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v.24, n. 1, 2007

ISSN 0101-5532

GOVERNADOR DO ESTADOWellington Dias

SECRETÁRIO DO PLANEJAMENTOSérgio Gonçalves de Miranda

FUNDAÇÃO CEPROPresidente

Oscar de Barros Sousa

GERÊNCIA DE ESTUDOS E PESQUISASSOCIOECONÔMICAS

Carlos Lima

GERÊNCIA ADMINISTRATIVA FINANCEIRANatildes Lima Verde

GERÊNCIA DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÃOElias Alves Barbosa

PUBLICAÇÕESAlmir Cassimiro Queiroga

CARTA CEPRO: Publicação semestral, criada em 1974

CORRESPONDÊNCIAFUNDAÇÃO CEPRO

BIBLIOTECA PÁDUA RAMOS

Av. Miguel Rosa, 3190/Sul • CEP: 64001-490 • Teresina–PIFones: (86) 3221-1415 / 3221-5599 • Fax: (86) 3221-5846

[email protected] www.pi.gov.br/cepro

É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta revista, desdeque mencionada a fonte. Os artigos assinados não refletem, necessariamente,

o ponto de vista da Fundação CEPRO.

DIRETOR-GERALOscar de Barros Sousa

DIRETOR EXECUTIVOAlmir Cassimiro Queiroga

CONSELHO EDITORIALAlmir Cassimiro Queiroga

Carlos LimaElias Alves Barbosa

Joana D'arc Fortes P. BarbosaRosário de Fátima F. Bacelar

PRODUÇÃO/REDAÇÃO/EDIÇÃOAna Cláudia Amorim Barbosa

RP - 1212 - DRT - PISâmia Danielle C. Menezes

RP - 1260 - DRT - PI

COLABORAÇÃOHélcio FerreiraSérgio Fontenele

CONSULTORIAJairo Gomes Araújo

COPIDESQUE (REVISÃO)Almir Cassimiro Queiroga

CHECAGEM DA REVISÃOIlma Araújo Véras e SilvaTeresa Cristina Moura Araújo NunesEva Maria Evangelista Leal

CORREÇÃO DA DIGITAÇÃOMaria das Graças Nunes Osternes

Programação VisualEclética!

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ESPAÇO CEPRO 09

ENTREVISTA 12Sérgio Mamberti

PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL 16Identidade, ação e memória dos diferentesgrupos da sociedade brasileira

ARTESANATO 24Potencialidades do Piauí geram renda

FESTA POPULAR 28Pesquisa revela característicalocal dos folguedos

DEBATE CARTA CEPRO 30Identidade cultural do Piauí

ARTIGOS 37

Sumário

1 - Trilhas e enredos no imaginário 38social de sertão no PiauíMaria Dione Carvalho Moraes

2 - Identidade cultural, ritual e cidadania – 50considerações preliminares acerca dosfestivais de arte no PiauíFabiano Gontijo

3 - A importância socioambiental da bacia 54hidrográfica do rio Poty na formação daidentidade cultural piauienseBenedito Rubens Luna de Azevedo

4 - Religiosidade e cidade: o santuário 60de Santa Cruz dos Milagres-PISérgio Romualdo Lima Brandim

A legislação brasileira define patrimônio culturalcomo bens de natureza material e imaterial, to-mados individualmente ou em conjunto, porta-dores de referência à identidade, à ação, e à me-mória dos diferentes grupos formadores da so-ciedade brasileira.

Vemos que o patrimônio cultural é de fundamen-tal importância para a memória, a identidade e acriatividade dos povos e a riqueza das culturas.Diante disso, a pedido da Fundação Cultural doEstado (Fundac), nesta 24ª edição da RevistaCarta Cepro, a Fundação Cepro faz um recorte etraz informações sobre o nosso patrimônio cul-tural imaterial que engloba todas as formas tradi-cionais e populares de cultura, transmitidas oral-mente ou por gestos, as quais, com o passar dotempo, são modificadas pelo processo de recri-ação coletiva.

Traz ainda um debate sobre identidade cultural,que é o sentido de saber se reconhecer. Um sen-timento de identidade de um grupo ou cultura,ou de um indivíduo, na medida em que ele éinfluenciado pela sua pertença a algum dessessegmentos.

Na identidade cultural, a influência do meio mo-difica totalmente um ser, já que nosso mundo érepleto de inovações e características temporári-as, os chamados “modismos”. Uma pessoa quenasce em um lugar absorve todas as caracterís-ticas deste, porém se ela for submetida a umacultura diferente por muito tempo ela adquirirácaracterísticas do local onde está agregada.

No passado as identidades eram mais conserva-das devido à falta de contato entre culturas dife-rentes, porém, com a globalização, isso mudoufazendo com que as pessoas interagissem mais,entre si e com o mundo ao seu redor.

O importante é que devemos respeitar todos ostipos de identidades, pois protegendo os patri-mônios culturias locais e regionais, estaremosprotegendo nosso patrimônio mundial.

Oscar de Barros SousaPresidente da Fundação Cepro

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Carta CEPRO, Teresina, Fundação CEPRO – v.1 – nov. 1974 –

“A periodicidade varia”ISSN 0101-5532

A publicação não circulou nos anos de 1979, 1985, 1989-90, 1992-93, 1996-98,2004, 2006.

1. Situação socioeconômica – Piauí – Periódicos.2. Economia do Piauí – Periódicos. I. Fundação CEPRO.

CDU 308+338 (812.2) (05)

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Inclusão SocialA Fundação Cepro é parceira do Siste-

ma Integrado de Comunicação Meio Nortena coordenação do Prêmio Piauí de Inclu-são Social, conferido anualmente a empre-sas, empreendedores, instituições e organi-zações governamentais e não-governamen-tais, que tenham desenvolvido iniciativas pró-prias de criação de emprego, geração de ren-da, inserção social e construção da cidada-nia entre os piauienses. O Prêmio, que estána 3ª edição, já faz parte do calendário deeventos do Estado.

Jornalismo EconômicoFrases de agradecimentos, elogios e pedidos

por mais realizações de encontros com profissio-nais de áreas estratégicas relacionadas ao mun-do da economia marcaram o final do curso deJornalismo Econômico, promovido pela Cepro, emsetembro de 2007, e ministrado pelo professor ti-tular da Escola de Comunicações e Artes da USP,Bernardo Kucinski.

A maioria da turma (90%) era formada por jorna-listas de redação, assessores de imprensa e estudan-tes de comunicação, mas o curso despertou o inte-resse de profissionais de outras áreas. Devido aosucesso do curso, o presidente da Fundação Cepro,Oscar de Barros, já pensa em realizar outrascapacitações profissionais. “Estamos estudando apossibilidade de promover uma capacitação sobreestatística e economia piauiense, já que recebemosessa demanda dos alunos do curso.”

A Cepro elaborou o Índice de Desempenhoda Gestão Municipal (IDGM) com o objetivo deconhecer de modo sistemático as característicasda gestão administrativa do municípiopesquisado. Essa iniciativa é resultado dapreocupação que o órgão teve em trabalhar comum indicador a partir da avaliação dos seuspróprios técnicos. Isso porque, com aConstituição Federal de 1988, houve adescentralização administrativa e tributária emfavor dos municípios e da institucionalização doprocesso de planejamento público em âmbito

local. Conseqüentemente, tem aumentado a demandade informações sociais e demográficas para fins deformulação de políticas públicas municipais.

O mestre em economia e pesquisador daFundação Cepro, Sebastião Carlos, inclusive, teveseu artigo científico premiado em 1º lugar no IVSeminário de Ensino Contábil do Piauí, promovidopelo Conselho Regional de Contabilidade. Seu artigocom o tema Análise de Desempenho Fiscal e deGestão dos Municípios Piauienses de 2006 temcomo base o IDGM, cujo projeto-piloto está sendoexecutado no Município de São João do Arraial.

Índice de Desempenho da Gestão Municipal

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A Cepro agora faz parte da nova comissão de trabalho da Assem-bléia Legislativa, que tem como objetivo a revisão dos limites dosmunicípios do Estado do Piauí, tendo, no final, cada município, ummapa atualizado e uma nova lei. Também integram essa comissãomista o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Asso-ciação Piauiense de Municípios (APPM) e Conselho Regional de En-genharia, Arquitetura e Agronomia do Piauí (Crea-PI); além dos de-putados estaduais Moraes Souza (PMDB), Mauro Tapety (PMDB)e Paulo Martins (PT), sendo este o presidente.

A Comissão tem o papel de organização. Por ter essa natureza, opresidente da Cepro, Oscar de Barros, defendeu que o Governo doEstado tenha em sua estrutura administrativa um órgão responsávelpela execução daquilo que a comissão decidir, indicando a Cepro.

Anuário do PiauíA Cepro, em parceria com o Sistema O Dia

de Comunicação, Portal AZ e a P&B Comuni-cação Ltda., foi a responsável pela elaboraçãodo Anuário do Piauí, publicação que aborda

Comissão de Estudos Territoriais

aspectos físicos, econômicos, políticos e soci-ais do Estado. O trabalho é direcionado a estu-dantes, pesquisadores e à sociedade em geral,dispondo de acervo fotográfico e informaçõesestatísticas relativas aos diferentes segmentossocioeconômicos do Piauí.

Dep. Paulo Martins

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Rede Nacional deEstudos e Pesquisas

A convite da Associação Nacional das Instituiçõesde Planejamento, Pesquisa e Estatística (Anipes) edo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),o presidente da Cepro, Oscar de Barros, e oeconomista do órgão, Sebastião Carlos, estiveram emBrasília, em 24 de outubro deste ano, participandode Oficina de Trabalho com representantes de todasas instituições associadas à Anipes e outrasinstituições de estudos e pesquisas estaduais nãoassociadas.

Um dos objetivos da Oficina foi a apresentaçãodas potencialidades e experiências de cada instituição,no sentido de definir a contribuição de cada Institutopara retomar a experiência de uma rede de estudose pesquisas nacional.

Diagnósticoda Juventude

A Cepro vai traçar o diagnóstico dajuventude piauiense. Convênio nessesentido foi assinado entre o órgão e arecém-criada Coordenadoria Estadual dosDireitos Humanos e da Juventude. Apesquisa vai subsidiar os trabalhos daCoordenadoria durante a ConferênciaEstadual da Juventude, que será realizadaem março de 2008.

O convênio com a Fundação CEPROpara conhecermos quem é o jovem do Piauíé um dos pontos importantes nesta fase deinstitucionalização da Coordenadoria, poisnão podemos agir sobre algo que nãoconhecemos, disse o coordenador estadualde Direitos Humanos, Alci Marcus.

IQEF – Índice de Qualidade do Emprego FormalA Cepro elaborou o Índice de Qualidade do Emprego Formal (IQEF), cujo objetivo é mensurar a

evolução qualitativa do emprego formal, envolvendo o Estado do Piauí e a cidade de Teresina comperiodicidade anual. A metodologia utilizada é a média entre os indicadores de rotatividade, escolaridade,salário médio e concentração salarial.

Anipes

Em 2006, mais uma vez, a Cepro protagonizou ahistória da estatística do Piauí, ao sediar 11° Encontroda Associação Nacional das Instituições dePlanejamento, Pesquisa e Estatística (Anipes).Durante três dias (29 e 30 de novembro e 1° dedezembro) instituições de todo o país discutiram sobreos indicadores socioeconômicos e estatísticos doBrasil. O papel das instituições estaduais e municipaisna produção e disseminação de informaçõeseconômicas, sociais, ambientais e cartográficas nosistema estatístico nacional e como agir em sintoniajunto ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), órgão responsável pelo censo populacional;e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),instituição vinculada ao Ministério do Planejamento,foram alguns dos temas abordados.

QualificaçãoA partir de 2007, a Cepro conta com dois mestres emseu quadro de servidores efetivos. São eles EliasBarbosa e Marta Gorete que concluíram Mestradoem Educação pela UFPI. Com certeza uma conquistaimportante para os dois e, principalmente, para aFundação Cepro, afinal, antes dos números, vêm osprofissionais.

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Nacionalmente conhecido comoator de telenovela, Sérgio Mambertideixa a ficção para brilhar no palco davida real. Como artista, é na cultura queele se identifica, realizando um traba-lho singular na Secretaria da Identida-de e da Diversidade Cultural do Minis-tério da Cultura (SID/MinC). Nesta en-trevista, ele fala um pouco sobre osavanços e retrocessos dessa área, cujodebate se faz cada vez mais necessáriona sociedade moderna.

Como fazer políticaspúblicas para a cultura, levando emconsideração a diversidade culturaldo Brasil?

Mamberti – Existe apenas uma manei-ra de legitimar a construção de políti-cas públicas para atender à riqueza eà complexidade da diversidade cultu-ral brasileira: convocar nacionalmen-te as figuras representativas de cadaum desses segmentos, respeitandosobretudo a pluralidade das nossasmanifestações.

Somente assim, aqueles que vi-vem o cotidiano do fazer cultural po-derão ter preservadas suas identida-des, valorizar e fortalecer o conjuntode suas expressões culturais.

Desde o início de sua primeiragestão à frente do Ministério da Cul-tura, o ministro Gilberto Gil tem pauta-do todas as nossas ações na elabora-ção de metas e parâmetros que ve-nham garantir cidadania cultural a to-dos os brasileiros, a partir de uma ple-na participação da sociedade em to-das as etapas desse processo.

Aliás, essa tem sido a caracte-rística marcante do Governo Lula nosseus dois mandatos: desenvolver epotencializar os avanços de cada se-tor, oferecendo suporte técnico e eco-nômico para a promoção e proteçãode nossa extraordinária diversidade,

nacional e internacionalmente.Desde o início, apoiados por re-

presentativa consulta nacional e peloacúmulo de discussões com as maisdiferentes áreas, que resultaram naconstituição do Projeto de Cultura doGoverno Lula para a candidatura de2002 “A Imaginação a Serviço do Bra-sil”, realizamos profundas reformas ereestruturações em busca de soluçõespara a fragilidade institucional do Mi-nistério. Reformulamos sua estruturaadministrativa, passando inclusivepela reforma inadiável de suas insta-lações físicas, realizamos o seminário“Cultura para Todos”, uma discussão

“O Brasil ainda mantémsuas tradições muito vi-vas nas ruas, evidenci-ando a força de nossadiversidade cultural”

SÉRGIO MAMBERTI

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de ampla ressonância nacional sobreo financiamento público da cultura.Projetos inovadores como o projeto“Cultura Viva” e seus Pontos de Cul-tura, e a Secretaria da Identidade e daDiversidade Cultural foram criadoscom o propósito de completar os es-paços vazios da história, permitindo-nos vencer o desafio de enfrentar astarefas compreendidas por esta am-pla visão de cultura. O MinC tem hojena Convenção da Unesco sobre a Pro-teção e a Promoção das ExpressõesCulturais, aprovada em 2005 eratificada pelo Brasil em 2006, seu maisimportante instrumento para respaldaruma ação ampla e vigorosa, capaz devalorizar e fortalecer nossa imensa erica diversidade cultural, característi-ca da condição humana e herança in-dispensável para a plena realizaçãodos indivíduos na sociedade. Pensa-mos e estamos construindo o Minis-tério da Cultura no contexto em que oEstado retoma seu papel na socieda-de brasileira de órgão formulador eexecutor de uma política cultural parao país.

Alguns artistaspiauienses dizem que não se faz maiscultura na rua. O que o senhor achadisso?

Mamberti – O espaço público no Bra-sil contemporâneo, particularmente noque diz respeito à complexidade davida nas grandes metrópoles, tem ten-dido a estreitar-se para as manifesta-ções culturais em praças e ruas porvárias razões: segurança, dificuldadesde mobilização, a cultura televisiva,sem falar na ausência de mecanismose políticas de preservação dessas tra-dições. Por outro lado, a interferênciado mercado tem descaracterizado fes-tividades como o carnaval em funçãodo lucro.

A cultura não se faz evidente-mente apenas nas ruas, mas no Brasilas culturas tradicionais sempre ocu-

param as praças e ruas de nossas ci-dades. Dentro das salas fechadas, comcobrança de ingresso, as manifesta-ções culturais têm sido acessíveisapenas às classes mais privilegiadas,não só pela linguagem como pelaquestão econômica, que impede ascamadas sociais menos favorecidas afruição desses espetáculos. Felizmen-te, apesar dessa ameaça constante deperdas, o Brasil ainda mantém suastradições muito vivas nas ruas, evi-denciando a força de nossa diversi-dade cultural.

Temos que ampliar esses hori-zontes com políticas públicas que ga-rantam a sua continuidade, para quenossa diversidade se expresse clara-mente, procurando sobretudo nãoestabelecer qualquer tipo de hierar-quia que discrimine as manifestaçõespopulares como inferiores em relaçãoàs manifestações consideradas erudi-tas. A cultura brasileira é uma mesafarta onde todos podem se servir, des-de que seja oportunizada democrati-camente a acessibilidade, em todos osseus aspectos e dimensões, desde oapoio à produção, à circulação, à pro-moção e fruição de serviços e bensculturais.

Como o senhor avaliao resgate das culturas populares e aprodução cultural contemporânea, es-pecialmente a que é produzida pelosjovens?

Mamberti – Uma das iniciativas maisimportantes da SID/MinC é o projetode Políticas Públicas para as Cultu-ras Populares. Ele vem sendoconstruído desde 2004, quando rea-lizamos oficinas temáticas em 15 es-tados do Brasil, com a participaçãode mestres e grupos que se dedicamà preservação desse patrimônio cul-tural, de origem ibérica, afro-descen-dente e indígena, que constitui umdos maiores acervos, tanto do pontode vista material quanto imaterial, da

cultura brasileira. A partir dessas ofi-cinas, realizamos, em 2005, o I Semi-nário das Políticas Públicas para asCulturas Populares, fato reconheci-do como histórico, pela riqueza dasdiscussões e manifestações da diver-sidade cultural brasileira, que culmi-naram com a edição de um livro so-bre todo o processo e a elaboraçãodo primeiro edital, lançado no finaldo mesmo ano. Em 2006, realizamos oII Seminário Nacional, simultanea-mente com o I Encontro Sul-Ameri-cano de Culturas Populares. Única nomundo, a SID tem despertado a aten-ção de alguns países, como oParaguai, por exemplo, que está emfase de implementação de um depar-tamento para atender à complexida-de destes temas, dentro do plano decooperação técnica entre os dois pa-íses. Começamos a trabalhar com asculturas populares, com a diversida-de sexual, depois com as culturas in-dígenas; ampliamos para a culturacigana e agora pretendemos expan-dir para faixas etárias (criança, ado-lescente e idosos), para a área daSaúde Mental, para o movimento HipHop e para a capoeira.

Vamos publicar também um guiadas culturas populares, que será umaespécie de catálogo, para você saberquem é quem, o que está fazendo e emque lugar do Brasil. Isso criará condi-ções também para que esses artistassejam solicitados, convidados paraparticipar de eventos, desenvolven-do uma sustentabilidade de suas ati-vidades. Temos trabalhado, também,com o Ministério do Turismo, no quese refere à organização dos roteirosturísticos nacionais, salientando-se aimportância da interface da Culturacom o Turismo.

Destaco, ainda, o programaRede Cultural da Terra, desenvolvi-do em parceria com o Ministério doDesenvolvimento Agrário, Ministé-rio do Meio Ambiente e o Movimen-to dos Trabalhadores Sem-Terra

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14(MST). Estamos ampliando nossasparcerias, desta vez com a ComissãoPastoral da Terra, o Movimento doPequeno Agricultor e a Confedera-ção Nacional dos Trabalhadores naAgricultura (Contag).

Ainda não temos uma políticaespecífica para a juventude, emboraem todos os nossos programas e pro-jetos os jovens tenham papel impor-tante, particularmente na cultura HipHop e na Capoeira.

O senhor acha que hojeos meios de comunicação conseguematender a essa demanda brasileira quequer saciar-se de cultura popular?

Mamberti – Não há dúvida nenhumaque a cultura da televisão é culturapopular. É cultura de massa, porém vei-culada segundo os desígnios do mer-cado. Seria desejável que houvesse,nas contrapartidas firmadas para es-sas concessões, uma produção maisvoltada para a valorização das cultu-ras populares tradicionais e da pro-dução cultural brasileira, para que asemissoras pudessem realmente estarcumprindo seu papel de valorizaçãoda diversidade. A criação de um Siste-ma Nacional de TVs Públicas bemcomo o projeto de regionalização daprodução audiovisual brasileira, quehá anos tramita no Congresso e en-contra-se parado no Senado Federal,por motivos óbvios de interesses dasgrandes corporações, viriam atenderàs demandas de nossa produção in-dependente por todo o Brasil, prote-gendo e difundindo nossa extraordi-nária diversidade.

Que ações concretas jáforam desenvolvidas pelo Governo Fe-deral neste sentido?

Mamberti – O Ministério da Cultura,na tentativa de melhor compreenderos desafios da televisão pública bra-sileira num contexto da revolução di-

gital e aprofundamento da democra-cia, promoveu recentemente emBrasília o I Fórum Nacional de Televi-são Pública. Sob o prisma da conver-gência, para usar aqui essa imagemdas mudanças em curso na economiada televisão e na economia da culturacom a digitalização das câmeras eequipamentos, a TV Digital, a TV so-bre a Internet e a TV portátil no celu-lar e tantas outras possibilidades detransmissão e interatividade, desde oinício de nossa gestão viemosreorientando e projetando um novomodelo de produção cultural para atelevisão pública. Um modelo de ges-tão interessado em fortalecer a aces-sibilidade dos brasileiros aos bens cul-turais produzidos com recursos pú-blicos. Um modelo interessado emaprofundar os aspectos federativos,ampliando as possibilidades de ex-pressão em todo o território, sem pre-juízo do potencial das articulações eprogramações em rede nacional. Deforma geral a televisão é compreendi-da como o fenômeno global. A realiza-ção plena e qualificada da televisãopública brasileira, como tem afirmadoo ministro Gilberto Gil, é uma das agen-das estratégicas para o desenvolvi-mento cultural do Brasil e a consoli-dação de um país socialmente justo eantenado nas forças criativas do povobrasileiro.

E quanto ao trabalho deresgate da cultura indígena, que temno Piauí uma iniciativa pioneira?Como tem sido sua receptividade?

Mamberti – Em abril de 2004, partici-pamos, no Recife, do Seminário Po-vos Indígenas – Olhando para o Fu-turo, promovido pela Fundação Joa-quim Nabuco, quando, pela primeiravez, nos reunimos com algumas lide-ranças que dele participaram e noscomprometemos a organizar a pre-sença dos povos indígenas no FórumCultural Mundial (FCM), realizado

em São Paulo, em junho do mesmoano. Foram constituídas três mesas,consideradas das mais importantesdo evento pela riqueza dos depoi-mentos. Para a implementação das re-comendações constantes do docu-mento gerado no FCM, foi criado, emabril de 2005, por meio de Portaria as-sinada pelo ministro Gilberto Gil, oGrupo de Trabalho Indígena – comampla representatividade de lideran-ças indígenas – que tem por objetivodiscutir e propor políticas públicaspara as culturas dos povos indíge-nas. Em 2006, como resultado das dis-cussões do GT, foi instituído o I Prê-mio Culturas Indígenas – EdiçãoÂngelo Cretã, que, por meio de edital,privilegiou o fortalecimento e a pro-teção das culturas indígenas em to-dos os seus aspectos e suas dimen-sões.

O interesse gerado pelo con-curso ultrapassou todas as nossasexpectativas. Numa população de 750mil índios, 504 projetos foram apre-sentados, oriundos de todo o Brasil,perfazendo um total aproximado de350 mil índios, ou seja, praticamentea metade da população indígena. Fo-ram premiados 82 projetos, atingin-do por volta de 60 mil indígenas, oque atesta o êxito da iniciativa, sen-do que cada etnia vencedora serácontemplada com R$15 mil. Além doformato da premiação, que minimizouos entraves burocráticos para umapopulação que não tem constituiçãojurídica, inovamos também na comu-nicação. Sensibilizamos os mais va-riados meios, dentre eles, rádios co-munitárias, Rádio Nacional da Ama-zônia, Hora do Brasil, que nos ajuda-ram a divulgar o concurso. As inscri-ções puderam ser feitas pela Internet,por cartas, por telefone 0800, VTs-DVDs, até mesmo em sua língua ori-ginal, de modo que houve uma facili-tação para as inscrições. A Associa-ção Guarani Tenonde Porã, além deajudar na divulgação do prêmio, foi

ENTREVISTA

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capacitada para ser nossa parceiranesse trabalho.

Os recursos destinados àpremiação, no valor de mais de 1,2milhão, vieram da Petrobras, empresapatrocinadora do concurso, por meioda Lei Rouanet. Tivemos ainda oapoio inestimável de outras institui-ções, como o SESC – São Paulo e aRadiobras na divulgação do prêmiopor todo o país. Esse conjunto de ini-ciativas contribuiu para o sucesso doprêmio, gerando um riquíssimo mate-rial gráfico e audiovisual que serátransformado num belíssimo livro comtextos e fotos, a ser lançado em SãoPaulo no SESC Vila Mariana, em 15 deagosto, com a entrega dos prêmios ea presença de 82 etnias e do ministroGilberto Gil.

E a partir deste ano,como vai ser esse trabalho com os in-dígenas?Mamberti – Vamos continuar deba-

tendo e amadurecendo várias ques-tões, trabalhando em torno de dire-trizes e ações propostas e acatadasno GT Indígena, que será ampliadoe transformado num fórum perma-nente, voltado para as culturas indí-genas, que participará da elabora-ção do segundo edital do PrêmioCulturas Indígenas, Edição XicãoXucuru, contando com recursos deR$3.500.000,00 provindos daPetrobras. Estamos desenvolvendo,também junto à Secretaria de Comu-nicação da Presidência da Repúbli-ca (Secom), a Campanha Nacional deValorização das Culturas Indígenas.Com esse trabalho, queremos pro-mover e fortalecer as culturas dosprimeiros povos brasileiros, paraque possamos, nacionalmente, ven-cer o preconceito e a discriminação,e nos inteirarmos da profundidadeda contribuição das culturas indíge-nas para a formação do nosso povo.Essa campanha se destina a todosos segmentos da sociedade brasi-leira, inclusive os povos indígenas,em atendimento a uma de suas rei-vindicações básicas: não ser trata-dos apenas como objeto de estudo,mas pelo direito de serem sujeitosde sua própria história.

Em todo o país, existem hoje 222etnias que falam cerca de 180 línguas,que fazem do Brasil, ao lado da Índia,o país com maior número de línguasno mundo. No próximo ano, devemosrealizar, na Bahia, o I Encontro Sul-Americano de Cultura dos Povos In-dígenas. Além disso, estamos traba-lhando junto à Secretaria doAudiovisual (SAV) na criação doDOCTV Indígena. Antes, porém, emparceria com a SAV e a organizaçãoVídeo nas Aldeias, realizaremos ofici-nas de capacitação para a formaçãotécnica dos indígenas na área de fo-tografia e de roteiro, para ampliar suaatuação.

Este edital foi lançado em SãoPaulo, em 2 de abril, com muito suces-

so, durante as comemorações do DiaNacional do Índio, quando realizamosuma Mostra de Cinema Indígena, emparceria com a organização Vídeo nasAldeias e a Cinemateca Brasileira, emSão Paulo.

Podemos dizer que ameta final seria trabalhar a econo-mia de cultura de forma a garantiroportunidades para quem, de fato, pen-sa e se dedica à cultura?

Mamberti – O Ministério tem atuadoa partir de três eixos temáticos: cul-tura como valor simbólico, como ci-dadania, e cultura como economia.Estamos procurando condições, como conjunto de pesquisas que solici-tamos ao IBGE e ao IPEA, para a par-tir desses dados conhecer a contri-buição da cultura para o PIB brasilei-ro e como lidar com a economia dacultura. Atividades artísticas comoteatro, dança e circo estão constru-indo processos, através das câmarassetoriais, traçando diagnósticos quevão permitir um aprofundamento,bem como o estabelecimento de po-líticas que possam ser bem mais pre-cisas em relação às necessidades decada setor.

Empreendemos nacionalmente,nestes quatro anos e meio, um inédi-to e exitoso processo participativo,capaz de subsidiar e legitimarrepublicanamente todas estas con-quistas, atuando também com o mes-mo vigor para a obtenção de recur-sos financeiros indispensáveis paraa implementação destas políticas.Conseguimos, assim, avanços con-sideráveis nas áreas de fomento ecrédito às atividades de produção debens e serviços culturais, e tambémpara as atividades ligadas à preser-vação da memória, instrumentos es-senciais para a construção da nossaidentidade e para um verdadeiro de-senvolvimento cultural.

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CAPA

O que seria da sociedadehumana se seus valores e tradi-ções tivessem se perdido ao longodo tempo? Qual a contribuição quecada cidadão pode dar para garan-tir a construção da história e, prin-cipalmente, para que os conheci-mentos passados de pais para fi-lhos não se percam ou tenham pro-fundas modificações?

Perguntas como essas hámuito afligem o homem que, ape-sar de lutar pelo aprimoramentodas tecnologias, compreende quesua história precisa ser preserva-da. Os museus e os sítios históri-cos tombados, urbanos ou rurais,

estão aí pra isso. Guardam obje-tos antigos, confirmando a nature-za simples do homem em sua ori-gem.

Mas, e o conhecimento? Ri-tuais religiosos, festas, costumes,saberes, línguas... ? Tudo isso tam-bém é cultura, é patrimônio, comvalor tão imensurável quanto aque-les. Esses também são denomina-dos patrimônios culturais, mencio-nados, inclusive, pela Constituiçãoda República Federal Brasileira de1988, em seu artigo 216.

Eis a definição que a legis-lação brasileira dá ao patrimôniocultural: “bens de natureza ma-

terial e imaterial, tomados indi-vidualmente ou em conjunto,portadores de referência à iden-tidade, à ação, à memória dosdiferentes grupos formadores dasociedade brasileira”.

São considerados bens com-ponentes do patrimônio cultural,as formas de expressão; os mo-dos de criar, fazer e viver; as cri-ações científicas, artísticas etecnológicas; as obras, objetos,documentos, edificações e demaisespaços destinados às manifesta-ções artístico-culturais; e os con-juntos urbanos e sítios de valorhistórico, paisagístico, artístico, ar-

Identidade, ação e memória dos diferentes grupos da sociedade brasileiraPATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

CCOM

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Arte Santeira da Cidade de Teresina

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queológico, paleontológico, ecoló-gico e científico.

O patrimônio culturalimaterial engloba todas as formastradicionais e populares de cultu-ra, transmitidas oralmente ou porgestos, as quais, com o passar dotempo, são modificadas pelo pro-cesso de recriação coletiva. Cele-brações, como festas e cultos reli-giosos; saberes, como os conheci-mentos, fazeres tradicionais, culi-nária e artesanato regionais; for-mas de expressão, como o repen-te, o cordel, a catira, os pastoris eos maracatus; e, igualmente signi-ficativos, os lugares onde essaspráticas se reproduzem, comomercados, feiras, santuários, ter-reiros de candomblé, sítios religio-sos e indígenas são alguns exem-plos de bem imaterial.

História

O registro de bens culturais,através da criação de legislaçãoespecífica, surgiu como reação aoprocesso de globalização. Inicial-mente, foi implementado pelo Ja-pão, no período do pós-guerra(considerado primeira fase daglobalização), numa reação ao do-mínio cultural do Ocidente.

Posteriormente, num segun-do estágio da globalização, a pro-posta se espalhou entre os paísesasiáticos, europeus e latino-ame-ricanos, com destaque para a Bo-lívia e países africanos. “Foi naBolívia que surgiu a primeira re-comendação para salvaguarda dacultura tradicional popular, em 89,quando nem era usada a expres-são patrimônio imaterial”, lembraMárcia Sant’Anna, diretora doDepartamento de Patrimônio

Imaterial do Instituto de Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional(IPHAN).

No Brasil, a história compro-va contribuições importantes nes-sa área desde 1934. O poeta Má-rio de Andrade, por exemplo, fezos primeiros registros nesse senti-do. Nos anos 40, em uma expedi-ção cultural pelo Nordeste, filmoue fotografou expressões de cultu-ra popular, material que se encon-tra reunido em São Paulo. Nosanos 70, Aloísio Magalhães (cria-dor múltiplo, pintor, pioneiro dodesign gráfico no Brasil, adminis-trador cultural, incansável defen-sor do patrimônio histórico e artís-tico) criou a Fundação NacionalPró-Memória e o Centro Nacio-nal de Referências Culturais.

Após inúmeras leis, decretose cartas, foi assinado o Decreto nº3.551, de agosto de 2000, que ins-tituiu o Programa Nacional dePatrimônio Imaterial, através doRegistro dos Bens Culturais deNatureza Imaterial (IPHAN,2001), o qual é referência para osórgãos públicos e sociedade nametodologia de investigação dereferências culturais e na defini-ção de diretrizes da política de pa-trimônios culturais do Brasil.

Essa política, de acordocom Márcia Sant’Anna, ganhouimpulso a partir de 2003, combase nessas referências e, tam-bém, por recomendação da Or-ganização das Nações Unidaspara a Educação, a Ciência e aCultura (Unesco), a qual, nos úl-timos 20 anos, vem se esforçan-do para criar e consolidar instru-mentos e mecanismos que con-duzam ao reconhecimento e de-

fesa de patrimônios imateriais dahumanidade.

Programa Nacional

O Programa Nacional de Pa-trimônio Imaterial viabiliza projetosde identificação, reconhecimento,salvaguarda e promoção da dimen-são imaterial do patrimônio cultu-ral. “Esse trabalho é realizado atra-vés de parcerias com instituiçõesdos governos federal, estaduais emunicipais; universidades; ONGs(organizações não-governamentais)e organizações privadas, ligadas àcultura, à pesquisa e ao financia-mento”, informa a diretora do De-partamento de Patrimônio Imaterialdo IPHAN.

Esse trabalho é feito atravésdo Registro, instituído pelo Decre-to nº 3.551 e que prevê a inscriçãodos bens nos Livros de Registro dosSaberes, das Celebrações, das For-mas de Expressão e dos Lugares;do Inventário Nacional de Re-ferências Culturais, que visa pro-duzir conhecimentos sobre domíni-os da vida social que constituemmarcos e referências de identida-de para determinado grupo social(vila, bairro, zona, entre outros). E,por fim, dos Planos de Salvaguar-da, apoio à sua continuidade demodo sustentável, ou seja, melho-res condições para a reprodução dobem cultural.

O Governo Federal, atravésdo IPHAN, já fez o registro de 11bens como Patrimônio CulturalImaterial do Brasil e conta commais de 20 inventários desse tipoem andamento. “Agora alguns es-tados já começaram um trabalhonesse sentido, criando legislaçõespróprias, como, por exemplo, o

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18Ceará, Minas Gerais, SantaCatarina, Alagoas, Bahia, Paraíbae Pernambuco”, acrescenta a di-retora.

Os bens são agrupados porcategoria e registrados em livros,classificados em: Livro de Regis-tro dos Saberes, para os conheci-

mentos e modos de fazer enraiza-dos no cotidiano das comunidades;Livro de Registro de Celebrações,para os rituais e festas que mar-cam vivência coletiva, religiosida-de, entretenimento e outras práti-cas da vida social; Livro de Re-gistros das Formas de Expressão,para as manifestações artísticasem geral; e Livro de Registro dosLugares, para mercados, feiras,santuários, praças onde são con-centradas ou reproduzidas práticasculturais coletivas.

Os 11 bens já registrados são:o Ofício das Paneleiras de Goia-beiras do Espírito Santo (artesa-nato de barro); o modo de fazerViola-de-Cocho, no Mato Grossoe Mato Grosso do Sul; o Ofício deBaiana de Acarajé, em Salvador;o Samba de Roda, no RecôncavoBaiano; a Arte Gráfica dos ÍndiosWajãpi, do Amapá; Círio deNazaré, em Belém do Pará; oJongo, no Sudeste; a Cachoeira deIauaretê, lugar sagrado dos povosindígenas dos rios Uaupés ePapuri; a Feira de Caruraru, emPernambuco; o Frevo, em Recife;e o Tambor de Crioula, doMaranhão.

PROCESSO DE REGIS-TRO – Para que esse registro sejafeito através do IPHAN, é neces-sário o encaminhamento de umpedido coletivo ao órgão, com aproposta de registro de um bemcomo patrimônio cultural brasilei-ro. “Esse pedido é encaminhadoao departamento que eu dirijo parauma análise preliminar dapertinência da proposta e depois éencaminhado à Câmara Técnicado Conselho Consultivo, a qual fazuma avaliação e entra em contato

Inventários Nacionais de Registro Cultural (INRC)1. INRC do Círio de Nossa Sra. de Nazaré – Belém/PA;2. INRC do Ofício das Baianas de Acarajé – Salvador/BA (CNFCP);3. INRC da Viola-de-Cocho – MS/MT;4. INRC do Jongo – RJ/SP (CNFCP);5. INRC da Cerâmica Candeal/MG (CNFCP);6. INRC Bumba-Meu-Boi/MA (CNFCP);7. INRC do Museu Aberto do Descobrimento/BA. Processos de Registro em Andamento:Teatro Popular de Bonecos Brasileiro (Mamulengo);Feira de São Joaquim, em Salvador/BA;Empada ou Empadão de Goiás/GO;Alfenim de Goiás/GO;Arroz-de-Cuxá/MA;Linguagem dos Sinos nas Cidades Históricas Mineiras/MG;Queijos Artesanais de Minas/ MG;Festival Folclórico de Parintins dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso/PA;Samba Carioca – Jongo/RJ;Festa do Glorioso São Benedito de Angra dos Reis/RJ;Sítio Histórico de São João Marcos/RJ;Parque Ecológico Águas do Lajeado/SP. INRC: Em Andamento:1. INRC dos Povos Indígenas do Alto Rio Negro, em Manaus/AM;2. INRC da Ilha de Marajó/PA;3. INRC do Tacacá/PA (CNFCP);4. INRC das Cuias de Santarém/PA (CNFCP);5. INRC da Farinha de Mandioca/PA (CNFCP);6. INRC de Natividade/TO;7. INRC do Centro Histórico de São Luís/MA;8. INRC de Rio de Contas/BA;9. INRC Rotas da Alforria – Cachoeira e São Félix/BA;10. INRC da Região do Cariri/CE;11. INRC das Festas do Largo de Salvador /BA(CNFCP, com recursos da Petrobras);12. INRC das Comunidades Quilombolas de Pernambuco/PE;13. INRC das Feiras do Distrito Federal/DF;14. INRC do Congo de Nova Almeida – Serra/ES;15. INRC do Bom Retiro – São Paulo/SP;16. INRC da Festa do Divino Maranhense, no Rio de Janeiro/RJ (CNFCP, com recursos

da Petrobras);17. INRC do Povo Guarani – São Miguel das Missões/RS;18. INRC do Sítio Histórico de Porongos – Pinheiro Machado/RS;19. INRC da Viola Caipira do Alto e Médio São Francisco/MG;20. INRC da Lapa/PR;21. Levantamento de documentos sobre o Estado de Sergipe;22. INRC Cerâmica de Rio Real/BA (CNFCP);23. INRC dos Queijos Artesanais/MG;24. INRC do Toque dos Sinos/MG;25. INRC da Arte Santeira do Piauí;26. INRC das Comunidades Quilombolas do Piauí. Planos de Salvaguarda: Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi; Samba-de-Rodado Recôncavo Baiano; Ofício das Paneleiras de Goiabeiras; Viola-de-Cocho.

CAPA

Nota: Informações atualizadas junto ao IPHAN-PI, em 20/06/2007

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com os proponentes para definir ainstrução do processo de registro”,diz Márcia Sant’Anna.

Essa instrução, segundo ela,inclui uma pesquisa histórica sobreo surgimento do bem, como ele seprocessa, por quais atores, onde, deque maneira, quais recursos mate-riais são utilizados na sua produçãoou realização, quais os problemasenfrentados por essa expressão,entre outros. “É feito um amploestudo, não apenas da história, mastambém da atualidade, a sua vigên-cia contemporânea, toda a comple-xidade do contexto cultural, sociale ambiental com a qual ele estáenvolvido”, acrescenta.

Com base nessas informa-ções, é feito um dossiê de regis-tro, sempre acompanhado de umasíntese dessa pesquisa e por umdocumentário audiovisual e, sepossível, também fotográfico e so-noro, dependendo do caso. “Esseconjunto constitui o processo de re-gistro que é levado ao ConselhoConsultivo, instância da socieda-de dentro do IPHAN que julga,enfim, se o bem vai ser ou nãodeclarado patrimônio imaterial doBrasil”, afirma Márcia Sant’Anna.

CRITÉRIOS – A pertinênciado bem como referência culturalimportante para o entendimento daformação da cultura brasileira; apossibilidade de riscos desse bem;e a disposição da população empreservá-lo são os critérios consi-derados para efeitos de registro dopatrimônio.

O processo, no entanto, nãodetermina uma padronização dopatrimônio. “O registro prevê queesses bens são dinâmicos, se trans-formam ao longo do tempo e que

é preciso estar sempre acompa-nhando seu desenrolar na dinâmi-ca cultural. Hoje é decidido queesse registro deve ser refeito nomáximo em 10 anos para verificarpossíveis mudanças e apoiá-lo deforma que ele não desapareça”,observa Márcia Sant’Anna.

Os bens registrados devemser amplamente divulgados. OIPHAN forma, assim, um bancode dados, ao qual é dado acessopúblico; além de providenciar pu-blicações e realizar exposições eseminários sobre esses bens.

Unesco tem importante papelDesde 2001, a Unesco tem

estimulado a identificação e pre-servação de patrimônios culturais,através da Proclamação dasObras-Primas do Patrimônio Orale Intangível da Humanidade, acada dois anos, selecionando, pormeio de um júri internacional, es-paços e expressões de excepcio-nal importância, dentre candidatu-ras oferecidas pelos países; doPrograma de Tesouros HumanosVivos, que estimula os países acriarem um sistema permanentede identificação de pessoas quepossuem, no grau máximo, as ha-bilidades e técnicas necessáriaspara a manifestação de certos as-pectos da vida cultural de um povoe a manutenção de seu patrimôniocultural material.

Em 2003, após uma série deestudos técnicos e discussões in-ternacionais com especialistas, ju-ristas e membros dos governos, aUnesco adotou a Convenção paraa Salvaguarda do Patrimônio Cul-tural Imaterial, que regula o temado patrimônio cultural imaterial,

complementando a Convenção doPatrimônio Mundial, de 1972.

Parque Nacional do JaúOuro PretoOlindaSão Miguel das MissõesSalvadorCongonhas do CampoParque Nacional do IguaçuBrasíliaParque Nacional Serra da CapivaraCentro Histórico de São LuísDiamantinaPantanal MatogrossenseCosta do DescobrimentoReserva da Mata AtlânticaReserva do CerradoCentro Histórico de GoiásIlhas Atlânticas

Estados também podem teriniciativa

Nove estados brasileiros jácontam com uma política de pro-teção ao Patrimônio CulturalImaterial. De acordo com MárciaSant’Anna, a intenção é que essetrabalho seja feito de forma arti-culada. “Os governos, no entanto,devem apenas coordenar e possi-bilitar que a sociedade civil efeti-vamente se envolva”, sugere.

O Piauí conta com uma leiestadual de proteção ao patrimôniocultural. Trata-se da Lei nº 4.515,de 09 de novembro de 1992. Elaconsidera o Patrimônio Culturalconstituído por bens de naturezamaterial e imaterial, portadores dereferência à identidade, à ação, àmemória dos diferentes grupos for-madores da comunidade piauiensee que, por qualquer forma de pro-teção, prevista em Lei, venham a

Bens do Brasil na Listade Patrimônio Mundialda Unesco:

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20ser reconhecidos como valor cul-tural, visando a sua preservação.

Integram, ainda, o Patrimô-nio do Estado, o entorno dos benstombados, os bens declarados derelevante interesse para a culturae às manifestações culturais exis-tentes. Esses bens e manifestaçõespodem ser de qualquer natureza,origem ou procedência, tais comohistóricos, arquitetônicos, ambien-tais, naturais, paisagísticos, arque-ológicos, museológicos, etnográfi-cos, arquivísticos, bibliográficos,documentais ou quaisquer outrosde interesse das demais artes ouciências.

O pedido de tombamento, porexemplo, poderá ser feito por qual-quer cidadão, pelo Governo doEstado ou órgão que o representena área, cabendo ao Departamen-to do Patrimônio Histórico, Artís-tico e Natural da Fundação Cultu-ral do Piauí (Fundac) receber opedido e, apreciando-o, abrir o res-pectivo processo, instruí-lo eencaminhá-lo ao Conselho Estadu-al de Cultura para aprovação. Pos-teriormente o mesmo é submetidoà homologação do Governador doEstado, que expede um decreto detombamento.

De acordo com essa Lei,quando o bem ou manifestaçãocultural se revestir de especial va-lor e, pela sua natureza ouespecificidade, não se prestar àproteção, pelo tombamento, o Go-vernador do Estado poderádeclará-lo de relevante interessecultural. Essa declaração exigirámedidas especiais de proteção, porparte do Governo.

De acordo com a Fundac, es-tão sendo tomadas providências

para declarar a cajuína e sua for-ma de fazer como um bem de rele-vante interesse cultural do Piauí,atendendo aos preceitos da LeiEstadual. Após, com uma pesquisamais densa e atendendo às exigên-cias do IPHAN, será solicitado oregistro no Livro dos Saberes.

IPHAN realiza inventáriosnacionais no Piauí

O Instituto de Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional estárealizando, neste ano de 2007, doisinventários nacionais de referên-cias culturais no Piauí. Um sobreas comunidades remanescentes dequilombolas e outro sobre a artesanteira. Ambos visam uma am-pla investigação, seguida de docu-mentação e, posteriormente, o re-conhecimento desses bens comopatrimônios culturais brasileiros.

O primeiro trabalho, coorde-nado pelo historiador RicardoAugusto, está em fase de levanta-mento preliminar e será realizadoem 21 comunidades. “Serão inves-tidos R$ 90 mil nesse trabalho dedocumentação, que vai levar aoreconhecimento desses bens cul-turais pelo Estado”, afirma.

Segundo ele, o Piauí reco-nhece, há quase 10 anos, a comu-nidade Mimbó, em Amarante,como remanescente de quilombos.No entanto, a partir da ação daFundação Palmares, houve umauto-reconhecimento das comuni-dades, apontando mais 130 comu-nidades remanescentes no Piauí,sendo que 15 dessas estão em pro-cesso de reconhecimento.

A Coordenação Estadual dasComunidades Quilombolas, cujoprocesso de articulação foi inicia-

do em novembro de 2006, busca oreconhecimento de todas as mani-festações culturais dessas comuni-dades, em todas as áreas. “Sãoexemplo o samba de cumbuca, nosul do Piauí; a capoeira dosquilombos, como forma de dança,luta e atividade política; assim comoofícios e modos peculiares de tra-balho, como o de ervas medicinais”,cita o historiador. A Superintendên-cia do IPHAN no Piauí assinou ter-mo de cooperação técnica com oIncra do Piauí, com o objetivo dedesenvolver esse trabalho relativoao INRC.

Tudo isso será investigadopelo inventário do IPHAN que, aofinal, vai produzir um livro, doisdocumentários audiovisuais (ummais geral e outro sobre o sambade cumbuca) e um CD musical so-bre a capoeira do quilombo. Alémdisso, dentro do inventário, será pro-posta a formatação de um Centrode Referências Culturais para im-pulsionar essas ações, numa par-ceria entre governos Estadual eFederal. Esse centro deverá fun-cionar no Casarão do Olho d’Águados Negros, em Esperantina, quedeverá ser conservado.

O inventário da ArteSanteira, em desenvolvimento pelaSuperintendência do IPHAN noPiauí, também está em fase de le-vantamento preliminar. Através deinformações da Cooperativa Mes-tre Dezinho e da Associação deArtesãos do Piauí, estão sendoidentificados os santeiros espalha-dos por todo o Estado. É um in-ventário diretamente relacionadocom o ofício realizado, que objeti-va documentar a forma de traba-lho, as tendências dentro da arte

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santeira, entre outros. Serão inves-tidos cerca de R$ 60 mil, permitin-do ao IPHAN dar continuidade àpesquisa sobre a arte santeira, ini-ciada com o estudo e proposta detombamento da Igreja Nossa Se-nhora de Lourdes, localizada nobairro Vermelha, em Teresina.

Essa proposta, segundo a su-perintendente regional do IPHAN-PI, Diva Figueiredo, visa reconhe-cer, na materialidade das obras deMestre Dezinho, Mestre Expeditoe Afrânio Castelo Branco, o marcofundador dessa escola de artesanteira no Piauí, considerando aIgreja e seu acervo patrimônio cul-tural brasileiro. O estudo de tom-bamento da Igreja Nossa Senhorade Lourdes está em fase de con-clusão pela Superintendência Re-gional do Piauí, que deve em breveencaminhá-lo para apreciação aoDepartamento do Patrimônio Ma-terial, Setor Jurídico do Instituto eConselho Consultivo do PatrimônioCultural para a decisão final.

Ainda no ano de 2006, foramrealizados dois mapeamentos do-

cumentais sobre o PatrimônioImaterial do Piauí, sendo um pelaFundac e outro pela FundaçãoMuseu do Homem Americano(Fumdham). O da Fundac cobriu7 municípios-pólos situados nas di-versas regiões do Estado, excetoa região do Parque Nacional Ser-ra da Capivara, centrado no Mu-nicípio de São Raimundo Nonato,que foi realizado pela Fumdham.Nesse último, além da pesquisa do-cumental, a comunidade do entor-no do Parque foi contemplada comações de fomento.

Diva Figueiredo informa queesses dois trabalhos inauguram asações do IPHAN no Estado comoparte da política de preservação aopatrimônio cultural de naturezaimaterial. “Era preciso primeiro terconhecimento do que existia jápesquisado e documentado sobreo universo das celebrações; ofício;formas de expressão; e lugarescomo feiras e locais de peregrina-ção”, comentou.

De acordo com a superinten-dente, essas informações são im-

portantes para a definição de pri-oridades de políticas nesse univer-so da cultura, “com o objetivo deproduzir paralelamente desdobra-mentos em trabalhos de educaçãopatrimonial e de divulgação, bemcomo ações prioritárias, visando oregistro do Patrimônio Imaterial demanifestações culturais do Piauí”.

O IPHAN – PI começa atrabalhar com o universo dopatrimônio imaterial, mas tem mui-to também o que fazer quanto aopatrimônio material e, segundoDiva, pretende-se trabalhar porações integradas nesse sentido,uma complementando a outra,como no caso da arte santeira edo tombamento da Igreja NossaSenhora de Lourdes. Para esteano de 2007 e o próximo, está emdesenvolvimento um ambiciosoprojeto de propostas de tombamen-to federal de diversos sítios histó-ricos do Estado, formando umarede de cidades históricas. Ostombamentos dos conjuntos urba-nos mais antigos do Estado, con-forme observa a superintendente,têm sido há muito tempo adiados,à espera de um suporte técnico,administrativo e logístico mínimofrente à complexidade da tarefa desua proposição e conservação.

A partir da criação da Supe-rintendência Regional do Piauí em2004, esta vem se estruturandopara desempenhar melhor sua mis-são de proteger, promover e valo-rizar o patrimônio cultural brasilei-ro dessa região, tanto o de nature-za material quanto o imaterial quese iniciam pela identificação e re-conhecimento.

“Para a estruturação da Su-perintendência do Piauí tem sido

CCOM

-PI

Parque Nacional da Serra da Capivara

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FUNDAC realiza pesquisadocumental

A Fundação Cultural do Pi-auí (Fundac) realizou no ano pas-sado – em parceria com os campida Universidade Estadual do Pi-auí (Uespi), das cidades deTeresina, Parnaíba, Piripiri, Oeiras,Picos e Valença – pesquisa docu-mental do patrimônio imaterial doEstado, visando identificar, sistema-tizar e consolidar em um banco dedados os documentos de diferen-tes acervos localizados em váriosmunicípios do Estado. O trabalhofoi iniciado a partir de edital lança-do pelo Instituto do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional(IPHAN), com quem a Fundac ce-lebrou convênio para o desenvolvi-mento deste trabalho, voltado paratodas as regiões do país.

Coordenada pela professoraMaria do Carmo Veloso, a pesqui-sa consultou acervos em docu-mentação bibliográfica, predomi-nantemente livros, nos quais seidentificaram referências culturaispróprias do percurso histórico doEstado. “É um levantamento inici-al que visa oferecer informaçõespreliminares acerca de bens pas-síveis de serem inventariados”,observa Jairo Gomes Araújo,supervisor da pesquisa.

O trabalho verificou o acer-vo de 16 instituições disponíveis aopúblico. Ao todo, foram consulta-das 123 obras e identificadas umtotal de 184 referências culturais.

A pesquisa mostrou que, ape-sar de significativos números delivros, os registros são pouco des-critivos e superficiais, além de dei-xar de apontar referências impor-tantes, como a produção de cajuínae a construção de casa de taipa.“A pesquisa revela urgente neces-sidade do inventariado, em pesqui-sa de campo, aprofundando as re-ferências culturais do Estado”,acrescenta Jairo Araújo.

A professora Maria doCarmo Veloso comunga com aidéia do supervisor da pesquisa.“Temos a perspectiva de que secomece a inventariar de fato. Háacervos que podem ser trazidos aTeresina, assim como há acervosda capital que podem ser levadosao interior. Alguns trabalhos po-dem ser reproduzidos”, assegura.

Celebrações religiosas sãodestaque

Na investigação documentalrealizada pela Fundac, as celebra-ções se destacam, em especial asatividades religiosas do calendáriolitúrgico cristão e do calendário po-pular. São exemplos o Pastoril e oReisado, durante o período natali-no. Para a coordenadora, Maria doCarmo Veloso, existem muitas ou-tras atividades do calendário popu-lar que não são lembradas porquenão são conhecidas. “Precisamosfazer com que elas sejam vistas,principalmente agora que podemostratá-las como atrações turísticas.Estes lugares e acontecimentos pre-cisam ser valorizados”, diz ela.

A Semana Santa é indicadapelas celebrações em Oeiras, ondeapresenta características especí-ficas, como a Procissão do Fogaréue dos Passos da Quinta-Feira daFuga, dentre outros.

Outra atividade identificada éo carnaval, caracterizado pela par-

Mestre Zé Coelho do Balandê Baião, da Cidade de Mosenhor Gil

decisivo o apoio recebido de toda adireção do IPHAN, especialmentedo seu presidente, Luis Fernandode Almeida e dos diretores, DalmoVieira Filho, do Departamento doPatrimônio Material (DEPAM) eMárcia Sant’Anna, do Departa-mento do Patrimônio Imaterial(DPI)”, diz Diva Figueiredo.

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ticipação de blocos carnavalescos.Em junho, as celebrações a SantoAntônio, São João e São Pedro –as conhecidas festas juninas – fes-tejam a colheita em todo o Estadoe são comemoradas com comer-cialização de comidas típicas. Asfestas são centralizadas no boi,fogueiras e quadrilhas.

Também são realizadas emtodos os municípios do Estado asfestas de padroeiros, também cha-madas de “quermesses”, duranteas quais, além do novenário e pro-cissões organizadas pela igreja,são desenvolvidas atividades po-pulares como o “pau-de-sebo”, porexemplo. Outras festas religiosas,como as rodas de São Gonçalo, deSão Benedito e procissões popu-lares também fazem parte das ati-vidades culturais populares.

Atividades não religiosas eque fazem parte do cenário de prá-ticas culturais no Estado, de acor-do com a pesquisa, são as dançasdo Congo, Tambor, Coco, CavaloPiancó e o Pagode.

Pesquisa repercute nascomunidades

Dentre as formas de expres-são levantadas, predominam as

lendas. Em geral,são relacionadas àpaisagem, persona-gens históricos, aofícios, lugares esuas sacralizações,como a lenda do ca-beça-de-cuia.

Outra rica ex-pressão cultural, a-pontada pelos docu-mentos inventaria-dos, é o cordel piau-

iense, literatura popular cujos livre-tos são vendidos em feiras de todoo Nordeste. No Piauí, o repente,expressão oral do cordel, manifes-ta-se em desafios de violas apre-sentados nas fazendas, festas fa-miliares e populares.

O mapeamento cita ainda osofícios de vaqueiro, santeiros,artesãos, rendeiras, catadores decaranguejo, bandolins, medicinapopular, dentre outros. Nasedificações, destacam-se os mu-seus, igrejas, praças e mercadospúblicos. No que se refere a lu-gares, cruzes, almas, lugares desacrifícios, acidentes geográficos,

Reisado da Cidade de Boa Hora

assim como feiras e locais públi-cos, são considerados lugares/ati-vidades desenvolvidas que geramsentidos diversos e particulares aoterritório.

Como resultado desse traba-lho, em Picos, está sendo criada aAssociação de Amigos do Museu,estabelecendo uma parceria como Ponto de Cultura da cidade, es-pecialmente interessados na pes-quisa do patrimônio imaterial. EmParnaíba, foram organizados gru-pos para aprofundamento da pes-quisa, gerando parceria entreUespi e o Ponto de Cultura “UmPonto, Um Porto, O Tempo”, estelocalizado em área construída porpatrimônio arquitetônico tombadopelo Estado.

A pesquisa já foi finalizada eentregue ao IPHAN. Para Mariado Carmo Veloso, a pesquisa é im-portante para a identidade do Es-tado. “Ela mexe com a identidadedas pessoas e do coletivo. Alémdisso, a cultura imaterial tem a vercom inclusão social, porque são ascamadas excluídas que preserva-ram estas culturas”, finaliza.

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Procissão do Fogaréu, na Cidade de Oeiras

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A atividade artesanal é um bom negócio no Brasil, movi-mentando cerca de R$ 28 bilhões por ano, o que correspondea 2,8% do PIB. No Piauí, o setor destaca-se como responsá-vel pela geração de renda de mais de 27 mil famílias. Somenteno Município de Teresina, mais de 3 mil pessoas desenvolvema atividade, números que crescem cada vez mais.

Cerca de 80% dos artesãos piauienses, de acordo compesquisas do Sebrae/PI, moram na zona urbana. São as mu-lheres que se dedicam mais à atividade, com percentual de75%, num cômodo improvisado em suas próprias residências,angariando renda, que é um complemento no sustento da fa-mília. As atividades de maior destaque são os bordados, a te-celagem, a cerâmica, a cestaria e trançado, a arte regional esanteira e as jóias em opala.

No Estado existem entidades de representação deartesãos com mais de 20 anos de atuação e com grande inte-resse em participar do processo associativo. Os municípios-pólo (Teresina, Parnaíba, Pedro II, Campo Maior, MonsenhorGil, Floriano, Ipiranga do Piauí, Buriti dos Lopes e Morro daMariana) dispõem de oficinas de artesanato cuja finalidadeprincipal é informar, capacitar e transferir para os artesãos a

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26melhor tecnologia de produção/processo e design, gerando gan-hos de conhecimento, apresentan-do, assim, um produto diferencia-do e mais competitivo no merca-do. Além das oficinas, os Municí-pios de Teresina e Parnaíba dis-põem de unidades de apoiotecnológico, através de incubado-ras de artesanato, conhecidascomo INART.

No entanto, verifica-se umareduzida participação dos artesãosem núcleos comunitários, associ-ações, cooperativas, grupos deprodução, principalmente por fal-ta de orientação e esclarecimentodo quanto pode ser vantajoso o in-gresso nesses tipos de entidades,pois a maioria dos artesãospiauienses aprendeu o ofício poriniciativa própria, em cursos ouatravés do repasse de familiarespor tradição.

O seu grau de esclarecimen-to é relativamente baixo. Cerca de40% possuem apenas o ensino fun-damental incompleto. Somente20% completaram o ensino funda-mental, sendo que o grau de anal-fabetismo é de 2%. O fato de o

só pelos consumidores como tam-bém por profissionais de design,decoração e arquitetura.

A participação em eventoslocal, nacional e internacional con-tribui para a abertura de mercadoe comercialização dos produtos,bem como as exposições e amos-tras, disponibilizadas pelas oficinasde artesanatos por meio do aces-so a feiras e eventos nacionais einternacionais. A venda personali-zada é pontual e mantém o arte-são na responsabilidade do aten-dimento de encomendas.

Fonte de rendaO artesanato é fonte de ren-

da única para muitas famíliaspiauienses. Um exemplo é o PóloCeramista do Poti Velho, onde cer-ca de 300 famílias se mantêm atra-vés da arte. As fábricas de tijolos,telhas, potes e filtros para águaderam lugar a um verdadeiro cen-tro comercial de artesanato, comuma grande variedade de mode-los de vasos e peças decorativas,esculturas e bijuterias das maissimples as mais sofisticadas, compreços acessíveis.

Dentre essas últimas, cha-mam a atenção as bijuterias emargila, um verdadeiro destaque dofazer manual através das contas,fortalecendo a participação damulher no Pólo Cerâmico. Fazemsucesso também as bonecas emargila Mulheres do Poti, focandoa identidade local, representadapela mulher religiosa, ceramista,pescadora, fazedora de contas eoleira.

Construído através de parce-ria entre os governos municipal,estadual e federal, com apoio do

artesão ter um baixo nível de es-colaridade pode contribuir para queos mesmos não se sintam à vonta-de em participar e em expor suasdúvidas. “Entretanto, hoje a gen-te percebe que esses artesãos nãosó tiveram a oportunidade de re-tomar seus estudos como muitosdeles já estão, inclusive, ingressan-do na universidade, principalmen-te, no curso de Belas Artes”, co-mentou Rosa Viterbo, gestora deartesanato da unidade do ServiçoBrasileiro de Apoio às Micro ePequenas Empresas (Sebrae) dagrande Teresina.

MercadoA comercialização sempre

foi o maior desafio para o artesa-nato, tanto no que se refere aoacesso ao mercado quanto à apro-priação de ganhos financeiros peloartesão.

Uma pesquisa nos mercadoslocal, nacional e internacional con-sidera as preferências dos consu-midores, identificando ainda asprincipais tendências do artesana-to em relação à matéria-prima,design e novos produtos. E, ainda,analisa as condições de comerci-alização, volume de vendas, con-dições de pagamento, freqüênciade reposição, valores mínimos emáximos para cada tipologia, as-sim como formatos, pesos e volu-mes máximos. Essa pesquisa quetem orientado a produção artesa-nal é, sem dúvida, essencial paraa atividade.

Segundo Rosa Viterbo, atu-almente, o artesanato focado nadecoração tem grande aceitaçãono mercado, inclusive passando aexigir produtos diferenciados não

ARTESANATO

• Mostra Piauí Sampa – A Terra do Sol naTerra da Garoa, que mostra o Piauí emSão Paulo;

• Feira Mão de Minas, em Belo Horizonte;• FENEART, em Recife;• Fashion Business, Paralela Gift;• Casa Piauí Design, em Teresina;• Piauí Art, em Teresina;• Festival de Inverno, em Pedro II;• Cachaça Fest, em Castelo do Piauí;• Feira de Milão, na Itália;• Feiras de Artesanato, na Espanha e

Portugal;• Mostras no México, Chile, Argentina e

Uruguai.

Feiras e eventos coma participação do Piauí

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Sebrae, o local conta com 27 lo-jas, cada uma com showroom, ofi-cinas e estacionamento. “É umaobra que está mudando a realida-de dessas famílias que sempre vi-veram do artesanato. As vendasaumentaram e, conseqüentemen-te, a renda das famílias também”,observa o presidente da Associa-ção dos Ceramistas, José deRibamar Morais da Paz.

A artesã Francisca Araújoque tem cinco filhos, e vive do ar-tesanato há 7 anos, está animada.“Nossa vida aqui melhorou 100%.Estamos muito felizes. Nossascasas eram de taipa e barro. Ago-ra temos uma loja e uma oficinade verdade. Já temos mais de milpeças produzidas. As vendas au-mentaram em 40%”, comemorou.

Em Pedro II, onde o artesa-nato de tecelagem e a opala sãodestaques, os artesãos da terra sevoltam para o mercado internaci-onal. Juscelino Araújo Sousa, ven-dedor de jóias de opala, diz quecerca de 15% da produção é ex-portada para Alemanha, EstadosUnidos e Portugal. “A rentabilida-de é baixa, mas estão em execu-

ção projetos que contribuirão parao aumento significativo na quali-dade, produtividade e comerciali-zação”, afirma.

O volume exportado de opa-las brutas ou lapidadas e amostrasde jóias corresponde a aproxima-damente US$ 50.000 por ano. Jus-celino comentou que o Governo doEstado está incentivando atravésdos projetos implantados e que es-tão melhorando a estrutura de todaa cadeia produtiva local.

Ação conjuntaDe acordo com gerente de

artesanato do Sebrae, a parceriatem sido o ponto forte para o de-senvolvimento do artesanato. En-tre inúmeras ações, o artesanatopiauiense tem recebido o apoio doGoverno do Estado para a comer-cialização, através do Programa deDesenvolvimento do Artesanato doPiauí (Prodart); da prefeitura mu-nicipal de Teresina, através daFundação Wall Ferraz e da Secre-taria Municipal de Desenvolvimen-to Econômico (Semdec); da Fun-dação Banco do Brasil; em par-ceria com as associações e coo-

perativas de artesãos que, consci-entes do seu papel, têm investidono aprender a aprender, aperfei-çoando suas características em-preendedoras.

Para Rosa Viterbo, o resul-tado dessas parcerias é o sucessode eventos como o Casa PiauíDesign, Festival de Inverno dePedro II e a Mostra Piauí Sampa.“Ações estratégicas de iniciativado Sebrae dinamizam e potenciali-zam o artesanato piauiense, con-solidando essa atividade como umdos segmentos mais importantes doEstado.”

Além dos eventos, outro pon-to forte da ação do Sebrae são asmissões técnicas que promovem atroca de experiências através docontato com segmentos artesanaisde outras praças. “Com isso, per-mitimos que o artesão fortaleça oseu entendimento quanto ao desen-volvimento do processo na cadeiaprodutiva desde a ação inicial doartesão, passando pelos lojistas atéo consumidor”, afirma. Destaca-se ainda o processo de divulgaçãono portal do Sebrae; em CDs; ecatálogos.

Polo Ceramista do Poti Velho

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O Encontro Nacional deFolguedos, realizado pela Funda-ção Cultural do Estado (Fundac),todo mês de junho, em Teresina,tem característica predominante-mente local, apesar de trazer atra-

ções culturais de diversos estadose movimentar grande volume derecursos financeiros na capital. Ainformação foi revelada pela Fun-dação Centro de Pesquisas Eco-nômicas e Sociais do Piauí

(Cepro), através de pesquisa feitadurante o XXXI Encontro, ocorri-do em 2007.

O trabalho foi solicitado pelaFundac, com o objetivo dedimensionar as reais condições de

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PESQUISA REVELA CARACTERÍSTICALOCAL DOS FOLGUEDOS

Coral de Vaqueiros

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estruturas e geração de ocupaçãoe renda durante o Encontro, bemcomo o perfil e opinião do público.

Mesmo tendo reunido dez es-tados brasileiros, com mais de cin-co mil brincantes, divididos em 163grupos, a quase totalidade do públi-co e de comerciantes é origináriado Piauí; evidenciando a caracte-rística do XXXI Encontro Nacio-nal de Folguedos como tipicamen-te local. Pois, das 150 mil pessoasque visitaram o evento durante dezdias (16 a 24 de junho), 95,3% sãopiauienses, sendo que 93,5% são dacidade de Teresina, e 85,5% doscomerciantes das 215 barracas eambulantes cadastrados sãoteresinenses.

Para o assessor da Fundac,Jairo Gomes, “apesar do grandepúblico presente, a ausência de umnúmero maior de pessoas de ou-tros estados pode ser observadapelo fato de a campanha publici-tária ainda ser tímida, realizada jápróxima ao evento e não atingindooutros estados. Para tanto, é ne-cessário que divulguemos ao me-nos em jornais e revistas de circu-lação nacional.”

Com relação ao perfil dos vi-sitantes, houve maior presença dasmulheres (52,6%) e mais da me-tade (68,4%) do público utilizoucarro próprio para chegar ao localdo evento. Já sobre os vendedo-res, 80,9% eram proprietários dosrespectivos comércios, sendo queo ofício de barraqueiro foi identifi-cado como uma ocupação perma-nente para 70,4% dos entrevista-dos. Mais da metade (60,5%) daspessoas que trabalharam em umamesma barraca ou venda ambu-lante estava entre familiares.

Quanto à estrutura, 84,2% dopúblico acharam suficiente o es-paço físico disponibilizado para oevento. Sobre as atrações cultu-rais, 52,6% consideraram comoboa e 26%, ótima.

Indagados sobre a qualidadedos alimentos, 51,2% dosfreqüentadores dos folguedos con-sideraram como boa e 33,5%, óti-ma. No entanto, a maioria (57,7%)reclamou dos preços elevados, e40,9% consideraram normal.

Economia

O Encontro Nacional deFolguedos não é somente atraçãocultural. O evento traz resultadospositivos para economia do Esta-do. Por isso, a presidente daFundac, Sônia Terra, solicitou quefosse feita também uma pesquisaeconômica dos Folguedos.

Com relação à compra e ven-da de produtos e alimentos porparte dos barraqueiros e ambulan-

tes, no período dos dez dias doevento, a pesquisa revelou a mo-vimentação financeira de R$867.892,97. Isso evidencia que oEncontro Nacional de Folguedosé um evento que, além de divertir,gera trabalho e renda. “Além doaspecto cultural, é fato que osfolguedos também têm uma gran-de importância econômica para oEstado, uma vez que gera ocupa-ção e renda para centenas de fa-mílias”, disse Sônia Terra.

Para se ter uma idéia dagrandiosidade do evento, o levan-tamento da Cepro realizado jun-to aos comerciantes revelou quesomente de carne (bovino, ovi-no, suíno, caprino) mais de 9 milquilos foram colocados à dispo-sição dos visitantes. O resultadofoi a venda de milhares de por-ções de comidas típicas, comochurrasco de caprino, panelada,sarapatel, carne-de-sol, maria-isabel e paçoca.

Barraca de Comidas Típicas

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Joel Silva – Quanto à identida-de cultural e ao desenvolvimento,como é que podemos entender o per-fil brasileiro e, particularizando, o Es-tado do Piauí?

Conceição Lage – Ao falar deidentidade cultural temos que levarpara o plural: no Brasil, são identida-des. Por exemplo: o Piauí tem um dife-rencial em termos de identidade cultu-

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ral que é justamente essa, a arqueoló-gica, não só em números de locais queforam habitados pelo homem pré-his-tórico, mas também pela antiguidade.

Então, falando de identidade cul-tural do Brasil, do Piauí e desenvolvi-mento, acho que deve ser via Arqueo-logia, via Pré-História. Quando a genteobserva a maravilha que o homem queviveu aqui, antes da chegada do colo-nizador, fez e deixou, a forma de vidadele, preservando e respeitando o meioambiente, completamente integradocom o meio; as culturas, a maneira comoele lascou a pedra com retoques idênti-cos, por exemplo, ao que aconteceu comaquele homem mais desenvolvido da Eu-ropa. Nós temos essa via de desenvol-vimento e acho que é um desenvolvi-mento diferenciado, via um turismo di-ferenciado, cultural, turismo onde a gen-te possa trazer pessoas interessadas emestudar, pesquisar, aquele turista quevem interessado pelo saber, em conhe-cer e entender como que o homem che-gou no continente Americano.

Joel Silva – João Cláudio, qualo sentimento e o nível de empolgaçãoque você tem com esse assunto (iden-tidade cultural)?

João Cláudio – Esse assunto éempolgante e há uma necessidade pre-

Identidade é o conjunto de caracteres próprios e exclusivos com osquais se podem diferenciar pessoas, animais, plantas e objetos inanimadosuns dos outros, quer diante do conjunto das diversidades, quer ante seussemelhantes.

Dentro da psicologia, é o funcionamento do indivíduo no sentidobiopsicossocial, ou seja, suas emoções, pensamentos e comportamentos deacordo com o ambiente em que vive, com a sua maneira de entender o mundoe com sua genética. É ainda o resultado das influências internas e externasao longo da vida da pessoa.

Cultura é entendida como o conjunto de costumes, de instituições e deobras que constituem a herança social de uma comunidade.

Assim sendo, a identidade cultural é vista como uma forma de identida-de coletiva característica de um grupo social que partilha as mesmas atitudese está apoiada num passado com um ideal coletivo projetado. Ela se fixacomo uma construção social estabelecida e faz os indivíduos se sentiremmais próximos e semelhantes.

Diante da globalização, a preservação da identidade cultural não pare-ce um processo simples. Por isso, a Fundação Cepro levou esse tema para oDebate Carta Cepro, realizado em parceria com a Rádio Pioneira de Teresina,dentro do Programa Painel da Cidade, conduzido pelo radialista Joel Silva. Aseguir, os momentos principais do debate que teve como participantes aprofessora Conceição Lage, da Coordenação de Arqueologia da Universida-de Federal do Piauí, e o vereador e humorista João Cláudio Moreno.

IDENTIDADE CULTURALDO PIAUÍ

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mente de debatê-lo em todos os espa-ços. No espaço político, no espaçodas escolas, e é uma preocupaçãomuito recente, porque você sabe quenós forjamos a nossa história comuma baixa auto-estima muito grande.

Esse é um fator psicológico queafetou o modo de contar nossa histó-ria. Foi um processo cheio de lacunasde omissões, de vergonhas, de culpas,de medo, de constrangimentos. Porisso nós fomos tão ridicularizados nocenário nacional, e isso é uma coisamuito dolorosa e é um aspecto do nos-so atraso. E o que seria esta identidadetão falada? Essa identidade que dá opassaporte para uma pessoa ter umaauto-estima que influencia, que conta-gia, em todos os níveis, subjetivo e nocoletivo. O que seria esta identidade?Quando Paulo José Cunha escreveuum livro sobre o Piauiês, que são osvocábulos que só se falam aqui, ele mepediu um prefácio pra esse livro dele.Eu me lembro que na época escrevi umnegócio que não sei de onde tirei. Di-zia assim: identidade é aquilo que seforma quando não nos dão nada e oque fica quando nos tiram tudo. Entãoé muito difícil para um país periféricoda América Latina, pobre, concorrercom a cultura de massas, essa culturaestrangeira, principalmente na época daglobalização, e muito mais difícil paraum Estado pobre, para uma província,isolada, longe dela mesma. Porque oPiauí é longe até dele mesmo. Você indode Teresina para Corrente são 900km,não tinha estrada, tão fazendo agora. Enesse processo civilizatório, de colo-nização, todo estancado, não foi comoo contrário dos outros lugares ondeaquele processo começou e foi até ofim, marcado, pautado por uma ativi-dade econômica do gado, do couro,que dá uma certa letargia, porque o va-queiro solta o seu gado, ele sai e nofinal da tarde volta, e volta para rumi-nar o que começou nas pastagens; e ovaqueiro, sentado da rede de tucumpara a preguiçosa, na porta do alpen-dre, ruminando. Ele não tem aquelaandança, aquele sentimento mercado-

lógico de outros estados que tiveramouro, cana-de-açúcar. Mas, por outrolado, criaram uma cultura e uma Antro-pologia muito próprias. Este reino ex-tenso dos vaqueiros do Piauí, ondetodos somos descendentes de vaquei-ros: o pai, o filho, o avô, o bisavô. Quemnão é vaqueiro, o pai foi vaqueiro, oavô foi vaqueiro, o bisavô, e nós nãopodemos renegar esse aspecto.

O Visconde da Parnaíba, por exem-plo, que era o nosso representante maisnotório da nossa oligarquia, era um va-queiro. O Zé Expedito Rego até escre-veu um livro: “Vaqueiro Visconde”. Ogovernador atual, Wellington Dias, é fi-lho de vaqueiro. No discurso da possedele, disse que o sonho dele era ser va-queiro. Isso era uma auto-afirmação. Eesta cultura do vaqueiro, isolada, va-mos dizer, de toda sofisticação européia,de todo grande centro urbano. Esse iso-lamento que só nos possibilitou ter umaescola em 1818, eu acho isso muito fun-damental para entender o povo do Pi-auí. Enquanto Manaus já tinha a suaescola, enquanto Recife já era um gran-de centro cultural, enquanto São Luísera Atenas brasileira, Salvador irradia-va cultura, nós ainda não tínhamos umaescola, só tentativas dos padres jesuí-tas de fazerem uma escola de alfabetiza-ção. Isso deve ser um fator levado emconta para entender um pouco do nos-so atraso, despovoado. Imagine que oMunicípio de Ribeiro Gonçalves tem aárea do Estado de Sergipe, agora nãomais porque foi desmembrado. Despo-voado, porque você anda quilômetrose vai ver que não tem uma casa nem deum lado nem do outro. Então criamosuma cultura muito tosca, rude, rústica,que as pessoas, às vezes, confundemcom uma cultura pobre e na verdade éuma cultura própria. Muito própria, ba-seada no quanto é próprio e particular oclima, a vegetação a terra, essa transi-ção entre o Nordeste e a Amazônia quenós temos, e outros processos que ahistória foi revelando, como o fato deter uma capital no interior, enquanto asoutras estão no litoral. Um linguajar maispróprio e aí se nós não temos uma litera-

tura piauiense, como podemos caracte-rizar uma literatura gaúcha, outra baiana;ou se nós não temos uma música piau-iense, como podemos caracterizar umamúsica maranhense ou baiana. Se nósnão temos, nós temos outros aspectosque são pressupostos para isso, e nãoestou fazendo aqui uma linguagem deretórica.

Nós estamos começando ago-ra. Uma capital que tem 153 anos, querdizer, uma capital recente. Um Estadoque tem 300 anos de evolução social,enquanto o Brasil tem 500 e, outracoisa, um processo colonizador todointerrompido. Resgatar nossa identi-dade agora é mais difícil porqueestamos no momento de globalizaçãocultural, onde o grande sobrepõe emdetrimento do menor, do menos favo-recido, do mais pobre.

Joel Silva – O que fazer para pre-servar os valores culturais do Estadodo Piauí, professora Conceição Lage?

Conceição Lage – Recentemen-te, tivemos, na Universidade Federaldo Piauí, uma defesa de mestrado so-bre índios do litoral. A gente fala queo Piauí não tem índios. Não tem índi-os? E os descendentes desses índi-os, estão onde? Essa dissertação demestrado virou um livro, que é o “AHistória Negada”, de Jóina FreitasBorges. Ela escreveu esse livro quemostra que aquela região foi muitohabitada no passado. Nós temos síti-os também ali, inclusive, vestígios nãomuito antigos que, pra Jóina, são deíndios Tremembé. Esses índios quedepois ficaram e hoje vivem apenasali no Ceará, mas, na realidade, habi-taram todo esse litoral do Ceará aoMaranhão. E outra coisa, nessa defe-sa, ela sustenta que eles brigaram, nãodeixaram ser dominados, eles eram re-almente lutadores, guerreiros, e nãopermitiram por durante 200 anos queo francês tomasse de conta do litoral.

Joel Silva – João Cláudio, suasconsiderações.

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João Cláudio – Há uma lacunaenorme na bibliografia, quer dizer, seescreveu pouco sobre a história. Te-mos o F.A. da Costa que nem era doPiauí, temos o Odilon Nunes, temos oMonsenhor Chaves, temos o AbidiasNeto, mas se escreveu muito pouco eainda assim há espaços que não foramexplicados, de como essa nossa glóriafoi adiada, como o nosso sucesso,aquilo que tanto esperávamos foi sem-pre colocado novamente num outroponto, mais além, mais adiante. E ou-tras coisas que precisam ser explicadas,de genocídios terríveis, das mortesdesses índios na colonização do Piauí,que é um épico muito bonito e que nin-guém falou. Ninguém fala da maneiracomo o índio piauiense resistiu brava-mente à colonização e à escravidão. Nolivro do Carlos Eugênio Couto diz: “oíndio piauiense tinha índole preguiço-sa porque resistiu ao trabalho e à es-cravidão mais que em outros lugares,resistiu ao trabalho e à influência doscolonizadores mais que em outros lu-gares do Brasil”. Ora, eu digo muitoisto: se for preguiça resistir à escravi-dão, dessa preguiça eu tenho certo or-gulho. Agora, essa formação piauien-se, eu vou bater muito na tecla da ques-tão da auto-estima. Digamos que hácinco causas enormes para o nossoatraso. Primeiro tomar consciência donosso atraso. Em 1953, Paulo Francisescreveu um livro chamado “O Afetoem que se Encerra”, onde em 12 pági-nas ele acaba com a imagem do Piauí. Eé uma imagem do Piauí negativa, difícil

de se reverter tanto a mim como a FrankAguiar, como outros artistas que an-dam por aí fazendo show. Difícil de re-verter porque a opinião do PauloFrancis foi dada de forma concreta, foiabalizada, muito bem dada numa épo-ca em que aquilo que ele dizia, isso queé mais doloroso, tudo aquilo não eramentira, era verdade. Outro dia eu tavavendo “big brother”, uma concorren-te, que é de Fortaleza, dizendo queTeresina é o pior lugar do mundo, é umlugar muito quente e aquilo me magooumuito pelo seguinte: é de fato muitoquente, mas não é o pior lugar do mun-do. E outra coisa, às vezes, nós tenta-mos criar artificialmente um status, ummarketing, uma imagem, uma identida-de para o povo, pra uma cidade e aqui-lo é impossível de se criar. O Vale doJequitinhonha na região de Minas é aregião mais pobre do mundo, é como aEtiópia, é mais pobre que regiões maispobres do Piauí, e tem uma cultura po-pular intensa e rica e que sofre um es-trago. Mas aí ela é beneficiada pelo iso-lamento. No nosso caso nós fomos pre-judicados pelo isolamento, nós fomosperdendo a consistência daquilo queproduzimos e consumimos. Então euacho que se há tanto isolamento comohá pobreza material, como há lacunana nossa bibliografia, se eles não con-seguem encontrar os livros do Da Cos-ta e Silva é pelo fato de a escola chegarpor aqui muito tarde.

Há também, digamos assim, acasta política, a definição política mui-to oligárquica, muito atrasada, tantodo ponto de vista intelectual quantodo ponto de vista emocional. Aquelaemoção que movia os trabalhos cien-tíficos do Darci Ribeiro, por exemplo,de achar que o povo brasileiro é umacoisa diferente dos trópicos, uma raçadiferente pela mistura, pela maneira deser. E é mesmo, é um negócio que só obrasileiro pode encontrar determina-das soluções para essas coisas. Tam-bém o ciclo econômico que nós nãotínhamos, como eu falei ainda há pou-co do gado, também a questão da es-trutura agrária feudal, a estrutura

fundiária ainda feudal que você vê nosul do Estado e no extremo sul, umapessoa detém um milhão de equitaresde terra totalmente despovoada. Vocêvai a Canto do Buriti, a Corrente, nãovê uma pessoa nem de um lado e nemdo outro do Piauí. O Piauí todo temdois milhões e novecentos mil habi-tantes. É a população da grande For-taleza. Agora há uma preocupaçãoenorme que chamo a atenção: nós te-mos que localizar esses aspectos elutar por eles e preservar. A professo-ra Conceição fez referência ao ParqueSerra da Capivara. Você quer ummarketing melhor, uma definição me-lhor de identidade, um turismo, algu-ma coisa que engrandeça mais umaterra do que ter o berço da humanida-de, teorias que revolucionam as ou-tras pré-existentes. E nós praticamen-te chutamos isso aí. Nós não toma-mos partido. Em Petrolina eu vi res-taurantes da Serra da Capivara, ven-da da cerâmica da Serra da Capivara ede postais. Petrolina assume a Serrada Capivara muito mais que nós.

Você quer, por exemplo, outroaspecto do Bumba-Meu-Boi, que hojeé um cartão de visita do Maranhão.Ele é uma manifestação mais oriundadaqui, naturalmente porque aqui era aárea criadora do gado, toda esta cul-tura do gado; de objetos que têm va-lor de utensílios como a gamela, acoité, cocho, como o curral decarnaúba; como a arquitetura piaui-ense típica, como essas casas queestão desaparecendo, clássicos daarquitetura rural do Piauí, casa que nãoteve influência da Europa, que nãoteve azulejos; não vai ter vitrolas, omóvel colonial, vai ser um negóciorude mesmo, tosco. A casa mais sofis-ticada é a casa do Barão de Gurguéiana Praça Saraiva. Você vê que é umacasa rude, tosca.

Quando fui Secretário de Cultu-ra na gestão do Heráclito Fortes, veiouma arquiteta da Fundação RobertoMarinho. Eu falava da casa e quandoela chegou teve uma decepção enor-me, porque estava acostumada com o

DEBATE CARTA CEPRO

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barroco mineiro. Ela olhou e achouuma porcaria, sim ela pode achar, masa nossa arquitetura é diferente, não éinferior. E, assumindo isso, você temmeio caminho andado para construiruma boa auto-estima e aí definir umaidentidade que lhe salve do atraso, dahumilhação, da sua glória ultrajada.

Joel Silva – Como se constrói a

identidade, professora Conceição Lage? Conceição Lage – Eu concordo

com o João Cláudio quando ele falada questão da auto-estima do piaui-ense. Acho que, em primeiro lugar, agente precisa trabalhar realmente aauto-estima do piauiense. João Cláu-dio, não sei se você já teve a oportu-nidade de ler o “Quatro Rodas” quan-do fala de Teresina. O que diz sobreTeresina? É quase uma cidade a evi-tar, né? É a cidade mais quente, cheiade o que eles chamam “pardal”, que éo radar. Ou seja, não se procura trazero turista para Teresina, não se procu-ra valorizar nossa cidade, porque alimesmo diz que se evite, porque é mui-to quente. Existem no mundo cidadesbem mais quentes que Teresina e quesão visitadas. Por exemplo, nós já re-cebemos aqui, várias vezes para fazertrabalhos em conservação de cultu-ras rupestres, especialistas da Françaque viajam o mundo inteiro. Inclusiveum deles me disse que Teresina é umacidade agradável, muito bonita, é bemmenos quente e úmida que, por exem-plo, Sidney, na Austrália. Isso tudo épra falar que a identidade é formadanaturalmente. Agora da maneira comoa gente divulga essa identidade cul-tural é que vem a diferença. Eu citeiesse exemplo do “Quatro Rodas” pramostrar que identidades culturais nóstemos, mas a maneira como a gentevem trabalhando essa nossa identi-dade ou essa nossa marca é que pre-cisa ser melhorada.

João Cláudio também citou aquestão da Serra da Capivara e a cida-de de Petrolina. Petrolina tomou deconta, não tenha dúvida. Hoje, você

pode ver, faça um levantamento donúmero de visitantes que chegam naSerra da Capivara e quantos chegampor Teresina, a maioria chega porPetrolina. O aeroporto de Petrolina, nãosei como é que está em número devôos, mas já tem toda uma infra-estru-tura que lhe permite sair direto e visitaro Parque. Por exemplo, se alguém che-gar aqui em Teresina, será que vai teresse tipo de informação no nosso ae-roporto, na nossa cidade? Aí vem umaoutra questão: será que Teresina nãotem patrimônio, uma identidade cultu-ral não foi construída para Teresina,também? E a nossa floresta fóssil? Oque as autoridades estão fazendo pelanossa floresta fóssil? A nossa florestaé mais antiga que os dinossauros, ostroncos que restaram estão em posi-ção de vida, estão em pé, o que signifi-ca que a floresta era ali e que tem umaidade simplesmente de 280 milhões deanos. Porque tronco rolado é comum,você pode encontrar em vários locais,mas em posição de vida, de origem, émuito raro. E o que a gente tem feito?Infelizmente, o que vi recentemente foium jardim de um tremendo mau gosto,que foi construído, colocando umasbromélias.

Joel Silva – Então, para a se-

nhora, a construção da identidade sedá na divulgação de valores, em comoprojetar esses valores. A questão érepassada para o João Cláudio: se aidentidade é algo construído, como seconstrói a identidade?

João Cláudio – Primeiro, nós te-mos identidade cultural? Temos. Elanão é forte. Se nós tivermos umreferencial de outros, ela não é forte.É preciso ser resgatada? Sim. Ela seforma naturalmente? Sim, é um pro-cesso natural, não é um processo ar-tificial. Mas ele pode ser ajudado, in-clusive, com políticas públicas, compolíticas culturais, políticas de comu-nicação, pelo incentivo e o recursodo marketing. Mas, nós estamos per-dendo.

Teresina tem uma floresta tro-pical na Socopo, que outras capitaisnão têm. Aquilo é uma bênção, e elahoje está praticamente estuprada pe-las invasões, pelo processo de ocu-pação desordenada, para finseleitoreiros. Teresina tem o artesana-to de madeira que é único no Brasil,tem a obra de Afrânio Castelo Bran-co. Tem os painéis do NonatoMedeiros que poderiam ser multipli-cados. Não é um processo natural, éum processo estimulado que, aospoucos, vai criando uma identidadeda qual a pessoa se orgulha.

Teresina tem a Igreja da Verme-lha, um conjunto belíssimo com asprimeiras peças do Mestre Dezinho etambém do Afrânio Castelo Branco.Mas é preciso que um intelectual, umcrítico de arte, que tenha espaço namídia nacional possa conhecer a Igre-ja da Vermelha.

Eu me lembro que o Cineas San-tos levou o embaixador Alberto daCosta e Silva, filho do Da Costa e Sil-va, e depois o embaixador levou o ZéGuilherme Melquior que escreveu umtrabalho sobre a Igreja da Vermelha.Mas nós passamos ali diariamente,olhamos aquilo e não damos nenhumvalor, mas de repente alguém começaa dar valor.

O Parque de Sete Cidades é deuma originalidade ímpar. Porque elenão é melhor que o de Vila Velha noParaná? Aquelas formações rochosasé um campo de serrado e caatinga mis-turado, uma transição belíssima. Equando você vai daqui pra lá, você vêem Campo Maior aquela paisagem desonho que o Odílio Costa Filho des-creveu. Jorge Amado descreveu, emuita gente descreve, e que deixaextaseados por causa da sua belezatodos estrangeiros que ali passam. Alivocê tem cerrado, gramínea ecarnaubal, é uma simbiose. Aquilodeveria ser Parque Nacional tambémpara que não se construíssem motéisdaqui pra lá, porque os motéis sãohorríveis arquitetonicamente, sãogrotescos.

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A nossa cajuína, por exemplo, oCeará está roubando e explorandocomo marketing dele. O Caetano Veloso,quando se refere na canção dele“cajuína cristalina em Teresina”, nãoestava preocupado em promover umaspecto cultural de Teresina, era umaquestão de uma poesia subjetiva. Foina casa do pai de Torquato Neto. Eleestava depressivo fazendo show aqui.Choraram, falando do Torquato. O paidele serviu uma cajuína e entregou umaflor, e ele fez aquele poema belíssimo. Eaquilo se tornou uma identidade. Opessoal pensa mesmo que é uma ho-menagem a Teresina.

Talvez a Bahia possa ter umavocação do vaqueiro mais importanteque o Piauí, pois os nossos vaqueirosvieram de lá, mas o nosso mundo é omundo do vaqueiro. Inclusive forjouuma sociedade mais democrática doque, por exemplo, a das casas de enge-nho do açúcar, porque o vaqueiro nãoé um empregado, o vaqueiro é um só-cio do patrão de cinco reses. Quandoeu digo isso, dizem: você tem uma vi-são muito romântica. Havia também aexploração do latifúndio, das oligarqui-as dos vaqueiros. Mas só que ooligarca, o dono da fazenda, era umvaqueiro que se deu bem na vida. E aoredor do vaqueiro há toda uma culturana sua maneira do canto, na constru-ção melódica do aboio, do curral, dacasa, dos utensílios, da fala, das mani-festações culturais, da dança, da lite-ratura que surgiu ali. E agora lá no Ce-ará, no centro do Dragão do Mar, eles

fazem exposições periódicas sobre ovaqueiro, já me pediram até um texto.Aqui nós não fazemos nada.

Então eu acho, Joel, que a iden-tidade é um processo natural, mas queprecisa ser estimulado. Por exemplo,dividir o Piauí seria um golpe fatal naauto-estima do piauiense, seria umgolpe fatal na construção de uma iden-tidade que está dando passo, não estáconsolidada. Para nós, é muito impor-tante saber que o Delta fica no Piauí eque o berço da Capivara também fica.Se fosse por isso, iríamos dividir emquatro o Amazonas, que dá mais oumenos nove estados do Piauí dentrodo Estado do Amazonas.

Joel Silva – João Cláudio, vocêaborda a questão do vaqueiro. E o cou-ro, que relação tem com o Estado doPiauí. Que tipo de atitude devemos to-mar para que aquilo que é piauiensepossa ter efeito na riqueza daqui?

João Cláudio – A nossa civiliza-

ção é a civilização do couro e que pre-cisa ser conhecida, desdobrada edivulgada, como tem a civilização doaçúcar, a civilização do ouro. Primeirotemos que tomar uma posição de acor-dar da nossa pobreza. Quando faloisso, sou muito criticado: “mas vocêfaz um discurso de que somos pobres”.Faço para que a realidade seja enfren-tada e transformada. Se você pegar asigrejas ricas do Piauí e comparar comas igrejas ricas de Pernambuco e daBahia, não dá pra competir porque láeles tinham dinheiro.

Acho que temos três caminhosaqui: couro, rio e a carnaúba. Essadádiva que é um rio que criou umaantropologia muito própria. Todo oEstado está ali interligado ao rio, quedepois da barragem de Boa Esperan-ça ficou sem suas eclusas em funcio-namento e deixou de ser navegável.Toda uma história do comércio, de de-senvolvimento das cidades que estãoaqui, para cada do lado do Piauí temuma correspondendo do lado doMaranhão, sendo que as nossas do

Piauí sempre foram mais desenvolvi-das. Por exemplo, Timon é menos queTeresina, São Francisco é menos queAmarante, Barão de Grajaú é menosque Floriano e assim por diante.

Joel Silva – Professora Concei-ção Lage, como difundir nossos valo-res, que parece não termos consciên-cia da sua imensidão e onde começara adquirir essa consciência?

Conceição Lage – Eu acho a

constituição do Piauí complicada, é umEstado comprido, estreito. A sua for-mação geológica e sua vegetação fi-zeram com que se criassem sempre po-pulações com modelos de vida dife-renciados dentro de um pequeno es-paço, estreito e comprido. Isso comcerteza dificultou muito. Por exemplo,o pessoal do sul reclama, até fala dadivisão do Estado, porque eles se sen-tem abandonados.

Joel Silva – A senhora é uma

divisionista? Conceição Lage – Não. Em hipó-

tese nenhuma. Inclusive, eu visiteiaquela região de Uruçuí e acho que estánascendo uma nova identidade, masmuito mais voltada à destruição do queà construção e fiquei muito triste. Euquestiono sempre: o que o Piauí ganhacom isso? Com aquela história da soja,da devastação total dos cerrados queacontece naquela área. Eu sou contraesse tipo de atitude porque acho quevamos pagar muito caro.

João Cláudio – Joel, você me per-

guntou sobre os efeitos da globaliza-ção. Para mim, a globalização é uma tra-gédia. Agora, assim como a morte e avelhice ela é inevitável. Nós temos quenos adaptar à globalização. Eu costumodizer que, no final das contas, o efeitocorrosivo da globalização vai nivelartodos numa só língua, numa só cultura,numa só maneira de pensar, notadamen-te numa filosofia mercadológica do con-sumo. Você tem que produzir mais para

DEBATE CARTA CEPRO

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consumir mais e sua meta tem que atin-gir e ganhar mais dinheiro. Se você nãoproduz nem consome, você está fora daordem mundial, como estão os 800 mi-lhões de pessoas na África. Quando sefizer todo esse esforço artificial do po-der, do dinheiro, tenho a impressão queo Estado vai até sumir, desaparecer. Odireito do Estado e o direito coletivo vãoser substituídos pelo direito dos gran-des grupos. O que está valendo é o di-nheiro. Os outros valores éticos, mo-rais, coletivos, políticos, da arquitetura,da beleza ou da tradição, isso cai tudopor terra.

Então, eu acho que quando tudoestiver acabado, dois lugares vão so-breviver com alguns aspectos cultu-rais muito fortes: um é o Afeganistãoe o outro é o Nordeste brasileiro e,dentro do Nordeste brasileiro, iniciano Piauí, querendo dar a ele, emboratenha o caráter de transição mesmona sua Antropologia, na sua Sociolo-gia, no seu processo histórico, no cli-ma, na vegetação, na maneira de ser,dar a ele o caráter definido. Eu sou oque? Eu sou o Meio-Norte do Brasil.

A minha piauiensidade ela seexacerba para que eu possa influenci-ar pessoas como formador de opinião,depois de eu ter feito um mergulhomuito íntimo, muito profundo no Pi-auí. Preciso ir ao Delta, preciso ir aSanta Filomena, preciso conhecer aobra do Dobal , preciso conhecer DaCosta e Silva, preciso conhecer osartesãos, preciso ir a periferias das ci-dades para ver naquela simplicidade,originalidade, daquela maneira de di-zer as coisas. Eu preciso não ter ver-gonha do meu vocabulário antiqua-do. Então esses aspectos enobrecem,e isso é um processo natural de resis-tência contra a globalização.

Conceição Lage – Nós precisa-

mos valorizar o que temos comopatrimônio construído, patrimônio ma-terial, patrimônio imaterial, sobretudo,pra gente se proteger dessa globaliza-ção que realmente é inevitável. Nósestamos nesse meio. Então o que a

gente precisa é fortalecer nossa identi-dade, nosso patrimônio, nossa cultu-ra, o que a gente tem de importante eque precisa ser preservado no nossoPiauí. Pra nos proteger, porque senãoa gente vai começar a falar da maneiracomo o gaúcho fala, o carioca...

Joel Silva – Suas considerações

finais, João Cláudio. João Cláudio – Esse é um tema

muito exclusivo que norteia toda a mi-nha vida e carreira como artista. Achoque o humor é uma forma de dizer coi-sas muito sérias e profundas. Em 17anos de carreira, muitas vezes fui mui-to incompreendido, porque muita gen-te diz pra mim: mas você em seu palcoanarquiza com o Piauí. É exatamente ocontrário, é uma crítica em que vocêrecebe o grande escândalo social ecultural. E o grande escândalo sociale cultural, primeiro, é uma situação in-cômoda, é a situação injusta em que oPiauí é renegado no cenário nacional,do grande obscurantismo e ignorân-cia sobre o Piauí.

Não é uma campanha publicitá-ria periódica em que a gente fala emdeterminado momento da vida e depoisdeixa de falar, é preciso uma atitudepolítica. Uma vez Gandhi deixou decomprar roupas; primeiro porque elecomprando aquelas roupas estaria be-neficiando o invasor, que era o inglêsque se instalou ali com suas indústriastêxteis e explorava a mão-de-obra ba-rata e o consumo, porque havia ummercado consumidor da Índia de mi-lhões de pessoas; segundo, é que eleestaria retirando a reserva de mercadodas pobres costureiras indianas.

Hoje vamos ao supermercado eencontramos bolo frito feito em escalaindustrial. Eu tenho a atitude políticade ir comprar bolo frito aonde quer queesteja fazendo, porque fazer bolo fritoe ter um público consumidor, emboraque pequeno para o bolo frito feitodaquela forma artesanal dentro da nos-sa casa, é cultura e é identidade piaui-ense. Comer um capote misturado com

arroz, ou a galinha da Pia, ou o peixe doVTS, ou tomar banho no rio Parnaíba,ou tomar a cajuína no lugar do xaropeimperialista da coca-cola, ou fazer coi-sas desse tipo que nos passa desaper-cebido, talvez como uma birra ou ex-centricidade, é uma atitude política deresgate, de definição e de valorizaçãoda nossa identidade. Aproveito a opor-tunidade deste debate para dizer quevou fazer uma proposta à Prefeitura deTeresina para multiplicação dos painéisdo Nonato Medeiros por toda a cida-de, para que Teresina fique conhecidacomo a cidade dos painéis, com aque-les tons azuis bonitos com os nossospersonagens. E vou sugerir à Fundaca criação de um prêmio produtor cultu-ral, que é um prêmio que cadastra ehomenageia e dá uma remuneração euma promoção midiática àquela pes-soa que é responsável pela perpetua-ção e difusão de uma prática cultural.

Joel Silva – Professora Concei-

ção Lage. Conceição Lage – Vou terminar

também fazendo um pedido porTeresina, sobretudo, pela floresta fós-sil. Que a gente não deixe do jeito queestá, que a gente respeite, porque oque nós temos ali é muito lixo, muitoabandono. E nós precisamos realmen-te que aquela floresta continue e virea cara de Teresina, também porque éisso que ela merece. Teresina só vaiganhar com todo um investimento emcima daquela floresta.

João Cláudio Moreno

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Nestes artigos, em algumas passagens, faz-se o uso da primeira pessoa do singular. Como bemexplica a socióloga Maria Dione Carvalho Moraes, doutora em Ciências Sociais (IFCH/UNICAMP)e professora do Mestrado de Políticas Públicas (UFPI), “a oscilação do sujeito do discurso, no texto,longe de se constituir em erro gramatical, deve-se ao emprego consciente da ênfase necessária acertas passagens pelo uso da primeira pessoa do singular. Aliás, nas Ciências Sociais já rompemoscom a ortodoxia do discurso científico impessoal, empregando a primeira pessoa do singular emartigos, dissertações e teses.”

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1 Ensaio elaborado para o Seminário sobre Patrimônio Cultural e (I)material, coordenado pela FUNDAC e UESPI, de 8 a 10/10/2005, em Teresina, Piauí, na UESPI.

Maria Dione Carvalho MoraesSocióloga, doutora em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP,professora no DCS/CCHL/UFPI; no Mestrado de Políticas Públicas/CCHL/UFPI, na linha de Pesquisa, Cultura e Identidade; no Mestradoem Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA/TROPEN/UFPI, na linha de Pesquisa, Políticas de Desenvolvimento e MeioAmbiente. E-mails: [email protected]; [email protected]

TRILHAS E ENREDOS NO IMAGINÁRIO

SOCIAL DE SERTÃO NO PIAUÍ1No mundo moderno, as culturas nacionais, uma

das principais fontes de identidade cultural, nos cons-tituem como sujeitos. Mas identidade nacional não éuma coisa com a qual nascemos. Ela é formada etransformada no interior da representação, sendo anação não apenas uma entidade política, mas algo queproduz sentidos, como um sistema de representaçãocultural. Culturas nacionais são, assim, formadas porinstituições culturais, simbologias e representações epodem ser vistas como um discurso e modos de cons-truir sentidos influenciadores e organizadores de nos-sas ações e da concepção que temos de nós mesmoscomo sujeitos históricos (HALL, 1998).

As culturas nacionais, ao produzir sentidos quenos interpelam, e com os quais nos identificamos,são produtoras, também, de identidades. Esses sen-tidos encontram-se nas estórias da nação, comomemórias que constróem um passado, seja como tra-dição inventada (HOBSBAWN e RANGER, 1984)como narrativas mestras (MORAES, 2000), seja na

pluralidade de histórias hierarquicamente organiza-das no interior da sociedade como lembra Woodward(2000), a partir de uma posição histórica e culturalespecífica, de onde o sujeito fala. Podemos entãopensar a nação como uma comunidade imaginada(ANDERSON, 1989), ou seja, a construção da iden-tidade cultural é uma representação social depertencimento a uma mesma grande família nacio-nal, como dispositivos discursivos que representamas diferenças como unidade ou identidade.

Isto leva a questões sobre como é imaginada anação moderna, no caso a brasileira republicana, so-bre que estratégias representacionais ela se institui naconstrução de um senso comum sobre o pertencimentoa uma identidade nacional e quais as representaçõesde Brasil que dominam as identificações e identidadespartilhadas em seu interior, processo do qual fazemosparte, como membros da “nação” piauiense.

Para fins da presente análise, tomemos comoponto de partida a meta-narrativa de construção da

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nação contada e recontada por uma sociografia2

focada na relação litoral/sertão/selva (SOUZA, 1997;AMADO, 1995) e o imaginário correlato, fornece-dores de eventos históricos, mitos, estórias, imagens,panoramas, cenários, símbolos e normatividades, queretratam experiências, perdas, triunfos, bipartições eprojetos de avançar para além destas que dão senti-do às nações brasileira e piauiense. Aí se tem tantoênfase nas origens, na tradição, quanto nas prescri-ções para a continuidade, na intemporalidade. Aí tam-bém se encontram mitos de fundação da nação, dopovo e do caráter nacional, assim como da naçãopiauiense, da qual nos contam, dentre outros, Abreu(1982), Prado Jr. (1980) e Ribeiro (1998), sobre asitinerâncias dos caminhos do gado.

Nesse sentido, o Seminário sobre PatrimônioCultural e (I)material, que provocou este ensaio, per-mite refletir sobre nossas próprias origens e identida-des culturais. Brincando um pouco com a imagéticaespacial: Teresina, a única capital não-litorânea doNordeste, não seria geograficamente sertaneja? OPiauí nasce dos caminhos do gado, como diria JoãoCapistrano de Abreu. E, como dito por Renato Caste-lo Branco, o povo piauiense é constituído por “netosdos sertanistas baianos e dos bandeirantes paulistas”(CASTELO BRANCO, 1970, p. 68). Para início deconversa, parece que temos motivos para pensar nos-sas genealogias, à luz da categoria sertão.

A propósito, quero referir à minha própria traje-tória de aproximação com o tema, que defino comoafetiva e profissional. De fato, como sertaneja,“geraizeira” do norte de Minas Gerais, e como pes-quisadora, meus interesses de pesquisasocioantropológica se orientam em grande medida parao chamado mundo rural. Na tese de doutorado(MORAES, 2000), focalizo o sertão do sudoestepiauiense, em seu processo de modernização agríco-la, a partir dos anos de 1980. Com efeito, as regiõesde cerrados, que abrangem uma enorme área do inte-rior do Brasil e cuja imagem científica é construída e

associada à linguagem da modernização agrícola, nãopodem ser analisadas sem, por um lado, menção àsimagens do sertão presentes na historiografia e ensai-os de viajantes e naturalistas do século XIX, e na lite-ratura e sociografia acerca do tema da construção danacionalidade brasileira que de alguma forma versamsobre o sertão, na primeira metade do século XX. Poroutro, também não poderia trabalhar a temática igno-rando as narrativas orais de populações camponesaslocais, sertanejos e sertanejas, que vivenciam a vorazmodernização agrícola dessas regiões sobre o seu tra-dicional modo de vida entre “baixões” e “chapadas”(MORAES, 2000), assim traduzida na poética serta-neja de um “sertão desencantado”:

(...) Eu quero que acredite no que tem nesse sertão:sem-terra fazendo guerra se torna grande afliçãomorre sem-terra e soldado,criança e mãe de famíliadeixando o sangue no chão (...)

A coisa aqui não tá boajá tá tudo terminado,não tem mais terra de ausente,em cima desse cerradoporque chegou muita genteaqui na nossa cidade,vem do Sul do Mato Grosso,e de mais outros estados.

O pobre aqui que tem terrajá tem que ficar cercado.Pra criar um cabritinhotem que ser no cadeado.As coisas aqui para nósjá tem se demaziadoe o pobre que não tem terratalvez vai ser enterrado.Muitos que deixaram a roçajá foram morar na cidade (...)3

Nesse reencontro teórico e empírico com o ser-tão, a releitura de autores como Euclides da Cunha,

2 Uso o termo (sociografia) não no sentido pré-científico que muitos lhe atribuem, mas para referir um conjunto de análises,ensaios e estudos, não propriamente sociológicos, mas voltados ao tema da construção da nacionalidade.3 Trechos do poema, que se encontra na íntegra em Moraes (2000), de autoria de Francisco de Souza Lima, também conhecidocomo Chico Dora, camponês de Bananeira, Uruçuí/PI.

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40 ARTIGO

João Guimarães Rosa e João Capistrano de Abreu,dentre outros, a descoberta de Carlota Carvalho, oencontro etnográfico com sertanejos e sertanejas dosudoeste piauiense, em seu modo de vida (MORAES,2005) e o vislumbrar de suas tradições orais, como,por exemplo, a do “fogo do campo” (MORAES,2000), me levaram inclusive à criação de uma disci-plina, na categoria tópico especial, que inaugurei em2000, na UFPI, intitulada “Imagens e narrativas desertão,” e a participar do XI Ciclo de Estudos sobreo Imaginário, no GT “Sertão, Memória e Imaginário”(MORAES, 2002).

A experiência em sala de aula foi uma tentativade promover a aproximação analítica do sertão comocategoria axial na construção do imaginário da naci-onalidade brasileira, em suas múltiplas dimensões,buscando compreender-lhe imagens e narrativas, to-mado o sertão não apenas como só categoria espaci-al, mas também política, cultural, estética e simbóli-ca. Objetivava, ainda, entender representações dopovo sertanejo, em geral, e do nordestino, em parti-cular, profundamente marcadas por imagens do ser-tão do boi e suas relações com as origens do Piauí.Mais que isso, pretendia, ainda, trabalhar a amplidão,no Brasil, da categoria sertão, não somente pela lei-tura de textos acadêmicos mas também pelo encon-tro com outras linguagens como literatura erudita epopular, cinema, música, artes plásticas e teatro, emalgumas sessões especiais que denominei “poéticado sertão”, quando adentrávamos a polissemia ser-taneja que nos impulsionava para sentir o sertão comoparte da nossa brasileiríssima comédia humana.

Naquelas sessões, nos deleitamos com o talentomusical de convidados especiais como Netinho da Flau-ta (in memoriam), Stênio Nóbrega, Gilvan Santos, quenos brindaram com a música do sertão nordestino; coma colaboração de convidados como o professor, radi-alista e jornalista Carlos Said, versando sobre o ser-tão na literatura piauiense;4 conhecemos um pouco dapoética do cordel, através da aula do professor Pedro

Ribeiro, presidente da Casa do Cantador, e da parti-cipação do repentista Zé da Viola; e pudemos apreen-der algo do enraizamento musical dinâmico do grupo“Os Caipora”, em sua síntese de pop-rock e da músi-ca do sertão. Contamos, ainda, com a participação daprofessora Claudete Dias, do Departamento de Histó-ria da UFPI, que apresentou a própria pesquisa sobreo sertão do Piauí nas lutas da independência, casos daBatalha do Jenipapo e da Balaiada.

Na conclusão da disciplina, alunos e alunas apre-sentaram seminários a partir da leitura de clássicos como“Os sertões”, de Euclides da Cunha, “Grande sertão:veredas”, de Guimarães Rosa, “O sertão”, de CarlotaCarvalho, dentre outros. Talvez tenhamos chegado acompreender, pelo menos em parte, o que disse Riobaldo:“O sertão está em todo lugar”. A partir daí, uma per-gunta foi ganhando corpo: como se expressam o senti-do e a largueza do sertão roseano, no Piauí?

Em 2003, a direção do Curso e o Centro Aca-dêmico de Ciências Sociais da UFPI organizaram aIV Semana de Ciências Sociais, cuja temática foi osertão. Convidada para uma das mesas-redondas doevento, para falar sobre “imaginário do sertão, serta-nejas e sertanejos”, congratulava-me, na oportunida-de, com a iniciativa, considerando aquele aconteci-mento como a nossa “Semana da Arte Moderna”, anossa antropofagia.

Em 2004, voltei a oferecer o tópico especial,avançando um pouco mais na reflexão sobre a rela-ção Piauí/sertão, chegando a projetar a criação deum espaço interdisciplinar e permanente de debatessobre o sertão, na UFPI, proposta levada ao diretordo Centro de Ciências Humanas e Letras, professorAntônio Fonseca Neto. Nesta segunda experiência,mantivemos as sessões de poética realizando, dentreoutros eventos, dois saraus: um deles, conduzido peloprofessor e escritor Airton Sampaio, do Departamentode Letras da UFPI, foi dedicado ao tema do sertãona literatura romântica brasileira5, e o outro, coorde-nado pelo professor e escritor Cineas Santos, voltou-

4 O amplo panorama de autores e obras apresentados extrapolaria os limites de espaço deste ensaio.5 De Álvares de Azevedo foi lido o poema “A cantiga do sertanejo” (AZEVEDO, [19--]). De Teodoro de Carvalho, os poemas “Ocanto do caçador”, “O canto do voluntário”, “O selvagem”, “O canto do sertanejo”, “Saudades” e “Transformação” (CARVALHO,1996). De José de Alencar, trechos do romance “O sertanejo” (ALENCAR, [19--]) e de Franklin Távora, trechos de “O cabeleira”(TÁVORA, [1973]).

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se à temática do sertão na literatura piauiense.6 Es-sas incursões literárias permitiram descobertas ereleituras importantes para a densidade estética emetafórica das imagens e narrativas do sertão, queestávamos construindo.

Nos saraus e em outras sessões musicais, pri-vamos da musicalidade de Anderson Nóbrega,Alessandro Magno Santiago, Iracy Moura Fé,7 Bru-no do Carmo (in memoriam), Marcondes Brito daCosta e Gilvan Santos, e da performance de RoqueMoreira, por João Neto,8 que generosamente nosbrindaram com seus talentos, postos à disposição da“poética do sertão”.

Quero registrar, ainda, a participação dos pro-fessores convidados, Fabiano Gontijo e Ferdinand Ca-valcante, ambos do Departamento de Ciências Soci-ais da UFPI. O primeiro, como antropólogo “do sul”,expunha suas impressões do sertão da seca, enquan-to Ferdinand falou sobre sua pesquisa a respeito deCanudos. Também o professor João Kennedy, do De-partamento de História da UFPI, apresentou a pró-pria pesquisa sobre o imaginário sertão/litoral namúsica popular brasileira. Buscando extrapolar os li-mites e as fronteiras do sertão semi-árido, dialoga-mos com a “Princesa do sertão” maranhense, a ci-dade de Caxias, através das presenças do poetaWybson Carvalho, que nos brindou com a poética daterra de Gonçalves Dias, inclusive, a sua própria, e

da historiadora e coordenadora do Memorial daBalaiada,9 com sede naquela cidade, Maria BertolinaCosta, que falou sobre a história de Caxias.

Quero lembrar, com este preâmbulo, que a falade Riobaldo, ao remeter, exemplarmente, à presençado sertão no imaginário de Brasil, pode significar, tam-bém, a importância do sertão no imaginário da naçãopiauiense. Sobre isto apresentarei, a seguir, não con-clusões de pesquisa, mas algumas trilhas vislumbra-das e aqui trazidas como pistas, que se abrem à in-vestigação.

Sertão, Brasil, Piauí: das trilhase enredos no imaginário social

O termo sertão ou certão era utilizado em Por-tugal, talvez desde o século XII, para referir-se a áre-as situadas dentro daquele país e distantes de Lisboa.Até o final do século XVIII, foi largamente utilizadopela Coroa Portuguesa nas colônias. Construída pelosportugueses para designar o outro, o distante, a cate-goria sertão é absorvida pelos colonizados, transfor-mando-se, a partir do século XIX, no Brasil, num ter-mo polissêmico, profundamente ligado ao entendimentoda nação. Assim, cinco séculos depois da invenção daTerra de Santa Cruz, continua alimentando as ciênciassociais, a literatura, o cinema, a teledramaturgia, amúsica, as artes plásticas, enfim, o imaginário do serBrasil, tanto a partir do olhar forasteiro quanto do pon-

6 De H. Dobal foram lidos os poemas “Campo Maior”, “Réquiem”, “Bestiário”, “Introdução e rondó sem capricho”, “Pedras”,“Inverno”, e “A raça” (DOBAL, 2001). De Alvina Gameiro, trechos dos romances “Chico Vaqueiro do meu Piauí” (em versos), e“Curral de serras” (GAMEIRO, 1971, 1980). De Francisco Gil Castelo Branco, trechos de “Ataliba, o vaqueiro” (CASTELOBRANCO, 2004). De Fontes Ibiapina, trechos de “Vida gemida em Sambambaia” e de “Trinta e dois” (IBIAPINA, 1985, 2002). DeCineas Santos, o conto “Até amanhã” (SANTOS, 2002). Renata Ferreira, pesquisadora da obra de João Ferry, declamou o poema“Adeus cachaça” (FERRY, 1952).7 Destaco a contribuição de Iracy Moura Fé, que, além de nos brindar com sua bela voz no sarau sobre o sertão na literaturaromântica, organizou um roteiro musical (impresso e com informações sobre as canções e compositores), com as canções:“Mágoas de caboclo (cabocla),” de J. Cascata e Leonel Azevedo (1931), “Casa de caboclo”, de Hekel Tavares e Luiz Peixoto(1928), “Maringá”, de Jubert de Carvalho e Olegário Mariano, “Senhor da floresta” e “Sertaneja”, de René Bitencourt (1945,1940), numa contribuição à cultura musical do/as participantes.8 O programa da disciplina se encontra, na íntegra, no Departamento de Ciências Sociais da UFPI.9 A propósito, laços como o próprio passado da colonização e a Balaiada (AMARAL, 1900; ASSUNÇÃO, 1988; CARVALHO, 2000;DIAS, 2002, 1987; JANOTTI, 1987; OTÁVIO, 2001; SANTOS, 1983; SERRA, 1948) – cujo Memorial foi erigido naquela cidade –unem Caxias ao Piauí. Como a oralidade é um dos meus campos de interesse teórico-metodológicos de pesquisa, iniciei, em2004, um trabalho de parceria com o Memorial da Balaiada para criar uma linha de pesquisa no campo da memória oral daBalaiada em Caxias (MORAES, 2004; MORAES e COSTA, 2005), o que se vem construindo em profícuo diálogo com a coordena-dora do Memorial que, por seu turno, já desenvolve a própria pesquisa de mestrado sobre a memória oral da Balaiada, comidosos, na cidade de Caxias.

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to de vista de uma etnosertania, perspectiva que nosinteressa explorar, relativa ao ser piauiense.

Assim, identificar, desconstruir e reencontrar ossignificados de sertão continuam uma tarefa contem-porânea, nesses tempos pós-modernos, em que aspossibilidades do enraizamento dinâmico, que é amemória (MORAES, 2000), podem-nos levar ao re-encontro de sentidos já conhecidos e a descobrir no-vos para a nossa própria, como diria Elomar Figueirade Melo, sertanezidade. Ou seja, o tema nada tem deanacrônico, especialmente no Piauí onde, aliás, esseé um debate ainda incipiente, embora a sertanezidadeaflore nos imponderáveis da vida social, quer em suacapital, Teresina, quer em regiões como os cerrados,que se modernizam na voragem do tempo e dos rit-mos de um progresso, que nos instigam a exercíciosculturais antropofágicos.

Foge aos limites deste ensaio uma exegese dasimagens do sertão em virtude da polissemia daimagética povoadora do nosso imaginário, especifica-mente naquela presente na sociografia da reflexãosobre o Brasil, que diagnostica, impulsiona, organiza,define e direciona ações. No entanto, Ferreira (1999)registra que sertão aponta para as regiões agrestes dopaís, distantes de povoações ou terras cultivadas, lon-ge do litoral, e pouco povoadas. A possível etimologia,forma contrata de “desertão”, expressaria a idéia devazio: “É o interior (...). O nome fixou-se no Nordestee Norte, muito mais do que no Sul. O interior do RioGrande do Sul não é sertão,10 mas poder-se-ia dizerque sertão era o interior de Goiás e de Mato Grosso,na fórmula portuguesa do século XVI. A origem aindase discute e apareceu mesmo a idéia de forma contra-ta de desertão. (...). E continua o debate” (CASCUDO,1972, p. 697-98).

A categoria sertão refere, assim, territórios dointerior, afastados da costa – explicitamente habitadaspor indígenas como se acentua nas narrativas de ban-deiras. De fato, longe de serem vazias, como quer, porexemplo, a ênfase do discurso desenvolvimentista re-lativo às áreas de cerrados, quando refere regiões de

densidades humanas tidas como baixas em compara-ção com as populações que poderiam ser abrigadaspela agricultura intensiva e para áreas cujos habitan-tes autóctones foram eliminados, sendo substituídos poruma população dedicada inicialmente à pecuária, ati-vidade tida como poupadora de mão-de-obra. Essa,aliás, é a perspectiva produtivista, ancorada na neces-sária contraface de um vazio econômico.

Como dito por Candice Vidal e Souza, autorade origem piauiense, que analisa sertão e litoral nopensamento social brasileiro, os estilos, as figuras delinguagem, os cenários e os mecanismos narrativosrelativos às circunstâncias históricas e sociais sãoelementos de primeira ordem na interpretação deBrasil que emergem do imaginário do sertão (SOU-ZA, 1997). Com efeito, no campo do imaginário so-cial, interessam significados, trilhas e ambigüidades,de modo que a própria representação identitária pre-sente nas imagens é, em si, um ato ficcional, não que-rendo dizer com isso que se tratam de declaraçõesfictícias sem poder de avaliação da realidade. Comefeito, é um processo de invenção social e de imagi-nação criadora que produz signos com poder de ins-tituição social, no caso o da construção social de iden-tidades marcadas pela oposição sertão/litoral, em cujocurso se instauram a nação brasileira e a piauiense.

Por esse prisma, chama a atenção a represen-tação do espaço como elemento caracterizador dopaís e de seu povo, de sorte que a idéia da relaçãosertão/litoral estende e até mesmo pré-condiciona aelaboração de uma idéia de Brasil. Há, na sociografiabrasileira sobre o sertão, desde autores como os pri-meiros viajantes que se adentraram pelo país, comoSaint-Hilaire (1932, 1937), no século XIX, passandopelos que problematizaram um Brasil a ser comoAbreu (1982) e Cunha (1968), no século XX, até osque lidam com o tema da incorporação da fronteira,como Ricardo (1970), Moog (1989) e Holanda (1986),dentre outros. São autores e idéias que muitas vezesse expressam pela diferença de entender o projetode compreensão da conquista e ocupação do espaço

10 A categoria sertão não se limita às regiões Norte e Nordeste do Brasil. Aliás, contrariando esta afirmação de Luis da CâmaraCascudo, remeto o/a leitor/a para Rubert (2000), que apresenta o sertão nas memórias e narrativas de antigo/as morador (es)/as, no Rio Grande do Sul.

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pertencente ao Brasil e a própria construção da na-ção, embora, no conjunto, sejam narrativas das quaisemergem representações sociais fundadas, sempre,na trajetória da costa para o interior, produzindo adistinção entre regiões da marinha e do sertão e de-finindo o Brasil em seu nascimento e destino. As idéiasque transparecem no conjunto de eventos se tradu-zem em imagens pelas quais, na posição vacilante deum sujeito classificador, o sertão aparece como des-conhecido, diferente, problemático, deserto, longín-quo, Brasil a ser, ignoto, outro Brasil (SOUZA, 1997).

Um olhar de um sujeito falante. Um discurso eum objeto. Os primeiros: do litoral, lugar conhecido earticulador do olhar e do discurso. O segundo, o ser-tão: lugar incógnito sobre o qual o narrador vai falar,revelando para seus leitores compatriotas um Brasilignoto, fazendo lembrar, muitas vezes, o padre Antô-nio Vieira – cantado por Luiz Gonzaga: “há quemfale sobre o sertão, morando em palacetes (...), semjamais ter pisado a poeira de nossas estradas”(VIEIRA, 1966, p.9).

Ressaltam-se, nesse imaginário da construçãoda nação, imagens de um Brasil desconhecido, dosertão como impedimento à construção da unidade,da imensidão do território nacional como problema edestino coletivos, idéia importante, por exemplo, parao imaginário ainda hoje reinante da fronteira perma-nente e inesgotável: Brasil e Brasil a ser, lugar sertãoigual a desconhecido, diferente do espaço habitado efamiliar onde reside o marinha. O sertão nasce comoalteridade. Os significados atribuídos a esses lugaressertão/litoral constituem fórmulas narrativas centrais,eixos ordenadores e referência nos escritos de inter-pretação do Brasil.

Como representação social, essa bipartição per-manece em nós como dois cenários que combinamterra e gente, embora, através da arte, sertão e litoralse reencontrem muitas vezes e embora todos nóssejamos, de forma irremediável, frutos desse encon-tro, dessa circularidade (GINSBURG, 1987) e dessedialogismo (BAKHTIN,1995,1996) culturais. Isso,porém, não nos autoriza a deixar de inquirir sobre ossentidos da nossa dimensão-sertão no processo deconstrução da nossa própria identidade, ou de comosomos interpelados pelo sertão em sua trajetória. Tra-jetória do sertão? Sim, que o sertão é uma entidade

rica no imaginário social, popular ou erudito, entidadecapaz de se transformar: “o sertão vai virar mar...”como profetizara Antônio Conselheiro e, quase umséculo depois, cantariam muitos brasileiros que pou-co ou nada sabem a seu respeito e muitos dos quaisjamais leram Euclides da Cunha. Essa imagem é, ali-ás, retomada por Gláuber Rocha, no filme “Deus e odiabo na terra do sol”, tanto na trama, com o perso-nagem Manuel, que se embrenha na caatinga e sejunta ao bando dos fanáticos seguidores do SantoSebastião – profeta negro que afirma “um dia o marvai virar sertão e o sertão vai virar mar”, quanto nacanção do filme do próprio Glauber (letra) e de Sér-gio Ricardo (melodia). Mas essa imagem se difundi-ria, ainda mais, com a canção “Sobradinho”, da du-pla de cantores e compositores Sá e Guarabira, quediz: “(...) e passo-a-passo vai cumprindo a profeciado beato que dizia que o sertão ia alagar (...) o sertãovai virar mar (...)”, referindo-se àquela parte dosertão nordestino inundada por barragens. Já em“Morte e vida Severina”, de João Cabral de MeloNeto, o desfecho se dá com a nova vida que brota doencontro do retirante do sertão com o morador daspalafitas do litoral... Reticências? Sim, que o Sertãoé assim: sem ponto final.

O período que vai do século XVI ao XVIIIcorresponde à conquista do patrimônio geográficobrasileiro sob a ação das expedições bandeirantes,numa expansão da sociedade colonial para além dosnúcleos de povoamento da costa, por demais é ricoem representações, não apenas relativas àquela épo-ca histórica mas ainda à projeção da idéia da frontei-ra sempre possível e da saga do bandeirante comodesbravador. De fato, inaugura-se aí uma visão dacentralidade do bandeirismo na memória da naciona-lidade, com a mobilidade por meio do espaço se cons-tituindo como a possibilidade sempre pensada de cons-trução da nação. Essa idéia se atualiza, entre nós,por exemplo, nas narrativas mestras da fronteira agrí-cola do sudoeste piauiense.

O imaginário fundamental do bandeirismo, o domarco zero, é produtor de imagens do sertão comoas de “nação a fazer” e “projeto de Brasil”, o quepode ser visto como modelo a ser impelido ao longoda história, como tentativa de controle e ocupaçãoterritorial. O bandeirante persiste, assim, como sím-

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bolo do povo brasileiro, e a nação é pensada como“artefato a ser trabalhado” (SOUZA, 1997), discur-so atualizado no “sertão desencantado” com os “no-vos bandeirantes” dos cerrados piauienses, os “gaú-chos” (MORAES, 2000), que, como se sabe,aportaram na região sudoeste do Piauí na segundametade dos anos de 1980.11

A propósito, o imaginário sobre uma pretensasuperioridade gaúcha tem presença antiga nas nar-rativas mestras (MORAES, 2000) piauienses: “a eco-nomia de criação, indisciplinada e livre, não se coa-duna, por sua natureza intrínseca, ao regime da es-cravidão. Gera, ao contrário, populações movediçase arrogantes, como o gaúcho, o beduíno ou o filho daestepe” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 80) [grifomeu]. Num movimento de conceitualização seme-lhante ao acontecido com o vaqueiro, no âmbito doimaginário do “destino pastoril” (MORAES, 2000,2005), as narrativas mestras da vocação agrícola ele-gem o gaúcho como símbolo, um herói cultural, ca-paz de domar o sertão modernizado peloagribusiness, ou seja, os cerrados.

As bandeiras, tratadas como evento históricooriginal da sociedade e do viver no sertão e das enor-mes distâncias, é, assim, um tema que caracteriza oolhar do sociógrafo nacional sobre o Brasil, distin-guindo-se das preocupações e falas dos viajantes, quedescreviam apenas o exótico, procurando revelar oBrasil ignoto aos demais patriotas. A tarefa, aí, é de-finir lugares, descrever e nomear modos de vida so-cial no imenso território, identificar a distinção comoproblema, numa perspectiva geopolítica: imensidãodo território nacional – em dois cenários de combina-ção de terra e de gente – como problema e destinocoletivo de um Brasil plenamente pertencente ao es-paço-nação (litoral) e de um Brasil a ser (sertão).12

Constrói-se, assim, a imagem de sertão comooeste, metáfora de deslocamento do litoral para o in-terior, termo este que passa a significar sertão, queadquire, então, o sentido de lugares simbólicos e me-tafóricos, num discurso explicador da nação. Como

opositor geográfico da costa, o interior do Brasil éindependente e autêntico versus a civilização litorâ-nea, que aparece como porção aculturada. A idéiade independência da costa apontava para originali-dade e autonomia e para a construção da nacionali-dade pela bandeira: contorno do mapa político, senti-mento de pertencimento à pátria, composição ruraldo povoamento e estruturação da ordem política(SOUZA, 1997).

Se, nesse imaginário, constrói-se o sertão comovastidão preocupante (VIANA,1922), nação incom-pleta, permanente questão nacional, algo que ficouapenas atravessado, mas não dominado (FAORO,1987), um lugar/coisa que resiste, distinto do litoral,é, por outro lado, no imaginário dessa resistência quese põe a questão do povo e do modo de vida do ser-tão. Nessa representação, o sertão aparece comolugar de reprodução de uma ordem social específica,a chamada sociedade sertaneja, fruto do distancia-mento transposto, na própria narrativa, pelo media-dor, que enumera atributos do homem e da terra, es-tilo inaugurado por Euclides da Cunha num imaginá-rio de um sertão só entendível como habitat socialem sua estreita relação entre natureza e sociedade.Sertão-Geografia, igual a sertão-sociedade. Emboracom registros diferentes, essa idéia se reencontra emJoão Capistrano de Abreu, Carlota Carvalho, RenatoCastelo Branco, João Guimarães Rosa, AlvinaGameiro e em poemas dobalinos de “O tempo con-seqüente” (DOBAL, 2001).

Com efeito, Euclides da Cunha expõe um ima-ginário de quase-simbiose entre natureza e cultura,para falar da “sociedade rude dos vaqueiros” (CU-NHA, 1968, p. 9), ao mesmo tempo deserto de po-lidez (em comparação com o litoral) e berço de umanacionalidade étnica. O convite para atravessaraquela sociedade pode ser visto como signo de umaimportante invenção: a modernidade política brasi-leira, traduzida pelo projeto republicano, no qual osertão não tinha mais lugar. Com base no conheci-mento geológico do final do século XIX, o autor de-

11 Para detalhes, ver Moraes (2000), inclusive sobre como as narrativas mestras definem um tipo humano considerado apto àsáreas de modernização agrícola, nos cerrados brasileiros.12 Sobre autores referenciais no trato desta problemática, e seus pontos de vista, ver Souza (1997).

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talhou, fisiograficamente, regiões do interior do Bra-sil, até então, indiferenciadas pela denominação geralde sertão – por oposição a litoral – e como territórioda aridez.13

Ambas as marcas – “sociedade rude dos vaquei-ros” e “território da aridez” – interpelariam cultural-mente a construção de um ideário de sertão, quase oresumindo à seca e a um modo de vida rude e, aomesmo, portador de uma civilidade arcaica. Nessa terrade modo de vida excêntrico para as populações do sul,perduraram tradições e costumes antigos e específi-cos, com extensas e isoladas fazendas de gado, comotrabalhado por Alvina Gameiro, em “Curral de Ser-ras”, inclusive no nível da linguagem, com termos queremontam ao português castiço, em desuso no meiourbano. Já a aridez do sertão aparece, via de regra, nacircularidade inverno/verão, delimitando tempos, mo-dos e gestos de um povo, um filão consagrado peloromance da geração de 30 e sempre presente na lite-ratura que versa sobre sertão, como em Gameiro(1971), Ibiapina (2001) e Dobal (2001).

São representações de uma cultura sertanejapermeando obras históricas, ensaísticas e literárias.Entre as primeiras, cabe destacar a de João Capistranode Abreu, que traça o pioneiro retrato da época docouro a partir da análise das entradas desde o séculoXVI, até as bandeiras, no XVIII. Embora o povo dosertão, nessa obra, não chegue a ser sujeito/objetono sentido antropológico de análise, mas uma entida-de cuja referência ajude a falar do espaço, no imagi-nário do sertão como espaço/povo, sem dúvida, Abreu(1982) é impar na tarefa de reconhecer os episódiosdo povoamento do interior. A Capitania de São Vicenteé seu ponto de partida para tratar o tema das bandei-ras paulistas, com destaque para o papel da pecuáriana ocupação do sertão, em particular das fazendasestabelecidas ao longo do rio São Francisco e dos

caminhos que levavam dali ao Ceará e ao Maranhão,com o Piauí nascendo nesses caminhos do gado, nareferida época do couro.14 Dessa “alquimianacionalizadora” (SOUZA, 1997), operada pelo afas-tamento de Portugal, a ruptura com a Metrópole e aconstituição da nação, nasce o povo brasileiro. Des-sa sertanização, fruto da mistura e extermínio dasgentes paulistas com as populações indígenas, emer-ge a nação piauiense.

Como viveria esse povo são questões de ordempolítica que desafiam o contrato social. A idéia queperpassa o pensamento social brasileiro é a de que aindependência, radicalizada como um modo de vidasertanejo, próprio e diferente de outras regiões, secasa com uma atividade específica que a sustenta: apecuária. O sertão de João Capistrano de Abreu,como o de Euclides da Cunha, se tinha alguma voca-ção econômica, esta era a pecuária e não a agricul-tura, idéia que vigoraria no imaginário piauiense deum “destino pastoril” (MORAES, 2000, 2006) atébem recentemente.

Esse imaginário, por seu turno, daria sustenta-ção ao do vaqueiro como herói cultural e tipo huma-no livre e independente, obscurecendo, talvez, a pes-quisa histórica sobre a escravidão negra no Piauí-colônia, julgada, por muitos, como incompatível coma pecuária.15 Essa visão idealizada do vaqueiro comoherói da região sertaneja assemelha-se ao modo peloqual o índio foi tomado pelos românticos como sím-bolo da nacionalidade brasileira. O vaqueiro apare-ce, então, mais como fruto da mística do boi do quecomo categoria social subordinada, que se definia pelotrabalho nas fazendas de gado, sendo o Piauí cele-brado como “pátria de vaqueiros” (CASTELOBRANCO, 1970, p. 44-5).

Com efeito, no nível das narrativas mestras, tra-ta-se de uma definição genérica e idílica de um tipo

13 Carlota Carvalho, na década de 1920, refutou a visão euclidiana da aridez, redutora, segundo ela, da idéia de sertão, pretenden-do demonstrar a existência de outros sertões, Brasil afora. Assim, descreveu aspectos físiográficos e a história da ocupação epovoamento da região que compreende o sul do Maranhão, limítrofe com o sudoeste piauiense, que corresponde, nessesestados, às regiões de cerrados.14 Renato Castelo Branco a interpretou como “civilização”: “(...) Em nenhum lugar jamais foi tão nítido o caráter de umacivilização; em nenhum lugar poderíamos encontrar mais definido aquilo que Capistrano de Abreu chamou de a ‘civilização’ docouro” (CASTELO BRANCO, 1970, p. 44-5) [grifos meus].15 Contrariando esta visão, sobre trabalho escravo no Piauí, ver Brandão (1999), Mott (1985) e Falci (1995).

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humano piauiense que traduz o trabalho deconceitualização, no âmbito de uma memória coleti-va (MORAES, 2000), com os personagens compor-tando-se mais como significados corporalizados quecomo personagens de carne e osso. Talvez pelo fatode a classe dominante de fazendeiros não ter geradoheróis – esta precisou, para simbolizar sua hegemonia,de um tipo econômico e socialmente subordinado.Assim, o trabalhador pastoril parece ter uma eficiên-cia simbólica própria: a de representar simbolicamentea subordinação da natureza,16 ecos euclidianos dovaqueiro/sertanejo como rocha viva da nacionalida-de. Mas, no nível das narrativas eclipsadas(MORAES, 2000), a figura do vaqueiro é algo pre-sente na real trajetória de vida de sertanejos e serta-nejas, como encontrei em minhas próprias pesquisasde campo nos “sertões desencantados” do Piauí:

“(...) Nasci lá em casa, na região. E vivo lá. Só não ficavalá quando eu era vaqueiro, saía pras fazendas. (...) Filhode agricultor. (...) Criei uma família grande e aí de vaqueiro,da roça, e hoje me acho feliz devido os meus filhos tátudo criado, não é? Ando no campo, ainda, na roça... detodo serviço eu tou fazendo. Mas só de agricultormentee vaqueirice (Sr. Cesário Ribeiro Leite, camponês deMorrinhos, Uruçuí, PI).“Aí, depois, a gente veio ser vaqueiro e passei mais trêsanos nesse local donde a gente veio ser vaqueiro, que eledisse que queria pegar um gadinho, sabe? (...) Ele eravaqueiro, mas era sempre lá [plantando na roça], erasempre lá, a gente plantava algodão, mas só que a gentenão deixava a lavoura, não sabe? A gente nunca deixou.Ele foi ser vaqueiro mais era pra juntar um gadinho. Épra tirar o... parece que é três, né? Sei que tem a sorte,né? Quando o gado tem umas crias – eu não lembroquantas crias – é pra gente tirar uma, parece que é três,não... são quatro... É, deve ser, eu acho que sim. Quantocompletar quatro pode tirar uma. (...). Olha, minha irmã,não deu não [pra juntar gado], porque a fazenda era assimfraquinha e a gente não tinha condição e, aí, a gente vendiaum pouquinho pra comprar coisa, sabe, que a gente tinhaos meninos (...)” (D. Maria Ribeiro de Morais, camponesa,de Sangue, Uruçuí, PI).17

No que tange à dimensão da cultura política, asociedade rude de vaqueiros é representada como

instituidora de uma ordem própria, baseada em valo-res locais. Disso nos falam, por exemplo, obras como“Ataliba, o vaqueiro” de Francisco Gil Castelo Bran-co, ou “Chico Vaqueiro do meu Piauí” e “Curral deSerras”, de Alvina Gameiro. Uma sociedade funda-da no patriarcalismo e profundamente estratificadaentre homens e mulheres, ricos e pobres, escravos esenhores, brancos e caboclos, como lembra Falci(2002). A fuga a essa estratificação, no caso dasmulheres, por exemplo, ocorre na ficção, com perso-nagens como Diadorim (ROSA, 1956), e Isabela(GAMEIRO, 1980). As imagens correspondentes aesse modo de vida são as de sertão como ausênciade ordem pública, sertão do cangaço, dos coronéis,do messianismo, de uma ética sertaneja própria, daqual nos fala, exemplarmente, o belo conto de CineasSantos, “Até amanhã”.

A propósito de um modo de vida sertanejo, lem-bremos ainda João Guimarães Rosa, que dialoga comduas linhas distintas da cultura brasileira: “Os ser-tões”, de Euclides da Cunha, na definição de umaépoca do boi, fundamental para a compreensão dequem são as gentes sertanejas; e com os diários dosgrandes viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire,na compreensão do ambiente natural e das gentes(Folha de São Paulo, 1996). Se sua obra se aproximada de Saint-Hilaire e dos viajantes naturalistas doséculo XIX, há, porém, uma diferença: em vez desimplesmente descrever a natureza, Guimarães Rosapreocupava-se em anotar como os habitantes doslocais que visitava a descreviam, não se enquadran-do, portanto, nem na chamada literatura sertaneja (aexemplo de João Cabral de Melo Neto, Rachel deQueiroz, Graciliano Ramos), por fugir à identificaçãode seca e de aridez do sertão, nem se confundindocom as narrações dominantes de cerrados. Ao ver osertão com os olhos do morador e do habitante, de-sempenhou Guimarães, com sua literatura, como lem-bra Arroyo (1984), importante papel na reconstruçãoda invenção das gentes do lugar. Não dialogariaGameiro (1980), por sua vez, com João Guimarães

16 Aliás, há, na figura do vaqueiro idealizado, uma apologia do macho, do homem que doma a natureza, o gado e a mulher, temaque remete ao processo de construção do nordestino como invenção do falo, como tratado por Albuquerque (2003). Emcontrapartida, a respeito das mulheres do sertão, inclusive no Piauí, ver Falci (2002).17 As histórias de vida de Seu Cesário e Dona Maria se encontram em Moraes (2000).

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Rosa, no trato literário do imaginário das gentes dosertão do Piauí?

Considerações finais. Ainda queremosser...tão?

Refletimos sobre a categoria sertão como umreferente sobre o qual se fala, para dizer do Brasil,através da idéia de um sertão genérico e do uso alegó-rico de proposições a respeito da nacionalidade, comotambém ao Piauí e a signos de identidades piauienses.

Não nos esqueçamos de que no processo de ins-tituição e reelaboração do imaginário, no tempo e noespaço, certas imagens permanecem na memóriasociográfica, literária e artística, como a do grupo se-mântico seco/rude/perigoso, parte do ideário sobre avida no sertão e sobre seus habitantes, profundamentearraigado no imaginário social, alimentando, até os diasatuais, idéias de Brasil, como a dizer: “(...) não, aquinão é o sertão” (PROENÇA, 1958, p. 43), lembrandomoradores que “(...) tinham a vaidade de julgar que azona na qual viviam não pertencia ao sertão: o deser-to, diziam, só começa além de certas montanhas quese encontram entre esta região e o São Francisco”(SAINT-HILAIRE, 1937, p. 275-76) [grifo meu].Perguntemo-nos, pois: o Piauí é sertão? Teresina ésertão? Aqui, onde vivemos, é sertão?

Em que pese a permanência desse imaginário dogrupo semântico seco/rude/perigoso, vale lembrar que,ao longo das três primeiras décadas do século XX, osertão nordestino ganhou visibilidade através de perso-nagens como padre Cícero do Juazeiro, Lampião eMaria Bonita, dos cantadores, da produção intelectual,e da indústria cultural. Dos anos de 1930 aos de 1960,embora o sertão rebelde do cangaço e do messianismocomeçasse a ser “domesticado”, aumentava ainda maisa sua imagem de realidade regional distinta e nacional,através da música de Luiz Gonzaga, do cinema deGláuber Rocha, da literatura de Ariano Suassuna, dasanálises econômicas de Celso Furtado, de instituiçõescomo a SUDENE. Segundo Almeida (1982), houve umlobby do sertão, que era apresentado, durante essesanos, como região carente, mas rica de valores nacio-nais, demandando do Estado recursos materiais (obrascontra a seca, etc.), embora os ecos de um sertão ca-rente não tenham de todo desaparecido, sendo aindaparte das estratégias que alimentam a indústria da seca

(NEVES, 1994, SOUSA, 2005), apesar de em curso aconstrução de uma nova representação, a de semi-ári-do (SOUSA, 2005). De todo modo, o jogo político regi-onal ainda vigora nas ênfases postas no ser sertão, prin-cipalmente quando em disputa a destinação de recur-sos, verbas, incentivos, programas especiais, etc. Maisrecentemente, nas duas últimas décadas do século XX,o sertão nordestino reaparece no cinema e nateledramaturgia nacionais em megaproduções que omostram como um espaço de circularidade de signosdo arcaico e do moderno. Além disto, explode a face dosertão country do Centro-Oeste, com seus rodeios emega-shows que movimentam grandes empresas doagronegócio, do showbusines (PIMENTEL, 1997), dacinematografia e teledramaturgia.

Mas permanecem entre nós os ecos de um ima-ginário de sertão pelo que se pode referir a selvagem(etnicamente povoado por indígenas), a pastoril eextensivo (onde não chegou a civilização da agricul-tura), a agricolamente pobre e ambientalmente árido(discurso da seca), a anárquico (onde o Estado estáausente e a ordem é privada), a deserto e desabitado(baixa densidade populacional), a uma alteridade àvida urbana. Aliás, dialogando com Saint-Hilaire(1937), nesse imaginário, João Guimarães Rosa fa-lou, pela boca de Riobaldo: “O senhor tolere, isto é osertão. Mas querem que seja não: que situado sertãoé por os campos gerais a dentro, eles dizem, fim derumo, terras altas, demais do Urucúia” (ROSA, 1956,p. 9) [grifo meu]. Cabe, por fim, insistir: não é sertão,aqui, também, “na cajuína cristalina em Teresina...”como poetou Caetano Veloso?

Que tomemos como algo bom para pensar a pers-pectiva roseana universalizante de um sertão que seencontra em toda parte, porque isso nos interpela, comosujeitos, incorporando, assim, a dimensão da subjetivi-dade. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, masde repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Ser-tão é quando menos se espera (...). Sertão é: dentroda gente” (ROSA, 1956, p. 282-305) [grifo meu].

Isto faz pensar, seguindo trilhas da nossa eternaviagem como caçadores de nós próprios, como suge-re a poética do “matuto urbano”, de Lázaro do Piauí,que as referências a “interior”, entre nós, podem-nosfazer reencontrar esse sertão encantado e primordial,na nossa própria relação campo/cidade. Se prestar-mos atenção, veremos que o termo interior – signifi-

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cando originalmente, no imaginário sertão/litoral, dis-tante da costa – foi ressemantizado, no Piauí, e parecereferir à nossa relação com um sertão simbólico, difusoe presente. Aliás, transformou-se até mesmo em so-nho de consumo: quem não deseja possuir um “interi-or” para fugir ao calor da capital em algum final desemana ou feriado? O termo, de uso corrente no Piauí,seja na capital, seja nos demais municípios do Estado,refere essa alteridade em relação ao urbano. À guisade conclusão, deixo aberta, então, uma das trilhas pararefletir sobre a nossa sertanezidade, como uma lin-guagem que fala de um sertão piauiense difuso e la-tente, presente mesmo na vida urbana:

“Eu só não nasci no matoPorque o destino bestouFez meu corpo na cidadeE alma no interior.Mas sei que sou viciadoNaquele cheirinho de gadoQue a natureza criou (...)”18 [grifo meu].

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18 Estrofe do poema “Matuto urbano”, de Lázaro do Piauí, que se encontra gravado, pelo próprio autor, no CD “Lázaro do Piauí emversos e prosas”, Teresina, maio de 2005. Produção e direção: Lázaro do Piauí.

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Fabiano Gontijo

Doutor em Antropologia Social pela EHESS/Françae em Antropologia Cultural pela UFRJ/BrasilProfessor do Departamento de Ciências Sociais, (comMestrado em Políticas Públicas/Mestrado em Letras)da Universidade Federal do Piauí – UFPI

Votar não é, por si só, um ato de cidadania. Damesma forma, tirar documentos e pagar impostos nãosão, de maneira isolada, exercícios de cidadania.Muito mais do que um conjunto de atos e práticas,cidadania é um processo de conscientização e de to-mada de conhecimento das posições no espaço-tem-po e nas relações sociais – e dos critérios para aocupação dessas posições – um projeto deobjetivação da subjetividade e, enfim, uma trajetó-ria de construção do respeito às diferenças culturaise de combate às desigualdades sociais. Ser cidadãoé, pois, ter consciência e controle do próprio proces-so, projeto e trajetória de formulação/reformulaçãoidentitária.

Tem-se a impressão de que com o desenvolvi-mento dos meios de comunicação de massa e damassificação das facilidades eletrônicas, entre ou-tros fatores, as referências identitárias se multiplica-

IDENTIDADE CULTURAL, RITUAL E CIDADANIA –CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DOS

FESTIVAIS DE ARTE NO PIAUÍram, se fragmentaram e se diversificaram, levandoao surgimento (ou, pelo menos, à vulgarização) deprocessos identitários cada vez mais dinâmicos,contextuais, situacionais. Recebemos, captamos ereproduzimos – e produzimos quase exnihilo a partirde elementos diversos – sinais múltiplos que servempara a preparação de nossas visões de mundo e per-cepção dos “mundos”1 (AUGÉ, 1998) dos quais par-ticipamos. Esses sinais visuais trocados em situaçõesde interação entram na construção e na reconstru-ção social de nossas aparências, formando,situacionalmente, nossas identidades ou imagensidentitárias. Essas identidades múltiplas podem serfixas, reformuladas periodicamente de forma idênti-ca, ou provisórias e cambiantes de acordo com assituações de interação.

As evidências, trazidas pela pesquisa antropo-lógica, confirmam que o sentido social sobre o qual

1 A noção de “mundos”, da maneira como definida por Marc Augé (1998), poderia complementar a noção, muitas vezesdemasiado rígida e homogeneizadora, de classe social.

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se baseiam as identidades concernem dois tipos derelações: por um lado, as relações entre os indivíduose as diversas coletividades em referência às quais seformulam suas identidades – eixo da identidade quedefine as pertenças sucessivas dos indivíduos; e, poroutro lado, as relações dos indivíduos singulares en-tre eles, pertençam eles às mesmas coletividades ounão, relações ao outro, alteridade – eixo daalteridade que liga as categorias de mesmo e outro.É na dupla relação com o “outro” e com o “coletivo”que as identidades são elaboradas. Ora, essa relaçãocom o “outro” e com o “coletivo” é sempre ritualizada,precisamente por se tratar de um momento crucialda dinâmica da vida social.

A atividade ritual tem por objetivo conjugar econtrolar essa dupla polaridade – indivíduo/coleti-vidade e mesmo/outro –, ligar as noções de identi-dade e alteridade e estabelecer, reproduzir e renovaras identidades individuais e coletivas. O rito repre-senta, portanto, um dispositivo com finalidade sim-bólica que constrói identidades relativas através dealteridades mediadoras. Assim, in fine, a cidadania,enquanto processo, projeto e trajetória identitários,só se exerce plenamente a partir de situaçõesritualizadas, como festas, grandes reuniões, eleições,eventos extraordinários e/ou cíclicos, carnavais... Aexperiência individual do conjunto dessas situações– e nenhuma delas isoladamente – é que faz do indi-víduo plenamente um cidadão.

R. Da Matta já mostrava, em seus estudos cé-lebres (1978), que no Brasil três são os momentosritualizados através dos quais, mais do que em qual-quer outro, se formula a “identidade brasileira”: o Diada Pátria (sete de setembro), o Dia da Padroeira (dozede outubro) e o Carnaval. Em particular, o carnaval.Como todo ritual coletivo, o carnaval favorece nãosomente a re-criação e o reforço da identidade so-cial global, mas é também o locus de consideráveisnegociações de interesses políticos e econômicos,

simbolizados ou não (como foi apontado por M.I.PEREIRA DE QUEIROZ, 1999), e, enfim, serve decenário para a construção e reconstituição das iden-tidades “categorias” relativas, como é o caso das iden-tidades masculina e feminina, burguesa e operária,urbana e rural, branca e negra, mas também as iden-tidades regionais.

A identidade não pode ser compreendida semsua relação com o outro, nem desconectada da ativi-dade ritual que conjuga identidade e alteridade. Asreflexões acerca da identidadae cultural forjadas atéentão viam a identidade ora como uma interiorizaçãode papéis e status impostos do exterior por um “sis-tema social” e uma ideologia dominantes;2 ora comouma capacidade estratégica do ator social que, emvez de interiorizar normas, as cria pela mediação deestratégias racionais e conscientes;3 ora como a pos-sibilidade de definição de si a partir de convicções ecompromissos, de sua identificação com os princípi-os culturais centrais da sociedade, dando assim umsentido subjetivo a sua ação e submetendo sua vida aesse sentido, identificando-se;4 ora como um traba-lho do ator que se constrói em diversos níveis da prá-tica e em diversos níveis de significação, cada umpossuindo sua própria lógica e remetendo a tipos es-pecíficos de relações sociais.5

A partir daí nos propomos em pensar o ritualnão tanto em sua ligação com o aspecto religioso,nem com sua ligação com o aspecto mitológico, nemtampouco simplesmente enquanto estratégia de dife-renciações identitárias, mas também – e sobretudo –como lugar de coesão (alteridade-identidade), comoproposto por M. Augué e D. Fabre (1987): confron-tar-se para melhor se integrar... Ou os rituais comomaneira de marcar, dominar, compreender e produ-zir o tempo social, segundo D. Fabre (1987), ou seja,como maneira de combinar o tempo individual e otempo coletivo, maneira de marcar a relação de siconsigo mesmo e de si com o outro. Enfim, o rito

2 Pensamos aqui nos escritos de E. Durkheim, de M. Mauss e de R. Parsons e, mais particularmente na França atual, nos de ATouraine.3 Essa é a perspectiva de R. Boudon e do individualismo metodológico mas também a de A. Giddens.4 A noção de habitus na obra de P. Bourdieu resume esse tipo de perspectiva.5 Dubet, F. Sociologie de I`Expérience Sociale, Paris, Seuil, 1994; e também De la Sociología de la Identidad a la Sociología delSujeto, in Estudios Sociológicos, 7, 21, 199, p.519-545.

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enquanto “(...) ordenação simbólica da realidade (...)”Assim, o ritual ajudaria no entendimento da socieda-de como um todo e informaria vivência da cidadania.

Enfim, os rituais – dentre os quais, o carnaval,mas também um festejo, como o do Poti Velho, ouum festival, como os de Pedro II e o Interartes daSerra da Capivara, ou até mesmo a Micarina e asdiversas “folias” – projetariam em um discurso sim-bólico aspectos cruciais da estrutura social brasileirae piauiense. Seria um momento específico do vividosocial que tornaria possível a redefinição das rela-ções entre indivíduos hierarquizados e diferenciadosno cotidiano. Logo, expressaria, de alguma maneira,uma integração simbólica de camadas sociais “mar-ginalizadas” ou de populações “estigmatizadas” aoconjunto da sociedade. Essa integração “provisória”– pois limitada a priori à atividade ritual – poderiaabrir caminho para uma integração mais permanenteou, pelo menos, mais recorrente e, então, o ritual to-mar-se-ia uma experiência do mundo, como sugeri-do por R. Da Matta,6 uma experiência social nosentido de F. Dubet,7 uma experiência criadora deidentidades e, por conseguinte, de formulação davivência da cidadania plena.

Podemos entender, a partir das consideraçõesmencionadas, porque os franceses dão tanto valor aodesenvolvimento das práticas esportivas em bairrosperiféricos das grandes metrópoles habitados essenci-almente por imigrantes muçulmanos marginalizados,oriundos das antigas colônias norte-africanas. O es-porte e seus rituais serviriam como um locus de inclu-são social. Mais aprimorados são os projetos, inicial-mente esportivos, desenvolvidos no Morro da Man-gueira, no Rio de Janeiro, com ajuda de órgãos gover-namentais e, principalmente, ONGs estrangeiras. Na-quela favela, as atividades empreendidas vão desde aprática esportiva profissionalizante até escolas de cos-tura e culinária, passando pela dança e o teatro.

Mais que o esporte, a arte pode servir, logo, comoponto de partida para a inclusão social e o exercício

da cidadania no sentido já definido. Inúmeras esco-las de dança funcionam em favelas cariocas, como aPequena Obra Nossa Senhora Auxiliadora – PONSA– no Morro Dona Marta, que teve como ponto departida uma obra caritativa assistencialista eredencionista e que se transformou, ao longo de dé-cadas de funcionamento, numa incubadora de gran-des talentos, usando as musicalidades de origem dosalunos. É nesse confronto de trocas simbólicas entremusicalidades autóctones “populares” e musicalidadesalógenas “clássicas” que as identidades parecem seformular e se reformular, gerando vivências de cida-dania sustentável.

Assim foi o I Festival Interartes da Serra daCapivara, realizado pela Fundação do Homem Ame-ricano, com apoio do governo do Estado do Piauí ede empresas privadas. Em realidade, o Festival nãofoi um ato único, mas a ponta de um iceberg, dandovisibilidade a uma caminhada que começou, talvezcom a chegada da Professora Niède Guidon e suaequipe no Piauí, nos idos dos anos 70. Muito mais doque aqueles espetáculos isoladamente apresentadosao vivo para os telespectadores de todo o Estado pelaTV Meio Norte, o Interartes foi também uma sériede oficinas de dança e música, conferências e pales-tras, visitas inteligentemente guiadas a sítios arqueo-lógicos, interações de todas as naturezas entre o pú-blico do Festival e os habitantes das cidades e povo-ados de toda a microrregião de São RaimundoNonato, contatos inusitados e cheios de surpresa coma fauna e a flora da caatinga, “aulas” informais deintrodução à sobrevivência no semi-árido... Isso éconstrução de cidadania.

Em parceria com o Instituto Ayrton Senna, ha-via sido criado o Pró-Arte, um programa educacio-nal (arte-educação) voltado para crianças e jovensdas comunidades do entorno do Parque Nacional daSerra da Capivara. Essas crianças e jovens, que de-senvolvem, ao longo do ano, atividades de música,dança e composição plástica inspiradas nas milenares

6 Da Matta, R., Carnavais, Malandros e Heróis, op. cit.7 Para F. Dubet, com efeito, os atores sociais constroem sua subjetividade e sua reflexividade através de suas experiênciascotidianas; as experiências individuais só adquirem sentido quando consideradas por outros atores como sendo uma experiên-cia, donde seu caráter social (Sociologia de I’Expérience, Paris, Seuil, 1994, p.101).

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pinturas rupestres do Parque, se envolveram direta-mente com o Festival. Isso é cidadania.

A segunda edição do Festival Interartes refor-çou o projeto inicial. Não foi um ato isolado e prepa-rado às vésperas, mas o resultado de um ano inteirode trabalhos e atividades dos mais diversos tipos,envolvendo arte, ciência e populações locais, em par-ticular jovens e crianças. A polêmica gerada pelaapresentação do espetáculo O Samba do CrioloDoido, pelo dançarino Luiz de Abreu, e as conse-qüências desta polêmica ao longo do resto do ano de2004 e da primeira metade do ano de 2005 são bas-tante significativas das transformações culturais queum festival desse porte podem produzir: a irreverênciae a nudez do dançarino geraram sorriso na platéia ecomentários nos habitantes das cidades da região,levando-os a pensar e repensar seus valores e nor-mas culturais numa sociedade em processo de“globalização” e de mudanças. Isso é cidadania. Aterceira edição, em 2005, bastante menos polêmica,mais musicada e menos dançada, continuou o pro-cesso de tentativa de integração das comunidadeslocais, da Fundação do Homem Americano e do “mun-do global”. Desta vez, percebeu-se mais nitidamenteo envolvimento da população de São RaimundoNonato, em particular, não só na preparação, mastambém na divulgação do evento e na participaçãoaos espetáculos e às inúmeras atividades paralelas.

Cidadania, para citar somente dois exemplosainda, é o que produz o trabalho de produção da ce-râmica “típica” da Serra da Capivara. Com apoio doBID e objetivando o reaproveitamento da mão-de-obra até então ocupada na caça predatória, criou-sea fábrica de cerâmica, a partir de técnicas desenvol-vidas em conjunto por pessoas nativas e por pessoasde fora e ensinadas aos ex-caçadores e outros mem-bros das comunidades locais. Mas, o exemplo quemais chamou a atenção deste autor foi o das aulasde dança ministradas por Lina do Carmo, a dançari-na piauiense radicada na Alemanha, responsável pelacoordenação artística do Festival em suas duas pri-meiras edições. Ela e outros membros da Fundaçãodo Homem Americano e do Pró-Arte conseguiramfazer com que meninos e meninas, assim como seusfamiliares pobres, vissem na dança e na música con-temporânea uma forma de interagir, de maneira brin-

calhona, porém séria, com seu meio ambiente, comsua história, com sua gente, com o mundo... Isso éconstrução de cidadania.

Enfim, pequenas ações, como as aulas de dan-ça para crianças da Serra da Capivara (e todas asconseqüências dessas aulas), tornam-se verdadeirosinstrumentos do processo de construção da cidada-nia. É através da arte e da (re)apropriação cultural –e, principalmente, da chamada “cultura” ou “tradici-onal”, por oposição absurda à erroneamente chama-da “cultura erudita” – que um povo se constitui en-quanto nação e reforça o ideal da diversidade cultu-ral e do respeito à convivência das diferenças. Ogoverno do Estado do Piauí, através da FUNDAC eda PIEMTUR, já entendeu que é passada a hora deestimular – não só financeiramente, mas instigando acriatividade – essa (re) apropriação cultural, comeventos como a teresinense Feira de Artes da PraçaPedro II (a “Feirinha” da Pedro II) ou o FestivalInterartes, mas também o Salão Internacional doHumor (já com mais de 20 edições) e seus temasimportantes (como a AIDS ou o racismo) tratadoscom humor. Chegou a hora de retomar o bumba-meu-boi, os reisados e tantas outras práticas rituais, fa-zendo com que nos eventos os grupos e classes soci-ais, as faixas etárias, sexos e as orientações sexuais,as cores de pele, enfim “os diferentes”, se encon-trem e, desse encontro, seja repensada a identidadepiauiense... Mas, não basta montar palco e fazer fes-ta. Há de se dar sustentabilidade a essas atividades,pois a cidadania só é sustentável se for considerada,repito, como um processo, um projeto, uma traje-tória...

REFERÊNCIASAUGÉ, M. O sentido dos outros. Petrópolis: Vozes, 1998.AUGÉ, M.; D. FABRE. “D’un Rite à I’ Autre”. Terrain, v. 8, p. 71-76. 1987.DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma soci-ologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.DUBET, F. Sociologia de I’expérience, Paris: Seuil, 1994.FABRE, D. “Le Ritte et ses Raisons”. Terrain, v. 8, p. 3-7,1987.PEREIRA DE QUEIROZ, M. I. Carnaval: o vivido e o mito. SãoPaulo: Brasiliense, 1999.

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Benedito Rubens Lunade Azevedo

Cientista Social, com especialização em Conservaçãode Arte Rupestre. Assessor da Prefeitura Municipal deCastelo do Piauí.

A IMPORTÂNCIA SOCIOAMBIENTAL DA BACIAHIDROGRÁFICA DO RIO POTY NA FORMAÇÃO DA

IDENTIDADE CULTURAL PIAUIENSEO presente documento tem como objetivo discu-

tir a importância da Bacia Hidrográfica do Rio Potyno processo de formação da identidade culturalpiauiense, fazendo, inicialmente, uma contextualizaçãohistórico-cultural, tendo como pano de fundo a narrati-va de sete “causos” e histórias fantásticas quepermeiam o imaginário coletivo dos ribeirinhos. As in-formações e os conhecimentos inseridos no texto fa-zem parte do banco de dados oriundos de uma pesqui-sa sobre a citada bacia, desenvolvida por este autor,cujo ápice da investigação de campo ocorreu no anode 2003, quando tive a felicidade de percorrer toda aextensão de sua calha, da nascente até sua foz, duran-te 65 dias, sem uso de qualquer apoio motorizado.

Contextualização geoespacialO Poty, que tem o significado de camarão na

língua indígena, é um afluente da margem direita dorio Parnaíba e possui uma área de 52.202 quilômetrosquadrados, abrangendo os Estados do Ceará, Piauí e oMaranhão se considerarmos que metade das terrasno entorno de sua foz situa-se neste Estado. Quanto ànascente do rio, o mais usual pelos livros didáticos éconsiderar a junção dos riachos Fundo com o Cipó, naserra da Joaninha, como sendo a nascente do Poty.

Por si tal afirmativa mostra a sua imprecisão, ficandosem definir qual a nascente mais alta, a que tem amaior vazão, a mais distante, ou mesmo a que temmaior importância socioeconômica, inclusive, esta teseoficial aparece publicada no livro do geógrafo JoãoGabriel Batista, 1981. Porém, com base em minhaspesquisas pude notar que o curso principal do rio ultra-passa a serra da Joaninha e vai nascer mesmo é naserra da Ibiapaba, numa localidade rural por nomeJatobá, no Olho-d’Água da Gameleira. Seguindo rioabaixo, o primeiro aglomerado urbano é a comunidadede Santa Maria, e o município de referência é o deQuiterianópolis, Ceará.

O que mais chama a atenção sobre o Poty é oseu traçado sinuoso e imprevisível, pois o mesmonasce de frente para o leste, migra para o norte, porquase 100 quilômetros, até encontrar uma fenda naprópria serra onde nasceu e migra para o oeste ondese une com o rio Parnaíba, portanto, executando umgiro de 360 graus sobre si mesmo. Ao cruzar ao meioa extensa e estreita serra da Ibiapaba, cordilheira quelimita o Piauí e o Ceará, o rio forma o cânion doPoty, ou Boqueirão do Poty, como é mais conhecidopelos ribeirinhos. Por mais de 20 quilômetros o riopercola entre os paredões norte e sul da serra, for-

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mando grandes poços que funcionam como reserva-tórios superficiais d’água, ladeados pelos paredõesrochosos. Esta feição de cânion ainda ocorre por maisde 100 quilômetros rio abaixo, quando o mesmo seestreita por entre os contrafortes da serra.

O valor econômico da baciaQuanto à vegetação existente na bacia, é

diversificada, ecotonal, sendo a caatinga, o cerrado ea mata de cocais os tipos mais densamente encontra-dos. Quase dois terços da população do Estado doPiauí vivem nesta bacia, sendo que Teresina, a capitaldo Estado, situa-se na foz do Poty. Das atividades eco-nômicas geradoras de emprego e renda, citamos aovinocaprinocultura, o extrativismo vegetal com a co-mercialização da cera de carnaúba, o óleo de cocobabaçu, a cadeia produtiva do caju. A mineração coma exploração da opala, em Pedro II – PI e da pedra decastelo, no Município de Castelo do Piauí, vem assu-mindo um papel cada vez mais importante na pauta deincremento do Estado. O artesanato, a produção agrí-cola baseada nos gêneros de primeira necessidade e osetor de serviço na Capital do Meio-Norte impulsio-nam o desenvolvimento econômico e social da bacia.No entanto, é no setor do ecoturismo que encontra-mos uma promissora atividade econômica, tendo comoatrativo principal o belíssimo cânion do rio Poty, tantopelo seu cenário magnífico como pelo potencial ar-queológico ali existente.

O valor histórico da bacia do Poty nopovoamento do Piauí

Mesmo sendo uma bacia importante para a eco-nomia piauiense, é na formação da sociedade piauienseque o cânion do rio Poty exerceu sua maior contribui-ção ao funcionar como corredor migratório entre osdois nordestes, por assim dizer, o ocidental, compostopelo Maranhão e o Piauí, e o nordeste oriental, forma-do pelo Ceará, Paraíba, Pernambuco. Bem antes dachegada do colonizador português, o ameríndio já apro-veitava a passagem pelo boqueirão, evitando, com isso,o gasto energético de ter que subir e descer a serraem suas travessias entre o leste e o oeste e vice-ver-sa. Como comprovação deste fato, encontramos umainfinidade de inscrições rupestres dispostas nos enor-mes blocos de pedra escuras e brilhantes, situadas naentrada do magnífico cânion. A técnica empregada naelaboração das inscrições é a gravura em baixo rele-

vo, por meio do picoteamento do substrato rochoso,ocorrem na forma de grafismos, tridígitos e setas comoa indicar o caminho a seguir.

Da mesma forma que os ameríndios, também ocolonizador português aproveitou-se da garganta doPoty para dominar o território, estabelecer as fazen-das de gado e ampliar os domínios do império coloni-al português. Deu-se no ano de 1607 a partida deuma expedição jesuítica de Pernambuco com o fimde catequizar as tribos da serra da Ibiapaba. PadreFrancisco Pinto e Luís Figueira comandavam o gru-po composto, principalmente, de índios cativos.

As tribos do alto da serra, já afeitas ao contatocom o colonizador, receberam muito bem a comitivareligiosa, porém quando os dois padres resolveramcatequizar os índios Tacarijus que viviam nas terrasbaixas, na entrada oeste do boqueirão, sofreram umrevés dramático. Na tentativa de expelir o invasorcultural, os Tacarijus atacaram, de surpresa, o acam-pamento dos padres, composto de uns poucos índiosTabajaras das terras do alto da Ibiapaba. Da chacinasó restaram o padre Luís Figueira e um indiozinhoque se escondera com ele numa moita próxima aoacampamento. Poucos anos depois, veio uma expe-dição militar e destruiu aquela nação guerreira.

Em meados do século XVII, chega à bacia doPoty o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho,estabelecendo suas fazendas no alto (Crateús), nomédio (Valença) e no baixo Poty, na região de suafoz. Diante de seu poderio militar, muitas tribos pas-saram a fazer parte de sua gente. É, portanto, comestes índios que Domingos Jorge Velho se utiliza paradestruir Palmares, no sertão alagoano. Daqui, partecom 1.300 arcos (guerreiros) para a guerra. Apósderrotar o antigo quilombo, solicita a oficialização dasterras da bacia do Poty à coroa portuguesa. Resquí-cios deste período colonial podem ser vistos em di-versas ruínas encontradas ao longo do médio e baixoPoty, como é o caso da comunidade Burity do Sobra-do no Município de Castelo do Piauí, onde existem osrestos a meia parede de um grande edifício construídocom blocos de pedra. Moradores antigos do lugar di-zem que aquela edificação pertenceu aos jesuítas, tendosido encontrados por populares peças e ornamentosreligiosos nos arredores do enigmático casarão.

Outra evidência da utilização do cânion do Potynaquela época, como via de acesso, diz respeito àexportação do gado piauiense para o Ceará,Pernambuco e Bahia que utilizava o boqueirão. Ain-

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da hoje podemos ver enormes currais de pedra pró-ximos à localidade Oiticica, usados para acomodar ogado, antes de cruzar o cânion. Nos anos de secaocorria o fluxo inverso, era o gado do sertão do Cea-rá que migrava para o Piauí em busca de água epastagens através daquele portal.

Diante de tamanha valoração histórico-cultural,não é de causar espanto que a população ribeirinha erural desta bacia tenha um profundo conhecimento arespeito de lendas, “causos” e histórias fantásticasremanescentes deste passado agitado por migrações,guerras e conquistas. A seguir, apresentaremos anarrativa de sete casos na tentativa de ilustrar o uni-verso mítico e onírico das populações ribeirinhas docânion do rio Poty.

CASO I: O Monstro do PotyContam os antigos que, lá pras bandas da loca-

lidade Oiticica, zona de litígio entre o Piauí e o Ceará,na entrada do boqueirão, habitava um monstro aquá-tico com mais de 20 metros de comprimento. Suamorada eram os extensos e profundos poços do rio.Assustava a lavadeira, o vaqueiro, todo aquele quese aproximasse do rio. Dizem que quando se movia,fazia um vinco na água, tipo uma onda do mar emrazão do seu tamanho e força descomunais. Alémdisso, provocava um forte esturro ouvido a longa dis-tância. Ao contar esta estória para o Seu Clóvis,morador da cidade de Quiterianópolis e profundoconhecedor do Poty no seu alto curso, o mesmo dis-se-me que já conhecia o fato e que, no período emque servira o exército, na cidade de Crateús, décadade 1960, participou de uma expedição de reconheci-mento ao local de aparição do temível monstro, natentativa de capturá-lo. Durante muitos dias arma-ram campana às margens do Poty, porém a armadi-lha não logrou sucesso. Ao que parece o monstro dorio ainda hoje habita os profundos e escarpados po-ços, escondendo-se nas inúmeras grutas submersasdaquele boqueirão.

Em tempo: Seu Clóvis é um dos que defendemque a nascente do Poty situa-se no Jatobá.

Caso II: Maniqueísmo no Monte NeboNa região do alto Poty vivia a tribo indígena dos

Crateús, que segundo o Seu Ferreirinha, conhecidohistoriador natural da cidade de nome idêntico, a pala-vra Crateús origina-se da fusão de dois nomes de ani-mais ribeirinhos o cará, um peixe, e tiú, um réptil. Com

a chegada dos colonizadores portugueses, paulistas ebaianos, aos poucos o domínio dos Crateús ia reduzin-do de tamanho, expulsos pelos latifundiários na suaganância por mais pastos. Ao cabo de décadas só res-tou um estreito, mais fértil, vale aos pés da serra daIbiapaba, distando algo em torno de 40 quilômetros dacidade. Para se ter uma idéia do quanto aquele lugarera fértil, ainda hoje existem no centro da comunidadedo Monte Nebo os escombros de um antigo engenhode cana que possuía 12 moendas. Sem ter para ondeir, os índios fizeram dali sua última trincheira e manti-nham arqueiros bem armados para afastar qualquerinvasão dos criadores de gado. Foi aí que os fazendei-ros utilizaram uma velha tática de guerra de infiltrarum espião nas fileiras do inimigo. Determinaram a umde seus encarregados que fosse à tribo fazendo-sepassar por um mercador amigo. Deram-lhe váriasbugigangas, como espelhos, miçangas, pentes, contandoainda uma boa carga de cachaça. A estratégia surtiuefeito e os ingênuos índios permitiram a entrada doemissário maldito. Durante a noite, no auge das dan-ças e cantorias, a bebida foi fartamente distribuída e,em pouco tempo, a maioria dos guerreiros estavamembriagados, sem forças para combater. Depois derecolher as armas de guerra dos índios, o intruso ace-na aos seus asseclas que aguardavam escondidos osinal para invadir o acampamento indígena e executara chacina sem encontrar a menor resistência. Dogenocídio, sobraram apenas uns poucos curumins emulheres que foram escravizados. Com atitudes pou-co éticas como estas é que se formou o caráter denossas elites dominantes.

CASO III: A Pedra do Tic-TacTão interessante quanto a narrativa sobre a enig-

mática pedra é o seu intérprete, Seu Chico Peres,morador do São Bento, comunidade situada às mar-gens do Poty, no Município de Burity dos Montes,homem de grande sabedoria. Segundo ele, havia umapedra situada numa planície, no caminho entre o SãoBento e a cidade de Pedro II – PI. Não era tão alta,quase do tamanho de uma geladeira, mas o que tinhade especial era a capacidade de emitir um som muitoparecido com o tic-tac dos antigos relógios à corda,só que muito alto, ininterrupto e tão estridente quefazia cair o queixo do sertanejo. O fenômeno cha-mava tanto a atenção, que pessoas de diferentes lo-calidades viajavam léguas para assistir à pedra dotic-tac dar seu show. Foi aí que apareceu um cida-

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dão não se sabe de onde veio e, na tentativa de furtaro suposto relógio que havia no seu interior, dinami-tou-a, destruindo-a por completo, acabando, também,com o estranho som que emitia.

CASO IV: Família que Luta Unida SobreviveEste fato aconteceu nas eras de 1980, lá pros

lados do vale do rio Cais, afluente da margem esquer-da do Poty, e muito ilustra sobre a fibra e a garra dosertanejo nordestino quando precisa encarar as ad-versidades do meio ambiente em que está inserido.

Morava em um sítio distante, no interior de umadensa mata, uma família típica do sertão: o pai, a mãee três filhos pequenos – a menina com mais idadenão havia completado os 12 anos, os outros conta-vam seis e sete anos. O vale do Mirindibal é circun-dado pela serra do Morcegueiro, assim conhecida emfunção das dezenas de cavernas ali existentes queserviam de moradia para os mais temidos animais dosertão, cobras, morcegos, caititus e onças.

O certo é que, num determinado dia, os pais dostrês garotos tiveram que ir trabalhar numa roça dis-tante, deixando a criança maior tomando conta dosdois menores. Não fazia muito tempo que partiram,nas primeiras horas do dia, quando as crianças ouvi-ram um barulho no quintal da casa. A menina maisvelha foi ver o que estava acontecendo e, ao chegarlá, percebe que o galinheiro estava sendo atacadopor um animal. Supõe a garota ser um cachorro-do-mato e, gritando, corre para cima do animal na tenta-tiva de que o mesmo fuja com medo da zoada. Qualo quê, nem o animal fugiu, tampouco era um cachor-ro-do-mato. Na verdade era uma onça parda adultaque, deixando de lado a galinha, saltou em cima daassustada criança. Aquele alvoroço todo chamou aatenção dos dois irmãos menores. Lá chegando, de-pararam-se com o enorme felino desferindo golpesna irmã. Sem titubear lançaram-se os três naquelaluta renhida, armados com uma pequena faca tipocanivete e um porrete feito do caule do jucá, duríssimo.Depois de um longo e sangrento combate, as crian-ças conseguiram matar a temida onça. Tão grandese profundos foram os ferimentos provocados peloperigoso felino que a criança mais velha teve de pas-sar dois meses no hospital, em recuperação. Hoje, jáadulta, Francisca, a irmã mais velha, guarda as cica-trizes por todo o corpo, mas é no seu olhar, no seu arde guerreira que percebemos toda a garra e altivezdo sertanejo da bacia do rio Poty.

CASO V: Uma História de FéAo visitar a cidade de Prata do Piauí, às mar-

gens do Poty, no seu baixo curso, o visitante se en-cantará com a singeleza e o ar interiorano típico desertão piauiense. Também não poderá ir embora semdesfrutar do refrescante balneário da Prata Velha,que fica nas cercanias da cidade, onde uma grandepiscina de água natural e cristalina é alimentada porolhos-d’água de forma permanente. Se sentir fome,o turista deve procurar a “Fé” e seus problemas es-tarão resolvidos, é referência na cidade. Tambémfabrica doces deliciosos. É muito comunicativa e ale-gre. Contou-me, então, de uma especial experiênciaque aconteceu com ela durante sua adolescência. Suafamília possuía raízes numa pequena comunidade rioacima, ficava próximo ao poço do Curicica, sendoeste muito profundo. Ela e sua mãe foram passaruma temporada, deixando a cidade de Prata ondeviviam. Como de costume, cedo da manhã as mulhe-res da comunidade dirigiam-se ao rio com o objetivode lavar roupa e pegar água para o abastecimentodos lares. Enquanto isso, Fé, suas primas e colegasacompanhavam as mães naquele alegre passeio. Nodia do ocorrido, as meninas brincavam de ver quemdava o salto mais espalhafatoso possível, o que fizes-se espalhar mais água para todos os lados. Sempreespevitada, Fé se esforça ao máximo na sua vez, afas-ta-se, corre e salta dando um mortal antes de cair naágua. Afundou, perdeu os sentidos e a direção parachegar à margem do rio, nadou embaixo d’água aesmo. As colegas logo perceberam que alguma coi-sa havia dado errada, pois Fé não retornara à tona.Em pouco tempo toda a comunidade estava em voltado rio. Pescadores experientes lançavam-se em mer-gulhos demorados para tentar encontrar Fé, sem su-cesso. Depois de horas de busca infrutífera, deram ocaso por encerrado, imaginando que a moça estives-se morta, presa em alguma raiz ou saliência de rochasubmersa. Choro, desmaios, desespero dos parentese amigos era só o que se ouvia.

Mas o que aconteceu depois deixou todos co-bertos de espanto. Já era fim de tarde e todos espe-ravam a chegada do delegado para registrar o casoquando, de repente, surge Fé na margem do rio. Ain-da tonta e exausta desmaia na frente de todos. Aoacordar, Fé explicou que, ao cair na água, ficou ator-doada e nadou embaixo d’água, entrando, sem saber,numa gruta submersa. Já quase sem fôlego, chegounum lugar muito escuro, uma gruta interna, onde pôde

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respirar. Ali mesmo ficou e adormeceu. Algum tem-po depois sentiu alguém se aproximar dela, pareciaum ser meio-peixe meio-homem, que a pegou pelosbraços e a conduziu até bem próximo da margem,depois retornou para as profundezas do Poty. Quema retirou da caverna? Como ela conseguiu retornar equais seres habitam as cavernas submersas do Poty?São questionamentos que murmuram, vez por outra,em meus pensamentos e devaneios.

CASO VI: Prova de AmizadeNesta narrativa a figura emblemática é a as-

sustadora cobra sucuri. Este animal se adaptou mui-to bem ao ecossistema do cânion do rio Poty onde osgrandes poços lhe serviam de moradia, tendo peixese outros animais do entorno como seu alimento pre-dileto. Entretanto, com os desmatamentos, a caçapredatória e a perda da biodiversidade já não se vêemgrandes exemplares destes animais. Ouvi, da partedos pescadores, que, no poço Amarelo – tem estenome devido à cor dos paredões de arenito que ocircundam – há dez anos, eles mataram uma sucurique media 72 palmos, algo em torno de 14 metros.Na esperança de reaver o couro do bicho perguntei-lhes se o guardaram. Qual não foi minha tristeza quan-do soube que o couro foi cortado em pedaços para afabricação de tamboretes, ou seja, pequenos bancosde madeira cujo acento vem a ser o couro da cobra,por ser duro e resistente.

Mas o caso que vou lhes contar ocorreu numpoço profundo de um afluente da margem esquerdado Poty, o rio Sambito. Lá estavam dois pescadores,amigos de longas datas. Era fim de tarde, eles usa-vam uma canoa de madeira típica do lugar para aju-dar a fixar os enganchos e redes, enquanto um ia pordentro d’água o outro seguia na canoa, num trabalhode ajuda mútua. Ao passarem por uma anciã queestava a lavar roupas, ouviram dela uma informaçãoassustadora. Disse ela que, naquele sinistro poço,morava uma sucuri muito antiga, de grandes propor-ções e que seria melhor que voltassem de onde vie-ram. Disse também que a cobra sucuri já tinha tra-gado vários pescadores para o fundo do rio, ondepossuía um esconderijo. Sendo que até aquela dataninguém mais viu o corpo dos pescadores mortos.Sem temerem o aviso, os dois amigos penetrarammais ainda no alcantilado boqueirão, preparando asarmadilhas. Quando, de súbito, quebrando a harmo-nia do lugar, eis que surge a sucuri, ao tempo em que

emite um esturro assustador, dá um salto ao lado dacanoa. Com o movimento da água, o pescador queestava na canoa se desequilibra e cai no rio. O ami-go, distando uns 20 metros dali, nada pode fazer. Avelha, de longe, assiste impávida. Ao cair, o coitadotorna-se presa fácil para o astuto ofídio, que dá obote e o carrega para o fundo do rio. O amigo queficou nadou até a margem sem saber ao certo o quefazer, quando a velha pragueja mais uma vez dizendoque não havia mais o que fazer, e aquele seria maisum jantar da sucuri. Ao ouvir a lavadeira desdenharda situação, enche-se de rancor e ódio para com aterrível cobra. Responde à velha dizendo que aqueleseria o último almoço da sucuri, e ele retornaria como corpo do amigo, mesmo que já morto. Acomodousua faca entre os dentes, colocou todo o ar possívelnos pulmões e mergulhou no rio. Não demorou a achara entrada do esconderijo da sucuri e, já quase semfôlego, alcançou a parte seca no interior da cavernasubmersa. Em seguida, acendeu uma vela para cla-rear o lugar, quando enxergou a grande serpente semveneno, ainda enroscada quebrando os últimos ossosinteiros do infeliz amigo. Com a fúria de um titã des-feriu inúmeras facadas no tenebroso animal, levan-do-o ao óbito. Resgatou o amigo trazendo consigo acabeça da cobra. Ao ver o pescador retornar, a ve-lha lavadeira danou-se em desabalada carreira. An-tes de partir o bravo pescador enterrou o amigo co-brindo-o com seixos do Sambito, recuperou osenganchos armados e os peixes capturados. Conclu-ídos os serviços, foi embora avisar aos familiares docolega morto sobre o trágico acontecido.

CASO VII: A Rainha do PotyFora a temida cobra sucuri, existe um outro ani-

mal que põe medo e assusta a todos que se servemdas águas do Poty, é a assustadora arraia. Mas suaocorrência limita-se à parte do médio e por toda aextensão do baixo Poty. Ela só não habita os poçosmais altos do rio porque a arraia não consegue ven-cer a acentuada declividade da cachoeira da Lem-brada, situada no Município de Burity dos Montes.Talvez pela falta de predadores este esquisito peixede forma ovalada proliferou de maneira indiscrimi-nada. Sua arma de defesa é um poderoso esporãoque traz consigo na ponta de uma saliência, tipo cau-da. A arraia gosta de viver enterrada no limo, próxi-mo à margem do rio. Sem perceber o perigo, aqueleque pisar em cima dela sofrerá uma forte perfura-

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ção, cujo ferimento provoca uma dor insuportável.Sua recuperação é lenta, muitas vezes infeccionan-do a ferida. Sua esporada é tão intensa que até umtouro ou cavalo que nela pise terá seu casco perfura-do, e, em razão da dor, o quadrúpede rolará por horasna margem do rio, sangrando muito no local atingido.

Disse-me um pescador, na altura da passagemda Concórdia, Município de Juazeiro do Piauí, tercapturado uma grande arraia, cuja circunferênciamedia 17 palmos. A espécie mais comum no Potytem uma coloração marrom escura, porém, fui infor-mado que no alto do rio São Nicolau, afluente do rioSambito, vive a arraia branca muito grande e suaesporada é tão violenta que, se não matar, aleija oacidentado. Ao chegar numa fazenda às margens doPoty, no Município de Monsenhor Gil, de longe avis-tei um homem que caminhava com dificuldade. Aome aproximar pude perceber um ferimento muito in-flamado no seu pé direito. Ele contou-me que estavapescando no rio, se achando protegido, pois estavacalçado com uma bota de borracha vulcanizada, en-tretanto, ao pisar numa arraia, esta conseguiu perfu-rar a bota e atingir a parte superior do seu pé.

Por esta e por tantas outras, é a arraia um ani-mal que permeia o universo imaginário dos ribeiri-nhos do Poty. Foi durante uma de minhas viagens decampo ao médio Poty, que escutei uma história espe-tacular. Em eras passadas, os pescadores do rio pro-jetaram uma espécie de bota de carnaúba, que dei-xava livre de esporadas quem as calçasse. Os pes-cadores trançavam de tal forma a palha da carnaúbaque, quando molhadas, aumentava a resistência dasmesmas. Para o meu desencanto ninguém mais sa-bia confeccionar a dita bota. Imaginei que aquela téc-nica teria se perdido com o passar do tempo. Doisanos depois voltei à mesma região, convidado que fuipelo Senhor Pedro de Loia, agente de saúde da co-munidade Piaus, Município de Burity dos Montes.Após a festa, retornava eu com mais alguns convi-dados na traseira de um pick-up, quando comentei arespeito da bota de carnaúba, explicando, por fim,minha mágoa em não encontrar quem a confeccio-nasse. Neste momento uma senhora me toma a pa-lavra e diz que viu várias vezes seu avô fabricar abota. Afirmou, também, ser ela capaz de confeccioná-la, dei saltos de alegria. A fiz prometer que tentaria,até lhe consegui as palhas para executar a tarefa.Dois meses depois Dona Maria Palhares manda avi-sar que a bota estava pronta. Quando cheguei a sua

casa, na cidade de Castelo do Piauí, já não agüenta-va de tanta ansiedade. Ela vem e traz nas mãos umpar da bota de carnaúba, tão perfeito que mais pare-ciam objetos mágicos, daqueles que só vemos noscontos de fada. Na verdade estava ali consumado oresgate de uma cultura única, fruto da vivência secu-lar do sertanejo interagindo com o seu meio ambien-te, encontrando soluções ecológicas que aplaquem oseu sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAISMesmo com toda a importância social, cultural,

econômica, arqueológica e ambiental, vivemos aesdrúxula situação de observar a paulatina morte doPoty. São tantos os problemas que lhe encerram quemerece um artigo à parte. O desmatamento, minera-ção criminosa, assoreamento, passando pelo lança-mento de esgotos urbanos, a caça e a pesca predató-rias são alguns exemplos. A construção aleatória debarramentos vem gerando uma perda considerávelda oferta de água de superfície. Os vales do alto emédio Poty eram úmidos, possuíam matas verdejantes,como é o caso do Monte Nebo em Crateús. Hoje avegetação é composta de arbustos esparsos, terranua, sem nutrientes, e as poucas matas de encostaque sobraram estão desaparecendo em virtude dasqueimadas. Com a elevação da temperatura e o efeitoestufa tem havido uma aceleração do processo dedesertificação na bacia do rio Poty. Este quadro, in-felizmente, nos apresenta um futuro sombrio para oshabitantes do Poty.

É necessário, portanto, um esforço coletivo en-volvendo os diversos segmentos da sociedade paraamenizar os efeitos nefastos do antropismo. Esforçoeste que passa, peremptoriamente, pela criação doComitê de Bacia Hidrográfica do Rio Poty, a fim deque elaboremos uma política unificada de revitalizaçãoe gestão das águas, desde a nascente até sua foz. Nãohaverá futuro sustentável se o nosso principal insumo,a água, não receber a devida atenção por parte detodos.

REFERÊNCIASBASTOS, Cláudio. Dicionário histórico e geográfico do esta-do do Piauí. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves.1994.BAPTISTA, João Gabriel. Geografia física do Piauí. [Teresina]:Comepi, 1981.CHAVES, Joaquim. O índio no solo piauiense.

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Sérgio Romualdo Lima Brandim

O Brasil é um país oficialmente católico, contu-do vem apresentando continuamente uma diminui-ção desta população para religiões neopentecostais,religiões afro ou de procedência oriental. Apesar des-ta diminuição, o Estado do Piauí ainda possui, aproxi-madamente, 91,3% de sua população que declaramser católicos.

Dentro desse espaço de forte característica re-ligiosa, as expressões de fé se apresentam e explo-dem aos olhos de seus habitantes, sendo que as fes-tas de padroeiros ou padroeiras marcam significati-vamente o calendário festivo das cidades piauienses.Dessa forma, as romarias, oferendas de ex-votos,pagamento de promessas, novenas, etc., tornam-sepráticas recorrentes ao povo na demonstração de suareligiosidade.

A influência religiosa e suas práticasdevocionais observadas na cidade de Santa Cruzdos Milagres, único santuário reconhecido peloVaticano para peregrinação no Piauí , jáextrapolaram as fronteiras, e sua importância atu-almente é percebida pela quantidade considerá-vel de romeiros que para lá se dirigem, mesmo

RELIGIOSIDADE E CIDADE: O SANTUÁRIO DE

SANTA CRUZ DOS MILAGRES-PItendo como obstáculos os percalços geográficose físicos que se impõem aos romeiros de váriosestados nordestinos.

A construção desse local, no imaginário do ser-tanejo, remete às décadas finais do século XIX, mis-turando-se às várias narrativas que iam florescendonas suas experiências cotidianas, apresentando umaquantidade significativa de símbolos e marcando sen-sivelmente a estrutura religiosa e suas práticas.

De forma resumida a lenda revela que, numcerto dia, no Município de Valença, em uma locali-dade chamada “Jatobá”, chegou um beato com asua pregação habitual de fé e convenceu um va-queiro a segui-lo até um morro próximo. Deu-lheum cavador de madeira, mandou-lhe cavar a rochabruta, mas o vaqueiro incrédulo somente ficou olhan-do e esperando o retorno do beato, que tinha desci-do o morro até um mato próximo, trazendo logo apósuma cruz de 1,50m por 80cm, feita de “pau dechapada”, uma árvore muito comum e abundantena região. Ao chegar e perceber que o vaqueironada fizera, o “velho” traçou com o dedo um círcu-lo na pedra, sacando com a mão a pedra do buraco,

Mestre em História do Brasil (UFPI). É professor daUniversidade Estadual do Piauí (UESPI) e daFaculdade Santo Agostinho (FSA). Pesquisador naárea de História, Cultura, Antropologia e Religião.Desenvolve atividades acadêmicas na área demetodologia e projetos de pesquisa monográficos.

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onde colocou a cruz e disse ao vaqueiro que “…poraquele sinal, um dia aconteceriam maravilhas”(MENDES, s/d, p.6). Depois disso desceu o morroe, já próximo ao rio São Nicolau, mostrou-lhe umanascente de água, desconhecida na região e disse“…por aquela água, até milagres ali haveria de acon-tecer” (MENDES, s/d, p.6).

Depois desse acontecimento, segundo a tradi-ção oral, o vaqueiro teria voltado a seu cotidiano “nor-mal”. Tempos depois, a sua filha adoeceria e apesarde todas as rezas e remédios não mostrava sinais decura. Lembrando da nascente d’água e conseqüen-temente das advertências do beato, levou a criançapara o local escolhido por aquele. Ao banhá-la e fazê-la beber da água aconteceu uma cura imediata, fa-zendo com que o acontecimento se espalhasse pelosertão e, desde então, as romarias foram se forman-do no intuito de presenciarem os milagres aconteci-dos naquela região.

Observamos, ao fazermos uma análise sobre asversões da lenda, que essa possui algumas altera-ções em seu teor, porém o contexto simbólico que acompõe permanece, na sua grande maioria, ileso, ouseja, os personagens que constituem são sempre obeato e o vaqueiro, além dos entes naturais e sagra-dos como a cruz, a pedra bruta e o olho-d’água.

No texto “Manifestações Folclóricas” (1995, p.357-358), as autoras Verônica Ribeiro e Maria Cecí-lia Nunes narram a lenda da seguinte forma:

Conta-se que num certo dia de um ano que não se sabemais qual, chega à Fazenda Jatobá um homemdesconhecido. Sem dar qualquer explicação, chama ovaqueiro e vai com ele a um morro próximo dali. Os doispassam a construir uma capela de taipa, coberta de palha,e um cemitério[…] O desconhecido risca o chão e retiracom as mãos o pedaço de pedra cortado. […] desce até osopé do morro e mostra um pequeno olho-d’água junto auma palmeira de buriti […] a notícia do fato correu omundo. Foi o próprio Jesus Cristo que veio,pessoalmente, determinar o seu desígnio e escolheu aquelelugar, inóspito e árido, como para significar seu caráterpenitencial e místico.

As duas versões da lenda (a primeira narraçãoé feita pelo Padre David Mendes e a segunda, trans-crita por Verônica Ribeiro e Maria Cecília Nunes)

diferenciam-se em alguns pontos quanto à identida-de “divina” do homem desconhecido, mas éverificável que o conteúdo sagrado e os personagenscontinuam os mesmos.

A lenda se perde no tempo, e o documentomais antigo sobre a região foi encontrado no se-gundo Livro do Tombo da Paróquia de Valença. Adata instituída neste marca o dia 20 de junho de1888, com a nomeação do Sr. Joaquim ManoelPereira de Sousa como Procurador da Capela deSanta Cruz dos Milagres, em terras da FazendaJatobá. Outros documentos oficiais sobre o San-tuário remetem às reformas e construções da igre-ja. Em 1893 é construída uma capela em substitui-ção a uma de palha que lá havia. Porém, em 1911ocorre a reforma da capela transformando-a emigreja. Em 1929 é construída uma outra igreja aolado da antiga que foi destruída, e os trabalhos deconstrução e reforma se estenderam até meadosdos anos de 1942. Em 1969 é feita uma nova re-forma com a reconstrução do altar-mor e doSantíssimo, além da construção da torre, ficandototalmente pronta somente em 1983.

Essas informações acerca dos vários proces-sos de construção, reforma e até de demolição indi-cam, a princípio, a importância que esse movimentoreligioso passou a adquirir enquanto manifestação dafé ou da crença no sagrado, favorecendo a cada pe-ríodo um aumento significativo da quantidade de ro-meiros, influenciando na construção de uma carto-grafia que extrapolava a cada período os seus con-tornos originais.

Podemos dizer que uma das formas que influ-enciaram essa mutação cartográfica foram (e são)as manifestações festivas, expressões visíveis dosmomentos de ligação do sagrado com o profano,marcado no calendário por três grandes momentos:o primeiro refere-se aos festejos em setembro, du-rante a primeira quinzena; o segundo faz parte dacerimônia conhecida como “Encontro de Imagens”(santos trazidos das principais paróquias do Piauí),festejado no último domingo do mês de outubro; e oterceiro refere-se à comemoração da Invenção daSanta Cruz, realizada no mês de maio.

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Símbolos e Simbologias deSanta Cruz dos Milagres

Uma das principais relações perceptíveis, emrelação à lenda, é a que diz respeito ao espaço, esseé fundamental na concretização das manifestaçõesreligiosas existentes e um elo que permite manteraceso os laços que unem o sagrado e o profano. En-quanto função metafórica, o espaço realiza aconcretude dos passos dos romeiros e territorializaum corpo de simbologias, acessando múltiplas inter-pretações, pois o simbolismo:

acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação,sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos[…] o pensamento simbólico faz ‘explodir’ a realidadeimediata, mas sem diminuí-la ou desvalorizá-la, naperspectiva, o universo não é fechado, nenhum objeto éisolado em sua existencialidade, tudo permanece junto,através de um sistema precioso de correspondência eassimilações (ELIADE, 1996, p.178).

Nesse caso, perceber as relações intrínsecasao fenômeno religioso e, principalmente, ao contextode Santa Cruz dos Milagres passa em um primeiromomento pela necessidade de analisar algumassimbologias existentes nessa relação, tanto no quediz respeito às práticas religiosas, quanto àquelas re-ferentes à geografia do “sagrado”.

Uma das principais simbologias existentes tan-to na mítica-lendária, como na geografia do sagradodiz respeito à “cruz”. Ela é a principal referência parao santuário; é o marco mítico e fundador do espaço.É sobre sua sombra que se manifestam os sonhos, ospedidos e agradecimentos.

A cruz recupera a trajetória bíblica e encerrauma mediação com a figura de Cristo e, dessa for-ma, seu valor revela-se essencial para a vida dossantuários, pois é nesse espaço onde “o inalcançávele o possível, o visível e invisível se interpenetram numatrama urdida pela narrativa ficcional dos relatos oraise dos fragmentos escritos”(STEIL, 1996, p.23).

A veneração à cruz de madeira rústica resu-me a crença e a confiança em um ente superior,invocada para aliviar os mais diferentes males, tantoespirituais como materiais, externa um riquíssimorepertório simbólico, tornando-se por excelência

signo e significado que atrai e projeta experiênciasricas e significativas àqueles que se aglomeramao seu redor para pagar promessas, para rezar porgraças alcançadas ou, em uma última considera-ção para que, num toque mágico, possam usufruirdeste poder.

Essas experiências significativas do sagradolançam, segundo Mircea Eliade (1996, p. 54), o ho-mem para um tempo primordial, pois “retira o ho-mem de seu próprio tempo individual, cronológico,histórico[…] e o projeta, pelo menos simbolicamen-te, no grande Tempo, num instante paradoxal quenão pode ser medido por não ser constituído poruma duração”.

Nesse sentido, as pessoas são arrebatadas paraum outro Tempo que se mostra único pela possibili-dade de ligação com o religioso, com um ser superi-or, realizando nessa atmosfera sagrada uma ligaçãocom as representações, essas se tornam importantestanto no sentido de orientação, dentro de uma socie-dade vigente, quanto uma possibilidade de comuni-cação (MOSCOVICI, 2003, p.21).

Essas representações, ao viabilizarem aintegração do indivíduo com a idéia de espaço “supe-rior” e sagrado, cristalizam e legitimam incessante-mente as mais diversas manifestações religiosas, queritualizadas passarão a fazer parte de um universotangível e cotidiano para milhares de romeiros, queatravés de suas práticas reformulam e resistem àsdiversas tentativas de contenção e disciplinarizaçãoimpostas pelas normas católicas.

Dessa forma, as várias manifestações com re-lação à “Santa Cruz”, como a adoração, a venera-ção, os pedidos, os agradecimentos, as exposiçõesvotivas através de ex-votos, preces, olhares detidos,lágrimas…, são exteriorizações que atuam em tornode uma cultura religiosa, pois abrange:

um sistema de símbolos que atuam para estabelecerpoderosas, penetrantes e duradouras disposições emotivações nos homens através da formulação deconceitos de uma ordem de existência geral e vestindoessas concepções com tal aura de fatualidade que asdisposições e motivações parecem singularmente realistas(GEERTZ, 1989, p. 67).

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Assim, a cruz enquanto símbolo cumpre umafunção poderosa, no sentido atribuído por Geertz,pois ajuda a estabelecer uma experiência unificadoraque se revela de forma contínua e dialética, pois trans-forma simples objetos (como uma madeira) em umapotente realidade de transcendência, oportunizandouma ligação com o sagrado, fazendo circular por umcódigo, o todo, num simples fragmento.

Mas, não somente a “cruz” é indicadora dessaexperiência religiosa, a água existente na região emformato geográfico de “olho-d’água” espacializa osromeiros, pois constitui, juntamente com a cruz e aterra, eixos singulares e arquétipos de uma projeçãocelestial, projeção essa definidora da “cidade sagra-da”, pois esse protótipo extraterreno, como designaEliade (1992, p. 22-23), transforma-se em modelomágico-religioso capaz de transformar o caos emCosmo.

A cruz, ao unir céu e terra, institui sobre o espa-ço um conjunto harmonioso, transferindo aos outrosfenômenos naturais, como a água, uma experiênciareligiosa e mítica, potencializando ações que regemas práticas dos romeiros como o banho, a imersão dobatismo, pagamento de promessas, ou mesmo quan-do a ingerem confiantes na cura de doenças ou ain-da quando a levam como “amuleto” em sinal de umbatismo secreto, defendendo-os nos dias que nãoestiverem sobre a “proteção” do espaço sagrado.

O simbolismo aquático, apontado por Eliade(1993, p. 153-154), é importante pois:

a imersão na água simboliza o regresso ao pré-formal, aregeneração total, um novo nascimento, porque umaimersão equivale a uma dissolução das formas, a umareitengração no modo indiferenciado da preexistência; e aemersão das águas repete o gosto cosmogônico damanifestação formal. O contato com a água implicasempre a regeneração: por um lado a dissolução se segueum novo nascimento; por outro, porque a imersão fertilizae aumenta o potencial de vida e de criação.

Buscarmos o entendimento dessas relações re-ligiosas enquanto um conjunto de códigos simbólicosé perceber que as práticas sociais só podem ser en-tendidas enquanto manifestações culturais, pois abar-cam uma infinitesimal rede de estratégias e práticas

realizadas pelos sujeitos que, por sua vez, se tornamprodutores e receptores de cultura.

Indicarmos essas simbologias como uma redeque é compartilhada pelos vários atores sociais nãosignifica entendê-las apenas sob a conotação de en-redos presumíveis. Isso acontece exatamente pelarelação dinâmica entre espaço e sujeitos, onde essesa todo o momento formulam e reformulam seu viver“mágico-religioso”.

A opção pela interpretação do simbólico, ao in-vés de limitar as explicações, busca contribuir parauma leitura metafórica do religioso e suas redes designificados, tentando perceber como os diferentessujeitos realizam esse processo de decodificação, masque também permite transgressões e escapatórias,essas podem ser percebidas mais detidamente na-quilo que é conhecido como “profano”.

Isso significa que entender as conotações implícitasem torno das simbologias como a cruz, a terra, a águae ainda a escadaria, ao invés de empobrecer aabordagem, faz parte da consciência de que “ossistemas culturais têm que ter um grau mínimo decoerência, do contrário não os chamaríamos sistemas[…] pois divorciá-la das suas aplicações é torná-lavazia” (CHARTIER, 1989, p.13).

Entre o Santuário, onde fica a Cruz, e a cidade,onde fica a Fonte, temos a escadaria, um espaço deligação entre o mundo sagrado (representado peloSantuário) e o profano (representado pela cidade). Aescadaria é um símbolo marcante dentro do imaginá-rio humano, segundo Eliade, devido a sua existênciamítica em várias culturas, pois essa alegoria foi sendoutilizada para distinguir imageticamente o bem do mal,a felicidade da infelicidade, a santidade do profano,pois a visão de utilização da escada é sempre de baixopara cima, ou seja, do ruim para o melhor.

A escadaria verticaliza duas ações opostas,pois ao tempo em que concretiza o espaço profa-no, invertendo o sentido religioso e de penitência,permitindo a externalização do comércio onde tudose encontra, desde a venda de imagens e produtossacros até o mais simples utensílio doméstico, alémde verduras e legumes, representa também de for-ma simbólica:

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O que podemos observar, desde já, é a virtudeconsagradora da “altura”. As regiões superiores estãosaturadas de forças sagradas. Tudo quanto está maispróximo do Céu participa, com intensidade variável, datranscendência. A “altura”, o “superior”, são assimiladosao transcendente, ao sobre-humano. Toda “ascensão” éuma ruptura de nível, uma passagem para o Além, umaultrapassagem do espaço profano e da condição humana(ELIADE, 1993, 92).

Assim, ao formularmos de maneira resumidaalguns vieses de pensamento sobre o religioso emSanta Cruz dos Milagres, queremos também, no pró-ximo ponto de análise, indicar a problemática queenvolve a experiência mítico-religiosa das romariase seu sentido e função para aqueles que significamseus passos em comunhão com esse conjunto de sig-nos que envolvem o espaço religioso.

Romaria e Cidade: a construção simbólica dosespaços

A cidade de Santa Cruz dos Milagres, e a idéiade santuário que a envolve, é um excelente exemplopara compreendermos de que forma esse espaçotornou-se um atrativo para milhares de pessoas, con-firmando pressupostos de que a cidade é, acima detudo, uma força atrativa, como abordou Rolnik (1995).Dessa forma a idéia de cidade e a de sagrado atuamfeitos “um campo magnético que atrai, reúne e con-centra os homens” (ROLNIK, 1995, p.12).

Esse sentido de atração que envolve os santuá-rios parte de uma idéia que norteia esse artigo – aconvicção da cidade enquanto ente simbólico capazde expressar estratificações de sentidos, pontuadopela fragmentação e trajetórias que alteram a noçãode espaço, fazendo com que as ações diárias se tor-nem sempre indefinidamente outra.

A romaria, nesse sentido, teatraliza a cidade,porque é sob sua jurisdição que os passos elaboramoperações do caminhar, pois:

os movimentos pedestres formam um desses ‘sistemasreais cuja a existência de fato constrói a cidade’[…] Aatividade dos passantes transforma-se em pontos quetraçam uma linha totalizante e reversível no mapa[…]Essas fixações constituem procedimentos para oesquecimento. O traço que deixou para trás é substituídopela prática (BARRETO, 1989, p. 28-29).

Os passos dos romeiros inventam e reinventama cidade, criando um mapa de pontos que designamsignificados simbólicos, articulando uma geografia deerrância que multiplicada favorece:

uma experiência esfarelada em deportações inumeráveise ínfias (deslocamentos e caminhadas), compensadaspelas relações e os cruzamentos desses êxodos que seentrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob osigno do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas umnome, a cidade (CERTEAU, 1994, p.183).

Esse entrelaçamento de passos realizado sob acidade articula uma multiplicidade de “consumos,”pois os símbolos constituem possibilidades que ao sejuntarem às práticas errantes e religiosas explodemem uma contextualização rica de significados.

Sabemos que a romaria ou peregrinação é umaprática da maioria das religiões, sendo um costumeque remonta aos mais antigos tempos, introduzida noBrasil pelos portugueses. É um ato de devoção, comcaráter penitencial, em que romeiros pagam promes-sas com doações, esforços físicos e entrega de ex-votos, em cerimônias litúrgicas.

A romaria pode ser individual, em dupla ouem grupo, a pé, a cavalo, de charrete, moto, carro,caminhão ou ônibus fretado. Os romeiros viajammuitos quilômetros, com a finalidade de chegar aoslocais onde a Igreja Católica, em suas capelas oubasílicas, igrejas ou matrizes, veneram santos e sím-bolos religiosos. Depois de pagar sua promessa poruma graça alcançada, o romeiro retribuía a suagraça com velas, orações, ex-votos ou espórtulas(presente).

Essas peculiaridades referem-se também aocontexto do santuário de Santa Cruz dos Milagrese nos apontam que o lugar é, acima de tudo, umacriação religiosa e sagrada, pois “leva as pessoasa seres e poderes celestiais ou, retirando-as porum momento do lugar onde estão, fá-los por uminstante conviverem com os homens sua experiên-cia de nômades, dentro ou fora da festa”(BRANDÃO, 1989, p.40).

A romaria praticada pelo catolicismo tradicio-nal tem como ponto fundamental a sacralização de

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locais específicos da cultura religiosa. Isso aconte-ce, pois “os locais de culto são sagrados e especial-mente devotados e protegidos por padroeiros quan-do certos lugares sagrados são únicos ou particu-larmente dotados de poder religioso” (BRANDÃO,1989, p. 37).

Nesse sentido, realçamos que a romaria, ao tem-po em que faz circular uma rede simbólica com ritose celebrações, contribui para uma dinâmica cultural,pois os passos ritualizados pelos romeiros apresen-tam uma dupla função: significam e enriquecem aspráticas sociais e reatualizam a presença do sagra-do, afirmando a posição de destaque que passou adesempenhar as cidades-santuários, dentro do con-texto nacional, marcado pela acirrada divisão social,fazendo assim com que as preces, romarias e pro-messas tornem-se uma alternativa benéfica frenteaos flagelos sociais.

REFERÊNCIASBRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. 2. ed. Campi-nas, SP: Papirus, 2001.______. A partilha do tempo. In: SANCHIS, Pierre (Org.) Ca-tolicismo: cotidiano e movimentos. Rio de Janeiro:EdiçõesLoyola, 1992.______. Andando na cidade. HOLANDA, Heloisa Buarque de(Org.) Revista Cidade, Rio de Janeiro, n. 23, p. 95-114, 1994.CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: ar te de fazer.4.ed. Petrópolis: Vozes, 1994. v. 1.______. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.______. O sagrado e o profano: a essência das religiões.São Paulo: Martins Fontes, 1996.ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo:Martins Fontes, 1993.FREIXINHO, Nilton. O sertão arcaico do Nordeste do Brasil:uma releitura. Rio de Janeiro: Imago, 2003.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janei-ro: LTC, 1989.MENDES, David. Santuário de Santa Cruz dos Milagres: umpouco de sua história. [S. l.: s. n., 19--].ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 3. ed. São Paulo: Brasiliense,1994.SANTANA, R. N. Monteiro de. (Org.) Piauí: formação, desen-volvimento e perspectivas.Teresina: Halley, 1995.STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo an-tropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia.Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

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