religiosidade e cidade - o santuário de

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A RTI GO Sérgio Romualdo Lima Brandim Mestre em História do Brasil (UFPI). É professor da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e da Faculdade Santo Agostinho (FSA). Pesquisador na área de História, Cultura, Antropologia e Religião. Desenvolve atividades acadêmicas na área de metodologia e projetos de pesquisa monográficos. RELIGIOSIDADEE CIDADE: O SANTUÁRIO DE SANT A CRUZ DOS MILAGRES-PI O Brasil é um país oficialmente católico, contu- do vem apresentando continuamente uma diminui- ção desta população para religiões neopentecostais, religiões afro ou de procedência oriental. Apesar des- ta diminuição, o Estado do Piauí ainda possui, aproxi- madamente, 91,3% de sua população que declaram ser católicos. Dentro desse espaço de forte característica re- ligiosa, as expressões de fé se apresentam e explo- dem aos olhos de seus habitantes, sendo que as fes- tas de padroeiros ou padroeiras marcam significati- vamente o calendário festivo das cidades piauienses. Dessa forma, as romarias, oferendas de ex-votos, pagamento de promessas, novenas, etc., tornam-se práticas recorrentes ao povo na demonstração de sua religiosidade. A influência religiosa e suas práticas devocionais observadas na cidade de Santa Cruz dos Milagres, único santuário reconhecido pelo Vaticano para peregrinação no Piauí, extrapolaram as fronteiras, e sua importância atu- almente é percebida pela quantidade considerá- vel de romeiros que para lá se dirigem, mesmo tendo como obstáculos os percalços geográficos e físicos que se impõem aos romeiros de vários estados nordestinos. A construção desse local, no imaginário do ser- tanejo, remete às décadas finais do século XIX, mis- turando-se às várias narrativas que iam florescendo nas suas experiências cotidianas, apresentando uma quantidade significativa de símbolos e marcando sen- sivelmente a estrutura religiosa e suas práticas. De forma resumida a lenda revela que, num certo dia, no Município de Valença, em uma locali- dade chamada Jatobá, chegou um beato com a sua pregação habitual de fé e convenceu um va- queiro a segui-lo até um morro próximo. Deu-lhe um cavador de madeira, mandou-lhe cavar a rocha bruta, mas o vaqueiro incrédulo somente ficou olhan- do e esperando o retorno do beato, que tinha desci- do o morro até um mato próximo, trazendo logo após uma cruz de 1,50m por 80cm, feita de pau de chapada”, uma árvore muito comum e abundante na região. Ao chegar e perceber que o vaqueiro nada fizera, o velhotraçou com o dedo um círcu- lo na pedra, sacando com a mão a pedra do buraco,

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  • ARTIGO

    Srgio Romualdo Lima BrandimMestre em Histria do Brasil (UFPI). professor daUniversidade Estadual do Piau (UESPI) e daFaculdade Santo Agostinho (FSA). Pesquisador narea de Histria, Cultura, Antropologia e Religio.Desenvolve atividades acadmicas na rea demetodologia e projetos de pesquisa monogrficos.

    RELIGIOSIDADE E CIDADE: O SANTURIO DESANTA CRUZ DOS MILAGRES-PI

    O Brasil um pas oficialmente catlico, contu-do vem apresentando continuamente uma diminui-o desta populao para religies neopentecostais,religies afro ou de procedncia oriental. Apesar des-ta diminuio, o Estado do Piau ainda possui, aproxi-madamente, 91,3% de sua populao que declaramser catlicos.

    Dentro desse espao de forte caracterstica re-ligiosa, as expresses de f se apresentam e explo-dem aos olhos de seus habitantes, sendo que as fes-tas de padroeiros ou padroeiras marcam significati-vamente o calendrio festivo das cidades piauienses.Dessa forma, as romarias, oferendas de ex-votos,pagamento de promessas, novenas, etc., tornam-seprticas recorrentes ao povo na demonstrao de suareligiosidade.

    A influncia religiosa e suas prticasdevocionais observadas na cidade de Santa Cruzdos Milagres, nico santurio reconhecido peloVaticano para peregrinao no Piau , jextrapolaram as fronteiras, e sua importncia atu-almente percebida pela quantidade consider-vel de romeiros que para l se dirigem, mesmo

    tendo como obstculos os percalos geogrficose fsicos que se impem aos romeiros de vriosestados nordestinos.

    A construo desse local, no imaginrio do ser-tanejo, remete s dcadas finais do sculo XIX, mis-turando-se s vrias narrativas que iam florescendonas suas experincias cotidianas, apresentando umaquantidade significativa de smbolos e marcando sen-sivelmente a estrutura religiosa e suas prticas.

    De forma resumida a lenda revela que, numcerto dia, no Municpio de Valena, em uma locali-dade chamada Jatob, chegou um beato com asua pregao habitual de f e convenceu um va-queiro a segui-lo at um morro prximo. Deu-lheum cavador de madeira, mandou-lhe cavar a rochabruta, mas o vaqueiro incrdulo somente ficou olhan-do e esperando o retorno do beato, que tinha desci-do o morro at um mato prximo, trazendo logo apsuma cruz de 1,50m por 80cm, feita de pau dechapada, uma rvore muito comum e abundantena regio. Ao chegar e perceber que o vaqueironada fizera, o velho traou com o dedo um crcu-lo na pedra, sacando com a mo a pedra do buraco,

  • onde colocou a cruz e disse ao vaqueiro que poraquele sinal, um dia aconteceriam maravilhas(MENDES, s/d, p.6). Depois disso desceu o morroe, j prximo ao rio So Nicolau, mostrou-lhe umanascente de gua, desconhecida na regio e dissepor aquela gua, at milagres ali haveria de acon-tecer (MENDES, s/d, p.6).

    Depois desse acontecimento, segundo a tradi-o oral, o vaqueiro teria voltado a seu cotidiano nor-mal. Tempos depois, a sua filha adoeceria e apesarde todas as rezas e remdios no mostrava sinais decura. Lembrando da nascente dgua e conseqen-temente das advertncias do beato, levou a crianapara o local escolhido por aquele. Ao banh-la e faz-la beber da gua aconteceu uma cura imediata, fa-zendo com que o acontecimento se espalhasse peloserto e, desde ento, as romarias foram se forman-do no intuito de presenciarem os milagres aconteci-dos naquela regio.

    Observamos, ao fazermos uma anlise sobre asverses da lenda, que essa possui algumas altera-es em seu teor, porm o contexto simblico que acompe permanece, na sua grande maioria, ileso, ouseja, os personagens que constituem so sempre obeato e o vaqueiro, alm dos entes naturais e sagra-dos como a cruz, a pedra bruta e o olho-dgua.

    No texto Manifestaes Folclricas (1995, p.357-358), as autoras Vernica Ribeiro e Maria Cec-lia Nunes narram a lenda da seguinte forma:

    Conta-se que num certo dia de um ano que no se sabemais qual, chega Fazenda Jatob um homemdesconhecido. Sem dar qualquer explicao, chama ovaqueiro e vai com ele a um morro prximo dali. Os doispassam a construir uma capela de taipa, coberta de palha,e um cemitrio[] O desconhecido risca o cho e retiracom as mos o pedao de pedra cortado. [] desce at osop do morro e mostra um pequeno olho-dgua junto auma palmeira de buriti [] a notcia do fato correu omundo. Foi o prprio Jesus Cristo que veio,pessoalmente, determinar o seu desgnio e escolheu aquelelugar, inspito e rido, como para significar seu carterpenitencial e mstico.

    As duas verses da lenda (a primeira narrao feita pelo Padre David Mendes e a segunda, trans-crita por Vernica Ribeiro e Maria Ceclia Nunes)

    diferenciam-se em alguns pontos quanto identida-de divina do homem desconhecido, mas verificvel que o contedo sagrado e os personagenscontinuam os mesmos.

    A lenda se perde no tempo, e o documentomais antigo sobre a regio foi encontrado no se-gundo Livro do Tombo da Parquia de Valena. Adata instituda neste marca o dia 20 de junho de1888, com a nomeao do Sr. Joaquim ManoelPereira de Sousa como Procurador da Capela deSanta Cruz dos Milagres, em terras da FazendaJatob. Outros documentos oficiais sobre o San-turio remetem s reformas e construes da igre-ja. Em 1893 construda uma capela em substitui-o a uma de palha que l havia. Porm, em 1911ocorre a reforma da capela transformando-a emigreja. Em 1929 construda uma outra igreja aolado da antiga que foi destruda, e os trabalhos deconstruo e reforma se estenderam at meadosdos anos de 1942. Em 1969 feita uma nova re-forma com a reconstruo do altar-mor e doSantssimo, alm da construo da torre, ficandototalmente pronta somente em 1983.

    Essas informaes acerca dos vrios proces-sos de construo, reforma e at de demolio indi-cam, a princpio, a importncia que esse movimentoreligioso passou a adquirir enquanto manifestao daf ou da crena no sagrado, favorecendo a cada pe-rodo um aumento significativo da quantidade de ro-meiros, influenciando na construo de uma carto-grafia que extrapolava a cada perodo os seus con-tornos originais.

    Podemos dizer que uma das formas que influ-enciaram essa mutao cartogrfica foram (e so)as manifestaes festivas, expresses visveis dosmomentos de ligao do sagrado com o profano,marcado no calendrio por trs grandes momentos:o primeiro refere-se aos festejos em setembro, du-rante a primeira quinzena; o segundo faz parte dacerimnia conhecida como Encontro de Imagens(santos trazidos das principais parquias do Piau),festejado no ltimo domingo do ms de outubro; e oterceiro refere-se comemorao da Inveno daSanta Cruz, realizada no ms de maio.

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  • ARTIGOSmbolos e Simbologias deSanta Cruz dos Milagres

    Uma das principais relaes perceptveis, emrelao lenda, a que diz respeito ao espao, esse fundamental na concretizao das manifestaesreligiosas existentes e um elo que permite manteraceso os laos que unem o sagrado e o profano. En-quanto funo metafrica, o espao realiza aconcretude dos passos dos romeiros e territorializaum corpo de simbologias, acessando mltiplas inter-pretaes, pois o simbolismo:

    acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ao,sem por isso prejudicar seus valores prprios e imediatos[] o pensamento simblico faz explodir a realidadeimediata, mas sem diminu-la ou desvaloriz-la, naperspectiva, o universo no fechado, nenhum objeto isolado em sua existencialidade, tudo permanece junto,atravs de um sistema precioso de correspondncia eassimilaes (ELIADE, 1996, p.178).

    Nesse caso, perceber as relaes intrnsecasao fenmeno religioso e, principalmente, ao contextode Santa Cruz dos Milagres passa em um primeiromomento pela necessidade de analisar algumassimbologias existentes nessa relao, tanto no quediz respeito s prticas religiosas, quanto quelas re-ferentes geografia do sagrado.

    Uma das principais simbologias existentes tan-to na mtica-lendria, como na geografia do sagradodiz respeito cruz. Ela a principal referncia parao santurio; o marco mtico e fundador do espao. sobre sua sombra que se manifestam os sonhos, ospedidos e agradecimentos.

    A cruz recupera a trajetria bblica e encerrauma mediao com a figura de Cristo e, dessa for-ma, seu valor revela-se essencial para a vida dossanturios, pois nesse espao onde o inalcanvele o possvel, o visvel e invisvel se interpenetram numatrama urdida pela narrativa ficcional dos relatos oraise dos fragmentos escritos(STEIL, 1996, p.23).

    A venerao cruz de madeira rstica resu-me a crena e a confiana em um ente superior,invocada para aliviar os mais diferentes males, tantoespirituais como materiais, externa um riqussimorepertrio simblico, tornando-se por excelncia

    signo e significado que atrai e projeta experinciasricas e significativas queles que se aglomeramao seu redor para pagar promessas, para rezar porgraas alcanadas ou, em uma ltima considera-o para que, num toque mgico, possam usufruirdeste poder.

    Essas experincias significativas do sagradolanam, segundo Mircea Eliade (1996, p. 54), o ho-mem para um tempo primordial, pois retira o ho-mem de seu prprio tempo individual, cronolgico,histrico[] e o projeta, pelo menos simbolicamen-te, no grande Tempo, num instante paradoxal queno pode ser medido por no ser constitudo poruma durao.

    Nesse sentido, as pessoas so arrebatadas paraum outro Tempo que se mostra nico pela possibili-dade de ligao com o religioso, com um ser superi-or, realizando nessa atmosfera sagrada uma ligaocom as representaes, essas se tornam importantestanto no sentido de orientao, dentro de uma socie-dade vigente, quanto uma possibilidade de comuni-cao (MOSCOVICI, 2003, p.21).

    Essas representaes, ao viabilizarem aintegrao do indivduo com a idia de espao supe-rior e sagrado, cristalizam e legitimam incessante-mente as mais diversas manifestaes religiosas, queritualizadas passaro a fazer parte de um universotangvel e cotidiano para milhares de romeiros, queatravs de suas prticas reformulam e resistem sdiversas tentativas de conteno e disciplinarizaoimpostas pelas normas catlicas.

    Dessa forma, as vrias manifestaes com re-lao Santa Cruz, como a adorao, a venera-o, os pedidos, os agradecimentos, as exposiesvotivas atravs de ex-votos, preces, olhares detidos,lgrimas, so exteriorizaes que atuam em tornode uma cultura religiosa, pois abrange:

    um sistema de smbolos que atuam para estabelecerpoderosas, penetrantes e duradouras disposies emotivaes nos homens atravs da formulao deconceitos de uma ordem de existncia geral e vestindoessas concepes com tal aura de fatualidade que asdisposies e motivaes parecem singularmente realistas(GEERTZ, 1989, p. 67).

  • Assim, a cruz enquanto smbolo cumpre umafuno poderosa, no sentido atribudo por Geertz,pois ajuda a estabelecer uma experincia unificadoraque se revela de forma contnua e dialtica, pois trans-forma simples objetos (como uma madeira) em umapotente realidade de transcendncia, oportunizandouma ligao com o sagrado, fazendo circular por umcdigo, o todo, num simples fragmento.

    Mas, no somente a cruz indicadora dessaexperincia religiosa, a gua existente na regio emformato geogrfico de olho-dgua espacializa osromeiros, pois constitui, juntamente com a cruz e aterra, eixos singulares e arqutipos de uma projeocelestial, projeo essa definidora da cidade sagra-da, pois esse prottipo extraterreno, como designaEliade (1992, p. 22-23), transforma-se em modelomgico-religioso capaz de transformar o caos emCosmo.

    A cruz, ao unir cu e terra, institui sobre o espa-o um conjunto harmonioso, transferindo aos outrosfenmenos naturais, como a gua, uma experinciareligiosa e mtica, potencializando aes que regemas prticas dos romeiros como o banho, a imerso dobatismo, pagamento de promessas, ou mesmo quan-do a ingerem confiantes na cura de doenas ou ain-da quando a levam como amuleto em sinal de umbatismo secreto, defendendo-os nos dias que noestiverem sobre a proteo do espao sagrado.

    O simbolismo aqutico, apontado por Eliade(1993, p. 153-154), importante pois:

    a imerso na gua simboliza o regresso ao pr-formal, aregenerao total, um novo nascimento, porque umaimerso equivale a uma dissoluo das formas, a umareitengrao no modo indiferenciado da preexistncia; e aemerso das guas repete o gosto cosmognico damanifestao formal. O contato com a gua implicasempre a regenerao: por um lado a dissoluo se segueum novo nascimento; por outro, porque a imerso fertilizae aumenta o potencial de vida e de criao.

    Buscarmos o entendimento dessas relaes re-ligiosas enquanto um conjunto de cdigos simblicos perceber que as prticas sociais s podem ser en-tendidas enquanto manifestaes culturais, pois abar-cam uma infinitesimal rede de estratgias e prticas

    realizadas pelos sujeitos que, por sua vez, se tornamprodutores e receptores de cultura.

    Indicarmos essas simbologias como uma redeque compartilhada pelos vrios atores sociais nosignifica entend-las apenas sob a conotao de en-redos presumveis. Isso acontece exatamente pelarelao dinmica entre espao e sujeitos, onde essesa todo o momento formulam e reformulam seu vivermgico-religioso.

    A opo pela interpretao do simblico, ao in-vs de limitar as explicaes, busca contribuir parauma leitura metafrica do religioso e suas redes designificados, tentando perceber como os diferentessujeitos realizam esse processo de decodificao, masque tambm permite transgresses e escapatrias,essas podem ser percebidas mais detidamente na-quilo que conhecido como profano.

    Isso significa que entender as conotaes implcitasem torno das simbologias como a cruz, a terra, a guae ainda a escadaria, ao invs de empobrecer aabordagem, faz parte da conscincia de que ossistemas culturais tm que ter um grau mnimo decoerncia, do contrrio no os chamaramos sistemas[] pois divorci-la das suas aplicaes torn-lavazia (CHARTIER, 1989, p.13).

    Entre o Santurio, onde fica a Cruz, e a cidade,onde fica a Fonte, temos a escadaria, um espao deligao entre o mundo sagrado (representado peloSanturio) e o profano (representado pela cidade). Aescadaria um smbolo marcante dentro do imagin-rio humano, segundo Eliade, devido a sua existnciamtica em vrias culturas, pois essa alegoria foi sendoutilizada para distinguir imageticamente o bem do mal,a felicidade da infelicidade, a santidade do profano,pois a viso de utilizao da escada sempre de baixopara cima, ou seja, do ruim para o melhor.

    A escadaria verticaliza duas aes opostas,pois ao tempo em que concretiza o espao profa-no, invertendo o sentido religioso e de penitncia,permitindo a externalizao do comrcio onde tudose encontra, desde a venda de imagens e produtossacros at o mais simples utenslio domstico, almde verduras e legumes, representa tambm de for-ma simblica:

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  • ARTIGOO que podemos observar, desde j, a virtudeconsagradora da altura. As regies superiores estosaturadas de foras sagradas. Tudo quanto est maisprximo do Cu participa, com intensidade varivel, datranscendncia. A altura, o superior, so assimiladosao transcendente, ao sobre-humano. Toda ascenso uma ruptura de nvel, uma passagem para o Alm, umaultrapassagem do espao profano e da condio humana(ELIADE, 1993, 92).

    Assim, ao formularmos de maneira resumidaalguns vieses de pensamento sobre o religioso emSanta Cruz dos Milagres, queremos tambm, no pr-ximo ponto de anlise, indicar a problemtica queenvolve a experincia mtico-religiosa das romariase seu sentido e funo para aqueles que significamseus passos em comunho com esse conjunto de sig-nos que envolvem o espao religioso.

    Romaria e Cidade: a construo simblica dosespaos

    A cidade de Santa Cruz dos Milagres, e a idiade santurio que a envolve, um excelente exemplopara compreendermos de que forma esse espaotornou-se um atrativo para milhares de pessoas, con-firmando pressupostos de que a cidade , acima detudo, uma fora atrativa, como abordou Rolnik (1995).Dessa forma a idia de cidade e a de sagrado atuamfeitos um campo magntico que atrai, rene e con-centra os homens (ROLNIK, 1995, p.12).

    Esse sentido de atrao que envolve os santu-rios parte de uma idia que norteia esse artigo aconvico da cidade enquanto ente simblico capazde expressar estratificaes de sentidos, pontuadopela fragmentao e trajetrias que alteram a noode espao, fazendo com que as aes dirias se tor-nem sempre indefinidamente outra.

    A romaria, nesse sentido, teatraliza a cidade,porque sob sua jurisdio que os passos elaboramoperaes do caminhar, pois:

    os movimentos pedestres formam um desses sistemasreais cuja a existncia de fato constri a cidade[] Aatividade dos passantes transforma-se em pontos quetraam uma linha totalizante e reversvel no mapa[]Essas fixaes constituem procedimentos para oesquecimento. O trao que deixou para trs substitudopela prtica (BARRETO, 1989, p. 28-29).

    Os passos dos romeiros inventam e reinventama cidade, criando um mapa de pontos que designamsignificados simblicos, articulando uma geografia deerrncia que multiplicada favorece:

    uma experincia esfarelada em deportaes inumerveise nfias (deslocamentos e caminhadas), compensadaspelas relaes e os cruzamentos desses xodos que seentrelaam, criando um tecido urbano, e posta sob osigno do que deveria ser, enfim, o lugar, mas apenas umnome, a cidade (CERTEAU, 1994, p.183).

    Esse entrelaamento de passos realizado sob acidade articula uma multiplicidade de consumos,pois os smbolos constituem possibilidades que ao sejuntarem s prticas errantes e religiosas explodemem uma contextualizao rica de significados.

    Sabemos que a romaria ou peregrinao umaprtica da maioria das religies, sendo um costumeque remonta aos mais antigos tempos, introduzida noBrasil pelos portugueses. um ato de devoo, comcarter penitencial, em que romeiros pagam promes-sas com doaes, esforos fsicos e entrega de ex-votos, em cerimnias litrgicas.

    A romaria pode ser individual, em dupla ouem grupo, a p, a cavalo, de charrete, moto, carro,caminho ou nibus fretado. Os romeiros viajammuitos quilmetros, com a finalidade de chegar aoslocais onde a Igreja Catlica, em suas capelas oubaslicas, igrejas ou matrizes, veneram santos e sm-bolos religiosos. Depois de pagar sua promessa poruma graa alcanada, o romeiro retribua a suagraa com velas, oraes, ex-votos ou esprtulas(presente).

    Essas peculiaridades referem-se tambm aocontexto do santurio de Santa Cruz dos Milagrese nos apontam que o lugar , acima de tudo, umacriao religiosa e sagrada, pois leva as pessoasa seres e poderes celestiais ou, retirando-as porum momento do lugar onde esto, f-los por uminstante conviverem com os homens sua experin-cia de nmades, dentro ou fora da festa(BRANDO, 1989, p.40).

    A romaria praticada pelo catolicismo tradicio-nal tem como ponto fundamental a sacralizao de

  • locais especficos da cultura religiosa. Isso aconte-ce, pois os locais de culto so sagrados e especial-mente devotados e protegidos por padroeiros quan-do certos lugares sagrados so nicos ou particu-larmente dotados de poder religioso (BRANDO,1989, p. 37).

    Nesse sentido, realamos que a romaria, ao tem-po em que faz circular uma rede simblica com ritose celebraes, contribui para uma dinmica cultural,pois os passos ritualizados pelos romeiros apresen-tam uma dupla funo: significam e enriquecem asprticas sociais e reatualizam a presena do sagra-do, afirmando a posio de destaque que passou adesempenhar as cidades-santurios, dentro do con-texto nacional, marcado pela acirrada diviso social,fazendo assim com que as preces, romarias e pro-messas tornem-se uma alternativa benfica frenteaos flagelos sociais.

    REFERNCIASBRANDO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. 2. ed. Campi-nas, SP: Papirus, 2001._ _ . A par tilha do tempo. In: SANCHIS, Pierre (Org.) Ca-tolicismo: cotidiano e movimentos. Rio de Janeiro:EdiesLoyola, 1992._ _ . Andando na cidade. HOLANDA, Heloisa Buarque de(Org.) Revista Cidade, Rio de Janeiro, n. 23, p. 95-114, 1994.CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: arte de fazer.4.ed. Petrpolis: Vozes, 1994. v. 1._ _ . Mito do eterno retorno. So Paulo: Mercuryo, 1992.______. O sagrado e o profano: a essncia das religies.So Paulo: Mar tins Fontes, 1996.ELIADE, Mircea. Tratado de histria das religies . So Paulo:Mar tins Fontes, 1993.FREIXINHO, Nilton. O serto arcaico do Nordeste do Brasil :uma releitura. Rio de Janeiro: Imago, 2003.GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas . Rio de Janei-ro: LTC, 1989.MENDES, David. Santurio de Santa Cruz dos Milagres : umpouco de sua histria. [S. l.: s. n., 19--].ROLNIK, Raquel. O que cidade. 3. ed. So Paulo: Brasiliense,1994.SANTANA, R. N. Monteiro de. (Org.) Piau: formao, desen-volvimento e perspectivas.Teresina: Halley, 1995.STEIL, Carlos Alber to. O serto das romarias : um estudo an-tropolgico sobre o santurio de Bom Jesus da Lapa Bahia.Petrpolis, RJ: Vozes, 1996.

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