a ser eu a responsável por tudo o que aconteceu (…)
também apresentou uma queixa contra mim, mas eu disse sempre a verdade e ainda
acredito que haja justiça em Portugal”. (Carla)
Dada a natureza das nossas funções, conhecemos de perto todas as denúncias de
violência doméstica efetuadas neste departamento desde o ano de 2014 e sobre as
denúncias apresentadas por homens contra as suas companheiras/cônjuges, temos
conhecimento que a maior parte delas foram arquivadas por falta de prova.
Naturalmente isso não significa que o crime não tenha ocorrido, mas que, de acordo
com a informação disponível para o Ministério Público, não existiam indícios
suficientes que pudessem levar à condenação do suspeito em julgamento.
No entanto, não podemos deixar de referir que de acordo com a nossa
experiência empírica e do contacto diário com outros técnicos de intervenção social,
sabemos que uma parte significativa das denúncias apresentadas contra mulheres
alegadamente agressoras, não só não correspondem efetivamente a factos ocorridos,
como surgem, por norma, após a denúncia das vítimas (mulheres) de violência
doméstica e com o objetivo de as desestabilizar num momento que per si, já é de crise.
Neste sentido, e com o objetivo de recolher mais informação sobre esta nossa
perceção, entrevistamos um elemento graduado da PSP da Esquadra de Santo Tirso e
uma advogada que, além do exercício das suas funções num escritório privado de
advocacia, presta também apoio a vítimas de violência doméstica numa Casa Abrigo.
59 Uma dessas denúncias foi arquivada por falta de prova poucas semanas após ter sido apreciada pelo Ministério Público e outra encontra-se ainda em fase de apreciação, há mais de 12 meses, na mesma entidade, aguardando-se o respetivo despacho.
71
Questionado o elemento policial sobre a sua perceção acerca das denúncias efetuadas
por homens vítimas de violência doméstica, o mesmo referiu:
“Já tive um ou outro caso noutras esquadras por onde passei, mas aqui em
Santo Tirso só recebi uma queixa de um homem, mas aquilo… aquilo foi uma
estratégia da defesa. Eu acho que a maior parte das queixas que são feitas pelos
homens são nesse âmbito, são os advogados deles que lhes dizem para fazer queixa
contra elas porque assim é queixa contra queixa e há maior probabilidade do juiz
arquivar o caso… sabe como é… isso é normal nas situações em que há agressões ou
ofensas entre as pessoas (…) Não tenho dúvidas nenhumas que a esmagadora maioria
das situações de violência doméstica as vítimas são mulheres, claro que também há
homens vítimas, até mais ao nível psicológico, mas os números não são aqueles que
dizem as estatísticas oficiais, são muito menos”. (Graduado da PSP)
Por seu turno, a advogada, questionada sobre a sua experiência profissional no
âmbito da violência doméstica, nomeadamente no que diz respeito às denúncias
efetuadas por homens afirmou:
“De acordo com a minha experiência, sobretudo com o trabalho que
desenvolvo com as vítimas da Casa Abrigo, a generalidade das situações que eu
conheço, para não dizer… a maioria mesmo das situações que eu conheço das queixas,
são apresentadas pelos homens na sequência de uma queixa apresentada pelas
mulheres, ou seja, é uma queixa contra queixa, usam a participação criminal como
uma forma de… intimidação, de mais uma forma de constranger a vítima. Todos os
casos que eu conheço têm a ver com isso.“ (Advogada)
No entanto, discordou do elemento da PSP quanto à origem dessa estratégia:
“Francamente…não acredito. E por isso aqui volto á minha experiência
enquanto advogada, não tenho essa ideia da partilha, de contactos com outros colegas,
não vejo que isso seja algo orientado pelos advogados, muito sinceramente (…) Acho
que é uma estratégia para incomodar, tenho essa experiência de Casa Abrigo, eu acho
que eles têm a noção de que a queixa não vai dar em nada, mas enquanto isso a vítima
é constituída arguida, passa por esse processo… e isso mexe com as pessoas e acaba
por as enfraquecer um bocadinho, eventualmente, acaba por influenciá-las para
72
aceitar uma suspensão provisória do processo, acho que tem mais a ver com isso. Eles
têm a clara perceção, no meu ponto de vista, que alguém ser arguido num processo-
crime é algo que incomoda e isso eles sabem que as vai fragilizar, é mais uma forma de
as violentar, é mais uma forma de violência. Isso também acontece, por exemplo,
quando fazem participações contra elas por sequestro dos filhos, sabem que não é
verdade, mas faz mossa.” (Advogada)
Sabemos que é ainda mais difícil para os homens denunciarem que são vítimas
de violência doméstica e que certamente existem muitas situações em que os homens
são vítimas e não denunciam por vergonha e pela crítica social a que estão sujeitos,
acontecendo o mesmo, certamente, a muitas outras mulheres que, por outras razões,
continuam a pertencer às cifras negras deste fenómeno. No entanto, não nos referimos a
esses casos, mas àqueles que são conhecidos e apresentados nas estatísticas oficiais, por
exemplo no último relatório do CLAS (2017)60. O facto do elemento da PSP mencionar
os (poucos) casos que conheceu e a causídica se referir sobretudo à sua experiência na
defesa das vítimas acolhidas em Casa Abrigo61 não invalida, do nosso ponto de vista, a
pertinência da discussão dos dados referentes às denúncias apresentadas por homens
vítimas de violência doméstica que, parece-nos, necessitam de uma abordagem mais
rigorosa uma vez que uma parte substancial dessas denúncias poderão não corresponder
efetivamente a situações de violência doméstica, mas a estratégias de defesa dos
agressores62.
3.3.6 A separação do agressor
Apenas em dois dos casos analisados, o momento da denúncia correspondeu a
um afastamento imediato do agressor. Numa das situações a vítima foi acolhida em
Casa Abrigo (por ameaças credíveis contra a sua vida) e noutra, a vítima refugiou-se em
casa de familiares durante alguns dias por temer uma reação violenta do seu marido. O 60 De acordo com este relatório, foram apresentadas em 2016, no concelho de Santo Tirso, 14 denúncias pelo crime de violência doméstica em que as vítimas são homens. 61 Casos, por norma, mais gravosos, onde a vítima correrá um maior perigo ou risco de vida.62 A complexidade dessa análise não cabe neste trabalho, contudo, pareceu-nos importante deixar algumas pistas para que este tema seja futuramente abordado, dado não conhecermos nenhum estudo sobre esta temática, ou seja, que tenha investigado as denúncias, a sua substância e resultado destas participações criminais.
73
momento da separação é um momento crítico sendo justamente nesta fase que o risco de
morte ou ofensas à integridade física é mais elevado (Dawson e Gartner, 1998; Walker e
Logan, 2004). Como explica Matos (2006), a saída de uma relação abusiva envolve um
processo complexo para a vítima uma vez que a tomada dessa decisão tem em conta um
conjunto de variáveis que poderão condicionar essa vontade. Desde logo, a sua própria
segurança ou, por exemplo, se houver filhos, a dos seus descendentes. Walker e Logan
(2004) referem ainda um conjunto de problemas que podem ocorrer após esse período,
“high risk for stress, mental health, and health problems; have increased conflict over
the children and concern for child safety; and have economic, structural, psychological,
and social barriers to help seeking. All of these factors may substantially affect a
woman’s separation adjustment, well-being, and ability to maintain separation from a
violent ex-partner” (Idem, Ibidem, p. 1478). No mesmo sentido, Mertin e Mohr (2001),
afirmam que há uma correlação positiva entre a continuação de abusos após o final da
relação afetiva e o aumento de ansiedade, depressão e stress pós-traumático.
Como refere Matos (2006,) a existência de filhos numa relação afetiva abusiva
pode, por um lado, adiar a saída, para sua proteção, enquanto são ainda pequenos, como
pode também ser um fator impulsionador para o abandono do agressor. Foi justamente
isso que verificamos na análise dos discursos das vítimas, pois questionadas sobre essa
decisão (abandonar o agressor), revelaram que se deveu sobretudo à necessidade de
proteger os filhos da violência que as vitimava:
“Isto é estranho, vi-me naquela confusão toda, mas pus-me do lado de fora e
pensei, «Eu não quero isto para a minha vida, esta dependência, esta brutalidade». E
também não queria que o meu filho crescesse a ver isto.” (Carla)
“Se calhar deixaria andar mais se não fosse o episódio do meu filho, ter o
problema que teve [teve um ataque de pânico quando viu o pai agredir a mãe] porque
eu achava que o melhor para os meus filhos era estar em casa, ter o pai e a mãe,
quando me apercebi que afinal não era assim”. (Natália)
O receio da reação dos agressores após o abandono da relação, foi também
referido por todas as vítimas que, tal como o momento da denúncia, é marcado pelo
medo e desorientação:
74
“Estive uma semana fora, passei os fins-de-semana todos fora, sempre com
medo, com receio, nunca saía de casa sozinha, nunca chegava a casa muito tarde…
muito medo, sempre com aquele receio… embora sei que para ele é muito fácil
arranjar uma arma, muito fácil. O que me dava segurança não foi vocês apreenderem
as armas que ele tinha, mas ele perceber que podia ter consequências. Ainda ficou uma
noite na prisão, acho que lhe fez bem”. (Alzira)
“Senti-me um bocadinho desorientada. Estava tão habituada a cumprir com
aqueles rituais, a dar satisfações de tudo… não sei se isso acontece com outras
pessoas… senti-me um bocadinho perdida. Senti… estúpido, mas é exatamente isso que
eu senti, senti dificuldade em viver a minha vida. Senti-me desamparada”. (Maria)
Como referem vários autores, (Walker, 2004; Matos, 2006; Kirkwood, 1993), o
momento da separação é também marcado pelo risco do aumento de fatores de stress
como, por exemplo, problemas relacionados com a sua saúde mental que se prolongam
para além da separação (Walker, 2004). Praticamente todas as entrevistadas recorreram
a ajuda especializada, sobretudo na área da psicologia e, em alguns casos, aos médicos
de família que as encaminharam para os serviços de psiquiatria:
“Quando a psicóloga me abandonou, fez-me muita falta… eu apresentei queixa
na polícia, depois fui chamada à Dr.ª (…) e depois ela mandou-me para a psicóloga.
Fez-me muita falta porque andava sempre tudo na minha cabeça… foi muito difícil,
porque eu não me sentia bem com ele, tinha medo de tudo e de todos… andei com a
psicóloga uns tempos e ela ajudou-me muito.” (Cristina)
“Senti muita necessidade desse apoio, ainda hoje sinto. E tanto que senti que há
dois meses fui pedir ajuda à minha médica de família, veja lá há quanto tempo eu ando
nisto (…) a minha médica disse-me… eu às vezes tinha queixas de que me doía o
peito… desta última vez ela disse-me, «Você não tem nada, eu não lhe vou dar nada,
porque eu já a conheço há muitos anos e já sei o que você tem. Sabe o que você tem?
Tem que esquecer o passado de uma vez por todas, tem que arrebitar, tem que pensar…
não é só no seu filho! Pense em si!»” (Paula)
75
3.3.7. Uma nova vida?
Após a separação do agressor, seguem-se momentos marcados pela indefinição e
incerteza do que está para vir, pois “sair de uma relação abusiva não significa
necessariamente que a mulher passe a experienciar bem-estar” (Matos, 2006, p. 129).
Como refere a autora, esta saída pode inclusive ser geradora de novos problemas, como
o agravar da situação financeira da vítima ou novas responsabilidades parentais (no caso
de ficar com a custódia legal do/s filho/s), associada, como referimos anteriormente, a
fatores de stress potenciados pela separação. Anderson e Saunders (2003) referem que a
saída da relação abusiva, “is the continuation of a process that begins at the emotional
and cognitive level while she is still in the relationship and extends well beyond her
physical departure” (Idem, Ibidem, p. 179). Nesta fase de rutura, as vítimas são
afetadas por vários fatores de stress, desde logo pela sua anterior experiência de abuso
que em muitos casos não termina imediatamente apos a separação do agressor, existindo
alguns estudos que apontam até para um aumento da violência (e.g. através de stalking),
nos momentos subsequentes à separação, que contribuem para o aumento do receio que
algo lhes possa acontecer, incluindo a sua própria morte (Mechanic, Weaver e Resick,
2000).
Anderson e Saunders (2003) identificam outros fatores no período pós-
separação, como o sentimento de perda do seu companheiro63 que, após alguns meses,
tenderá a ser relativizado e racionalizado. A socialização da mulher, o seu ideal de
família (casamento para sempre) contribui também para este sentimento de perda e
desilusão. Muitas vezes, referem os autores, este sentimento reporta-se também à perda
de algum conforto financeiro/estilo de vida que existia na relação com o agressor que,
com a separação, se irá perder. Associada a essa razão, surge outro fator de stress que se
refere à perda de recursos económicos que quase sempre está associada à separação do
agressor. Apesar de nos dias de hoje a dependência financeira das vítimas relativamente
aos agressores ser um aspeto menos central, devido ao facto da maior parte das
mulheres estar inserida no mercado de trabalho64, a sobrevivência financeira e, por 63 Este sentimento, paradoxal, foi identificado por algumas vítimas que no momento da separação, recordaram as características positivas dos agressores.64 Das vítimas entrevistadas apenas uma estava dependente economicamente do agressor.
76
vezes, a manutenção do estilo de vida existente durante o casamento, continua a ser um
problema que é identificado pelas vítimas no momento da separação.
Outro aspeto referido por Anderson e Saunders (2003) prende-se com a
alteração da dinâmica familiar das vítimas que em muitos casos se vêm confrontadas
com reações pouco compreensivas por parte dos seus filhos, pela necessidade de
mudança de residência, pela procura de emprego, por um agravamento das suas
despesas mensais, sobretudo quando ficam com as responsabilidades parentais
atribuídas e o agressor não cumpre as suas obrigações legais na prestação de alimentos.
Contudo, nem todas as vítimas são afetadas por estes fatores com a mesma
intensidade, dado o acesso a determinados recursos ser diferenciado (Idem, Ibidem).
Estes recursos podem ser materiais como, por exemplo, vestuário, alimentos ou um
novo espaço onde residir, sendo esta uma das preocupações mais manifestadas pelas
vítimas no momento da saída da residência (Kirkwood, 1993). O apoio social é também
um recurso muito importante e está diretamente relacionado com o bem-estar
psicológico das vítimas uma vez que quando ele é eficaz, reduz substancialmente a
probabilidade de ocorrências de depressões mais graves (Anderson e Saunders, 2003).
Os seus recursos internos, ou seja, o nível da sua autoestima65 e a sua capacidade em
confiar que vai conseguir ultrapassar a situação é também muito importante e está
relacionada com níveis mais elevados de bem-estar alguns meses após a separação do
agressor. Finalmente os autores alertam para o relevo dos recursos institucionais, pois
como se descreveu anteriormente, há necessidades que têm que ser supridas logo após a
separação e nem sempre as vítimas têm recursos (sobretudo financeiros) para recomeçar
as suas vidas.
Neste âmbito está demonstrado em vários estudos que o apoio psicológico e o
acompanhamento pós-vitimação têm um impacto muito significativo no aumento da
autoestima das vítimas bem como no abandono definitivo da relação abusiva (Tutty,
Bidgood e Rothery, 1993). Neste sentido, questionámos as vítimas sobre os
acontecimentos posteriores à separação do agressor e o que aconteceu após essa
decisão. Verificamos que apenas em dois casos foram tomadas medidas pontuais para
65 Este é justamente um dos maiores problemas que as vítimas enfrentam uma vez que, por norma, a sua autoestima é destruída pelos agressores durante a relação afetiva.
77
tentar ultrapassar esta fase, como procurar emprego ou voltar a estudar e fazer novos
amigos:
“Procurei trabalho… procurei ajuda! Arranjei trabalho, comecei a trabalhar
num restaurante e estou a ser acompanhada por uma psicóloga, mas ainda tenho medo.
Sinto que ainda há aqui qualquer coisa que não desapareceu. A minha almofada é que
sabe o que eu passo, já se passaram alguns anos mas ainda não o consigo enfrentar, há
ali qualquer coisa que ainda me incomoda. Sem apoio é muito difícil ultrapassar isto,
eu cheguei a pensar afogar-me em trabalho para não pensar em nada e continuo a ter
o meu tempo todo ocupado para não pensar em nada. Também estou com outra pessoa
e isso também me está a ajudar um bocado, mas cada um está na sua casa, falamos e
tal… tem-me apoiado muito.” (Paula)
“Demorei algum tempo, bastante tempo a recuperar a minha autoestima (…) foi
um bocado, vamos viver… andei um ano com os meus filhos…tive um caso amoroso,
que foi muito importante para mim porque me ajudou bastante a perceber que afinal eu
não sou assim… aquilo que ele dizia, um trapo, ajudou-me muito. Depois inscrevi-me
na faculdade e esse foi o meu maior salto. Conhecer outras pessoas, outras vivências,
outras idades, fazer amigos, acho que foi o clique”. (Alzira)
Apesar de Alzira ter criado algumas estratégias para mitigar a sua experiência de
violência, a maior parte das vítimas não evidenciou qualquer estratégia de
empoderamento, salientando-se as dificuldades na aproximação a novas relações
afetivas:
“A minha psicóloga disse-me, «Agora podes arranjar outra pessoa», mas eu
estou sempre… eu não quero ser assim, mas estou sempre a analisar… [risos] tenho
lido sobre isso.” (Carla)
“Neste momento acho que ainda gosto dele e isso é impeditivo de me aproximar
de outra pessoa. Às vezes noto que se aproximam de mim, mas eu, como ainda gosto
muito dele, não me consigo entregar. Além disso também tive medo, pelo que passei e
não quero que isso se volte a repetir, por isso estou sempre a comparar as pessoas”.
(Fátima)
78
Algumas vítimas continuam a centrar a sua vida no presente, não existindo
quaisquer planos para o futuro:
“Vim para casa dos meus pais. O resto deixei para trás… mas está cá dentro.
Vivo para os meus pais… depois das sete da noite não saio de casa com medo dele,
tenho muito medo dele. A minha vida está parada, estou com os meus pais. Às vezes
liga-me uma colega para ir tomar um cafezinho e quando converso com ela já venho
diferente.” (Cristina)
“Eu penso é no que me está a acontecer, não penso no futuro… ele disse-me,
«um dia vais ficar sem a pulseira e aí tu vais ver o que te vai acontecer!» E depois
como é que vai ser? O que é que me vai acontecer? Lá está, devia haver alguém que
explicasse”. (Maria)
Questionadas sobre a pertinência da existência de uma estrutura especializada no
atendimento a vítimas de violência doméstica, todas as entrevistadas afirmaram terem
sentido falta desse apoio em determinadas fases do processo de denúncia:
“Apresentei queixa em março, nunca fui ouvida, já foi há mais de ano e nunca
ninguém me contactou. Acho que devia haver uma instituição a dar apoio e a orientar,
porque uma pessoa perde-se a meio do caminho. Tipo, “Apresentei queixa, e agora?”
Ou uma pessoa tem possibilidades económicas, e muitas vezes não tem, e se informa
com o advogado, ou pode prejudicar-se. Acho que deveria haver uma parte de ajuda
jurídica, outra psicológica… quer a nível da vítima quer dos filhos e ajudá-las a lidar
com a situação.” (Carla)
“Devia de haver uma pessoa encarregue de explicar às vítimas as
consequências que vão resultar da queixa… “vai ter momentos de fraqueza, vai ter
momentos de angústia, vai ter momentos bons, vai ter momentos maus, mas é assim que
geralmente acontece. Se precisar de desabafar, desabafe comigo, não desabafe com o
vizinho, nem com o primo, nem com o amigo porque todos lhe vão dizer uma coisa
diferente e todos vão prejudicá-la”. (Maria)
A inexistência de uma estrutura especializada de apoio a vítimas de violência
doméstica no concelho de Santo Tirso foi sinalizada por todas as técnicas entrevistadas 79
como um problema a ser corrigido, havendo unanimidade na urgência e pertinência da
sua criação, servindo como referência de boas práticas o extinto Projeto Iris66:
“Faz sentido uma estrutura de apoio [a vítimas de violência doméstica]. Aliás
foi proposto, quando terminou o financiamento do Projeto Iris, em núcleo executivo da
Rede que a Câmara agarrasse o financiamento, ficou em ata, mas depois foi decidido
que não havia possibilidade por não haver financiamento (…) de facto era muito
pertinente a existência de uma valência como esta. Houve bons resultados com o
Projeto Íris.” (Assistente Social, NLIS)
Das entrevistas realizadas às técnicas de ação social do concelho, apuramos
também que, por vezes, as vítimas acabam por ter algum acompanhamento (não
especializado) por parte de técnicos no âmbito do decorrer de outro apoio entretanto
concedido. Importa salientar que a intervenção destas instituições com vítimas de
violência doméstica ocorre apenas nos casos em que já existe um acompanhamento
prévio das vítimas, motivado, por norma, por uma necessidade de apoio ou intervenção
social67.
“Fazemo-lo informalmente (…) fazemos o acompanhamento da criança, mas é
óbvio que para proteger o menor que a mãe também tem que estar bem. Não o fazemos
à mulher enquanto vítima, fazemos enquanto mãe, com a colaboração das colegas da
Casa Abrigo, mas não é uma resposta estruturada nem criada para o efeito… vamos
fazendo isso internamente.” (Assistente Social, ISCMST)
“Se é beneficiária, por exemplo, do RSI, ela já é acompanhada nesse âmbito e
se também se descobre se é vítima de violência doméstica, o acompanhamento também
é direcionado para esse problema (…) mas não é um acompanhamento especializado
66 O Projeto Íris foi desenvolvido pela Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, tendo tido o seu início de atividade em 23/11/2012 e cessado em 31/05/2014. Teve um impacto muito positivo no auxílio que prestou às vítimas e aos técnicos de intervenção social do concelho, e teve como objetivos fazer um diagnóstico da prevalência da violência doméstica no concelho, avaliar o seu impacto na qualidade de vida das vítimas, alertar e sensibilizar as mulheres para este tipo de vitimação, divulgar pelas ILAS esta reposta social, bem como promover a troca de experiências entre técnicos cujo trabalho incida nesta área e divulgar boas práticas que previnam a incidência do fenómeno (disponível em: http://www.misericordia-santotirso.org/instituicao/projetos/Misericórdia de Santo Tirso, 2017). 67 Como exemplo podemos indicar uma situação em que a vítima se encontre a ser acompanhada pela Cruz Vermelha por ser beneficiária do RSI e, entretanto, denuncie que é vítima de violência doméstica. Neste caso terá também alguma orientação nesse âmbito. Pela inerência desta organização, o apoio seria mais de índole social.
80
para vítimas de violência doméstica, nós não temos competências, para isso, não temos
a especialidade necessária para acompanhar uma vítima de violência doméstica. Não
somos psicólogas, somos assistentes sociais com formação específica.” (Assistente
Social, Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Santo Tirso)
Questionadas as técnicas sobre o tipo de apoio mais apropriado para estas
vítimas, disseram que de acordo com a sua experiência, é fundamental atuar em três
eixos centrais: social, psicológico e jurídico. A psicóloga da Casa Abrigo, explicou com
algum detalhe o trabalho que desenvolve naquela instituição e que, na sua opinião,
deveria ser replicado num projeto de intervenção com vítimas de violência doméstica:
“No primeiro mês, são tratadas essencialmente questões muito práticas de
intervenção em crise, tratar feridas abertas… e questões muito práticas, dar
andamento ao processo, pedir apoio jurídico, aguardar nomeação de advogados, pedir
RSI… enfim, tratar destes processos iniciais. (… ) Depois, é mais sobre alguma
resposta que seja preciso dar… mas é muito mais ao nível social e psicológico que é
feita a intervenção, quer em consulta individual, quer intervenção em grupo. (…) temos
também programas de competências pessoais, competências sociais, competências
para a procura de emprego e de ativação para a empregabilidade, enfim, depende do
diagnóstico inicial que é feito durante o primeiro mês e do plano individual que é
traçado para cada uma das utentes e do agregado que representam. O plano individual
contempla sempre essas três áreas, a social, a jurídica e a psicológica…” (Psicóloga,
Casa Abrigo)
Podemos assim concluir que estas organizações tomam conhecimento das
situações de violência doméstica através de sinalizações de outras estruturas de
intervenção social ou dos OPC, mas também no contacto direto com as vítimas, quase
sempre no âmbito das suas competências de intervenção social, o que exclui todas as
outras situações de violência que não requerem qualquer tipo de sinalização a estas
estruturas. Quanto aos procedimentos adotados, são maioritariamente de
encaminhamento para os OPC ou para o Ministério Público, ocorrendo em situações
pontuais um acompanhamento não especializado das vítimas pelos técnicos que já
efetuavam esse trabalho no âmbito de outra medida de intervenção social. Este apoio é
81
sobretudo de cariz social dado ser justamente essa a vertente em que assenta o trabalho
destas organizações. A única estrutura especializada no atendimento a vítimas de
violência doméstico do concelho, a Casa Abrigo, presta um apoio específico às vítimas
acolhidas na instituição repartindo a sua intervenção em três áreas de acordo com as
necessidades identificadas, a área social, jurídica e psicológica realizando um trabalho
individualizado e ajustado às necessidades de cada uma delas.
Além da criação de uma estrutura de específica de apoio à vítima no concelho,
algumas entrevistadas referiram também a necessidade que sentem em partilhar com
outras vítimas de violência doméstica as suas experiências e mitigar o seu sofrimento:
“Se um dia houver um núcleo de apoio [a vítimas de violência doméstica] eu
gostava muito de participar, de ajudar outras pessoas… fazer pelas outras o que
gostaria que tivessem feito por mim, (…) costumo dizer que é como quando se vai ter
um filho (…) às vezes pensava, meu Deus, como é que vai ser? E depois pensava, não.
Se as outras conseguiram eu também vou conseguir… e é um bocado por aí… porque é
mais fácil uma pessoa que passou pelo mesmo chegar à pessoa (…) É importante ter
outra pessoa que passou pelo mesmo.” (Rosa)
“Sei que se fala muito na violência doméstica e sei que vocês também falam
muito sobre isso nas escolas… se calhar definir um dia em que se fale só sobre isso,
seja na Câmara ou nas escolas, tipo um open day com pessoas que realmente passaram
por isso, e tentar mostrar que estas coisas acontecem, que não acontece só às outras,
que há sinais que nos podem avisar… sei que há casa de apoio às vítimas, mas se
calhar termos um espaço onde se pudesse falar sobre isso, termos uma pessoa que
compreenda o que estamos a passar…se calhar até serem mesmo as pessoas que já
passaram por isso a falar com as outras vítimas, por exemplo, haver reuniões onde se
falasse destas coisas.” (Rita)
Mais adiante, vamos explicar a pertinência da constituição destes grupos de
autoajuda e o impacto positivo no empoderamento das vítimas é muito relevante,
salientado que este trabalho foi justamente uma das tarefas desenvolvidas pelas técnicas
do Projeto Íris.
3.3.8. Avaliação do processo de denúncia82
Quando as entrevistas foram realizadas, houve casos em que os processos ainda
se encontravam a decorrer no Tribunal, e outros em que os agressores já tinham sido
julgados e condenados ou absolvidos. Apesar dos processos-crime por violência
doméstica assumirem um tratamento prioritário nos tribunais, continuam a haver casos
que, dada sua complexidade processual ou por outros fatores68, se prolongam por vários
meses sem haver qualquer decisão dos órgãos competentes. Esta demora provoca nas
vítimas um desgaste emocional adicional, até porque a maior parte delas ignora o
funcionamento dos tribunais. A incompreensão desta demora e os seus efeitos, bem
como a atitude insensível de alguns profissionais foi referida por algumas vítimas:
“Não se compreende como é que uma pessoa faz uma queixa e está tanto tempo
à espera… a burocracia é incrível! São assuntos que deveriam ser tratados com muita
urgência! Estou convencida que se a justiça fosse mais rápida as vítimas sentiam mais
confiança para apresentar queixa”. (Rosa)
“Quando fui ao juiz parecia que lhe estava a dar razão, parecia que ele é que
era a vítima. Quer dizer, eu é que tinha sido agredida, eu é que tive que sair de casa,
mas ele é que era a vítima, as perguntas que o juiz me fazia… depois até me mandaram
calar, parecia mesmo que o juiz estava com pena dele, nem me deixava acabar uma
resposta, parecia que estava ali para me confundir!” (Paula)
“Acho que eles [os filhos] são demasiado espremidos, muitos expostos… os
advogados são terríveis, são até imorais. Comigo tudo bem, mas com a miúda…
usaram todo o tipo de estratagemas para a confundir, para a contrariar (…) a mim isso
entristece-me imenso, (…) não sei como me controlei em tribunal para não intervir, a
ouvir mentiras porque doeu muito”. (Fátima)
A advogada foi também questionada sobre a sua experiência na área da violência
doméstica, e qual a sua perceção sobre o tratamento deste crime nos tribunais,
transcrevendo-se de seguida a sua opinião sobre o tema:
“Noto claramente que ao nível do Ministério Público há uma maior
aproximação dos senhores procuradores adjuntos relativamente às vítimas, porque eu
penso que eles têm até orientações superiores para serem eles a fazer os
68 Por exemplo, por motivos de doença de algum magistrado.83
interrogatórios às vítimas e não os funcionários, e isso faz toda a diferença porque
obviamente têm uma formação diferente da que tem um funcionário (…) Já não tenho a
mesma perceção quanto aos juízes de instrução criminal que aplicam as medidas de
coação, acho que há ali algo que se quebra e que por isso mesmo havendo promoções
do Ministério Público, mesmo havendo informações da PSP ou da GNR quando há, por
exemplo, níveis elevados de risco para a vítima, parece-me que muitas vezes esses
indicadores são ignorados porque, apesar de tudo, mesmo tendo contacto com muitas
situações de violência doméstica, são poucas as situações em que são aplicadas
medidas de coação verdadeiramente eficazes..” (Advogada)
O trabalho da polícia foi também, por vezes, criticado. A crítica mais apontada
foi a falta de sensibilidade de alguns agentes na forma como abordaram o problema e
alguns preconceitos que ainda demonstram ter sobre o fenómeno no momento do registo
da denúncia:
“[quando apresentou a denúncia na Esquadra] lembro-me que estava lá o
Agente (…) e como eu tinha os meus pais ao meu lado… sobre a violação… ele disse-
me para não falar sobre isso à frente deles, que depois um dia me chamava para
falarmos. Nunca mais me chamou e aquilo ficou assim. Depois, eu disse que ele tinha
umas facas de matar porcos e os polícias foram lá buscá-las, fora de casa, para as
minhas filhas não saberem (…) e um dos agentes, que era amigo dele, disse-lhe que eu
tinha entregado as facas. Olhe, um dia eu chamei a Polícia e foi esse e outro que foi lá
a casa e nesse dia uma vizinha ouviu como eles me trataram e veio falar comigo e
perguntou-me o que se passava e eu disse-lhe. Ela disse, «Já não é a primeira vez que
ouço esses polícias a tratá-la mal, eles têm que acalmar e não tomar parte por
ninguém, você tem que dar parte deles”. (Cristina)
“Não tive sorte nos polícias que apanhei a fazer queixa nem com o juiz que
apanhei no tribunal. Claro, depois aquela coisa da CPCJ, também foi muito
complicado.” (Paula)
Apesar de terem sido notadas experiências negativas no contacto com a PSP,
verificou-se também algumas situações positivas, sobretudo no contacto com elementos
84
especializados no atendimento a vítimas de violência doméstica:
“O Agente (…) foi extremamente sensível e eu senti esse apoio, foi muito
importante. Naquela fase [momento da denúncia] é muito importante, nem que seja um
telefonema a perguntar se se está bem, valoriza-se imenso, pode ser só uma pergunta,
mas para quem recebe, sabe muito bem (…) a gente sente-se segura, um agente, está
preocupado com o nosso caso, isto vai correr bem, foi o que eu senti. É importante.”
(Rosa)
Confrontado com estas deficiências, o Graduado da PSP referiu que a Polícia
tem investido muito nos últimos anos na formação de elementos afetos aos programas
de proximidade69 e que o atendimento a este tipo específico de vítimas tem melhorado:
“Atualmente a PSP já tem equipas especializadas no acompanhamento às
vítimas, mas claro, somos polícias, não somos psicólogos, se bem que às vezes
acabemos por ser um pouco de tudo… O apoio que damos é aquele que nos é pedido
pela nossa instituição”. (Graduado da PSP)
No entanto, referiu que uma parte substancial das ocorrências participadas por
esta Polícia é realizada nos locais de residência das vítimas (ou no local onde ocorrem
as agressões), sendo esse serviço efetuado pelos elementos da tripulação dos carros de
patrulha que, por norma, não têm formação específica para lidar com estas situações:
“A minha função na PSP atualmente é de atendimento ao público e é nesse
contexto que tenho conhecimento das situações de violência doméstica, quando as
vítimas vêm à Esquadra denunciar o crime. Mas na maior parte dos casos as pessoas
chamam a Polícia ao local e aí os agentes do carro de patrulha deslocam-se
diretamente ao local da ocorrência e é aí que tomam conhecimento dos casos e fazem o
registo da ocorrência.” (Graduado da PSP)
69 A PSP criou em 2006 o Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade onde se inserem as Equipas de Apoio à Vítima (EPAV) e as Equipas do Programa Escola Segura (EPES). As EPAV, são responsáveis “pela prevenção e vigilância em áreas comerciais, vigilância em áreas residenciais maioritariamente habitadas por cidadãos idosos, prevenção da violência doméstica, apoio às vítimas de crime e acompanhamento pós-vitimação, identificação de problemas que possam interferir na situação de segurança dos cidadãos e pela deteção de cifras negras” (PSP, 2017), enquanto às EPES cabe zelar pela “segurança e vigilância nas áreas escolares, prevenção da delinquência juvenil, deteção de problemas que possam interferir na situação de segurança dos cidadãos e pela deteção de cifras negras no seio das comunidades escolares” (Idem, Ibidem).
85
A falta de sensibilidade demonstrada por alguns profissionais identificados pelas
vítimas poderá encontrar explicação na existência de alguns mitos que ainda
permanecem na sociedade relativamente à violência doméstica (que naturalmente
também influenciam os profissionais que lidam diretamente com o fenómeno), que
continuam a obstaculizar a intervenção neste problema e até a considerá-lo ainda do
foro privado (Manita, 2009).
Outro aspeto relevante que poderá, em certa medida, explicar o comportamento
dos polícias nestas situações, onde é necessária uma intervenção de maior proximidade
junto da vítima, prende-se com a sua cultura profissional. Reiner (2004) define a polícia
como “uma corporação de pessoas patrulhando os espaços públicos, usando uniforme
azul, munida de um amplo mandato para controlar o crime, manter a ordem e exercer
algumas funções negociáveis de serviço social” (Idem, Ibidem, p. 19). À polícia está
ainda muito associada uma ideia de força de combate ao crime, tendo esta imagem sido
reforçada e mitificada pela literatura e pelo cinema, atribuindo ao mandato policial
características muito associadas ao perigo e ao risco, e aos polícias, atributos de valentia
e a coragem. No entanto, a maior parte destes profissionais passam a maior parte do seu
tempo a elaborar tarefas rotineiras, de cariz assistencial, representando muitas vezes o
papel do “filósofo, guia [e do] amigo” (Cumming e Edel, cit. Reiner, 2004: p. 163),
bem como a executar tarefas aborrecidas e rotineiras (Crank, 2004; Martin, 1999).
Crank (2004) diz-nos que, apesar da Polícia ser maioritariamente uma força
composta por homens, isso não chega para explicar o seu modelo de masculinidade,
uma vez que existem outras profissões onde esse fator também se verifica e ele não se
faz sentir de uma forma tão vincada. O modelo de masculinidade policial está
intimamente relacionado com o ideal tipo construído na sociedade onde os agentes são
socializados. Um aspeto que será decisivo para o reforço da masculinidade dos polícias
será, segundo a autora, a sua classe de origem (classe trabalhadora) onde a influência de
Hollywood se fez notar com bastante intensidade, construindo um ideal imaginário da
profissão mais atrativo e menos aborrecido do que aquele que é na realidade. Assim se
explica que as suas ações tenderão a pautar-se por intervenções mais “musculadas”
(repressivas) e menos emotivas (preventivas), uma vez que a primeira estará mais de
86
acordo com a identidade que se pretende construir e, sobretudo, ser reconhecida pelos
pares.
Este reconhecimento funciona como um reforço da masculinidade que assume
especial relevo no dia-a-dia dos polícias, construindo a imagem do que deve ser o
“verdadeiro polícia” (Ainsworth, 2008). Este processo de reafirmação da identidade
masculina começa a ser reforçado durante o período de formação dos agentes através da
superação de provas físicas e periciais (tiro e operações táticas) onde os instruendos
devem demonstrar que têm o que é necessário para entrar na instituição. Mais tarde,
após a integração no contexto profissional, a mostra da coragem e a capacidade de
controlar as emoções (aspeto central da identidade masculina e policial) será avaliada
pelos pares através do reconhecimento profissional (Herbert, 1997).
No entanto, como recorda este autor, o serviço policial não é homogéneo, pois
existem diversos serviços que não estão diretamente relacionados com o combate
repressivo da criminalidade (e.g. serviços burocráticos ou até o policiamento de
proximidade), neste caso, estas funções, devido às suas exigências técnicas (não há, por
norma, um contacto direto com o crime mais violento, havendo, no caso do
policiamento de proximidade, uma maior preocupação com a prevenção do que com a
repressão), são desconsideradas pelos agentes, uma vez que não lhes estão atribuídas as
características do ideal tipo do mandato policial (a coragem e o risco). É neste sentido
que a “ação” se opõem à “inação”, ou seja, o que é valorizado na cultura policial é a
intervenção rápida (repressão) e não a mediadora de conflitos (prevenção), e isto
implica uma escolha, agir (como um homem) e afirmar a sua posição no campo, ou não
agir (como uma mulher), implicando neste caso, por vezes, uma crítica dos pares. A esta
perspetiva do mandato policial está associada a questão dos papéis de género, em que se
associam comportamentos distintos para ambos: para as mulheres, as funções mais
compreensivas, (como à resolução de conflitos e funções não operacionais), para os
homens, as tarefas mais perigosas onde a força e a coragem são requisitos para o
cumprimento da missão70.
70 Importa ajustar esta perspetiva ao contexto português e perceber que a cultura da polícia portuguesa não é homogénea na medida em que o mandato policial é exercido em diferentes contextos sociais. Apesar da formação inicial ser comum a todos os polícias (Escola Prática de Polícia ou Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna) após o período de formação, muitos polícias, após alguns anos,
87
O comportamento de alguns elementos policiais pode ainda ser explicado pelo
seu desencanto com o sistema judicial e pela convicção de que pouco (ou nada) podem
fazer para alterar a situação das vítimas. Durão (2013) realizou uma investigação em
algumas esquadras da PSP sobre o atendimento que é prestado às vítimas de violência
doméstica e verificou nos agentes um sentimento de impotência na sua ação perante
estas situações que se traduzem em duas formas distintas de atuar perante o fenómeno,
às quais a autora denominou de impotência resignada e impotência indignada. Como
impotência resignada a investigadora define o comportamento que é manifestado pela
maior parte dos polícias que, conscientes da sua impossibilidade prática em mudar a
ação, ou seja, a situação da vítima, se conformam com essa impossibilidade assumindo
no contacto com elas uma postura de simples “agentes redatores”, ou seja, apenas
escrevem os factos e comunicam-nos à hierarquia eximindo-se de qualquer
responsabilidade ou qualquer outra ação no processo (Idem, Ibidem, p. 886). Por outro
lado, em número mais reduzido, há também agentes que agem de acordo com uma
impotência indignada, ou seja, apesar de terem consciência que o seu trabalho não
muda objetivamente a situação da vítima, criticam o funcionamento do sistema e
afirmam que também eles deveriam ser tidos em conta no processo, dado o seu
conhecimento do caso71, desenvolvendo à posteriori uma série de contactos informais
no sentido de ajudar e orientar a vítima para o processo que vai enfrentar após a
denúncia do crime.
Como veremos mais adiante esta impotência resignada transmite às vítimas um
sentimento acrescido de impotência perante o agressor e desencoraja-a, muitas vezes, de
prosseguir com o processo em Tribunal e, mesmo, por vezes, de abandonar a relação
abusiva. Durão (2013) constatou que este é o comportamento mais comum que
verificou no seu trabalho, “o que se destaca no nosso estudo narrativamente é a
comprovação e justificação dos limites, impotentes, do serviço policial perante as
acabam por ser transferidos para as Esquadras distribuídas pelo país. A cultura e os valores adotados numa Esquadra com menos população e menor taxa de criminalidade (e.g. Esquadra de Santo Tirso), onde é exigida menos solidariedade e entreajuda, e, por norma, existe uma média maior de idades dos agentes, é distinta de outra Esquadra onde o número de habitantes é superior, há maior taxa de criminalidade, onde a média de idades dos agentes é consideravelmente menor e a necessidade de entreajuda para ultrapassar as dificuldades (e momentos de solidão, dado muitos deles estarem deslocados da sua zona de origem) é preciosa.71 Mantendo, por exemplo, um contacto mais próximo com o Ministério Público.
88
vítimas e os agressores” (Idem, Ibidem, p. 891), sendo justamente o contrário do que se
esperava que acontecesse, dado o relevo do impacto que o primeiro contacto com as
vítimas assume no decorrer de um processo de violência doméstica.
3.4. O empoderamento das vítimas de violência doméstica
Léon (1997) lembra que o conceito de empoderamento é usado por várias
disciplinas científicas e organizações “como las agencias internacionales, los agentes
del Estado, los fundamentalistas, los patronos y los empresarios, los educadores de
variadas tendencias, los grupos de desarrollo comunitario del norte y del sur, los
activistas sociales, (…)” (Idem, Ibidem, s/n) e que o seu significado varia consoante o
contexto em que é empregue. A autora recorda que para o feminismo, o conceito surgiu
como uma referência à necessidade da ocorrência de uma mudança social que
permitisse às mulheres reverter a sua posição de submissão numa sociedade patriarcal.
Neste período, na década de 60 do séc. XX, o conceito é apropriado por vários
movimentos sociais (e.g. movimento negro) e relaciona-se sobretudo com a noção de
poder.
Alguns anos mais tarde, na década de 1980, o feminismo entra numa nova fase e
começa a discutir-se os interesses das mulheres e a defender que eles não são iguais
para todas, definindo-se uma distinção entre os seus interesses práticos (individuais) e
estratégicos, referindo-se estes ao objetivo de alcançar uma sociedade mais justa e
igualitária, sendo para isso necessário despertar a consciência crítica das mulheres para
a sua posição de dominadas (León, 1997).
Esta dominação nem sempre é exercida de uma forma evidente e entendível
pelas vítimas, o que dificulta a sua perceção quanto à sua posição de dominada.
Bourdieu (2012) explica que, por vezes, esta dominação é exercida através de uma,
“violência simbólica, violência suave, insensível invisível a suas próprias vítimas, que
se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em
ultima instância, do sentimento”72 (Idem, Ibidem, p. 7). Para o autor é através da 72 Por poder simbólico o autor entende, “é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”
89
socialização que opera a reprodução da manutenção da ordem estabelecida entre
dominados e dominadas73 e é, justamente, através da transformação destas instituições
que é possível uma alteração desta relação de poderes. Ora, o autor diz-nos que com o
surgimento da segunda vaga do feminismo, a dominação masculina deixou de ser vista
como uma inevitabilidade tendo começado a ser questionada e, pelo menos em algumas
matérias, houve efetivamente uma mudança, por exemplo, o acesso ao ensino
secundário das mulheres que lhes terá permitido uma maior independência financeira
(Bourdieu, 2012, p. 106/107). No entanto, recorda que as mudanças mais relevantes e
com maior impacto são as que se referem à, “transformação decisiva da função da
instituição escolar na reprodução da diferença entre os géneros, tais como o aumento
do acesso das mulheres à instrução e, correlativamente, à independência económica e
à transformação das estruturas familiares” (Bourdieu, 2012, p. 107).
Perkins e Zimmerman (1995) afirmam que, apesar de não existir uma definição
universal sobre o conceito de empoderamento, podemos encontrar características
comuns em várias definições, centrando-se todas elas justamente no conceito de poder.
Rapport (1987) define empoderamento como, “a process, a mechanism by which
people, organizations, and communities gain mastery over their affairs.” (Idem,
Ibidem, p. 122). Por seu turno, Page e Czuba (1999) consideram que, “empowerment is
a multi-dimensional social process that helps people gain control over their own lives.
It is a process that fosters power (that is, the capacity to implement) in people, for use
in their own lives, their communities, and in their society, by acting on issues that they
define as important.” (Idem, Ibidem, s/p). Perkins e Zimmerman (1995) afirmam que
para compreendermos o conceito de empoderamento é importante distinguir os seus
processos (e.g. ações ou atitudes) e os resultados que são provenientes desses processos
e constituem o empoderamento. Por exemplo, se considerarmos o empoderamento das
vítimas de violência doméstica, podemos considerar um processo a tomada de
consciência das vítimas da situação de dependência emocional que têm relativamente
aos agressores. No entanto, apesar desta consciência crítica ser fundamental para a
obtenção do resultado (Kasturirangan, 2008), só por si, não é suficiente para resultar no
(Bourdieu, 1989, p. 7/8)73 Que o autor considerou serem as instituições Família, a Igreja e a Escola (Bourdieu, 2012, p. 103).
90
empoderamento da vítima. A autora defende que a criação de programas de
empoderamento para vítimas de violência doméstica não deve ser apenas uma lista de
serviços onde cada mulher se inscreve e participa, mas um processo onde cada uma
delas se identifica e participa ativamente. Esta participação visa permitir às vítimas
recuperar o controlo das suas vidas, na medida em que lhes facilita o acesso a
ferramentas que possibilitam, de acordo com as suas próprias características, o aumento
da sua consciência critica sobre a situação em que se encontram.
Na tabela seguinte podemos observar um modelo de empoderamento
onde se incluem algumas estratégias usadas com vítimas de violência doméstica. Neste
quadro os autores propõem quatro estratégias de empoderamento em três níveis de
intervenção distintos. Como verificamos anteriormente, a não existência de qualquer
estrutura de apoio à vítima no concelho, contribui para um prolongar das relações
abusivas na medida em que não há qualquer estratégia de empoderamento que facilite o
abandono da relação abusiva. Este modelo propõe que a intervenção ao nível macro
tenha efeitos nos níveis anteriores. Por exemplo, espera-se que através de Planos
Nacionais de Apoio à Vítima (nível macro) se consigam providenciar recursos locais
(nível meso) que lhes permitam providenciar apoio psicológico (nível micro). Parece-
nos que deste ponto de vista (nível institucional), como já referimos anteriormente,
Portugal é um bom exemplo, sobretudo no que se refere à criação de medidas
legislativas para combater este fenómeno e no debate do problema através de
campanhas de sensibilização e outras intervenções públicas por parte dos vários atores
sociais que intervêm no processo74.
Tabela 1: Estratégias para o empoderamento de vítimas de violência doméstica nos
níveis Intrapessoal, Interpessoal e Institucional
Estratégias Intrapessoal(nível micro)
Interpessoal(nível meso)
Institucional(nível macro)
74 Entendemos que apesar de todas as dificuldades que foram apresentadas pelas vítimas neste trabalho, tem sido feito um esforço notável nos últimos anos, sobretudo pelo Estado e algumas associações de apoio à vítima, para combater o flagelo da violência doméstica.
91
Possibilitar
“Dar escolhas”“Validar situações”“Providenciar apoio emocional”“Providenciar acolhimento”
“Facilitar grupos de apoio”“Providenciar acolhimento e serviços de apoio”
“Programas de voluntariado”“Programas nacionais de apoio à vítima”
Relacionargrupos
“Reduzir o isolamento”“Desenvolver os recursos da comunidade”“Organizar ações de sensibilização sobre a violência doméstica”
“Planos de intervenção com alargado consenso político”
Catalisar
“Providenciar apoio económico”“Providenciar apoio ao emprego”“Providenciar residências temporárias”
“Criar novos programas de violência domestica”Publicar nova legislação”“Expandir serviços de apoio às vítimas e filhos”
“Atribuição de recursos financeiros para a investigação das questões de género e desigualdades”
Preparação
“Comparecer no tribunal com a vítima”“Ajudar a proteger a vítima”
“Ajudar as famílias a perceber o impacto da violência”“Sensibilização pública do fenómeno e educação”
“Educar sobre a violência”“Treinar competências (assertividade, autocontrolo)
Fonte: Busch e Valentine (2000, p. 87)
Um dos objetivos traçados por este plano de empoderamento prende-se com a
necessidade de formação/sensibilização da comunidade para este problema. Como já
vimos, nos últimos anos houve um investimento considerável na formação das Forças
de Segurança para melhorar o atendimento a vítimas de violência doméstica. Aliás,
Russel e Light (2006)75 demonstram justamente que, “respectful treatment, careful
listening to victim stories, understanding victims’ plight, not blaming victims, providing
explanations of police actions, providing information about resources and options,
making referrals to other services, taking victim preferences into account” (Idem,
Ibidem, p. 377) contribui para o bem-estar e empoderamento das vítimas, sendo por isso
necessário continuar a investir na formação de todos os elementos que intervém
diretamente com situações de violência doméstica.
75 Numa investigação realizada no Canadá com várias polícias, entre as quais a Royal Canadian Mounted Police e outras polícias locais.
92
Se no nível anterior a nossa possibilidade de intervenção é praticamente nula, no
nível meso (interpessoal) é possível intervir dado o nosso papel enquanto ator social de
intervenção na cidade. Acreditamos que, através da criação de sinergias com outras
organizações locais (e.g. Câmara Municipal, ONG e escolas), é possível definir
estratégias importantes de empoderamento como a criação de um grupo de apoio a
vítimas de violência doméstica, constituído por técnicos de várias valências e formações
académicas de distintas organizações sociais do concelho que intervenham diretamente
com este problema, dinamizar e organizar reuniões mensais onde as vítimas voluntárias
falem sobre a sua experiência enquanto vítimas e motivem outras vítimas a seguir o seu
percurso, bem como a organização local de debates e sessões de esclarecimento sobre o
tema, aproveitando as estruturas existentes e com as quais existem já protocolos de
colaboração com a PSP, por exemplo, com os agrupamentos de escolas do concelho.
Naturalmente que ao nível micro (intrapessoal) é também necessário intervir,
sendo esta ação dirigida sobretudo pelos técnicos de intervenção de primeira linha. Aqui
levanta-se um constrangimento que se prende com a inexistência de uma estrutura de
apoio que faça o acompanhamento individual das vítimas, uma vez que na maior parte
das situações, como demonstramos anteriormente, a situação tende a agravar-se após a
saída da Esquadra no momento da denúncia do crime. Neste nível, de acordo com as
características e recursos de cada vítima, poderá ser necessário providenciar um
conjunto de garantias como o apoio emocional/psicológico, jurídico, económico, acesso
ao emprego, bem como o seu acompanhamento a instituições, por norma, intervenientes
no processo (e.g. Instituto Medicina Legal, Polícia ou Tribunal). Pretende-se que este
trabalho, quando realizado individualmente ou em grupo (com as vítimas), permita o
seu empoderamento e que se traduza no aumento da sua autoconfiança, na redução do
sentimento de culpa e no assumir que tem a responsabilidade de sair daquela situação,
na medida em que pode fazer, ou tem o poder de mudar a sua vida. Apresentamos na
tabela seguinte uma sistematização dos resultados que se esperam obter após a aplicação
das estratégias de empoderamento propostas pelos autores:
Tabela 2: Passos e níveis para o empoderamento: Declarações de uma vítima
93
PassosAntes do processo de empoderamento
Intrapessoal(nível micro)
Interpessoal(nível meso)
Institucional(nível macro)
Eficácia
“Eu sou uma vítima”“Eu não consigo mudar a minha situação”“Estou sozinha”“Ninguém compreende a minha situação”
“Eu vou sobreviver”“Sou uma sobrevivente e não uma vítima”“Não estou sozinha”“Não consigo controlar o comportamento agressivo do agressor”
“Vamos conseguir ultrapassar”“Vamos ter mais sucesso quando pudermos ajudar-nos mutuamente”
“Nós podemos fazer a diferença”“Há muitas instituições que servem ou deveriam servir as vítimas de violência doméstica”
Consciencialização de
grupo
Redução da autorresponsabilização
“A culpa é minha: se eu não o tivesse enfurecido”
“A culpa não é minha”
“A violência doméstica ocorre em muitos relacionamentos”“A violência doméstica é transversal e ocorre em diversos contextos económicos, raciais, culturais e étnicos”
“As leis devem mudar para proteger as vítimas e os seus filhos”
Assumpção de responsabilidade
“Eu não posso fazer nada para mudar a minha situação”
“Eu tenho que me proteger”
“Eu preciso ajudar as minhas irmãs”
“Devemos aumentar a consciência e o conhecimento”
Fonte: Busch e Valentine (2000, p. 92)
Com este modelo pretendemos apenas sugerir uma possibilidade de intervenção
que facilite o empoderamento das vítimas de violência doméstica no concelho de Santo
Tirso. Sabemos que outros caminhos poderão ser percorridos, no entanto, consideramos
ser urgente atuar e criar instrumentos que possam oferecer às vítimas respostas
adequadas às suas necessidades, identificadas por esta investigação, que, de uma forma
tecnicamente sustentada, contribuam para colocar um ponto final na violência que as
vitimou.
94
Conclusão
A nossa investigação tem um alcance limitado na sua representatividade dada a
sua natureza e a estratégia metodológica utilizada, pelo que as nossas conclusões se
aplicam apenas aos casos analisados. Apesar disso, consideramos que alguns dos
resultados apurados podem ser úteis na justificação da criação de uma estrutura de apoio
à vítima na cidade e na implementação de outras medidas de apoio. De acordo com a
análise efetuada foi possível verificar que de uma forma geral a violência nas relações
afetivas teve início no período de namoro, apesar de as vítimas, nessa data, não
percecionarem esses comportamentos como atitudes violentas. A violência manifestou-
se principalmente através de estratégias de controlo e isolamento social das vítimas que,
nesse período, desvalorizaram esses comportamentos, atribuindo-os ao amor ou à
personalidade dos namorados.
Mais tarde, após o casamento, os comportamentos violentos não só continuaram
como se intensificaram e evoluíram para outros tipos de violência como, por exemplo,
para agressões físicas ou sexuais. As vítimas, para manterem os seus casamentos e,
sobretudo, proteger os filhos da violência que as vitimava, criaram estratégias de
sobrevivência que passaram pela total submissão ao agressor. Esta dominação
masculina foi exercida através da coação (psicológica), humilhação pública e
diminuição da autoestima das vítimas, assim como através do recurso às ameaças de
ofensas à integridade física das vítimas, sendo o medo dos agressores um denominador
comum apresentado por todas as entrevistadas.
Se, na opinião das vítimas, os agressores justificavam alguns dos seus
comportamentos abusivos pela existência de relações extraconjugais destas, elas
responsabilizaram o ciúme, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas ou doenças do
foro psiquiátrico, como causas da violência que sofreram. Após um período de acalmia
que se seguia, por norma, aos ataques violentos, os agressores pediam desculpa às
vítimas prometendo-lhes que tal não voltaria a acontecer. Elas, sobretudo quando
ocorreram as primeiras agressões, queriam acreditar que os agressores iriam mudar, mas
na verdade, em todas as situações analisadas, os comportamentos violentos voltaram a
95
ocorrer.
O argumento mais apresentado para justificar a denúncia do crime, foi a
necessidade de proteção dos filhos da violência. Verificamos que a denúncia surgiu
quase sempre em momentos de crise, por exemplo, imediatamente após uma agressão, e
após um longo período de maus tratos. Esta decisão quase “instintiva” e de desespero, e
a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima que faça um acompanhamento
especializado na vertente social, psicológica e jurídica, causou nas vítimas a saída da
Esquadra, um sentimento de desamparo e desorientação porque, por um lado, não
conseguiram compreender a complexidade dos trâmites legais, e por outro, porque lhe
faltou sobretudo o apoio psicológico para reorganizarem a sua vida.
O contacto, por vezes pouco empático, com a Polícia e a falta de sensibilidade
de alguns elementos policiais no momento da denúncia do crime, foi também apontado
pelas vítimas como um aspeto negativo que deve ser melhorado, apesar de ter sido
enaltecido o atendimento especializado e mais cuidado do elemento de apoio à vítima.
Embora não seja possível a especialização de todo o efetivo policial da Esquadra de
Santo Tirso, será importante reforçar a formação no âmbito do atendimento a vítimas de
violência doméstica, pelo que será apresentado à hierarquia os resultados deste trabalho
com vista à realização de ações de sensibilização sobre esta temática no departamento
policial.
A denúncia do crime não representa o fim do ciclo da violência. O agressor,
quando tem conhecimento que a vítima o denunciou, ameaça-a e aumenta a violência
psicológica, apesar de nos casos em que se verificava violência física, esta não ter
voltado a ocorrer. Um aspeto também focado neste trabalho prende-se com a
bidirecionalidade da violência e com algumas considerações sobre as denúncias
efetuadas por homens vítimas de violência doméstica. Não negando, obviamente, a
existência destas situações, entrevistamos uma advogada e um elemento graduado da
PSP sobre a sua experiência nestes casos e ambos referiram que estas denúncias surgem
muitas vezes como uma retaliação às queixas efetuadas pelas vítimas e que, por norma,
servem para causar às vítimas mais um ataque. Esta pista serve, na nossa opinião, para
trabalhos futuros onde se possa analisar de uma forma mais detalhada os dados
96
estatísticos oficiais da violência doméstica em Portugal.
Apenas em duas situações a separação do agressor ocorreu imediatamente após a
denúncia do crime. Nos restantes casos, as vítimas denunciaram o crime e regressaram a
casa onde coabitaram durante mais algum tempo com os agressores. No entanto, os
motivos que as levaram a denunciar o crime e a perceção que as suas relações afetivas
tinham chegado ao fim, foram responsáveis pelo abandono dos agressores. Neste
momento crucial, marcado pelo sofrimento e incerteza quanto ao futuro, foi importante
o apoio dos amigos e da família (quando existiu), tendo sido referido por todas as
vítimas a necessidade de um apoio psicológico que apenas aconteceu nas situações em
que estas puderam suportar financeiramente consultas de psicologia.
As várias estruturas de cariz social existentes no concelho, com a exceção da
Casa Abrigo da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso que
desenvolve um trabalho específico com as vítimas acolhidas, prestam um apoio social
aos utentes desses serviços no âmbito do desempenho das funções que lhes estão
atribuídas. Quando uma das suas utentes é também vítima de violência doméstica, as
técnicas, de acordo com o seu voluntarismo e vontade de ajudar, prestam-lhes algum
apoio, sobretudo de âmbito social e, no caso da CMST, também psicológico, nas não
são de todo estruturas especializadas e com os meios técnicos e humanos necessários
para responder às necessidades das vítimas de violência doméstica.
Demonstramos que a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima no
concelho dificultou, quer a saída da relação abusiva, quer o processo de empoderamento
após o abandono do agressor. Apresentamos uma proposta de modelo de
empoderamento sustentado por uma intervenção direcionada sobretudo para os níveis
pessoal e local onde lançamos algumas propostas de intervenção com o intuito de
preencher esta lacuna do concelho. Nesta intervenção é fundamental implementar um
método de trabalho em rede que aproveite as estruturas já existentes e os seus recursos.
Este trabalho permitiu que aprofundássemos os nossos conhecimentos teóricos
sobre o tema da violência doméstica e isso vai permitir atingir um dos nossos objetivos
traçados no início desta investigação: melhorar o nosso atendimento a vítimas de
violência doméstica. A maior lição terá sido perceber que a denúncia do crime é apenas
97
um detalhe (importante) em todo o processo que envolve a vítima. A sua proteção social
e, sobretudo, emocional após esse momento é mais importante do que o mero registo
formal do crime. Como demonstramos, a denúncia não coloca um ponto final na
violência, mas a preparação (a vários níveis) da vítima e o seu empoderamento, pode ser
decisivo para que tal aconteça. O dilema entre a denúncia obrigatória do crime, a que
estamos legalmente e deontologicamente obrigados, e a preparação prévia da vítima
para enfrentar todo o processo, é agora, sem dúvida, mais difícil, pois sabemos que
muitas vezes esta impreparação é responsável por muitos retrocessos e recaídas.
Enquanto não existir uma estrutura específica, este trabalho poderá ser desenvolvido por
técnicos de outras instituições aproveitando, por exemplo, os recursos humanos da Rede
Social de Santo Tirso ou a colaboração de técnicas da Casa Abrigo. As características
da cidade, nomeadamente a sua dimensão e proximidade entre as instituições e técnicos
de intervenção social, poderá facilitar esta colaboração sendo essencial o trabalho em
rede que, noutras áreas como, por exemplo, no apoio aos idosos, já existe, pese embora
a sua informalidade.
98
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109
Anexo 1 – Caracterização dos intervenientes nas ocorrências de violência
doméstica
21 O número de vítimas pode ultrapassar o número de ocorrências registadas uma vez
que em cada participação pode ter estado envolvida mais do que uma vítima.
22 O número de denunciados pode ultrapassar o número de ocorrências registadas uma
vez que em cada participação pode ter estado envolvido/a mais do que um/a
denunciado/a.
Fonte: RASI, 2016, p.35
112
Anexo 2 – Art.º 152º Violência Doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos,
incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha
mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem
coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade,
deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido
com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de
outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor,
na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com
pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois
a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as
penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de
armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de
programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o
afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser
fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta
gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do
exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de 1 a 10 anos.113
Anexo 4 - Profissão das vítimas de acordo com a Classificação Portuguesa
das Profissões
2015 2016
Classificação Portuguesa das Profissões – Grande Grupo n % n %
Profissões das forças armadas 0 - 1 1,3
Representantes do poder legislativo de órgãos executivos,
dirigentes, diretores e gestores executivos
1 1,4 2 2,7
Especialistas das atividades intelectuais e científicas 6 8,7 10 13,3
Técnicos e profissões de nível intermédio 0 - 2 2,7
Pessoas administrativo 12 17,4 6 8,0
Trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e
vendedores
20 29,0 21 28,0
Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 3 4,3 3 4,0
Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da
montagem
18 26,1 14 18,7
Trabalhadores não qualificados 9 13,0 16 21,3
Total 69 100 75 100
Fonte: CLAS, 2017
115
Anexo 5 - Tipo de violência denunciada pelas vítimas (2015/2016)
2015 2016
Tipo de violência n % de casos1 n % de casos2
Física 112 80,0 97 65,1
Psicológica 80 57,1 114 76,5
Económica 11 7,9 13 8,7
Social 15 10,7 14 9,4
Sexual 5 3,6 8 5,4
Verbal 03 - 21 14,1
Total 223 159,3 267 179,2
Fonte: CLAS, 2017
As percentagens apresentadas dizem respeito a todos os tipos de violência conhecidos, alguns dos quais respeitantes à mesma pessoa, motivando uma percentagem de casos superior a 100%.2 Vd. Nota de rodapé anterior.3 A inexistência de casos de violência verbal em 2015 deve-se ao facto dessas situações terem sido incluídas na violência psicológica.
116
Anexo 6 – Tipos de crimes mais participados (2015/2016)
Fonte: RASI, 2016, p.2
Denominação do crime Ano 2015 Ano 2016
Ofensa à integridade física voluntária simples 23 720 23 173
Violência doméstica contra cônjuge ou análogos 22 469 22 773
Furto em veículo motorizado 25 360 21 424
Condução de veículo com taxa de álcool igual superior a 1,2g l 22 873 20 849
Outro dano 17 808 16482
Furto em residência com arrombamento, escalamento ou chaves falsas 16 186 14 369
117
Anexo 7 – Análise da categoria de crimes contra as pessoas (2016)
Fonte: RASI, 2016, p.10
118
Análise da categoria de crimes contra as pessoas
Ofensas à integridade física voluntária simples Violência domésticaAmeaça e coação Restantes crimes
Anexo 8 – Taxa de feminização da vítima segundo a tipologia de vitimação
(2016)
Contra asce
ndentes
Contra desce
ndentes
Entre cô
njuges (ou ca
sais
em situaçã
o análoga)
Entre ex-c
ônjuges (ou ca
sais
em situaçã
o análoga)
Entre ex-n
amorados
Entre namorados
Global0
102030405060708090
10078.8
61.5
86.7 83.7 89.5 89.2 83.8
Fonte: RASI, 2016, p.37
119
Anexo 9 – Grau de parentesco entre a vítima e o denunciado (2016)
Grau de parentesco vítima/denunciado/a Ano 2016
Cônjuge/companheiro/a 54,6%
Ex-cônjuge/ex-companheiro 17,1%
Pais ou padrastos 5,3%
Filhos/as / enteados/as 14,2%
Outro grau/relação 8,9%
TOTAL 100%
Fonte: RASI, 2016, p.36
120
Anexo 11 - Guião de entrevista - Vítimas de Violência Doméstica
1. Recorda-se do tempo de namoro?
2. Consegue falar-me sobre a sua relação após o casamento?
3. Recorda-se da primeira vez que foi agredida/maltratada? O que aconteceu de
seguida?
4. Como viveu durante esse período?
5. Como acha que ela a via? Como define o seu ex-marido/companheiro?
6. Porque não terminou a relação?
7. O que a levou a denunciar o crime? Pode descrever o que sentiu nesse momento?
8. Recorda-se desse dia? O que sentiu?
9. O que aconteceu quando ele teve conhecimento? Como reagiu?
10. Quando decidiu terminar a relação? Como é que ele reagiu?
11. Pode falar-me sobre o decorrer do processo-crime? O que sentiu durante essa fase?
Que avaliação faz de todo esse processo?
12. Durante esse período solicitou ou foi-lhe prestado algum apoio institucional? Por
quem?
13. Como foi a sua vida depois da separação? Tomou alguma medida para ultrapassar
esse momento da sua vida?
14. Acha que valeu a pena fazer a queixa? Voltaria a fazer o mesmo?
15. Como perspetiva/perspetivou a sua vida depois da separação?
16. O que acha que deveria ser feito para ajudar as vítimas de violência doméstica na
cidade?
17. Gostaria de acrescentar mais alguma coisa que não lhe tenha sido perguntado?
122
Anexo 12 – Guião de entrevista - Técnicos de Intervenção Social
1. Que funções desempenha na organização onde trabalha?
2. Pode explicar-me em que contexto tem conhecimento de situações de VD?
3. Toma alguma medida quando isso ocorre? Qual o encaminhamento que faz a essas
vítimas?
4. É desenvolvido algum trabalho/acompanhamento com as vítimas? Pode falar-me um
pouco sobre isso?
5. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a
vítimas de VD no concelho de Santo Tirso? Em que circunstâncias?
6. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio exclusiva para vítimas de
VD no concelho de Santo Tirso?
7. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as
vítimas?
124
Anexo 13 – Guião de entrevista - Advogada
1. Pode dizer-me em que contexto tem conhecimento de situações de VD?
2. Já defendeu algum homem vítima de violência doméstica? O que pensa sobre este
assunto?
3. Quais são as maiores necessidades que apresentam as/os seu clientes vítimas de
violência doméstica?
4. Quais são os maiores desafios que enfrenta na defesa de uma vítima de violência
doméstica?
5. Como caracteriza o sistema judicial no tratamento das situações de violência
doméstica?
6. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a
vítimas de VD no concelho de Santo Tirso?
7. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio específica para vítimas de
VD no concelho de Santo Tirso?
8. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as
vítimas?
125
Anexo 14 – Guião de entrevista - Graduado da PSP
1. Pode dizer-me em que contexto em que contextos a PSP toma conhecimento das
situações de VD?
2. Alguma vez atendeu um homem vítima de violência doméstica? Qual a sua perceção
sobre essas denúncias?
3. Como classifica o atendimento que é feito pela PSP às vítimas de violência
doméstica?
4. Qual a sua opinião sobre o decorrer deste processo no âmbito das funções atribuídas
às Forças de Segurança?
5. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a
vítimas de VD no concelho de Santo Tirso?
6. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio específica para vítimas de
VD no concelho de Santo Tirso?
7. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as
vítimas?
126