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REPERCUSSÕES DO PRÓ-LETRAMENTO NAS PRÁTICAS DE AVALIAÇÃO DE PROFESSORES ALFABETIZADORES Francisca Edilma Braga Soares Aureliano (UERN/UFRN) [email protected] RESUMO A perspectiva da avaliação processual precisa ser inserida nos cursos de formação continuada de professores para que desenvolvam práticas que emancipem e incluam os alunos em significativos processos de aprendizagem. Este trabalho é um recorte de uma pesquisa do Mestrado Acadêmico concluído em 2012. Objetiva analisar as repercussões do Pró-Letramento nas práticas avaliativas de quatro professoras alfabetizadoras que lecionam em turmas de 1º e 2° ano do Ensino Fundamental de uma escola do Sertão da Paraíba. A primeira etapa da pesquisa apresenta a revisão dos estudos de Vygotsky (2008), Esteban (2002, 2008), Luckesi (1995), dentre outros, que tratam do desenvolvimento da aprendizagem e da avaliação. As demais etapas seguem-se da análise documental e da análise dos dados obtidos nas entrevistas e nas observações. Desenvolvida na perspectiva da metodologia qualitativa e sob o procedimento da Análise do Discurso, a pesquisa revela que a maioria das professoras cursistas do Pró-Letramento avaliam com foco nos meios e nos resultados, desconsiderando a heterogeneidade intrínseca nos processos individuais de aprendizagem da leitura e da escrita. Isso acentua o descompasso entre a proposta do curso de formação e as práticas das professoras, induzindo aos sistemas de ensino refletirem sobre as políticas de formação que implementam. Os resultados acenam para a necessidade da formação continuada ser concebida como momentos de aprendizagem dos docentes, visando a reconstrução das práticas. Nesse sentido, os conteúdos e procedimentos didáticos devem se articular com o saber-fazer dos professores, objetivando minimizar o fracasso das crianças na alfabetização. Palavras-chave: Pró-Letramento. Avaliação. Professores alfabetizadores. INTRODUÇÃO Avaliar é uma prática social que contribui para a compreensão dos processos sociais, dentre estes, aqueles articulados à educação. Apesar de ser uma ação indispensável ao processo de escolarização, o ato de avaliar ainda gera polêmicas resultantes da forma como esse procedimento pedagógico se desenvolve nas práticas escolares. Isso ocorre porque os educadores não apresentam uma base conceitual definida para realizar um trabalho pedagógico que priorize a aprendizagem como processo individual (intrapessoal) e ao mesmo tempo social (interpessoal), e que, portanto, precisa ser mediado (VYGOTSKY, 2008). As práticas avaliativas são configuradas como homogeneizadoras por estabelecer um único padrão de acompanhamento da aprendizagem, desconsiderando os Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 03753

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Page 1: REPERCUSSÕES DO PRÓ-LETRAMENTO NAS PRÁTICAS DE … REPERCUSSÕES DO PRÓ... · O Pró-Letramento propõe para formação dos professores no curso Alfabetização e Linguagem (BRASIL,

REPERCUSSÕES DO PRÓ-LETRAMENTO NAS PRÁTICAS DE AVALIAÇÃO

DE PROFESSORES ALFABETIZADORES

Francisca Edilma Braga Soares Aureliano (UERN/UFRN)

[email protected]

RESUMO

A perspectiva da avaliação processual precisa ser inserida nos cursos de formação

continuada de professores para que desenvolvam práticas que emancipem e incluam os

alunos em significativos processos de aprendizagem. Este trabalho é um recorte de uma

pesquisa do Mestrado Acadêmico concluído em 2012. Objetiva analisar as repercussões

do Pró-Letramento nas práticas avaliativas de quatro professoras alfabetizadoras que

lecionam em turmas de 1º e 2° ano do Ensino Fundamental de uma escola do Sertão da

Paraíba. A primeira etapa da pesquisa apresenta a revisão dos estudos de Vygotsky

(2008), Esteban (2002, 2008), Luckesi (1995), dentre outros, que tratam do

desenvolvimento da aprendizagem e da avaliação. As demais etapas seguem-se da análise

documental e da análise dos dados obtidos nas entrevistas e nas observações.

Desenvolvida na perspectiva da metodologia qualitativa e sob o procedimento da Análise

do Discurso, a pesquisa revela que a maioria das professoras cursistas do Pró-Letramento

avaliam com foco nos meios e nos resultados, desconsiderando a heterogeneidade

intrínseca nos processos individuais de aprendizagem da leitura e da escrita. Isso acentua

o descompasso entre a proposta do curso de formação e as práticas das professoras,

induzindo aos sistemas de ensino refletirem sobre as políticas de formação que

implementam. Os resultados acenam para a necessidade da formação continuada ser

concebida como momentos de aprendizagem dos docentes, visando a reconstrução das

práticas. Nesse sentido, os conteúdos e procedimentos didáticos devem se articular com

o saber-fazer dos professores, objetivando minimizar o fracasso das crianças na

alfabetização.

Palavras-chave: Pró-Letramento. Avaliação. Professores alfabetizadores.

INTRODUÇÃO

Avaliar é uma prática social que contribui para a compreensão dos processos

sociais, dentre estes, aqueles articulados à educação. Apesar de ser uma ação

indispensável ao processo de escolarização, o ato de avaliar ainda gera polêmicas

resultantes da forma como esse procedimento pedagógico se desenvolve nas práticas

escolares. Isso ocorre porque os educadores não apresentam uma base conceitual definida

para realizar um trabalho pedagógico que priorize a aprendizagem como processo

individual (intrapessoal) e ao mesmo tempo social (interpessoal), e que, portanto, precisa

ser mediado (VYGOTSKY, 2008).

As práticas avaliativas são configuradas como homogeneizadoras por

estabelecer um único padrão de acompanhamento da aprendizagem, desconsiderando os

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alunos como sujeitos históricos e sociais que apresentam níveis de abstrações

completamente divergentes. A escola precisa definir para quê avalia. É para medir,

quantificar e comparar? Ou para diagnosticar e acompanhar de forma qualitativa os

retrocessos, estagnações e avanços na atividade de aprender?

A definição da postura avaliativa da escola depende das concepções que

norteiam a prática pedagógica dos professores. Essas concepções são construídas ao

longo da formação inicial e continuada, bem como dos saberes que se apropriam ao longo

de suas vidas. A postura avaliativa do educador precisa atualmente está articulada aos

processos democráticos inclusivos, que oportunize a apropriação dos conhecimentos a

todas as pessoas.

No entanto, o fracasso escolar ainda é uma realidade marcante nas turmas em

processo de alfabetização. Muitas crianças chegam ao final dos anos iniciais do Ensino

Fundamental sem o domínio da leitura e da escrita, ou seja, são promovidas com

defasagens, o que pode limitar todo o resto da sua formação. Isso indica que a avaliação

que poderia funcionar como um instrumento regulador da aprendizagem e das ações do

ensino não está sendo bem definida ou compreendida.

A partir dessa realidade compreende-se que os conteúdos que tratam da

avaliação processual e formativa devem fazer parte dos processos formativos dos

professores para que estes desenvolvam práticas que favoreçam a reconstrução de novas

aprendizagens (ESTEBAN, 2008). Com base neste pressuposto, neste trabalho discute-

se a seguinte problemática: o Pró-Letramento enquanto política de formação continuada

para professores dos anos iniciais do ensino fundamental repercutiu nas práticas de

avaliação dos alfabetizadores? As discussões aqui postas se constituem de um recorte de

uma pesquisa realizada durante o Mestrado Acadêmico em Educação, realizado de 2009

a 2012.

A pesquisa se apropriou da metodologia qualitativa em que o interesse principal

do pesquisador é no processo e nas significações dos sujeitos do estudo Bogdan e Biklen

(1994). As etapas do estudo envolvem a revisão da literatura; a análise documental do

fascículo 2 do Curso de Alfabetização e Linguagem do Pró-Letramento (2006); e um

estudo empírico realizado em uma escola pública localizada em um município do Sertão

da Paraíba, envolvendo quatro (04) professoras alfabetizadoras que lecionavam em

turmas de 1º e 2º ano do Ensino fundamental.

O objetivo do estudo é analisar as repercussões do Pró-Letramento nas práticas

avaliativas de professores cursistas. Para apreensão dos dados no campo empírico

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realizou-se entrevistas semiestruturadas e observações registradas em Diário de Campo.

O procedimento teórico-metodológico da pesquisa foi a Análise do Discurso que

considera as palavras (discursos) dos sujeitos como materialidade da consciência social,

resultante de uma construção histórica e ideológica dos grupos sociais (BAKHTIN,

1988).

Inicialmente apresenta-se uma discussão teórica sobre a perspectiva processual

da avaliação da aprendizagem. Na sequência relata-se a análise da pesquisa documental,

especificamente da proposta de avaliação orientada pelo Pró-Letramento. Na última

sessão do texto, serão expostos os resultados da pesquisa empírica, que revela as

perspectivas teóricas e práticas de avaliação das professoras após cursarem o programa

de formação continuada. Por último, são tecidas considerações finais apontando a

relevância da pesquisa para a compreensão de como os cursos de formação continuada

têm atendido ou não às incertezas dos professores que necessitam entender o que avaliar,

pra que avaliar e como avaliar crianças que precisam se apropriar do sistema de escrita

alfabético.

AVALIAÇÃO PROCESSUAL: COMPROMISSO COM A APRENDIZAGEM

O ato de avaliar na escola ainda evidencia marcas do positivismo que tem como

principal objetivo classificar e certificar os alunos do seu sucesso ou fracasso na

aprendizagem. Essa perspectiva desresponsabiliza o educador do seu papel de mediador

da aprendizagem e atribui ao aluno a responsabilidade em aprender como se o ensino

ocorresse isolado desse processo. Isso esvazia o verdadeiro sentido da avaliação que é

redimensionar as práticas de ensino para o avanço da aprendizagem de todos os alunos.

Mas avaliar ainda continua sendo um grande desafio para os professores que

desejam construir uma cultura avaliativa para o sucesso escolar, que democratize o

conhecimento socialmente valorizado e priorize a aprendizagem significativa dos alunos.

Para Esteban (2002), o grande desafio é transformar as práticas excludentes da avaliação

certificativa que se pauta na relação de causa/efeito, e necessita de um conceito ou nota

para representar os processos de ensinar e aprender, em uma prática investigativa, que

valoriza a dúvida e considera a aprendizagem como uma atividade processual que ocorre

de forma individual e na interação entre os sujeitos. Essa perspectiva se classifica como

uma avaliação processual, em que a autora associa a ideia de co-evolução inspirada no

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paradigma complexo da realidade, de diversidade, de respeito à heterogeneidade e a

quebra de uma visão linear de conhecimento e de aprendizagem.

A idéia de co-evolução desenha um novo cenário para a sala de aula e formula

uma nova possibilidade para a prática de avaliação numa perspectiva de

investigação do processo ensino/aprendizagem, torna mais clara a

possibilidade de abandonar os parâmetros e objetivos pré-definidos sem perder

sua função, mas redefinindo sua esfera de ação. O processo de co-evolução

borra os pontos fixos de partida e de chegada, mas ressalta a necessidade de

configuração de esquemas mais potentes de apreensão da dinâmica que se

mescla à relação ensino/aprendizagem. A avaliação, como prática de interrogar

e interrogar-se, pode ser um aspecto significativo do processo. (ESTEBAN,

2002, p. 179)

Dentro desta perspectiva, a avaliação rompe as barreiras entre os professores e

alunos e entre os conhecimentos presentes no contexto escolar, assumindo um

compromisso com a formação destes sujeitos, com o conhecimento significativo e com a

superação das dificuldades. O professor utiliza a avaliação para investigar a sua própria

prática e entende que está em constante fase de aperfeiçoamento, à medida que “[...]

arriscam novas possibilidades, delineiam novos percursos, esboçam novas análises de

antigas questões e se sentem estimulados pelos desafios diários implícitos no ser

professor/a” (ESTEBAN, 2008, p. 21).

A avaliação nessa compreensão tem o caráter essencialmente qualitativo por se

deter a um processo de reflexão sobre e para a ação que contribui para que o professor

atinja níveis significativos de interpretação das demandas e necessidades de

aprendizagem dos seus alunos. Luckesi (1995) distingue juízo de existência, de juízo de

qualidade que permeia a prática de avaliação. O primeiro compreende o “aspecto

substantivo da realidade” que identifica o que é o objeto. O juízo de qualidade é atribuído

por critérios estabelecidos coletivamente em torno das aprendizagens para garantia da

formação dos sujeitos.

No juízo de qualidade, a avaliação procura responder o que o sujeito avaliado

aprendeu ou deixou de aprender, como aprendeu e a importância do que conseguiu

aprender. Ainda complementando esta ideia, Luckesi (1995) afirma à necessidade de se

tomar decisões a partir do juízo de qualidade atribuído a avaliação no que se refere à

melhoria da prática pedagógica, à retomada do trabalho junto ao aluno (caso não ocorra

aprendizagem) ou a continuidade à prática em andamento, caso esteja sendo satisfatória.

Assim, a avaliação é uma interpretação das atitudes ou comportamentos de quem é

avaliado e de quem avalia, que não obedece a uma lógica puramente objetiva, mas sim, à

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lógica dos contextos, das necessidades dos sujeitos e dos valores assumidos por eles

(HADJI, 2001).

Neste estudo, posiciona-se a favor da avaliação processual que inter-relaciona

a avaliação diagnóstica e formativa em favor dos processos de formação individualizados

que garante amplos patamares de aprendizagem. De acordo com Esteban (2002) essa

relação coloca o diálogo como elemento central da prática avaliativa e o reconhecimento

da heterogeneidade (de vozes, pontos de vista, de conhecimentos) no processo de

aprendizagem, quebrando a objetividade e a homogeneidade propostas pela avaliação

tradicional que excluía muitos alunos do acesso ao conhecimento.

O PRÓ-LETRAMENTO E A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM

O Pró-Letramento propõe para formação dos professores no curso Alfabetização

e Linguagem (BRASIL, 2006), o fascículo 2 destinado à avaliação da aprendizagem,

enfatizando sua ação reguladora e orientadora, destacando duas de suas funções:

diagnóstica e do monitoramento. A função diagnóstica tem como objetivo conhecer as

aprendizagens prévias das crianças, e a identificação dos seus progressos, dificuldades e

descompassos em relação às metas desejadas. A função de monitoramento visa

acompanhar e intervir na aprendizagem da criança, em seu processo de alfabetização e

reorientar o ensino, corrigindo ações inadequadas e resgatando a oportunidade de

aprender dos alunos (BRASIL, 2006).

Para cumprir sua função diagnóstica é orientado o registro das informações por

meio dos seguintes instrumentos: Observação e registro ao longo do processo de

aprendizagem, provas operatórias envolvendo os conhecimentos que estão sendo

processados pelos alunos ao longo do seu desenvolvimento e de suas aprendizagens; auto-

avaliação para que o aluno possa tomar consciência de suas capacidades e dificuldades,

de modo a reestruturar estratégias, atitudes e formas de estudo; e portfólio para arquivar

o registro das aprendizagens selecionadas pelos próprios alunos (BRASIL, 2006).

Percebe-se que a proposta de avaliação está centralizada no acompanhamento

das capacidades relacionadas à alfabetização, pois nos anexos do fascículo aparece, a

título de exemplo, uma matriz de referência da avaliação diagnóstica que discrimina

conhecimentos e competências a serem avaliadas com a finalidade de orientar estratégias

ou questões de avaliação. A matriz abrange os fenômenos de alfabetização e letramento

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e leva em conta três eixos de conhecimentos discutidos no fascículo 1. São eles: aquisição

do sistema de escrita, leitura e produção de texto.

As ações avaliativas propostas pelo curso de formação são direcionadas ao

acompanhamento das capacidades (conhecimentos, procedimentos e atitudes) e dos

conteúdos curriculares relacionados aos anos iniciais do Ensino Fundamental. Focaliza

os processos de alfabetização e letramento, levando em conta as dimensões afetivas,

motoras, cognitivas, sócio-afetivas, éticas e estéticas. Sugere-se que o registro do

acompanhamento do desempenho das capacidades avaliadas deve ser feito em fichas

individuais.

As orientações desse instrumento abrangem três níveis de desempenho das

capacidades avaliadas: Nível 1: capacidades ainda não desenvolvidas, Nível 2:

capacidades em desenvolvimento (domínio parcial), Nível 3: capacidades já

desenvolvidas pelos alunos (BRASIL, Fasc. 2, 2006). Tal registro não deve se fixar

somente nestes três níveis, pois deve haver espaço na ficha para o professor fazer

comentários descritivos ou qualitativos sobre o desempenho dos alunos.

Como fundamentação teórica da proposta de avaliação os autores do fascículo

seguem a abordagem sócio-interacionista de Vigotsky (2008) por incorporar o discurso

pedagógico da zona de desenvolvimento proximal, ao caracterizar o Nível 1 com as

capacidades ainda não desenvolvidas como sendo os conhecimentos que ainda não se

articulam com os conhecimentos que os alunos dispõem. Os conhecimentos do Nível 2,

são aqueles em fase de elaboração e que poderão se desenvolver no futuro mediante as

intervenções de outros mais experientes, ou seja, são os conhecimentos que estão na zona

do desenvolvimento proximal. Os conhecimentos do Nível 3 são conhecimentos que se

encontram consolidados na zona de desenvolvimento real, ou seja, aqueles que o aluno já

apresenta total domínio (BRASIL, 2006).

Diante deste aporte teórico a avaliação ganha o sentido de acompanhar as

distâncias entre os processos reais (o que o aluno já sabe) e os processos em elaboração

que varia de um aluno para outro, e, portanto, interpretando suas trajetórias individuais

de elaboração do conhecimento. A partir do diagnóstico dos níveis de aprendizagem dos

alunos, o professor irá traçar estratégias interventivas que os façam avançar em novas e

mais elaboradas aprendizagens.

Além da função diagnóstica, é orientada a função de monitoramento que visa

criar estratégias de ação e de intervenção da escola para atender as crianças que se

encontram em grande atraso na aprendizagem das capacidades relativas à alfabetização,

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como: reagrupamentos de alunos na mesma classe em horários específicos, em dias ou

horários previamente combinados, ou em tempo integral para atender as necessidades

específicas dos alunos. O objetivo é diagnosticar e monitorar com atenção o processo de

aprendizagem da leitura e escrita por parte da criança, que é defendida como uma

responsabilidade de todos que constituem a escola (BRASIL, 2006). O monitoramento se

assemelha a função formativa da avaliação é compreendida por Zabala (1998, p. 200)

como:

Aquela que tem como propósito a modificação e a melhoria contínua do aluno

que se avalia; quer dizer, que entende que a finalidade da avaliação é ser um

instrumento educativo que informa e faz uma valoração do processo de

aprendizagem seguido pelo aluno, com o objetivo de lhe oportunizar, em todo

momento, as propostas educacionais mais adequadas.

Considera-se que a proposta de avaliação orientada aos professores por meio do

programa Pró-Letramento é processual por apresentar uma perspectiva que focaliza a

avaliação, tanto a evolução dos alunos em seus processos de aprendizagens individuais e

grupais. Além disso, o processo de ensino, as metas de planejamento, os programas e

projetos estabelecidos pela escola, enfatizam que todos os instrumentos se coloquem a

serviço da alfabetização de todas as crianças, quebrando as barreiras que impedem a

aprendizagem.

O PRÓ-LETRAMENTO E AVALIAÇÃO: REPERCUSSÕES NAS PRÁTICAS DE

PROFESORAS ALFABETIZADORAS

A construção de uma prática de avaliação capaz de dialogar com a realidade

complexa, envolve apreensão da multiplicidade de conhecimentos, as particularidades

dos sujeitos, a dinâmica individual e coletiva, a diversidade de lógicas e valores, e se

concretiza em uma tarefa difícil que exige o comprometimento do professor e a

aprendizagem dos alunos. O Pró-Letramento como ficou exposto anteriormente,

apresenta para a formação dos professores, uma proposta de avaliação processual que se

institui pelas formas de avaliação diagnóstica e formativa. Ao analisar as repercussões

desta formação para as práticas de avaliação das professoras pesquisadas que atuam em

turmas de 1º e 2º ano do Ensino Fundamental, verifica-se que desenvolvem uma prática

muito arraigada nos métodos tradicionais, por centrar mais nos meios de avaliar do que

nos processos de aprendizagem, como se observa na sequência discursiva abaixo:

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Safira: Avalio o aluno continuamente. Todos os dias eu avalio os alunos

através de leituras, produção de texto, os ditados silábicos, leitura de rótulos,

nas ortografias.

Esmeralda: Eu avalio através da participação, observando as atividades, o

desenvolvimento da escrita e da leitura. Quando eles não estão desenvolvendo

aquele conteúdo, eu refaço até consegui que eles compreendam, pois meu

objetivo, é que eles leiam e escrevam.

Ametista: Eu sempre tô pegando leitura na sala de aula, quando não dá tempo

pegar da turma toda, eu fico pegando dos que eu vejo que tem mais dificuldade

na leitura pra que eu possa acompanhar e saber se eles estão aprendendo. [...]

Eu tô com esses alunos mais fracos, eu tô acompanhando, to pegando a leitura

pra vê como eles estão.

Topázio: Eu avalio meu aluno através de leitura de textos curtos, participação

nas aulas, a organização dos alunos na sala de aula, trabalho muito com

ditado de palavras, o ditado visual, mostro desenho, e peço pra eles

escreverem palavras, e através dessas atividades eu percebo se eles estão se

saindo bem ou não.

Avaliar continuamente para as professoras é observar o desempenho dos alunos

nas atividades e selecionar quem atende aos comandos das atividades ou não.

Compreende-se que é através das estratégias didáticas que o professor terá condições de

perceber as possiblidades de aprendizagem dos alunos. Mas os discursos da maioria das

nossas colaboradoras revelam que a avaliação se encerra no diagnóstico que os meios

possibilitam, havendo a intenção de intervir e replanejar a prática docente somente por

parte da professora Esmeralda quando diz que refaz as atividades até as crianças

aprenderem, dando a entender que se preocupa com o processo de aprendizagem

individual dos alunos.

O registro das observações das aprendizagens que é orientado no fascículo 2 da

formação, não aparece nos discursos das professoras, nem nas observações realizadas de

suas práticas (DIÁRIO DE CAMPO, 2010). A ausência desse procedimento avaliativo

impossibilita o registro de informações que favoreçam o redimensionamento de novas

estratégias didáticas. Para as professoras, os instrumentos de avaliação são os meios

didáticos como leituras, ditados e produções de textos.

Esses meios têm funcionalidade no processo de avaliação, se o professor definir

suas intenções sob o desenvolvimento de determinados conhecimentos por parte do aluno,

devendo ser observado e registrado os avanços, dificuldades e necessidades que

apresentar. De acordo com Zabala (1998, p. 209) “o meio mais adequado para nos

informarmos do processo de aprendizagem e do grau de desenvolvimento e competência

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que os meninos e meninas alcançam consiste na observação sistemática de cada um deles

na realização das diferentes atividades”.

A postura de Ametista evidencia a concepção classificatória da avaliação ao

expor os rótulos fracos e fortes, e ao mesmo tempo por acreditar que os alunos repetindo

as leituras, sem refletir como o sistema de escrita se estrutura, eles irão aprender a ler.

Para Esteban (2002, p. 165) “A avaliação como um processo de classificação está presa

à homogeneidade”, por se determinar que todos os alunos aprendem da mesma forma e

devem responder de um único jeito. Por outro lado, se as professoras compreendessem a

avaliação como uma prática de investigação apresentariam posturas que consideravam a

multiplicidade dos processos de elaboração individual em que emitem respostas

heterogêneas e em constante construção e reconstrução.

As professoras mesmo avaliando as crianças sem sistematizar as informações

para lançar mão de novas intervenções, procuram desenvolver a função diagnóstica da

avaliação, só que de uma maneira distinta da que o Programa de formação propõe. Este

preza por um diagnóstico das aprendizagens desenvolvidas, em desenvolvimento ou

ainda não desenvolvidas que permitam a intervenção direcionada ao nível de

aprendizagem das capacidades em que as crianças se encontram. As professoras Safira,

Ametista e Topázio se conformam com o diagnóstico dos conhecimentos consolidados

pelas crianças, desconsiderando os saberes em elaboração que são destacados pelo

programa de formação continuada, destacados como a etapa mais importante da

construção do conhecimento.

Durante a observação da prática pedagógica da professora Topázio, percebe-se

que ela desconsidera os conhecimentos que se encontram na zona de desenvolvimento

proximal (VYGOTSKY, 2008). Ao propor um ditado de frases isoladas para a turma, as

crianças perguntam constantemente como se escreve as palavras, e a professora responde,

mas quando observa que a criança não escreve as palavras convencionalmente, não

possibilita auto-reflexão da escrita, apenas fornece a resposta convencional para que faça

as devidas correções.

Ao ditar a frase: “_ A casa é de Maria”. Uma criança perguntou: “_Tia, casa

é /c/a/z/a”. A professora responde: “_Preste atenção: é /c/a/s/a/, casa”. A

professora ao concluir o ditado das frases, as escreve no quadro e pede que as

crianças observem se acertaram, em caso negativo, a professora pede que

corrijam, trocando pela escrita correta que ela grafa no quadro, sem que as

mesmas compreendam o porquê das palavras serem escritas como são

(DIÁRIO DE CAMPO, 8ª Observação, 07/06/2010).

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Assim, a professora Topázio impõe a todo o momento, a leitura e a escrita

convencional das palavras não dando oportunidade para que as crianças pensem sobre o

sistema de escrita alfabético, demonstrando mais uma vez que acredita que elas aprendem

memorizando para reproduzir. A professora parece esquecer que para aprender as

capacidades envolvidas na aprendizagem da leitura e da escrita, é necessário um processo

de reflexão e construção de conceitos que seguem etapas sucessivas, e que ocorre dentro

de uma lógica individual do pensamento. Esse processo precisa ser mediado por um

adulto mais experiente que deve criar situações de aprendizagem para que a criança possa

significar as atividades e se apropriar do sistema de escrita alfabético. Diante disso, a

professora demonstra que avaliar é apenas julgar se a criança apresenta respostas

previamente determinadas pelos conteúdos que ministra.

A postura de Topázio revela que a criança não tem espaço para errar e, sim, para

acertar, o que funciona como mais um empecilho ao avanço do aprendizado. As crianças

não são estimuladas a realizar com autonomia suas próprias tentativas de escritas, porque

muitas vezes o papel que a professora exerce é de fiscalizadora de erros e acertos e não

de possibilitadora de novas elaborações. Concorda-se com Fontana e Cruz (1997, p. 218)

quando dizem que: “os erros indicam a um só tempo o que já não precisamos trabalhar

com as crianças, porque já é do domínio delas, e o que ainda exige nossa intervenção, por

este em fase de elaboração”.

As análises sinalizam que as professoras priorizam a avaliação da aprendizagem

dos alunos em seu objetivo maior que é alfabetizá-los, mas centram-se nos meios e não

nos processos individuais de aprendizagem do sistema de escrita. Desconsideram o valor

conceitual dos erros que os alunos cometem e privilegiam respostas homogêneas de

condutas que se constroem em contextos e relações diversas, o que causa confrontos e

desajustes na aprendizagem. Desta forma, a avaliação ao invés de promover pode causar

o fracasso escolar das crianças que tentam e de outras que insistem em aprender a ler e

escrever, mas que nem sempre são compreendidas em seus processos de elaboração e

apropriação do sistema de escrita.

Ao que parece, as professoras não se apropriaram do conceito de zona de

desenvolvimento proximal defendido pelo programa de formação Pró-Letramento,

referendado nos estudos de Vygostky (2008). Seus discursos e práticas revelam uma

postura que corresponde a uma avaliação classificatória e autoritária em que o aluno que

não se enquadra nos meios de ensino, não correspondendo aos procedimentos pré-

estabelecidos pela escola. Para Esteban (2002, p. 143)

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O conceito de zona de desenvolvimento proximal é uma ferramenta relevante

porque promove a incorporação da diversidade, mostra a importância da

heterogeneidade no processo de ensino/aprendizagem e se conecta à ideia da

avaliação como uma prática de inclusão, superando a idéia de classificação que

vem caracterizando a dinâmica atual.

As posturas e concepções das professoras frente à avaliação e os procedimentos

didáticos que fazem parte da organização do planejamento da ação docente, evidenciam

que a formação continuada precisa se desvincular da ideia de multiplicação de saberes e

ser considerada como momentos de aprendizagens docentes. A reconstrução de práticas

avaliativas inclusivas que compreenda a aprendizagem da leitura como um processo inter-

individual, exige mudança de concepção dos professores. Isso imprime a necessidade dos

sistemas de ensino promover cursos de formação continuada que reflitam no saber pensar-

fazer docente, e considere o professor também como um sujeito em constante

aprendizagem do seu trabalho pedagógico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Avaliar para compreender os processos de aprendizagens individuais dos alunos

e para o replanejamento das práticas docentes implica em romper com as concepções

tradicionais ainda inerentes ao fazer pedagógico dos professores. O rompimento de tais

concepções imprime a necessidade de instituir nos programas de formação continuada de

professores a perspectiva da avaliação processual que prioriza a interpretação das

necessidades e demandas de aprendizagens, considerando a heterogeneidade que os

alunos apresentam na apropriação dos saberes.

A proposta de avaliação orientada pelo Programa Pró-Letramento encaminha a

prática dos alfabetizadores para essa perspectiva de avaliação à medida que prioriza a

forma diagnóstica e de monitoramento (formativa). Nessa perspectiva, orienta estratégias

de acompanhamento dos conhecimentos, capacidades e atitudes construídas, e em

construção, bem como as que precisam de mediação do professor para o avanço da

aprendizagem. No entanto, a maioria das professoras pesquisadas apresentam práticas

centradas nos meios, ignorando os processos individuais de aprendizagem, demonstrando

o descompasso entre a proposta do curso de formação que participaram e a forma de

avaliar seus alunos.

Este trabalho possibilita uma reflexão para o cenário acadêmico e para os

sistemas de ensino no que diz respeito às políticas de formação continuada que vêm sendo

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Page 12: REPERCUSSÕES DO PRÓ-LETRAMENTO NAS PRÁTICAS DE … REPERCUSSÕES DO PRÓ... · O Pró-Letramento propõe para formação dos professores no curso Alfabetização e Linguagem (BRASIL,

promovidas aos professores. O estudo revela que para a formação continuada repercutir

nas concepções e práticas docentes precisa articular os conteúdos com as necessidades

formativas dos professores alfabetizadores, considerando-os como sujeitos em constante

processo de aprendizagem da atividade de ensino. A formação continuada para

alfabetizadores deve focalizar a reconstrução de práticas avaliativas inclusivas que

priorize os processos individuais de apropriação do sistema de escrita, e oriente o

professor na criação de estratégias interventivas que impulsione a aprendizagem e evite

o fracasso das crianças em processo de alfabetização.

NOTA ¹ Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/Séries iniciais do Ensino Fundamental

desenvolvido pelo Ministério da Educação, em parceria com universidades públicas das diversas regiões

do país, a partir de 2006. O programa envolve duas áreas de conhecimento: Alfabetização e Linguagem e

Matemática. Em nosso estudo, focalizamos apenas a área de Alfabetização e Linguagem, que objetiva o

aperfeiçoamento do ensino da leitura e da escrita.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Programa de Formação Continuada de

Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental: Alfabetização e

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busca de novos sentidos. 5ª Ed. Petrópolis/RJ: DP et alii, 2008.

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