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Renovação Carismática Católica e Igrejas Pentecostais: em busca de uma pentecostalidade comum André Luís da Rosa 1 Introdução A recente reflexão sobre o diálogo católico-pentecostal no Brasil tem apontado a Renovação Carismática Católica (RCC) como um meio privilegiado para o encontro entre católicos e pentecostais. Sendo que o fato mais relevante é o da RCC compartilhar da mesma experiência espiritual do pentecostalismo, residente no denominado batismo no Espírito Santo, no exercício dos carismas e em diversas outras características, como o louvor, a oração por cura, a musicalidade de suas reuniões. Todavia, como afirma Cecília Mariz e Carlos Souza: “analisando, respectivamente, a RCC e o pentecostalismo protestante, as similaridades entre esse movimento e essas Igrejas não necessariamente os aproximam” (MARIZ; SOUZA, 2015, p. 383.). Iniciativas de encontro têm surgido, como o ENCRISTUS, mas há somente um pequeno grupo de carismáticos católicos que têm se aberto ao ecumenismo, pois, o movimento, de modo quase absoluto, é intolerante às outras Igrejas e religiões. Já os pentecostais que têm participado destas iniciativas ecumênicas pertencem a pequenas comunidades pentecostais ou participam apenas de modo fraterno, não representando oficialmente suas denominações, pois as grandes igrejas pentecostais brasileiras são oficialmente antiecumênicas. Por isso, diante da grande variedade de modos de ser católico e pentecostal no Brasil, o que se chama de diálogo católico-pentecostal, deve ser entendido como um encontro entre um grupo bem específico de católicos e outro grupo bem específico de pentecostais. 1 Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória, onde tem se dedicado à pesquisa sobre o diálogo católico-pentecostal no Brasil, sob a orientação do Dr. David Mesquiati de Oliveira. Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz, de Brusque, Santa Catarina. Contato: [email protected]

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Renovação Carismática Católica e Igrejas Pentecostais:

em busca de uma pentecostalidade comum

André Luís da Rosa1

Introdução

A recente reflexão sobre o diálogo católico-pentecostal no Brasil tem apontado a

Renovação Carismática Católica (RCC) como um meio privilegiado para o encontro entre

católicos e pentecostais. Sendo que o fato mais relevante é o da RCC compartilhar da mesma

experiência espiritual do pentecostalismo, residente no denominado batismo no Espírito

Santo, no exercício dos carismas e em diversas outras características, como o louvor, a

oração por cura, a musicalidade de suas reuniões. Todavia, como afirma Cecília Mariz e

Carlos Souza: “analisando, respectivamente, a RCC e o pentecostalismo protestante, as

similaridades entre esse movimento e essas Igrejas não necessariamente os aproximam”

(MARIZ; SOUZA, 2015, p. 383.).

Iniciativas de encontro têm surgido, como o ENCRISTUS, mas há somente um

pequeno grupo de carismáticos católicos que têm se aberto ao ecumenismo, pois, o

movimento, de modo quase absoluto, é intolerante às outras Igrejas e religiões. Já os

pentecostais que têm participado destas iniciativas ecumênicas pertencem a pequenas

comunidades pentecostais ou participam apenas de modo fraterno, não representando

oficialmente suas denominações, pois as grandes igrejas pentecostais brasileiras são

oficialmente antiecumênicas. Por isso, diante da grande variedade de modos de ser católico

e pentecostal no Brasil, o que se chama de diálogo católico-pentecostal, deve ser entendido

como um encontro entre um grupo bem específico de católicos e outro grupo bem

específico de pentecostais.

1 Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória, onde tem se dedicado à pesquisa sobre o diálogo católico-pentecostal no Brasil, sob a orientação do Dr. David Mesquiati de Oliveira. Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz, de Brusque, Santa Catarina. Contato: [email protected]

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A presente pesquisa possui o objetivo de refletir sobre categoria de pentecostalidade

como fator de uma possível aproximação entre os católicos da RCC e as igrejas pentecostais,

pois ela é o fundamento de ambos e possui uma natureza ecumênica. Bem como,

fundamentar um ecumenismo a partir da espiritualidade e da pneumatologia, grandes

ênfases da RCC e das igrejas pentecostais.

1. A categoria de pentecostalidade como fator de aproximação

A experiência pentecostal não é propriedade de uma única denominação, ao

contrário, trata-se de uma nota própria de toda a Igreja Cristã, pois, “a pentecostalidade é a

‘força do Espírito’ que torna possível a Igreja como Corpo de Cristo e como povo de Deus na

história concreta da humanidade” (CAMPOS, 2002, p. 85.). O teólogo pentecostal Bernardo

Campos, que tem refletido sobre a categoria de pentecostalidade, assim a conceitua:

entendemos por pentecostalidade aquele princípio e aquela prática religiosa moldados

pelo acontecimento de Pentecoste. Trata-se de uma experiência universal que eleva à

categoria de “princípio” (arqué ordenador) as práticas pentecostais que procuram ser

concretizações históricas dessa experiência primordial (CAMPOS, 2002, p. 85.).

A pentecostalidade é o princípio pentecostal (experiência de Pentecostes), e os

pentecostalismos (igrejas, movimentos, ministérios, etc.) são as formas históricas assumidas

pela pentecostalidade. Ela está na origem e fundamento de todos os movimentos

pentecostais e carismáticos, por isso, crê-se: quanto mais as expressões pentecostais-

carismáticas aproximarem-se da pentecostalidade comum a todas, mais se superará as

divisões institucionais e ideológicas para reunirem-se na unidade do Espírito Santo.

Assim, a aproximação da Igreja Católica por meio da RCC com o pentecostalismo

possui uma especificidade: serem movimentos transconfessionais. Segundo Brakemeier, “se

fala de um movimento tranconfessional sempre que membros de diferentes Igrejas

descobrem sua concordância em ênfases de determinados aspectos da fé” (BRAKEMEIER,

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2008, p. 79.). E, para o pastor pentecostal Roger Cabezas a experiência pentecostal é

ecumênica em si mesma. De forma muito esclarecedora explica:

o pentecostalismo é mais que uma doutrina (uma confissão), é uma maneira de viver e

experimentar a fé cristã que emergiu do seio de diversas tradições confessionais. É no

diálogo com essas confissões que podemos enriquecer nossa identidade e projetar nossa

vocação cristã comum de proclamação do reino de Deus (CABEZAS, 1996, p. 32.).

Bernardo Campos na mesma direção, afirma:

em sua qualidade de “princípio”, a pentecostalidade em si mesma rejeita qualquer

concretização histórica do tipo pentecostal que pretenda ser sua expressão única

(exclusiva) ou que pretenda convertê-la em seu absoluto, negando a outros a

possibilidade de fundamentar-se também nela (inclusividade) (CAMPOS, 2002, p. 85).

Por serem movimentos trasconfessionais, possuem elementos que podem os fazer

romper suas tradicionais barreiras denomiacionais, devido a suas afinidades (BRAKEIMEIER,

2008, p. 79.). Mesmo com este fator, de fazer-se presente na maioria das igrejas históricas e

nas novas igrejas pentecostais, o ecumenismo entre o pentecostalismo e a RCC não deve ser

entendido como um abandono de identidades, mas como uma partilha do aspecto comum

de sua identidade.

Também, para se pensar um diálogo entre os católicos carismáticos com as igrejas

pentecostais, é relevante ter consciência: a RCC é um movimento eclesial oficial da Igreja

Católica, e possui os estatutos do ICCRS (Serviço Internacional da Renovação Carismática

Católica) aprovados junto à Santa Sé, desde oito de Julho de 1993. Nestes estatutos

aprovados por canonistas e teólogos do Vaticano, consta como objetivo da RCC propiciar

uma abertura decisiva à pessoa do Espírito Santo, sua presença e poder, através da

experiência do batismo no Espírito Santo (CARRILO, 1996, p. 10); outro objetivo da RCC é:

“fomentar a recepção e o uso dos dons espirituais (carismas) não somente na Renovação

Carismática, mas também na Igreja inteira” (CARRILO, 1996, p. 10). Além destes estatutos,

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todos os papas, desde a origem do movimento carismático na Igreja Católica, têm-se

mostrado favoráveis a ele em seus discursos.

Portanto, estes elementos que aproximam a RCC do pentecostalismo, e também

fazem dela um movimento pentecostal, são aprovados oficialmente pela Igreja Católica e

reconhecidos como aspectos autênticos da fé e da teologia católica. Isto é o que faz da RCC

um meio privilegiado de aproximação da Igreja Católica com as igrejas pentecostais, embora

outros movimentos católicos como, por exemplo, os focolarinos, possuam iniciativas

ecumênicas nas quais realizam a inclusão dos pentecostais. Da mesma forma que outros

movimentos católicos possuem facilidade de diálogo com outras igrejas e religiões e a RCC

apresenta dificuldades, tanto no diálogo com outros ramos do cristianismo, com outras

religiões e, por vezes, até mesmo com outras expressões do próprio catolicismo.

Ainda nos estatutos do ICCRS, a RCC é chamada de Renovação Pentecostal Católica,

e, Salvador Carrilo, um dos pioneiros da RCC na Itália, comenta que este título é muito

sugestivo e de grande significação, pois responde aos desejos profundos daqueles primeiros

da Renovação Carismática. De fato, segundo Reinaldo Beserra, a RCC se considera um sinal

da atualidade de pentecostes, a recordar à Igreja Católica aquela dimensão pentecostal que

lhe é própria (REIS, 2004, p. 123.). Como afirmou Kelvin Ranaghan em um dos primeiros

livros do movimento carismático católico, expressando o ponto chave da RCC, disse: “não

somos pentecostais, somos católicos que tivemos uma experiência pentecostal, uma

experiência em profundidade com o Espírito Santo” (RANAGHAN, 1972, p. 143.).

Tendo compreendido a dimensão pentecostal da fé cristã como fundamento

espiritual da RCC, convém darmos um passo e entendermos esta dimensão como

propriamente uma dimensão ecumênica da fé cristã, pois pertence a todos os cristãos. O

teólogo Elias Wolff, membro da comissão teológica do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas

Cristãs), em entrevista sobre o diálogo católico-pentecostal, abordou o aspecto da

pentecostalidade da Igreja, afirmando ser o pentecostalismo um fenômeno de todo o

Cristianismo, ou seja, presente tanto no catolicismo, como no mundo evangélico. Na Igreja

Católica ele relata sua manifestação especialmente nos novos movimentos, que tem

crescido com rapidez e contribuído para a missão da Igreja (WOLFF, acesso: 21 de jul. 2015.).

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De forma mais direta afirmou: “há uma série de elementos que, não são exclusivos dos

pentecostais, pois são também nossos [dos católicos]. [...] A pentecostalidade é uma

característica de todo cristão, não só dos evangélicos” (WOLFF, acesso: 21 de jul. 2015.).

Como na RCC, nas igrejas pentecostais a ênfase está na pentecostalidade da fé cristã,

principalmente no batismo no Espírito Santo. Isto ocupa o lugar central de suas pregações e

atividades pastorais. Embora a teologia do batismo no Espírito do pentecostalismo e da RCC

sejam diferentes,2 a experiência e a prática manifestam basicamente as mesmas

características. Por isso, faz-se necessário um ecumenismo partido da categoria de

pentecostalidade, comum a todos os cristãos, para haver uma aproximação dos católicos

carismáticos com as igrejas pentecostais.

Para que se efetue este ecumenismo católico-pentecostal a partir da dimensão

pentecostal da fé, é necessário o aprofundamento da categoria de pentecostalidade, a partir

de seus fundamentos bíblicos, de sua presença em toda a tradição teológica do cristianismo

e da experiência moderna do avivamento pentecostal em suas diversas manifestações.

Sendo essencial que este aprofundamento se dê no diálogo entre as diversas igrejas

pentecostais e os movimentos carismáticos presentes nas igrejas históricas. Assim, a

categoria de pentecostalidade pode ser enriquecida com as diversas formas de expressão da

experiência pentecostal hoje, pois nenhuma denominação pentecostal ou movimento

carismático pode deter a plenitude da experiência do Espírito.

Na partilha da experiência pentecostal vivenciada em cada igreja pentecostal e em

cada movimento carismático das igrejas históricas, pode-se chegar a uma possível

aproximação de uma categoria de pentecostalidade comum a todos os cristãos, tornando-se

o lugar da unidade cristã no Espírito. Pois haverá o reconhecimento da ação do Espírito

Santo em cada ramo do cristianismo; manifestado de diversas formas, através de diversos

dons e ministérios, mas possuindo um núcleo comum a todos: a pentecostalidade.

2 A RCC, no documento de Malines, define o batismo no Espírito como: “momento ou processo de

crescimento pelo qual a presença ativa do Espírito [...] se torna sensível à consciência pessoal [...]” (SUENENS, 1975, p. 39). E, segundo o teólogo católico Yves Congar: na Renovação Católica, o batismo no Espírito está relacionado com os sacramentos da iniciação cristã, no sentido de reavivar as graças que já foram recebidas no sacramento do batismo e da crisma; diferente do pentecostalismo protestante que conta com duas etapas: a conversão (batismo nas águas) e a santificação (batismo no Espírito) (CONGAR, 2005, p. 250, 263.).

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É importante ressaltar, quando se fala desta aproximação a partir da categoria de

pentecostalidade, que não se tem a intenção de criar um único pentecostalismo de modo

uniforme. É justamente o contrário, é uma oportunidade de afirmação da própria

identidade, porém com humildade, desenvolvendo a capacidade de reconhecimento de cada

denominação pentecostal, de cada movimento carismático desenvolver mais alguns

carismas e ministérios, e de outros aprimorarem-se em outros carismas e ministérios, mas,

no diálogo entre todos, expressarem de forma mais completa a natureza do Movimento

Pentecostal.

Nesse sentido, pode contribuir a reflexão do papa Francisco, em sua encíclica

Evangelii Gaudium, no número 246, falando sobre o ecumenismo:

se realmente acreditamos na ação livre e generosa do Espírito, quantas coisas podemos

aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber informações uns dos outros para

os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito semeou neles como um dom

também para nós (FRANCISCO, 2014, p. 139.).

Esta tensão ecumênica, segundo o teólogo Elias Wolff, consiste em evitar a

deformação do próprio carisma e, simultaneamente, reconhecer o valor dos carismas das

outras igrejas. A promoção da unidade não deve obstaculizar a diversidade e o

reconhecimento da diversidade não deve obstaculizar a unidade (WOLFF, 2007, p. 223-227).

O ecumenismo entre a RCC e as igrejas pentecostais deve ser também entendido na

perspectiva da diversidade reconciliada ou da unidade plural. Ainda segundo Wolff, a

unidade plural considera as várias formas dos patrimônios confessionais pertencentes à

riqueza da vida de toda a Igreja Cristã. Cada denominação ou movimento apresenta uma

faceta do cristianismo, e todas juntas constituem o ser da Igreja (WOLFF, 2007, p. 226.).

Assim, pode-se considerar que pluralidade atual da Igreja é uma condição da Igreja na

história e não um problema a ser resolvido. O que se deve evitar é de tal fato ser motivo de

discórdia e divisão, ao invés de torná-lo fator de enriquecimento mútuo, de convivência

pacífica e de comunhão (WOLFF, 2007, p. 226.).

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2. Um ecumenismo a partir da experiência pentecostal-carismática

Para o teólogo católico Marcial Maçaneiro, “é chegada a hora oportuna de oferecer a

contribuição específica da experiência pentecostal-carismática à unidade dos cristãos”

(MAÇANEIRO, 2015, p. 115.). Para tanto, o teólogo pentecostal David Mesquiati diz que a

unidade da Igreja não deve ser entendida como um simples projeto humano, ou uma moda

dos tempos pós-modernos, ou um plano conspirador velado. Ao contrário, a unidade da

Igreja é desejada desde os começos pelo próprio Jesus, que em sua oração diz que a unidade

da Igreja seria um testemunho ao mundo (OLIVEIRA, 2015, p. 140.). Assim, os pentecostais e

os carismáticos, acreditando na oração de Jesus pela unidade, não estão dispensados de

trabalhar pela unidade cristã, e o devem fazer a partir de suas características próprias.

2.1. O ecumenismo espiritual

Para que a RCC estabeleça com as igrejas pentecostais uma relação de unidade é

necessário a exploração de seu principal potencial, seu carisma próprio. A RCC é considerada

pelas ciências humanas como um movimento de fascinação religiosa, e possui sua

especificidade no espiritual, no sobrenatural. Um movimento valorizador da experiência

subjetiva de Deus, com os afetos e emoções, sendo uma reação a uma religião racional e

ritualista. Um movimento promovedor da transformação do interior, através do re-

encantamento pelas práticas religiosas e pela vida de oração (ROSA, 2015, p. 175-176.). O

Episcopado da América Latina através do documento latino-americano sobre a Renovação

Carismática, no número 72, reconhece: “sem dúvida, o fruto mais palpável dessa Renovação

é o fato de haver devolvido ao homem de hoje o gosto pelo espiritual [...]” (CELAM, 1988, p.

23.).

O pentecostalismo protestante partilha destas características valorizadoras da

experiência pessoal de Deus, em detrimento de uma religião apenas por tradição, e com

forte ênfase no espiritual, no divino. Os cultos pentecostais agregam a pregação da Palavra

de Deus, testemunhos, momentos de orações espontâneas e muitos louvores através da

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música. Assim como os grupos de oração da RCC, os quais também se caracterizam pela

espontaneidade, pela alegria, pelos momentos fervorosos de oração.

Por isso, num primeiro momento, o grande encontro entre os católicos da RCC e os

pentecostais deve dar-se através da experiência de oração comum, já que este é o potencial

dos dois movimentos, colocando em prática o denominado ecumenismo espiritual. Depois, o

ecumenismo espiritual se expandirá a outras categorias de ecumenismo, como o doutrinal

ou social, estreitando os laços de unidade, porém, sem perder a principal marca deste

diálogo, o ecumenismo espiritual a partir da experiência pentecostal.

Na visão católica, o Papa João Paulo II, na carta encíclica Ut Unum Sint, número 21,

comentando sobre a oração comum entre os cristãos, ressalta:

o amor é a corrente mais profunda que dá vida e infunde vigor ao processo que leva à

unidade. Esse amor encontra a sua expressão mais acabada na oração em comum.

Quando os irmãos que não estão em perfeita comunhão entre si, se reúnem em comum

para rezar, essa sua oração é definida pelo Concílio Vaticano II como “alma de todo

movimento ecumênico”. [...] Quando os Cristãos rezam juntos, a meta da unidade fica

mais próxima. [...] Se os cristãos, apesar de suas divisões, souberem unir-se cada vez mais

em oração comum ao redor de Cristo, crescerá a sua consciência de como é reduzido o

que os divide em comparação com aquilo que os une. Se se encontrarem sempre mais

assiduamente diante de Cristo na oração, os cristãos poderão ganhar coragem para

enfrentar toda a dolorosa realidade humana das divisões (JOÃO PAULO II, 2004, p. 30-32.).

Confirmando esta visão de João Paulo II, o cardeal Suenens, primeiro assessor oficial

da RCC, afirma: “esta oração comum, alimentada pela Palavra de Deus, é uma fonte

inesgotável onde os cristãos de todas as confissões podem vir a se desalterarem juntos, no

respeito e no amor mútuo” (SUENENS, 1975, p. 259.). Ainda alerta: “devemos estar

conscientes de que tal diálogo não é de tipo puramente humano, não se trava entre pessoas

de boa vontade à procura de um compromisso diplomático honroso” (SUENENS, 1975, p.

255.). E, o padre Robert De Grandis, um dos principais líderes da RCC, relata uma experiência

pessoal de oração comum entre católicos carismáticos e pentecostais, registrada no livro

Sereis Batizados no Espírito Santo, do padre Haroldo Rahm:

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todas as pessoas carismáticas são uma no Espírito. Já orei com grupos protestantes, e

senti a afeição quente dos meus companheiros cristãos. Nunca me senti tão unido com

não-católicos como nos grupos de oração. Embora haja muitas diferenças, unimo-nos para

louvar a Jesus pelo seu Espírito e ler a sua palavra. Que melhor base pode haver para a

unidade! (RAHM; LAMEGO, 1991, p. 47.).

Também para pentecostais ecumênicos, a oração em comum deve ser o lugar da

unidade dos cristãos. O pastor pentecostal Juan Sepúlveda, ao participar como observador

pentecostal da V Conferência do Episcopado Católico Latino Americano em Aparecida, em

suas considerações sobre a relação entre católicos e pentecostais afirmou:

[...] para avançar no diálogo temos que criar espaços para nos conhecermos, orarmos

juntos, e assim derrubarmos os preconceitos mútuos. [...] O mais importante deste tipo de

aproximação é que ao gerar oportunidades para o reconhecimento como irmãos e irmãs

em Cristo, permite que o exercício da vocação missionária e da atividade pastoral se

desenvolva com crescente respeito mútuo (SEPÚLVEDA, acesso: 29 jul. 2015.).

Carmelo Álvarez, analisa a importância da relação entre o Espírito Santo e o

ecumenismo, pois o ecumenismo no pentecostalismo deve estar permeado pelo

ecumenismo do Espírito, onde o conceito de unidade é reflexo da unidade do Espírito que

envolve toda a criação de Deus. Este ecumenismo do Espírito trata-se de uma experiência

ecumênica que não determina formas institucionais, nem compromissos estruturais, nem

decisões formais. Apenas reúne os cristãos para orar, cantar juntos e partilhar suas

experiências (o que não pode ser considerado pouco) (ÁLVAREZ, 2009, p. 201-202.). Segundo

o frei Raniero Cantalamessa, nessa fase carismática, espiritual, o ecumenismo dá prevalência

à iniciativa divina, por isso, não há necessidade de discutir, deliberar, emanar decretos.

Cantalamessa não menospreza o ecumenismo de tipo doutrinal, teológico, mas defende que

sozinho ele pode permanecer somente no papel e jamais alcançar a unidade real dos

cristãos. Assim, o ecumenismo espiritual deve ser um sustento ao ecumenismo doutrinal,

teológico (CANTALAMESSA, 1997, p. 240.).

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2.2. Ecumenismo e Pneumatologia

Tendo estabelecido a importância da oração comum, tanto na visão católica, quanto

pentecostal, é necessário enfatizar: a espiritualidade da RCC e do pentecostalismo são

pneumáticas, ou seja, vivenciam sua experiência de fé a partir da experiência do Espírito

Santo. Portanto, o ecumenismo espiritual destes movimentos deve acontecer através de sua

espiritualidade própria, com suas peculiares características de expressarem-se em oração.

Obviamente a teologia e a espiritualidade do pentecostalismo e da RCC não estão centradas

unicamente no Espírito Santo, elas assumem as verdades básicas de todo o cristianismo,

como a fé trinitária e o mistério pascal de Jesus Cristo. Porém, vivenciam o cristianismo sob

o impulso do batismo no Espírito Santo, sua experiência fundante.

Na perspectiva pneumática, católicos e pentecostais necessitam ter consciência: o

próprio Espírito Santo é o promotor da unidade entre os cristãos, e o movimento ecumênico

é considerado uma obra do Espírito Santo. Assim, a atualização da experiência pentecostal

em todas as tradições cristãs torna-se um meio de aproximação entre elas, sendo que

possuem uma mesma fundamentação no evento de Pentecostes, e o livro de Atos dos

Apóstolos relata: “chegando o dia de Pentecostes estavam todos reunidos no mesmo lugar”

(At 2, 1). Em Pentecostes, quando o Espírito Santo foi derramado sobre toda a comunidade

cristã, todos e todas estavam unidos, não estavam divididos em diversos grupos. Eles

possuíam o mesmo desejo no coração, de ver a promessa de Jesus sobre o derramamento

do Espírito se cumprir (At 1, 4-5). Havia as diferenças de pensamentos, de posicionamentos

entre os discípulos, mas tudo isso era superado na oração comum, a ponto do descrito: “a

multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4, 32). E a unidade que resulta da

ação do Espírito Santo em Pentecostes, segundo Raniero Catalamessa é de tipo carismático:

feita de louvor, entusiasmo, alegria, estupor, proclamação de Jesus Senhor

(CANTALAMESSA, 1997, p. 238-239).

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Esta unidade dos cristãos no cenáculo dá também ênfase a uma dimensão específica

do Movimento Ecumênico, o sentido carismático do ecumenismo, entendido pelo teólogo

pentecostal David Mesquiati de Oliveira como:

a unidade é experimentada aqui por meio dos diferentes dons do Espírito que cooperam

para a funcionalidade do Corpo ou para a edificação do Edifício (para outra metáfora

bíblica). Os dons se complementam, capacitando e ampliando as possibilidades da

comunidade. Os dons (carismas), juntos, promovem unidade; isoladamente, divisões

(domínio, disputa, etc.). [...] Essa experiência pneumática (do Espírito) é suficiente para

reconhecer que, embora sejam muitos e diferentes dons, eles são dados pelo mesmo

Espírito. Seja na Igreja A ou B, o Espírito é o mesmo, não pode ser privatizado por nenhum

grupo ou Igreja local/denominação (OLIVEIRA, 2015, p. 139-140.).

Ainda sobre o evento de pentecostes, Ana Maria Tepedino destaca que Jesus juntou

em torno de si um grupo que o amava e que ficou desatinado depois de sua morte. Embora

tivessem uma relação profunda com Jesus, ainda não tinham claro que sua missão era

prosseguir seu projeto e constituir um grupo coeso. Cada um tinha uma relação pessoal com

o Mestre, mas ainda não tinham um vínculo entre si. Esta experiência ser-lhes-ia

proporcionada em Pentecostes, onde fazem uma vivência comum da graça de Deus, um

acontecimento que cria entre eles união, comunhão, ligação, pertença que possibilita formar

uma comunidade participativa e igualitária (TEPEDINO, 2011, p. 121-122.). As diferenças

continuavam a existir, mas a fé em Jesus Cristo os unia como reflete o cardeal Suenens: “o

segredo de nossa aproximação está em aproximar-nos todos juntos de Cristo. [...] nossa

unidade implica numa união radical de todos nós com Cristo” (SUENENS, 1975, p. 257.).

Os pentecostais e os carismáticos católicos consideram-se atualizadores de

pentecostes, querem reviver os tempos da Igreja apostólica, por isso, também devem

sonhar com a unidade original da Igreja, devem lutar para reunir todos os cristãos no mesmo

lugar: o cenáculo; a grande imagem da unidade cristã na perspectiva pneumática, pois a

Igreja recebeu o Espírito em oração comum. Para que os pentecostais e os carismáticos

difundam em nossos dias a experiência do Espírito Santo eles devem ser profetas do

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avivamento e da unidade, onde cada indivíduo participante da experiência pentecostal-

carismática seja conscientizado de que o Espírito o faz membro de todo o mesmo e único

Corpo de Cristo (1Cor 12, 13).

Considerações finais

Para que se estabeleça um sincero diálogo católico-pentecostal em busca da unidade,

deve-se constantemente reafirmar que nenhuma Igreja possui o monopólio do Espírito

Santo, da pentecostalidade. E, no caso do ecumenismo entre católicos carismáticos e

pentecostais, devem reconhecer-se mutuamente uma mesma corrente de graça, com

idênticas manifestações, em quase todas as denominações cristãs, facilitando a unidade.

Assim, os pentecostais devem reconhecer na RCC não uma imitação, mas que seus

membros realmente vivenciaram uma experiência pentecostal. Afinal, o batismo no Espírito

Santo não é uma invenção pentecostal, mas, segundo Cipriano Chagas, possui base no novo

testamento e na vida da Igreja primitiva, comum para católicos e protestantes. Era somente

uma experiência esquecida na prática pastoral da Igreja Católica, que passou a ser

vivenciada pela RCC (CHAGAS, 1977, p. 61-62.). Por sua vez, os católicos da RCC devem

convencer-se, segundo Volney José Berkenbrock, de que o catolicismo não é o único espaço

legítimo da experiência cristã, mas que as igrejas pentecostais são verdadeiros espaços de

vivência da fé cristã, da experiência de Deus (Berkenbrock, 2004, p. 145.).

O diálogo entre a Renovação Carismática Católica e as igrejas pentecostais pode

contribuir na reflexão de todo o movimento ecumênico sobre a dimensão pneumática do

ecumenismo e o aprofundamento da dimensão pentecostal da fé cristã, entendendo o

Espírito Santo como o lugar da unidade dos cristãos. Também um chamado ao

aprofundamento do ecumenismo espiritual, que não pretende substituir a tarefa dos

teólogos em relação à unidade, mas, alinhar-se a esse esforço.

Referências bibliográficas

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