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1 (Re)Pensando Critérios para uma Tipologia Simplificada e Pertinente ao Caso das Moedas Sociais dos Bancos Comunitários Brasileiros Autoria: Ariádne Scalfoni Rigo, Genauto Carvalho de França Filho Resumo Este trabalho repensa as moedas sociais criadas pelos Bancos Comunitários de Desenvolvimento no Brasil diante de outras experiências de moedas sociais no mundo. Para isso, identificamos alguns usos de moedas sociais em outros países; apresentamos as experiências de moedas sociais brasileiras; analisamos as principais propostas de tipologias de moedas sociais e discutimos critérios para compreender o conjunto analisado. A discussões apontam para a centralidade da noção de território (Onde a moeda circula?) para diferenciar dois grandes conjuntos: a) um com foco no papel de meio e facilitador de trocas; e b) outro vinculado diretamente a processos de desenvolvimento de territórios.

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(Re)Pensando Critérios para uma Tipologia Simplificada e Pertinente ao Caso das Moedas Sociais dos Bancos Comunitários Brasileiros

Autoria: Ariádne Scalfoni Rigo, Genauto Carvalho de França Filho

Resumo Este trabalho repensa as moedas sociais criadas pelos Bancos Comunitários de Desenvolvimento no Brasil diante de outras experiências de moedas sociais no mundo. Para isso, identificamos alguns usos de moedas sociais em outros países; apresentamos as experiências de moedas sociais brasileiras; analisamos as principais propostas de tipologias de moedas sociais e discutimos critérios para compreender o conjunto analisado. A discussões apontam para a centralidade da noção de território (Onde a moeda circula?) para diferenciar dois grandes conjuntos: a) um com foco no papel de meio e facilitador de trocas; e b) outro vinculado diretamente a processos de desenvolvimento de territórios.

 

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1 Introdução Os diferentes contextos e usos de moedas sociais e complementares no cenário nacional e

internacional têm estimulado estudiosos na busca da compreensão não apenas das especificidades de cada experiência mas também das características concernentes ao conjunto. Desde as primeiras experiências do uso de moedas complementares, nos últimos 30 anos, diferentes levantamentos e tentativas de elaboração de tipologias desse universo podem ser observados. Economistas, antropólogos, sociólogos e estudiosos no campo da economia social e solidária de modo geral se debruçam sobre este intenso movimento, buscando identificar semelhanças e diferenças no que diz repeito aos objetivos, atores envolvidos, esquemas (design do circuito) e modos de gestão destes circuitos monetários alternativos (SOARES, 2006; MENEZES, 2007; LIETAER e KENNEDY, 2010; FREIRE, 2009 e 2011; SCHROEDER, MYIAZAKI e FARE, 2011; MARTIGNONI, 2012). No entanto, Martignoni (2012) alerta que ainda existem poucos estudos que se afastam dos critérios tradicionais da economia. A nosso ver, a identificação de critérios de classificação mais próprios das experiências de uso de moedas sociais e de outras áreas de conhecimento possui maior potencial de compreensão do conjunto das experiências. Na antropologia e sociologia econômica, por exemplo, encontramos uma noção de economia que amplia o entendimento dos usos da moeda. É este o caminho que seguiremos aqui ao nos apropriarmos das tipologias de base polanyana, encontradas em Blanc (1998, 2011 e 2013).

As tipologias sobre moedas complementares mais recentes e comentadas são encontradas em Blanc (1998, 2011 e 2013), Lietaer e Kennedy (2010) e Martignoni (2012). Tanto Blanc (1998) quanto Lietaer e Kennedy (2010) constroem uma tipologia dos sistemas monetários em geral, no qual as moedas nacionais oficiais e as divisas estrangeiras, por exemplo, representam boa parte deles. A amplitude e a consideração de formas híbridas em vários sistemas de moedas na classificação de Lietaer e Kennedy (2010) oferecem uma visão ampla dos inúmeros meios de pagamento e de troca, mas dificultam a percepção do foco de certas experiências e, portanto, sua diferenciação em relação a outros usos (MARTIGNONI, 2012). Blanc (1998, 2011 e 2013) tem se detido na busca por uma tipologia dos sistemas monetários com intuito direto de compreender a diversidade de projetos e experiências de usos de moedas complementares e sociais no mundo. As tipologias de Blanc (2011 e 2013) nos interessam aqui principalmente porque nos permitem refletir sobre o “lugar” das moedas sociais dos BCDs nos seus quadros de análises e os aspectos que as distinguem e as aproximam das experiências internacionais. Sendo assim, foca-se aqui as tipologias deste autor para (re)pensar nossas moedas sociais no conjunto das experiências.

Para tanto, partimos da questão: quais as possíveis formas de usos de moedas sociais? A partir daí, traçamos um caminho que acreditamos permitir refletir sobre o que diferencia as moedas sociais usadas no Brasil das demais experiencias de usos de moedas sociais que vem sendo criadas em vários países do mundo. Especificamente, objetivamos, de início a) identificar, na literatura e em fontes secundárias de informações, diferentes experiências da criação e uso de moedas sociais em outros países; e b) apresentar as experiências de uso de moedas sociais no Brasil; c) analisar as principais propostas de tipologias de moedas sociais de base polanyana e discutir sua pertinência para compreender as moedas sociais dos BCDs no Brasil; e d) (re)pensar as moedas sociais criadas pelos Bancos Comunitários de Desenvolvimento no Brasil diante de outras experiências de usos de moedas sociais no mundo. Foi perseguindo estes objetivos específicos que estruturamos a sequência deste texto.

Este artigo é parte de um trabalho mais amplo, no âmbito de uma tese de doutorado que mapeia e analisa as moedas sociais no Brasil e que contou com procedimentos metodológicos diversificados (etnografia, survey e análise de redes). Neste trabalho, nos centramos numa discussão que pretendeu compreender melhor o universo pesquisado em comparação com outras

 

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experiências no intuito de identificarmos especificidades. Sendo assim, realizou-se um mapeamento com base, principalmente, em fontes secundárias, como publicações acadêmicas, sites, jornais e relatórios. Neste processo, o acesso ao relatório completo do I Encontro Internacional de Atores de Moedas Sociais e Complementares, realizado em Lyon, em fevereiro de 2011 (Faire Mouvement: synthèsis des débats, 2012) foi fundamental. No entanto, foi possível também obter fontes primárias para este mesmo mapeamento por meio da participação da segunda versão deste encontro em Haia na Holanda, em junho de 2013. Outra oportunidade encontrada foi conhecer pessoalmente algumas experiências internacionais do uso de moedas complementares, notadamente a Sol-Violette em Toulouse e o sistema SOL francês, além de algumas moedas locais na Espanha, reunidas em Sevilha, no encontro Monedas Locales, em maio de 2013. Ao final, elaborou-se um quadro-síntese que listou alguns dos principais exemplos de sistemas de moedas sociais no mundo. Este quadro e as discussões aqui apresentadas se baseiam em seis perguntas orientadoras: a) Onde a moeda foi criada?; b) Por que a moeda foi criada?; c) Por quem a moeda foi criada?; d) Para quem a moeda foi criada?; e) Como a moeda funciona?; f) Que atores fazem a gestão da moeda?. Estas questões, a nosso ver, são significativas para a reflexão da diversidade do conjunto.

No entanto, importa indicar que nossa tentativa de discutir os aspectos próprios de um conjunto de moedas sociais já nasce com algumas limitações. Primeiro, a de que consideraremos apenas as experiências mais tradicionais e conhecidas. Mesmo porque concordamos com Martignoni (2012) que é quase impossível ter uma visão completa do campo, no qual mais de 5 mil experiências já foram estabelecidas. A segunda limitação se refere ao método, pois diferentemente de Martignoni (2012), que conheceu mais profundamente cada uma das 18 experiências que estudou (embora apenas em países de língua alemã), nossa busca se restringiu, em sua maior parte, a descrições, estudos e pesquisas disponíveis em fontes secundárias de dados.

Antes de iniciarmos, importa esclarecer as denominações atualmente usadas para indicar o uso de moedas ou circulantes locais restritas a um grupo, um bairro, uma cidade ou região. A denominação de caráter mais geral é “moeda complementar” (ou moeda paralela), usada em vários países do mundo. No entanto, esta denominação tipicamente diz respeito a um conjunto diversificado que inclui moedas com fins comerciais lucrativos, como os bônus de empresas para fidelização de clientes, e mesmo as divisas estrangeiras existentes em um país (BLANC, 1998). Na Europa, recentemente o termo “social” (ou “comunitário”) tem sido adicionado – moeda complementar e social ou moedas complementares comunitárias (ou locais). A utilização destes termos acaba restringindo esse universo e desconsidera as reservas estrangeiras e os tipos de moedas com fins comerciais e privados. Atualmente, existe uma tendência em adotar a denominação “moeda cidadã”, principalmente na França, no intuito de melhor especificar um conjunto de moedas com fins sociais, ecológicos, culturais associados à política cidadã e à ideia de apropriação da moeda por “pessoas comuns”. Ainda, encontramos o termo “moedas regionais”, principalmente no contexto alemão. Na Espanha e em Portugal, por exemplo, o termo “moeda social” começa a ser usado por influência dos trueques argentinos e das moedas dos bancos comunitários brasileiros (BCD). No Brasil, tanto as moedas de clubes de troca quando as de BCDs possuem um forte intuito de transformação social e um caráter de base popular na sua criação e uso. A denominação “moeda social” (ou “moeda social circulante local”) marca, então, a finalidade social do seu uso (mesmo que por via da promoção e do melhoramento econômico) em territórios empobrecidos ou em grupos que buscam alternativas para trocar, produzir ou consumir.

 

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2 Apresentando as principais experiências de usos de moedas sociais no mundo Os Local Exchange Trading Systems (LETSs) são talvez as experiências de moedas locais

mais conhecidas. O primeiro LETS foi criado em 1983, em uma vila do Canadá, por conta de uma crise econômica gerada pela transferência de uma base aérea para outra região (BÚRIGO, 2002; MENEZES, 2007). Neste sistema, pessoas de uma comunidade, bairro ou mesmo região criam uma rede de trocas de serviços e produtos utilizando-se ou não de moeda própria. O mesmo sistema pode funcionar com moeda própria impressa, trocada diretamente entre os membros, ou por meio de moeda virtual, sob o controle e registro dos créditos e débitos. De acordo com Lietaer (2001 apud MENEZES, 2007), mais de 2.500 LETSs estavam espalhados pelo mundo no início do século XXI, sobretudo na Inglaterra e no Canadá. Os Time Dollars, por exemplo, se diferenciam dos LETSs por utilizarem a moeda “tempo”. Este sistema surgiu em 1980, nos Estados Unidos, no intuito de amenizar a falta de certos serviços provocada pelos cortes dos gastos do governo com o bem-estar social (MENEZES, 2007; LIETAER e KENNEDY, 2010). Neste sistema, a moeda é indexada em horas de serviço e um banco de horas controla os débitos e créditos dos participantes independentemente do tipo de serviço prestado.

As experiências similares aos LETSs canadenses são denominadas SELs (Systèmes d’Échange Local) na França. A principal diferença entre os LETSs e os SELs é que nestes últimos se usam, majoritariamente, moedas virtuais (BLANC, 1998; MENEZES, 2007; LIETAER e KENNEDY, 2010). Os primeiros SELs foram criados a partir de 1994, e hoje estão espalhados em várias cidades francesas. Cada SEL cria sua moeda e seu sistema de trocas. O objetivo destes sistemas é semelhante aos clubes de trocas brasileiros e argentinos: estimular a troca de bens e serviços entre as pessoas. Atualmente, na região parisiense, existem mais de 40 SELs e somam cerca de 465 em toda a França. Na avaliação de Rocard (2010), mais do que a provisão de serviços, que podem ser inacessíveis para alguns membros de um sistema desse tipo, tais “bancos de horas” possibilitam a circulação de conhecimento dentre os quais muitos podem ser revalorizados.

Também na França, o sistema SOL tem se destacado. O SOL é uma moeda complementar, comum a vários territórios franceses, e possui diversas finalidades, pois possibilita não apenas a compra de bens e serviços nas empresas participantes, mas também o intercâmbio de tempo e de conhecimento entre os membros e a valorização e o estímulo de práticas ecológicas, sociais e solidárias. Dentro desse movimento, a moeda Sol-Violette tem se destacado e redirecionado o sistema SOL para a criação de moedas sociais localizadas e promoção da articulação entre as diferentes experiências. Criada em Toulouse em 20110, o intuito da Sol-Violette é estimular os atores, indivíduos e organizações a consumirem localmente, respeitando a natureza e os seres humanos (Faire Mouvement, 2011). A referência à “apropriação cidadã da moeda” é notória no processo de desenvolvimento e de gestão da moeda em Toulouse. Como atesta a atual coordenadora do projeto, “primeiro vem a política cidadã em torno da moeda, depois a questão econômica” (Informação verbal, Entrevista, março de 2012).

Nos países germanófonos (Alemanha, Áustria e Suíça), uma rede de moedas regionais denominada de Movimento Régio foi criada em 2003, no intuito de estimular a troca de experiências entre os diferentes sistemas “régios”. Em 2008, esta rede contava com mais de 63 sistemas de moedas regionais, sendo que 28 estavam em pleno funcionamento e 35 em fase de lançamento e constituição (LIETAER e KENNEDY, 2010). Um dos aspectos importantes das observações e pesquisas sobre as moedas complementares é que elas permitem refletir acerca de uma suposta “exclusividade monetária nacional” das economias contemporâneas. De acordo com Blanc (1998, p. 87), “dentro do quadro dos sistemas monetários contemporâneos, as moedas paralelas são suscetíveis de estarem em todo lugar e serem empregadas por todos”. Elas, então,

 

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convidam à revisão do próprio conceito de moeda. Além disso, muitas vezes, as moedas complementares e sociais são endossadas pelos governos (BLANC, 1998; COLLIAC, 2005). Por exemplo, as moedas complementares das províncias na Argentina foram amplamente aceitas nos anos 2000, inclusive pelo Estado Federal. Enfim, há incontáveis exemplos sobre moedas alternativas, cada qual com suas especificidades e surgidas em contextos específicos em resposta a situações também específicas. Esse conjunto amplo de moedas tem se manifestado em diversos países e sob as mais variadas formas, inclusive em países que não passaram por crise financeira ou por algum tipo de recessão econômica (BLANC, 1998; LIETAER e KENNEDY, 2010).

Os clubes de trocas são grupos de uma comunidade que se reúnem para promoverem as trocas de produtos, serviços e saberes entre seus membros. Cada clube se organiza e constrói uma metodologia adequada a sua realidade, definindo, por exemplo, os períodos de reuniões, formas e os instrumentos para mediar as trocas. Sendo assim, constrói-se um “mercado de trocas que conta com a figura dos ‘prossumidores’, participantes que são ao mesmo tempo produtores e consumidores. [...]. O sistema favorece ainda a cultura de consumo consciente e fortalece as relações comunitárias” (BRASIL, 2013). No intuito de facilitar as trocas, alguns clubes criam moedas sociais que se tornam o meio de troca como alternativa quando não ocorrem trocas diretas de produtos ou serviços.

A origem destas práticas está na Argentina em 1995 quando um grupo de 23 pessoas, praticamente todas desempregadas, se reuniu em uma garagem na Província de Bernal no intuito de trocar bens e serviços entre si (CARNEIRO e BEZ, 2011). Com instrumentos de gestão e controle bem simples inicialmente, a ideia começou a se difundir rapidamente, aumentando o número de sócios e o número de clubes de troca pelo país. Acabou se tornando uma alternativa, em meio à crise dos anos 2000, e deu origem a uma economia paralela. Para termos uma ideia do contexto argentino na época, antes dos anos 2000, eram 85 clubes; em 2000, alcançaram a marca de 400. Em 2001 e 2002, auge da crise, eram 1.800 clubes de trocas com 800 mil membros e 5.000 clubes com 2 milhões de membros, respectivamente. Mas as várias fraudes, como as relativas aos problemas contábeis e de falsificações de moedas, acabaram por provocar sua descredibilidade e o distanciamento da ideologia solidária que deu origem a eles no país. Atualmente, existem aproximadamente 20 clubes com 4.000 membros, os quais possuem um caráter local e buscam uma integração em rede (Faire Mouvement, 2011).

2.1 As experiências brasileiras e as especificidades das moedas sociais de bancos comunitários

Os clubes de troca brasileiros, da forma como se apresentam hoje, foram diretamente inspirados nos clubes de troca argentinos e canadenses. São também vistos como alternativas encontradas pelos grupos para adquirirem e fornecerem bens e serviços em contextos econômicos difíceis. No Brasil, o primeiro clube de troca foi inaugurado em l998, em São Paulo, no município de Santo Amaro. Em 1999, surgiu a experiência no Rio de Janeiro, seguida por outras cidades brasileiras, como os clubes de troca da comunidade Ruben Berta, em Porto Alegre; o clube de Jardim Rubilene, em São Paulo; e o Grupo de Economia Popular e Solidária (Geps), em Vitória da Conquista, na Bahia (MENEZES e CROCCO, 2009). Em novembro de 2001, no bairro Sítio Cercado, em Curitiba, surgiu o primeiro clube de trocas da Rede Pinhão, diretamente influenciado pela experiência argentina. Em fevereiro de 2013, a rede Pinhão em Curitiba contava com 24 clubes (CEFURIA, 2013). A moeda utilizada na rede é chamada Pinhão, em homenagem ao fruto da araucária, árvore símbolo da região (CARNEIRO e BEZ, 2011). Em 2004, vários clubes de trocas se reuniram em Mendes, no interior do Estado do Rio de Janeiro, num encontro que contou com representantes de clubes dos estados das regiões Sul, Sudeste,

 

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Nordeste (Bahia), Centro-Oeste (Goiás), Norte (Pará) e do Distrito Federal. Contou também com participantes do México e da Argentina (BRASIL, 2013).

Já os BCDs, são relativamente recentes no país e têm se destacado pela difusão das experiências em vários estados brasileiros e pelo relativo apoio institucional e governamental que vêm recebendo. A maioria destes apoios governamentais são pontuais e de curto prazo, mas existem formas de apoio diretas e sistemáticas, como o financiamento da Senaes/MTE para a constituição da rede brasileiras de bancos comunitário e alguns casos em que legislações específicas normatizam a relação entre o poder público local e o banco comunitário. Em abril de 2012, existiam 78 BCDs no Brasil e muitos outros estavam em vias de se constituírem. Hoje, a rede brasileira de BCDs é composta por 103 experiências e definiu que a adoção de uma moeda social pelo BCD é um dos critérios determinantes para a sua filiação à rede. Sendo assim, o investimento do governo federal brasileiro, por meio da Senaes, na difusão dos BCDs é, consequentememente, um investimento na criação de novas moedas sociais.

As moedas sociais de BCDs são parte importante de um conjunto mais amplo de ações desses bancos comunitários (que juridicamente são, em sua maioria, associações comunitárias) que envolve a prestação de serviços bancários e financeiros, incluindo o acesso ao crédito, e uma série de ações na comunidade atreladas a um objetivo maior de desenvolvimento territorial. Nesse sentido, os BCDs são vistos como uma tecnologia social intimamente ligada às estratégias de gestão desse processo de desenvolvimento, tendo na comunidade seus principais protagonistas.

O processo de implementação das moedas sociais nos territórios exige capacidade e criatividade dos BCDs para enfrentar desafios. De modo geral, as atividades giram em torno de sensibilizar moradores e comerciantes locais para que usem e aceitem a moeda social como meio de pagamento. A Figura 1 procura mostrar de forma esquemática como ocorre o processo de circulação das moedas sociais a partir dos BCDs. Em resumo, os usuários aderem ao sistema na medida em que passam a receber empréstimos, parte do salário ou trocam diretamente Reais em moeda social no BCD. De posse das moedas, os moradores as utilizam nos comércios das comunidades que aderiram ao sistema (e são cadastrados pelo BCD). Uma vez que os comerciantes recebem as moedas, utilizam-nas para dar troco ou para comprar mercadorias dentro da comunidade. Ao final desse processo, estabelece-se a rede de produtores, comerciantes, prestadores de serviços e consumidores que usam a moeda social no seu dia a dia complementarmente ao Real.

Figura 1 – Representação do circuito básico da moeda social nos BCDs

 

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Fonte: (Re)elaborado a partir de França Filho, Rigo e Leal (2011).

Importa salientar, ainda, o papel relevante da moeda social na sua condição de tecnologia social apropriada pela comunidade: trata-se do seu potencial em reorganizar as economias locais. Tal reorganização consiste na utilização das “poupanças” dos moradores nas próprias atividades da comunidade. Ou seja, o consumo e a produção acabam por ser financiados por meio do uso da moeda social, gerando um ciclo de dinamização da economia local. O consumidor que, por motivos diversos, antes ia buscar seus bens e serviços fora da comunidade, é estimulado por uma relação de proximidade a realizar o seu consumo no comércio local. A ideia é que este processo possa potencializar o surgimento de novos postos de trabalho, bem como a criação de novos empreendimentos locais, notadamente familiares e Empreendimentos de Economia Solidária (EES). No entanto, há situações em que os comerciantes, ao receberem a moeda social num ato de consumo (de um tomador de crédito, por exemplo), não encontram possibilidades de abastecerem seu negócio com produtos de dentro da comunidade, encurtando, sobremaneira, o circuito da moeda social. Assim, o incentivo para a criação de novos empreendimentos deve ser constante, apontando também para a importância do estabelecimento de uma rede de empreendimentos. 3 Entendendo as moedas sociais dos bancos comunitários no conjunto de moedas sociais criadas no mundo

Em 1998, Blanc categorizou os modos e meios de circulação de moedas complementares (chamadas por ele de moedas paralelas porque se justapõem dentro das carteiras dos agentes, coexistindo e complementando a moeda nacional) apontando que eles se constituem um amplo conjunto de instrumentos monetários. Na sua pesquisa, de 1988 a 1996, foram identificados 465 exemplos de emprego de moedas complementares diferentes em 136 países. Nessa pesquisa, as manifestações de moedas complementares abarcavam desde instrumentos instituídos por governos até aqueles praticados de modo restrito a um grupo. Na sua discussão seguinte, Blanc (2011, p. 04) faz uma autocrítica dessa tipologia de 1998, ressaltando que: “Eu defini um conjunto de cinco esquemas coerentes de acordo com a compatibilidade das escolhas em relação a seus objetivos. Esta tentativa não levou a um critério rigoroso de definição para uma tipologia”.

Na tipologia de 2011, o autor se baseia na ideia de projeto (filosofia e propósitos gerais) e analisa o domínio de certos princípios dentro dos sistemas de moedas complementares. O autor sugere três tipos de projetos: territorial, comunitário e econômico. Além disso, enfatiza a importância de se diferenciar os implementadores (ou designers), ou seja, o responsável pela criação da moeda, tais como os governos perseguindo objetivos políticos, organizações privadas perseguindo lucro e organizações sem fins lucrativos ou grupos informais, perseguindo objetivos democráticos e participativos. Estas moedas relativas a espaços soberanos e a clientes de uma dada organização com fins comerciais fazem parte da tipologia, mas não são consideradas moedas sociais. O Quadro 1 resume a tipologia de Blanc (2011) para o que ele chama de Complementary Currencies :

as “CCs” [Complementary Currencies] são implementadas em sua maior parte pela sociedade civil, principalmente localmente e por segmentos de base [populares], principalmente de forma democrática, enfatizando a apropriação pelos cidadãos e redefinição do dinheiro em um processo participativo (BLANC, 2011, p. 6).

 

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Quadro 1 – Tipos ideais e esquemas de moedas complementares Natureza dos

projetos Espaço

considerado Propósito Princípio guia Denominação

(Inglês/Espanhol/Francês)

Moedas Complementares (CCs – Complementary Currencies)

Territorial

Espaço geopolítico (território politicamente definido)

Definir, proteger e fortalecer um território

Redistribuição ou controle político

Local currencies/Monedas locales/Monnaies locales

Comunitário

Espaço social (comunidades pré-existentes ou criadas ad hoc)

Definir, proteger e fortalecer uma comunidade

Reciprocidade Community currencies/Monedas sociales/Monnaies sociales

Econômico Espaço econômico (produção e troca)

Proteger, estimular ou orientar a economia

Mercado

Moedas complementares/ Monedas complementarias/ Monnaies complémentaires

Fonte: Adaptado de Blanc (2011, p. 7). No Quadro 1, identificam-se três tipos ideais de esquemas monetários para as moedas

complementares: moedas locais com foco em projetos territoriais; moedas comunitárias, que se traduzem por projetos comunitários; e moedas complementares, que se baseiam principalmente em projetos econômicos.

O primeiro tipo, de acordo com o autor, persegue primeiramente um propósito territorial, “objetivando afetar relações monetárias em um espaço geopoliticamente definido” (BLANC, 2011, p. 6). Este tipo ideal se desenvolve principalmente com o intuito de fortalecer um território. Eventualmente, essas formas de desenvolvimento de território são utilizadas por autoridades publicas locais na busca por formas de controle do dado território, o que, para o autor, acaba refletindo em um processo de redistribuição. Neste tipo ideal, as moedas podem ser fabricadas localmente, e os exemplos mais intimamente relacionados incluem as moedas das províncias argentinas que circularam entre 1984 e 2003.

No segundo tipo ideal, se destaca o objetivo comunitário. Nele, os espaços sociais são entendidos como conjunto de atores de uma comunidade existente ou gerada pelo esquema de uso da moeda (como uma rede), potencialmente independentes de dimensões territoriais. “Este segundo tipo enfatiza a construção de bem-estar, empoderamento, autonomia e trocas sociais” (BLANC, 2011, p. 6), tais como autoajuda e serviços ambientais para a comunidade. A reciprocidade é o principio norteador deste esquema monetário, implementado por organizações sem fins lucrativos e às vezes por grupos informais. Como exemplos típicos, o autor indica os esquemas de bancos de tempo.

O terceiro e último tipo ideal de esquemas de moedas complementares persegue, sobretudo, um propósito econômico. Nele, espaços econômicos são construídos e definidos por conjunto de atores para atividades econômicas de produção e de troca, majoritariamente regulado pelo princípio do mercado. “Contudo, isto não implica que elas sejam implementadas em um propósito lucrativo, desde que implementadas por organizações não lucrativas, as quais desenvolvem ações em direção ao considerado como sendo de interesse geral” (BLANC, 2011, p. 7). A ênfase é dada em influenciar conjuntos de atividades econômicas, objetivando a sua proteção por meio da restrição do uso local da moeda e do estabelecimento de regras específicas,

 

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por exemplo. As moedas desses sistemas podem ser fabricadas como moedas complementares como fazem a rede Regiogeld na Alemanha. Para o autor, a moeda do Banco Palmas também está nesta categoria, como um exemplo de moeda com um projeto econômico orientado para o mercado.

A noção de tipo ideal nesta tipologia de Blanc (2011) o permite dizer que, em cada um, sobressai um dos três princípios – redistribuição, reciprocidade e mercado –, estreitamente vinculados à concepção substantiva de economia polanyiana. Blanc (2011) marca com isso a possibilidade deles coexistirem mas, necessariamente, há dominância de um deles em um mesmo sistema de moeda social de uma dada realidade.

Apesar da flexibilidade que propõe, essa tipologia de Blanc (2011) nos oferece duas dificuldades para compreender as moedas sociais brasileiras no amplo universo das moedas complementares. A primeira destas dificuldades diz respeito à noção de território. Tanto nesta como na tipologia de Blanc (1998), a ideia de território está estreitamente relacionada a limites geopolíticos. No nosso exercício de compreender as moedas sociais dos BCDs nesse diversificado universo, a noção de território é relativamente mais ampliada e uma dimensão fundamental para a escolha, criação e desenvolvimento de experiências de moedas sociais no Brasil. Um pouco difusa é também a ideia de comunidade, que não necessariamente está ligada ao território na concepção de Blanc (2011). No nosso caso, as ideias de comunidade e de território remetem à noção de identidade e de pertencimento e, por isso, se aproximam.

Uma segunda dificuldade se relaciona ao objetivo do projeto que orienta a construção da tipologia. Se atentarmos para o objetivo ou projeto dos BCDs brasileiros, ou seja, “promover o desenvolvimento de territórios de baixa renda, por meio do fomento à criação de redes locais de produção e consumo, com base no apoio às iniciativas de economia solidária em seus diversos âmbitos” (MELO NETO e MAGALHÃES, 2009, p. 23), identificamos o desenvolvimento do território como objetivo central, e a economia e a comunidade (relações de reciprocidade e governança coletiva) como as principais vias para que o projeto se concretize. A moeda (e o microcrédito) é o principal instrumento utilizado pelo BCD neste processo, e que depende diretamente tanto das relações econômicas quando das sociais (comunitárias, de identidade, de confiança, entre outras).

Sendo assim, esta tipologia, deixa a indagação: as moedas sociais brasileiras vinculadas aos BCDs são projetos territoriais, moedas comunitárias ou projetos econômicos? Ao que parece, elas podem ser, simultaneamente, dos três tipos, e por isso a tipologia de Blanc (2011) não parece adequada ao caso. Além disso, a abordagem do autor parece enfatizar o mercado, sendo que a rede brasileira de BCDs tem, ao longo do seu processo de constituição, enfatizado o território e o comunitário.

Em 2013, Blanc reelabora sua discussão e propõe um quadro de análise ainda baseado nos tipos ideais weberianos, mas mais atrelado aos princípios da economia substantiva de Polanyi. A base para elaboração desta nova tipologia são os fundamentos da concepção de Polanyi sobre economia e moeda e a sua (re)interpretação destes fundamentos para compreender os sistemas monetários modernos. Sendo assim, dentro do quadro da economia substantiva, Polanyi (2011) identifica três grandes usos de “objetos quantificáveis”: o uso para o pagamento, o uso para padrão de valor e o uso como meio de troca (o uso como reserva de valor é introduzido de maneira e em sociedades específicas). Blanc (2013) marca a diferença polanyiana entre moedas de usos específicos (special purpose money) e moeda de uso geral (all purpose money). As primeiras, relativas às sociedades arcaicas e primitivas, são diferentes tipos de moedas usadas em situações específicas. Além disso, os usos eram instituídos de forma independente uns dos outros. As moedas de uso geral (ou moedas para todos os usos) são “exclusivas”, na concepção

 

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polanyiana, das sociedades modernas marcadas pela dominação do mercado. Nessas sociedades, o uso da moeda como meio de troca “não se limita mais como um dos usos, ele se estende aos três”; além disso, assume uma validade “dentro da totalidade as trocas, os pagamentos e as contas”. Sendo assim, o uso da moeda como meio de troca assume um lugar principal, unificando e hierarquizando os demais usos (BLANC, 2013, p. 247). No entanto, Blanc (2013, p. 248) observa que Polanyi não reconhece o uso de moedas específicas na sociedade moderna e ultrapassa o campo de aplicação polanyiano, ressaltando que os usos de diferentes instrumentos monetários são também um aspecto da sociedade moderna: “a moeda é unitária enquanto sistema, mas fragmentária enquanto instrumento”. A partir daí, Blanc (2013) assume que as moedas modernas possuem usos específicos e usa diferentes exemplos de moedas complementares para explicar sua reinterpretação da concepção de moeda em Polanyi. De acordo como autor, as moedas de usos específicos de sociedades “exóticas” têm seu equivalente moderno em termos de validade econômica e social, e a combinação destes termos (os quais definem por quem e para quem elas são criadas) nos ajudam a compreender os sistemas monetários alternativos que nos apresentam hoje.

Blanc (2013) destaca também a ideia polanyiana de interdependência entre os princípios orientadores do processo econômico – redistribuição, reciprocidade, troca e domesticidade –, assumindo-os como modalidade de produção e de consumo interdependentes relativos à atividade humana e aos usos dos recursos disponíveis. Na sociedade moderna, o movimento das trocas indica “mudança de mãos” e, dentro de um sistema de mercado autoregulado, este movimento cria preços. No entanto, para Polanyi (2000 e 2011), a exemplo dos mercados administrados, nem toda troca de mercado cria preços. Sendo assim, de acordo com Blanc (2013, p. 253), “certos sistemas monetários são construídos em torno de uma vontade de promover formas de troca que se distanciam mais ou menos fortemente do mercado”.

A noção de redistribuição se refere ao movimento de apropriação em direção a um centro e, depois dele, para o exterior, ou seja, a coleta e a redistribuição a partir desse centro. Esta centralidade, para Blanc (2013), pode ser pensada em termos de institucionalização de um poder político sobre um grupo que tanto se traduz como forma de proteção como também de dominação. A ideia que o autor destaca é a de um “controle político” que submete os indivíduos e os grupos. Ainda para o autor, o exercício desse poder pelo Estado é apenas um caso na história, existindo na sociedade moderna, além do Estado outras formas institucionais que estabelecem “modos verticais de circulação da riqueza por distribuição, exercendo uma forma de poder sobre seus beneficiários” (BLANC, 2013, p. 254).

Um terceiro princípio polanyiano, o da reciprocidade, diz respeito a movimentos entre grupos simetricamente situados e se destacam a tripla obrigação de dar-receber-retribuir. Nas sociedades modernas, Blanc (2013, p. 254-255) pensa na horizontalidade das relações mais do que na simetria de grupos e indivíduos e argumenta que: “o ponto importante para a construção de uma tipologia de sistemas monetários é que a moeda de um sistema reciprocitário é definida e legítima no interior de uma comunidade que a circulação da moeda circunscreve, identifica, liga e reproduz dentro da construção de uma igualdade de estatutos que reconhece doravante as diferenças”.

Por fim, o princípio da domesticidade, reinterpretado por Hillenkamp (2013) e adotado por Blanc (2013) nesta nova tipologia, se relaciona com a mobilização de recursos monetários ou não monetários no seio de uma produção doméstica. Além disso, tem a ver com dinâmicas poliformes de economia popular nos países do Sul (BLANC, 2013).

Com base nesse movimento analítico de repensar os princípios econômicos polanyiano da redistribuição, reciprocidade, mercado e domesticidade no entendimento da moeda e das moedas

 

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sociais atualmente, Blanc (2013) elaborou o Quadro 2, no qual distingue três grandes conjuntos de sistemas monetários: as moedas públicas, as moedas lucrativas e as moedas cidadãs. Estas últimas redefinem os tipos de moedas complementares (CCs – Complementary Currencies) de Blanc (2011) e redenomina-as. Sob esta perspectiva, a moeda cidadã seria aquela que: “[...] mobiliza potencialmente os quatro princípios polanyianos, mas ela coloca em primeiro plano seja a reciprocidade, seja a troca: no primeiro caso, ela pode ser dita moeda cidadã comunitária e, no segundo caso, moeda cidadã comercial. Nos dois casos, é um projeto solidário que é também uma luta contra formas de dominação estatal ou do mercado” (BLANC, 2013, p. 262).

Quadro 2 – Tipos ideais para as moedas modernas

Qual nome? Princípios de integração e

tensões Emissores e espaço pertinente Exemplos próximos

Moedas Públicas

Moeda estatal Estado central via o Tesouro e o Banco Central, por um território definido por uma autoridade política soberana

Peças e bilhetes do Euro, moeda banco central

Moeda subestatal

Controle político e redistribuição. Dominação e capitação, solidariedade

Entidade federada via e/ou um banco próprios, por um suconjunto do território definido por uma autoridade política responsável por um poder monetário

Moedas provinciais argentinas

Moeda Lucrativa

Moeda mercantil

Troca de mercado. Dominação e captação

Bancos comerciais e organizações não bancárias, para setores ofertantes e demandantes definidos pela extensão da clientela e as interconexões entre emissores

Moedas dos bancos comerciais; empresas de <barter>i

Moeda captativa

Captação vertical de fontes por orientação do poder de compra: redistribuição inversa

Empresas para sua clientela

Moedas de grandes propriedades territoriais; milhas aéreas

Moedas Cidadãs

Moedas comunitárias

Reprodução da comunidade por reciprocidade. Solidariedade

Organizações de utilidade social para aliança a uma comunidade

Bancos do tempo, sistemas de troca local francês (como o Sol-Violetteii)

Moedas comerciais

Distribuição horizontal de bens e serviços por troca. Solidariedade.

Organizações de utilidade social para setores definidos pela rede de prestadores e afiliadas

Chiemgauer (Alemanha) e Palmas (Brasil)

Fonte: Blanc (2013, p. 263-4). Percebe-se que, nesta nova tipologia de Blanc (2013), a noção de território ainda é

atrelada a um espaço geopolítico, tanto que é definido apenas nos sistemas de moedas públicas e estreitamente ligado ao princípio da redistribuição. No entanto, Blanc (2013) identifica e

 

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retrabalha uma especificidade da moeda Palmas (no caso, que representa nossas moedas sociais dos BCDs), ressaltando que ela combina a troca e o compartilhamento doméstico, pois estimula atividades populares produtoras ou comerciais nas próprias moradias, além de proporcionar o aumento da capacidade da comunidade na criação de grupos produtivos ou empreendimentos de economia solidária.

Apesar de, a nosso ver, esta tipologia ser mais adequada para entendermos o cenário onde se insere a moeda social dos BCDs brasileiros, ainda propomos a seguir uma reflexão acerca da diversidade de moedas complementares. Esclarecemos também que neste trabalho continuaremos a utilizar a denominação “moedas sociais” para enfatizar a proposta de inclusão financeira e a base popular em que nossas moedas se apóiam. Apontamos a seguir aspectos que são importantes, no nosso entendimento, para a compreensão dos principais sistemas de moedas complementares e sociais. São importantes também porque mostram a diversidade entre esses sistemas.

4 (Re) Pensando os aspectos das moedas sociais dos BCDs no conjunto das moedas sociais complementares

Do universo estudado e a partir das discussões até aqui apresentadas, procuramos sistematizar as experiências com base em seis perguntas orientadoras: a) Onde a moeda foi criada?; b) Por que a moeda foi criada?; c) Por quem a moeda foi criada?; d) Para quem a moeda foi criada?; e) Como a moeda funciona?; f) Que atores fazem a gestão da moeda?. Além destas, também ficamos atentos aos principais resultados alcançados e aos principais desafios para a circulação da moeda. No entanto, estas duas últimas questões não são significativas para a reflexão da diversidade do conjunto aqui proposta.

Onde? Os territórios onde são criadas e circulam moedas complementares e sociais são diversos, e não necessariamente empobrecidos. Há moedas que circulam em bairros de grandes cidades (como as Palmas e a Sol-Violette), pobres ou não, em pequenas e médias cidades (a L’abeille francesa, a RES Belga e a Chiemgauer na Alemanha); há sistemas integrados em países (como o Sistema Sol na França e o Regiogeld na Alemanha) e sistemas que ultrapassam as fronteiras entre nações (como o C3 em todo o Uruguai e no Sul do Brasil). Encontramos ainda moedas circulando em grupos e redes sem território definido, pelo interesse em trocar bens e serviços (como os clubes de trocas de modo geral, os SELs e os LETs). No caso das moedas sociais brasileiras criadas por BCDs, a maioria se restringe a circular em territórios empobrecidos, notadamente pequenos municípios, bairros ou comunidades tradicionais (quilombolas, pescadores etc.).

Por quê? Os contextos de crises econômicas em maior ou menor escala motivam a criação e o uso de moedas complementares. Atualmente, a crise nos países europeus (e do Euro) tem influenciado o desenvolvimento do sistema Sol francês e o crescimento acelerado do número de moedas complementares e sociais na Espanha, por exemplo (quase 70 experiências no triênio 2011, 2012 e 2013). A Grécia, onde a crise já soma cinco anos, contava com várias experiências dessa natureza. Além disso, estudos mostram que o uso do WIR na Suíça aumenta em épocas de crises ou baixa liquidez do Euro (lembramos também os casos das moedas nos clubes de trocas argentinos na crise dos anos 2001 a 2003). Mas a pobreza e outras dificuldades mais localizadas também impulsionaram a criação de inúmeras moedas complementares (como o UDIS em El Salvador após a guerra civil de 1980 a 1992). Diante dos contextos, os motivos vão desde o intuito mais geral e estratégico de desenvolver o território (como as Palmas e as moedas sociais dos BCDs no Brasil), passando por uma orientação mais política e cidadã de apropriação do dinheiro (a L’abeille e a Sol-Violette, na França), até o intuito simples de propiciar e facilitar de

 

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trocar bens e serviços (redes mais ou menos amplas de trocas, como o sistema C3 e clubes de troca). Alguns destes sistemas possuem nítida orientação política e ideológica ligadas à economia social e solidária, à valorização da reciprocidade e mesmo à crítica ao modo de vida do sistema capitalista atual (caso de muitos SELs na França).

Para quem? Os meios circulantes locais servem aos moradores e empresas de um determinado território e aos membros (individuais ou institucionais) dos grupos ou redes de troca. Há sistemas usados somente entre empresas (como o WIR suíço) e outros que definem o perfil das empresas (geralmente micro, pequenas e médias) e usuários da moeda complementar, como empresas socialmente responsáveis, pessoas desempregadas, militantes em economia solidária, entre outros. Nossas moedas sociais de BCDs servem a todos os moradores e empreendimentos do território – solidários ou não.

Por quem? Notadamente, são as organizações da sociedade civil que criam moedas complementares e sociais atualmente. No entanto, a participação ou a atuação direta de governos locais (como a Sol-Violette) e mesmo financiamento de projetos nacionais (como a constituição da rede de BCDs no Brasil, que tem contado com o apoio e o financiamento da Senaes/MTE). Há ainda casos em que as próprias coletividades ou grupos criam seus meios circulantes locais (como as Palmas e os Time Dollars) e há ainda os que evitam parcerias com o poder público (como alguns SELs franceses). No entanto, identifica-se que uma combinação de parcerias entre diferentes atores institucionais e pessoas tem sido a prática constante para criação de moedas complementares e sociais no mundo inteiro. Nota-se também a crescente atuação de organizações não governamentais na elaboração de softwares e metodologias para implementação de moedas complementares (a exemplo da STROiii – Social Trade Organisation e o software Clyclos).

Como? Os métodos e técnicas de circulação das moedas complementares e sociais também são diversos. Algumas moedas são impressas e outras apenas numéricas ou virtuais (sistemas de créditos e débitos, câmara de compensação entre empresas – Barter). Algumas experiências indexam a moeda à moeda nacional e constroem um sistema de concessão de crédito e outros projetos sociais (moedas sociais dos BCDs, algumas do sistema Sol; as UDIS; e as PECE, em Honduras); outras ainda possuem sistema de oxidação ou desvalorização periódica do valor (como a Sol-Violette e a Chiemgauer); outras são indexadas a outras unidades, como o tempo (os Time Dollars e bancos do tempo japoneses) ou bônus de fidelidade para compras ecologicamente corretas (como a Nu-Spaarpas, em Rotterdam). Identificamos atualmente algumas experiências que têm buscado inovar nas técnicas para estimular e facilitar as trocas e o consumo local por meio da construção de um sistema misto (moeda eletrônica, impressa, sistemas de bônus etc.), tais como a Sol-Violette. Identificamos também que o recente surgimento dos sistemas de moedas sociais na Espanha tem aproveitado os inúmeros exemplos pelo mundo e construído sistemas mistos (exemplo do sistema Demo, apresentado em Sevilla em maio de 2013).

Quem faz a gestão? Em maior ou menor grau, a gestão da moeda e as decisões em torno do seu funcionamento contam com espaços democráticos de discussão. Nestes espaços, os atores envolvidos (indivíduos ou empresas) são, de alguma forma, representados (moedas do sistema Sol). Em outras situações, os usuários se envolvem diretamente (clubes de troca e SELs) e, em outras, há uma organização que centraliza a gestão da rede de trocas (gestão de um site, como a C3, ou de uma central de créditos e débitos, como nos LETSs e nos bancos do tempo; ou, ainda, a câmara de compensação do WIR). Alguns sistemas contam com o apoio de governos locais, cooperativas de crédito, empresas privadas, ONGs e redes de diferentes níveis para a tomada de decisão em relação à circulação da moeda. No entanto, o processo de gestão da circulação (registros, controles, emissões etc.) tipicamente fica a cargo de uma organização da sociedade

 

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civil ou associação que faz a gestão cotidiana do circuito e do cadastro de usuários (como a ONG Folie da Sol-Violette, os BCDs no Brasil, a associação de bairro Pulmarejo, no caso das Pulmas em Sevilla).

Diante desta diversidade e das propostas de tipologias de Blanc (2011 e 2013), e desconsiderando deste universo as moedas que servem às empresas, denominadas por Blanc (2013) de moedas lucrativas (como o WIR suíço e os vários exemplos que se basearam nele), reduzimos o universo ao conjunto das moedas cidadãs. A questão “Por que e para quem a moeda foi criada?” nos permite verificar que os tipos de moedas complementares criadas para facilitar ou dinamizar trocas ou prestação de serviços entre empresas pertencentes ou não a um mesmo território não são sociais (no nosso entendimento do termo). Este universo de meios de pagamentos, embora às vezes exerça influência no território (por exemplo, maior capacidade de criação de empregos), engloba uma série de bônus e sistemas de pontuação que tem objetivos de ganhos econômicos diretos para as empresas envolvidas (exemplo do WIR e do C3).

Uma moeda social, aqui caracterizada, é criada com fins sociais para satisfazer necessidades (econômicas, sociais, culturais e/ou políticas) das pessoas e organizações envolvidas e, ao mesmo tempo, a governança e o controle do sistema monetário criado são coletivos. Sendo assim, as respostas das questões “Por quê?”, “Para quem?” e “Que atores fazem a gestão da moeda?”, juntas, têm o potencial de caracterizar as moedas sociais: moedas com finalidades sociais, culturais, políticas ou ecológicas (mesmo via dinamização da economia), criadas e gerenciadas pelos cidadãos ou membros de uma comunidade, sem ou com apoio de organizações da sociedade civil ou órgão público. Sendo assim, o que chamamos aqui de moedas sociais coincide, em certa medida, com a nova denominação de Blanc (2013) para as moedas cidadãs (comunitárias e comerciais).

Destacamos então a questão “Onde a moeda foi criada?” para remarcar a noção de território como uma categoria que diferencia dois grandes conjuntos de moedas sociais: a) as moedas sociais com foco no papel de meio e facilitador de trocas; e b) as moedas sociais vinculadas diretamente a um processo de desenvolvimento de territórios. Obviamente que, a depender do desenho do sistema de moeda social, o papel de facilitador de trocas acaba provocando um processo de desenvolvimento territorial. Do mesmo modo, uma moeda criada com o propósito de desenvolver um território depende do bom desempenho do seu papel de estimular as trocas e o consumo locais. Mas, a diferença aqui estaria no “por que” a moeda social foi criada.

No primeiro grande conjunto, podemos identificar uma série de sistemas de trocas, com moedas sociais com paridade ou não com a moeda nacional, nos quais uma rede de atores desempenha os papéis de usuário e gestores do sistema. Como nos clubes de trocas brasileiros, os SELs franceses, os LETSs canadenses, os Time Dollars (com a moeda atrelada ao tempo) e em outros novos sistemas que estão sendo aperfeiçoados na Espanha, como as Boniato em Madri.

No segundo grande conjunto, no qual se destacam nossas moedas sociais dos BCDs, a preocupação com um projeto maior de desenvolvimento do território no qual a circulação da moeda desempenha papel fundamental toma maiores proporções. Esse processo depende, ainda, das relações de confiança construídas entre os atores deste território e de outras ações e projetos em torno do desenvolvimento local e do uso da moeda, tais como microcrédito, capacitações em geral, criação de espaços de discussão e participação locais, apoio a criação e ao desenvolvimento de EES e a constituição de parcerias. Além das moedas sociais de BCDs, neste conjunto, podemos incluir várias moedas francesas do movimento Sol, como a L’abeille, algumas moedas espanholas, e a Chiemgauer alemã.

 

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A convertibilidade pode ser vista como um aspecto que diferencia facilmente o primeiro e o segundo conjunto. No primeiro, apesar da paridade, muitas vezes não há convertibilidade da moeda social em moeda nacional. No segundo conjunto, a convertibilidade é, tipicamente, garantida, tendo em vista que tais experiências de uso de moeda fazem parte, em maior ou menor grau, de um projeto maior de desenvolvimento local com apoio ou pelo menos o reconhecimento do Estado (que acaba exigindo a garantia da convertibilidade).

A título de agenda de pesquisa, notamos que esse conjunto complexo de moedas complementares e sociais e, especificamente, o conjunto de moedas sociais (ou cidadãs) exige um arcabouço teórico e conceitual que possibilite compreender este campo de práticas. Na antropologia econômica, podemos encontrar um arcabouço de análise apropriado, tanto pela amplitude que oferece ao entendimento sobre os usos da moeda, quanto pela ênfase dada às relações sociais e locais (notadamente as culturais e políticas). Encontramos ainda um campo fértil para estudos e pesquisas mais específicos da gestão, tendo em vista a diversidade de atores envolvidos e os modos de governança particulares (notadamente os coletivos) que algumas experiências prezam.

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i O termo Barter é empregado para designar as “câmaras de compensação das dívidas dos membros usando uma unidade de conta específica, com ou sem convertibilidade com a moeda nacional”. O WIR suíço é o exemplo mais notório (BLANC, 2013, p. 260). ii Na nova tipologia de Blanc (2013), a moeda Sol-Violette, em Toulouse aparece como um exemplo de uma combinação complexa entre moeda pública, moeda lucrativa e moeda cidadã, para exemplificar que, na realidade, os sistemas de moedas complementares são mistos e para reforçar a ideia de tipo-ideal na sua proposta. iii Para informações mais precisas, acesse: http://www.socialtrade.org.