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A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia, estruturas de apoio à vítima e empoderamento Ricardo Manuel da Costa Gouveia M 2017

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A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia, estruturas de apoio à vítima e empoderamento

Ricardo Manuel da Costa Gouveia

M2017

Ricardo Manuel da Costa Gouveia

A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia,

estruturas de apoio à vítima e empoderamento

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Sociologia orientada pela Professora

Doutora Maria Isabel Correia Dias

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

setembro de 2017

A violência doméstica no concelho de Santo Tirso: Denúncia,

estruturas de apoio à vítima e empoderamento

Ricardo Manuel da Costa Gouveia

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Sociologia orientada pela Professora

Doutora Maria Isabel Correia Dias

Membros do Júri

Professor Doutor Carlos Gonçalves

Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Professora Doutora Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti

Universidade Católica do Salvador (Brasil)

Professora Doutora Maria Isabel Correia Dias

Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Classificação obtida: 17 valores

Para o João e Isabel

Sumário

Agradecimentos.................................................................................................................8Resumo..............................................................................................................................9Abstract............................................................................................................................10Índice de tabelas..............................................................................................................11Lista de abreviaturas e siglas...........................................................................................12Introdução......................................................................................................................13Capítulo 1 – Violência Doméstica: da contextualização histórica à abordagem sociológica.......................................................................................................................17

1.1. Violência na família..............................................................................................171.2. A violência doméstica como um problema sociológico.......................................201.3. A construção do género........................................................................................231.4. Definição de conceitos..........................................................................................30

Capítulo 2. – A violência doméstica: caracterização socio-legal e estatística..........332.1. A violência doméstica em Portugal – evolução legal do crime............................332.2. Os principais intervenientes no processo de denúncia do crime..........................37 2.2.1. Os órgãos de polícia criminal.......................................................................37 2.2.2. O Ministério Público.....................................................................................39 2.2.3. O Juiz............................................................................................................40 2.2.4. A Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica..................402.3. O Processo de denúncia no crime de violência doméstica...................................422.4. Breve referência estatística - Contexto nacional..................................................43 2.5. Breve referência estatística – Contexto local........................................................46

Capítulo 3. – Abordagem metodológica e análise das entrevistas.............................503.1. Metodologia..........................................................................................................503.2. A identificação das instituições............................................................................523.3. Análise das entrevistas..........................................................................................55

3.3.1. O início da relação – o período de namoro...........................................553.3.2. Viver juntos – o início da violência e estratégias de sobrevivência.....583.3.3. Lua de mel – a continuação das agressões............................................633.3.4. A denúncia do crime.............................................................................663.3.5. Reação do agressor à denúncia do crime .............................................70

3.3.6. A separação do agressor.......................................................................733.3.7. Uma nova vida?....................................................................................753.3.8. Avaliação do processo de denúncia......................................................82

3.4. O empoderamento das vítimas de violência doméstica........................................88Conclusão.......................................................................................................................95Referências bibliográficas.............................................................................................99ANEXOS......................................................................................................................110

Anexo 1 – Caracterização dos intervenientes nas ocorrências de violência doméstica....................................................................................................................111

Anexo 2 – Art.º 152º Violência Doméstica.......................................................112Anexo 3 – Ficha de Avaliação de Risco............................................................113Anexo 4 - Profissão das vítimas de acordo com a Classificação Portuguesa das

Profissões....................................................................................................................114Anexo 5 - Tipo de violência denunciada pelas vítimas (2015/2016)................115Anexo 6 – Tipos de crimes mais participados (2015/2016)..............................116Anexo 7 – Análise da categoria de crimes contra as pessoas (2016)................117Anexo 8 – Taxa de feminização da vítima segundo a tipologia de vitimação

(2016)..........................................................................................................................118Anexo 9 – Grau de parentesco entre a vítima e o denunciado (2016)...............119Anexo 10 – Deluth Model.................................................................................120Anexo 11 - Guião de entrevista - Vítimas de Violência Doméstica..................121Anexo 12 – Guião de entrevista - Técnicos de Intervenção Social...................122Anexo 13 – Guião de entrevista - Advogada.....................................................123Anexo 14 – Guião de entrevista - Graduado da PSP........................................124

Agradecimentos

Quero deixar um agradecimento especial às vítimas que tiveram a amabilidade e a

confiança de partilhar comigo as suas vidas.

Agradeço também aos técnicos das várias instituições, parceiros valiosos com

quem trabalho diariamente, que gentilmente me concederam entrevistas enriquecedoras

onde foi possível trocar experiências profissionais e novas aprendizagens.

Agradeço à minha orientadora, Professora Doutora Isabel Dias, pela sua

orientação nesta investigação.

Agradeço e peço desculpa à Isabel e ao João pelo tempo que estive ausente, mas

fica a promessa que muito em breve o vamos recuperar.

8

Resumo

Esta investigação pretende perceber a implicação da denúncia do crime de

violência doméstica no fim do ciclo de violência em relações de intimidade abusivas,

bem como estudar o impacto da ausência de uma estrutura especializada no atendimento

a estas vítimas no seu processo de empoderamento. O nosso trabalho foi desenvolvido

no concelho de Santo Tirso, onde entrevistamos onzes vítimas de violência doméstica,

seis técnicas de intervenção social, uma advogada e um elemento da Polícia de

Segurança Pública. Seguindo uma abordagem qualitativa, procuramos interpretar os

resultados obtidos através da análise de conteúdo das entrevistas. Constatamos que,

apesar do aumento da violência nos momentos posteriores à denúncia, e, quando

aconteceu, após a separação do agressor, a queixa é decisiva para terminar com o ciclo

da violência. Por sua vez, a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima dificulta o

processo de empoderamento das vítimas que, após a saída da relação abusiva, não

encontram respostas para os problemas que resultam da separação do agressor. Esta

investigação vem assim confirmar o impacto positivo da denúncia do crime no fim do

ciclo da violência, bem como a necessidade da criação de uma estrutura de apoio à

vítima no concelho uma vez que a sua inexistência foi identificada por todos como uma

lacuna que importa colmatar.

Palavras-chave: Violência Doméstica, Denúncia do crime, Empoderamento.

9

Abstract

This research aimed at understanding the effect of the denunciation of the crime of

domestic violence in ending the cycle of violence within abusive intimate relationships.

It also intended to analyse the impact of the lack of a specialised structure to care for the

victims on their empowerment. Our work took place in the county of Santo Tirso where

we interviewed eleven victims of domestic violence, six social intervention technicians,

one lawyer and one Police Officer. Following a qualitative approach, results were

interpreted based on a content analysis of those interviews. We concluded that in spite

of an increase of violence after the complaint and whenever the separation from the

aggressor took place this is a decisive step to end the cycle of violence. On the other

hand, the absence of a victim support structure complicates the process of

empowerment of the victims who, after leaving an abusive relationship, cannot find

answers to the problems resulting from their separation from the aggressor. As such,

this research confirms the positive impact of the denunciation of the crime in ending the

violence cycle, as well as the importance of setting up a victim support structure in the

county since its absence has been unanimously identified as a problem that needs to be

addressed.

Keywords: Domestic violence, Criminal Complaint, Empowerment.

10

Índice de tabelas

Tabela 1 – Estratégias para o empoderamento de vítimas de violência doméstica nos

níveis Intrapessoal, Interpessoal e Institucional..............................................................93

Tabela 2 – Passos e níveis para o empoderamento: Declarações de uma vítima ...........95

11

Lista de abreviaturas e siglas

APAV – Associação de Apoio à Vítima

APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas

ASAS – Associação de Solidariedade e Ação Social de Santo Tirso

CIG – Comissão para a Igualdade de Género

CMST – Câmara Municipal de Santo Tirso

EPAV – Equipa de Apoio à Vítima

EPES – Equipa Projeto Escola Segura

FS – Forças de Segurança

GAS – Gabinete de Ação Social do ASAS

GNR – Guarda Nacional Republicana

LNES – Linha Nacional de Emergência Social

MAI – Ministério da Administração Interna

NLIS – Núcleo Local de Inserção Social de Santo Tirso

PSP – Polícia de Segurança Pública

RASI – Relatório Anual de Segurança Interna

ISCMST – Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santo Tirso

UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta

VRI – Violência nas Relações de Intimidade

12

Introdução

A violência doméstica é um assunto que diariamente nos interpela e que, apesar

do trabalho que tem sido desenvolvido nas últimas décadas quer pelos sucessivos

Governos, quer por várias organizações relacionadas com este fenómeno, continuamos a

assistir quase diariamente à difusão de notícias trágicas, envolvendo sobretudo

mulheres, divulgadas pelos órgãos de comunicação social. De acordo com relatórios

estatísticos dos últimos anos, o número de participações criminais tem-se mantido

relativamente estável, continuando a verificar-se milhares de crimes em cada ano,

apesar de todas as campanhas de sensibilização que são realizadas anualmente pelas

várias associações de apoio à vítima e Forças de Segurança, estas últimas, através dos

seus programas de proximidade que anualmente desenvolvem milhares de ações de

sensibilização sobre o tema nas escolas em todo o país.

Parece-nos, de certa forma evidente, que a sensibilização dos cidadãos, a

formação dos intervenientes no processo e o investimento legislativo que se verificou

nos últimos anos, pode explicar, em certa medida, esta visibilidade do fenómeno da

violência doméstica. Contudo, os profissionais que lidam diariamente com este

problema, entre os quais, o autor desta investigação1, sentem, por vezes, algum

desalento por lhes parecer que o seu trabalho não está a dar os resultados esperados,

sendo um bom exemplo deste aparente insucesso, a violência manifestada nas relações

de namoro que registou nos últimos anos um aumento do número de participações. Se

este incremento pode, por um lado, refletir algumas alterações legislativas que

clarificaram o conceito de “namoro” e a crescente visibilidade pública do fenómeno, por

outro, sentimos no contacto diário que mantemos com os jovens e em várias ações de

sensibilização que realizamos sobre o tema nas escolas do concelho, uma normalização

generalizada de alguns comportamentos violentos logo no início das relações afetivas

que, como demonstraremos ao longo deste trabalho, podem ser preditores de violência

nas relações afetivas no futuro.

1 O autor deste trabalho é Agente da PSP na Esquadra de Santo Tirso e presta serviço no Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade (MIPP), mais especificamente, no Programa Escola Segura (PES) e Apoio à Vítima (EPAV).

13

O trabalho que desenvolvemos com vítimas de violência doméstica passa, umas

vezes pelo recebimento da denúncia e posterior avaliação do risco inerente à sua

situação perante o agressor, outras, apenas pela avaliação do risco uma vez que a

denúncia já foi realizada no local do crime ou na Esquadra. Apesar de a legislação em

vigor prever um conjunto de medidas de proteção à vítima que podem ser acionadas

quase de imediato quer pelos agentes que tomam conhecimento do crime, quer pelo

Tribunal, a realidade é que, por diversas razões, algumas das quais abordadas neste

trabalho, a vítima deposita muitas vezes a sua confiança nas Forças de Segurança a

quem denuncia o crime e acaba por abandonar o posto policial mais desprotegida do que

quando ali entrou, por um lado, pelo risco de ter denunciado o agressor, por outro, pela

complexidade do processo que terá que enfrentar. O nosso trabalho vai centrar-se nestas

denúncias efetuadas na PSP de Santo Tirso, por vítimas residentes no concelho.

Como veremos existem várias razões que explicam a continuação da relação

afetiva após uma agressão ou mesmo depois da denúncia do crime. Da nossa

experiência, sentimos que na maior parte dos casos, as denúncias resultam mais de atos

de desespero e pedidos de ajuda em situações limite, do que de ações devidamente

planeadas e com a antecipação de como resolver questões emergentes do processo que

vai ser desencadeado pela queixa-crime. Esta preparação prévia pretende dotar a vítima

de ferramentas que lhe permitam enfrentar o processo judicial e promover o seu

empoderamento para abandonar a relação abusiva. Atualmente, no concelho de Santo

Tirso, não existe qualquer estrutura especializada no atendimento a vítimas de violência

doméstica pelo que muitas vezes sentimos falta de uma estrutura com estas

características para lhes oferecer um apoio e um conforto que não nos cabe atribuir,

dada a inerência das nossas funções.

Neste trabalho pretendemos perceber a relação entre o processo desencadeado

pela denúncia do crime no fim do ciclo da violência, bem como as consequências da

inexistência de uma estrutura especializada de apoio à vítima no concelho de Santo

Tirso no processo de empoderamento das vítimas. Para isso, entrevistamos onze

mulheres que denunciaram o crime na PSP desta cidade, assim como vários

14

profissionais que lidam com este fenómeno no âmbito das suas competências nas várias

organizações de cariz social do concelho.

No que concerne à sua estrutura, a presente tese encontra-se organizada em 3

capítulos, seguidos de uma conclusão, das referências bibliográficas e alguns anexos.

Assim, no capítulo I dissertamos sobre o fenómeno da violência no seio da família e

como de um problema social se transformou num problema sociológico. Daqui

emergiram várias teorias, salientando-se a corrente feminista que atribui esta violência a

uma sociedade marcadamente patriarcal que subalterniza as mulheres e lhes confere um

papel menor na sociedade. Neste contexto importa entender o conceito de género e

explicar a relação entre este e a violência conjugal que afeta maioritariamente as

mulheres. Com a evolução dos estudos nesta área foram surgindo vários conceitos que

clarificaram determinadas definições como a de “violência doméstica” ou “violência de

género”, as quais serão também abordadas neste capítulo.

No capítulo II fazemos uma breve abordagem a algumas questões de índole

jurídica sobre a evolução do crime de violência doméstica em Portugal e traçamos uma

linha temporal onde podemos observar as alterações legislativas que foram produzidas

ao longo das últimas décadas. De seguida, explicamos o trabalho que é desenvolvido

por algumas das principais instituições intervenientes num processo-crime de violência

doméstica e descrevemos, de forma sucinta, o decorrer deste processo. Ainda neste

capítulo, recordamos alguns dados estatísticos sobre a prevalência do ilícito criminal no

contexto nacional, através da informação que é disponibilizada anualmente pela

Secretaria Geral do MAI, por via do Relatório Anual de Segurança Interna, e

relacionamos essa informação com os dados do concelho de Santo Tirso, recolhidos

pela divisão de ação social do município.

No capítulo III apresentamos as estratégias metodológicas e as técnicas de

investigação utilizadas, a par dos objetivos que nos propomos atingir com a realização

deste trabalho. Como já dissemos, entrevistamos vários profissionais que trabalham em

instituições do concelho diretamente relacionadas com o apoio social. Nesta parte,

fazemos uma breve descrição de cada uma delas e do trabalho que desenvolvem na

cidade. De seguida, analisamos as entrevistas que realizamos e que decidimos dividir

15

em períodos-chave, tendo como base teórica o ciclo da violência doméstica: o início da

relação, onde analisamos a fase inicial da relação afetiva e a existência, ou não, de

comportamentos preditores de violência. De seguida, tratamos do período em que

tiveram início os comportamentos violentos e tentando-se perceber, por um lado, que

estratégias foram usadas pelas vítimas para suportar a relação e, por outro, que motivos

as levaram a não abandonar o agressor. Na fase seguinte, por norma, a da lua-de-mel,

descrevemos o comportamento do agressor e as estratégias que este utiliza para coagir e

ludibriar a vítima a manter-se na relação.

Um momento marcante na relação abusiva, pela importância que pode ter no fim

do ciclo da violência, é o momento da denúncia do crime. Nesta fase, percebemos

muitas vezes que a sua vontade quando apresentam queixa passa simplesmente por

desejar que o seu sofrimento termine, depositando em meia dúzia de folhas a esperança

do fim do seu tormento. Contudo, como veremos, raramente isso acontece. Importa, por

isso, perceber os motivos que as levaram a efetivar a denúncia, qual a sua reação e que

avaliação fazem de todo o processo, desde que ele foi iniciado até à sua conclusão. A

maior parte das vítimas entrevistadas não abandonaram de imediato o agressor após a

denúncia do crime. Em alguns casos, voltaram para as suas casas e coabitaram com os

agressores durante algumas semanas ou meses. No entanto, com a exceção de um caso,

que explicaremos mais tarde, todas abandonam os agressores. Desta forma,

pretendemos saber o que aconteceu após esta separação e se a ausência de estruturas de

apoio à vítima no concelho influenciou o seu processo de empoderamento.

Na conclusão deste trabalho fazemos uma síntese da nossa investigação e

apresentamos os resultados obtidos, assim como algumas propostas de trabalho que

consideramos serem importantes implementar no concelho, mas também para melhorar

o atendimento na Esquadra da PSP, uma vez que é esta a nossa área de atuação pela

inerência das nossas funções.

16

Capítulo 1 – Violência Doméstica: da contextualização

histórica à abordagem sociológica

1.1. Violência na família

A violência no seio da família não é um fenómeno recente, sendo conhecidos

relatos de práticas conjugais violentas desde que praticamente se conhecem registos da

civilização humana. De acordo com as teorias feministas emergentes na década de 60 do

séc. XX, estas práticas resultaram do papel central do homem na organização social que

lhe conferiu um poder quase absoluto sobre as mulheres que as relegou para funções

subalternas e menos relevantes socialmente (Anderson e Umberson, 2001). Aristóteles

numa reflexão sobre a organização da cidade refere-se às diferenças existentes entre

homens e mulheres afirmando que os homens tinham o dever de ditar “a lei aos filhos e

às mulheres” (Aristóteles, 1998 [trad. Amaral e Gomes], p. 53). Apesar de diferenciar o

tratamento que o homem deveria dar à mulher (cidadã) e aos filhos (súbditos), era

utilizado o argumento biológico para a distinção de funções entre os sexos, afirmando

que o homem estaria mais predisposto para mandar do que a mulher, existindo como

que uma hierarquização natural de um face ao outro. Se recuarmos aos tempos da Roma

Antiga, como recorda Thompson (2006, p. 6), de acordo como o princípio Patria

Potestae o homem tinha o poder/direito de castigar severamente a sua esposa pelo crime

de drunkness ou, em caso de adultério, a matar. No entanto, se fosse o homem a cometer

a infidelidade, a mulher não teria o mesmo direito.

Entre os séculos XIII e XVIII através da influência crescente do direito romano

verificou-se um aumento da subordinação da mulher ao marido (Lebrun, 1983;

Flandrin, 1995; Oliveira e Oliveira, 2011) que a viria a tornar juridicamente incapaz não

podendo gerir os seus bens, intentar uma ação em tribunal sem a sua autorização ou

mesmo prestar qualquer depoimento naquela instância. Em caso de adultério o marido

podia pedir a separação da mulher, sendo o contrário impossível. Esta subalternação da

mulher viria a ser justificada por alguns moralistas dos séculos seguintes como resultado

17

da sua fisionomia (o sexo fraco), de acordo com argumentos bíblicos2 e com a

necessidade desta se reservar em exclusivo às tarefas domésticas3, ocorrendo uma

“domesticação da mulher” (Oliveira e Oliveira, 2011, p.307).

Durante o Antigo Regime, na família tradicional, o homem continuou a manter a

sua posição dominante adquirindo através do casamento a posição de chefe de família

que lhe conferia um poder sobranceiro sobre todos os restantes elementos do agregado

familiar (Lebrun, 1983). Depois de casar, a mulher era transferida de propriedade do seu

pai para o seu marido que, até à sua morte, dada a indissolubilidade do casamento, era o

seu dono. Shorter (1995) recorda que neste período a taxa de mortalidade era muito

elevada e que a sexualidade, para a mulher, se resumia exclusivamente ao dever de

procriar4. Como refere o autor, “os papéis da esposa eram todos subservientes […] o

marido deveria assumir o papel ativo, a mulher, o papel passivo” (Idem, p. 81),

esperando-se que os homens fossem “dominadores, aterradores na sua autoridade

patriarcal, egoístas, brutais e nada sentimentais; as mulheres deviam ser leais,

apagadas e submissas” (Idem, Ibidem, p. 88).

Na Gália do séc. XV dizia-se, “mulher que fala como o homem e a galinha que

canta como o galo não prestam para guardar […] Bom cavalo ou mau cavalo precisa

de espora. Boa mulher ou má mulher precisa de pau” (Meurier cit. Flandrin, 1995, p.

133). Mais tarde, na França oitocentista o papel da mulher era reproduzido em

provérbios populares: “Mort de femme et vie de cheval font l`homme riche […] Deuil de

femme morte dure jusq`à la porte” 5 (Lebrun cit. Shorter, 1997: p. 67), recordando os

autores o domínio dos homens sobre as mulheres a quem podiam bater e castigar, na

maior parte dos casos, desde que não lhes causassem a morte.

Se nas famílias tradicionais os afetos parecem ter ficado ausentes, “na família

moderna o amor e a felicidade tornam-se centrais […] triunfa a lógica do sentimento” 2 Epístola de S. Paulo aos Efésios (5,22 a 6,9) “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor”, “Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo.”; “De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.” 3 Apesar de nas classes populares a mulher também executar tarefas fora de casa, mas claramente definidas como as menos exigentes fisicamente.4 Ao contrário dos homens para quem os rituais iniciais da sexualidade eram socialmente aceites, sendo frequente o recurso à prostituição.5 “Morte de mulher e vida de cavalo tornam o homem rico. […] Luto por mulher morta, dura até à porta”.

18

(Dias, 2004a, pp. 45-46). Começando nas classes superiores e mais tarde passando para

as classes populares, a família moderna centra em si o ideal de felicidade e realização

pessoal (Vaquinhas, 2011). No entanto, a mulher permanece dentro de casa e tem como

principais funções o cuidado do lar e dos filhos. Apesar de este modelo ser

caracterizado por um ideal de harmonia e segurança, apresentava também focos de

tensão entre o que realmente se esperava e o que realmente acontecia, nomeadamente a

violência que era exercida contra as mulheres e crianças e a expetativa social que

relegava para a esfera privada a resolução dessas questões.

Nesta época, o casamento torna-se central na organização familiar, ocorrendo uma

apologia ao casamento sendo o matrimónio encarado por muitas mulheres como a

independência dos pais e o único caminho para a sua liberdade (Dias, 2004a).

Vaquinhas (2011) diz-nos que o séc. XIX é visto como o século da vida privada em que

a família se fecha sobre si própria, passando simultaneamente o homem a pertencer a

esfera pública e a mulher ao privado e ao recato do lar6, passando a casa a ser uma

espécie “de muro da vida privada” (Cascão, 2011, p.21), que ocultava tudo o que no seu

interior acontecia. Esta proteção socialmente aceite, quer pelo papel atribuído às

mulheres (e crianças), quer pela moral judaico-cristã que reforçava esta visão do mundo

contribuiu de forma indelével para o perpetuar da violência ocultando-a da esfera

pública, levando a que fosse tratada como um assunto de exclusiva responsabilidade do

casal.

Até aos anos 60 do séc. XX a família parecia estar estabilizada dada as raras

ruturas familiares e a demarcação claramente hierarquizada e definida dos papéis de

género (Leandro, 2001). Contudo, com o surgimento da segunda vaga feminista,

sobretudo nos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, aliada à luta pela igualdade

de direitos, associa-se a denúncia da violência cometida no seio da família contra as

mulheres, transportando para a esfera pública uma questão que até então permanecia

encerrada no lar.

6 Segundo a autora, no período oitocentista reforça-se a posição determinista da divisão sexual em torno das diferenças biológicas. A mulher incumpridora da ocupação do seu espaço no interior do lar era acusada de “mulher pública”, e conotada com práticas associadas à prostituição.

19

1.2. A violência doméstica como um problema sociológico

Numa pesquisa realizada em 1971 por O´Brian (1971) no índice do Journal of

Marriage, verificou-se que entre 1939 e 1969 em nenhum título deste periódico

constava a palavra “violência”. Neste período, como refere Gelles (1980), as raras

investigações existentes no âmbito da violência no seio da família, reportavam-se aos

abusos sobre as crianças, sendo a sua principal explicação para a violência cometida

pelos agressores, a sua psicopatologia, excluindo-se nesse período qualquer aspeto de

índole social. Nesta fase, houve também alguma dificuldade em definir a “violência

legítima” da “violência ilegítima” no seio da família, justamente devido à perceção que

existia sobre o modelo ideal de família, onde o homem, em determinadas situações, teria

o dever de punir a sua mulher por práticas consideradas contrárias ao modelo social

idealizado (Idem, Ibidem, p. 875).

De uma forma sucinta Gelles (1980) afirma que as pesquisas realizadas nos anos

70 do mesmo século sobre violência doméstica se centravam em três questões

fundamentais: 1) fazer uma estimativa fiável do número de casos existentes; 2)

identificar os fatores associados aos vários tipos de violência existente no lar; 3)

desenvolver modelos teóricos das causas da violência na família. Do ponto de vista

teórico surgem também três abordagens: a intraindividual ou psiquiátrica, que focava o

problema nas características psicológicas do indivíduo (e.g. a violência era causada por

doença mental ou devido ao consumo excessivo de substancias aditivas); o modelo

psicossocial que atendia já ao ambiente externo da família e relacionava-o com as

causas da violência, observando-se, por exemplo, a ocorrência passada de episódios de

violência ou outros fatores de stress, e o modelo sociocultural, onde se assumia que a

violência era o resultado de tensões produzidas por uma sociedade desigual e

estruturada.

Neste período o movimento feminista, sobretudo nos Estados Unidos da

América e na Grã-Bretanha, defende que a violência contra as mulheres resulta da

dominação masculina mantida por uma sociedade patriarcal cujos pilares dessa

existência assentavam justamente na violência cometida contra as mulheres (Anderson e

Umberson, 2001). Em 1974 é publicada a primeira obra em que este problema é

20

abordado de uma forma clara (Pizzey, 1974) tendo a sua divulgação tido uma forte

influência em várias organizações feministas7. Num período em que as investigações

sobre a violência contra as crianças se encontrava em crescimento, tendo para isso

contribuído a publicação de Kempe (et al. 1962), onde se estudaram e denunciaram os

abusos cometidos sobre as crianças em consultas hospitalares, a investigação sobre a

violência contra as mulheres foi sendo impulsionada por outras publicações que surgem

alguns anos depois (Martin, 1976; Dobash e Dobash; 1979). Da “síndroma da criança

batida” surge posteriormente a “síndroma da mulher batida” que se definiu como um

“conjunto de sintomas psicológicos, normalmente transitórios, que são frequentemente

observados, num padrão reconhecível e específico, em mulheres que afirmam terem

sido física, sexual e/ou psicologicamente maltratadas de uma forma grave pelos seus

parceiros masculinos” (Walker, 1993, p.135).

Em 1978 é publicado um artigo que defende a bidirecionalidade da violência entre

parceiros, ou seja, a violência praticada entre cônjuges é simétrica quanto à sua natureza

e intensidade (Steinmetz,1978). Este trabalho foi amplamente criticado pelos

movimentos feministas e pelos investigadores que defendiam que a violência é

assimétrica e que resulta da dominação masculina emergente de uma sociedade

patriarcal. Desta forma, passamos a ter duas abordagens teóricas distintas: a feminist

perspective sustentada por metodologias qualitativas e que centram o seu estudo na

violência cometida contra as mulheres, tendo como causa fundamental a sociedade

patriarcal8 e a consequente dominação masculina e, por outro, a family violence

perspective que investiga a violência que ocorre em contexto familiar e que não centra a

atenção na mulher vítima, mas em qualquer elemento da família sobre o qual ocorram

episódios de violência (Casimiro, 2008).

7 Em 1971 Erin Pizzey organiza em Chiswick um dos primeiros espaços para acolhimento de mulheres vítimas de violência. Com a publicação deste livro são denunciados publicamente vários episódios de violência contra as mulheres através de cartas recebidas pela autora, onde as vítimas narram a sua experiência de abusos. Mais tarde seria também disponibilizado um documentário televisivo, sobre o mesmo tema (http://player.bfi.org.uk/film/watch-scream-quietly-or-the-neighbours-will-hear-1974/).8 Outra das críticas atribuídas a esta investigação resultou do uso das Conflit Tactic Scales (C.T.S.) e ao enviesamento do resultado A CTS foi criada por Straus (1979) nos EUA e consistia numa série de questões que eram colocadas ao casal sobre como resolveriam os seus conflitos sendo medida em três vertentes: discussão racional e argumentação; agressão verbal; a violência. Um dos problemas prende-se com o tipo de respostas fechadas colocadas.

21

Estamos de acordo com Johnson (1995), quando o autor alerta para a necessidade

de distinguir-mos estes dois tipos de violência, uma vez que nos estudos onde se

defende a bidirecionalidade destas práticas, por norma, referem-se ao que o autor define

como “common couple violence”, ou seja, práticas violentas menos severas9 que podem

ser cometidas por ambos os parceiros e que, sendo ocasional, não provoca na vítima

consequências tão graves como nos casos em que ocorre o “patriarchal terrorism”,

caracterizado por agressões severas, com efeitos mais gravosos e duráveis nas vítimas10.

Nestes casos, a violência é cometida sobretudo por homens que pretendem controlar,

dominar as suas vítimas e mantê-las na relação afetiva, sendo este o tipo de violência a

que se referem geralmente os meios de comunicação social, os tribunais, hospitais e

forças de segurança, quando se referem a esse conceito (Idem, Ibidem).

No mesmo sentido, Anderson (2005) argumenta que o investigador deve clarificar

os seus princípios teóricos que sustentam a sua análise da violência conjugal uma vez

que esta pode condicionar/direcionar o resultado da sua investigação. Assim, define três

tipos de abordagens: 1) individualista, que parte do princípio que a violência é, em

parte, herdada geneticamente e adquirida através da socialização; 2) estruturalista, onde

o género existe de uma forma independente dos indivíduos e eles inserem-se nessa

estrutura e assumem os seus papéis sociais. O género, neste caso, é uma estrutura que

contém em si homens e mulheres que per si não são violentos. No entanto, na sociedade

há diferentes oportunidades11 e recompensas para cada um dos indivíduos, decorrendo

daí uma desigualdade que potencia comportamentos diversos (como a violência) para a

obtenção de determinados benefícios; 3) interacionista, que surge para contrariar a

posição individualista explicando que o género resulta das interações entre os sujeitos e

não de qualquer passado genético. Nesta abordagem teórica, a violência é um meio

através do qual o agressor afirma e impõe o seu poder. De acordo com esta perspetiva, o

género é também construído através de práticas de violência contra as mulheres, na

medida em que estas reforçam a sua masculinidade, como veremos mais à frente.9 Por exemplo insultos verbais. O autor afirma que apesar de ser comum e não ter como objetivo o controlo do parceiro, pode, em alguns casos, apresentar alguma gravidade.10 O autor veio mais tarde rever o conceito de patriarchal terrorism passando a denomina-lo de intimate terrorism.11 Se os homens recebem encorajamentos para o uso da força (ex. através dos filmes, publicidade, …), as raparigas são incentivadas a tratar de temas menos violentos (ex. brincar com bonecas, princesas, etc.).

22

Dada a expressividade dos dados no que diz respeito ao género dos agressores de

violência doméstica em Portugal (Anexo 1), entendemos ser pertinente a utilização do

conceito de intimate partner violence (Johnson, 2005) para definir o tipo de violência a

que nos referimos. Desta forma, e de acordo com esta definição, é para nós claro que a

violência doméstica participada às Forças de Segurança é assimétrica.

1.3. A construção do género

Por que é que os homens agridem as mulheres em contexto de intimidade? As

explicações desta realidade variam de acordo com a abordagem teórica que sustenta a

argumentação. Dado o nosso objeto de estudo e problemática, sobre os quais nos vamos

debruçar mais adiante, vamos fundamentar a nossa pesquisa seguindo uma abordagem

que atribui a génese da violência contra às mulheres a um modelo de sociedade que

constrói a identidade de género que favorece práticas que legitimam a dominação

masculina (Anderson, 2005).

Laqueur (1990, p.21) recorda que as diferenças de género são uma “invenção”

do séc. XVIII na medida em que até esse período apenas existia um género: o

masculino, pois a fêmea era encarada como um macho incompleto. Com o início dos

estudos de género, percebeu-se que “o determinismo biológico não é suficiente para

compreender a variedade de modos de ser que se encontram entre homens e mulheres,

nem a diversidade de configurações que as relações entre homens e mulheres assumem

em diferentes contextos sociais” (Amâncio, 2004, p. 9). Neste período, do ponto de vista

académico, as investigadoras tentaram contrariar uma tendência que, de acordo com os

papéis sexuais de cada um dos sexos, atribuía aos homens um lugar de destaque nas

famílias, dado o seu papel de bread winners, responsáveis pela subsistência da família, e

à mulher o garante da harmonia e bem-estar emocionais (Idem, Ibidem). Até este

período, a ciência tinha sido dominada por homens tendo as feministas percebido que o

conhecimento científico estava enviesado por uma visão androcêntrica do mundo social.

Nos anos 60 do século XX, emerge um novo conceito que pretendeu separar o sexo

biológico do sexo “social”, o género (Crawford, 1995). O género começou por ser

definido como um conjunto de características inatas e estáveis que estavam associadas a

23

cada um dos sexos. Nesta perspetiva essencialista, esta categoria era caracterizada como

“uma propriedade estável, inata e bipolar de diferenciação sexual, tendo um carater

eminentemente determinista” (Nogueira, 2001, p. 140).

Como explica a autora, esta estabilidade e imutabilidade do género, muito

associada ainda a um posicionamento positivista e determinista da ciência, foi criticada

por uma outra perspetiva teórica que defendia que o género não era determinado por

características biológicas, mas por constrangimentos sociais e culturais que eram

apreendidos através da socialização. Segundo a perspetiva empiricista, desde a

nascença, as crianças aprendem a comportar-se de acordo com o que a sociedade espera

de cada uma delas e que se comportem de acordo com o seu sexo. Esta nova perspetiva,

como defende Nogueira (2001), apesar de ter sido importante por ter permitido descolar

o género da biologia, “continua a definir o género em termos de diferença dicotómica”

(Idem, Ibidem, p. 141), uma vez que continuava a estar diretamente relacionada com

cada um dos géneros que seria, depois de interiorizado, estável e imutável, acabando no

entanto esta corrente teórica, por estar limitada, “à natureza dos seus conceitos,

sustentados por uma visão de mundo baseada em dualidades relacionadas com o

género” (Morawski, 1990).

Alguns anos mais tarde, Harding (1986) propõem uma nova perspetiva centrada

na compreensão da construção social das categorias apropriadas pelos sujeitos onde a

sua identidade deixa de ser estável e imutável e passa a ser entendida como constituída

por retalhos mutáveis que variam de acordo com as condições de apreensão dessas

mesmas categorias. Nogueira (2001) argumenta que esta perspetiva pós-moderna do

feminismo se distingue das restantes porque, “aceita a multiplicidade, a incoerência e o

paradoxo (…) Nega a aparente rigidez da linguagem sobre os significados

estabelecidos, e é céptica acerca da natureza fixa da realidade” (Idem, Ibidem,145).

Um dos aspetos relevantes da 2.ª vaga feminista foi a conquista de questionar a

divisão sexual do trabalho, a qual era até então explicada de acordo com argumentos

biológicos que limitavam a capacidade analítica do problema porque a questão se

centrava nas diferenças físicas, (evidentes) entre homens e mulheres. O que o

feminismo veio demonstrar é que essas diferenças (de género) não eram naturais, mas

24

artificialmente criadas por uma sociedade dominada por um modelo patriarcal que

protegia os homens em detrimento das mulheres12. Mais tarde, durante a década de 70,

juntar-se-iam outras mulheres que lutavam pelo direito a sentirem-se seguras no seio da

família, as “mulheres batidas”, passando a reclamar, “a denúncia da opressão das

mulheres, da sua exploração pelo homem, do androcentrismo e do patriarcalismo

passaram a estar no centro das lutas feministas” (Dias, 2015, p. 84).

Neste período, as feministas consideravam que a violência dos homens exercida

sobre as mulheres, resultava de uma sociedade patriarcal, “a social system in which

structural differences and in privilege, power and authority are invested in masculinity

and the cultural, economic and/or social positions of men” (Cranny-Francis et al., 2003,

p. 15), conceito adaptado da antropologia que o usou para definir sociedades em que o

poder e a autoridade estavam atribuídos ao homem mais velho do clã, devendo-lhes os

mais novos subserviência, onde as mulheres estavam excluídas do poder. Tal como

nesse período, a dominação masculina explicava o poder que os homens exerciam na

sociedade, quer na esfera privada (no seio da família), quer na esfera pública (no

trabalho, política ou cultura). A autora refere que, tal como no passado, onde as

mulheres se encontravam afastadas das decisões relevantes e do poder, exceto quando

isso servia os interesses da reprodução dessa ordem desigual13, tal ocorria nas

sociedades patriarcais “modernas”14.

Dias (2015) explica que dada a complexidade e pluridisciplinaridade do conceito

de género, este tem sido estudado por várias disciplinas e campos científicos como é o

caso da Sociologia. Antes de mais, importa distinguir o conceito de sexo, que diz

respeito às características biológicas dos indivíduos, do conceito de género. Este refere-

se às características socialmente adquiridas, portanto, variáveis de acordo com o

contexto onde se manifesta, “a feminilidade e a masculinidade são conceitos culturais e

12 Foi muito importante o contributo de Simone de Beauvoir que denunciou uma sociedade desigual onde as mulheres eram dominadas pelos homens “não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”.13 Exemplo das professoras primárias do Estado Novo a quem o Estado atribuía o poder de doutrinar os jovens na ideologia do regime (Gouveia, 2009).14 Este conceito (sociedade patriarcal) viria mais tarde a ser revisto devido à sua redutibilidade e ao facto de não conseguir explicar, por exemplo, o domínio de mulheres poderosas sobre homens com menos recursos (por não incluir variáveis como classe social, estatuto social, etc.). Hoje em dia é mais comum a utilização do conceito de masculinidade hegemónica para caracterizar um sistema social onde o poder do masculino se sobrepõe ao feminino.

25

como tal possuem significações flutuantes” (Idem, Ibidem, p. 78), como tal, “o género

não é um fenómeno que existe dentro dos indivíduos (…) pelo contrário, o género é um

acordo que existe nas interações sociais” (Nogueira, 2001, p. 56). Os papéis que cada

um dos géneros representam na sociedade decorrem de uma interiorização do que é

aprendido pelos indivíduos no seu processo de socialização e é justamente por haver um

desequilíbrio de oportunidades entre ambos que decorre a subordinação e

desvalorização das mulheres relativamente aos homens (Idem, Ibidem).

De acordo com Hare-Mustin e Marecek (1990) o conceito de género é uma

invenção com múltiplas facetas que possibilita a manutenção de representações sociais

distintas. Howard e Hollander (1997) defendem que da linguagem e da interação social

quotidiana contruímos a realidade, desta forma o género “é o significado que

concordamos imputar a determinada classe de transações entre indivíduos e contextos

ambientais” (Nogueira, 2001, p. 35). Assim, esta troca de interações é determinada pelo

contexto social, ela não é intrínseca aos indivíduos. Por outro lado, a ação ou o

comportamento dos géneros varia de acordo com o ambiente em que os mesmos se

encontram, podendo assim entender-se comportamentos não normativos dos papéis de

género como, por exemplo, o comportamento “masculinizado” das mulheres em

posições de liderança (Nogueira e Amâncio, 1996).

Esta classificação de género surge da necessidade que os indivíduos sentem,

logo desde a nascença, de se encaixarem nas categorias previamente definidas pela

sociedade, “esta identificação com a compreensão socialmente contruída de género,

guia o comportamento, dirigindo as pessoas a conformar-se com as expetativas

genderizadas e deste modo a fazer o género de uma forma compatível com a sua

construção num determinado contexto social” (Nogueira, 2001, p. 58). Numa sociedade

onde o masculino é mais valorizado do que o feminino, as mulheres acabam por ser

mais afetadas pelos efeitos de género do que os homens15. Ocorre assim um

questionamento sobre o feminino e sobre as reais capacidades das mulheres em

conseguir executar tarefas associadas normalmente aos homens (e.g. a perícia na

15 A autora refere alguns exemplos de linguagem exclusiva. Este tema foi abordado em alguns Planos Nacionais Conta a Violência Doméstica. Connell (1995) defende também que os modelos das sociedades ocidentais favorecem o posicionamento dos interesses da masculinidade através do patriarcado que é o garante desse domínio.

26

condução de veículos ou o exercício de determinadas tarefas), acabando, na realidade,

por haver uma divisão sexuada das profissões16.

Amâncio (2004) afirma que a masculinidade não se refere apenas aos homens

nem a feminilidade se refere apenas às mulheres, uma vez que ambos os conceitos

“constituem formas de pensar, dizer e fazer, socialmente construídas em diversos

planos da vida em sociedade” (Idem, Ibidem, p. 10). No mesmo sentido, Badinter

(1993) diz-nos que a masculinidade apenas faz sentido se a relacionarmos com a

feminilidade, pois, um conceito está, em certa medida, em oposição ao outro. Connell

(1996) afirma que das investigações já realizadas sobre a masculinidade se podem tirar

várias conclusões. Podemos afirmar que há vários conceitos de masculinidade que

variam de acordo com a cultura e com diferentes períodos da história. Contudo, ela

assume múltiplas definições que podem coexistir na mesma cultura e contexto temporal.

Como exemplo refere o conceito de masculinidade existente nas classes trabalhadoras e

nas classes socialmente mais favorecidas. Sabemos também que há uma hierarquia entre

essas masculinidades na medida em que nem todas assumem igual relevo social. Umas

são valorizadas, representadas por ideais de masculinidade, outras marginalizadas,

dependendo do contexto onde predominam17.

Apesar desta coexistência de masculinidades, há uma que é predominante e que

Connell (1996) denominou de “masculinidade hegemónica” que é aquela que assume

maior relevo e poder sobre as outras formas de masculinidade. Esta masculinidade pode

não ser maioritária, mas é dominante sobre as outras (masculinidades) e a própria

feminilidade, na medida em que representa uma expressão de privilégios dos homens

sobre as mulheres. O género é independente dos indivíduos e estes, através das suas

condutas, adaptam-se ao que consideram mais ajustado à sua identidade. No entanto,

quando essa conduta choca com os padrões da masculinidade hegemónica ou das

16 É frequente no ensino profissional a existência de turmas de determinadas áreas, como por exemplo mecânica ou eletrotecnia, exclusivamente frequentadas por rapazes e outras turmas, por exemplo de Termalismo, exclusivamente frequentadas por mulheres.17 Nas classes menos favorecidas, as figuras de cantores de música rap, como e.g. Tupak, são idealizados como ideais de masculinidade e os jovens tendem a seguir/imitar os comportamentos associados a essas personagens. O mesmo músico, para jovens de camadas sociais mais favorecidas, pode não ser relevante, tendo esses rapazes outros ideais mais de acordo com o seu contexto social.

27

instituições onde se inserem os sujeitos, é alvo de críticas18. A masculinidade

hegemónica manifesta-se de várias formas e oferece recompensas pela sua

manifestação. Por exemplo, o futebol é, apesar de algumas alterações recentes, um

desporto praticado por homens, exibindo como representante máximo o português

Cristiano Ronaldo. O jogador surge como modelo e expoente máximo do que deve ser

um desportista de sucesso, sendo muitas vezes apontado como o “futebolista perfeito”

cujo trabalho, dedicação, garra e espírito de sacrifício é recompensado com fama e

muito dinheiro. Este modelo de masculinidade contém muitas características do que

Connell (1996) define como traços que os rapazes pretendem alcançar e adquirir desde

cedo (modelos de masculinidade).

A masculinidade é também construída ativamente, ela existe nas manifestações

dos indivíduos no seu quotidiano e configuram práticas sociais. O autor defende que em

determinados contextos a criminalidade é uma manifestação objetiva e necessária para

alcançar um determinado conceito de masculinidade, seja nos pequenos delitos

cometidos durante a adolescência, seja mais tarde para demonstrar que se tem o que é

necessário para fazer parte de um grupo19. A masculinidade também é estratificada e

complexa, na medida em que é geradora de tensões entre o que eu sou e o que a

sociedade espera que eu seja (Badinter, 1996) e é, ainda, dinâmica, pois varia de acordo

com a época e o contexto histórico20.

Connell (1996) afirma que as escolas, apesar de não serem as únicas agências de

socialização dos rapazes e raparigas, assumem um papel fundamental na construção do

género que assenta em quatro componentes fundamentais: relações de poder, onde se

inscreve a figura de autoridade e supervisão entre professores. Trata-se da associação

que os alunos fazem nas escolas entre o poder e a masculinidade. A figura do diretor ou

do funcionário mais severo que detém o poder e o controlo. A divisão do trabalho que

18 Quando um homem não segue os padrões de masculinidade definidos por um determinado contexto social ou institucional, por exemplo, quando manifesta uma orientação sexual não normativa, no seio de uma organização marcadamente masculina, é vítima de críticas por parte dos seus pares.19 Neste sentido, podemos também relacionar algumas práticas violentas cometidas pelos homens contra as suas mulheres para o garante de uma certa ideia de masculinidade e domínio sobre elas.20 Beynon (2002) defende que a masculinidade resulta do contexto histórico, idade, orientação sexual, educação, estatuto social, estilo de vida, localização geográfica, etnia, religião, classe social, profissão e cultura ou subcultura.

28

está relacionada com a especialização das áreas disciplinares dos professores – ainda

hoje podemos verificar que, por exemplo nas escolas do ensino secundário, há

determinadas áreas científicas que são maioritariamente ensinadas por mulheres, e.g. as

ciências sociais e linguísticas, e outras em que é mais frequente a presença de homens,

as engenharias (e.g. mecânica ou eletrónica). Os padrões emocionais, que correspondem

às imagens associadas a determinados papéis desempenhados na escola – sobre o

tratamento que é dado pelos pares, por exemplo, aos colegas com uma identidade de

género não normativa. Este tratamento, por vezes, homofóbico, poderá contribuir para a

construção de uma masculinidade enviesada. A simbolização, a escola, enquanto espaço

de interações sociais, contém códigos e condutas inerentes ao seu funcionamento. Por

vezes, há uma uniformização (e.g. na indumentária, saia para meninas e calção para

meninos) que é ela própria responsável pela atribuição de características e codificações

distintas a cada um dos géneros.

Da interceção destas estruturas, as escolas criam uma definição do que é a

masculinidade e a feminilidade que, apesar de serem impessoais, têm um poder de

atração para os jovens que através do seu comportamento se adaptam (ou não) às

estruturas de género21. Barbosa e Nogueira (2004) recordam que na escola ocorrem

diariamente comportamentos de assédio sexual por parte dos rapazes às raparigas e que

essas práticas reforçam a ideia de que estes assumem sobre elas uma posição dominante.

Barbosa (2004) refere também que as formas de violência mais comuns nas escolas são

caracterizadas por práticas relacionadas com violência de género. Quando esta violência

é dirigida às raparigas tem um efeito gerador de medo nas vítimas e simultaneamente de

enraizamento do poder da dominação masculina.

Stanko e Newburn (1994, p. 41) defendem também que a violência é sobretudo

uma prática manifestada pelos homens e define dois tipos de violência: a violência

expressiva, que surge de uma forma não premeditada, é instintiva; e a violência

instrumental, quando é calculada e planeada para conseguir um determinado intento.

21 Quando existe uma inconformidade de conduta relativamente à masculinidade hegemónica ocorre uma ação de coação que pode passar pelo uso de linguagem sexista que associa o inconformado com o género não dominante. Desta forma resulta que, não raras vezes, os rapazes recorram, à violência para repor a ordem natural das coisas, ou seja, que sejam vistos pelos pares como “verdadeiros homens” (Connell, 1996).

29

Polk (1994, p. 188) explica que o uso extremo de violência em defesa da honra é

definitivamente masculino. Connell (2002, p. 15) considera que a violência é uma

marca da masculinidade. Os homens, desde novos, são educados para serem duros,

competitivos, insensíveis, em suma, para não demonstrarem afeto. Para eles, o género é

algo natural e não questionável. Ele não é imposto, existe e agimos de acordo com o

padrão onde nos encaixamos. Contudo, como explica o autor, essas práticas não são

inatas e devem ser discutidas, elas decorrem da pressão que é exercida por diversas

instituições como, por exemplo, a escola (Idem, Ibidem). No mesmo sentido, Amâncio

(1994) afirma que a violência normalmente associada aos rapazes não se deve a

qualquer predisposição genética, mas à construção social de género, ou seja, a violência

é aprendida e interiorizada como um aspeto legitimador do seu domínio sobre as

raparigas. Badinter (1996), no mesmo sentido, explica que durante a construção da

identidade masculina, os rapazes devem abandonar uma parte de si mesmos (ou da sua

vontade) e reprimir comportamentos associados, por norma, ao sexo oposto como, por

exemplo, sentimentos de afeto ou emoção, associados à fraqueza das mulheres, dado

que um verdadeiro homem se deve assumir pela sua audácia, bravura e agressividade.

Badinter (1996) conclui que a masculinidade resulta de uma série de

relações/imposições/medidas (económicas, sociais e políticas) e Gilmore (1992), no

mesmo sentido, argumenta que esta assume diversas formas e varia consoante as várias

culturas22. Dias (2015) explica que as mulheres, “são mais sensíveis aos efeitos de

género pelo facto de viverem num mundo onde a norma é masculina” (Idem, p. 78).

Desta assimetria e deste desequilíbrio de forças resulta a violência no seio das relações

de intimidade e que afetam sobretudo as mulheres.

1.4. Definição de conceitos

Com o avançar dos anos e com o aprofundamento teórico, político e jurídico do

fenómeno, o conceito de violência doméstica foi sendo revisto e atualizado, tendo

22 Através de uma pesquisa alargada a várias comunidades, o autor pretendeu saber se existiria alguma estrutura universal que definisse a masculinidade, ou seja, se existiria algum arquétipo de masculinidade. As suas conclusões mostram não só a impossibilidade de tal definição, como a forte dependência do conceito face a certos rituais de iniciação. Na verdade, o que o autor demonstra é a inutilidade da tentativa de provar a existência de um padrão positivista de masculinidade culturalmente generalizável.

30

passado por várias definições que expressavam o entendimento técnico, cultural e

ideológico do momento em que foi sendo sucessivamente definido23 (Manita, et. al.,

2009). O conceito de violência doméstica pode ter vários sentidos que convém

esclarecer. Desde logo, o conceito jurídico tipificado no Código Penal Português e

previsto no Art.º 152.º do mesmo diploma legal (Anexo 2) onde se definem, por um

lado, quais as práticas violentas e, por outro, as circunstâncias e a relação entre os

sujeitos que tipificam o ilícito num crime de violência doméstica.

Do ponto de vista sociológico o conceito é mais amplo e abrangente e não

atende a alguns detalhes que o conceito jurídico procura salvaguardar como, por

exemplo, a relação de dependência entre o agressor e a vítima quando não há uma

relação de conjugalidade ou análoga24. Manita et. al. (2009) define violência doméstica

como “um comportamento violento continuado ou um padrão de controlo coercivo

exercido, direta ou indiretamente, sobre qualquer pessoa que habite no mesmo

agregado familiar (e.g., cônjuge, companheiro/a, filho/a, pai, mãe, avô, avó), ou que,

mesmo não co-habitando, seja companheiro, ex-companheiro ou familiar” (Idem,

Ibidem, p. 10 e 11).

Nesta investigação vamos centrar-nos apenas na violência cometida contra as

mulheres, definida como “todo o ato de violência que tenha ou possa ter como

resultado o dano ou sofrimento (físico, sexual ou psicológico) da mulher, ou a sua

morte, incluindo a ameaça de tais actos, a coação ou a privação de liberdade,

realizado na esfera pública ou privada, violência que é exercida sobre a vítima por ser

mulher.” (Idem, Ibidem, p.10), num contexto de intimidade. Este alargamento surge da

necessidade de englobar na violência conjugal, a que se referem as definições

anteriores, a violência exercida sobre o conjugue/ex-cônjuge, companheiro/ex-

23 Recordo-me que no final da década de 90 havia uma enorme dificuldade no seio da Polícia em tipificar o crime, dada a falta de esclarecimento sobre o tema e redação do diploma pouco clara. A reiteração do crime (e.g. se o agressor tinha apenas dado uma bofetada ou mais à vítima) era apenas um dos exemplos que levava muitas vezes os agentes a não consideraram essa agressão como um crime de “maus tratos e infração às regras de segurança” (violência doméstica) mas como um simples crime de “ofensas à integridade física simples”. 24 Como exemplo e de uma forma simplificada, podemos dizer que do ponto de vista jurídico se um filho agride um pai e este não está numa relação de dependência/fragilidade em relação ao agressor, em regra, estamos perante um crime de ofensas à integridade física qualificado e não perante um crime de violência doméstica.

31

companheiro a outras relações de intimidade, como é o caso das relações de namoro ou

outros tipos de relacionamentos, como as relações homossexuais.

Nesta investigação vamos usar os conceitos de acordo com o que considerarmos

mais apropriado para cada momento analítico. Se nos estivermos a referir às questões

jurídico-legais, usamos o termo “violência doméstica” e conferimos-lhe o sentido dado

pelo Artigo 152.º do Código Penal. Quando usamos o conceito sociológico, evocamos o

conceito de Violência nas Relações de Intimidade (VRI) pela amplitude teórica que nos

confere.

32

Capítulo 2 – A violência doméstica: caracterização socio-legal

e estatística

2.1. A violência doméstica em Portugal – evolução legal do crime

A violência doméstica em Portugal não é um fenómeno recente, contudo como

refere Dias (2000) só a partir da década de oitenta do século XX é que começou a ser

encarada como um problema social. Para isso, segundo a autora, contribuíram vários

fatores, como a intolerância ao fenómeno da violência, a sensibidade crescente dos

profissionais da justiça e da saúde, o surgimento de algumas organizações de apoio à

vítima que deram visibilidade ao problema que, em conjunto com a comunicação social,

alertaram a população para este flagelo, ocorrendo simultaneamente um incremento nas

medidas e serviços de apoio à vítima.

Perista et. al (2010), recorda que apenas no final dos anos 60 do séc. XX, se

vislumbrou uma ténue mudança no que se refere à mudança social da mulher, dado a

sua entrada no mercado de trabalho remunerado, deixando por essa razão, de estar

centrada na agricultura, em parte, como resultado da forte vaga de emigração masculina

e escassez de mão-de-obra. Com a Revolução de Abril de 1974 e a posterior alteração

constitucional em 1976 e 1977, ocorrem importantes mudanças legislativas que visaram

uma aproximação da igualdade de direitos entre os sexos. Esta publicação permitiu a

revogação de algumas normas discriminatórias onde ser considerava, por exemplo, que,

“O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e decidir

em todos os actos da vida conjugal comum, sem prejuízo no disposto nos artigos

subsequentes.” (Art.º 1647.º, Decreto-Lei n.º 47344 de 25 novembro).

Contudo, apesar desta conquista constitucional, a violência contra as mulheres

nas suas relações de intimidade continuou a ser praticamente ignorada até 1982, ano em

que foi publicado um artigo no Código Penal referente aos maus tratos entre cônjuges

(Art.º 153.º, Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 setembro) que, ainda que referindo-se

especificamente aos maus tratos físicos ou tratamentos cruéis, foi um passo importante

para a futura criminalização da violência doméstica em Portugal.

33

Este problema já havia sido abordado, dois anos antes, na Conferência Mundial

da Década das Nações Unidas para a Mulher, em Copenhaga, assim como no 6.º

Congresso da ONU sobre a Prevenção Criminal e o Tratamento de Agressores, em

1985, onde foi aprovada a Resolução n.º 40/36 específica sobre violência doméstica e se

pretendia criar uma estratégia concertada no combate a este fenómeno.

Em 1991 é publicada pela primeira vez uma Lei que visa a proteção de mulheres

vítimas de violência doméstica (Lei n.º 61/91, 13 de agosto), apesar de nunca ter sido

regulamentada. Alguns anos depois foi publicada a Resolução da Assembleia da

República n.º 31/99 de 4 de abril, que chamava à atenção para a regulamentação da Lei

referida anteriormente bem como para a necessidade de formação dos elementos das

Forças de Segurança para o atendimento nas Esquadras da PSP e Postos da GNR a

vítimas de violência doméstica.

Com a publicação do Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de março, o crime de maus

tratos anteriormente previsto no artigo 153.º do Código Penal, passou a ter uma nova

redação, incluindo os maus tratos psicológicos, passando a aceitar também relações

análogas à dos cônjuges, assumindo o crime a natureza de semipúblico. Neste período a

coação cometida sobre o cônjuge era um crime autónomo e também semipúblico, o que

impedia não só a denúncia pública como a vontade expressa da vítima em avançar com

o inquérito criminal. Dois anos depois é publicada a Lei n.º 65/98 de 02 de setembro

que introduz uma novidade: a possibilidade do Ministério Público, por interesse

público, poder prosseguir com o processo caso houvesse a concordância da vítima. No

entanto, a possibilidade da desistência do procedimento criminal (responsável por uma

parte significativa do arquivamento dos processos na época) continuava a existir.

Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/97 de 24 de março, é criado o

Plano Global para a Igualdade de Oportunidades onde se pretendia promover um

conjunto de iniciativas que fossem ao encontro de um maior equilíbrio entre os direitos

de ambos os géneros. Em 1998 surge o primeiro conceito “técnico-normativo” de

violência doméstica em dois Despachos do MAI (15 e 16/98 de 9 de março) visando a

criação de um instrumento estatístico onde estivessem registadas todas essas

ocorrências. Definia-se então assim o conceito: “Deverá entender-se como ato de

34

violência doméstica qualquer crime previsto no Código Penal, alegadamente cometido

contra a vítima por alguém que com ela resida habitualmente da relação de

parentesco, de consanguinidade ou afinidade, ou qualquer outra relação entre agressor

e amigo” (Despacho MAI n.º 15/98, 9 março). Neste ano é lançado um programa

pioneiro no combate à Violência Doméstica, o Projeto Inovar (Resolução Conselho

Ministros n.º 6/99, 15 janeiro). Promovido pelo MAI, visava a criação de medidas de

apoio e proteção às vítimas de violência doméstica e o início da formação de elementos

das forças de segurança no atendimento a este tipo de vítimas. Este programa foi

importante para o despertar do problema nas forças de segurança, na medida em que

foram implantadas várias medidas, sobretudo de sensibilização, mas também alterações

nos procedimentos técnicos adotados até então25.

Em 1999 é publicada a Resolução da Assembleia da República n.º 31/99 que

vem reforçar a necessidade do cumprimento das medidas estipuladas na Lei n.º 61/91 de

13 de agosto, nomeadamente a criação de uma rede nacional de casas abrigo para as

vitimas de violência doméstica, bem como a criação de uma série de medidas de apoio e

proteção as vitimas, entre as quais, a criação de secções especializadas de apoio à vitima

no seio das Forças de Segurança. O I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica é

criado com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99 de 15 de junho que vem

compilar um conjunto de intensões manifestadas em anteriores medidas legislativas,

onde se pode ler, “É altura de agir concretamente e com lucidez: a eliminação da

violência doméstica é um elemento indispensável na construção de uma sociedade

verdadeiramente democrática, fundada no respeito dos direitos da pessoa e na

dignidade humana” (Idem, preâmbulo). Com a Lei n.º 107/99 de 3 de agosto é

publicado o regime jurídico das Casas Abrigo, ampliando-se as medidas de apoio e

proteção às vítimas de violência doméstica.

Em 2000 há uma importante alteração no Código Penal que transforma a

natureza do crime, que passa a ser público. É também tipificado no crime a ofensa que

ocorra em situações que exista um descendente comum, bem como a possibilidade de

afastamento do agressor da vítima como pena acessória (Lei n.º 7/2000, 27 maio). É

25 Por exemplo, foi implementado um Auto de Denúncia padronizado para situações de violência doméstica, inexistente até então.

35

também nesta alteração legislativa que é introduzida a possibilidade de suspensão do

processo até ao limite máximo da moldura penal do crime. A alteração da natureza do

crime bloqueou a possibilidade da vítima desistir do procedimento criminal apesar de,

face à sua relação com o agressor, ter a possibilidade de não prestar declarações nas

fases subsequentes do processo (Art.º 134.º da Lei n.º 78/87 de 17 fevereiro), o que,

quando esse direito é exercido, pode impossibilitar a acusação do suspeito por falta de

prova, dado que a vítima ou os seus filhos (também abrangidos pelo mesmo artigo)

constituem, muitas vezes, a única prova (testemunhal) do crime.

Em 2007 ocorre uma nova alteração à Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro que vem

autonomizar o crime de violência doméstica, introduzido alterações significativas,

nomeadamente a equiparação das relações conjugais a casais homossexuais e a não

necessidade da reiteração do ato violento para a configuração do crime de violência

doméstica. Dois anos depois, é publicada a Lei n.º 112/2009 de 16 setembro, que inclui

como “conduta típica do tipo legal da violência doméstica os maus tratos físicos ou

psíquicos, incluindo os castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais”

(DGAI, 2013, p. 23). Esta publicação passou assim a integrar “um conjunto de

dispositivos normativos avulsos que estabelece um regime unificado da prevenção da

violência doméstica, da proteção e das suas vítimas” (Idem, Ibidem, p. 24).

Com a publicação da Lei n.º 19/2013 de 21 de fevereiro, é novamente alterada a

redação do Art.º 152.º que passa também a abranger de forma mais clara as relações de

namoro bem como passou a estar contemplada a possibilidade do afastamento do

agressor da residência da vítima e do seu local de trabalho sendo esse controlo efetuado

por vigilância eletrónica. Ao longo dos anos a definição legal de vítima foi assumindo

diversas interpretações que se ajustavam a visão que o legislador e a própria sociedade

tinham do fenómeno. Atualmente a Lei define como vítima, “a pessoa singular que

sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua dignidade física ou mental, um dano

moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do

crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal” (Art.º 2.º, al. a),

Lei n.º 112/2009 de 16 setembro).

36

A legislação em vigor prevê um conjunto de medidas especiais de proteção às

vítimas de violência doméstica, como a possibilidade de proteção por teleassistência

(Artigo 20.º, n.º 4, Lei n.º 112/99 de 16 setembro), o direito de não contactar com o

agressor em locais que impliquem diligências processuais (Art.º 20.º, n.º 2 e 3, Lei n.º

112/99 de 16 setembro) quando ordenado pelo Ministério Público ou Juiz, bem como o

direito de ter acompanhamento policial à sua residência para a recolha exclusiva dos

seus bens de primeira necessidade (Art.º 21.º, n.º 4, Lei n.º 112/99 de 16 setembro).

O agressor está também sujeito a medidas de controlo que passam pela detenção

em flagrante delito e fora de flagrante delito (Art.º 30.º, Lei n.º 112/99 de 16 setembro)

quando tal for admissível, e pelas medidas de coação como a proibição de permanência

na residência onde o crime tenha sido cometido ou a vítima habite e/ou pela proibição

de contacto com a vítima (Art.º 31º, n.º1, al. c) e d), Lei n.º 112/99 de 16 setembro,)

sendo neste caso possível o controlo da medida com o recurso a vigilância eletrónica

(Art.º 35.º, Lei n.º 112/99 de 16 setembro).

2.2. Os principais intervenientes no processo de denúncia do crime

2.2.1. Os órgãos de polícia criminal

As denúncias do crime de violência doméstica são na maior parte dos casos

encaminhadas ao Ministério Público pelos órgãos de polícia criminal26, sendo mais

frequente, dada a natureza das suas funções, que essa comunicação seja realizada pela

PSP ou GNR (RASI, 2016). Sobretudo na última década, o MAI tem disponibilizado

meios e recursos para efetivar o combate ao fenómeno da violência doméstica, criando

um conjunto de instrumentos que visam melhorar as respostas das Forças de

Segurança27 (DGAI, 2013). De acordo com este manual, esta intervenção assenta em

seis princípios fundamentais: 1) O fenómeno da violência doméstica é um crime grave

que afeta a família e a sociedade, sendo por isso necessário um sistema judicial eficaz e

26 Há casos (menos frequentes) em que a denúncia é efetuada diretamente ao Ministério Público ou noutros órgãos de polícia criminal (e.g. Polícia Judiciária).27 Como exemplo, podemos referir a criação da Ficha de Avaliação de Risco para vítimas de Violência Doméstica, que foi implementada em novembro de 2014.

37

eficiente; 2) Cabe às Forças de Segurança o dever de cooperação com as restantes

organizações que intervém no processo, no sentido de reduzir e prevenir situações de

violência doméstica, e se necessário, garantir o cumprimento das medidas penais

impostas aos agressores pelo sistema penal; 3) A resposta das polícias deverá ser

adequada à especificidade de cada vítima, tendo em conta, e.g. a sua cultura e tradições,

trabalhando em conjunto para reduzir a incidência do fenómeno no seio dessas

comunidades; 4) As forças de segurança devem trabalhar em conjunto com as

comunidades onde estão inseridas e participar ativamente na prevenção do fenómeno; 5)

Deve ser tido em conta a proteção de crianças e jovens mais vulneráveis que sejam

vitimadas de forma direta ou indireta, nos lares onde haja situações de violência; 6) A

intervenção das polícias junto das vítimas de violência doméstica deve sempre ser

imparcial, construtiva e sem julgamentos preconceituosos (Idem, Ibidem).

O modelo de policiamento da violência doméstica adotado em Portugal

aproxima-se do existente nos restantes países da União Europeia e assenta na

proximidade com a vítima, dado ter-se percebido que um “policiamento mais reativo

não era a abordagem mais eficaz para a prevenção sustentada da revitimação” (DGAI,

2013, p. 14). Desta política de proximidade, surgiu em 2013 o GAIV da PSP28, que

pretendeu justamente oferecer um serviço especializado e dedicado exclusivamente a

este ilícito criminal.

No processo de violência doméstica, cabe às polícias a recolha e o levantamento

de todos os indícios e meios de prova do crime e o seu envio, no espaço mais curto de

tempo, ao Ministério Público (Art.º 243.º, Decreto-Lei n.º 78/87 de 17 fevereiro). O

contacto dos elementos policiais nestas situações ocorre, na maior parte dos casos, no

posto policial onde o elemento de atendimento ao público é informado diretamente pela

vítima do sucedido, ou quando é solicitado o seu apoio no local do crime (DGAI, 2013).

Em qualquer das situações, a ação dos polícias que intervém em primeira linha é

fundamental para transmitir à vítima um sentimento de segurança e compreensão

28 O GAIV é um gabinete especializado da PSP, “para onde são encaminhadas todas as vítimas de violência doméstica do concelho do Porto para efeitos de atendimento personalizado e especializado por equipas policiais multidisciplinares, das valências policiais de Investigação Criminal e do Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade.” (www.psp.pt, consultado em 4 setembro 2017). Excetua-se deste encaminhamento as vítimas que denunciam os crimes em Divisões destacadas do COMETPOR como é o caso da Esquadra de Santo Tirso.

38

relativamente ao crime que acaba de denunciar, uma vez que “uma resposta insuficiente

ou inadequada, pode inviabilizar futuras iniciativas da vítima em procurar ajuda,

deixando-a de novo desprotegida e em risco de ser alvo de novos episódios de

violência” (DGAI, 2013, p.34).

Compete às polícias, quando atuam em primeira linha, tomar as primeiras

medidas de proteção da vítima que passam, quando há contacto direto com o agressor,

pelo cessar imediato da agressão ou, caso o atendimento seja realizado no departamento

policial, reencaminhar a denunciante para a sala de apoio à vítima29 e efetuar as

diligências necessárias de forma a salvaguardar a sua segurança e a dos demais

envolvidos, e.g filhos (Idem, Ibidem). Durante a elaboração da denúncia, deve também

ser avaliada a situação de risco inerente à ocorrência e informada a vítima sobre todos

os procedimentos subsequentes, nomeadamente, sobre o decorrer do processo-crime que

irá correr no tribunal competente.

2.2.2. O Ministério Público

O crime de violência doméstica é de natureza pública, ou seja, qualquer cidadão

que tenha conhecimento da sua existência, pode denunciá-lo ao Ministério Publico

(Art.º 244.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro), cabendo a este órgão a legitimidade

para a promoção do processo penal (Art.º 48.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro) e

a sua direção (Art.º 53.º, al. b), Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro) coadjuvado pelos

órgãos de polícia criminal (Art.º 55.º, n.º1, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).

Quando o crime é do conhecimento de funcionários30 ou elementos pertencentes aos

órgãos de polícia criminal, a denúncia é obrigatória (Art.º 242.º, Decreto-Lei n.º 78/87,

17 de fevereiro), lavrando neste caso Auto de Notícia (Art.º 243.º, Decreto-Lei n.º

78/87, 17 de fevereiro). Compete também ao Ministério Público o requerimento das 29 De acordo com o RASI (2016) praticamente todas as Esquadras da PSP e Postos da GNR têm uma sala de atendimento especialmente reservada para as vítimas de violência doméstica, onde, à partida, existe maior recato e condições para as atender estas situações.30 A definição de funcionário de acordo com o diploma legal que prevê o conceito, diz-nos que, “Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.” (Art.º 386.º, n.º1, al. d), Decreto-Lei n.º 48/95, 15 de março)

39

medidas de coação a aplicar ao agressor sendo posteriormente aplicadas, ou não,

consoante despacho do juiz (Art.º 194.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).

2.2.3. O Juiz

O juiz é o decisor do processo, de acordo com a fase em que o processo se

encontra (inquérito, instrução, julgamento ou recurso), cabe-lhe a ele tomar as decisões.

O juiz de instrução exerce a sua função durante a fase de investigação que decorre no

processo-crime. Se for requerida a instrução do processo, cabe-lhe também proferir o

despacho de pronúncia ou não pronúncia e decidir se o arguido vai, ou não, a

julgamento (Art.º 17.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro). Mediante a decisão

anterior, se o processo seguir para julgamento, cabe ao juiz decidir se o arguido é ou não

culpado da prática dos crimes que foi acusado. Se houver recurso, compete aos juízes

desses tribunais superiores apreciarem e decidirem se o recorrente tem ou não razão e

manter ou alterar a decisão da instância anterior.

2.2.4. A Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica

Atualmente existem várias estruturas de apoio à vítima em Portugal

disseminadas por todo o país31. Estes recursos integram a Rede Nacional de Apoio às

Vítimas de Violência Doméstica, que foi estabelecida com a publicação da Lei n.º

112/99, de 3 de agosto, onde se incluem também outros locais de atendimento à vítima,

de vários organismos públicos, com as Forças de Segurança ou serviços da Segurança

Social (Art.º 53º, 62.º, Lei n.º 112/99, 3 de agosto).

A CIG, constituída ainda antes da Revolução de Abril de 197432 e a APAV,

criada em 1990, são as organizações de referência no apoio a vítimas de violência

doméstica no país33. A utilidade destas organizações é demonstrada pelo trabalho que

31 Pesquisamos na página web da CIG, no seu Guia de Recursos, por “estruturas de apoio à vítima” e obtivemos um total de 130 estruturas referenciadas em todo o país, não existindo nenhuma no concelho de Santo Tirso.32 Na altura denominada Comissão para a Política Social relativa à Mulher, criada com o objetivo de fazer um levantamento das discriminações legais contra as mulheres (CIG, 2017)33 Salientamos também o trabalho desenvolvido pela UMAR na área da igualdade de género e, mais recentemente, na elaboração de trabalhos realizados na área da violência no namoro (UMAR, 2017) e a APMJ pelo apoio, sobretudo de âmbito jurídico, que tem desenvolvido junto da comunidade.

40

têm efetuado ao longo dos últimos anos, bem como no envolvimento que ambas têm

desenvolvido na divulgação, definição de estratégias e combate ao flagelo da violência

doméstica em Portugal.

A CIG, com delegações em Lisboa e no Porto, apresenta como missão, a

promoção da: “igualdade entre mulheres e homens é um princípio fundamental da

Constituição da República Portuguesa, sendo tarefa fundamental do Estado a sua

promoção. A Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) é o

organismo nacional responsável pela promoção e defesa desse princípio, procurando

responder às profundas alterações sociais e políticas da sociedade em matéria de

cidadania e igualdade de género (CIG, 2017). O seu trabalho é desenvolvido no âmbito

da investigação científica e divulgação de recursos técnicos na área da violência

doméstica, pela formação de profissionais, (e.g. polícias), bem como por esclarecer e

apoiar as vítimas, fornecendo-lhes apoio jurídico e psicossocial (Idem, Ibidem).

A APAV tem atualmente 17 gabinetes de apoio à vítima (e três de apoio à vítima

migrante e de discriminação) dispersos por várias zonas do país, sobretudo nos centros

de maior aglomerado populacional, existindo também extensões locais em vários

municípios que resultam de vários protocolos de colaboração. A sua atuação é

desenvolvida no apoio, “emocional, jurídico, psicológico e social à vítima de crime”

(APAV, 2017).

Uma das finalidades da elaboração da Lei n.º 112/99, 16 de setembro, foi

justamente, “Incentivar a criação e o desenvolvimento de associações e organizações

da sociedade civil que tenham por objetivo atuar contra a violência doméstica,

promovendo a sua colaboração com as autoridades públicas” (Art.º 3.º, al. j), Lei n.º

112/99, 3 de agosto). Assim, decorrente deste objetivo, sobretudo ao longo da última

década, têm surgido em Portugal várias estruturas de apoio que visam auxiliar

localmente as vítimas de violência doméstica.

2.3. O processo de denúncia no crime de violência doméstica

41

Não pretendemos neste trabalho desenvolver em pormenor todos os trâmites

legais de um processo-crime de violência doméstica, até porque essa não é a nossa área

de formação académica. No entanto, julgamos ser pertinente para a compreensão do

discurso das vítimas, descrever de forma sucinta, mas esclarecida, as suas fases

principais. Como referimos anteriormente, um processo-crime por violência doméstica

tem o seu início quando o Ministério Público, após ter tido notícia da prática do crime,

investiga ou, atribui às Forças de Segurança, a investigação do crime. A primeira fase

do processo é o momento da investigação (inquérito) onde se pretende recolher todas as

provas que possam levar à descoberta do autor do ilícito criminal (Art.º 262.º, 267.º,

Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro)34.

No final da investigação, caso ela tenha decorrido num OPC, o agente

responsável deve enviar o relatório final para que o magistrado (Procurador) decida se

irá proceder, ou não, à acusação do suspeito, ou ainda, sugerir à vítima (com a

necessária concordância do agressor) a suspensão provisória do processo. Se não houver

matéria (prova recolhida) para acusar o suspeito, ou seja, se o Ministério Público

considerar que não é provável que o suspeito seja condenado em julgamento com a

prova existente, o processo é arquivado. Se pelo contrário, o magistrado considerar que

há fortes indícios que o crime foi cometido35 e que existem fortes possibilidades de ser

condenado em julgamento, promove o despacho de acusação e o processo passa para a

fase seguinte (instrução ou julgamento).

34 Nesta fase o investigador vai ouvir a vítima, as testemunhas e o agressor em declarações. Poderá adicionalmente, por exemplo, solicitar relatórios médicos de agressões ocorridas no passado, solicitar às operadoras móveis uma lista onde constem as mensagens enviadas pelo suspeito à vítima, solicitar ao Ministério Público a promoção de busca domiciliária para apreensão de armas, etc. Há também medidas de polícia, previstas no Código Processual Penal, que poderão ser tomadas logo após o conhecimento da prática do crime (antes do início da fase de inquérito) como por exemplo, a notificação para comparência no Instituto de Medicina Legal a fim de ser submetida a exames médico-legais para que esse relatório possa servir de prova em como a vítima foi fisicamente agredida.35 “Fortes indícios da prática de um crime são aqueles que, com alguma segurança, permitem antever que o arguido possa vir a ser condenado com base neles” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 2011)

42

Nos casos em que seja admissível a suspensão provisória do processo36, este será

suspenso, de acordo com os requisitos legais e, caso o agressor cumpra as medidas

(injunções) aplicadas pelo Juiz, o processo é arquivado37. Se tal não ocorrer, o processo

é reaberto e o agressor julgado pelo crime/s que cometeu (Art.º 281º, n. º3, Decreto-Lei

n.º 78/87, 17 fevereiro).

Quando é proferido despacho de acusação ou arquivamento pelo Ministério

Público, poderá iniciar-se uma nova fase processual, a fase de instrução. Pode ser

requerida pela vítima ou agressor, por não concordarem com a decisão despachada

(Art.º 287º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 fevereiro). Mais uma vez, caberá ao Juiz

(instrução) decidir se estas novas provas são relevantes e se se justifica uma alteração da

decisão proferida anteriormente pelo Ministério Público38.

Terminada esta fase, e caso o despacho do Juiz seja de pronúncia, irá seguir-se o

julgamento do suspeito. Nesse momento estarão presentes os intervenientes do processo

que são ouvidos pelo Juiz e representante do Ministério Público (Procurador). Após a

audição de todas as partes e perante todas as provas ali produzidas, o juiz vai decidir se

o suspeito é condenado ou absolvido. No final do julgamento e após a decisão do juiz,

segue-se a fase de recurso (caso tal aconteça) em que as partes envolvidas podem

recorrer da decisão do Juiz de 1.ª instância.

2.4. Breve referência estatística – Contexto nacional

Como referimos anteriormente, sobretudo nas duas últimas décadas o Estado

tem investido no combate ao fenómeno da violência doméstica, tendo sido criados um

36 São condições necessárias para a aplicação da suspensão provisória do processo, “a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de antecedentes criminais do arguido; c) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; d) Carácter diminuto da culpa; e) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir; e) Ausência de um grau de culpa elevado; e f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.” (Art.º 281.º, Decreto-Lei n.º 78/87, 17 de fevereiro).37 As injunções podem passar, por exemplo, pela obrigação em frequentar programas de desintoxicação alcoólica, proibição de contactar a vítima por qualquer forma, proibição de frequentar determinados lugares, prestação de trabalho a favor da comunidade, etc..38 Esta fase culmina com um debate (instrutório) onde estão presentes o Juiz de Instrução, o Ministério Público, os advogados e os seus constituintes. Em regra, quando há um despacho de pronúncia, ou seja, a decisão de julgar o arguido, não há lugar a recurso, não acontecendo o mesmo quando há um despacho de não pronúncia (decisão de não julgar o arguido) em que é suscetível a existência de recurso.

43

conjunto de instrumentos legais e operacionais que visaram combater o problema e, ao

mesmo tempo, trazê-lo para a esfera pública. Um desses instrumentos foi a criação de

bases de dados oficiais para que se pudesse aferir e medir a evolução da incidência do

crime na sociedade portuguesa. O RASI é um documento emitido pela Secretaria Geral

da Administração Interna onde constam as estatísticas oficiais do Estado sobre a

criminalidade registada em Portugal recolhida diretamente dos OPC39 e coligida pela

Direção-Geral de Política de Justiça (MAI, 2016).

De acordo com este relatório, no ano de 2016 o crime de violência doméstica

contra cônjuges ou análogos foi o segundo tipo de crime mais registado nos processos

que originaram uma pena ou medida de coação no território nacional (Idem, Ibidem, p.

138). De acordo com este documento, o crime de violência doméstica teve, em 2016, 22

773 participações correspondendo ao segundo crime mais participado em Portugal,

apenas atrás das “Ofensas contra a integridade física voluntária simples” (Idem,

Ibidem, p. 2). Se compararmos com os dados do ano anterior, notamos que houve um

aumento de 1,4% (mais 304 casos) que foi responsável pela subida do 4.º para o 2.º

lugar do ilícito criminal mais verificado em Portugal40 (Anexo 6). Se olharmos apenas

para a categoria dos crimes contra as pessoas, verificamos que o crime de violência

doméstica contra cônjugue ou análogo, representa mais de ¼ de todos os crimes

participados (28,1%), com números próximos do crime, “Ofensa à Integridade Física

voluntária simples” (28,6%) (Anexo 7). As vítimas do crime são sobretudo mulheres

39 Julgo ser importante notar que devemos ser cautelosos na análise destes dados, sobretudo nos casos em que a informação recolhida depende do critério, por vezes arbitrário, dos OPC no momento em que registam o crime. Se, por exemplo, considerarmos o número de ocorrências presenciadas pelos filhos menores, que como veremos mais à frente acontece em cerca de 1/3 dos casos reportados, constatamos que esse item, que se encontra no auto de notícia padronizado de violência doméstica, se refere à presença física do menor (se o menor presenciou a ocorrência) e não se ele tem ou não perceção/conhecimento da violência que existe entre os seus pais (que poderá incluir vários tipos de maus tratos que vão para além das agressões físicas). Se a pergunta fosse efetuada de uma forma mais aberta, por exemplo, se os filhos alguma vez presenciaram, ou têm conhecimento, de algum tipo de violência (e.g. verbal) manifestada entre os pais, o resultado seria, em nossa opinião, bem diferente. Quando isto acontece, por norma, não há uma comunicação à CPCJ desta situação o que vai prejudicar o apoio emocional ao menor. A este propósito, Sani (2006) considera que existe ainda uma “despreocupação social sobre o fenómeno da vitimação indireta, pois é menos expressivo face a um atentado direto à integridade da pessoa. A consideração de que algumas crianças, especialmente as mais novas e imaturas, poderão não ser afetadas pela exposição à violência na família, pois na maioria dos casos não compreendem o que se passa, é também um dos motivos que levam ao escamotear deste problema” (Idem, Ibidem, p. 851)40 Em 2015 o crime de violência doméstica foi o 4.º mais participado, antecedido dos crimes de furto em veículo motorizado, Ofensas à Integridade Física voluntária simples e condução sob efeito de álcool.

44

(80%) e a sua maioria (80%) têm mais de 25 anos. Contudo, se considerarmos apenas a

violência praticada entre cônjuges/companheiros e ex-cônjuges/ex-companheiros, a taxa

de vitimação das mulheres sobe para 86,7% e 83,7% respetivamente, uma vez que nos

casos em que a violência é cometida contra ascendentes ou descendentes o número de

homens vítimas sobre ligeiramente (Anexo 8).

Se observarmos os tipos de violência denunciados pelas vítimas, verificamos que

a violência psicológica assume maior relevo tendo ocorrido em 82% dos casos, seguida

da violência física, 68%, violência social, 16%, violência económica, 9%, e em 3% dos

casos, foi também denunciada violência sexual, sendo importante recordar que, por

norma, uma situação de violência doméstica, contempla vários tipos de violência onde

está implícita, quase sempre, a violência psicológica.

Quando analisamos o grau de parentesco entre a vítima e o agressor, de acordo

com os dados recolhidos em 2016, verificamos que em 55% dos casos o agressor é

conjugue/companheiro da vítima ou ex-cônjuge/ex-companheiro da vítima (17%),

havendo também 14% de denúncias que correspondem a atos de violência por parte dos

filhos/enteados (Anexo 9). A intervenção policial, na maior parte dos casos (77%),

surge na sequência do pedido da vítima e apenas 9% das situações são sinalizadas por

familiares ou vizinhos. Outro dado importante prende-se com a presença de crianças

menores no momento da agressão. De acordo com o mesmo relatório tal acontece em

35% dos casos registados pelos OPC (MAI, 2016).

A partir de 1 de novembro de 2014, começou a ser elaborada uma Ficha de

Avaliação de Risco (Guerra e Gago, 2016, p. 143), no momento da denúncia ou

participação do crime, que pretende avaliar o grau de risco a que a vítima está sujeita

nessa data. Este instrumento, um questionário com 20 questões (Anexo 3), é “aplicável

a qualquer vítima de violência doméstica, seja ela do sexo masculino ou feminino, de

idade adulta ou menor de idade, que coabite ou não com o/a agressor/a…; ou seja:

todas as situações previstas no Art.º 152.º do Código Penal” (Castanho e Quaresma,

2014, p. 3). Apesar de esta avaliação ser de caráter obrigatório para todos os elementos

das Forças de Segurança que recebem notícia do crime, nem sempre é possível

concretizá-la por motivos operacionais ou por discordância da vítima. Em 2016 a

45

avaliação de risco foi realizada em 98% das situações tendo o grau de risco elevado sido

calculado em 22% dos casos, o risco médio em 50% e o risco baixo em 28% das

situações. Decorrente desta avaliação, a reavaliação de risco, terá que ser efetuada no

prazo de 3 dias (risco elevado), 30 dias (risco médio) e 60 dias (risco baixo). Se a vítima

for acolhida em Casa Abrigo, cessa a necessidade de se efetuar qualquer reavaliação

(Idem, Ibidem).

Inerente ao grau de risco, poderão estar associadas a aplicação de medidas de

coação ao agressor. Estas medidas, aplicadas pelo Juiz, são fundamentais para transmitir

um sentimento de segurança à vítima (como veremos mais à frente). Constatamos que o

recurso à vigilância eletrónica resultante de uma pena ou medida de coação pela prática

de um crime de violência doméstica representam 52% do total das penas ou medidas

aplicadas no âmbito deste ilícito criminal (MAI, 2016, p. 138). Em 2016 foram findados

27 935 inquéritos referentes ao crime de violência doméstica, tendo 4 163 culminado

em acusação do suspeito e 20 119 sido arquivados (Idem, Ibidem).

2.5. Breve referência estatística – Contexto local

Se observarmos os dados referentes ao distrito do Porto, verificamos que em

2016 foram registados 4 903 crimes de violência doméstica, mais 121 casos do que no

ano anterior, o que correspondeu a um aumento de 2,5% e a uma taxa de incidência de

2,8% casos por cada 1000 habitantes. O concelho de Santo Tirso pertence ao distrito do

Porto e está integrado na NUT III do Grande Porto (Decreto Lei n.º 244/2002, 5 de

novembro). Com uma área de 140 Km2, 14 freguesias e com uma população residente

de 71 530 habitantes esta região concentra nas suas duas maiores freguesias a maior

parte da sua população41 (CLAS, 2016). De acordo com o mesmo documento, o

combate à violência doméstica é uma área estratégica na intervenção social do

concelho. Assim, a prevenção primária assume especial relevo sendo para isso, em

primeiro lugar, necessário conhecer a prevalência do problema no concelho.

41 De acordo com os censos de 2011, a freguesia de Santo Tirso tinha 14 107 habitantes e a Freguesia de Vila das Aves, 8 458 habitantes que juntos, correspondem a 31,5% da população do concelho. Se observarmos a densidade populacional, verificamos que é também nestas freguesias que o valor é mais elevado, 1 589 habitantes/Km2 e 1 373,2 habitantes/Km2 respetivamente.

46

Em 2015, a Divisão de Ação Social da CMST decidiu incluir no seu Relatório de

Diagnóstico Social (CLAS, 2015) informação relevante sobre este ilícito criminal. Desta

forma, foi possível constatar que a tendência dos dados recolhidos e disponibilizados

acompanham a tendência do contexto nacional. Em 2015 foram participadas pelas

Forças de Segurança com jurisdição no concelho de Santo Tirso, PSP e GNR, 140

ocorrências pelo crime de violência doméstica (CLAS, 2016) e no ano seguinte 149

situações, verificando-se um aumento de 6,4% da prevalência do crime (CLAS, 2017).

Quanto ao sexo das vítimas, constatamos que em ambos os anos, a percentagem de

mulheres vítimas supera os 90% dos casos participados, verificando-se, neste caso, um

valor acima do contexto nacional (MAI, 2016). Se considerarmos a relação entre a

vítima e o agressor, observamos que em mais de metade das participações (51% em

2015 e 55% em 2016) os envolvidos eram casados ou divorciados, apesar de existir

também uma percentagem considerável de casos em que a vítima e o agressor são

solteiros (19%).

Relativamente ao nível de escolaridade das vítimas, constatamos que em 2/3 das

ocorrências registadas no concelho, as vítimas não possuem mais do que o 9.º ano de

escolaridade. Sabemos que a violência doméstica não é um fenómeno exclusivo das

classes menos favorecidas ou menos instruídas (Pais, 1998). Contudo, é uma evidência

que é nestas classes que o problema é mais visível: “a violência doméstica conhece uma

certa transversalidade no seio das sociedades actuais. Apesar de ser um fenómeno mais

visível nas classes com fracos recursos económicos e culturais ela existe, igualmente,

nas classes médias e altas, apesar destas defenderem com mais afinco a sua

privacidade” (Dias, 1998, p. 197). No Anexo 4, podemos observar a distribuição da

profissão das vítimas42, classificadas de acordo com a Classificação Portuguesa das

Profissões.

Estas agressões ocorreram, na maior parte dos casos, em contexto de intimidade,

entre cônjuges ou em relações análogas à dos conjugues (66% dos casos registados em

2015 e 2016), apesar de cerca de 1 em cada 4 casos terem ocorrido após a separação do

42 Os dados referem-se apenas às situações em que foi possível identificar a profissão das vítimas. Em alguns casos, este dado não consta no Auto de Denúncia e, por isso, não é possível conhecer a atividade profissional da denunciante.

47

agressor (CLAS, 2017). Estes dados estão, aliás, de acordo com o contexto nacional e

demonstram que a violência doméstica continua a ser um fenómeno que ocorre

sobretudo entre “quatro paredes” o que dificulta ainda mais a sua denúncia e

visibilidade como vermos mais à frente.

Outro dado relevante que podemos observar no relatório da CMST refere-se ao

tipo de violência denunciada pelas vítimas43, que, como percebemos, é maioritariamente

psicológica e física (Anexo 5). Importa salientar que a violência doméstica está ainda

muito associada à crença de que apenas ocorre quando há violência física. Este mito,

muito marcado no discurso das vítimas e em vários estudos realizados no âmbito da

violência no namoro, onde se verificou uma desvalorização de outros tipos de violência

“menos visível” como a posse ou o controlo das vítimas (UMAR, 2016). No entanto,

como sabemos, a violência doméstica é exercida através de diversas formas, sendo a

mais comum, a violência emocional e psicológica, que “consiste em desprezar,

menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por

palavras e/ou comportamentos (…)” (Manita, 2009, p. 16). Este tipo de violência é

seguida da violência física, que “consiste no uso da força física com o objetivo de

ferir/causar dano físico ou orgânico, deixando ou não marcas evidentes [ou outras

formas de violência que] (…) podem ir de formas menos severas de violência física até

formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade

permanente ou mesmo a morte da vítima” (Idem, Ibidem, p. 17). 43 Importa referir que o “tipo de violência” é um campo de preenchimento obrigatório do Auto de Notícia padronizado de violência doméstica que é assinalado pelo elemento das FS no momento da sua elaboração. Se não restam grandes dúvidas sobre o conceito de violência física perfeitamente identificado por todos os profissionais, já nos restantes tipos de violência poderá ocorrer um enviesamento por defeito, dada a não compreensão do conceito ou a inclusão desse tipo de violência na mais visível (por norma a física ou psicológica). Da nossa experiência no terreno, constatamos que muitas vezes o elemento policial que regista a ocorrência de violência doméstica, tende a tratá-la como qualquer outro tipo de crime, não dedicando especial importância a detalhes fundamentais para a avaliação da situação, com por exemplo, o tipo de vitimação inerente ao ilícito criminal. Se a resolução da ocorrência se desenvolve no local do crime, a dificuldade em detalhar e tratar essa informação é obstaculizada por vários aspetos operacionais, desde logo, muitas vezes, pela presença do agressor. Contudo se a denúncia é registada na esquadra, esse problema deixa de existir. Notamos que muitas vezes a violência social, por exemplo, é ignorada e “engolida” por outro tipo de violência mais “visível” ou mais marcada pela vítima. Por outro lado, nem sempre a vítima verbaliza (quase nunca) os episódios que a vitimaram, apresenta por norma um discurso confuso, desconexo e centrado no episódio que a motivou a denunciar o crime. Neste sentido, é importante ter em conta que estes dados dependem da “sensibilidade” do elemento policial que regista o crime e das circunstâncias em que a vítima o denuncia, sendo por isso necessário relativizar os resultados.

48

No mesmo sentido dos dados divulgados pelo MAI (2016), a violência física e

psicológica são os tipos de agressão mais participada pelas vítimas no concelho de

Santo Tirso, tendo ocorrido uma inversão da sua prevalência entre os anos de 2015 e

2016 conforme podemos observar no Anexo 5.

A violência social, que “resulta de estratégias implementadas pelo agressor

para afastar a vítima da sua rede social e familiar” (Manita, 2009, p. 16), foi também

referida em cerca de 10% das situações, bem como o abuso económico, “associado

frequentemente ao isolamento social, é uma forma de controlo através do qual o

agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou bens, incluindo, muitas vezes, bens de

necessidade básica para esta e para os filhos” (Idem, Ibidem, p. 18), que esteve

associado a 8% dos casos em 2015 e a 9% em 2016.

A relação entre o consumo de substâncias psicoativas (e.g. álcool e drogas) e a

violência doméstica está também muito presente no discurso das vítimas de violência

doméstica44, sendo frequente ouvir durante a denúncia de muitos destes crimes frases

como a que foi proferida por uma das entrevistadas: “Ficava muito mal disposto… se

bebesse, por isso é que eu digo que ele é uma pessoa fantástica, se não bebesse…”

(Fátima). Esta relação será analisada mais à frente, contudo é importante referir que os

dados disponíveis do concelho estão claramente abaixo do contexto nacional pois, de

acordo com o MAI (2016), estes consumos verificam-se em mais de metade dos crimes

participados (53%). Se observarmos os dados do concelho em 2015, verificamos que

essa prevalência ocorreu em 27% das denúncias, tendo esse número subido no ano

seguinte para 36% (CLAS, 2017). De uma forma sucinta, podemos descrever o perfil

das vítimas de violência doméstica do concelho de Santo Tirso, como sendo do género

feminino, com idades compreendidas entre os 40 e os 50 anos, casadas ou numa relação

de união de facto, com baixa escolaridade, trabalhadoras por conta de outrem (com

profissões pouco qualificadas), predominado as agressões físicas e psicológicas

cometidas pelos seus maridos/companheiros (Idem, Ibidem).

44 Da nossa amostra, cerca de metade dos agressores são consumidores habituais de álcool ou drogas.49

Capítulo 3 – Abordagem metodológica e análise das

entrevistas

3.1. Metodologia

Com esta investigação pretendemos perceber a implicação do processo

desencadeado pela denúncia do crime no fim do ciclo da violência bem como o

contributo das instituições intervenientes no processo, nas estratégias de

empoderamento adotadas/adquiridas pelas vítimas na reconstrução de um novo projeto

de vida. No plano metodológico a nossa abordagem foi de cariz qualitativo uma vez que

esta privilegia o uso de instrumentos que permitem obter uma análise mais intensiva e

aprofundada do fenómeno (Bryman, 1988). Como refere Bryman (1988), a

característica fundamental desta abordagem é permitir ao investigador captar expressões

e significantes diretamente dos sujeitos, enquanto na abordagem quantitativa, o que se

procura, não são as particularidades, mas a representatividade e a extensividade.

No mesmo sentido, Dias (2004) recorda que algumas autoras feministas, mais

próximas da abordagem qualitativa, consideram que “a análise da violência doméstica

não está completamente desprovida de valores, até porque implícita à investigação,

está a finalidade de intervenção na realidade” (Idem, Ibidem, p. 20). Neste sentido,

esta investigação assume dois objetivos fundamentais: melhorar e qualificar

tecnicamente o atendimento às vítimas de violência doméstica na esquadra policial onde

o autor presta serviço e analisar a pertinência da criação de uma estrutura de apoio

específica para estas vítimas no concelho de Santo Tirso.

A nossa técnica principal de recolha de dados será a entrevista pelas vantagens

que esta nos oferece, nomeadamente a possibilidade de uma exploração mais

aprofundada dos temas que pretendemos estudar, a possibilidade de ajustar o ritmo das

questões às entrevistadas, uma vez que pela complexidade emocional do tema, pode ser

necessário fazer pausas, a reformulação do guião de entrevista à medida que vamos

avançando na investigação, ajustando-o aos nossos objetivos.

As entrevistadas são mulheres vítimas de violência doméstica, todas residentes no

50

concelho de Santo Tirso, que têm em comum não só a experiência de terem sido vítimas

de violência nas suas relações de intimidade e denunciado o crime na PSP, mas também

terem terminado a relação abusiva e abandonado os agressores45. Estas mulheres, todas

elas com filhos, com diferentes níveis de escolaridade e tempo de

convivência/coabitação com os agressores, foram acompanhadas pelo autor no âmbito

do seu processo de denúncia e acompanhamento de pós-vitimação46, pelo que esta

relação de proximidade deve ser assumida. Apesar de ter existido uma tentativa de

afastamento entre o “polícia” e o “investigador” sobretudo nos momentos da entrevista,

entre “o polícia” e “a vítima”, sabemos que essa relação não desapareceu e está presente

em ambos os discursos (investigador e da vítima).

Esta proximidade e a relação de poder (simbólico) desigual com as vítimas, não

foi ignorada, bem como o rigor e a isenção na transcrição do sentimento das vítimas,

referindo aspetos positivos e enaltecedores do trabalho da Polícia, mas também

procedimentos menos corretos e, no mínimo, deontologicamente condenáveis de

elementos desta instituição. Contudo, a objetividade absoluta é um mito, “na medida em

que é mediada pelo próprio investigador com os seus valores e quadros de referência,

mas também não é completamente relativa, uma vez que é construída em interação com

o mundo empírico, que opõe a sua resistência às concepções que sobre ele se

constroem” (Dias, 2004, p. 21).

A análise das entrevistas foi precedida por uma sua prévia codificação usando,

para o efeito, uma grelha onde a par da classificação da informação, procedemos à

elaboração de sinopses que nos permitiram uma análise de conteúdo das mesmas. Um

dos primeiros trabalhos conhecidos a utilizar esta técnica foi o estudo sobre a integração

dos imigrantes polacos na Europa e nos EUA (Thomas e Znaniecki, 1927), onde os

autores analisaram centenas de cartas de correspondência entre esses e as suas famílias,

assumindo a técnica neste período, um carácter quantitativo. Mais tarde, durante a II 45 Uma das entrevistadas regressou a casa para junto do agressor após a realização da entrevista. Mais tarde, voltamos a contactar a vítima que nos informou que continua a ser maltratada pelo seu companheiro e que pretende abandonar a relação brevemente.46 Todas as vítimas foram acompanhadas pelo autor na avaliação/reavaliação de risco inerente à denúncia do crime de violência doméstica e durante o decorrer do processo-crime, sobretudo no apoio operacional (e.g. registo de aditamentos à denúncia ou acompanhamento de outras diligências de ordem técnica), mas também no contacto com outras instituições no sentido de procurar respostas (sociais, psicológicas e jurídicas) inerentes às necessidades das vítimas.

51

Grande Guerra, a análise de conteúdo serviu para analisar os discursos políticos e

militares do inimigo, começando a ser utilizada, após o final do conflito, por várias

ciências surgindo dois modelos epistemológicos distintos no que se refere ao modo

como se pretende descodificar o seu conteúdo: um “instrumental” e outro

“representacional” (Bardin, 1977). Se o primeiro se preocupa sobretudo com a

mensagem explícita – medindo, por exemplo, a sua frequência –, o segundo vai um

pouco mais além, pois tenta compreender também o significado do que não está

presente, visando compreender os significados latentes da mensagem. Estes dois

posicionamentos estão relacionados com o tipo de abordagem metodológica, sendo o

primeiro próximo da análise quantitativa e o segundo da análise qualitativa (Idem,

Ibidem). O debate teórico entre ambas as abordagens parece estar hoje ultrapassado uma

vez que, tal como defende Vala (2005), ambas as perspetivas são válidas e fazem

sentido, desde que sejam cumpridas as regras de aplicação dos instrumentos utilizados.

A justificação do uso desta técnica no nosso trabalho reside na possibilidade da

sua amplitude de análise que nos permite ir além dos significados imediatos da

mensagem, permitindo também compreender o que não é revelado, ou seja, a motivação

subjacente à produção de sentidos, daí a nossa opção pelo modelo representacional. No

entanto, como recorda Bardin (1977), esta técnica exige uma rutura com a banalidade e

com o senso comum e assenta em dois princípios fundamentais: a procura do rigor, na

medida em que cabe ao investigador interpretar a extensão da representatividade da sua

interpretação, bem como a busca de mensagens implícitas (significantes). Para isso

iremos aproveitar a sua capacidade heurística e, através da construção de grelhas

sistemáticas, que nos permitiram a realização de uma análise de conteúdo temática e

consequentemente a construção progressiva do nosso modelo teórico.

Dada a necessidade absoluta de proteção da identidade das vítimas, não será

revelada qualquer característica que as possa identificar, tendo-se optado por diferenciar

os excertos transcritos apenas por um nome fictício, omitindo-se a sua idade e quaisquer

outras características.

52

3.2. A identificação das instituições

Apesar da inexistência de uma estrutura especializada no atendimento e

acompanhamento às vítimas de violência doméstica do concelho, existem outras

instituições de cariz social que, pontualmente, prestam algum apoio a vítimas de

violência doméstica. Com o objetivo de conhecer o seu trabalho nesta área e perceber a

sensibilidade dos técnicos de intervenção social sobre esta temática, entrevistamos sete

profissionais (Assistentes Sociais e Psicólogas) com cargos de direção nas organizações

que identificamos de seguida e que intervêm diretamente em várias vertentes sociais do

concelho. Estas organizações pertencem ao CLAS47 do município e o critério da escolha

deveu-se à sua proximidade com o cidadão e à relevância da sua intervenção social no

concelho.

A Casa Abrigo de Santo Tirso (estrutura pertencente à Irmandade da Santa Casa

da Misericórdia de Santo Tirso), criada em 2004, está, pela sua definição legal48,

diretamente relacionada com a problemática da violência doméstica sendo uma

referência especializada no concelho nesta temática. Atualmente, com capacidade para

acolher 25 utentes residentes (mais 13 em vaga de emergência), tem ao seu dispor

técnicas especializadas em diversas áreas científicas49 que trabalham diariamente com as

vítimas de violência doméstica acolhidas na instituição provenientes de todo o país.

A Divisão de Ação Social da Câmara Municipal de Santo Tirso é uma secção

relevante da autarquia na medida em que responde e intervém diretamente com a

população. O seu trabalho de proximidade com as pessoas e a recolha direta de

informação privilegiada possibilita uma fonte próxima dos problemas dos munícipes.

Das suas competências, realçamos o apoio à habitação para vítimas de violência

doméstica, sendo justamente no desempenho desta competência que são conhecidas

uma parte substancial destes casos.

47 Conselho Local de Ação Social. 48 As Casas Abrigo “são as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores” (Art.º 60.º da Lei n.º 24/2017, 24 de maio).49 De acordo com a legislação em vigor as Casas Abrigo deverão dispor “…para efeitos de orientação técnica, de, pelo menos, um licenciado nas áreas sociais ou comportamentais, preferencialmente psicólogo e ou técnico de serviço social, que atua em articulação com a equipa técnica.”  (Art.º 64.º da Lei n.º 24/2017, 24 de maio). No presente caso a equipa técnica é constituída por duas psicólogas e uma assistente social.

53

A Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Santo Tirso, é também uma

estrutura relevante, dado o seu trabalho, “junto das pessoas que estão expostas a

situações que ameaçam a sua sobrevivência com dignidade, nomeadamente as

situações caracterizadas por ausência ou insuficiência de condições sociais e

económicas” (Cruz Vermelha, 2017). A sua área de atuação é vasta, salientando-se o

acompanhamento especializado a cidadãos que beneficiam do RSI50 por ser nessa

vertente que surgem mais situações de denúncia/conhecimento de casos de violência

doméstica.

A ASAS é uma instituição de referência do concelho de Santo Tirso,

reconhecida pelo seu trabalho de acolhimento de crianças e jovens em situações

socialmente desfavorecidas. Contudo, a sua área de atuação estende-se para além do

trabalho desenvolvido com as crianças e jovens, tendo também uma resposta social,

através do seu Gabinete de Ação Social, que passa pelo acompanhamento de famílias

com problemas de exclusão social, podendo também atuar em situações de emergência

como, por exemplo, articulação com a LNES para o encaminhamento do acolhimento

de vítimas de violência doméstica. De acordo com um protocolo realizado com a

Segurança Social, as situações sinalizadas pela LNES à Segurança Social que não têm

técnico de acompanhamento, são reencaminhadas para o GAS que assume essa

orientação técnica, sendo também daqui que resulta grande parte das situações

conhecidas de violência doméstica. De acordo com fontes da própria instituição, a

ASAS é responsável por cerca de 20% do apoio de ação social do concelho (ASAS,

2017).

O Centro Comunitário de Geão, estrutura criada em 2001 pela Irmandade da

Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, surge inicialmente como um projeto que

visou combater a pobreza no concelho, mas que se assumiu mais tarde como uma

resposta social polivalente que abarcou várias áreas, onde se destaca a cantina social.

Atualmente é uma das estruturas que faz o acompanhamento técnico de crianças e

50 Em 2005 foi celebrado um protocolo de colaboração entre a Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de

Santo Tirso e o Instituto de Segurança Social/Centro Distrital da Segurança Social do Porto, que atribuiu

a este núcleo competências no âmbito do acompanhamento de cidadãos beneficiários do RSI.54

jovens em risco sinalizadas pela CPCJ local, com especial relevo para as crianças

expostas a violência doméstica pelos seus progenitores.

O Núcleo Local de Inserção de Santo Tirso é o representante local do Instituto

da Segurança Social e a estrutura central para onde são encaminhados os pedidos da

LNES para apoio ou alojamento de emergência a vítimas de violência doméstica. Para

além disso, dada a natureza da sua missão de auxílio e apoio aos mais desfavorecidos, é

um espaço onde, por vezes, são sinalizadas situações de violência doméstica que

posteriormente são encaminhadas para outras estruturas mais especializadas.

No sentido de conhecermos melhor o funcionamento do sistema judicial e o

tratamento que este confere aos processos de violência doméstica, entrevistamos

também uma advogada com vasta experiência nesta área. Dada a nossa posição de

elemento da PSP/investigador, para apresentar uma visão mais distanciada deste

fenómeno, entrevistamos também um graduado desta Polícia para conhecermos a sua

perspetiva da abordagem deste OPC à violência doméstica. Importa destacar que a PSP

é a Força de Segurança responsável pelo policiamento da cidade, juntamente com a

GNR, com quem divide a jurisdição territorial do concelho. Dada a natureza da sua

missão51 e a relevância que tem assumido no combate ao fenómeno da violência

doméstica em Portugal, a PSP é uma estrutura de referência do concelho no que diz

respeito à denúncia e ao combate da violência doméstica52.

3.3. Análise das entrevistas

A análise das entrevistas foi estruturada de acordo com o percurso de vida das

entrevistadas, desde o momento em que se iniciou o período de namoro até ao final da

relação com o agressor, tendo estas etapas coincidido, de certa forma, com as fases do

ciclo da violência doméstica. Verificamos que após o momento da denúncia, ocorreram

mudanças significativas na vida das vítimas, pelo que percorremos esse caminho

51 De acordo com a sua Lei Orgânica “A PSP tem por missão assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, nos termos da Constituição e da lei.” (Lei n.º 53/2007, 31 de agosto).52 Através dos elementos afetos ao programa Escola Segura, a PSP realiza anualmente dezenas de ações de sensibilização nas escolas do concelho sobre a temática da Violência Doméstica/Namoro, efetuando também várias palestras para técnicos e encarregados de educação sobre o tema.

55

analisando com detalhe algumas consequências da separação dos agressores, bem como

apontando insuficiências e constrangimentos que foram referidas pelas vítimas ao longo

de todo este processo.

3.3.1. O início da relação – O período de namoro

Como sabemos, a violência no namoro é muitas vezes um preditor da violência

doméstica (Machado, et al., 2006). Nas entrevistas que realizamos, pudemos constatar

que praticamente todas as vítimas identificaram (no momento da entrevista), no início

das suas relações afetivas com os agressores, comportamentos violentos. O controlo e o

ciúme, assim como o sentimento de posse, foram os comportamentos mais denunciados

pelas vítimas,

“Andava sempre a controlar-me, sempre a telefonar-me para casa dos meus

pais (…) ia lá a várias horas e eu ficava envergonhada. Não era ir lá e ficar, era ir lá

só para me controlar e depois ia embora. Mas na altura não liguei nada a isso”.

(Maria)

“Na escola era igual, eu ia para a escola da escola ia para casa, ele ia todos os

dias a minha casa e o bocadinho que eu estava com os meus amigos era na escola… a

gente vai-se afastando de todos. Fins-de-semana, sair, passeios da escola… zero, ele

proibia-me de sair.” (Alzira)

Estes comportamentos, segundo Machado et. al. (2006), podem ser explicados

pela socialização dos rapazes que encontram nestas manifestações de poder uma

legitimação da sua autoridade sobre as raparigas. No mesmo sentido, Matos (2006)

refere que estes comportamentos são atitudes que nos alertam para prováveis

complicações futuras nestas relações. Por outro lado, o isolamento social, identificado

nestas relações, assume também uma dupla função de vitimização quer fragilizando a

vítima, quer ocultando a violência que o agressor comete sobre ela (Idem, Ibidem).

“Afastei-me dos meus amigos todos, perdi os meus amigos todos… não podia

falar com ninguém, eu não podia sair com ninguém, o meu refúgio era o meu

trabalho… era a única situação em que saía sozinha e voltava sozinha”. (Maria)

“No namoro, tudo normal… eu também só tinha amigos rapazes por isso nunca

falava muito com eles, ele não gostava. Mas nunca liguei a isso”. (Florbela)56

Apesar de haver evidências claras de comportamentos violentos em praticamente

todos os casos identificados, registamos duas situações em que as vítimas afirmaram

que a violência só teve início após o casamento, mas devido a fatores exógenos aos

agressores, seja por consumo abusivo de álcool/drogas ou por motivos de doença do

foro mental:

“Namoramos alguns anos. Era simpático, era meigo, mas depois começou a

beber muito (…) no namoro nunca fez nada, era normal”. (Cristina)

“Não durante o tempo de namoro, não aconteceu nada… era meigo, era uma

pessoa supersimpática, embora andasse nos consumos [drogas] e tal, era uma pessoa

normal (…). Tratava-me mal e depois pedia-me desculpa, já nem lhe ligava porque

sabia que ele era assim por causa da doença”. (Sílvia)

Importa lembrar que as vítimas têm idades distintas e que, por isso, o próprio

conceito e práticas de namoro não é igual para todas as entrevistadas. Por exemplo,

quando falamos sobre esse período, a Cristina, com mais de 60 anos, recordou que no

seu tempo era costume “namorar à porta de casa e, muitas vezes, na presença dos

pais”, tendo afirmado que o seu namoro tinha sido normal, não tendo detetado qualquer

forma ou ato de violência nesse período (que durou cerca de dois anos), até porque não

passava muito tempo com o seu namorado. No entanto, não deixa de ser relevante notar

que a Florbela, apesar de ter menos de metade da idade da entrevistada anterior, não

relevou o facto de o seu namorado não gostar que falasse com outros rapazes, ignorando

o controlo e a posse evidenciada pelo jovem no período de namoro. Na verdade, esta

falta de perceção do comportamento violento e a legitimação da violência no período de

namoro por parte dos jovens, tem vindo a ser estudada, por exemplo, pela UMAR

(2017) que vem alertando para a importância da sua sensibilização sobre estas práticas

nada saudáveis e potencialmente perigosas no período de namoro53.

53 Durante as sessões de sensibilização que realizamos nas várias escolas do concelho sobre o tema da Violência no Namoro e no contacto diário que mantemos com vários jovens, notamos essa desvalorização de comportamentos de controlo e posse, até de isolamento social, por parte dos namorados/as. É muito frequente haver o controlo do telemóvel do namorado/a, proibição de vestir determinadas peças de roupa, pressão para não frequentar determinados locais (e.g. bar/discoteca) sem a presença do namorado e, quando questionados sobre estes comportamentos, consideram-nos normais e, por vezes, provas de amor do parceiro. Nestas situações, parece haver uma certa bidirecionalidade da violência, uma vez que estes

57

Numa investigação realizada com jovens universitários, Machado, et al., (2006),

identificaram também no seu trabalho, a presença frequente nas relações de namoro, do

que consideraram “formas menores” de violência: insultar, difamar ou fazer

afirmações graves para humilhar ou ferir, gritar ou ameaçar com intenção de meter

medo, partir ou danificar objectos intencionalmente e dar bofetadas.” (Idem, Ibidem, p.

60). De acordo com a nossa análise, podemos concluir que, tal como noutras

investigações, “de uma forma geral, os casamentos abusivos são precedidos de

relações de namoro violentas e caracterizadas por estratégias de controlo e restrição

da autonomia da mulher” (Caridade e Machado, 2006, pp. 485-486).

3.3.2. Viver juntos – Início da violência e estratégias de sobrevivência

Da análise que efetuamos percebemos que a violência manifestada durante o

namoro, raramente entendida pelas vítimas como tal nesse período, não só se manteve

como aumentou de intensidade após a união do casal, o que vai ao encontro da

constatação de Hamberger, L. K., e Holtzworth-Munroe, A. 1994 (cit. Caridade e

Machado, 2006), que afirmam que quando a relação abusiva se prolonga no tempo a

violência tende a aumentar a sua frequência e gravidade. No nosso estudo, verificamos

que na maior parte dos casos, pouco tempo após o casamento, os agressores

intensificaram e agravaram os comportamentos violentos que já tinham manifestado

anteriormente no período de namoro. O domínio da vítima manifestou-se de várias

formas como, por exemplo, através do controlo das suas rotinas diárias ou da proibição

do uso de determinado tipo de indumentária:

“Começou a tentar controlar a minha vida, a não querer que eu andasse com os

meus amigos, que andasse só com os amigos dele, não queria que eu vestisse certas

coisas, não queria que eu andasse maquiada, não queria que eu fosse para o trabalho

maquiada, era muito controlador”. (Rita)

“Controlava-me, não me deixava sair, se saísse tinha que sair com os meus

filhos… sair sozinha, nem pensar, sair tarde do trabalho, nem pensar, tinha horas para

comportamentos são também observados nas raparigas. 58

chegar. Eu tinha horas para chegar a casa, ele sabia a que horas eu saía e dava-me

tempo para chegar a casa”. (Alzira)

Este controlo reforçou o isolamento social de Alzira, proibindo e dificultando a

sua convivência com amigos ou familiares mais próximos:

“Eu era a verdadeira mulher de sonho! Dona de casa, não saía para lado

nenhum, não tinha amigos, vivia exclusivamente para a família (…) vivia para a

família, para a casa, aquilo era a minha vida”. (Alzira)

Paula passou por uma situação semelhante: “Ele chegava a casa e depois ia

para o café jogar às cartas. Nessa altura começou a proibir-me de falar com as outras

pessoas, não sei o que se passou, pensava coisas… na cabeça dele não sei. Eu tinha

que ficar sempre em casa e não podia falar com ninguém”.

O ataque à autoestima com afirmações que mostram desprezo pela identidade da

vítima, recorrendo por vezes à humilhação pública, constitui outra estratégia violenta

por parte dos agressores:

“Sempre que iam lá para casa amigos nossos, o que não acontecia muitas

vezes, ele tentava sempre dar a cravadela «Porque esta tua amiga… não sabe por os

pratos na banca… é uma despassarada, esquece-se de tudo» sempre… a apontar o

dedo e isso magoava-me… acabava por me humilhar”. (Carla)

As manifestações de posse e ciúme foram identificadas por todas as vítimas nas

suas relações:

“Fui obrigada a deixar de trabalhar com homens por causa dele, ele chateava-

me a cabeça por estar a trabalhar com homens… imagine, se isto é possível”. (Sílvia)

“Agredida psicologicamente, começou muito cedo e era praticamente todos os

dias […] era aquele sentimento de posse, ela agora não pode sair daqui… é a minha

opinião”. (Alzira)

As vítimas, por sua vez, afirmaram que desde o início da relação, assumiram

uma posição de submissão perante os agressores, conformando-se com a sua situação,

desvalorizando o comportamento dos cônjuges, tentando justificá-los como se tratasse

de uma doença ou se devesse ao “mau feitio” dos agressores. Em todos os casos, a 59

submissão aos agressores, foi a estratégia usada pelas vítimas para defender o bem

maior: a família e, sobretudo, os filhos:

“Eu acho que nessa altura não sentia nada, nem queria sentir… é uma

autodefesa, digamos assim… estranho dizer isto… tenho o meu trabalho, tenho o meu

filho… vamos vivendo. Vamos… ver até onde é que aguento”. (Carla)

“Eu para amenizar isto lá lhe dizia…«O pai é doente, ele anda em consultas de

psiquiatria, isto não é normal, tu não podes fazer isto e tal…» e lá fui amenizando as

coisas”. (Maria)

Assim, para evitar o confronto com os agressores ou para não potenciar a

agressão, estas mulheres não os contrariavam e cediam às suas exigências, dedicando

parte do seu tempo às tarefas do lar como forma de os agradar e adiar uma possível

rutura que só mais tarde viriam a ter como certa:

“Tratava da roupa dele, fazia-lhe o almoço, fazia-lhe o jantar e dava-lhe

dinheiro. Era para o que eu servia… foi assim durante anos (…) não se podia contar

com ele para nada, para ir buscar o filho à escola… não se podia contar para ele em

nada, era como se não tivesse ninguém, eu é que tratava de tudo.” (Sílvia)

“Metia-se na adega com os frades e chegava a casa sempre bêbado. Mas

quando chegava tinha tudo pronto, o comerzinho na mesa e tudo, ele comia, mas não

dizia nada.” (Cristina)

Questionadas sobre as circunstâncias em que ocorreu a primeira agressão54, a

maior parte as vítimas responderam que aconteceu após um período (mais ou menos

longo) de tensão e, na maior parte dos casos, pouco tempo após o casamento. Esse

acumular de tensão foi caracterizado por discussões sobre temas do quotidiano, como o

trabalho da vítima, o incumprimento das regras estipuladas pelo agressor (e.g. a hora de

chegada a casa após o trabalho), ou a desconfiança de traição com outros homens. Estes

argumentos, eram os mesmos que serviam para justificar as agressões:

“Implicava muito com o meu trabalho e muitas vezes ia chorar… ele não me

via… mas muitas vezes ia para [local de trabalho] chorar… [logo apos o casamento?]

Poucos meses depois, porque implicava… [o local de trabalho] está sempre em

54 Percecionada pelas vítimas como um ato violento.60

primeiro lugar, tu só pensas no trabalho, tu não queres saber de mim para nada…

passo muitos fins-de-semana sozinho”. (Carla)

“Nesse dia esqueci-me de levar o telemóvel e quando me apercebi disso, tive a

plena perceção que aquilo não ia correr bem. Quando cheguei a casa ele estava à

minha espera, foi a primeira vez que ele me agrediu”. (Alzira)

“Depois começou a dizer que eu tinha amantes… e até me vieram as

lágrimas aos olhos porque era uma ofensa muito grande, porque quem me conhece

sabe que não preciso disso para acabar… eu acho que ele dizia isso porque era a única

explicação que tinha para eu acabar.” (Natália)

“Eu saí para ir comemorar o dia da mulher e ele ficou em casa, estávamos só

mulheres, estávamos todas juntas a festejar e ele ligou-me, «Onde estás?» e eu «Estou

aqui com a minha irmã!» E ele «Não estás nada, tu estás com o amante, eu estou a

ouvir que estás com o amante» e eu a dizer-lhe que não (…) foi-me buscar e eu estava à

porta, eu fui ter com ele e ele deu-me assim uma sapatada e disse, «Eu vi-te a saíres do

carro com o teu amante!» e eu disse, «O quê? Não viste que estava com a minha

irmã?» (Sílvia)

Algumas destas agressões, ocorreram quando os agressores estavam sobre o

efeito de substâncias psicotrópicas ou alcoolizados:

“Começou logo após o nascimento do meu filho, quando ele começou a beber,

isso foi a “primeira sapatada”. Até ele ter um ano nunca lhe ligou, aí começou também

a tratar-me mal, pela falta de dinheiro, começou a beber quase todos os dias.”

(Florbela)

“A primeira agressão aconteceu ainda enquanto namorávamos, eu estava

grávida e estava ao telefone com alguém, e ele tinha fumado e eu nem sei o que é que

ele ouviu da minha conversa, porque agrediu-me violentamente”. (Fátima)

O consumo abusivo de álcool ou drogas pelos agressores foi identificado por

seis das nossas entrevistadas. Em dois casos, os agressores já eram consumidores de

produtos estupefacientes durante o período de namoro, tendo os restantes quatro

iniciado o consumo abusivo de álcool já depois do casamento com as vítimas. Em

alguns casos, atribuíram a violência dos seus maridos ao consumo excessivo de álcool

61

ou drogas uma vez que as agressões mais severas, por norma, físicas, ocorreram quando

se encontravam sob o efeito dessas substâncias:

“Ele ficava muito agressivo quando misturava o haxixe com o álcool. Se me

visse a falar com algum colega ou com algum amigo ficava logo… furioso! (…) Se

bebesse… por isso é que eu digo que ele é uma pessoa fantástica, se não bebesse… eu

tenho muita pena de ter perdido essa pessoa”. (Fátima)

A relação entre o consumo excessivo de álcool ou substâncias psicotrópicas e a

violência foi já estudada por várias disciplinas das ciências sociais, tendo-se verificado

uma associação clara entre ambas as variáveis, sobretudo nos crimes mais graves como

homicídios ou ofensas sexuais, verificando-se que uma parte significativa dos

agressores, quando cometeram os crimes, estavam sob a influência dessas substâncias

(Klostermann e Fals-Stewart, 2006). Num estudo recente realizado em Portugal sobre os

homicídios conjugais, verificou-se que em cerca de 13% dos casos, o homicida estava

sob efeito de álcool ou drogas ilícitas (Agra, 2015, p. 66).

Parece haver um certo consenso na comunidade científica que, “the occurrence

of violence between intimate partners is the culmination of multiple interacting

contextual, social, biological, psychological, and personality factors that exert their

influence at different times, under different circumstances” (Klostermann e Fals-

Stewart, 2006, p. 589). Contudo, apesar de ser conhecido o papel desibinidor que o

consumo abusivo destas substâncias desempenha no potenciar da agressão, não é

pacífico se esse consumo é ou não responsável pelo cometimento da agressão55. Importa

realçar que, talvez o mais importante, independentemente do papel que o álcool

desempenha na agressão, ele torna-se “corrosive to relationship quality. Thus, long-

term alcohol use creates an environment that sets the stage for partner conflict and,

ultimately, partner violence” (Idem, Ibidem, p. 590). Ora, foi justamente este desgaste

que foi confirmado pelas vítimas cujos agressores consumiam abusivamente bebidas

alcoólicas e que foi também um contributo para o fim da relação:

55 Por exemplo, Leonard e Quigley (1999) afirmam que o consumo abusivo de bebidas alcoólicas pode contribuir para a ocorrência de comportamentos mais violentos por parte dos agressores, sobretudo no período seguido ao casamento.

62

“Enquanto vínhamos da nossa casa para casa da minha mãe, ele parava em

todo o lado para beber cervejas e quando o chamava à atenção para ele não beber

mais, ele dizia, “O que é que tu queres?” Pegava no menino ao colo e dizia, “Não

estás bem? O menino é meu! Põe-te no caralho e desaparece-me da frente! (…) já não

aguentava aquilo!” (Rita)

3.3.3. Lua-de-mel – A continuação das agressões

De acordo com a nossa experiência no acompanhamento de situações de

violência doméstica e através do discurso das vítimas, podemos perceber que o modelo

explicativo do ciclo da violência doméstica (Walker, 1984) se ajusta às situações em

análise. Este modelo evidencia as estratégias usadas pelo agressor durante a relação com

a vítima e de que forma a controla e domina dificultando o seu rompimento com o ciclo

da violência. Contudo, Dutton (2009) critica este modelo por não se verificar em todos

os casos de violência conjugal. Aliás, a autora (Walker, 1984), assumiu que “only some

of the woman interviewed in her study reported patterns of abuse consistence with this

theory, with 65% of all cases reporting evidence of a tension-building phase and 58% of

all cases reporting evidence of loving contrition afterward” (Dutton, 2009, p. 2).

No entanto, como veremos de seguida, de uma forma geral, todas as

entrevistadas assumiram ter experienciado as três fases identificadas por Walker (1984),

com, obviamente, diferentes tempos de duração e sequência. De acordo com este

modelo, numa primeira fase ocorre um acumular de tensão que é caracterizada por

pequenos desentendimentos entre o casal onde podem ocorrer discussões sobre, por

exemplo, temas do quotidiano (e.g. falta de dinheiro, consumos abusivos) ou decisões

em que há desacordo, que vão aumentar de intensidade e resultar numa escalada de

tensão que poderá ser gradual. A segunda fase é o culminar da anterior, e é denominada

por fase de agressão, onde a escalada de violência acaba por resultar numa agressão

física, sexual ou psicológica. Por fim, surge a fase lua-de-mel, onde o agressor, após ter

agredido a vítima, se desculpabiliza e promete que a violência não mais se irá repetir.

Contudo, passado algum tempo, a relação volta a entrar numa fase de acumulação de

tensão que irá culminar numa nova agressão continuando o ciclo até que a vítima

63

consiga libertar-se. De acordo com Walker (1984), esta estratégia do agressor provoca

na vítima um sentimento de confusão uma vez que esta acredita que ele vai mudar,

ficando desta forma cada vez mais dependente emocionalmente dele e sentindo mais

dificuldade em romper com este ciclo.

A violência doméstica nas relações afetivas é manifestada de diversas formas

existindo várias estratégias usadas pelos agressores para condicionar e impossibilitar as

vítimas de reagir: “o agressor consegue manter a vítima sob domínio, na medida em

que, num contexto de tensão e violência iminente, esta acaba por viver submergida pela

ansiedade e pelo medo” (Guerra e Gago, 2016, p. 31). As vítimas, acabam assim por ser

enredadas numa teia complexa de emoções que as impossibilita de se libertarem com

facilidade. No início dos anos 80 do séc. XX, foi desenvolvido na cidade de Deluth

(Minesota) o Deluth model, um programa de intervenção junto das vítimas que

pretendeu combater o fenómeno da violência doméstica naquela cidade. Este modelo,

entretanto adotado em várias cidades dos EUA, ajuda-nos a também a compreender as

várias táticas usadas pelos agressores para controlarem e dominarem as suas vítimas

(Anexo 10).

De acordo com este esquema, após a agressão, os agressores pediam desculpa

pelos seus atos e, por vezes, justificavam o seu comportamento pelo amor que tinham

por elas:

“Ele sabia levar bem as pessoas (…) dizia-me que não ia voltar a acontecer

mais, que iria ser tudo diferente, que ia a um psicólogo, que só fez aquilo porque estava

desesperado com a ideia de me perder e por isso é que reagia assim, prometia mundos

e fundos, e a pessoa acaba por acreditar”. (Rita)

“E depois eles veem, prometem mundos e fundos, prometem que nunca mais

volta a acontecer, “porque eu estava com a cabeça perdida” e pronto. A gente acredita

e acha que foi um episódio que não se repete, que aconteceu.” (Alzira)

Apesar de em todos os casos analisados as agressões terem ocorrido diversas

vezes, não se observou nenhuma situação em que tenha acontecido uma denúncia logo

após a primeira agressão:

64

“Ele depois pedia desculpa, pedia imensas desculpas, mas depois, passado uns

tempos, já estava a fazer a mesma coisa, voltava sempre ao mesmo!” (Sílvia)

“A gente zangava-se e depois vinha aquela fase que ficava tudo bem, durante

uns tempos a coisa funcionavam bem, mas como eu costumava dizer, o saco enchia e

depois rebentava sempre dentro de casa”. (Natália)

A continuação do ciclo da violência não ocorreu apenas pelas promessas de

mudança dos agressores, mas por outros fatores que pudemos identificar. Por um lado,

todas as vítimas acreditaram na possibilidade de mudança dos agressores:

“Eu acreditei que sim, que ele ia mudar, sempre pensei que pudesse ser uma

pessoa diferente, mais sociável até porque eu consegui mudá-lo muito.” (Maria)

Por outro lado, pelo medo que sentiam do agressor e pela elevada probabilidade

de voltarem a ser agredidas perante as ameaças que sofriam, elas permaneciam junto

deles:

“Também tinha esse medo… uma pessoa que nada tinha a perder… perdia-me a

mim, os filhos (…) uma pessoa que não tem nada a perder também é uma cabeça

perdida e eu tinha um bocado de medo. Depois mata-me a mim, mata-se a ele…e é este

o nosso desfecho. A minha filha ainda hoje diz, “só vais ter paz quando o pai morrer”.

(Alzira)

“Eu pensava, «Eu saio daqui e vou para onde? Ele vai-me seguir e vai fazer das

dele», compreende? Ele era obcecado… também tinha receio. Para onde é que eu ia?

Só se fosse para longe, entende? Porque ele ia-me seguir, ele dizia-me, “se tu me

deixares ficar, eu mato-te a ti e ao amante!” (Sílvia)

O receio de ficarem sozinhas, sem um companheiro, a sua perspetiva sobre o

casamento, a vergonha e a crítica social foram também razões apontadas pelas vítimas

para não terem abandonado a relação após o primeiro contacto com a violência

doméstica:

“Porque tinha medo de tudo… ele falava-me tantas vezes que ninguém me

queria, com duas filhas… «Vais conhecer um gajo… o que é que ele vai dizer? Que

65

tens uma filha de cada pai!» Aquilo era horroroso e ainda hoje isso me angustia!”

(Fátima)

“Fui criada num ambiente em que a gente quando se casa é para a vida toda. O

que se passa em casa, entre mulher e homem, é com eles, ninguém tem nada que se

meter e a gente tem que aguentar”. (Paula)

“Fora de portas, para os outros, nós eramos o casal ideal, nunca ninguém

suspeitou de nada (…) eu tinha vergonha de dizer, isto nunca se tinha passado em

minha casa, nunca aconteceu. Aquilo fazia-me confusão, eu dizia, «Não foi para isto

que me casei» eu queria ficar velhinha com ele”. (Natália)

Um dos motivos referidos por todas as vítimas para a manutenção da relação

após as sucessivas agressões que as vitimou foi a proteção dos filhos. Disseram ter

acreditado, logo desde o início da violência, que os seus filhos estariam melhor com

ambos os pais do que só com um deles. Este foi o principal argumento para a

continuidade da relação:

“Eu achava que o melhor para os meus filhos era estar em casa, ter o pai e a

mãe, quando me apercebi que afinal não era assim, já estava decidida a sair de casa

(…) a gente pensa sempre que o melhor para os filhos é ficar em casa com o pai e

realmente é a pior coisa que se pode fazer. Se eu pudesse aconselhar alguém nunca

diria para aguentar tantos anos”. (Alzira)

“O que eu fiz durante estes anos todos, o que eu aguentei, foi em prol dos meus

filhos.”. (Paula)

3.3.4. A denúncia do crime

Todas as entrevistadas, de uma forma direta, apresentando denúncia na Esquadra

ou, de forma indireta, através da participação das forças de segurança que se deslocaram

ao local do crime, tiveram contacto com a PSP e, posteriormente, com o Ministério

Público56. Um dos nossos objetivos foi perceber qual o impacto da denúncia do crime no

cessar do ciclo da violência. Walker (2004) recorda que o abandono do agressor não

56 Uma das entrevistadas não foi ouvida pelo Ministério Público, uma vez que o processo foi arquivado sem a sua audição. Esta situação é pouco comum encontrando-se um recurso pendente no Supremo Tribunal de Justiça.

66

implica o fim da violência, no entanto, apesar de tal se ter verificado, havendo até em

alguns casos, um incremento da violência, na verdade, esta decisão acabou por

contribuir de forma decisiva para o afastamento do agressor e, mais tarde, para cessar

com o ciclo da violência.

Questionadas as vítimas sobre os motivos que as levaram a denunciar o crime,

referiram, praticamente todas, que foi sobretudo a necessidade de proteger os filhos da

violência que as vitimava que as levou contactar a PSP:

“Em agosto, bateu-me bastante e a minha filha pega numa cadeira e diz assim:

«Ah meu filho da puta não bates mais à minha mãe!». A minha filha dizer uma coisa

dessas, chocou-me. No dia seguinte fui ao primeiro advogado que encontrei e pedi

ajuda para pedir o divórcio. Ela tinha perdido o respeito pelo pai e eu achei que já não

valia a pena continuar a batalhar (…) ela [a filha] estava numa fase de crescimento, de

desenvolvimento… é uma fase de transição, é uma fase muito difícil em que têm que

fazer escolhas e podem enveredar por caminhos muito difíceis e o meu grande medo é

ela enveredar por caminhos menos bons e preocupava-me essencialmente o bem-estar

dela”.

(Maria)

Outro motivo apresentado pelas vítimas, foi a sua situação de desespero e

fragilidade psicológica em que se encontravam no momento em que denunciaram o

crime, que serviu como um pedido de ajuda:

“Quando me enviou quinze emails de uma vez só numa noite disse, «Acabou!

Não aguento mais!». O meu pai a ver-me a chorar todos os dias, eu a agarrar-me à

minha mãe a dizer-lhe que não aguentava mais… não fiz isto por vingança, mas porque

não aguentava mais, fi-lo pela minha sanidade mental! (…) Independentemente de lhe

ter dado o dinheiro, as joias, tudo… ele não parava!” (Carla)

Como referimos, nem sempre a denúncia do crime parte da vítima. Há situações

em que a vítima não manifestou vontade de apresentar queixa, mas dada a natureza do

67

crime (público) quando acontece uma intervenção de qualquer entidade pública (e.g.

Forças de Segurança) é, por norma, elaborado Auto de Notícia57:

“Nesse dia chamei novamente a Polícia e quando eles chegaram viram um

colchão no chão e perguntaram-me o que era aquilo. Eu disse que era onde estava a

dormir com o meu filho, porque nessa altura eu já nem ia para casa porque ele ia lá

sempre à noite bater-me à porta, bater à janela e eu tinha muito medo. Aí a polícia

interveio e disse que eu não ficava lá nem mais um minuto. Ligaram para a APAV e

levaram-me para a Esquadra”. (Paula)

Noutras situações, a decisão de denunciar o crime foi impulsionada por

familiares ou técnicos que já tinham conhecimento da situação e convenceram as

vítimas dessa necessidade e pertinência:

“A minha mãe obrigou-me a fazer queixa, disse que as coisas não podiam

continuar como estavam, mas eu não queria porque sabia que as coisas iam piorar”.

(Rita)

“Fiz queixa porque senti o apoio da psicóloga e do Agente (…), que me

explicaram que era muito importante denunciar o que tinha passado. (Fátima)

Pretendemos também saber qual o sentimento das vítimas após a denúncia do

crime, tendo percebido nesse momento que se verificou sobretudo uma mistura de

sentimentos negativos, marcado pelo medo, sentimento de culpa e desorientação:

“Medo, muito medo. Eu estava apavorada. Pensei, é desta que ele vai matar,

porque se se apresentou queixa… e quando o Agente me disse, «Isto vai demorar algum

tempo», eu disse, «Então eu não apresento queixa!». Eu ainda tenho medo dele, porque

se estiver com cabeça quente, não pensa, leva tudo à frente.” (Rosa)

“É engraçado… eu disse isto à Dr.ª da APAV… parecia que estava a traí-lo,

que estava a fazer as coisas nas costas dele (…) ainda hoje digo que a culpa é minha

em muita coisa”. (Carla)57 Por vezes esta participação dos factos é enviada ao Ministério Público sem o consentimento ou a vontade da vítima. Esta é uma questão delicada com que muitos profissionais lidam, pois se por um lado existe o dever legal de participar o crime, por outro, fazê-lo sem uma prévia preparação da vítima para enfrentar o que está para vir pode ser contraproducente não só pela sua ineficácia legal, como pela sua segurança.

68

“Depois de ter feito a queixa, aí é que eu precisava de ter uma explicação de

como a coisa ia correr… os senhores que lá foram a casa foram muito atenciosos,

ouviram a minha filha, registaram tudo. A partir daí, senti-me perdida. Acredite que

não sabia quais eram os trâmites que isto ia levar (…) Senti-me muito sozinha,

acredite, sinto-me só… e trabalho com tanta gente, é uma solidão no meio da confusão,

trabalho com tanta gente e sinto-me só. É um sentimento de solidão e confusão

emocional muito grande, é uma grande confusão são muitas coisas a acontecer ao

mesmo tempo, não acredita… é a policia é a assistente social, é a CPCJ… é muita

coisa a acontecer ao mesmo tempo, mas vamo-nos adaptando.” (Maria)

Mas também aconteceram sentimentos positivos, como alívio e orgulho pelo

passo que acabava de ser dado:

“Senti um grande alívio e que tive coragem. Eu tinha dois handicaps para não

fazer queixa, o meu filho e a profissão dele, não o queria prejudicar.” (Carla,)

“Na esquadra soube-me bem, porque estava com aquela vontade que ele

percebesse que tinha feito mal.” (Fátima).

Como referimos anteriormente, apesar da penosidade do processo inerente à

denúncia, em praticamente todos os casos,58 esse passo foi determinante para o

abandono do agressor:

“Sim, valeu a pena [denunciar o crime] e se fosse hoje voltava a fazer o mesmo.

Foi um empurrão para abandonar a vida que eu tinha. Hoje vejo isso… além de não ter

tido o apoio que deveria ter tido, sinto que fiz bem, apesar de ter passado tudo o que

passei com ele. Foram 20 anos em que tive pouca felicidade.” (Paula)

“Sim, claro que sim. Se fosse hoje faria o mesmo, apesar de achar que para ele

isso não alterou nada. Mas na altura ajudou-me a afastar-me dele.” (Sandra)

“Valeu [a pena apresentar queixa], porque ele parou…. Quer dizer, o massacre

que não me deixava viver (…) Fazia queixa na mesma, divorciava-me dele na mesma,

mesmo que me dissessem que ia passar por isto tudo, fazia tudo igual.” (Carla)

58 Uma das vítimas voltou a reatar a relação com o agressor, tendo, contudo, já procurado apoio psicológico para abandonar o agressor (que a continua a agredir).

69

“Eu pensava que se fizesse queixa ele ia perceber que o que fez estava errado…

mas isso não aconteceu… sinceramente acho que se não tivesse apresentado queixa

acho que ele se teria reaproximando e eu tinha caído novamente no mesmo inferno. Se

calhar, só por isso já foi bom.” (Fátima)

Decorrente da denúncia, só em duas situações foram aplicadas pelo Juiz medidas

de afastamento aos agressores que resultaram num aumento do sentimento de segurança

das vítimas:

“Serviu para ele ter a pulseira [vigilância eletrónica] … para isso serviu, sinto-

me mais segura.” (Florbela)

“Ele achava que podia fazer tudo porque não havia controlo. E efetivamente

não havia, não sentia que ele fosse controlado (…) só depois de ter a pulseira

eletrónica, que digo-lhe é excelente, é que me senti mais segura.” (Maria)

3.3.5. A reação do agressor à denúncia do crime

O momento em que o agressor toma conhecimento que é suspeito da prática do

crime, representa, por norma, perigo para a vítima, sendo aliás um argumento

apresentado por vezes, pelas vítimas para não denunciar o crime. Na verdade, na maior

parte dos casos que analisamos, a violência (psicológica) e a perseguição às vítimas

(stalking) aumentou logo após o agressor ter tido conhecimento que a vítima o tinha

denunciado:

“Aí é que as coisas começaram a piorar, dizia que não ia ficar descansado

enquanto não me matasse, disse-me que não ia parar enquanto não me visse morta.

Depois começou também a ameaçar as minhas amigas, foi mesmo muito mau.” (Paula)

“Ligou-me logo a insultar-me… disse, «Fizeste queixa contra mim? Fizeste uma

queixa contra mim? Então já vais ver!» E eu disse, «Sim, foi para entenderes o mal que

fizeste!» e três ou quatro dias depois assumiu publicamente no Facebook que tinha uma

namorada e que a amava e que era a mulher da vida dele. (…) Foi mesmo para me

magoar, foi horrível, até porque ainda havia muita gente que não sabia que estávamos

separados.” (Fátima)

70

“Pois, aí a coisa piorou muito! Começou a ameaçar-me, começou a perseguir-

me, começou a ligar-me todos os dias a todas as horas, começou a controlar a minha

vida de todas as maneiras… saía de casa e ele seguia-me de carro, eu não podia sair,

andava sempre acompanhada.” (Rita)

Verificamos também que em dois dos casos analisados, os agressores

apresentaram, de seguida, uma denúncia contra as vítimas também por violência

doméstica59.

“Eu sei que ele anda a arranjar estratégias e mais estratégias para ver se me

consegue denegrir de forma a ser eu a responsável por tudo o que aconteceu (…)

também apresentou uma queixa contra mim, mas eu disse sempre a verdade e ainda

acredito que haja justiça em Portugal”. (Carla)

Dada a natureza das nossas funções, conhecemos de perto todas as denúncias de

violência doméstica efetuadas neste departamento desde o ano de 2014 e sobre as

denúncias apresentadas por homens contra as suas companheiras/cônjuges, temos

conhecimento que a maior parte delas foram arquivadas por falta de prova.

Naturalmente isso não significa que o crime não tenha ocorrido, mas que, de acordo

com a informação disponível para o Ministério Público, não existiam indícios

suficientes que pudessem levar à condenação do suspeito em julgamento.

No entanto, não podemos deixar de referir que de acordo com a nossa

experiência empírica e do contacto diário com outros técnicos de intervenção social,

sabemos que uma parte significativa das denúncias apresentadas contra mulheres

alegadamente agressoras, não só não correspondem efetivamente a factos ocorridos,

como surgem, por norma, após a denúncia das vítimas (mulheres) de violência

doméstica e com o objetivo de as desestabilizar num momento que per si, já é de crise.

Neste sentido, e com o objetivo de recolher mais informação sobre esta nossa

perceção, entrevistamos um elemento graduado da PSP da Esquadra de Santo Tirso e

uma advogada que, além do exercício das suas funções num escritório privado de

advocacia, presta também apoio a vítimas de violência doméstica numa Casa Abrigo.

59 Uma dessas denúncias foi arquivada por falta de prova poucas semanas após ter sido apreciada pelo Ministério Público e outra encontra-se ainda em fase de apreciação, há mais de 12 meses, na mesma entidade, aguardando-se o respetivo despacho.

71

Questionado o elemento policial sobre a sua perceção acerca das denúncias efetuadas

por homens vítimas de violência doméstica, o mesmo referiu:

“Já tive um ou outro caso noutras esquadras por onde passei, mas aqui em

Santo Tirso só recebi uma queixa de um homem, mas aquilo… aquilo foi uma

estratégia da defesa. Eu acho que a maior parte das queixas que são feitas pelos

homens são nesse âmbito, são os advogados deles que lhes dizem para fazer queixa

contra elas porque assim é queixa contra queixa e há maior probabilidade do juiz

arquivar o caso… sabe como é… isso é normal nas situações em que há agressões ou

ofensas entre as pessoas (…) Não tenho dúvidas nenhumas que a esmagadora maioria

das situações de violência doméstica as vítimas são mulheres, claro que também há

homens vítimas, até mais ao nível psicológico, mas os números não são aqueles que

dizem as estatísticas oficiais, são muito menos”. (Graduado da PSP)

Por seu turno, a advogada, questionada sobre a sua experiência profissional no

âmbito da violência doméstica, nomeadamente no que diz respeito às denúncias

efetuadas por homens afirmou:

“De acordo com a minha experiência, sobretudo com o trabalho que

desenvolvo com as vítimas da Casa Abrigo, a generalidade das situações que eu

conheço, para não dizer… a maioria mesmo das situações que eu conheço das queixas,

são apresentadas pelos homens na sequência de uma queixa apresentada pelas

mulheres, ou seja, é uma queixa contra queixa, usam a participação criminal como

uma forma de… intimidação, de mais uma forma de constranger a vítima. Todos os

casos que eu conheço têm a ver com isso.“ (Advogada)

No entanto, discordou do elemento da PSP quanto à origem dessa estratégia:

“Francamente…não acredito. E por isso aqui volto á minha experiência

enquanto advogada, não tenho essa ideia da partilha, de contactos com outros colegas,

não vejo que isso seja algo orientado pelos advogados, muito sinceramente (…) Acho

que é uma estratégia para incomodar, tenho essa experiência de Casa Abrigo, eu acho

que eles têm a noção de que a queixa não vai dar em nada, mas enquanto isso a vítima

é constituída arguida, passa por esse processo… e isso mexe com as pessoas e acaba

por as enfraquecer um bocadinho, eventualmente, acaba por influenciá-las para

72

aceitar uma suspensão provisória do processo, acho que tem mais a ver com isso. Eles

têm a clara perceção, no meu ponto de vista, que alguém ser arguido num processo-

crime é algo que incomoda e isso eles sabem que as vai fragilizar, é mais uma forma de

as violentar, é mais uma forma de violência. Isso também acontece, por exemplo,

quando fazem participações contra elas por sequestro dos filhos, sabem que não é

verdade, mas faz mossa.” (Advogada)

Sabemos que é ainda mais difícil para os homens denunciarem que são vítimas

de violência doméstica e que certamente existem muitas situações em que os homens

são vítimas e não denunciam por vergonha e pela crítica social a que estão sujeitos,

acontecendo o mesmo, certamente, a muitas outras mulheres que, por outras razões,

continuam a pertencer às cifras negras deste fenómeno. No entanto, não nos referimos a

esses casos, mas àqueles que são conhecidos e apresentados nas estatísticas oficiais, por

exemplo no último relatório do CLAS (2017)60. O facto do elemento da PSP mencionar

os (poucos) casos que conheceu e a causídica se referir sobretudo à sua experiência na

defesa das vítimas acolhidas em Casa Abrigo61 não invalida, do nosso ponto de vista, a

pertinência da discussão dos dados referentes às denúncias apresentadas por homens

vítimas de violência doméstica que, parece-nos, necessitam de uma abordagem mais

rigorosa uma vez que uma parte substancial dessas denúncias poderão não corresponder

efetivamente a situações de violência doméstica, mas a estratégias de defesa dos

agressores62.

3.3.6 A separação do agressor

Apenas em dois dos casos analisados, o momento da denúncia correspondeu a

um afastamento imediato do agressor. Numa das situações a vítima foi acolhida em

Casa Abrigo (por ameaças credíveis contra a sua vida) e noutra, a vítima refugiou-se em

casa de familiares durante alguns dias por temer uma reação violenta do seu marido. O 60 De acordo com este relatório, foram apresentadas em 2016, no concelho de Santo Tirso, 14 denúncias pelo crime de violência doméstica em que as vítimas são homens. 61 Casos, por norma, mais gravosos, onde a vítima correrá um maior perigo ou risco de vida.62 A complexidade dessa análise não cabe neste trabalho, contudo, pareceu-nos importante deixar algumas pistas para que este tema seja futuramente abordado, dado não conhecermos nenhum estudo sobre esta temática, ou seja, que tenha investigado as denúncias, a sua substância e resultado destas participações criminais.

73

momento da separação é um momento crítico sendo justamente nesta fase que o risco de

morte ou ofensas à integridade física é mais elevado (Dawson e Gartner, 1998; Walker e

Logan, 2004). Como explica Matos (2006), a saída de uma relação abusiva envolve um

processo complexo para a vítima uma vez que a tomada dessa decisão tem em conta um

conjunto de variáveis que poderão condicionar essa vontade. Desde logo, a sua própria

segurança ou, por exemplo, se houver filhos, a dos seus descendentes. Walker e Logan

(2004) referem ainda um conjunto de problemas que podem ocorrer após esse período,

“high risk for stress, mental health, and health problems; have increased conflict over

the children and concern for child safety; and have economic, structural, psychological,

and social barriers to help seeking. All of these factors may substantially affect a

woman’s separation adjustment, well-being, and ability to maintain separation from a

violent ex-partner” (Idem, Ibidem, p. 1478). No mesmo sentido, Mertin e Mohr (2001),

afirmam que há uma correlação positiva entre a continuação de abusos após o final da

relação afetiva e o aumento de ansiedade, depressão e stress pós-traumático.

Como refere Matos (2006,) a existência de filhos numa relação afetiva abusiva

pode, por um lado, adiar a saída, para sua proteção, enquanto são ainda pequenos, como

pode também ser um fator impulsionador para o abandono do agressor. Foi justamente

isso que verificamos na análise dos discursos das vítimas, pois questionadas sobre essa

decisão (abandonar o agressor), revelaram que se deveu sobretudo à necessidade de

proteger os filhos da violência que as vitimava:

“Isto é estranho, vi-me naquela confusão toda, mas pus-me do lado de fora e

pensei, «Eu não quero isto para a minha vida, esta dependência, esta brutalidade». E

também não queria que o meu filho crescesse a ver isto.” (Carla)

“Se calhar deixaria andar mais se não fosse o episódio do meu filho, ter o

problema que teve [teve um ataque de pânico quando viu o pai agredir a mãe] porque

eu achava que o melhor para os meus filhos era estar em casa, ter o pai e a mãe,

quando me apercebi que afinal não era assim”. (Natália)

O receio da reação dos agressores após o abandono da relação, foi também

referido por todas as vítimas que, tal como o momento da denúncia, é marcado pelo

medo e desorientação:

74

“Estive uma semana fora, passei os fins-de-semana todos fora, sempre com

medo, com receio, nunca saía de casa sozinha, nunca chegava a casa muito tarde…

muito medo, sempre com aquele receio… embora sei que para ele é muito fácil

arranjar uma arma, muito fácil. O que me dava segurança não foi vocês apreenderem

as armas que ele tinha, mas ele perceber que podia ter consequências. Ainda ficou uma

noite na prisão, acho que lhe fez bem”. (Alzira)

“Senti-me um bocadinho desorientada. Estava tão habituada a cumprir com

aqueles rituais, a dar satisfações de tudo… não sei se isso acontece com outras

pessoas… senti-me um bocadinho perdida. Senti… estúpido, mas é exatamente isso que

eu senti, senti dificuldade em viver a minha vida. Senti-me desamparada”. (Maria)

Como referem vários autores, (Walker, 2004; Matos, 2006; Kirkwood, 1993), o

momento da separação é também marcado pelo risco do aumento de fatores de stress

como, por exemplo, problemas relacionados com a sua saúde mental que se prolongam

para além da separação (Walker, 2004). Praticamente todas as entrevistadas recorreram

a ajuda especializada, sobretudo na área da psicologia e, em alguns casos, aos médicos

de família que as encaminharam para os serviços de psiquiatria:

“Quando a psicóloga me abandonou, fez-me muita falta… eu apresentei queixa

na polícia, depois fui chamada à Dr.ª (…) e depois ela mandou-me para a psicóloga.

Fez-me muita falta porque andava sempre tudo na minha cabeça… foi muito difícil,

porque eu não me sentia bem com ele, tinha medo de tudo e de todos… andei com a

psicóloga uns tempos e ela ajudou-me muito.” (Cristina)

“Senti muita necessidade desse apoio, ainda hoje sinto. E tanto que senti que há

dois meses fui pedir ajuda à minha médica de família, veja lá há quanto tempo eu ando

nisto (…) a minha médica disse-me… eu às vezes tinha queixas de que me doía o

peito… desta última vez ela disse-me, «Você não tem nada, eu não lhe vou dar nada,

porque eu já a conheço há muitos anos e já sei o que você tem. Sabe o que você tem?

Tem que esquecer o passado de uma vez por todas, tem que arrebitar, tem que pensar…

não é só no seu filho! Pense em si!»” (Paula)

75

3.3.7. Uma nova vida?

Após a separação do agressor, seguem-se momentos marcados pela indefinição e

incerteza do que está para vir, pois “sair de uma relação abusiva não significa

necessariamente que a mulher passe a experienciar bem-estar” (Matos, 2006, p. 129).

Como refere a autora, esta saída pode inclusive ser geradora de novos problemas, como

o agravar da situação financeira da vítima ou novas responsabilidades parentais (no caso

de ficar com a custódia legal do/s filho/s), associada, como referimos anteriormente, a

fatores de stress potenciados pela separação. Anderson e Saunders (2003) referem que a

saída da relação abusiva, “is the continuation of a process that begins at the emotional

and cognitive level while she is still in the relationship and extends well beyond her

physical departure” (Idem, Ibidem, p. 179). Nesta fase de rutura, as vítimas são

afetadas por vários fatores de stress, desde logo pela sua anterior experiência de abuso

que em muitos casos não termina imediatamente apos a separação do agressor, existindo

alguns estudos que apontam até para um aumento da violência (e.g. através de stalking),

nos momentos subsequentes à separação, que contribuem para o aumento do receio que

algo lhes possa acontecer, incluindo a sua própria morte (Mechanic, Weaver e Resick,

2000).

Anderson e Saunders (2003) identificam outros fatores no período pós-

separação, como o sentimento de perda do seu companheiro63 que, após alguns meses,

tenderá a ser relativizado e racionalizado. A socialização da mulher, o seu ideal de

família (casamento para sempre) contribui também para este sentimento de perda e

desilusão. Muitas vezes, referem os autores, este sentimento reporta-se também à perda

de algum conforto financeiro/estilo de vida que existia na relação com o agressor que,

com a separação, se irá perder. Associada a essa razão, surge outro fator de stress que se

refere à perda de recursos económicos que quase sempre está associada à separação do

agressor. Apesar de nos dias de hoje a dependência financeira das vítimas relativamente

aos agressores ser um aspeto menos central, devido ao facto da maior parte das

mulheres estar inserida no mercado de trabalho64, a sobrevivência financeira e, por 63 Este sentimento, paradoxal, foi identificado por algumas vítimas que no momento da separação, recordaram as características positivas dos agressores.64 Das vítimas entrevistadas apenas uma estava dependente economicamente do agressor.

76

vezes, a manutenção do estilo de vida existente durante o casamento, continua a ser um

problema que é identificado pelas vítimas no momento da separação.

Outro aspeto referido por Anderson e Saunders (2003) prende-se com a

alteração da dinâmica familiar das vítimas que em muitos casos se vêm confrontadas

com reações pouco compreensivas por parte dos seus filhos, pela necessidade de

mudança de residência, pela procura de emprego, por um agravamento das suas

despesas mensais, sobretudo quando ficam com as responsabilidades parentais

atribuídas e o agressor não cumpre as suas obrigações legais na prestação de alimentos.

Contudo, nem todas as vítimas são afetadas por estes fatores com a mesma

intensidade, dado o acesso a determinados recursos ser diferenciado (Idem, Ibidem).

Estes recursos podem ser materiais como, por exemplo, vestuário, alimentos ou um

novo espaço onde residir, sendo esta uma das preocupações mais manifestadas pelas

vítimas no momento da saída da residência (Kirkwood, 1993). O apoio social é também

um recurso muito importante e está diretamente relacionado com o bem-estar

psicológico das vítimas uma vez que quando ele é eficaz, reduz substancialmente a

probabilidade de ocorrências de depressões mais graves (Anderson e Saunders, 2003).

Os seus recursos internos, ou seja, o nível da sua autoestima65 e a sua capacidade em

confiar que vai conseguir ultrapassar a situação é também muito importante e está

relacionada com níveis mais elevados de bem-estar alguns meses após a separação do

agressor. Finalmente os autores alertam para o relevo dos recursos institucionais, pois

como se descreveu anteriormente, há necessidades que têm que ser supridas logo após a

separação e nem sempre as vítimas têm recursos (sobretudo financeiros) para recomeçar

as suas vidas.

Neste âmbito está demonstrado em vários estudos que o apoio psicológico e o

acompanhamento pós-vitimação têm um impacto muito significativo no aumento da

autoestima das vítimas bem como no abandono definitivo da relação abusiva (Tutty,

Bidgood e Rothery, 1993). Neste sentido, questionámos as vítimas sobre os

acontecimentos posteriores à separação do agressor e o que aconteceu após essa

decisão. Verificamos que apenas em dois casos foram tomadas medidas pontuais para

65 Este é justamente um dos maiores problemas que as vítimas enfrentam uma vez que, por norma, a sua autoestima é destruída pelos agressores durante a relação afetiva.

77

tentar ultrapassar esta fase, como procurar emprego ou voltar a estudar e fazer novos

amigos:

“Procurei trabalho… procurei ajuda! Arranjei trabalho, comecei a trabalhar

num restaurante e estou a ser acompanhada por uma psicóloga, mas ainda tenho medo.

Sinto que ainda há aqui qualquer coisa que não desapareceu. A minha almofada é que

sabe o que eu passo, já se passaram alguns anos mas ainda não o consigo enfrentar, há

ali qualquer coisa que ainda me incomoda. Sem apoio é muito difícil ultrapassar isto,

eu cheguei a pensar afogar-me em trabalho para não pensar em nada e continuo a ter

o meu tempo todo ocupado para não pensar em nada. Também estou com outra pessoa

e isso também me está a ajudar um bocado, mas cada um está na sua casa, falamos e

tal… tem-me apoiado muito.” (Paula)

“Demorei algum tempo, bastante tempo a recuperar a minha autoestima (…) foi

um bocado, vamos viver… andei um ano com os meus filhos…tive um caso amoroso,

que foi muito importante para mim porque me ajudou bastante a perceber que afinal eu

não sou assim… aquilo que ele dizia, um trapo, ajudou-me muito. Depois inscrevi-me

na faculdade e esse foi o meu maior salto. Conhecer outras pessoas, outras vivências,

outras idades, fazer amigos, acho que foi o clique”. (Alzira)

Apesar de Alzira ter criado algumas estratégias para mitigar a sua experiência de

violência, a maior parte das vítimas não evidenciou qualquer estratégia de

empoderamento, salientando-se as dificuldades na aproximação a novas relações

afetivas:

“A minha psicóloga disse-me, «Agora podes arranjar outra pessoa», mas eu

estou sempre… eu não quero ser assim, mas estou sempre a analisar… [risos] tenho

lido sobre isso.” (Carla)

“Neste momento acho que ainda gosto dele e isso é impeditivo de me aproximar

de outra pessoa. Às vezes noto que se aproximam de mim, mas eu, como ainda gosto

muito dele, não me consigo entregar. Além disso também tive medo, pelo que passei e

não quero que isso se volte a repetir, por isso estou sempre a comparar as pessoas”.

(Fátima)

78

Algumas vítimas continuam a centrar a sua vida no presente, não existindo

quaisquer planos para o futuro:

“Vim para casa dos meus pais. O resto deixei para trás… mas está cá dentro.

Vivo para os meus pais… depois das sete da noite não saio de casa com medo dele,

tenho muito medo dele. A minha vida está parada, estou com os meus pais. Às vezes

liga-me uma colega para ir tomar um cafezinho e quando converso com ela já venho

diferente.” (Cristina)

“Eu penso é no que me está a acontecer, não penso no futuro… ele disse-me,

«um dia vais ficar sem a pulseira e aí tu vais ver o que te vai acontecer!» E depois

como é que vai ser? O que é que me vai acontecer? Lá está, devia haver alguém que

explicasse”. (Maria)

Questionadas sobre a pertinência da existência de uma estrutura especializada no

atendimento a vítimas de violência doméstica, todas as entrevistadas afirmaram terem

sentido falta desse apoio em determinadas fases do processo de denúncia:

“Apresentei queixa em março, nunca fui ouvida, já foi há mais de ano e nunca

ninguém me contactou. Acho que devia haver uma instituição a dar apoio e a orientar,

porque uma pessoa perde-se a meio do caminho. Tipo, “Apresentei queixa, e agora?”

Ou uma pessoa tem possibilidades económicas, e muitas vezes não tem, e se informa

com o advogado, ou pode prejudicar-se. Acho que deveria haver uma parte de ajuda

jurídica, outra psicológica… quer a nível da vítima quer dos filhos e ajudá-las a lidar

com a situação.” (Carla)

“Devia de haver uma pessoa encarregue de explicar às vítimas as

consequências que vão resultar da queixa… “vai ter momentos de fraqueza, vai ter

momentos de angústia, vai ter momentos bons, vai ter momentos maus, mas é assim que

geralmente acontece. Se precisar de desabafar, desabafe comigo, não desabafe com o

vizinho, nem com o primo, nem com o amigo porque todos lhe vão dizer uma coisa

diferente e todos vão prejudicá-la”. (Maria)

A inexistência de uma estrutura especializada de apoio a vítimas de violência

doméstica no concelho de Santo Tirso foi sinalizada por todas as técnicas entrevistadas 79

como um problema a ser corrigido, havendo unanimidade na urgência e pertinência da

sua criação, servindo como referência de boas práticas o extinto Projeto Iris66:

“Faz sentido uma estrutura de apoio [a vítimas de violência doméstica]. Aliás

foi proposto, quando terminou o financiamento do Projeto Iris, em núcleo executivo da

Rede que a Câmara agarrasse o financiamento, ficou em ata, mas depois foi decidido

que não havia possibilidade por não haver financiamento (…) de facto era muito

pertinente a existência de uma valência como esta. Houve bons resultados com o

Projeto Íris.” (Assistente Social, NLIS)

Das entrevistas realizadas às técnicas de ação social do concelho, apuramos

também que, por vezes, as vítimas acabam por ter algum acompanhamento (não

especializado) por parte de técnicos no âmbito do decorrer de outro apoio entretanto

concedido. Importa salientar que a intervenção destas instituições com vítimas de

violência doméstica ocorre apenas nos casos em que já existe um acompanhamento

prévio das vítimas, motivado, por norma, por uma necessidade de apoio ou intervenção

social67.

“Fazemo-lo informalmente (…) fazemos o acompanhamento da criança, mas é

óbvio que para proteger o menor que a mãe também tem que estar bem. Não o fazemos

à mulher enquanto vítima, fazemos enquanto mãe, com a colaboração das colegas da

Casa Abrigo, mas não é uma resposta estruturada nem criada para o efeito… vamos

fazendo isso internamente.” (Assistente Social, ISCMST)

“Se é beneficiária, por exemplo, do RSI, ela já é acompanhada nesse âmbito e

se também se descobre se é vítima de violência doméstica, o acompanhamento também

é direcionado para esse problema (…) mas não é um acompanhamento especializado

66 O Projeto Íris foi desenvolvido pela Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso, tendo tido o seu início de atividade em 23/11/2012 e cessado em 31/05/2014. Teve um impacto muito positivo no auxílio que prestou às vítimas e aos técnicos de intervenção social do concelho, e teve como objetivos fazer um diagnóstico da prevalência da violência doméstica no concelho, avaliar o seu impacto na qualidade de vida das vítimas, alertar e sensibilizar as mulheres para este tipo de vitimação, divulgar pelas ILAS esta reposta social, bem como promover a troca de experiências entre técnicos cujo trabalho incida nesta área e divulgar boas práticas que previnam a incidência do fenómeno (disponível em: http://www.misericordia-santotirso.org/instituicao/projetos/Misericórdia de Santo Tirso, 2017). 67 Como exemplo podemos indicar uma situação em que a vítima se encontre a ser acompanhada pela Cruz Vermelha por ser beneficiária do RSI e, entretanto, denuncie que é vítima de violência doméstica. Neste caso terá também alguma orientação nesse âmbito. Pela inerência desta organização, o apoio seria mais de índole social.

80

para vítimas de violência doméstica, nós não temos competências, para isso, não temos

a especialidade necessária para acompanhar uma vítima de violência doméstica. Não

somos psicólogas, somos assistentes sociais com formação específica.” (Assistente

Social, Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Santo Tirso)

Questionadas as técnicas sobre o tipo de apoio mais apropriado para estas

vítimas, disseram que de acordo com a sua experiência, é fundamental atuar em três

eixos centrais: social, psicológico e jurídico. A psicóloga da Casa Abrigo, explicou com

algum detalhe o trabalho que desenvolve naquela instituição e que, na sua opinião,

deveria ser replicado num projeto de intervenção com vítimas de violência doméstica:

“No primeiro mês, são tratadas essencialmente questões muito práticas de

intervenção em crise, tratar feridas abertas… e questões muito práticas, dar

andamento ao processo, pedir apoio jurídico, aguardar nomeação de advogados, pedir

RSI… enfim, tratar destes processos iniciais. (… ) Depois, é mais sobre alguma

resposta que seja preciso dar… mas é muito mais ao nível social e psicológico que é

feita a intervenção, quer em consulta individual, quer intervenção em grupo. (…) temos

também programas de competências pessoais, competências sociais, competências

para a procura de emprego e de ativação para a empregabilidade, enfim, depende do

diagnóstico inicial que é feito durante o primeiro mês e do plano individual que é

traçado para cada uma das utentes e do agregado que representam. O plano individual

contempla sempre essas três áreas, a social, a jurídica e a psicológica…” (Psicóloga,

Casa Abrigo)

Podemos assim concluir que estas organizações tomam conhecimento das

situações de violência doméstica através de sinalizações de outras estruturas de

intervenção social ou dos OPC, mas também no contacto direto com as vítimas, quase

sempre no âmbito das suas competências de intervenção social, o que exclui todas as

outras situações de violência que não requerem qualquer tipo de sinalização a estas

estruturas. Quanto aos procedimentos adotados, são maioritariamente de

encaminhamento para os OPC ou para o Ministério Público, ocorrendo em situações

pontuais um acompanhamento não especializado das vítimas pelos técnicos que já

efetuavam esse trabalho no âmbito de outra medida de intervenção social. Este apoio é

81

sobretudo de cariz social dado ser justamente essa a vertente em que assenta o trabalho

destas organizações. A única estrutura especializada no atendimento a vítimas de

violência doméstico do concelho, a Casa Abrigo, presta um apoio específico às vítimas

acolhidas na instituição repartindo a sua intervenção em três áreas de acordo com as

necessidades identificadas, a área social, jurídica e psicológica realizando um trabalho

individualizado e ajustado às necessidades de cada uma delas.

Além da criação de uma estrutura de específica de apoio à vítima no concelho,

algumas entrevistadas referiram também a necessidade que sentem em partilhar com

outras vítimas de violência doméstica as suas experiências e mitigar o seu sofrimento:

“Se um dia houver um núcleo de apoio [a vítimas de violência doméstica] eu

gostava muito de participar, de ajudar outras pessoas… fazer pelas outras o que

gostaria que tivessem feito por mim, (…) costumo dizer que é como quando se vai ter

um filho (…) às vezes pensava, meu Deus, como é que vai ser? E depois pensava, não.

Se as outras conseguiram eu também vou conseguir… e é um bocado por aí… porque é

mais fácil uma pessoa que passou pelo mesmo chegar à pessoa (…) É importante ter

outra pessoa que passou pelo mesmo.” (Rosa)

“Sei que se fala muito na violência doméstica e sei que vocês também falam

muito sobre isso nas escolas… se calhar definir um dia em que se fale só sobre isso,

seja na Câmara ou nas escolas, tipo um open day com pessoas que realmente passaram

por isso, e tentar mostrar que estas coisas acontecem, que não acontece só às outras,

que há sinais que nos podem avisar… sei que há casa de apoio às vítimas, mas se

calhar termos um espaço onde se pudesse falar sobre isso, termos uma pessoa que

compreenda o que estamos a passar…se calhar até serem mesmo as pessoas que já

passaram por isso a falar com as outras vítimas, por exemplo, haver reuniões onde se

falasse destas coisas.” (Rita)

Mais adiante, vamos explicar a pertinência da constituição destes grupos de

autoajuda e o impacto positivo no empoderamento das vítimas é muito relevante,

salientado que este trabalho foi justamente uma das tarefas desenvolvidas pelas técnicas

do Projeto Íris.

3.3.8. Avaliação do processo de denúncia82

Quando as entrevistas foram realizadas, houve casos em que os processos ainda

se encontravam a decorrer no Tribunal, e outros em que os agressores já tinham sido

julgados e condenados ou absolvidos. Apesar dos processos-crime por violência

doméstica assumirem um tratamento prioritário nos tribunais, continuam a haver casos

que, dada sua complexidade processual ou por outros fatores68, se prolongam por vários

meses sem haver qualquer decisão dos órgãos competentes. Esta demora provoca nas

vítimas um desgaste emocional adicional, até porque a maior parte delas ignora o

funcionamento dos tribunais. A incompreensão desta demora e os seus efeitos, bem

como a atitude insensível de alguns profissionais foi referida por algumas vítimas:

“Não se compreende como é que uma pessoa faz uma queixa e está tanto tempo

à espera… a burocracia é incrível! São assuntos que deveriam ser tratados com muita

urgência! Estou convencida que se a justiça fosse mais rápida as vítimas sentiam mais

confiança para apresentar queixa”. (Rosa)

“Quando fui ao juiz parecia que lhe estava a dar razão, parecia que ele é que

era a vítima. Quer dizer, eu é que tinha sido agredida, eu é que tive que sair de casa,

mas ele é que era a vítima, as perguntas que o juiz me fazia… depois até me mandaram

calar, parecia mesmo que o juiz estava com pena dele, nem me deixava acabar uma

resposta, parecia que estava ali para me confundir!” (Paula)

“Acho que eles [os filhos] são demasiado espremidos, muitos expostos… os

advogados são terríveis, são até imorais. Comigo tudo bem, mas com a miúda…

usaram todo o tipo de estratagemas para a confundir, para a contrariar (…) a mim isso

entristece-me imenso, (…) não sei como me controlei em tribunal para não intervir, a

ouvir mentiras porque doeu muito”. (Fátima)

A advogada foi também questionada sobre a sua experiência na área da violência

doméstica, e qual a sua perceção sobre o tratamento deste crime nos tribunais,

transcrevendo-se de seguida a sua opinião sobre o tema:

“Noto claramente que ao nível do Ministério Público há uma maior

aproximação dos senhores procuradores adjuntos relativamente às vítimas, porque eu

penso que eles têm até orientações superiores para serem eles a fazer os

68 Por exemplo, por motivos de doença de algum magistrado.83

interrogatórios às vítimas e não os funcionários, e isso faz toda a diferença porque

obviamente têm uma formação diferente da que tem um funcionário (…) Já não tenho a

mesma perceção quanto aos juízes de instrução criminal que aplicam as medidas de

coação, acho que há ali algo que se quebra e que por isso mesmo havendo promoções

do Ministério Público, mesmo havendo informações da PSP ou da GNR quando há, por

exemplo, níveis elevados de risco para a vítima, parece-me que muitas vezes esses

indicadores são ignorados porque, apesar de tudo, mesmo tendo contacto com muitas

situações de violência doméstica, são poucas as situações em que são aplicadas

medidas de coação verdadeiramente eficazes..” (Advogada)

O trabalho da polícia foi também, por vezes, criticado. A crítica mais apontada

foi a falta de sensibilidade de alguns agentes na forma como abordaram o problema e

alguns preconceitos que ainda demonstram ter sobre o fenómeno no momento do registo

da denúncia:

“[quando apresentou a denúncia na Esquadra] lembro-me que estava lá o

Agente (…) e como eu tinha os meus pais ao meu lado… sobre a violação… ele disse-

me para não falar sobre isso à frente deles, que depois um dia me chamava para

falarmos. Nunca mais me chamou e aquilo ficou assim. Depois, eu disse que ele tinha

umas facas de matar porcos e os polícias foram lá buscá-las, fora de casa, para as

minhas filhas não saberem (…) e um dos agentes, que era amigo dele, disse-lhe que eu

tinha entregado as facas. Olhe, um dia eu chamei a Polícia e foi esse e outro que foi lá

a casa e nesse dia uma vizinha ouviu como eles me trataram e veio falar comigo e

perguntou-me o que se passava e eu disse-lhe. Ela disse, «Já não é a primeira vez que

ouço esses polícias a tratá-la mal, eles têm que acalmar e não tomar parte por

ninguém, você tem que dar parte deles”. (Cristina)

“Não tive sorte nos polícias que apanhei a fazer queixa nem com o juiz que

apanhei no tribunal. Claro, depois aquela coisa da CPCJ, também foi muito

complicado.” (Paula)

Apesar de terem sido notadas experiências negativas no contacto com a PSP,

verificou-se também algumas situações positivas, sobretudo no contacto com elementos

84

especializados no atendimento a vítimas de violência doméstica:

“O Agente (…) foi extremamente sensível e eu senti esse apoio, foi muito

importante. Naquela fase [momento da denúncia] é muito importante, nem que seja um

telefonema a perguntar se se está bem, valoriza-se imenso, pode ser só uma pergunta,

mas para quem recebe, sabe muito bem (…) a gente sente-se segura, um agente, está

preocupado com o nosso caso, isto vai correr bem, foi o que eu senti. É importante.”

(Rosa)

Confrontado com estas deficiências, o Graduado da PSP referiu que a Polícia

tem investido muito nos últimos anos na formação de elementos afetos aos programas

de proximidade69 e que o atendimento a este tipo específico de vítimas tem melhorado:

“Atualmente a PSP já tem equipas especializadas no acompanhamento às

vítimas, mas claro, somos polícias, não somos psicólogos, se bem que às vezes

acabemos por ser um pouco de tudo… O apoio que damos é aquele que nos é pedido

pela nossa instituição”. (Graduado da PSP)

No entanto, referiu que uma parte substancial das ocorrências participadas por

esta Polícia é realizada nos locais de residência das vítimas (ou no local onde ocorrem

as agressões), sendo esse serviço efetuado pelos elementos da tripulação dos carros de

patrulha que, por norma, não têm formação específica para lidar com estas situações:

“A minha função na PSP atualmente é de atendimento ao público e é nesse

contexto que tenho conhecimento das situações de violência doméstica, quando as

vítimas vêm à Esquadra denunciar o crime. Mas na maior parte dos casos as pessoas

chamam a Polícia ao local e aí os agentes do carro de patrulha deslocam-se

diretamente ao local da ocorrência e é aí que tomam conhecimento dos casos e fazem o

registo da ocorrência.” (Graduado da PSP)

69 A PSP criou em 2006 o Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade onde se inserem as Equipas de Apoio à Vítima (EPAV) e as Equipas do Programa Escola Segura (EPES). As EPAV, são responsáveis “pela prevenção e vigilância em áreas comerciais, vigilância em áreas residenciais maioritariamente habitadas por cidadãos idosos, prevenção da violência doméstica, apoio às vítimas de crime e acompanhamento pós-vitimação, identificação de problemas que possam interferir na situação de segurança dos cidadãos e pela deteção de cifras negras” (PSP, 2017), enquanto às EPES cabe zelar pela “segurança e vigilância nas áreas escolares, prevenção da delinquência juvenil, deteção de problemas que possam interferir na situação de segurança dos cidadãos e pela deteção de cifras negras no seio das comunidades escolares” (Idem, Ibidem).

85

A falta de sensibilidade demonstrada por alguns profissionais identificados pelas

vítimas poderá encontrar explicação na existência de alguns mitos que ainda

permanecem na sociedade relativamente à violência doméstica (que naturalmente

também influenciam os profissionais que lidam diretamente com o fenómeno), que

continuam a obstaculizar a intervenção neste problema e até a considerá-lo ainda do

foro privado (Manita, 2009).

Outro aspeto relevante que poderá, em certa medida, explicar o comportamento

dos polícias nestas situações, onde é necessária uma intervenção de maior proximidade

junto da vítima, prende-se com a sua cultura profissional. Reiner (2004) define a polícia

como “uma corporação de pessoas patrulhando os espaços públicos, usando uniforme

azul, munida de um amplo mandato para controlar o crime, manter a ordem e exercer

algumas funções negociáveis de serviço social” (Idem, Ibidem, p. 19). À polícia está

ainda muito associada uma ideia de força de combate ao crime, tendo esta imagem sido

reforçada e mitificada pela literatura e pelo cinema, atribuindo ao mandato policial

características muito associadas ao perigo e ao risco, e aos polícias, atributos de valentia

e a coragem. No entanto, a maior parte destes profissionais passam a maior parte do seu

tempo a elaborar tarefas rotineiras, de cariz assistencial, representando muitas vezes o

papel do “filósofo, guia [e do] amigo” (Cumming e Edel, cit. Reiner, 2004: p. 163),

bem como a executar tarefas aborrecidas e rotineiras (Crank, 2004; Martin, 1999).

Crank (2004) diz-nos que, apesar da Polícia ser maioritariamente uma força

composta por homens, isso não chega para explicar o seu modelo de masculinidade,

uma vez que existem outras profissões onde esse fator também se verifica e ele não se

faz sentir de uma forma tão vincada. O modelo de masculinidade policial está

intimamente relacionado com o ideal tipo construído na sociedade onde os agentes são

socializados. Um aspeto que será decisivo para o reforço da masculinidade dos polícias

será, segundo a autora, a sua classe de origem (classe trabalhadora) onde a influência de

Hollywood se fez notar com bastante intensidade, construindo um ideal imaginário da

profissão mais atrativo e menos aborrecido do que aquele que é na realidade. Assim se

explica que as suas ações tenderão a pautar-se por intervenções mais “musculadas”

(repressivas) e menos emotivas (preventivas), uma vez que a primeira estará mais de

86

acordo com a identidade que se pretende construir e, sobretudo, ser reconhecida pelos

pares.

Este reconhecimento funciona como um reforço da masculinidade que assume

especial relevo no dia-a-dia dos polícias, construindo a imagem do que deve ser o

“verdadeiro polícia” (Ainsworth, 2008). Este processo de reafirmação da identidade

masculina começa a ser reforçado durante o período de formação dos agentes através da

superação de provas físicas e periciais (tiro e operações táticas) onde os instruendos

devem demonstrar que têm o que é necessário para entrar na instituição. Mais tarde,

após a integração no contexto profissional, a mostra da coragem e a capacidade de

controlar as emoções (aspeto central da identidade masculina e policial) será avaliada

pelos pares através do reconhecimento profissional (Herbert, 1997).

No entanto, como recorda este autor, o serviço policial não é homogéneo, pois

existem diversos serviços que não estão diretamente relacionados com o combate

repressivo da criminalidade (e.g. serviços burocráticos ou até o policiamento de

proximidade), neste caso, estas funções, devido às suas exigências técnicas (não há, por

norma, um contacto direto com o crime mais violento, havendo, no caso do

policiamento de proximidade, uma maior preocupação com a prevenção do que com a

repressão), são desconsideradas pelos agentes, uma vez que não lhes estão atribuídas as

características do ideal tipo do mandato policial (a coragem e o risco). É neste sentido

que a “ação” se opõem à “inação”, ou seja, o que é valorizado na cultura policial é a

intervenção rápida (repressão) e não a mediadora de conflitos (prevenção), e isto

implica uma escolha, agir (como um homem) e afirmar a sua posição no campo, ou não

agir (como uma mulher), implicando neste caso, por vezes, uma crítica dos pares. A esta

perspetiva do mandato policial está associada a questão dos papéis de género, em que se

associam comportamentos distintos para ambos: para as mulheres, as funções mais

compreensivas, (como à resolução de conflitos e funções não operacionais), para os

homens, as tarefas mais perigosas onde a força e a coragem são requisitos para o

cumprimento da missão70.

70 Importa ajustar esta perspetiva ao contexto português e perceber que a cultura da polícia portuguesa não é homogénea na medida em que o mandato policial é exercido em diferentes contextos sociais. Apesar da formação inicial ser comum a todos os polícias (Escola Prática de Polícia ou Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna) após o período de formação, muitos polícias, após alguns anos,

87

O comportamento de alguns elementos policiais pode ainda ser explicado pelo

seu desencanto com o sistema judicial e pela convicção de que pouco (ou nada) podem

fazer para alterar a situação das vítimas. Durão (2013) realizou uma investigação em

algumas esquadras da PSP sobre o atendimento que é prestado às vítimas de violência

doméstica e verificou nos agentes um sentimento de impotência na sua ação perante

estas situações que se traduzem em duas formas distintas de atuar perante o fenómeno,

às quais a autora denominou de impotência resignada e impotência indignada. Como

impotência resignada a investigadora define o comportamento que é manifestado pela

maior parte dos polícias que, conscientes da sua impossibilidade prática em mudar a

ação, ou seja, a situação da vítima, se conformam com essa impossibilidade assumindo

no contacto com elas uma postura de simples “agentes redatores”, ou seja, apenas

escrevem os factos e comunicam-nos à hierarquia eximindo-se de qualquer

responsabilidade ou qualquer outra ação no processo (Idem, Ibidem, p. 886). Por outro

lado, em número mais reduzido, há também agentes que agem de acordo com uma

impotência indignada, ou seja, apesar de terem consciência que o seu trabalho não

muda objetivamente a situação da vítima, criticam o funcionamento do sistema e

afirmam que também eles deveriam ser tidos em conta no processo, dado o seu

conhecimento do caso71, desenvolvendo à posteriori uma série de contactos informais

no sentido de ajudar e orientar a vítima para o processo que vai enfrentar após a

denúncia do crime.

Como veremos mais adiante esta impotência resignada transmite às vítimas um

sentimento acrescido de impotência perante o agressor e desencoraja-a, muitas vezes, de

prosseguir com o processo em Tribunal e, mesmo, por vezes, de abandonar a relação

abusiva. Durão (2013) constatou que este é o comportamento mais comum que

verificou no seu trabalho, “o que se destaca no nosso estudo narrativamente é a

comprovação e justificação dos limites, impotentes, do serviço policial perante as

acabam por ser transferidos para as Esquadras distribuídas pelo país. A cultura e os valores adotados numa Esquadra com menos população e menor taxa de criminalidade (e.g. Esquadra de Santo Tirso), onde é exigida menos solidariedade e entreajuda, e, por norma, existe uma média maior de idades dos agentes, é distinta de outra Esquadra onde o número de habitantes é superior, há maior taxa de criminalidade, onde a média de idades dos agentes é consideravelmente menor e a necessidade de entreajuda para ultrapassar as dificuldades (e momentos de solidão, dado muitos deles estarem deslocados da sua zona de origem) é preciosa.71 Mantendo, por exemplo, um contacto mais próximo com o Ministério Público.

88

vítimas e os agressores” (Idem, Ibidem, p. 891), sendo justamente o contrário do que se

esperava que acontecesse, dado o relevo do impacto que o primeiro contacto com as

vítimas assume no decorrer de um processo de violência doméstica.

3.4. O empoderamento das vítimas de violência doméstica

Léon (1997) lembra que o conceito de empoderamento é usado por várias

disciplinas científicas e organizações “como las agencias internacionales, los agentes

del Estado, los fundamentalistas, los patronos y los empresarios, los educadores de

variadas tendencias, los grupos de desarrollo comunitario del norte y del sur, los

activistas sociales, (…)” (Idem, Ibidem, s/n) e que o seu significado varia consoante o

contexto em que é empregue. A autora recorda que para o feminismo, o conceito surgiu

como uma referência à necessidade da ocorrência de uma mudança social que

permitisse às mulheres reverter a sua posição de submissão numa sociedade patriarcal.

Neste período, na década de 60 do séc. XX, o conceito é apropriado por vários

movimentos sociais (e.g. movimento negro) e relaciona-se sobretudo com a noção de

poder.

Alguns anos mais tarde, na década de 1980, o feminismo entra numa nova fase e

começa a discutir-se os interesses das mulheres e a defender que eles não são iguais

para todas, definindo-se uma distinção entre os seus interesses práticos (individuais) e

estratégicos, referindo-se estes ao objetivo de alcançar uma sociedade mais justa e

igualitária, sendo para isso necessário despertar a consciência crítica das mulheres para

a sua posição de dominadas (León, 1997).

Esta dominação nem sempre é exercida de uma forma evidente e entendível

pelas vítimas, o que dificulta a sua perceção quanto à sua posição de dominada.

Bourdieu (2012) explica que, por vezes, esta dominação é exercida através de uma,

“violência simbólica, violência suave, insensível invisível a suas próprias vítimas, que

se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do

conhecimento, ou mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em

ultima instância, do sentimento”72 (Idem, Ibidem, p. 7). Para o autor é através da 72 Por poder simbólico o autor entende, “é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”

89

socialização que opera a reprodução da manutenção da ordem estabelecida entre

dominados e dominadas73 e é, justamente, através da transformação destas instituições

que é possível uma alteração desta relação de poderes. Ora, o autor diz-nos que com o

surgimento da segunda vaga do feminismo, a dominação masculina deixou de ser vista

como uma inevitabilidade tendo começado a ser questionada e, pelo menos em algumas

matérias, houve efetivamente uma mudança, por exemplo, o acesso ao ensino

secundário das mulheres que lhes terá permitido uma maior independência financeira

(Bourdieu, 2012, p. 106/107). No entanto, recorda que as mudanças mais relevantes e

com maior impacto são as que se referem à, “transformação decisiva da função da

instituição escolar na reprodução da diferença entre os géneros, tais como o aumento

do acesso das mulheres à instrução e, correlativamente, à independência económica e

à transformação das estruturas familiares” (Bourdieu, 2012, p. 107).

Perkins e Zimmerman (1995) afirmam que, apesar de não existir uma definição

universal sobre o conceito de empoderamento, podemos encontrar características

comuns em várias definições, centrando-se todas elas justamente no conceito de poder.

Rapport (1987) define empoderamento como, “a process, a mechanism by which

people, organizations, and communities gain mastery over their affairs.” (Idem,

Ibidem, p. 122). Por seu turno, Page e Czuba (1999) consideram que, “empowerment is

a multi-dimensional social process that helps people gain control over their own lives.

It is a process that fosters power (that is, the capacity to implement) in people, for use

in their own lives, their communities, and in their society, by acting on issues that they

define as important.” (Idem, Ibidem, s/p). Perkins e Zimmerman (1995) afirmam que

para compreendermos o conceito de empoderamento é importante distinguir os seus

processos (e.g. ações ou atitudes) e os resultados que são provenientes desses processos

e constituem o empoderamento. Por exemplo, se considerarmos o empoderamento das

vítimas de violência doméstica, podemos considerar um processo a tomada de

consciência das vítimas da situação de dependência emocional que têm relativamente

aos agressores. No entanto, apesar desta consciência crítica ser fundamental para a

obtenção do resultado (Kasturirangan, 2008), só por si, não é suficiente para resultar no

(Bourdieu, 1989, p. 7/8)73 Que o autor considerou serem as instituições Família, a Igreja e a Escola (Bourdieu, 2012, p. 103).

90

empoderamento da vítima. A autora defende que a criação de programas de

empoderamento para vítimas de violência doméstica não deve ser apenas uma lista de

serviços onde cada mulher se inscreve e participa, mas um processo onde cada uma

delas se identifica e participa ativamente. Esta participação visa permitir às vítimas

recuperar o controlo das suas vidas, na medida em que lhes facilita o acesso a

ferramentas que possibilitam, de acordo com as suas próprias características, o aumento

da sua consciência critica sobre a situação em que se encontram.

Na tabela seguinte podemos observar um modelo de empoderamento

onde se incluem algumas estratégias usadas com vítimas de violência doméstica. Neste

quadro os autores propõem quatro estratégias de empoderamento em três níveis de

intervenção distintos. Como verificamos anteriormente, a não existência de qualquer

estrutura de apoio à vítima no concelho, contribui para um prolongar das relações

abusivas na medida em que não há qualquer estratégia de empoderamento que facilite o

abandono da relação abusiva. Este modelo propõe que a intervenção ao nível macro

tenha efeitos nos níveis anteriores. Por exemplo, espera-se que através de Planos

Nacionais de Apoio à Vítima (nível macro) se consigam providenciar recursos locais

(nível meso) que lhes permitam providenciar apoio psicológico (nível micro). Parece-

nos que deste ponto de vista (nível institucional), como já referimos anteriormente,

Portugal é um bom exemplo, sobretudo no que se refere à criação de medidas

legislativas para combater este fenómeno e no debate do problema através de

campanhas de sensibilização e outras intervenções públicas por parte dos vários atores

sociais que intervêm no processo74.

Tabela 1: Estratégias para o empoderamento de vítimas de violência doméstica nos

níveis Intrapessoal, Interpessoal e Institucional

Estratégias Intrapessoal(nível micro)

Interpessoal(nível meso)

Institucional(nível macro)

74 Entendemos que apesar de todas as dificuldades que foram apresentadas pelas vítimas neste trabalho, tem sido feito um esforço notável nos últimos anos, sobretudo pelo Estado e algumas associações de apoio à vítima, para combater o flagelo da violência doméstica.

91

Possibilitar

“Dar escolhas”“Validar situações”“Providenciar apoio emocional”“Providenciar acolhimento”

“Facilitar grupos de apoio”“Providenciar acolhimento e serviços de apoio”

“Programas de voluntariado”“Programas nacionais de apoio à vítima”

Relacionargrupos

“Reduzir o isolamento”“Desenvolver os recursos da comunidade”“Organizar ações de sensibilização sobre a violência doméstica”

“Planos de intervenção com alargado consenso político”

Catalisar

“Providenciar apoio económico”“Providenciar apoio ao emprego”“Providenciar residências temporárias”

“Criar novos programas de violência domestica”Publicar nova legislação”“Expandir serviços de apoio às vítimas e filhos”

“Atribuição de recursos financeiros para a investigação das questões de género e desigualdades”

Preparação

“Comparecer no tribunal com a vítima”“Ajudar a proteger a vítima”

“Ajudar as famílias a perceber o impacto da violência”“Sensibilização pública do fenómeno e educação”

“Educar sobre a violência”“Treinar competências (assertividade, autocontrolo)

Fonte: Busch e Valentine (2000, p. 87)

Um dos objetivos traçados por este plano de empoderamento prende-se com a

necessidade de formação/sensibilização da comunidade para este problema. Como já

vimos, nos últimos anos houve um investimento considerável na formação das Forças

de Segurança para melhorar o atendimento a vítimas de violência doméstica. Aliás,

Russel e Light (2006)75 demonstram justamente que, “respectful treatment, careful

listening to victim stories, understanding victims’ plight, not blaming victims, providing

explanations of police actions, providing information about resources and options,

making referrals to other services, taking victim preferences into account” (Idem,

Ibidem, p. 377) contribui para o bem-estar e empoderamento das vítimas, sendo por isso

necessário continuar a investir na formação de todos os elementos que intervém

diretamente com situações de violência doméstica.

75 Numa investigação realizada no Canadá com várias polícias, entre as quais a Royal Canadian Mounted Police e outras polícias locais.

92

Se no nível anterior a nossa possibilidade de intervenção é praticamente nula, no

nível meso (interpessoal) é possível intervir dado o nosso papel enquanto ator social de

intervenção na cidade. Acreditamos que, através da criação de sinergias com outras

organizações locais (e.g. Câmara Municipal, ONG e escolas), é possível definir

estratégias importantes de empoderamento como a criação de um grupo de apoio a

vítimas de violência doméstica, constituído por técnicos de várias valências e formações

académicas de distintas organizações sociais do concelho que intervenham diretamente

com este problema, dinamizar e organizar reuniões mensais onde as vítimas voluntárias

falem sobre a sua experiência enquanto vítimas e motivem outras vítimas a seguir o seu

percurso, bem como a organização local de debates e sessões de esclarecimento sobre o

tema, aproveitando as estruturas existentes e com as quais existem já protocolos de

colaboração com a PSP, por exemplo, com os agrupamentos de escolas do concelho.

Naturalmente que ao nível micro (intrapessoal) é também necessário intervir,

sendo esta ação dirigida sobretudo pelos técnicos de intervenção de primeira linha. Aqui

levanta-se um constrangimento que se prende com a inexistência de uma estrutura de

apoio que faça o acompanhamento individual das vítimas, uma vez que na maior parte

das situações, como demonstramos anteriormente, a situação tende a agravar-se após a

saída da Esquadra no momento da denúncia do crime. Neste nível, de acordo com as

características e recursos de cada vítima, poderá ser necessário providenciar um

conjunto de garantias como o apoio emocional/psicológico, jurídico, económico, acesso

ao emprego, bem como o seu acompanhamento a instituições, por norma, intervenientes

no processo (e.g. Instituto Medicina Legal, Polícia ou Tribunal). Pretende-se que este

trabalho, quando realizado individualmente ou em grupo (com as vítimas), permita o

seu empoderamento e que se traduza no aumento da sua autoconfiança, na redução do

sentimento de culpa e no assumir que tem a responsabilidade de sair daquela situação,

na medida em que pode fazer, ou tem o poder de mudar a sua vida. Apresentamos na

tabela seguinte uma sistematização dos resultados que se esperam obter após a aplicação

das estratégias de empoderamento propostas pelos autores:

Tabela 2: Passos e níveis para o empoderamento: Declarações de uma vítima

93

PassosAntes do processo de empoderamento

Intrapessoal(nível micro)

Interpessoal(nível meso)

Institucional(nível macro)

Eficácia

“Eu sou uma vítima”“Eu não consigo mudar a minha situação”“Estou sozinha”“Ninguém compreende a minha situação”

“Eu vou sobreviver”“Sou uma sobrevivente e não uma vítima”“Não estou sozinha”“Não consigo controlar o comportamento agressivo do agressor”

“Vamos conseguir ultrapassar”“Vamos ter mais sucesso quando pudermos ajudar-nos mutuamente”

“Nós podemos fazer a diferença”“Há muitas instituições que servem ou deveriam servir as vítimas de violência doméstica”

Consciencialização de

grupo

Redução da autorresponsabilização

“A culpa é minha: se eu não o tivesse enfurecido”

“A culpa não é minha”

“A violência doméstica ocorre em muitos relacionamentos”“A violência doméstica é transversal e ocorre em diversos contextos económicos, raciais, culturais e étnicos”

“As leis devem mudar para proteger as vítimas e os seus filhos”

Assumpção de responsabilidade

“Eu não posso fazer nada para mudar a minha situação”

“Eu tenho que me proteger”

“Eu preciso ajudar as minhas irmãs”

“Devemos aumentar a consciência e o conhecimento”

Fonte: Busch e Valentine (2000, p. 92)

Com este modelo pretendemos apenas sugerir uma possibilidade de intervenção

que facilite o empoderamento das vítimas de violência doméstica no concelho de Santo

Tirso. Sabemos que outros caminhos poderão ser percorridos, no entanto, consideramos

ser urgente atuar e criar instrumentos que possam oferecer às vítimas respostas

adequadas às suas necessidades, identificadas por esta investigação, que, de uma forma

tecnicamente sustentada, contribuam para colocar um ponto final na violência que as

vitimou.

94

Conclusão

A nossa investigação tem um alcance limitado na sua representatividade dada a

sua natureza e a estratégia metodológica utilizada, pelo que as nossas conclusões se

aplicam apenas aos casos analisados. Apesar disso, consideramos que alguns dos

resultados apurados podem ser úteis na justificação da criação de uma estrutura de apoio

à vítima na cidade e na implementação de outras medidas de apoio. De acordo com a

análise efetuada foi possível verificar que de uma forma geral a violência nas relações

afetivas teve início no período de namoro, apesar de as vítimas, nessa data, não

percecionarem esses comportamentos como atitudes violentas. A violência manifestou-

se principalmente através de estratégias de controlo e isolamento social das vítimas que,

nesse período, desvalorizaram esses comportamentos, atribuindo-os ao amor ou à

personalidade dos namorados.

Mais tarde, após o casamento, os comportamentos violentos não só continuaram

como se intensificaram e evoluíram para outros tipos de violência como, por exemplo,

para agressões físicas ou sexuais. As vítimas, para manterem os seus casamentos e,

sobretudo, proteger os filhos da violência que as vitimava, criaram estratégias de

sobrevivência que passaram pela total submissão ao agressor. Esta dominação

masculina foi exercida através da coação (psicológica), humilhação pública e

diminuição da autoestima das vítimas, assim como através do recurso às ameaças de

ofensas à integridade física das vítimas, sendo o medo dos agressores um denominador

comum apresentado por todas as entrevistadas.

Se, na opinião das vítimas, os agressores justificavam alguns dos seus

comportamentos abusivos pela existência de relações extraconjugais destas, elas

responsabilizaram o ciúme, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas ou doenças do

foro psiquiátrico, como causas da violência que sofreram. Após um período de acalmia

que se seguia, por norma, aos ataques violentos, os agressores pediam desculpa às

vítimas prometendo-lhes que tal não voltaria a acontecer. Elas, sobretudo quando

ocorreram as primeiras agressões, queriam acreditar que os agressores iriam mudar, mas

na verdade, em todas as situações analisadas, os comportamentos violentos voltaram a

95

ocorrer.

O argumento mais apresentado para justificar a denúncia do crime, foi a

necessidade de proteção dos filhos da violência. Verificamos que a denúncia surgiu

quase sempre em momentos de crise, por exemplo, imediatamente após uma agressão, e

após um longo período de maus tratos. Esta decisão quase “instintiva” e de desespero, e

a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima que faça um acompanhamento

especializado na vertente social, psicológica e jurídica, causou nas vítimas a saída da

Esquadra, um sentimento de desamparo e desorientação porque, por um lado, não

conseguiram compreender a complexidade dos trâmites legais, e por outro, porque lhe

faltou sobretudo o apoio psicológico para reorganizarem a sua vida.

O contacto, por vezes pouco empático, com a Polícia e a falta de sensibilidade

de alguns elementos policiais no momento da denúncia do crime, foi também apontado

pelas vítimas como um aspeto negativo que deve ser melhorado, apesar de ter sido

enaltecido o atendimento especializado e mais cuidado do elemento de apoio à vítima.

Embora não seja possível a especialização de todo o efetivo policial da Esquadra de

Santo Tirso, será importante reforçar a formação no âmbito do atendimento a vítimas de

violência doméstica, pelo que será apresentado à hierarquia os resultados deste trabalho

com vista à realização de ações de sensibilização sobre esta temática no departamento

policial.

A denúncia do crime não representa o fim do ciclo da violência. O agressor,

quando tem conhecimento que a vítima o denunciou, ameaça-a e aumenta a violência

psicológica, apesar de nos casos em que se verificava violência física, esta não ter

voltado a ocorrer. Um aspeto também focado neste trabalho prende-se com a

bidirecionalidade da violência e com algumas considerações sobre as denúncias

efetuadas por homens vítimas de violência doméstica. Não negando, obviamente, a

existência destas situações, entrevistamos uma advogada e um elemento graduado da

PSP sobre a sua experiência nestes casos e ambos referiram que estas denúncias surgem

muitas vezes como uma retaliação às queixas efetuadas pelas vítimas e que, por norma,

servem para causar às vítimas mais um ataque. Esta pista serve, na nossa opinião, para

trabalhos futuros onde se possa analisar de uma forma mais detalhada os dados

96

estatísticos oficiais da violência doméstica em Portugal.

Apenas em duas situações a separação do agressor ocorreu imediatamente após a

denúncia do crime. Nos restantes casos, as vítimas denunciaram o crime e regressaram a

casa onde coabitaram durante mais algum tempo com os agressores. No entanto, os

motivos que as levaram a denunciar o crime e a perceção que as suas relações afetivas

tinham chegado ao fim, foram responsáveis pelo abandono dos agressores. Neste

momento crucial, marcado pelo sofrimento e incerteza quanto ao futuro, foi importante

o apoio dos amigos e da família (quando existiu), tendo sido referido por todas as

vítimas a necessidade de um apoio psicológico que apenas aconteceu nas situações em

que estas puderam suportar financeiramente consultas de psicologia.

As várias estruturas de cariz social existentes no concelho, com a exceção da

Casa Abrigo da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santo Tirso que

desenvolve um trabalho específico com as vítimas acolhidas, prestam um apoio social

aos utentes desses serviços no âmbito do desempenho das funções que lhes estão

atribuídas. Quando uma das suas utentes é também vítima de violência doméstica, as

técnicas, de acordo com o seu voluntarismo e vontade de ajudar, prestam-lhes algum

apoio, sobretudo de âmbito social e, no caso da CMST, também psicológico, nas não

são de todo estruturas especializadas e com os meios técnicos e humanos necessários

para responder às necessidades das vítimas de violência doméstica.

Demonstramos que a inexistência de uma estrutura de apoio à vítima no

concelho dificultou, quer a saída da relação abusiva, quer o processo de empoderamento

após o abandono do agressor. Apresentamos uma proposta de modelo de

empoderamento sustentado por uma intervenção direcionada sobretudo para os níveis

pessoal e local onde lançamos algumas propostas de intervenção com o intuito de

preencher esta lacuna do concelho. Nesta intervenção é fundamental implementar um

método de trabalho em rede que aproveite as estruturas já existentes e os seus recursos.

Este trabalho permitiu que aprofundássemos os nossos conhecimentos teóricos

sobre o tema da violência doméstica e isso vai permitir atingir um dos nossos objetivos

traçados no início desta investigação: melhorar o nosso atendimento a vítimas de

violência doméstica. A maior lição terá sido perceber que a denúncia do crime é apenas

97

um detalhe (importante) em todo o processo que envolve a vítima. A sua proteção social

e, sobretudo, emocional após esse momento é mais importante do que o mero registo

formal do crime. Como demonstramos, a denúncia não coloca um ponto final na

violência, mas a preparação (a vários níveis) da vítima e o seu empoderamento, pode ser

decisivo para que tal aconteça. O dilema entre a denúncia obrigatória do crime, a que

estamos legalmente e deontologicamente obrigados, e a preparação prévia da vítima

para enfrentar todo o processo, é agora, sem dúvida, mais difícil, pois sabemos que

muitas vezes esta impreparação é responsável por muitos retrocessos e recaídas.

Enquanto não existir uma estrutura específica, este trabalho poderá ser desenvolvido por

técnicos de outras instituições aproveitando, por exemplo, os recursos humanos da Rede

Social de Santo Tirso ou a colaboração de técnicas da Casa Abrigo. As características

da cidade, nomeadamente a sua dimensão e proximidade entre as instituições e técnicos

de intervenção social, poderá facilitar esta colaboração sendo essencial o trabalho em

rede que, noutras áreas como, por exemplo, no apoio aos idosos, já existe, pese embora

a sua informalidade.

98

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109

110

ANEXOS

111

Anexo 1 – Caracterização dos intervenientes nas ocorrências de violência

doméstica

21 O número de vítimas pode ultrapassar o número de ocorrências registadas uma vez

que em cada participação pode ter estado envolvida mais do que uma vítima.

22 O número de denunciados pode ultrapassar o número de ocorrências registadas uma

vez que em cada participação pode ter estado envolvido/a mais do que um/a

denunciado/a.

Fonte: RASI, 2016, p.35

112

Anexo 2 – Art.º 152º Violência Doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos,

incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha

mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem

coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade,

deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido

com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de

outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor,

na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com

pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois

a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as

penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de

armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de

programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o

afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser

fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta

gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do

exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de 1 a 10 anos.113

Anexo 3 – Ficha de Avaliação de Risco

114

Anexo 4 - Profissão das vítimas de acordo com a Classificação Portuguesa

das Profissões

2015 2016

Classificação Portuguesa das Profissões – Grande Grupo n % n %

Profissões das forças armadas 0 - 1 1,3

Representantes do poder legislativo de órgãos executivos,

dirigentes, diretores e gestores executivos

1 1,4 2 2,7

Especialistas das atividades intelectuais e científicas 6 8,7 10 13,3

Técnicos e profissões de nível intermédio 0 - 2 2,7

Pessoas administrativo 12 17,4 6 8,0

Trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e

vendedores

20 29,0 21 28,0

Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 3 4,3 3 4,0

Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da

montagem

18 26,1 14 18,7

Trabalhadores não qualificados 9 13,0 16 21,3

Total 69 100 75 100

Fonte: CLAS, 2017

115

Anexo 5 - Tipo de violência denunciada pelas vítimas (2015/2016)

2015 2016

Tipo de violência n % de casos1 n % de casos2

Física 112 80,0 97 65,1

Psicológica 80 57,1 114 76,5

Económica 11 7,9 13 8,7

Social 15 10,7 14 9,4

Sexual 5 3,6 8 5,4

Verbal 03 - 21 14,1

Total 223 159,3 267 179,2

Fonte: CLAS, 2017

As percentagens apresentadas dizem respeito a todos os tipos de violência conhecidos, alguns dos quais respeitantes à mesma pessoa, motivando uma percentagem de casos superior a 100%.2 Vd. Nota de rodapé anterior.3 A inexistência de casos de violência verbal em 2015 deve-se ao facto dessas situações terem sido incluídas na violência psicológica.

116

Anexo 6 – Tipos de crimes mais participados (2015/2016)

Fonte: RASI, 2016, p.2

Denominação do crime Ano 2015 Ano 2016

Ofensa à integridade física voluntária simples 23 720 23 173

Violência doméstica contra cônjuge ou análogos 22 469 22 773

Furto em veículo motorizado 25 360 21 424

Condução de veículo com taxa de álcool igual superior a 1,2g l 22 873 20 849

Outro dano 17 808 16482

Furto em residência com arrombamento, escalamento ou chaves falsas 16 186 14 369

117

Anexo 7 – Análise da categoria de crimes contra as pessoas (2016)

Fonte: RASI, 2016, p.10

118

Análise da categoria de crimes contra as pessoas

Ofensas à integridade física voluntária simples Violência domésticaAmeaça e coação Restantes crimes

Anexo 8 – Taxa de feminização da vítima segundo a tipologia de vitimação

(2016)

Contra asce

ndentes

Contra desce

ndentes

Entre cô

njuges (ou ca

sais

em situaçã

o análoga)

Entre ex-c

ônjuges (ou ca

sais

em situaçã

o análoga)

Entre ex-n

amorados

Entre namorados

Global0

102030405060708090

10078.8

61.5

86.7 83.7 89.5 89.2 83.8

Fonte: RASI, 2016, p.37

119

Anexo 9 – Grau de parentesco entre a vítima e o denunciado (2016)

Grau de parentesco vítima/denunciado/a Ano 2016

Cônjuge/companheiro/a 54,6%

Ex-cônjuge/ex-companheiro 17,1%

Pais ou padrastos 5,3%

Filhos/as / enteados/as 14,2%

Outro grau/relação 8,9%

TOTAL 100%

Fonte: RASI, 2016, p.36

120

Anexo 10 – Deluth Model

Fonte: www.TheDululhmodel.org

121

Anexo 11 - Guião de entrevista - Vítimas de Violência Doméstica

1. Recorda-se do tempo de namoro?

2. Consegue falar-me sobre a sua relação após o casamento?

3. Recorda-se da primeira vez que foi agredida/maltratada? O que aconteceu de

seguida?

4. Como viveu durante esse período?

5. Como acha que ela a via? Como define o seu ex-marido/companheiro?

6. Porque não terminou a relação?

7. O que a levou a denunciar o crime? Pode descrever o que sentiu nesse momento?

8. Recorda-se desse dia? O que sentiu?

9. O que aconteceu quando ele teve conhecimento? Como reagiu?

10. Quando decidiu terminar a relação? Como é que ele reagiu?

11. Pode falar-me sobre o decorrer do processo-crime? O que sentiu durante essa fase?

Que avaliação faz de todo esse processo?

12. Durante esse período solicitou ou foi-lhe prestado algum apoio institucional? Por

quem?

13. Como foi a sua vida depois da separação? Tomou alguma medida para ultrapassar

esse momento da sua vida?

14. Acha que valeu a pena fazer a queixa? Voltaria a fazer o mesmo?

15. Como perspetiva/perspetivou a sua vida depois da separação?

16. O que acha que deveria ser feito para ajudar as vítimas de violência doméstica na

cidade?

17. Gostaria de acrescentar mais alguma coisa que não lhe tenha sido perguntado?

122

18. Gostaria de me perguntar alguma coisa?

123

Anexo 12 – Guião de entrevista - Técnicos de Intervenção Social

1. Que funções desempenha na organização onde trabalha?

2. Pode explicar-me em que contexto tem conhecimento de situações de VD?

3. Toma alguma medida quando isso ocorre? Qual o encaminhamento que faz a essas

vítimas?

4. É desenvolvido algum trabalho/acompanhamento com as vítimas? Pode falar-me um

pouco sobre isso?

5. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a

vítimas de VD no concelho de Santo Tirso? Em que circunstâncias?

6. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio exclusiva para vítimas de

VD no concelho de Santo Tirso?

7. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as

vítimas?

124

Anexo 13 – Guião de entrevista - Advogada

1. Pode dizer-me em que contexto tem conhecimento de situações de VD?

2. Já defendeu algum homem vítima de violência doméstica? O que pensa sobre este

assunto?

3. Quais são as maiores necessidades que apresentam as/os seu clientes vítimas de

violência doméstica?

4. Quais são os maiores desafios que enfrenta na defesa de uma vítima de violência

doméstica?

5. Como caracteriza o sistema judicial no tratamento das situações de violência

doméstica?

6. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a

vítimas de VD no concelho de Santo Tirso?

7. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio específica para vítimas de

VD no concelho de Santo Tirso?

8. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as

vítimas?

125

Anexo 14 – Guião de entrevista - Graduado da PSP

1. Pode dizer-me em que contexto em que contextos a PSP toma conhecimento das

situações de VD?

2. Alguma vez atendeu um homem vítima de violência doméstica? Qual a sua perceção

sobre essas denúncias?

3. Como classifica o atendimento que é feito pela PSP às vítimas de violência

doméstica?

4. Qual a sua opinião sobre o decorrer deste processo no âmbito das funções atribuídas

às Forças de Segurança?

5. Tem conhecimento de alguma organização/instituição que faça o acompanhamento a

vítimas de VD no concelho de Santo Tirso?

6. Acha que se justifica a criação de uma estrutura de apoio específica para vítimas de

VD no concelho de Santo Tirso?

7. Quais as áreas de intervenção que considera serem mais pertinentes trabalhar com as

vítimas?

126