relendo a bíblia, revendo a teologia - vol. ii

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Paulo Neto RELENDO A RELENDO A B B ÍBLIA, ÍBLIA, R R EVENDO A EVENDO A T T EOLOGIA EOLOGIA Volume II Volume II Análise crítica de alguns temas bíblicos de acordo com uma visão não dogmática.

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Análise crítica de alguns temas bíblicos de acordo com uma visão não dogmática.

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Page 1: Relendo a Bíblia, Revendo a teologia - Vol. II

Paulo Neto

RELENDO A RELENDO A BB ÍBLIA,ÍBLIA,RR EVENDO A EVENDO A TT EOLOGIAEOLOGIA

Volume IIVolume II

Análise crítica de alguns temas bíblicos deacordo com uma visão não dogmática.

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Agradecimentos

Os nossos sinceros agradecimentos a todos os membros do GrupoApologético Espírita – GAE, (www.apologiaespirita.org) pelo apoio eincentivo nas pessoas dos amigos Maurício C. Pimenta, Dr. João Frazãode Medeiros Lima e Hugo Alvarenga Novaes pelas suas valiosassugestões aos textos colocados nesse nosso livro.

À minha esposa Rosana e aos meus filhos Ana Luisa, Rebeca e JoãoPedro, que souberam compreender o tempo que lhes retiramos paradedicar a esse livro.

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Índice

Apresentação.................................................................................................................4Prefácio.........................................................................................................................6Nascido de uma virgem...................................................................................................8Jesus de Belém ou de Nazaré?.......................................................................................24A Fuga para o Egito......................................................................................................45Bodas de Caná: o primeiro sinal.....................................................................................48João Batista é mesmo Elias?..........................................................................................50Eucaristia: Jesus a instituiu?..........................................................................................67A conversa de Jesus com Nicodemos...............................................................................77O Ritual do Batismo......................................................................................................89A traição de Judas – uma história mal contada...............................................................106A questão do bom ladrão.............................................................................................114Espíritos em Prisão.....................................................................................................118A morte de Agripa.......................................................................................................121O antigo testamento foi revogado por Jesus?.................................................................124Jesus ficava calado?....................................................................................................131Ressurreição da Carne?...............................................................................................140O que efetivamente nos salva?.....................................................................................145Toda Escritura é mesmo inspirada?...............................................................................165O Consolador veio no Pentecostes?...............................................................................183Jesus pode ser considerado Deus?................................................................................192A morte de Jesus foi para a remissão de pecados?..........................................................223Conclusão Final..........................................................................................................255Referências Bibliográficas.............................................................................................256

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Apresentação

A Bíblia é um livro excepcionalmente importante para toda a Humanidade.

Foi o primeiro livro a ser impresso tipograficamente, sendo também a obra publicada nomaior número de idiomas em todo o mundo.

Para alguns, o livro representa a palavra de Deus, de capa a capa. Para outros,entretanto, seu texto deve conduzir à reflexão e apreciado como literatura alegórica, emmuitas oportunidades.

A Bíblia é chamada de “O Livro Sagrado”, pelo respeito exacerbado que, ao longo dosséculos, foi construído pela Igreja. A reforma protestante exaltou, ainda mais, o texto bíblico,buscando torná-lo inatacável.

As gerações humanas se sucederam, sem que, mesmo quanto aos trechos da Bíblianotoriamente exagerados ou controversos se colocasse qualquer observação, sob pena degranjear, o audacioso que assim procedesse, o epíteto de herege ou sacrílego.

É inegável o excepcional valor de muitos ensinamentos do livro.

É inaceitável, contudo, afirmar-se ser, todo o seu conteúdo a palavra de Deus, tantassão as menções carentes de racionalidade.

Com a evolução temporal, surgiram vários estudiosos que deliberaram esclarecer,debater e reparar as passagens bíblicas merecedoras de observação.

No Brasil, anteriormente, destacaram-se, como críticos da Bíblia, o conspícuo Dr. CarlosImbassahy, espírita convicto e militante e o Dr. Mário Cavalcanti de Melo, autor do livro “DaBíblia aos Nossos Dias”, cujo subtítulo é: “Suas lendas, seus erros e contradições”, em obraprefaciada pelo Professor Deolindo Amorim.

Hodiernamente, irrompe outro grande estudioso da Bíblia, em seus múltiplos aspectos,o estimado confrade Paulo da Silva Neto Sobrinho, com os mesmos objetivos colimados poraqueles precursores ilustres, qual seja, o de retirar as “escamas” que perduram nos olhos detantos, incrustados num dogmatismo irremovível.

O escopo de Paulo Neto, nesta obra, confunde-se integralmente ao daqueles baluartes,o que se pode depreender da transcrição que, com a devida vênia faremos, de excerto doprefácio do Professor Deolindo Amorim à obra de Mário Cavalcanti de Melo:

“A preocupação do Autor, entretanto, é de quem, não estando conformado com certosensinos bíblicos até agora aceitos como definitivos e verdadeiros, quer rasgar o véu que aindaencobre muitas passagens da Bíblia e, assim, afastar dúvidas ou equívocos sensivelmenteprejudiciais à exata compreensão de muitos pontos da História.”

A maior virtude desta nova obra analisadora e revisora dos textos bíblicos é o enfoquede novos aspectos, sob uma ótica, raciocínio e lógica diferentes. Entretanto, acontece comtodos aqueles que buscam estudar a Bíblia com base no realismo, serem consideradosheréticos e inimigos da fé.

Anteriormente, Paulo Neto lançou outra apreciada obra sobre o mesmo tema: “A Bíbliaà Moda da Casa”.

Evidenciando o fato de que a análise do texto bíblico prossegue suscitando muitointeresse, surgiu esta nova obra, com nova formatação, em que os temas são estudados emtópicos separados.

As incongruências, insubsistências e diatribes são exaustivamente estudadas, e o Autordemonstra excepcional capacidade ao demonstrá-las, e mais, de extrair conclusões eivadas deracionalidade das suas colocações.

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Assim como aconteceu com a sua obra antecedente, “A Bíblia à Moda da Casa”, estenovo trabalho do Autor é um libelo contra o fanatismo e o dogmatismo.

Tudo porque o enfoque dado ao texto bíblico é calcado num raciocínio embasado naDoutrina dos Espíritos, de Allan Kardec.

O Espiritismo trouxe novos conhecimentos e novas luzes, em campos do saber humanoaté então inamovíveis, seja pelo tradicionalismo, seja pela oclusão mental. “Mais vale repelirdez verdades do que admitir uma só mentira”, lecionou o Codificador.

Paulo Neto embasa suas reflexões, observações e conclusões no conhecimento espírita,que vem amealhando ao longo de seus estudos, em estrita observância aos preceitosdoutrinários.

Todo o seu trabalho é, mui certamente, oriundo de exaustivas pesquisas e de umabusca incessante de fontes confiáveis, pois a abordagem e a temária mexe e incomoda aosexegetas de plantão. O embasamento é necessário e, muitas vezes, imprescindível, paraabafar reações esdrúxulas dos que se sentem atingidos com a exposição realista que éapresentada.

Não é possível, entretanto, que se continue aceitando como verdade intocável einamovível certas colocações e certas passagens bíblicas, à vista de equívocos eimpossibilidades que saltam à vista de quantos as compulsem.

Esta não é uma obra de leitura, mas sim de estudo. Apresentada em tópicos , cada umdeles vai suscitar reflexão por parte do leitor. Alguns dos raciocínios e explicaçõesapresentados serão apreciados com surpresa, levando o leitor a uma pergunta inevitável:“como nunca pensei nisso antes?”

Honra ao raciocínio, à crítica e à capacidade intelectiva de Paulo Neto, lançando estanova obra sobre assunto tão delicado e tão profundo quanto o conteúdo da Bíblia.

Usufruamos desse manancial de informações.

Belo Horizonte, em 15/04/2005.

Gil Restani de Andrade (1941-2006)

N.A.: Infelizmente o nosso companheiro e mestre Gil Restani desencarnou em 29/11/2006. Aele nossa eterna gratidão.

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Prefácio

Mantivemos, aqui nesse volume II, a apresentação do nosso companheiro Gil Restani deAndrade, por dois motivos. Um como uma singela homenagem póstuma a quem soube viverplenamente os ensinamentos Espíritas, pois era, como se diz, um Espírita de primeira linha. Ooutro, gostaríamos de justificar porque, quando ele fez o prefácio, o texto do livro era único,mas, por necessidade, acabou sendo publicado em dois volumes.

Continuando com o nosso estudo da Bíblia, agora especificamente, aos textos do NovoTestamento, vamos rever as explicações oferecidas pela teologia dogmática, para sair dasinterpretações de conveniência, em busca daquilo que realmente deve ser entendido os textos.

Como fizemos no Volume I, trabalhamos como se não tivéssemos nenhuma informaçãosobre os assuntos enfocados para que nada pudesse nos influenciar, já que os dogmaspoderiam nos manter estacionados nas mesmas interpretações interesseiras, onde, para nós,se encontram os equívocos teológicos, que não causam preocupação a quase ninguém.

Graças a Deus, estamos sentido uma crescente busca dos fatos acontecidos, isso, comonão poderia deixar de ser, também acontece com os assuntos bíblicos. Disso vislumbramos umhorizonte menos nebuloso para a geração futura, que não mais aceitará imposiçõesdogmáticas, mas quererá, e com razão, saber das coisas usando para isso a lógica e a razão,longe do creio porque está escrito.

Em não mudou muito em relação ao Volume I, ou seja, o nosso raciocínio sempre nosguiou para resultados completamente diferentes dos dogmas e interpretações que estávamosacostumados a acreditar. Entretanto, sempre nos apoiando em pesquisas formamos as basesconsistentes e sólidas que nos levaram aos mesmos resultados, pelos quais já vimos noprimeiro volume. A razão e lógica foram as bases que buscamos para sustentá-los.

Continuamos ainda com certeza de que muitos dos nossos estudos irão chocar algumaspessoas, especialmente aos fundamentalistas que não arredam o pé daquilo que aprenderam.Mas a busca da verdade que fomos, nesse tempo todo, pautando os nossos estudos, não nospermitiu preocupar a qual resultado final poderíamos chegar.

O choque mais extraordinário que tivemos foi quando, no estudo das citadas profecias arespeito de Jesus, não encontramos uma só que pudéssemos nos apegar como uma verdadeiraprofecia, explícita e direta, a seu respeito. Acreditamos que isso também irá chocar a muitos,entretanto, achamos que a verdade deverá se sobrepor, até mesmo porque Jesus nosrecomendou: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Agora, mais do que nunca,entendemos o verdadeiro sentido dessa frase. Falava o Mestre justamente das adulterações,das interpolações, das interpretações de conveniência que fariam de seus ensinamentos,buscando, principalmente, subjugar os fiéis, os quais se tornam, em suas mãos, nada maisque simples joguetes do interesse do poder social ou financeiro, base fundamental de seusprincípios, que nada tem, é claro, a ver com a verdade que liberta.

E reafirmamos que esse nosso estudo poderá, se bem divulgado, causardescontentamento em determinada liderança religiosa, essa a qual mais evidência o interessedo poder e do dinheiro, da qual já falamos. Mas encontrará repercussão favorável naqueles emque, como nós, o mais importante é a verdade legítima, não a fabricada por interesses comoessas que vigoram entre quase todas as denominações cristãs.

Queremos ver outros autores, os mais gabaritados que nós, levando adiante essa ideiaque iniciamos com esse livro Relendo a Bíblia, Revendo a Teologia, de forma a forçar umarevisão teológica, a qual achamos urgente e necessária de se fazer.

Da mesma forma que no Volume I, os textos serão colocados, quando for possível, naordem em que os assuntos aparecem no AT, quando isso não possível, serão colocados naordem cronológica em que foram escritos.

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Nascido de uma virgem

Era costume muito comum de nossos antepassados colocar seus heróis como provindosde nascimentos sobrenaturais, cujas mães eram invariavelmente jovens virgens; ocorrênciaque também podemos verificar na mitologia de muitos dos povos da antiguidade, falando dedeuses que, em contato com jovens virgens, geravam semideuses, os quais teriam, ao mesmotempo, a condição de ser humano e divino.

Mulheres virgens se engravidando de deuses, somente se vê isso na mitologia antiga,onde é coisa comum, conforme o que se poderá ver em vários autores, como, por exemplo,nos vários que citaremos a seguir.

Pepe Rodríguez (1953- ), no capítulo III, item “Nascer de virgem fecundada por Deusfoi um mito pagão bastante difundido em todo o mundo antigo anterior a Jesus”, do livroMentiras fundamentais da Igreja Católica, afirma:

Lendas pagãs deste género foram obviamente integradas na Bíblia, não sónos referidos relatos dos nascimento de Sansão, de Samuel ou de João Batista,como, muito mais tarde, no relato do nascimento de Jesus. Regra geral, desdetempos remotos, quando o personagem anunciado era de primeiraordem, a mãe era sempre fecundada por Deus, através de umprocedimento milagroso que, fosse ele qual fosse, confirmavaclaramente o mito da concepção virginal. Esta confirmação eraparticularmente patente na concepção dos deuses-Sol, uma categoria a que,como veremos, pertence a figura de Jesus Cristo. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 100-101) (grifo nosso).

E, um pouco mais à frente, completa:

Todos os grandes personagens, tenham sido eles reis ou sábios – como, porexemplo, os gregos Pitágoras (c. 570-490 a.C.) ou Platão (c 417-347 a.C.) –, ouse tenham tornado o centro de alguma religião e acabado por ser adoradoscomo “filhos de Deus” (Buda, Krishna, Confúcio e Lao Tsé) foram mitificadospela posteridade como filhos de uma virgem. Jesus, surgido muito depois, masdestinado a desempenhar um papel semelhante ao que os seus antecessoreshaviam desempenhado, não podia ter um estatuto inferior ao deles. Dessemodo, o budismo, o confucionismo, o tauismo e o cristianismo, ficaramindelevelmente marcados pelo facto de terem sido fundados por um“filho do Céu”, encarnado através do acesso directo e sobrenatural deDeus ao ventre de uma virgem especialmente escolhida e apropriada.(RODRÍGUEZ, 2007, p. 103) (grifo nosso).

Acrescentamos Hans Küng (1928- ), que também nos traz informações interessantes:

[…] Na mitologia greco-helénica os deuses também contraem“matrimónios sagrados” com filhas de humanos, dos quais nascemfilhos de deuses tais como Perseu e Herácles ou também figuras históricascomo Homero, Platão, Alexandre, Augusto. É impossível deixar de reparar noseguinte: a concepção virginal em si não é algo exclusivamente cristão!A ideia de concepção virginal, é, pois, segundo a exegese actual, utilizada com oobjectivo de apresentar uma “justificação” (grego, “aitía”) para a existência dofilho de Deus. […] (KÜNG, 1997, p. 56) (grifo nosso).

Edward Carpenter (1844-1929) traz curiosas observações, quanto ao tema; vejamos:

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Mas quase mais notável que a crença mundial nos salvadores é a lendaigualmente difundida de que eles nasceram de Mães-Virgens. Não há quasenenhum deus - como já tivemos a oportunidade de ver - que seja adoradocomo um benfeitor da humanidade nos quatro continentes, Europa,Ásia, África e América - que não tenha nascido de uma Virgem, ou pelomenos de uma mãe que atribuísse a concepção não a um pai humano,mas sim ao céu. E isso parece, à primeira vista, o mais surpreendente, porqueacreditar em tal possibilidade é muito absurdo para nossa mente moderna.Tanto que, enquanto pareceria natural que tal lenda tivesse se espalhadoespontaneamente em alguma parte incivilizada do mundo, achamos difícilentender como, nesse caso, teria se espalhado tão rapidamente por todas aspartes, ou - se não se espalhou - como podemos explicar seu surgimentoespontâneo em todas essas regiões. (CARPENTER, 2008, p. 108) (grifo nosso).

Carpenter lista também vinte e uma semelhanças da história de Jesus com históriasantigas de deuses, o que não deixa de ser algo surpreendente; vejamos o que ele diz:

A história de Jesus, como vemos, tem muita semelhança com ashistórias dos antigos deuses Sol e com o percurso atual do Sol nos céus -tantas coincidências, que não podem ser atribuídas à mera coincidência ou atémesmo a blasfêmias do Demônio! Vamos enumerar algumas delas. Há (1) onascimento da Virgem; (2) o nascimento na manjedoura (caverna ou câmerasubterrânea); e (3) em 25 de dezembro (logo depois do Solstício de Inverno).Há (4) a Estrela do Leste (Sírio) e (5) a chegada dos magos (os "Três Reis"); há(6) o Massacre dos Inocentes, e o vôo para um país distante (dito também deKrishna e outros deuses Sol). Há os festivais da Igreja de (7) Candelária (2 defevereiro), com procissões das velas para simbolizar a luz crescente; há (8) aQuaresma, ou a chegada da primavera; há o (9) dia de Páscoa (normalmenteem 25 de março) para celebrar a travessia do Equador pelo Sol; e (10)simultaneamente a explosão de luzes no Sepulcro Sagrado em Jerusalém. Há(11) a Crucificação e a Morte do carneiro-deus, na sexta-feira santa, três diasantes da Páscoa; há (12) a prisão feita com pregos em uma árvore, (13) otúmulo vazio, (14) a Ressurreição (nos casos de Osíris. Attis e outros); há (15)os doze discípulos (os signos do Zodíaco); e (16) a traição de um dos doze.Depois, há (17) o Dia do Meio do Verão, o dia 24 de junho, dedicado aonascimento de João Batista, e correspondente ao dia de Natal; há as festas da(18) Assunção da Virgem (15 de agosto) e do (19) nascimento da Virgem (8 desetembro), correspondentes ao movimento do Sol por Virgem; há o conflito deCristo e seus discípulos com os asterismos outonais, (20) a Serpente e oEscorpião; e finalmente há um fato curioso de que a Igreja (21) dedica o dia doSolstício de Inverno (quando qualquer um pode, naturalmente, duvidar dorenascimento do Sol) a São Tomé. que duvidava que a Ressurreição fosseverdadeira! Algumas coincidências, mas não todas, estão em questão. Mas elassão suficientes, acredito eu, para provar - mesmo permitindo possíveis margensde erro - a verdade de nossa contenção geral. Entrar no paralelismo doscaminhos de Krishna, o deus Sol indiano, e Jesus demoraria muito tempo;porque, de fato, a semelhança é muito grande." Eu proponho, no entanto, aofinal deste capítulo, que nos aprofundemos um pouco na festa cristã daEucaristia, em parte por causa de sua relação com a derivação de rituaisastronômicos e celebrações da Natureza já referidas, e em parte por causa daluz que a festa geralmente, seja ela cristã ou pagã, joga sobre as origens daMágica Religiosa - um assunto que devo abordar no próximo capítulo.(CARPENTER, 2008, p. 35-36) (grifo nosso).

E, terminado essas citações, trazermos H. Spencer Lewis (1883-1939):

Posso acrescentar que nossos próprios registros de tradições antigas eescrituras sagradas contêm muitas referências a movimentos religiosos daantiguidade, cujo grande líder era considerado “O Filho de Deus”.

A Índia teve um grande número de Avatares ou Mensageiros Divinos,Encarnados por Concepção Divina, tendo dois deles levado o nome de“Chrishna”, ou “Chrishna o Salvador”. Consta que Chrishna nasceu de uma

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virgem casta chamada Devaki que, por sua pureza, fora escolhida para setornar a mãe de Deus. Neste exemplo, encontramos a antiga história de umavirgem dando à luz um mensageiro de Deus divinamente concebido.

Buda foi considerado por todos os seus seguidores como gerado por Deus enascido de uma virgem chamada Maya ou Maria. Nas antigas histórias sobre onascimento do Buda, tais como são compreendidas por todos os orientais ecomo são encontradas em seus escritos sagrados muito anteriores à Era Cristã,vemos como o poder Divino, chamado o Espírito Santo, desceu sobre a virgemMaya. Na antiga versão chinesa dessa história, o Espírito Santo é chamadoShing-Shin.

Os siameses tinham igualmente um deus e salvador nascido de umavirgem e que eles chamaram Codom. Nesta velha história, a bela e jovemvirgem fora informada com antecedência de que se tornaria mãe de um grandemensageiro de Deus e, um dia, enquanto fazia seu período usual de meditação,concebeu através de raios de sol de natureza Divina. O menino nasceu e cresceude maneira singular e notável, tornou-se um protegido da sabedoria e fezmilagres.

Quando os primeiros europeus visitaram o Cabo Comorim, na extremidadesul da península do Industão, surpreenderam-se ao encontrar os naturais dolugar, que nunca haviam tido contato com as raças brancas, cultuando umSenhor e Salvador que fora divinamente concebido e nascera de umavirgem.

E quando os primeiros missionários jesuítas visitaram a China, escreveramem seus relatórios que haviam ficado consternados por encontrarem na religiãopagã daquela terra a história de um mestre redentor que nascera de umavirgem por concepção divina. Ao que consta, esse deus havia nascido 3468anos a.C. Lao-Tse, o famoso deus chinês, também nascera de uma virgem, depele negra, sendo descrita como a bela e maravilhosa como o jaspe.

No Egito, bem antes do advento do cristianismo e muito antes do nascimentodos autores da Bíblia ou de qualquer doutrina concebida como cristã, o povoegípcio já tivera vários mensageiros de Deus nascidos de virgens porConcepção Divina. Hórus, segundo o sabiam todos os antigos egípcios, havianascido da virgem Ísis, sendo sua Concepção e seu nascimento um dos trêsgrandes mistérios ou doutrinas místicas da religião egípcia. Para eles, todos osincidentes ligados à Concepção e ao nascimento de Hórus erampintados, esculpidos, adorados e cultuados como o são os incidentes daConcepção e do nascimento de Jesus pelos cristãos de hoje. Outro deusegípcio, Ra, nascera de uma virgem. Examinei uma das paredes de um antigotemplo na margem do Nilo, onde há um belo quadro esculpido representando odeus Tot – o mensageiro de Deus – dizendo à jovem Rainha Mautmesque daria à luz um Divino Filho de Deus, que seria o rei e Redentor deseu povo.

Ao nos voltarmos para a Pérsia descobrimos que Zoroastro foi o primeiro dosredentores do mundo a ser aceito como nascido em plena inocência, pelaconcepção de uma virgem. Antigos entalhes e pinturas deste grande mensageiromostram-no cercado por uma aura de luz que inundava o humilde local de seunascimento. Ciro, rei da Pérsia, também era tido como nascido de origemdivina, e nos registros de seu tempo ele é chamado de Cristo ou Filhoungido de Deus e considerado mensageiro de Deus. (LEWIS, 2001, p. 74-76) (grifo nosso).

Com o dito por esses escritores confirma-se, portanto, o que falamos a respeito de sercomum atribuir-se a certos personagens heroicos o nascimento de uma virgem.

Entendemos como um fato perfeitamente aceitável, em virtude desses fatores culturais,querer-se também atribuir a Jesus essa condição de nascimento sobrenatural e, como nãopoderia deixar de ser, nascido de uma virgem. O que não é natural é procurar manter, a todocusto, essa visão ingênua, ainda nos dias de hoje.

Por outro lado, os teólogos sempre quiseram colocar o sexo como coisa pecaminosa,motivo pelo qual Jesus não poderia ter vindo de “forma impura”; não é mesmo? Justifica-se,de certa maneira, o celibato sacerdotal, ou seja, os “santos” padres não poderiam praticarcoisa considerada impura; assim não poderiam se casar. Outro fator, que provavelmente veioem apoio ao celibato, foi a questão da herança dos padres, que, se casados, não seria

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incorporada ao patrimônio da instituição religiosa da qual faziam parte, já que teria que ficarcom os familiares. Bom; mas isso é uma outra questão; assim, voltemos ao assunto central dotexto.

Sempre dissemos que, por ser Jesus o primogênito, evidentemente, e pelo contextocultural da época, já que viviam numa sociedade extremamente machista, Maria, ao se casarcom José, era indubitavelmente virgem; assim, nesse sentido, podemos simbolicamenteconsiderar Jesus como nascido de uma virgem.

Outra coisa que sempre falávamos é quanto à questão do sexo ser impuro. Nãoadmitimos essa hipótese de forma alguma, já que foi Deus que fez o ser humano em duaspolaridades; a masculina e a feminina, com órgãos sexuais diferentes. Pensamos que, se osexo for realmente “pecado”, devemos convir que Deus não foi muito justo conosco, pois, alémde o conceber de forma a haver “atração fatal” entre os dois sexos – homem e mulher –, aindapor cima coloca prazer no ato sexual; mas de “espada em punho” diz: Se fizer é pecado ou écoisa impura. Absurdo teológico, que encontra campo fértil somente em cabeça de fanáticos,não na de pessoas dadas a utilizar a inteligência, de que Deus dotou a raça humana.

Vejamos os argumentos de Carlos Torres Pastorino (1910-1980):

A IMPOSIÇÃO DIVINA do uso do sexo para manutenção e multiplicação deSua criação, nos diversos estágios evolutivos (plantas, animais e homens) vemprovar que o sexo é SANTO. Não podemos admitir que Deus, Sábio e Bom,tivesse imposto obrigatoriamente as Suas criaturas uma condição que, aocumpri-la, as tornasse imperfeitas. Se no ato sexual houvesse uma leveimperfeição sequer, ou um sinal de atraso espiritual, esse Deus seriamonstruosamente mau, pois teria obrigado Sua criação a ser imperfeita eatrasada, a fim de manter e multiplicar Suas obras. Portanto, compreendendo oato sexual em si e a maternidade como perfeições altamenteespiritualizantes (porque são o cumprimento de uma Lei Divina), achamos queMaria se engrandece perante Deus com a maternidade normal, porque assim dádemonstração de ser fiel e obediente cumpridora da Vontade Divina.Compreendendo bem esse problema, o jesuíta padre Teilhard de Chardin atribuià sexualidade um sentido cósmico e afirma que o mundo não se diviniza porsupressões, mas por sublimação, e ainda: que o homem e a mulher tanto maisse unirão a Deus, quanto mais se amarem, não vendo apenas o objetivoadmirável mas transitório da reprodução, mas o de dar plena expansão àquantidade do amor, liberado do dever da reprodução. E diz claramente, semsubterfúgios: a mulher é, para o homem, o termo susceptível de impulsionaresse progresso para a frente. Pela mulher, e só pela mulher, pode o homemescapar ao isolamento, no qual sua própria perfeição se arriscaria prendê-lo.(L'énergie humaine, édition Seujl, pág. 93 a 96). Realmente a união sexualdentro do amor é a imagem mais fiel da união do homem com a Divindade, epor isso os místicos denominam essa unificação do homem com Deus deEsponsalício.

Na profecia de Isaías, o menino seria chamado Himmanu-El, quesignifica Deus conosco, exprimindo a grande verdade de que Deus ESTAREALMENTE DENTRO DE NÓS, está CONOSCO. (PASTORINO, vol. 1, 1964a, p.55).

Se sexo for mesmo pecado, então Deus, de antemão, condenou Adão e Eva a pecar, epor consequência toda a humanidade, quando disse ao suposto primeiro casal: “Crescei-vos emultiplicai-vos!” (Gn 1,22.28).

Se a mulher só “... será salva pela sua maternidade, desde que permaneça commodéstia na fé, no amor e na santidade” (1Tm 2,15), então ficamos num beco sem saída,pois, não havia como ser mãe sem fazer sexo (considerando a época de Paulo).

Vejamos, na narrativa de Mateus, o texto no qual tomam base para afirmar sobre avirgindade de Maria; ampliamo-lo um pouco mais, pois temos uma importante consideração afazer.

Mt 1,18-25:”A origem de Jesus, o Messias, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometidaem casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do

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Espírito Santo. José, seu marido, era justo. Não queria denunciar Maria, e pensavaem deixá-la, sem ninguém saber. Enquanto José pensava nisso, o Anjo do Senhor lheapareceu em sonho, e disse: 'José, filho de Davi, não tenha medo de receber Mariacomo esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho,e você lhe dará o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados'.Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta:'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome deEmanuel, que quer dizer: Deus está conosco'. Quando acordou, José fez conforme oAnjo do Senhor havia mandado: levou Maria para casa, e, sem ter relações com ela,Maria deu à luz um filho. E José deu a ele o nome de Jesus”.

Veja bem, caro leitor, que no texto bíblico está se afirmando que José, o pai, é filho deDavi, para estabelecer a ligação da criança como descendente do rei Davi. Ótimo isso, pois issoimplica dizer que José é pai biológico de Jesus, porquanto, somente dessa maneira ele poderiaser descendente de Davi, a não ser que argumentem que o “Espírito Santo”, que creem terfecundado Maria, seja também filho de Davi. Mas isso seria o máximo em apelação, não émesmo?

Lucas afirma que Maria estava “prometida em casamento a um homem chamado José,que era descendente de Davi” (Lc 1,27). E, para não pairar dúvidas, quanto a Jesus ternascido biologicamente de José, trazemos uma fala de Paulo aos romanos, quando, sereferindo ao Mestre, disse: “... nascido da estirpe de Davi segundo a carne” (Rm 1,3).Portanto, admitir que Jesus não seja filho biológico de José está indo contrário ao que se deduzdos textos bíblicos; isso sem mencionarmos que não fere a lógica.

Maria Helena de Oliveira Tricca (1940-1997) em Apócrifos I – Os proscritos da Bíblia,cita a obra “A história de José o carpinteiro”, na qual lemos: “Assim José o Carpinteiro, pai deCristo segundo a carne, abandonou esta vida mortal e viveu cento e doze anos”. […](TRICCA, 1995a, p. 197) (grifo nosso), o que corrobora o dito por Paulo. Isso nos induz aconcluir que àquela época não tinham Jesus como fruto de fecundação do Espírito Santo, masum homem, nascido de homem.

Por outro lado, considerando que para os judeus “Ruah é palavra hebraica, feminina,que significa Espírito, […] (TRICCA, 1995b, p. 176), é pouco provável que a utilizassem parasustentar que Maria havia se engravidado de uma mulher. Pode-se ver que em o Evangelho deFelipe, consta exatamente isso:

17. Alguns dizem que Maria concebeu por obra do Espírito Santo. Esses seequivocam, não sabem o que dizem. Quando alguma vez uma mulher foiconcebida de uma mulher? Maria é a virgem a quem Potência alguma jamaismanchou. Ela é uma grande anátema para os judeus que são os apóstolos e osapostólicos. Esta Virgem que nenhuma Potência violou, [… enquanto que] asPotências se contaminaram. O Senhor não [teria] dito: “Pai meu que estás nocéu”, se não tivesse outro pai; do contrário haveria dito simplesmente: “[Paimeu]”. (TRICCA, 1995b, p. 182) (colchetes do original)

Ao que parece, alguns tradutores prenderem-se aos dogmas instituídos; como exemplo,citamos o Pe. Matos Soares, de quem trazemos essa explicação para Mt, 1,16:

José, esposo de Maria. O Evangelista, descrevendo a genealogia de São José,conforma-se com o costume hebraico de só atender aos homens nastábuas genealógicas. Todavia, dá-nos, ao mesmo tempo, a genealogia deJesus, visto que Maria era também descendente de Davi. – Da qual nasceuJesus. O Evangelista não diz que José gerou Jesus, pois o Salvador foi concebidono seio de Maria, por obra do Espírito Santo. São José não foi pai natural deJesus, mas somente pai legal, como verdadeiro e legítimo esposo de Maria.(Bíblia Paulinas, 1957, p. 1178) (grifo nosso).

Nosso impasse está no seguinte: Ou Jesus é filho biológico de José, o que fazia dele oMessias esperado, ou é filho do “Espírito Santo” e não é o Messias.

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Era de se esperar que a dogmática, querendo sair do impasse, tentasse justificar-sedizendo que Maria também era filha de Davi; entretanto, “a emenda saiu pior que o soneto”(Bocage1), já que os judeus tinham a crença de que somente o homem é que dava adescendência; é por isso que todas as genealogias na Bíblia são traçadas em relação ao pai enão à mãe da pessoa.

Voltemos ao passo de Mateus, especificando os versículos que falam de uma virgem e asuposta profecia dizendo que Jesus, como Messias e filho de Davi, veio cumprir:

Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito peloprofeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamadoEmanuel, que quer dizer: Deus está conosco'”.

Profecia: Is 7,14: “Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem concebeu e daráà luz um filho, e o chamará pelo nome de Emanuel”.

Qualquer estudioso bíblico, não compromissado com alguma teologia, verá que essepasso de Isaías nada tem a ver com Jesus. Devemos, para melhor compreendê-lo, dizer que épreciso ler os versículos anteriores, iniciando pelo 10, porquanto são sempre subtraídosquando tentam apontar essa profecia:

Is 7,10-13: “Javé falou de novo a Acaz, dizendo: 'Pede para você um sinal a Javéseu Deus, nas profundezas da mansão dos mortos ou na sublimidade das alturas'. Acazrespondeu: 'Não vou pedir! Não vou tentar a Javé!' Disse-lhe Javé: 'Escute, herdeiro deDavi, será que não basta a vocês cansarem a paciência dos homens? Precisam cansartambém a paciência do próprio Deus?'”

Estritamente dentro do contexto o sinal que Deus promete é ao rei Acaz, cuja mulher,uma jovem, estava grávida, fato que podemos confirmar:

O reino do Norte (Efraim), cujo rei era Faceia, se aliou a Rason, rei de Aram,numa tentativa de se libertar do perigo assírio. Como o reino do Sul (Judá) nãoparticipou da coalizão entre o reino do Norte e Aram, estes dois temeram queJudá se tornasse aliado da Assíria; resolveram então atacar o reino do Sul, paradestronar o rei Acaz e colocar no seu lugar o filho de Tabeel, rei de Tiro. Acazteme o cerco e verifica a reserva de água da cidade. Isaías vai ao seu encontro eo tranquiliza, mostrando que não haverá perigo, pois continua válida a promessade que a dinastia de Davi será perene, desde que se coloque total confiança emJavé. O sinal prometido a Acaz é o seu próprio filho, do qual a rainha (ajovem) está grávida. Esse menino que está para nascer é o sinal de que Deuspermanece no meio do seu povo (Emanuel = Deus conosco). Bíblia SagradaPastoral, p. 954-955) (grifo nosso).

Então, temos que, pelo contexto bíblico e confirmado por essa explicação, fica fácilperceber que Deus, na verdade, promete um sinal ao rei Acaz e esse sinal é o filho do rei queestava por nascer. Dar uma explicação fora disso é tentar distorcer a interpretação realista dotexto. Ademais, esse sinal é um fato presente e não algo para um futuro longínquo, ou seja,uma previsão; portanto, é agir fora do contexto, quando querem transformá-lo numa profeciaa respeito de Jesus. Além do mais, o nome Jesus significa “Deus é salvação”; portanto,incontestavelmente, distinto de Emanuel que quer dizer “Deus está conosco”, exatamente onome mencionado ao rei Acaz, o que a dogmática, cega pelo fanatismo, não consegueenxergar e, ao que parece, nem pretende.

Ampliando a explicação do verbete Emanuel, transcrevemos:

É o nome dado por Isaías a uma futura criança cujo nascimento será,para o rei Acaz, o “sinal” da assistência divina (Is 7,14-17). Ainterpretação deste oráculo deve estar ligada ao significado do nome e aoalcance que terá na conjuntura daquele momento. O reino de Judá é ameaçadopelos sírios e efraimitas aliados, que querem acertar contas com a dinastia

1 http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=140926, acesso em12/05/2012, às 09:55hs.

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reinante, a mesma dinastia que se beneficia das promessas feitas a Davi. Emvez de recorrer a essas promessas, Acaz apela para a Assíria. Isaías condenaeste modo de agir e proclama: Deus está presente; ele está “conosco”.

Qual será a criança cujo nascimento será portador de uma mensagemcomo esta? Como é ao rei, contemporâneo de Isaías, que o sinal será dado, onascimento anunciado deve ocorrer proximamente. Será Ezequias –afirma-se muitas vezes, e com boas razões. Mas esta criança é descrita numalinguagem poético-mítica, concretamente irrealizável. O oráculo abre portantouma perspectiva que vai além do rei em questão. Graças a este oráculo, oscrentes, insatisfeitos com os reis históricos, esperarão por uma personagem quefinalmente satisfará a esperança deles. Mateus e os cristãos posteriores a elereconhecem em Jesus aquele que realiza plenamente o anúncio de Isaías (Mt1,23). (Dicionário Bíblico Universal, p. 226) (grifo nosso).

Confirma-se, portanto, que a suposta profecia não se refere mesmo a Jesus, conformeficou bem claro na explicação acima.

Passar por cima do contexto histórico, ignorando as narrativas dos fatos, para aplicar aoque desejam, não é muito saudável, pois, a cada dia que passa, a crítica literária vairevelando.

Não bastasse o que já apresentamos, há ainda um outro problema: é quanto aosignificado da palavra hebraica almah usada em Isaías. Para os tradutores da Bíblia deJerusalém “O termo hebraico “almah” designa, quer a donzela, quer uma jovem casadarecentemente, sem explicitar mais” (Bíblia de Jerusalém, p. 1265). Quanto a essa questão,vejamos estas outras explicações:

O fato de os cristãos tomarem como própria a tradução da LXX e de ausarem nas controvérsias com os judeus, conduziu a uma progressiva rejeiçãodesta versão pelos judeus que acabaram substituindo-a por novas traduçõesmais fiéis ao texto rabínico. Um exemplo típico de divergência entre o textohebraico e o grego, citado em todas as controvérsias entre judeus e cristãos éIs 7,14, onde a LXX traduz o termo hebraico 'almâ, "jovem (casada ourecém-casada)", por parthénos, "virgem" em vez do mais apropriadoneânis. Os judeus rejeitaram esta tradução da LXX, pois os cristãos viam nelauma profecia do nascimento virginal de Cristo (d. p. 621). (BARRERA, 1999, p.369) (grifo nosso).

Por outro lado, um erro de leitura pode originar um novo texto consideradoinspirado, embora isto não signifique que a doutrina exposta derivenecessariamente do erro textual cometido. O caso mais chamativo é a citaçãoem Mt 1,22 de, ls 7,14: "a virgem conceberá um filho". Não se trata, neste caso,de erro do copista, nem de tradução errada. O que se produziu foi umdeslocamento de significado. Os tradutores gregos entendiamperfeitamente o sentido da palavra hebraica 'almâ, traduzida porparthénos no sentido de "jovem" e não de "virgem". Os cristãos, quecriam no nascimento misterioso de Cristo, interpretaram o texto de Is comoprofecia do nascimento "virginal" do Messias, atribuindo ao termoparthénos o significado de "virgem". (BARRERA, 1999, p. 397-398) (grifonosso).

Sustentar, como o faz a Igreja Católica, que almah de Isaías foi umavirgem implica persistir conscientemente num engano por motivosdoutrinais interesseiros, sobretudo quando se sabe que as outras almahbíblicas foram corretamente traduzidas por moçoilas, como pode-se ver naalmah de Provérbios (36) e nas alamoth do Cântico dos Cânticos (37) que,obviamente, segundo se deduz pelo contexto, perderam a sua virgindade,respectivamente, na sequência do 'rastro do homem” e da sua função no harémreal.

Todas as versões independentes – ou, simplesmente, não católicas –da Bíblia traduziram a almah de Isaías por moçoila (ou por donzela)(38), o que não só é lógico, como coerente com a sequência do texto deIsaías. Aliás, este, no início do texto citado, concentra-se apenas no nome queseria dado à criança, ignorando totalmente a mãe, o que seria absurdo se setratasse de uma virgem, que, permanecendo tal, estivesse prestes a dar à luz.[…]

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_______(36) “Três coisas me espantam e há uma quarta que não alcanço: o rasto da águia nosares, o rasto da serpente sobre a rocha, o rastro do navio no meio do mar e o rastro dohomem na moçoila” (Prov 30,18-19).(37) “Setenta são as rainhas, oitenta as concubinas, e inúmeras as moçoilas” (Cant 6,8).(38) O versículo 14, tal como aparece traduzido na Bíblia católica de Nácar-Colunga, “Eisque a virgem grávida dá à luz um filho e lhe põe o nome de Emmanuel”, não é umatradução correcta do original, já que neste o que se diz é exactamente oseguinte: “Vês esta moçoila engravidada que vai dar à luz um filho. Seu filhochamar-se-á Emmanuel...” que tem um sentido descritivo absolutamente diferente, poiscoloca o facto no presente, evitando, desse modo, qualquer especulaçãoprofética.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 131) (grifo nosso).

A referência à profecia de Isaías é também estropiada. A passagemcitada encontra-se efetivamente no livro desse profeta (VII, 14), mas, nocontexto, ela não anuncia a vinda do Messias. A palavra hebraica alma nessapassagem significa “mulher jovem”, e não «virgem». E Isaías nada diz aí sobre oMessias: “Mas, antes que o menino saiba rejeitar o mal, e escolher o bem, opaís do qual tu temes os dois reis será abandonado”. (Isaías, VII, 16). Isaíasnão atribui nada de sobrenatural ao seu nascimento, ele prediz que acriança verá a luz em uma época que precede de sete séculos a data dosevangelhos e diz, aliás, que o hão de chamar de Emanuel. Para eliminaresta contradição, Mateus pretende que um anjo visto em sonho por José lheordenou que desse ao menino o nome de Jesus, que quer dizer em hebreu“Deus Salvador”.

Portanto, nada neste capítulo pode servir para confirmar a historicidade deJesus. Ao contrário, sua genealogia, a concepção imaculada, a citação deIsaías, o anjo que apareceu a José, demonstram que Mateus procurou,bastante desajeitadamente aliás, juntar as profecias sobre o Messias, eos elementos dos cultos orientais, o que nos permite discernir facilmente aspartes constitutivas do mito de Jesus. (LENTSMAN, 1963, p. 175) (grifo nosso).

Mateus faz também referência a um antigo adágio do profeta Isaías: “eis queuma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel” -como se dissesse que a gravidez de Maria era a realização dessa profecia (Isaías7:14. (20). Mas Isaías faz referência a uma criança que deveria nascer nasua própria época, no século VIII a.C., cujo nascimento seria um sinalpara o rei Ahaz, que então governava. A palavra hebraica (almah) queMateus traduz por “virgem”, em sua versão grega, significa “jovemmulher” ou “donzela”, sem introduzir qualquer implicação miraculosa.(21). A criança receberia o nome pouco comum de Emanuel, que significa “Deusconosco”, e Isaías garante ao rei Ahaz que, antes que essa criança tenha idadesuficiente para distinguir “o bem do mal”, os assírios que ameaçavam Jerusaléme a Judeia seriam removidos da face da terra. Ahaz não teria que esperar muitotempo. Mateus infere que a profecia de Isaías foi “realizada” pelomiraculoso nascimento virgem de Jesus – o que claramente não é osentido do texto original._______(20) Todas as traduções da Bíblia foram feitas por mim, exceto se indicado de outra forma.Empreguei itálico para enfatizar determinadas partes.(21) A tradução grega da Bíblia hebraica, conhecida como Septuaginta ou LXX, usou apalavra parthenos em Isaías 7:14. Significa “virgem”, porém o sentido evidente docontexto não é o de uma mulher que engravida sem nenhum homem, mas deuma menina virgem que nunca fez sexo ficando grávida. Este bebê singular nãonasceria de uma mulher que já teve filhos, mas de uma que era virgem quando ficougrávida. Como Mateus escreveu em grego e está citando Isaías, ele também usa a palavraparthenos. Quanto a Versão Revisada do Antigo Testamento foi publicada, em 1952, ostradutores empregaram corretamente o termo “jovem”, em vez do tradicional “virgem”,em Isaías 7:14. A tradução foi denunciada por muitos cristãos fundamentalistas como umatentativa comunista diabólica de solapar a fé no “nascimento virgem de Cristo”.

(TABOR, 2006, p. 59-60) (grifo nosso).

Durante esses anos sombrios Isaías fora conformado pelo nascimentoiminente de um bebê real, indício de que Deus ainda estava com a casa de Davi.“Uma jovem (almah) está grávida e logo dará à luz um filho que se chamaráImmanu-El (Deus-conosco)”(31) Seu nascimento seria ainda uma fonte deesperança, “uma grande luz”, para o traumatizado povo do norte, que“caminhava nas trevas” e na “profunda escuridão”. (32) Quando o bebê

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nasceu, foi de fato chamado Ezequias, e Isaías imaginou toda a AssembleiaDivina celebrando a criança real, que, como todos os reis davídicos, se tornariauma pessoa divina e um membro do conselho celeste: no dia de sua coroação,ele seria chamado de “Conselheiro Admirável, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipeda Paz!. (33)._______(31) Isaías 7:14. Essa é uma tradução literal do versículo, não segue a versão tradicionalda Bíblia de Jerusalém.(32) Isaías 9:1.(33) Isaías 9:5-7.(ARMSTRONG, 2007, p. 25) (grifo nosso).

[…] Não há nenhuma evidência, a não ser nos tendenciosos escritosda Igreja surgidos depois, de que Jesus jamais tenha se consideradooutra coisa a não ser um judeu entre judeu, buscando a realização dojudaísmo – e, provavelmente, o retorno da soberania judaica no mundo romano.Como muitos autores já observaram, as diferentes linhagens de profeciashebraicas que foram forçadas a coincidir com o ministério de Jesus revelam adefesa da doutrina cristã, e muitas vezes a má formação cultural dos autoresdos Evangelhos.

Para moldar a vida de Jesus conforme as profecias do VelhoTestamento, os autores dos evangelhos de Lucas e Mateus, porexemplo, insistem que Maria o concebeu virgem (parthenos em grego),em referência à versão em grego de Isaías 7,14. Infelizmente para os quegostam da ideia da virgindade de Maria, a palavra hebraica almá (para aqual parthenos é uma tradução errônea) significa simplesmente“mulher jovem”, sem qualquer implicação de virgindade. Parece quasecerto que o dogma cristão do parto virgem, e boa parte da ansiedade resultantea respeito do sexo tenham resultado de uma tradução do original hebraico. (31)

Outro golpe contra a doutrina do parto virgem é que os outros evangelistas,Marcos e João, parecem não saber nada a respeito disso – embora ambos semostrem perturbados com as acusações de ilegitimidade de Jesus. (32)Aparentemente, Paulo acredita que Jesus era filho de José e Maria, e refere queJesus “nasceu da semente de Davi segundo a carne” (Romanos 1,3 – ou seja,José era seu pai), e “nascido de mulher” (Gálatas 4,4 – significando que Jesusera realmente humano), sem referência alguma à virgindade de Maria. (33)._______31. Ver B. M. Metzger e M. D. Coogan (eds), The Oxford companion to the Bible (Oxford:Oxford Univ. Press, 1993), pp. 789-90, e A. N. Wilson, Jesus: A live (Nova York: W. W.Norton, 1992), p. 79. Já foram observados muitos outros pares de citações entre o Velho eo Novo Testamentos que não sustentam: Mat 2,3-5 e Miq. 5,2; Mat. 2,16-18 e Jer.31,15/Gên. 35,19; Mat. 8,18 e Isa. 53,4; Mat. 12,18 e Isa. 42,1-4; Mat. 13,53 e Sal.78,2; Mat. 21,5 e Zac. 9,9/Isa.62,11. Mat. 27,9-10 afirma cumprir uma profecia queatribui erroneamente a Jeremias, quando, na realidade, aparece em Zacarias 11,12 – eisaí mais evidências de que “A Bíblia não erra”.32. Era considerável o estigma ligado à ilegitimidade entre os judeus no século I d.C. VerS. Mitchell, The gospel according to Jesus (Nova York: HarperColins, 1991).33. Ver ibid., p. 78, e J. Pelikan, Jesus through the centuries (Nova York: Haper and Row,1987), p. 80.

(HARRIS, 2009, p. 109) (grifo nosso).

Confirma-se, mais uma vez, que não se trata mesmo de alguma profecia que dizrespeito a Jesus, mas de algo que aconteceu no século VIII a.C.

Deixamos para citar Pastorino, por último, visto ele também apresentar algo quedissemos:

A profecia de Isaías afirma que uma virgem conceberá e dará à luz um filho.O termo virgem merece ser estudado.

Em hebraico há duas palavras: betulân, que especificava a virgindade comocerta; e almâh que exprimia uma oposição, sem garanti-la. Ora, Isaías escreveexatamente almáh. E verificamos que, em Deut. 22:23, a noiva, e mesmo aesposa recém-casada era chamada ne'arah betulâh.

Em grego a palavra παρΘένος exprime o mesmo: virgem, mas em sentidogenérico tanto que as moças noivas e também as recém-casadas eram assimchamadas, e isso na própria Bíblia (cfe. Deut. 22:23; 1 Reis 1:2; Ester 2:3). Em

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todas essas passagens, a palavra virgem designa a moça que é dada a alguémpara deitar-se com ele, supondo-se que se trata de uma virgem, isto é, demoça ainda não ligada pelo casamento a um homem.

A mesma designação é atribuída a Maria, demonstrando que, ao lhe ser dadacomo noiva, era virgem, o que é natural e normal. No entanto, em nenhum localdos Evangelhos se diz, nem se supõe, que Maria continuou Virgem depois. Elaera virgem quando concebeu, o que de modo geral ocorre com todas asmoças.

Esses nossos esclarecimentos não visam a diminuir o respeito e a veneraçãoque todos temos pela Mãe Santíssima de Jesus, pois o fato da virgindadenenhuma importância apresenta diante da espiritualidade. (PASTORINO, vol 1,1964a, p. 55) (grifo do original).

Além de corroborar o que foi dito a respeito da palavra almah, apresenta, no penúltimoparágrafo, um argumento que confirma o que nós dissemos a respeito de como podemosconsiderar Jesus nascido de virgem.

Certamente, que uma tradução errada leva inevitavelmente a uma interpretaçãoequivocada. Entretanto, algo bem mais curioso, que esse problema na tradução, encontramosna cultura persa com Tom Harpur (1929- ), ao citar Graves, quanto a uma profecia idêntica àde Jesus:

[…] Kersey Graves, no seu livro The World's Sixteen Crucified Saviours, citauma profecia de Zoroastro, divindade persa: “Uma virgem deveráconceber e gerar um filho, e uma estrela deverá aparecer brilhando nomeio-dia para indicar o acontecimento”. Zoroastro disse aos seusseguidores: “Quando virem a estrela, sigam-na até onde os levar. Adorem acriança misteriosa, oferecendo-lhe presentes com profunda humildade. Elaé na realidade a Palavra Onipotente que criou o céu. Ela é na realidade o seuSenhor e Rei eterno”. (HARPUR, 2008, p. 51) (grifo nosso)

Dessa fala de Graves temos mais alguns “graves” problemas, com os quais seestabelece uma semelhança desconcertante com fatos narrados a respeito de Jesus. Vejam,que a profecia de Zoroastro dizia de uma estrela que deveria levar ao menino, o que Mateusnarra (cap. 2), magos seguindo uma estrela que localizou Jesus, ao qual oferecerampresentes, como também previsto oferecer a Zoroastro. Sobre estes presentes vejamos:

[…] ou os rituais como os efectuados na Pérsia, já na época do rei Dario I(521-486 a.C.), mas que provavelmente remontam a muito antes, em que osmagos/sacerdotes ofereciam a Ahura-Mazda (o principal deus solar)(12) os presentes de ouro, incenso e mirra que aparecem citados em Mt2,11._______(12) Na inscrição de Naqsh i Rustam, do tempo de Dario I, é afirmado que “Ahura-Mazda éum grande deus. Criou esta terra. Criou o céu. Criou o homem. Criou a felicidade dohomem. Fez de Dario um rei”.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 105) (grifo nosso).

Ouro, incenso e mirra, tal e qual os magos ofereceram ao filho de Maria, conformenarrativa de Mateus (Mt 2,11), certamente, utilizaram-se de uma profecia persa para aplicá-laa Jesus.

Geza Vermes (1924- ), em seu livro Natividade, também trata da concepção virginal eda profecia de Isaías; leiamos:

A concepção virginal em Mateus e a profecia de Isaías

Até aqui, Mateus contou uma história desconcertante. A não ser pelaalusão a algum tipo de envolvimento do Espírito Santo, uma expressão paradesignar o poder através do qual Deus age no mundo, o anjo do sonhonão esclarece como Maria engravidou. O evangelista então intervém e lançauma nova luz sobre a questão valendo-se de uma profecia do Antigo

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Testamento, segundo a qual uma virgem virá a dar à luz o Salvador do povojudeu. Na versão do Evangelho para as palavras de Isaías, diz a profecia: “Eisque a Virgem conceberá e dará à luz um filho que se chamará Emanuel, quesignifica 'Deus conosco'” (Isaías 7,14, em Mt 1,23).

Este é o primeiro texto bíblico apresentado como prova por Mateus emsua narrativa da infância. Em Lucas não há nenhum. Mas esse testemunhoprofético, cujo objetivo é anunciar uma gravidez milagrosa ou concepçãovirginal, só é eficaz sob uma condição: ele funciona apenas se for seguidaa versão da Septuaginta grega para Isaías 7,14, destinada a um públicogrecófono e interpretada como os leitores gregos o entenderiam. Comose sabe, a forma que subsistiu do Evangelho de Mateus é a grega e, como tal,seu alvo era obviamente um público grego. Contudo, o público original para oqual a tradição da narrativa do nascimento de Jesus foi desenvolvida era dejudeus palestinos e o idioma em que foi inicialmente transmitida seria oaramaico ou, possivelmente, o hebraico, não o grego. Também é evidente quepara esses palestinos, em sua maioria judeus da Galileia, o texto de Isaías teriasido extraído da Bíblia hebraica, não da Septuaginta grega.

O que nos deixa em um verdadeiro dilema. Para aludir à mulher que virá aconceber e dar à luz um filho, Isaías 7,14 em hebraico não se refere a umavirgem, ou betulah em hebraico, mas a uma 'almah, isto é, "uma jovemmulher': termo neutro que não implica necessariamente virgindade. Porexemplo, no Cântico dos Cânticos 6,8 o termo “jovens mulheres” ('alamot)aparece em paralelo com "rainhas e concubinas", que seguramente não sãovirgens. Ademais, é muito improvável que a 'almah mencionada em Isaías 7, ajovem que no futuro próximo há de conceber e dar à luz um filho, seja virgem.O contexto sugere que ela já é casada, e esposa do então rei judeu, Acaz, aofim do século VIII a.C.

Quando fala em 'almah, o texto hebraico de Isaías em lugar algumespecifica que ela ainda é virgem ou que está prevista uma concepçãomilagrosa de qualquer tipo. O sinal profético em Isaías 7,14, em hebraico,está não na condição virginal da mãe, mas no significado do nome que eladeverá dar a seu filho - “Emanuel” - sugerindo que o futuro príncipe, emconformidade com o bom augúrio expresso no nome, “Deus conosco”' traráproteção divina aos habitantes de Jerusalém, naquela época sob ameaça de doisreis inimigos que sitiavam a cidade (ver Isaías 7,16). Considerando tudo isso, aconclusão a que se chega é que o relato semita subjacente à versão grega deMateus que conhecemos de forma alguma poderia conter uma previsão daconcepção virginal do Messias.

Como então esta noção entrou no Evangelho da Infância, de Mateus? Porpuro acidente, o tradutor da Septuaginta usou para o termo hebraico 'almah deIsaías 7,14 a palavra grega parthenos (virgem), que, no entanto, pode tambémsignificar solteira ou mulher não-casada que não seja necessariamente virgem.O Mateus “grego” ou o editor grego do Mateus semita topou com essa traduçãoimprecisa e a adotou. Esse feliz achado permitiu-lhe apresentar a seus leitoresde fala grega a concepção de Jesus como única e situada em posição muitosuperior a todas as outras concepções milagrosas do Antigo Testamento.

Existe uma prova incontestável de que uma proporção substancial dopúblico visado pelo texto final de Mateus era composta por gregos, que nãotinham conhecimento do hebraico. Em Mateus 1,23, o nome hebraico “Emanuel”na citação de Isaías é apresentado com uma tradução para explicar seusignificado: “Deus conosco”. Como se sabe, o original hebraico de Isaías nãoinclui tal interpretação e, o que é mais importante, ela também não consta datradução grega da Septuaginta. Os judeus da diáspora, para quem aSeptuaginta foi produzida, supostamente deveriam saber o que significavaEmanuel. O comentário grego a essa citação em Mateus - “que significa Deusconosco” - é obviamente criação do próprio evangelista, para auxiliar seusleitores gregos não-judeus. Assim, aplicada a Maria, a profecia de Isaías em suaversão grega destinava-se a transmitir ao público grego da narrativa materna dainfância que “Jesus-Emanuel” ou “o Messias-Filho de Deus” seria concebidoatravés do Espírito Santo e milagrosamente gerado por Maria na condição devirgem.

O Mateus grego, consequentemente, afirma que a concepção virginal édemonstrada pela citação de Isaías. No entanto, o argumento do evangelistaestá invertido. Ele quer que seu leitor entenda que o evento representa ocumprimento da profecia; em outras palavras, que a concepção de Jesus por

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Maria ocorreu porque, de acordo com Isaías, assim estava predestinada porDeus. A verdade é bem o contrário: a ideia da “parthenos que concebe”,fornecida pela profecia, é que motivou a história. Foi o texto grego de Isaías7,14 que proporcionou a Mateus uma fórmula surpreendente para exprimir ocaráter milagroso do nascimento de Jesus, como o cumprimento de umaprevisão das escrituras.

Repetindo pela última vez, a concepção virginal é uma extrapolaçãodas palavras da Septuaginta, fazendo uso de material histórico,apresentada a, e compreendida por, leitores cristãos gentios helenistasdo Evangelho de Mateus. A história do nascimento de Jesus, contada emaramaico ou hebraico e citando Isaías em hebraico, jamais poderia terdado origem a tal interpretação. Mas em grego, em combinação com aexegese literal do nome “Emanuel = Deus conosco”' tornou-se a fonte da qualsurgiu o conceito do Filho divino de mãe virgem. É preciso reiterar, mesmo queseja ad nauseam, que tal evolução somente foi possível em um meio culturalhelenístico grecófono. Os antecedentes ideológicos da mitologia greco-romana eas lendas sobre a origem divina de figuras eminentes da época e de um passadorecente (ver Capítulo 4) propiciaram um campo fértil para o crescimento do queviria a ser, no jargão teológico cristão, a Cristologia. Com o tempo, através dePaulo, de João e dos filosofantes Padres da Igreja gregos, essa ideia originalevoluiu para a deificação de Jesus, Filho da Virgem grávida de Deus(Theotokos).

Também é possível contestar que a ideia da concepção virginal inferida notexto de Mateus, com seu uso da versão da Septuaginta para Isaías, era deorigem cristã-gentia helenística, pela posição adotada pelo antigo cristianismojudaico sobre o assunto. Facetas importantes da doutrina desses cristãos-judeus, conhecidos como os ebionitas ou os Pobres, foram preservadas nosescritos dos apologistas da Igreja, que procuravam refutá-las. Sob adenominação de ebionitas, devemos entender comunidades cristãs-judaicas que,após sua separação da Igreja cristã-gentia central, provavelmente na virada doséculo I d.C., sobreviveram ainda por mais duzentos ou trezentos anos. Atravésdo Padre da Igreja Irineu, do fim do século II, que foi bispo de Lião, e dohistoriador da Igreja Eusébio de Cesareia, do século IV, sabemos que osebionitas rejeitavam a doutrina do nascimento virgem. Eusébio deixa claroque, para eles, Jesus era “o filho de uma união normal entre um homeme Maria” (História Eclesiástica 3,27). Irineu anteriormente havia argumentado,usando frases emprestadas do Novo Testamento, que os ebionitas "serecusavam a entender que o Espírito Santo havia vindo a Maria e que o poder doAltíssimo a havia envolvido com sua sombra" (Contra as Heresias, 5,1, 3). Eleexplicava ainda que a fim de sustentar seus ensinamentos e “puxar o tapete” daortodoxia cristã, os ebionitas defendiam a versão grega de Teodósio e Aquilacomo mais correta do que a Septuaginta, e substituíram o parthenos (virgem)desta última pelo termo neanis (jovem mulher) em sua tradução de Isaías 7,14(ibid. 3,21, 1). Na opinião deles, a prova de que a Septuaginta não era confiávelrepresentava o fim da doutrina de Mateus e da Igreja cristã a respeito deconcepção virginal.

Com efeito, a (almah do Isaías hebraico e o correspondente neanis deAquila e Teodósio revelam a fragilidade da ideia do nascimento virgem, conformeconcebida pelo Mateus grego. Sua adoção pelo evangelista (ou por seu editorfinal) tornou inevitável a revisão da formulação direta da genealogia (A gerou Betc.), com vistas a excluir a paternidade de José; e tem também o efeitoimprevisto de prejudicar a prova montada para autenticar a legitimidade deJesus como Messias descendente direto de Davi, através de José. (VERMES,2007, p. 74-79) (grifo nosso).

Em A dinastia de Jesus: a história secreta das origens do cristianismo, o autor James D.Tabor (1946- ), tece explicações interessantíssimas a respeito da virgindade de Maria, que nãopodemos deixar de transcrevê-las:

[…] É fácil imaginar que os cristãos primitivos acreditavam em Jesus e oqueriam tão louvado e celestial quanto qualquer dos heróis e deuses gregos eromanos, e se apropriaram dessa maneira de contar a história do seunascimento como uma maneira de afirmar que Jesus era ao mesmotempo humano e divino. Os intérpretes modernos, que adotam essa

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abordagem para as histórias, afirmam habitualmente que José eraprovavelmente o pai, e que esses relatos sobrenaturais eram inventados pelosdiscípulos de Jesus para atribuir-lhe honras e promover seu status elevado deuma maneira comum a essa cultura. (TABOR, 2006, p. 76) (grifo nosso).

[...] O ensinamento sobre a “virgindade perpétua” simplesmente nãoé encontrado no Novo Testamento e não faz parte dos primeiros credoscristãos. A primeira menção oficial a essa ideia só vem a partir de 374 d.C., como teólogo cristão Epifânio. (3) A maior parte dos escritos cristãos primitivosanteriores ao século IV d.C. aceita naturalmente que os irmãos e irmãs de Jesussejam filhos nascidos de José e Maria. (4)_______(3) A ideia da virgindade perpétua de Maria foi afirmada no 2º Concílio deConstantinopla, em 553 d.C. e no Concílio de Latrão, em 649. Embora seja umaparte do dogma católico solidamente estabelecida, nunca foi, no entanto, objeto de umadeclaração de infalibilidade pela Igreja Católica Romana.(4) Essa é a chamada visão elvídica, em homenagem a Elvídio, um escritor cristão doséculo IV, que Jerônimo procura refutar. Eusébio, o historiador da igreja do século IV, citaregularmente fontes antigas e refere-se a irmãos de Jesus “segundo a carne”, certamenteconcebendo-os como filhos de Maria e José. Consulte Eusébio, Churc History 2.23;3.19.

(TABOR, 2006, p. 90) (grifo nosso).

A própria disciplina dos historiadores os obriga a trabalhar dentro dosparâmetros de uma visão científica da realidade. As mulheres nuncaengravidam sem um homem. Portanto, Jesus tinha um pai humano, querconsigamos identificá-lo, quer não. Os corpos mortos não ressuscitam – seconsiderados clinicamente mortos – como fora seguramente o caso de Jesusdepois da crucificação romana e de três dias em uma tumba. Portanto, se atumba estava vazia, a conclusão histórica é simples – o corpo de Jesusfora removido por alguém e possivelmente sepultado em outro local. Oshistoriadores podem se referir ao que foi dito por Paulo ou aos relatórios sobreas aparições que circulavam na altura em que os evangelhos foram escritos,mas esses escritos, feitos décadas depois do acontecimento,testemunham mais o desenvolvimento das crenças teológicas do que oque teria acontecido. Alguns estudiosos questionaram a veracidade históricada própria história da tumba vazia, argumentando ter sido desenvolvida parasustentar a alegação teológica de que Jesus tinha sido ressuscitado dos mortos.Mas dada a natureza apressada e temporária do sepultamento de Jesus,era de esperar que a tumba estivesse vazia. Nunca houve a intenção de queJesus permanecesse naquela tumba. A questão que se põe é: o que aconteceucom seu corpo? Onde e por quem poderia ter sido sepultado permanentemente?A resposta mais curta é que não sabemos, e qualquer sugestão é especulativa.Mas temos, ainda assim, algumas pistas em nossas fontes que nos permitemreconstruir algumas possibilidades plausíveis.

Existem algumas histórias alternativas aos evangelhos do nosso NovoTestamento. Tertuliano,um autor cristão do século III, nos fala de uma polêmicaem voga nessa época: o corpo de Jesus fora removido pelo jardineiro docemitério, que temia ver suas plantas pisoteadas pelas multidões em visita àtumba. (14) Em um antigo texto medieval chamado Toledot Yeshu, o jardineiroleva o corpo e o sepulta em um riacho próximo, temendo que os discípulos seantecipassem e levassem o corpo, alegando que ele havia sido ressuscitado dosmortos. Há um texto copta do século VI d.C. que até nos diz o nome dojardineiro, Filógenes. Nessa versão, o jardineiro planeja levar o corpo parasepultá-lo condignamente, mas, à meia-noite, quando fora buscá-lo, a tumbaestava rodeada de anjos e ele testemunhara Jesus ressuscitando dos mortos.(15). Todas essas histórias sobre um jardineiro parecem ser embelezamento aoevangelho de João, em que Maria de Madalena, confundindo Jesus com ojardineiro, ao encontrá-lo na tumba, pergunta-lhe: “Se foste tu que o tiraste,dize-me onde o puseste” (João 20:15)._______(14) Tertuliano, De Spectaculis 30.(15) Book of the Resurrection of Christ by Bartholomew the Apostle 1.6-7.

(TABOR, 2006, p. 250-251) (grifo nosso).

O que ainda não conseguimos entender é que em Paulo, autor dos primeiros escritoscristãos e em Marcos autor do primeiro Evangelho, não se vê nada sobre virgindade de Maria,

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conforme constatou Hans Küng:

[…] Nas cartas de Paulo, os documentos mais antigos do Novo Testamento,refere-se de forma lapidar, sem mencionar nomes, o nascimento deJesus “de uma mulher” (Ggl 4,4), mas não de “uma virgem” – com vistaa acentuar a humanidade de Jesus.

O Evangelho mais antigo de Marcos desconhece a história donascimento e prossegue logo, sem todos os sonhos, com João Baptista e com avida pública de Jesus e com os seus ensinamentos, sobre os quais infelizmentenão se encontra uma palavra no apostolado. […] (KÜNG, 1997, p. 57) (grifonosso).

Deduz-se disso que, muito provavelmente, tais coisas foram acrescentadas por conta dodesenvolvimento da mitificação de Jesus, para elevá-lo à condição de um deus.

Mais taxativo é o “erudito Alfred Loisy, especialista em estudos bíblicos e historiador dasreligiões” (RODRÍGUEZ, 2007, p. 98), cuja fala, citada por Pepe Rodríguez, transcrevemos:

“para afastar os relatos do nascimento milagroso e da concepção virginal,basta observar que foram ignorados por Marcos e por Paulo, e que entre o deMateus e o de Lucas não há concordância, apresentando ambos todas ascaracterísticas de uma pura invenção” (4)_______4. Cf. Loisy, A. (1908), Simples Réflexions, Paris, p. 158. Depois da publicação deste seulivro crítico, Loisy, tido por iniciador do modernismo, foi excomungado pela Igreja. Jáanteriormente, em 1889, tinha sido obrigado a deixar de leccionar a cadeira de Hebreu ede Sagrada Escritura, de que era responsável no Instituto Católico de Paris, por ter sidoacusado de cultivar ideias heterodoxas sobre a infalibilidade da Bíblia. Em 1903, umdecreto do Santo Ofício (Inquisição) havia incluído cinco dos seus livros no Index (lista delivros cuja leitura era absolutamente proibida)

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 98) (grifo nosso)

Na verdade, não há como não pensar na hipótese de invenção, visando o“endeusamento” de Jesus, para igualá-lo com certos heróis e deuses da antiguidade.

Resolvemos fazer um levantamento nas Bíblias para ver qual seria os termos utilizadospor elas nos textos de Isaías e de Mateus:

Bíblias consultadas Isaías 7,14 Mateus 1,23

1-TEB A jovem A virgem

2-De Jerusalém A jovem A virgem

3-Do Peregrino A jovem A virgem

4-Santuário A jovem A virgem

5-Vozes A jovem A virgem

6-Novo Mundo Donzela A virgem

7-Ave-Maria Uma virgem A virgem

8-Paulinas 1957 - Pe Matos Uma virgem A virgem

9-Paulinas 1977 - Pe Matos Uma virgem A virgem

10-Paulinas 1980 – Pe. Matos Uma virgem A virgem

11-SBB Uma virgem A virgem

12-SBB- Nova versão (NTLH) A jovem A virgem

13-Anotada A virgem A virgem

14-Barsa Uma virgem Uma virgem

15-Shedd A virgem A virgem

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16-SBTB A virgem A virgem

Das quatorze traduções, em seis delas constam em Isaías a jovem/donzela, ou seja,47%. Embora não seja a maioria é bem significativo e pouco producente evocar para atradução a palavra virgem, como se faz ao traduzirem Mateus. Aliás isso, consequentemente,prova a contradição em relação aos que traduziram Isaías como jovem/donzela. Além disso,ainda temos a SBB com duas “traduções” para o mesmo verso, só que um adaptado àlinguagem atual. Não será o caso de constatar-se que os tradutores já estão chegando àconclusão de que a sociedade atual não está aceitando a “virgem” como estado físico, mas,sim, com a conotação de juventude?

Por outro lado, ainda teríamos que desconsiderar que, em Mt 12,46 e Mt 13,55-56, sãomencionados os irmãos de Jesus; inclusive, nesse último passo, nomearam os homens – Tiago,José, Simão e Judas-; as mulheres não são quantificadas e nem nomeadas, demonstrandocomo a sociedade machista da época as tratava. Apesar disso, a dogmática ainda afirma queMaria foi virgem antes, durante e após o parto. Haja fé para acreditar nisso! Para confirmar oque estamos falando, transcrevemos as seguintes explicações em notas de rodapé nas Bíblias:

Mt 2,25: Enquanto (ou até que) esta palavra portuguesa traduz o latimdonec e o grego heos ou, que por sua vez estão calcados sobre a expressãohebraica ad ki que se refere ao tempo anterior a esse limite sem nada dizer dotempo posterior, cf. Gen 8,7; Sl 109,1; Mt 12,20; 1 Tim 4,13. A tradução exataseria: “sem que ele a tivesse conhecido, deu à luz...” pois a nossa expressãosem que tem o mesmo valor. Primogênito quer dizer o nascido em primeirolugar, mas nada diz contra a virgindade perpétua de Maria pois, na Bíblia,tem o valor de um termo técnico para significar aquele que deve ser oferecido aDeus e resgatado segundo a Lei (Ex 13,2; Num 18,15-17), que viesse a ser ofilho mais velho que continuasse filho único. Exemplo frisante do uso do termonesse sentido, se encontra no epitáfio de Arsinoé que morreu “nas dores doparto do meu primogênito”. (Bíblia Barsa, p, 2 – NT). (grifo nosso).

Mt 1,25: Mateus afirma a virgindade de Maria antes do parto. Que elatenha permanecido virgem no parto e depois dele, nós o sabemos pelossantos Padres e pela Igreja, e é verdade de fé católica, isto é, universalmenteadmitida, embora ainda não tenha sido definida solenemente. (Paulinas 1980, p.1061) (grifo nosso).

Lc 1,34-35: Maria, ciosa da sua virgindade, da qual fizera doação a Deus,pede explicações acerca do ministério da maternidade divina, anunciado peloanjo. A resposta é que Deus realizará um estupendo milagre. Ela se tornará mãepor virtude do Espírito Santo e dará à luz o Filho de Deus encarnado,conservando o privilégio da virgindade. (Paulinas 1980, p. 1121) (grifonosso).

Considerando a localização histórica do evento, é totalmente anticientífico se afirmarque Maria se manteve virgem “no parto e depois dele”.

O interessante é que, nessa última explicação, vão além do que se conhece de Mariapara afirmar que ela tenha feito voto de castidade, e que, por algum ato milagroso, tenha,depois do parto, “conservado o privilégio da virgindade”. Quanto ao primeiro ponto, trazemosessa explicação dos tradutores da Bíblia de Jerusalém:

Lc 1,34: A “virgem” Maria é apenas noiva (v. 27) e não tem relaçõesconjugais (sentido semítico de “conhecer”, cf. Gn 4,1 etc.). Este fato, que pareceopor-se ao anúncio dos vv. 31-33, induz à explicação do v. 35. Nada no textoimpõe a ideia de um voto de virgindade. (Bíblia de Jerusalém, p. 1787)(grifo nosso).

Então, temos, aqui, tradutores contra tradutores; não é fato?

Em relação ao suposto “privilégio da virgindade” é algo que nos soa bem estranho, pois,naquela época, a mulher que não gerasse filhos era abandonada pelo marido e desprezadapela sociedade.

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Resta-nos um último ponto, que nos causou estranheza, em virtude da seguinte fala deKüng: “[…] uma das últimas profissões de fé (antes de Paulo) reza o seguinte na introdução:Jesus Cristo foi 'constituído Filho de Deus ao ressuscitar dos mortos' (Rm 1,4)”. (KÜNG, 1997,p. 73).

Ora, se Jesus tornou-se “Filho de Deus” ao ressuscitar dos mortos, então qual o sentidode lhe atribuírem o nascimento como sendo por obra do Espírito Santo, que o fazia “filho deDeus”? Ou será que se tornou “filho de Deus” por ocasião do seu batismo (Mt 3,17; Mc 1,11;Lc 3,22)? Ou, ainda, quando Moisés e Elias lhe apareceram no Monte Tabor (Mt 17,5; Mc 9,7;Lc 9,35)?

Entendemos que algumas pessoas devem reformular o conceito que têm de moral, poisachar que a moral do homem está relacionada a seu órgão sexual é desvirtuar totalmente osignificado dessa palavra. Ainda vamos mais longe; achamos que devemos passar todos osconceitos teológicos do passado por uma ampla revisão, já que muitos deles estãoimpregnados de prepotência e de um egoísmo eclesiástico incomum, pelos quais verdadesforam dobradas às conveniências religiosas, visando, a todo o custo, dominar a mente dosfiéis; quiçá era desejo dominar toda a humanidade... Intolerância, guerras, cruzadas,inquisição, etc. foram as armas utilizadas pelos religiosos do passado, apoiados pelos teólogos,para impor, a ferro e fogo, suas teorias completamente distorcidas dos ensinamentos de Jesus.

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Jesus de Belém ou de Nazaré?

Resolvemos fazer o presente estudo pelo motivo de já termos visto estudiosos bíblicosdizerem que Jesus não nasceu em Belém, fato, que a princípio, pareceu-nos estranho hajavista que sempre nos falaram que sim. Talvez o comodismo de aceitar certas coisas, semquestioná-las, especialmente, aquelas vindas de pessoas que, em nosso julgamento, parecemconhecer do assunto, nos fez acreditar nessa história a respeito da cidade do nascimento deJesus.

João Loes (1983- ), em reportagem, na revista IstoÉ, intitulada “A face humana deJesus”, apresenta o seguinte sobre esse assunto:

Embora os evangelhos de Mateus e Lucas afirmarem que Jesus tenha nascidoem Belém, é muito provável que isso tenha ocorrido em Nazaré. “Todos osgrandes especialistas bíblicos são unânimes em admitir que Jesusnasceu em Nazaré”, afirma Frei Betto, religioso dominicano autor do recém-lançado “Um homem Chamado Jesus”. Ao que tudo indica, Lucas e Mateusteriam escolhido Belém como cidade natal de Jesus para que suasversões da vida de Cristo se alinhassem a uma profecia do AntigoTestamento, segundo a qual o Messias nasceria na Cidade do Rei Judeu, ouseja, a Cidade de Davi, que é Belém. (LOES, 2009, p. 65, grifo nosso).

Realmente, Mateus dá como certo o nascimento de Jesus em Belém, seu objetivoparece confirmar o que foi dito na reportagem, que é o de fazer-nos crer que o nascimentonessa cidade tenha ocorrido para cumprimento de uma certa profecia, pois, ele, Mateus, maisdo que qualquer um dos outros evangelistas, preocupava-se em relacionar os váriosacontecimentos da vida de Jesus com algum tipo de profecia, chegando ao ponto de atémesmo de citar profecias inexistentes, como é o caso, por exemplo, do passo Mt 2,23, queiremos ver, no qual ele diz que profetas previram que Jesus “Será chamado o Nazareno”.

Elaine Pagels (1943- ), professora de religião na Universidade de Princeton, confirmaessa tendência do autor do Evangelho de Mateus: “[…] Hoje, porém, muitos estudiosossugerem que a correspondência entre profecia e evento que Mateus descreve mostra queele às vezes adaptou sua narrativa de modo a adequá-la às profecias”. […] (PAGELS,2004, p. 114, grifo nosso).

Mt 2,1-6: “Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judeia, no tempo do reiHerodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, e perguntaram: 'Onde está orecém-nascido rei dos judeus? Nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos paraprestar-lhe homenagem’. Ao saber disso, o rei Herodes ficou alarmado, assim comotoda a cidade de Jerusalém. Herodes reuniu todos os chefes dos sacerdotes e osdoutores da Lei, e lhes perguntou onde o Messias deveria nascer. Eles responderam:'Em Belém, na Judeia, porque assim está escrito por meio do profeta: 'E você,Belém, terra de Judá, não é de modo algum a menor entre as principaiscidades de Judá, porque de você sairá um Chefe, que vai apascentar Israel,meu povo'”.

A questão de Jesus ter nascido em Belém é hoje motivo de sérios questionamentos porparte dos estudiosos, como por exemplo, James D. Tabor (1946- ), professor do Departamentode Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, em Charlotte, graduou-se emdoutorado pela Universidade de Chicago em Estudos Bíblicos e é especialista nos Manuscritosdo Mar Morto, que em seu livro intitulado A dinastia de Jesus: a história secreta das origens docristianismo, nos dá a seguinte informação:

Existem estudiosos do Novo Testamento que duvidam da validade

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histórica até mesmo desse arcabouço básico, especialmente da história donascimento de Jesus em Belém. Sustentam que a história de Belém foiprovavelmente acrescentada para dar crédito a Jesus como Messiasdescendente de Davi, já que Belém era a cidade de Davi. Existem certosindícios de que a questão do local do nascimento de Jesus, na Galileia ou naJudeia, tornou-se uma questão de controvérsia e discussão dentro de gruposjudeus (consulte João 7:40-44). (TABOR, 2006, p. 336, grifo nosso).

Podemos ainda citar uma conclusão emanada do Seminário de Jesus, “uma instituiçãocomposta por cerca de 100 pesquisadores, altamente qualificados, que, há 26 anos, sededicam à investigação científica dos Evangelhos, em busca das palavras e ações autênticas deJesus”. (SOUZA, 2011, p. 65): “Jesus provavelmente nasceu em Nazaré, sua cidadenatal. Lendas posteriores que localizam seu nascimento em Belém foram inventadas parasatisfazer uma antiga profecia”. (SOUZA, 2011, 104, grifo nosso).

Outros autores confirmam essa história da inclusão no texto do nascimento em Belémpara relacionar o episódio ao cumprimento uma suposta profecia.

Vejamos algumas outras interessantes conclusões dos especialistas participantes doSeminário de Jesus:

Jesus não nasceu de uma virgem; os pesquisadores do SJ duvidam queMaria tenha concebido Jesus sem relação sexual. O pai de Jesus foi José oualgum outro homem desconhecido que seduziu a jovem Maria […] (SOUZA,2011, p. 104, grifo nosso).

O recenseamento mundial, a viagem para Belém, a estrela no oriente, osastrólogos [reis magos], a fuga para o Egito e o retorno do Egito, o massacredas crianças, os pastores nos campos e o parentesco com João Batista são tudoficções cristãs. (SOUZA, 2011, p. 104, grifo nosso).

[…] Os pesquisadores do SJ chegaram a concluir que apenas 18% (dezoitopor cento) do total de palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhospodem ser realmente consideradas autênticas e que apenas 16%(dezesseis por cento) do total de ações a ele atribuídas nos Evangelhospode ser, de fato, consideradas autênticas, ou seja, aproximadamente 82%das palavras e 84% das ações atribuídas a Jesus nos Evangelhos não sãoverdades históricas, mas crenças cristãs (cf. FUNK & THE JESUS SEMINAR, p. 1)(SOUZA, 2011, p. 67, grifo nosso).

A Revista Superinteressante nº 183, publica um artigo do jornalista e editor RodrigoCavalcante intitulado “Quem foi Jesus?”, do qual ressaltamos este interessante trecho:

[...] E o segundo problema, ainda mais grave, é que provavelmente Jesusnão nasceu em Belém. “Há quase um consenso entre os historiadores de queJesus nasceu em Nazaré”, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro de EstudosSuperiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Então por que oevangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório explica que otexto segue o gênero literário conhecido por midrash. Basicamente, o midrash éuma forma de contar a história da vida de alguém usando como pano de fundo abiografia de outras personalidades históricas. No caso de Jesus, ele explica, areferência a Belém é feita para associá-lo ao rei Davi do AntigoTestamento – que, segundo a tradição, teria nascido lá. (CAVALCANTE,2002, p. 43, grifo nosso).

Pelo que se depreende desse texto, para o autor de Mateus, a família de Jesus residiaem Belém, local de seu nascimento, tal fato se deu, conforme sua alegação, para se cumpriruma suposta profecia de Miqueias que diz:

“Mas você, Belém de Éfrata, tão pequena entre as principais cidades de Judá! É de vocêque sairá para mim aquele que há de ser o chefe de Israel. A origem dele é antiga,desde tempos remotos”. (Mq 5,1 ou 5,2).

A citação dessa “profecia’” de Miqueias é pura apelação, porquanto, quem a utilizou,

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simplesmente, pegou parte de um texto, fora do seu contexto, fato que leva quem o lê a crernuma realidade completamente diferente daquela que corresponde à verdade dosacontecimentos. Para entendermos o contexto é necessário continuarmos lendo a sequência danarrativa:

“Pois Deus os entrega só até que a mãe dê à luz, e o resto dos irmãos volte aosisraelitas. De pé, ele governará com a própria força de Javé, com a majestade e onome de Javé, seu Deus. E habitarão tranquilos, pois ele estenderá o seu poder até asextremidades da terra. Ele próprio será a paz. Se a Assíria invadir o nosso território equiser pisar o interior de nossos palácios, poremos em luta contra eles sete pastores eoito comandantes. Eles vão governar a Assíria com espada, a terra de Nemrod compunhal. Ele nos livrará da Assíria, se invadirem o nosso território, seatravessarem nossas fronteiras”. (Mq 5,2-5 ou 5,3-6).

A pessoa de quem Miqueias está falando, nesse passo, é, provavelmente, Ezequias,filho do rei Acaz, Rei de Judá (721-693 a.C.), é nele que o povo hebreu deposita a suaesperança em livrá-lo da Assíria, portanto, nada tem a ver com alguma profecia a respeito deJesus, por mais esforço exegético que se faça.

Mateus, na continuação da narrativa, passa a informar da fuga da família de Jesus parao Egito, de onde todos retornam para morar em Nazaré:

Mt 2,13-23: “Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José edisse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu teavise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar’. José levantou-se durante anoite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte deHerodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: Euchamei do Egito meu filho (Os 11,1).Vendo, então, Herodes, que tinha sidoenganado pelos magos, ficou muito irado e mandou massacrar em Belém e nos seusarredores todos os meninos de dois anos para baixo, conforme o tempo exato quehavia indagado dos magos. Cumpriu-se, então, o que fora dito pelo profeta Jeremias:Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seusfilhos; não quer consolação, porque já não existem! (Jer 31,15). Com a mortede Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, e disse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porque morreram os queatentavam contra a vida do menino’. José levantou-se, tomou o menino e sua mãe e foipara a terra de Israel. Ao ouvir, porém, que Arquelau reinava na Judeia, em lugar deseu pai Herodes, não ousou ir para lá. Avisado divinamente em sonhos, retirou-se paraa província da Galileia e veio habitar na cidade de Nazaré para que se cumprisse o quefoi dito pelos profetas: Será chamado Nazareno”.

Nesse trecho o autor de Mateus volta a “atacar” com as supostas profecias, citandomais três, que, também, nada têm a ver com Jesus.

Será que Herodes tentou mesmo matar o menino, como é afirmado? O primeiroproblema que se nos apresenta é “que Herodes faleceu quatro anos antes da era cristã”(WILSON, 2007, p. 11). Por isso essa suposta matança das crianças tem tudo para ser algofictício, o que é fácil de se perceber, pois não há um relato sequer que João Batista, a essaépoca com menos de dois anos, tenha sido poupado por Herodes ou que, talvez, sua famíliatenha também fugido para escapar dele. Quanto a idade de João Batista basta ler Lucas (1,39-44) para ver que a jovem Maria foi visitar Izabel, mãe de João, e esta, “cheia do EspíritoSanto” (v. 41) reconheceu a gravidez de sua prima.

Pepe Rodríguez (1953- ), destacado jornalista de investigação, especialista em religiõescomparadas, com diversos livros já publicados, dá a respeito de Mt 2,13-18, citado acima, aseguinte opinião:

Este relato é o máximo: mostra um Herodes profundamente estúpido que,apesar de “perturbado” com a notícia do nascimento de um rei messias quepodia destroná-lo (Mt 2,3-5), se revela incapaz de enviar os seus soldados aBelém, situada a pouca distância do seu palácio, para o prender e, em lugar de

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mandar, ao menos, algum dos seus muitos espias da corte para que oinformassem com diligência, ficou à espera das notícias de três magosdesconhecidos que se haviam declarado adoradores do recém-nascido. Umrecém-nascido que, conforme conta Mateus, já podia ter perto de dois anos, oque nos leva a perguntar: passou Jesus os seus dois primeiros anos numestábulo à espera dos magos?, ficou Herodes durante esses dois anos à esperados magos sem tomar qualquer medida, mesmo depois de esse prazo terpassado?, eram tão idiotas os soldados de Herodes que não soubessemdistinguir entre um recém-nascido e uma criança mais crescida, a ponto deHerodes ter de os mandar assassinar todos os nascidos “de dois anos parabaixo”?

Contrariamente ao que nos fazem crer Mateus, os dados históricosreais dizem-nos que Herodes não era um rei papa-açorda e sanguinário.Muito pelo contrário. Mas, ao silenciarem os factos descritos por esseevangelho, dizem-nos também que Mateus está a mentir. Não aparecemrelatados em lado algum; nem mesmo nas Antiguidades Judaicas ou emqualquer outra das obras documentadas do historiador judeu Flávio Josefo (c.37-103 d.C.): este autor, que lutou contra os Romanos na guerra judaica, nuncadeixou passar em silêncio os massacres cometidos contra o seu povo, sendoassim impossível não ter contado – num relato minucioso, como são todos osseus – a notícia da matança das crianças, se esta tivesse efetivamenteacontecido (15).

Esta lenda, como restante mito evangélico sobre Jesus, é falsa. Nasua origem contam-se antigas tradições pagãs. Como é óbvio, foiintroduzida por Mateus – o único texto canónico em que aparece – por ummotivo muito concreto: reforçar a credibilidade do mito básico do cristianismo,mostrando como este dá cumprimento a duas supostas profecias sobre oMessias._______(15) Por outro lado, dado que os Judeus, submetidos ao Império Romano, não podiamaplicar a pena de morte aos seus próprios concidadãos, sem uma autorização explícita dogovernador imperial, não é razoável pensar-se que Herodes tenha ordenado a matança,como não é provável, caso tal tivesse acontecido, que o rei judeu não tivesse sidocastigado pela autoridade romana.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 110-111, grifo nosso).

Por outro lado, segundo o escritor Werner Keller (1909-1980), “inexiste prova históricaou arqueológica da ‘fuga para o Egito’”. (KELLER, 2000, p. 366). Sobre esse assunto, não nosestenderemos, porquanto, já o estudamos, pormenorizadamente, em nosso texto “A fuga doEgito”, disponível em nosso site www.paulosnetos.net, o qual sugerimos a você, caro leitor, asua leitura.

Os tradutores da Bíblia de Jerusalém explicam essa narrativa como sendo uma tentativade ser fazer “um paralelo anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas:segundo estas, quando o nascimento da criança foi anunciado, por meio de visões, ou porintermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as crianças recém-nascidas” (Bíblia deJerusalém, p. 1705-1706).

Vejamos esse episódio em Flávio Josefo (37-103 d.C.), o historiador hebreu:

[…] Um dos doutores da sua lei, ao qual eles dão o nome de escribas dascoisas santas e que passam entre eles por grandes profetas, disse ao rei quenaquele mesmo tempo deveria nascer um menino entre os hebreus, cujavirtude seria admirada por todo o mundo, pois aumentaria a glória de suanação e humilharia o Egito, e cuja reputação seria imortal. O rei, assustadocom a predição e seguindo o conselho daquele que lhe fazia essaadvertência, publicou um edito pelo qual ordenava que se deveriamafogar todas as crianças hebreias do sexo masculino e ordenou àsparteiras do Egito que observassem exatamente quando as mulheres fossem darà luz, porque não confiava nas parteiras de sua nação. Esse edito ordenavatambém que aqueles que se atrevessem a salvar ou criar alguma dessascrianças seriam castigados com a pena de morte, juntamente com toda afamília. (JOSEFO, 2003, p. 79, grifo nosso).

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O paralelo entre os dois personagens – Moisés e Jesus – é evidente: ambosrepresentavam problemas políticos no futuro, com a possibilidade de virem a querer ocupar oscargos dos mandatários.

Em relação à morte das crianças, Keller explica o seguinte:

Assim, hoje em dia usa-se de um cuidado bem maior do que outrorana apreciação da historicidade do infanticídio de Belém e, antes, tende-sea considerar o relato em questão como uma tentativa, condicionada àmentalidade contemporânea que visa realçar a importância de Jesus, pelosmeios usados na época (para tanto, existe ainda uma certa autenticidadehistórica, representada pelas atitudes efetivamente tomadas por Herodes emsua contenda com os fariseus, por causa do Messias. Veja o fim do capítuloprecedente). No entanto, há ainda mais. O relato do infanticídio de Belémestabeleceu um nexo entre Jesus e Moisés, pois também desse último aBíblia conta como escapou, milagrosamente, de perseguições idênticas, sofridaspor parte do faraó egípcio (Êxodo 1.15, 2.10). (KELLER, 2000, p. 366, grifonosso).

Corroborando o que foi dito acima, transcrevemos, respectivamente, de RobertoCarneiro Puccinelli Junior (1960- ), escritor, espiritualista e mestre em ciências e Bart D.Ehrman (1955- ), é Ph.D. em Teologia pela Princeton University, que dirige o Departamento deEstudos Religiosos da University of North Carolina, Chapel Hill. É especialista em NovoTestamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e da vida de Jesus, é amaior autoridade em Bíblia do mundo:

Outro exemplo é a matança de meninos de até dois anos, que teria sidoordenada por Herodes “em Belém e todo seu território” (Mt2:16). Mateus fazuso aqui de tradições rabínicas sobre a vinda de Moisés, segundo asquais tão logo o nascimento da criança foi anunciado por meio de visõese anúncios dos magos, o faraó teria mandado chacinar crianças recém-nascidas do sexo masculino (*). Também se observa um paralelo com o livrodo Êxodo, quando o rei do Egito manda as parteiras assistentes do povo hebreuassassinar todo recém-nascido menino e poupar a vida das meninas. Conformeexplica Roselis von Sass em “O Livro do Juízo Final”, Jesus nasceu em 12 a.C.,data confirmada também pelo Dr. Jerry Vardaman, diretor do Instituto deArqueologia da Universidade do Mississípi e professor de religião. Nessa época,Herodes não estava preocupado com o nascimento de nenhum Messias,mas sim com dois de seus filhos que, segundo imaginava, tramavam a suamorte. Nesse ano ele foi com os filhos até Roma para que o imperador Augustodecidisse a questão, o qual não viu indícios de nenhuma rebelião e reconcilioupai e filhos. Ainda nesse ano de 12 a.C., Herodes presidiu a edição dos JogosOlímpicos e até deu dinheiro do próprio bolso para garantir o sucesso doempreendimento. De preocupações com o Messias nascido, nem sinal._______(*) O faraó de fato tencionava matar os hebreus recém-nascidos do sexo masculino, masnão para se ver livre de uma criança chamada Moisés, e sim porque achava que o povoescravizado estava se tornando muito numeroso, o que poderia ser perigoso para o país.Ao leitor que desejar conhecer detalhes dessa história indicam-se as obras Aspectos doAntigo Egito ou Moisés, ambas publicadas pela Editora Ordem do Graal na Terra.

(PUCCINELLI JUNIOR, 2006, p. 192-193, grifo nosso).

Quanto ao registro histórico, também devo chamar a atenção para o fato de quenão há nenhum relato, em qualquer fonte antiga, sobre o rei Herodesmassacrar crianças em Belém, ou em seus arredores, ou em qualqueroutro lugar. Nenhum outro autor, bíblico ou não, menciona isso. […](EHRMAN, 2010, p. 46, grifo nosso).

Para nós, fica nítido que a fuga da família de Jesus para o Egito foi utilizada tambémpara tentar aplicar o que se supõe ser uma profecia de Oseias. Ao analisarmos a citadapassagem desse profeta (Os 11,1) vemos que ela nem mesmo é uma profecia, pois, naverdade, trata-se de um fato já acontecido. Deve-se observar que o verbo “chamar” está nopretérito, o que indica fato do passado e não um evento a acontecer no futuro. Ademais,

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expressão “meu filho”, usada no passo, tem como referência o povo de Israel e não alguém emparticular.

Por outro lado, a matança das crianças é, por certo, uma tentativa de justificar umasuposta profecia de Jeremias (31,15). Porém, como já acontecido anteriormente, essapassagem também não é uma profecia, uma vez que se refere à tomada de Jerusalém porNabucodonosor, rei da Babilônia, que subjuga o povo e o leva cativo para seu país, daí “opranto de Raquel (sepultada em Ramá, perto de Belém) pelos filhos massacrados oudeportados pelos caldeus depois da destruição de Jerusalém em 596 a.C.,...” (Bíblia Sagrada,Edições Paulinas, p. 1062).

A suposta ida da família de Jesus para Nazaré é, da mesma forma, algo que foi forjadopara se relacionar ao cumprimento de mais uma profecia que teria sido dita por váriosprofetas. Entretanto, a bem da verdade, não há nenhuma profecia em que um só profetatenha dito: “Será chamado Nazareno”; portanto, é pura invenção de Mateus ou de alguémque, por algum motivo, colocou isso lá.

Considerações de Geza Vermes (1924- ), professor da Universidade de Oxford, éconsiderado um dos maiores especialistas acadêmicos sobre Manuscritos do Mar Morto ehistória do cristianismo, ao versículo “[Ele] será chamado Nazareno” (Mt 2,23):

Enquanto a descendência davídica de Jesus é um tema recorrente bemestabelecido nos Evangelhos, especialmente nos Sinóticos, sua proveniência daJudeia parece ser mais de uma vez ignorada ou contestada. As pessoas o viamnão como sulista, mas como nascido e criado na Galileia. Ele era chamado deJesus, o Nazareno, isto é, originário de Nazaré, ou, por extenso, oprofeta Jesus de Nazaré da Galileia (Mt 21,11). Nazaré e a região do lagoda Galileia era sua patris, o que pode significar igualmente seu lugar denascimento, sua cidade e sua pátria (Mc 6,4; Mt 13,57; Lc 4,24, Jn 1,46).Obviamente, alguns judeus locais se recusaram a aceitá-lo como oMessias justamente porque sabiam que ele era da Galileia e não “deBelém, a cidade onde vivia Davi” (Jo 7,41-42). Ademais, eles expressavamo preconceito sem dúvida originário da Judeia, segundo o qual nenhum grandeprofeta provinha da Galileia (Jo 7,52). Devemos reconhecer, portanto, queestamos em um impasse: o nascimento em Belém é asseverado com certezateológica, mas é questionado no que parece ser conhecimento factual. (VERMES,2007, p. 97, grifo nosso).

Apresentamos também as considerações de alguns tradutores:

O adjetivo provém, sem dúvida, do nome de Nazaré. Serviu paradesignar os cristãos (At 24,5). (Bíblia Sagrada Ave-Maria, p. 1286, grifo nosso).

A palavra “Nazareno” pode ter um duplo sentido: habitante deNazaré e “Nazir”, isto é, consagrado a Deus por um voto (Cf. Lv 21,12; Jz23,57). Talvez Mt quisesse literariamente visar os dois sentidos: Jesus é deNazaré e é consagrado especialmente ao Senhor. (Bíblia Sagrada Santuário, p.1437, grifo nosso).

“Nazareu” (nazôraios forma usada por Mt, Jo e At) e o seu sinônimo“nazareno” (nazarênos, forma usada por Mc; Lc tem as duas formas) são duastranscrições correntes do mesmo adjetivo aramaico (nasraya), derivadodo nome da cidade de Nazaré (Nasrath). Aplicado primeiro a Jesus –indicando sua origem (26,69.71) – e depois a seus sequazes (At 24,5), essetermo ficou como designativo dos discípulos de Jesus no mundo semítico,enquanto no mundo greco-romano prevaleceu o nome de “cristão” (At 11,26).[…] (Bíblia de Jerusalém, p. 1706, grifo nosso).

Ao que nos parece, o consenso é que o adjetivo “Nazareno”, aplicado a Jesus, está maispara designar a sua origem do que qualquer outra coisa, inclusive, o próprio autor de Mateuscoloca Jesus indo habitar Nazaré para relacioná-lo a esse adjetivo, embora, a rigor, é maislógico aplicá-lo a quem nasceu em Nazaré; porém, é certo que a principal preocupação desseautor era relacionar Jesus a uma suposta profecia do que ser lógico e coerente em seusrelatos. Voltaremos a esse assunto mais ao final desse estudo.

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Existem outras passagens em Mateus nas quais cita-se uma cidade ou regiãorelacionada a Jesus:

Mt 3,13: “Jesus foi da Galileia para o rio Jordão, a fim de se encontrar com João, e serbatizado por ele”.

Mt 4,12-13; “Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia. DeixouNazaré, e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, nosconfins de Zabulon e Neftali”.

Mt 13,53-54: “Quando Jesus terminou de contar essas parábolas, saiu desse lugar, evoltou para a sua terra. Ensinava as pessoas na sinagoga, de modo que ficavamadmiradas. Diziam: 'De onde vêm essa sabedoria e esses milagres?'”

Mt 19,1: “Quando Jesus acabou de dizer essas palavras, ele partiu da Galileia, e foipara o território da Judeia, no outro lado do rio Jordão”.

Mt 21,10-11: “Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade ficou agitada, eperguntavam: 'Quem é ele?' E as multidões respondiam: 'É o profeta Jesus, deNazaré da Galileia'”.

A citação inicial de Galileia (3,13), provavelmente trata-se de Nazaré. Jesus muda-separa Cafarnaum, ainda na Galileia (4,12-13), depois volta à “sua terra” (13,53-54),certamente, Nazaré, conforme é afirmado em: Novo Testamento Loyola, Bíblia de Jerusalém eBíblia Santuário. E, finalmente, ele se transfere para a Judeia (19,1), chegando à Jerusalém(21,10-11). O interessante é que nessa cidade “que mata os profetas” ele foi reconhecidocomo Jesus de Nazaré, bem estranho se tivesse nascido em Belém, que é na Judeia, e que selocaliza a cerca de 10 km ao sul de Jerusalém, que dizer, na própria região, onde dizem ternascido, eles o conhecem como sendo de Nazaré.

Mt 20,29-30: “Quando saía de Jericó, uma numerosa multidão o seguiu. Então doiscegos, sentados à beira da estrada, percebendo que Jesus passava gritaram:'Senhor, tem piedade de nós, ó Filho de Davi!'”.

Mc 10,46-47: “Jesus e os discípulos chegaram a Jericó. Quando ele já saía de lá com osseus discípulos, e acompanhados de uma numerosa multidão, o cego Bartimeu, filhode Timeu, estava sentado à beira do caminho pedindo esmola. Tendo sabido que setratava de Jesus de Nazaré, ele começou a gritar: 'Filho de Davi, Jesus, tem piedadede mim!'”.

Lc 18,35-38: “Quando Jesus se aproximava de Jericó, um cego estava sentado à beirado caminho, mendigando. Ouvindo o barulho da multidão que passava, perguntou oque havia. Anunciaram-lhe: É Jesus, o Nazareno que está passando. Então, elecomeçou a gritar: 'Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!'".

Relacionando-se os passos de Marcos e Lucas, podemos, mais uma vez, concluir queNazareno quer significar nascido em Nazaré.

É curioso como o “Espírito Santo” inspira os autores bíblicos de forma divergente, emMateus é afirmado que são dois cegos, em Lucas e Marcos temos um só, inclusive, nesteúltimo autor é citado até o nome dele. E aí temos sérios problemas, caso S. Jerônimo estejacerto quando disse: “A Verdade não pode existir em coisas que divergem”.

Vejamos, agora, as referências do Evangelho de Marcos:

Mc 1,9: “Nesses dias, Jesus chegou de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João norio Jordão”.

Mc 1,14: “Depois que João Batista foi preso, Jesus voltou para a Galileia, pregando aBoa Notícia de Deus”.

Marcos tem que Jesus residia em “sua terra” Nazaré, portanto, não é fora de propósitopresumir-se que, por não falar nada dele ter nascido em algum outro lugar, que essa cidade é

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o local onde ele nasceu. Fato que se pode confirmar levando-se em conta a própria fala deJesus:

Mc 6,1-6: “Jesus foi para Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam.Quando chegou o sábado, Jesus começou a ensinar na sinagoga. Muitos que oescutavam ficavam admirados e diziam: 'De onde vem tudo isso? Onde foi que arranjoutanta sabedoria? E esses milagres que são realizados pelas mãos dele? Esse homemnão é o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Esuas irmãs não moram aqui conosco?' E ficaram escandalizados por causa de Jesus.Então Jesus dizia para eles que um profeta só não é estimado em sua própriapátria, entre seus parentes e em sua família. E Jesus não pôde fazer milagres emNazaré. Apenas curou alguns doentes, pondo as mãos sobre eles. E Jesus ficouadmirado com a falta de fé deles”.

Numa outra versão, o trecho destacado do versículo 4 tem o seguinte teor: “Um profetasó é estimado fora da sua terra natal” (Loyola), ou seja, aqui temos o próprio Jesus afirmandoser Nazaré o seu local de nascimento, que também é o sentido de “sua própria pátria” naversão acima.

Ernest Renan (1823-1892), escritor, filósofo e historiador, que, na obra Vida de Jesus,em analisando a infância e a juventude de Jesus, objetivamente disse:

Jesus nasceu em Nazaré (1), pequena cidade da Galileia, que antes desseimportante acontecimento não teve nenhuma celebridade (2). Durante toda asua vida foi conhecido pelo nome de “Nazareno” (3), e só após entrarmos porum atalho bem complicado (4) é que seremos capazes de entender o porquê dalenda que diz ter ele nascido em Belém. Veremos adiante (5) o motivodessa suposição e como ela era a consequência obrigatória do papel messiânicoatribuído a Jesus (6). Ignora-se a data precisa de seu nascimento. Ele ocorreusob o reino de Augusto, provavelmente por volta do ano 750 de Roma (7), ouseja, alguns anos antes do ano 1 da era que todos os povos civilizados datamcomo o dia oficial de seu nascimento (8).______(1) Mat., XIII, 54 e seg.; Marcos, VI, 1 e seg.; João, I, 45-46.(2) Ela não é mencionada nem nos escritos do Velho Testamento, nem em Josefo, nem noTalmude. Mas é nomeada na liturgia de Kalir, para o 9 de ab.(3) Mat., XXVI, 71; Marcos, I, 24; XIV, 67; Lucas, XVIII, 37; XXIV, 19; João, XIX, 19;Atos, II, 22; III, 6; X, 38. Comp. João, VII, 41-42; Atos, II, 22, III, 6; IV, 10; VI, 14;XXII, 8; XXVI, 9. Daí o nome de nazarenos (Atos, XXIV, 5), aplicado durante muito tempoaos cristãos pelos judeus, e que os designa ainda em todos os países muçulmanos.(4) Essa circunstância foi inventada para responder a Miqueias, V, 1. Orecenseamento efetuado por Quirino, ao qual a lenda relaciona a viagem a Belém, data depelo menos dez anos além do ano em que, segundo Lucas, Jesus teria nascido. Os doisevangelistas, de fato, situam o nascimento de Jesus sob o reino de Herodes (Mat., II, 1,19, 22; Lucas, I, 5). Logo, o recenseamento de Quirino só aconteceu após a deposição deArquelau, quer dizer, dez anos após a morte de Herodes, no ano 37 da era de Acio (Josefo,Ant., XVII, XIII, 5; XVIII, 5, 1; II, 1). A inscrição pela qual se tentava outrora estabelecerque Quirino fez dois recenseamentos é reconhecida como falsa (V. Orelli, Insc. Lat., nº623, e o suplemento de Henzen nesse número; Borghesi, Fastos Consulares [aindainéditos], no ano de 742). Quirino pode ter sido núncio por duas vezes na Síria, mas sóhouve recenseamento na segunda nunciatura (Mommsen, Res gestae divi Augusti, Berlim,1865, p. 111 e seg.). O recenseamento, em todo caso, teria sido aplicado às partesreduzidas à província romana, e não aos reinados e tetrarquias, mormente enquantovivesse Herodes, o Grande. Os textos pelos quais se tenta provar que algumas dasoperações de estatística e de cadastro determinadas por Augusto devem ter se estendidoao domínio de Herodes ou não têm a importância que se lhes quer dar ou são de autorescristãos, que tomaram este dado emprestado do Evangelho de Lucas. O que bem prova,aliás, que a viagem da família de Jesus a Belém não tem nada de histórico, que é o motivoa ela atribuído. Jesus não era da família de Davi (ver cap. 15) e, mesmo que fosse, não seconceberia, ademais, que seus pais tivessem sido forçados, por uma operação puramentecadastral e financeira, a ir se inscrever no local de onde seus ancestrais haviam saído milanos antes. Impondo tal obrigação, a autoridade romana teria angariado para sipretensões carregadas de ameaças.(5) Cap. 14.(6) Mat., II, 1 e seg.; Luc., II, 1 e seg. A omissão desse relato em Marcos e as duaspassagens paralelas, Mat., XIII, 54 e Marcos, VI, 1, nas quais Nazaré aparece como “aterra” de Jesus, provam a ausência de tal lenda no texto primitivo que forneceu o esboçonarrativo dos Evangelhos atuais de Mateus e Marcos. É diante dessas objeções

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frequentemente repetidas que se terão acrescentado, quanto ao Evangelho de Mateus,reservas cuja contradição com o resto do texto não era tão flagrante a ponto de obrigar acorreção dos locais que haviam sido descritos sob um ponto de vista muito diferente.Lucas, ao contrário (IV, 16), escrevendo refletidamente, empregou, para ser consequente,uma expressão mais amenizada. Quanto ao quarto evangelista, ele nada sabe da viagem aBelém; para ele, Jesus é simplesmente “de Nazaré”, ou “galileu”, em duas circunstânciasem que seria da maior importância lembrar seu nascimento em Belém (I, 45-46; VII, 41-42).(7) Mateus, II, 1, 19,22; Lucas, I, 5. Herodes morreu na primeira metade do ano 750,correspondente ao ano 4 a.C.(8) Sabe-se que o cálculo q e serve de base à era vulgar foi feito no século VI por Dionísio,o Pequeno. Esse cálculo envolve certos dados puramente hipotéticos.

(RENAN, 2004, p. 99-100, grifo nosso).

Mais claro não precisa: Jesus nasceu em Nazaré é pura lenda colocá-lo nascendo emBelém.

Mc 1,23-24: “Nesse momento, estava na sinagoga um homem possuído por um espíritomau, que começou a gritar: 'Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nosdestruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus!'".

Até mesmo um espírito mau reconhece Jesus como natural de Nazaré, eis o motivo deleo ter chamado de Nazareno. Nas versões: Novo Testamento Loyola, A Bíblia TraduçãoEcumênica, Bíblia Sagrada Santuário, Bíblia Sagrada Ave-Maria e Bíblia do Peregrino, lemos“Jesus de Nazaré”, disso deduzimos que seus tradutores entendem o adjetivo Nazareno éaplicado a quem é natural de Nazaré.

Apenas para curiosidade: se o homem estava possuído por “Um” espírito mau, qual arazão da pergunta “que queres de nós”, uma vez que aqui se denota ser mais de um? E nãovenham com o tal do plural majestático como explicação! Lucas também narra esse episódio(Lc 4,33-34).

Mc 1,21: “Foram à cidade de Cafarnaum e, no sábado, Jesus entrou na sinagoga ecomeçou a ensinar”.

Mc 2,1: “Alguns dias depois, Jesus entrou de novo na cidade de Cafarnaum. Logo seespalhou a notícia de que Jesus estava em casa”.

Mc 3,20: “Jesus foi para casa, e de novo se reuniu tanta gente que eles não podiamcomer nem sequer um pedaço de pão”.

Mc 9,33: “Quando chegaram à cidade de Cafarnaum e estavam em casa, Jesusperguntou aos discípulos: 'Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?'”.

Sem dar nenhuma notícia de que Jesus tenha se mudado, Marcos já tem Jesus comoresidindo em Cafarnaum.

Mc 16,5-6: “Então entraram no túmulo e viram um jovem, sentado do lado direito,vestido de branco. E ficaram muito assustadas. Mas o jovem lhes disse: 'Não fiquemassustadas. Vocês estão procurando Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Eleressuscitou! Não está aqui! Vejam o lugar onde o puseram'”.

O jovem vestido de branco diz à Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé queJesus não estava mais lá no túmulo, pois havia ressuscitado. Este jovem, na visão de Mateusera um anjo, que desceu do céu (Mt 28,2-3), dessa forma, temos que o plano espiritualconfirma que Jesus é de Nazaré e não de Belém.

Seguindo com a nossa análise, vejamos o Evangelho de Lucas:

Lc 1,26-27: “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade daGalileia chamada Nazaré. Foi a uma virgem, prometida em casamento a um homemchamado José, que era descendente de Davi. E o nome da virgem era Maria”.

Lc 2,39-40: “Quando acabaram de cumprir todas as coisas, conforme a Lei do Senhor,

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voltaram para Nazaré, sua cidade, que ficava na Galileia. O menino crescia e ficavaforte, cheio de sabedoria. E a graça de Deus estava com ele”.

Lc 2,51: “Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e permaneceu obediente aeles. E sua mãe conservava no coração todas essas coisas”.

Em todos esses passos é fato incontestável que a família de Jesus morava em Nazaré,inclusive, o anjo enviado para avisar Maria sobre os futuros acontecimentos foi a Nazaré,cidade onde ela morava. O ponto que se há de resolver é que, conforme as supostas profeciaso Messias nasceria em Belém, assim Lucas apresenta como justificativa um fictíciorecenseamento a mando de César Augusto, conforme se vê no passo a seguir.

Lc 2,1-7: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto, ordenando orecenseamento em todo o império. Esse primeiro recenseamento foi feito quandoQuirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se, cada um na sua cidade natal.José era da família e descendência de Davi. Subiu da cidade de Nazaré, na Galileia,até à cidade de Davi, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, suaesposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, se completaram osdias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou, e ocolocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro da casa”.

Vermes tem a seguinte opinião sobre o mencionado recenseamento:

Não há registro de nenhum censo imperial na época de Augusto. Houve umrecenseamento fiscal na Judeia em 6/7 d.C. sob Quirino, governador da Síria,após a deposição de Herodes Arquelau e a transformação de sua etnarquia naprovíncia romana da Judeia. Porém, nenhum censo romano teria sidoimposto a um rei dependente como Herodes, e tampouco Quirino foigovernador da Síria durante a vida de Herodes. Finalmente, mesmo quetenha havido um censo na época do nascimento de Jesus, José não teriasido obrigado, sob as leis romanas, a viajar para a terra ancestral de suatribo, e tampouco Maria teria sido obrigada a acompanhá-lo. Lucas pareceter combinado o censo que de fato houve sob Quirino, cerca de doze anos apóso nascimento de Jesus, com o seu roteiro teológico. (VERMES, 2006, p. 255,grifo nosso).

Além disso, acreditamos que jornalista A. N. Wilson (1950- ), escritor, biógrafo eromancista, tem razão quando diz:

[…] Nenhum historiador antigo, por exemplo, faz a menor alusão aesse recenseamento universal ordenado pelo imperador Augusto. Josefo,em seu Antiguidades, menciona um recenseamento ocorrido na Judeia no ano 6da EC e diz que tinha por finalidade contar cabeças antes do lançamento de umacapitação. A impopularidade desse imposto, e do recenseamento, provocou ainsurreição chefiada por Judas de Gamala (mencionada pelo próprio Lucas nosAtos dos Apóstolos). (3). A finalidade desse recenseamento era puramenteestatística. Não há razão para supor que qualquer uma das pessoas queforam contadas tenha recebido ordem de voltar à aldeia onde algumputativo antepassado teria residido mais de mil anos antes.______3. Atos, 5:37. Vide supra, 26.

(WILSON, 2007, p. 100, grifo nosso).

E dele ainda temos:

[…] O Evangelho, segundo Lucas, fixa-a especificamente numa época em queCésar Augusto exigiu que todos os indivíduos no Império Romano fossemsubmetidos a um recenseamento. Isso aconteceu no tempo em que Quirino eragovernador da Síria(1). Herodes, na época, era rei da Judeia(2). Esse fatoaparentemente estabeleceria com grande precisão o nascimento de Jesus, atédescobrirmos que Herodes faleceu quatro anos antes da era cristã e que

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Quirino não foi governador da Síria durante o reinado de Herodes.Nenhum historiador do Império Romano faz a menor referência a umrecenseamento universal durante o reinado do imperador Augusto, emboraFlávio Josefo nos informe, no seu Antiguidades judaicas, que, de fato, houve umrecenseamento na Judeia no ano 6 da era cristã.____1. Lucas, 2:22. Mateus, 2:1.

(WILSON, 2007, p. 10-11, grifo nosso).

Por outro lado, é difícil acreditar que José se lembrasse de seus antepassados queviveram até mil anos antes dele, ainda mais se levando em conta que, àquela época,provavelmente, não existiam registros nos quais pudesse apoiar-se para saber de sua árvoregenealógica ancestral, que retroagia até o rei Davi. É o que nos afirma Bart D. Ehrman(1955- ):

Os problemas históricos em Lucas são ainda maiores. Para começar, nóstemos registros relativamente confiáveis do reinado de César Augusto, eem nenhum deles há qualquer referência a um censo do império inteiro,para o qual todos teriam de se registrar retornando ao lar de seusancestrais. E como isso poderia ter sido imaginado? José retorna a Belémporque seu ancestral Davi tinha nascido lá. Mas Davi viveu mil anos antes deJosé. Devemos imaginar que no império romano todos deveriam retornarao lar de seus ancestrais de mil anos antes? Se fizéssemos um censomundial hoje e cada um de nós tivesse de retornar à cidade de nossosancestrais de mil anos antes, para onde você iria? Você consegue imaginar aabsoluta perturbação da vida humana que esse tipo de êxodo universal exigiria?E consegue imaginar um projeto desse porte não ser mencionado em nenhumjornal? Não há nenhuma referência a um censo assim em qualquer fonte antiga,a não ser em Lucas. Então por que ele diz que esse censo aconteceu? A respostapode parecer óbvia. Ele queria que Jesus nascesse em Belém, emborasoubesse que era de Nazaré. Mateus também, mas ele fez com queJesus nascesse lá de modo diferente. (EHRMAN, 2010, p. 46, grifo nosso).

São grandes, portanto, os problemas com os quais nos defrontamos, caso façamosopção de seguir as narrativas bíblicas preterindo os registros históricos.

Apenas para deixar registrada outra curiosidade a respeito de Jesus, vejamos oseguinte passo:

Lc 2,41-47: “Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa.Quando o menino completou doze anos, subiram para a festa, como de costume.Passados os dias da Páscoa, voltaram, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, semque seus pais o notassem. Pensando que o menino estivesse na caravana, caminharamum dia inteiro. Depois começaram a procurá-lo entre parentes e conhecidos. Não otendo encontrado, voltaram a Jerusalém à procura dele. Três dias depois,encontraram o menino no Templo. Estava sentado no meio dos doutores,escutando e fazendo perguntas. Todos os que ouviam o menino estavammaravilhados com a inteligência de suas respostas”.

Então, todos nós acreditamos piamente nessa história, entretanto, o estudioso GezaVermes trata essa história sobre os conhecimentos extraordinários de Jesus de doze anos juntoaos doutores da lei como uma lenda (VERMES, 2006, p. 185).

Lc 3,23: “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era,conforme se supunha, filho de José, filho de Eli”.

Não vamos nem entrar no mérito de que em Mateus o pai de José é Jacó, e não Elicomo aqui em Lucas, porquanto tem algo mais interessante para vermos. Observe, caro leitor,que Lucas não quis colocar a mão no fogo sobre quem era verdadeiramente o pai de Jesus,pois dizer que “conforme se supunha”, não é a mesma coisa que afirmar que é. Porém, aquicaímos num outro problema, pois se não for filho carnal de José, e, no caso, pensa-se que é

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filho do Espírito Santo, via de consequência, Jesus também não era descendente de Davi, fatoque, obviamente, não fazia dele o Messias esperado.

Lc 4, 14-16: “Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua famaespalhou-se por toda a redondeza. Ele ensinava nas sinagogas, e todos o elogiavam.Jesus foi à cidade de Nazaré, onde se havia criado. Conforme seu costume, nosábado entrou na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura”.

Ao que tudo indica, aqui já temos Jesus residindo em outra cidade; é bem provável queseja Cafarnaum, como dito por Mateus e Marcos.

Um fato que achamos interessante aqui é que Jesus “levantou-se para fazer a leitura”,porquanto, João afirma que ele “nunca estudou” (Jo 7,15), embora, contraditoriamente, noepisódio da mulher adúltera (Jo 8,1-11), o próprio João tenha colocado Jesus escrevendo nochão (v. 6 e 8).

Lc 23,5-6: “Eles, porém, insistiam: 'Ele está provocando revolta entre o povo, com seuensinamento. Começou na Galileia, passou por toda a Judeia, e agora chegou aqui'.Quando ouviu isso, Pilatos perguntou se Jesus era galileu”.

Galileu, obviamente, por ter nascido na Galileia, região onde se localizava Nazaré,portanto, mais uma afirmativa de que Jesus não era mesmo de Belém, que fica na Judeia. E arespeito do costume de se colocar a denominação da cidade de nascimento junto ao nome dapessoa, vejamos:

Lc 23,50-51: “Havia um homem bom e justo, chamado José. Era membro doConselho, mas não tinha aprovado a decisão, nem a ação dos outros membros. Ele erade Arimateia, cidade da Judeia, e esperava a vinda do reino de Deus”.

Mc 15,42-43: “Ao entardecer, como era o dia da Preparação, isto é, a véspera dosábado, chegou José de Arimateia. Ele era membro importante do Sinédrio, etambém esperava o Reino de Deus. José encheu-se de coragem, foi a Pilatos, e pediu ocorpo de Jesus”.

Jo 19,38: “José de Arimateia era discípulo de Jesus, mas às escondidas, porque eletinha medo das autoridades dos judeus. Depois disso, ele foi pedir a Pilatos para retiraro corpo de Jesus. Pilatos deu a autorização. Então ele foi e retirou o corpo de Jesus”.

Nesses passos temos a prova desse costume na época, é por este motivo que se Jesustivesse nascido em Belém, seria chamado de “Jesus de Belém”; porém, como o chamavamde Jesus de Nazaré, é forçoso, por lógica, ter que aceitar que ele era natural de Nazaré.

Juan Arias (1932- ), padre escritor e jornalista, corrobora o que acabamos de falar:

[…] E hoje tudo leva a crer que Jesus não nasceu em Belém, comoafirmam os evangelhos de Mateus e Lucas (Marcos e João nem menciona seunascimento), mas em Nazaré.

Segundo alguns biblicistas modernos, como Antonio Piñero, a notícia de queJesus nasceu em Belém deve-se à intenção de fazer coincidir o nascimento doMessias com a profecia de Miqueias, tal como aparece na Bíblia, que diz oseguinte: “E tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre os milhares de Judá! Masde ti há de sair aquele que há de reinar em Israel”, justamente um texto citadopor Mateus quando narra o episódio do nascimento.

É a partir daí que Mateus e Lucas constroem o relato do nascimento emBelém. Mas de maneira bem diferente. Mateus fala da ira de Herodes queordena a matança dos inocentes, o que Lucas ignora. Lucas, ao contrário, falade um recenseamento decretado por César Augusto, que seria o motivo de ospais de Jesus se mudarem para Belém, fato que Mateus ignora. E, de fato,parece que não há provas históricas da existência desse censo naquela época enaquele lugar. Crossan diz isso com todas as letras: “Nunca houve um censogeral no tempo de Augusto”. Além do mais, o censo tinha uma finalidade fiscal, ecadastrar alguém longe do seu local de trabalho teria significado um verdadeiro

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pesadelo para a burocracia.O mais provável é que Jesus tenha nascido em Nazaré. De fato, nos

evangelhos ele nunca é chamado de “Jesus de Belém” e sim de “Jesusde Nazaré”, que era como se costumava chamar as pessoas, ou seja,pelo lugar de nascimento ou pelo nome do pai. Neste caso, ele teria sido“Jesus de José”, mas nunca foi chamado assim, provavelmente porque, como sesabe, os evangelistas não davam importância a São José, que é apresentadoacima de tudo como um velho, devido à importância atribuída à virgindade deMaria antes e depois do parto. Curiosamente, o pai de Jesus é o grandedesconhecido nos evangelhos e em toda a tradição cristã. Talvez por issoexistam tantas lendas extraoficiais sobre sua pessoa. (ARIAS, 2001, p. 50-51,grifo nosso).

Devia-se prestar mais atenção no que se tem descoberto a respeito dos costumes dopovo hebreu, porquanto, são, muitas vezes, peças importantes para a interpretação de umtexto.

Lc 24,19: “Jesus perguntou: 'O que foi?' Os discípulos responderam: 'O que aconteceua Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em ação e palavras, diante de Deuse de todo o povo''.

Nazareno, certamente, quer dizer natural de Nazaré, porquanto nas Bíblias Shedd, Ave-Maria, Vozes e Santuário em vez de “Jesus, o Nazareno”, as traduções constam “Jesus deNazaré”. Além disso, fecha-se com o consenso anteriormente falado ao analisamos Mt 2,23.

Lc 4,31: “Jesus foi a Cafarnaum, cidade da Galileia, e aí ensinava aos sábados”.

Lc 7,1: “Depois que terminou de falar todas essas palavras ao povo que o escutava,Jesus entrou na cidade de Cafarnaum”.

Jo 2,11-12: “Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Elemanifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele. Depois disso, Jesus desceupara Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos. E aí ficaram apenasalguns dias”.

Lucas e João mostram que Jesus pregava em Cafarnaum, não que residia lá, comoMateus (4,13) e Marcos (2,1; 3,20; 9,33) dizem, apesar deste último não informar que Jesustenha mudado para essa cidade.

Jo 1,43-46: “No dia seguinte, Jesus decidiu partir para a Galileia. Encontrou Filipe edisse: 'Siga-me'. Filipe era de Betsaida, cidade de André e Pedro. Filipe se encontroucom Natanael e disse: 'Encontramos aquele de quem Moisés escreveu na Lei e tambémos profetas: é Jesus de Nazaré, o filho de José'. Natanael disse: 'De Nazaré podesair coisa boa?' Filipe respondeu: 'Venha, e você verá'”.

Jo 4, 1-3: “Os fariseus ficaram sabendo que Jesus atraía discípulos e batizava mais doque João. (Na verdade, não era Jesus que batizava, mas os seus discípulos). Ao saberdisso, Jesus deixou a Judeia e foi de novo para a Galileia”.

Jo 4,43-45; “Dois dias depois, Jesus foi para a Galileia. Mas o próprio Jesus tinhadeclarado: 'Um profeta nunca é bem recebido em sua própria terra'. Entretanto,quando ele chegou à Galileia, os galileus o receberam bem, porque tinham visto tudo oque Jesus havia feito em Jerusalém durante a festa. Pois eles também tinham ido àfesta”.

Jo 4,46-47: “[...] Ora, em Cafarnaum havia um funcionário do rei que tinha um filhodoente. Ele ouviu dizer que Jesus tinha ido da Judeia para a Galileia. Saiu aoencontro de Jesus e lhe pediu que fosse a Cafarnaum curar seu filho que estavamorrendo”.

Certamente, que as várias citações da região da Galileia se refere à cidade de Nazaré,até mesmo porque Jesus se referindo a si mesmo disse “Um profeta nunca é bem recebido emsua própria terra” (Jo 4,44). E, aqui também, temos, mais uma vez, Jesus sendo reconhecido

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como de Nazaré e não de Belém (Jo 1,45), como se supõe, baseando-se em Mateus e Lucas.

Jo 2,1-2: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e amãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa decasamento, junto com seus discípulos”.

Segundo conseguimos apurar “Caná da Galileia fica localizada a cerca de trezequilômetros ao norte de Nazaré” (CHAMPLIN e BENTES, vol. 1, 1995a, p. 622), portanto, naregião onde Jesus morava, e, conforme estamos vendo, ele nasceu, razão pela qual foi um dosconvidados para a festa de casamento (Jo 2,1-12). Foi nessa cidade que Jesus de Nazaréiniciou o seu ministério (ver Jo 2,11).

Jo 7,25-27: “Algumas pessoas de Jerusalém comentavam: 'Não é este que estãoprocurando para matar? Ele está aí falando em público, e ninguém diz nada! Será queaté as autoridades reconheceram que ele é o Messias? Entretanto, nós sabemos deonde vem esse Jesus, mas, quando chegar o Messias, ninguém saberá de ondeele vem'”.

Que interessante, aqui temos algo nitidamente contraditório, pois se diziam que oMessias viria de Belém (Jo 7,42), como aqui se afirma que “ninguém saberá de onde ele vem”?

Jo 7,40-42: “Ouvindo essas palavras, alguns diziam no meio da multidão: 'De fato, estehomem é mesmo o Profeta!' Outros diziam: 'Ele é o Messias'. Outros ainda afirmavam:'Mas o Messias virá da Galileia? A Escritura não diz que o Messias será dadescendência de Davi e que virá de Belém, povoado de onde era Davi?'”

Jo 7,50-52: “Mas Nicodemos, um dos fariseus, aquele que tinha ido encontrar-se comJesus, disse: 'Será que a nossa Lei julga alguém antes de ouvir e saber o que ele faz?'Eles responderam: 'Você também é galileu? Estude e verá que da Galileia não saiprofeta'”.

Em ambas as passagens se confirma que Jesus é da Galileia, região onde estálocalizada a cidade de Nazaré. Na primeira é até mesmo afirmado, ainda que de formaindireta, que Jesus não é de Belém, fato que outros autores perceberam, como, por exemplo,A. N. Wilson:

[…] Podemos observar, no entanto, que o Quarto Evangelho (de São João)afirma com toda clareza que Jesus não nasceu em Belém e que não faziaparte da linhagem de Davi. (2). Nesse Evangelho, as multidões nãoacreditavam na possibilidade de que ele seja o Messias porque veio da Galileia, enão de Belém. […]______2. João, 7:42.

(WILSON, 2007, p. 99, grifo nosso).

Veremos agora o próprio Mestre dizendo se chamar Jesus de Nazaré:

Jo 18,1-12: “Tendo dito isso, Jesus saiu com seus discípulos, e foi para o outro lado doriacho do Cedron, onde havia um jardim. Ele entrou no jardim com os discípulos. Jesusjá tinha se reunido aí muitas vezes com seus discípulos. Por isso, Judas, que estavatraindo Jesus, também conhecia o lugar. Judas arrumou uma tropa e alguns guardasdos chefes dos sacerdotes e fariseus e chegou ao jardim com lanternas, tochas earmas. Então Jesus, sabendo tudo o que lhe ia acontecer, saiu e perguntou a eles:'Quem é que vocês estão procurando?' Eles responderam: 'Jesus de Nazaré'.Jesus disse: 'Sou eu'. Judas, que estava traindo Jesus, também estava com eles.Quando Jesus disse: 'Sou eu', eles recuaram e caíram no chão. Então Jesus perguntoude novo: 'Quem é que vocês estão procurando?' Eles responderam: 'Jesus deNazaré'. Jesus falou: 'Já lhes disse que sou eu. Se vocês estão me procurando,deixem os outros ir embora'. […]. Então a tropa, o comandante e os guardas dasautoridades dos judeus prenderam e amarraram Jesus”.

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Por duas vezes Jesus se identifica como Jesus de Nazaré, a quem os guardasprocuravam. Podemos ainda corroborar essa identificação trazendo o depoimento de Pedro,que possivelmente representa o pensamento dos outros discípulos. Em três momentosdiferentes, ele disse:

At 2,22: “Homens de Israel, escutem estas palavras: Jesus de Nazaré foi um homemque Deus confirmou entre vocês, realizando por meio dele os milagres, prodígios esinais que vocês bem conhecem”.

At 4,10: “Pois fiquem sabendo todos vocês, e também todo o povo de Israel: é pelonome de Jesus Cristo, de Nazaré, - aquele que vocês crucificaram e que Deusressuscitou dos mortos, - é pelo seu nome, e por nenhum outro, que este homem estácurado diante de vocês”.

At 10,38: “Eu me refiro a Jesus de Nazaré: Deus o ungiu com o Espírito Santo e compoder. E Jesus andou por toda parte, fazendo o bem e curando todos os que estavamdominados pelo diabo; porque Deus estava com Jesus”.

Nota-se a particularidade de que é afirmado que Pedro estava “cheio do Espírito Santo”(Jo 4,8) ao confirmar sobre a sua procedência: “Jesus Cristo, de Nazaré”. Então, se Pedroinspirado não disse “Jesus Cristo, de Belém”, é porque ele, certamente, não procedia dacidade de Davi.

Em relação ao “A Escritura não diz que o Messias será da descendência de Davi e quevirá de Belém, povoado de onde era Davi?” (Jo 7,42), na Bíblia Anotada temos a seguinteinformação: da descendência de Davi. Veja 2Sm 7:12. Belém. Veja Mq 5,2 (p. 1332).

Fomos confirmar o que se tem no passo 2Sm 7,12 e vimos que nele não há previsãoalguma a respeito da vinda de Jesus; na verdade, o que temos é uma profecia a respeito deDavi. Vejamos o teor do passo:

2Sm 7,12-13: “Quando teus dias se cumprirem, e descansares com teus pais, entãofarei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seureino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono doseu reino”.

Incluímos também o versículo 13, para demonstrar que esse descendente de Davi é orei Salomão, reinou Israel 970 a 931 a.C. (Bíblia Shedd, p. 1789) que construiu o Templo deJerusalém. Como sabemos, Salomão é filho bastardo de Davi, fruto de seu adultério comBetsabeia mulher do soldado Urias, cuja morte foi tramada pelo rei Davi, que instruiu a seussoldados para deixá-lo sozinho no front da batalha contra os amonitas.

O interessante é que na própria Bíblia Anotada que cita esse passo (2Sm 7,12-16),encontramos:

Esta grande aliança que Deus, em graça, estabeleceu com Daviincluía as seguintes provisões: (1) Davi teria um filho que o sucederia eestabeleceria o seu reino, v. 12; (2) esse filho (Salomão), e não Davi, construiriao templo, v. 13a; (3) o trono do reino de Salomão seria estabelecido parasempre, v. 13b; (4) embora os pecados de Davi justificassem a disciplina, amisericórdia divina (heb., hesed; veja a nota sobre Is 2:19) seria eterna, vv. 14-15; (5) a casa, o reino e o trono de Davi seriam estabelecidos para sempre (v.16). […] (Bíblia Anotada, p. 415, grifo nosso).

Como distorcem as interpretações visando justificar mitos estabelecidos anteriormente,e não bastasse esse, foi também o que aconteceu com o outro (Mq 5,1 ou 5,2, dependendo datradução). Na verdade, pegaram parte de um texto, que fora de seu contexto, pode dar umaideia falsa do que realmente ele narra. Sobre Mq 5,1 ou 5,2, já falamos anteriormente, láquase no início desse estudo.

Jo 19,19: “Pilatos escrever também um letreiro e mandou colocá-lo no alto da cruz.Nele estava escrito: 'Jesus de Nazaré, o rei dos Judeus'”.

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Teor na versão da Bíblia Ave-Maria e Novo Testamento Loyola; porém, não sãounânimes as traduções quanto à denominação de “Jesus de Nazaré”, na Bíblia TraduçãoEcumênica se lê “Jesus, o Nazoreu” e na Bíblia de Jerusalém se tem “Jesus Nazareu”, e emtodas as outras o que se vê é “Jesus Nazareno” ou “Jesus, o Nazareno”, entretanto, pelo que jávimos até aqui, não nos resta alternativa senão considerar a referência como sendo Jesus deNazaré o nome escrito no letreiro.

Em resumo o que já temos até aqui:

1) Mateus faz Jesus nascer em Belém, local onde morava os seus pais, conta a históriada matança das crianças por Herodes e fuga da família de Jesus para o Egito e ao voltar passaa residir em Nazaré.

2) Para Lucas a família de Jesus morava em Nazaré, e para que Jesus nascesse emBelém apresenta um suposto recenseamento ordenado por César Augusto, pelo qual asfamílias deveriam voltar às cidades de origem dos seus antepassados, mesmo que eles tenhamvivido mil anos antes.

3) Marcos, no início do seu relato, coloca Jesus partindo de Nazaré para ir ao encontrode João Batista, do que se pode concluir que para ele essa era a cidade de nascimento deJesus, pois caso não fosse ele, certamente, teria informado sobre isso.

4) Em João o relacionamento de Jesus com Nazaré acontece quando ele inicia orecrutamento dos seus discípulos, e um deles, Natanael, o reconhece como sendo de Nazaré.

5) Pelo que se depreende dos textos dos Evangelhos o povo, os discípulos, Pilatos e opróprio Jesus todos o reconhecem como de Nazaré, inclusive, não há um só passo em que eleé chamado de Jesus de Belém.

Assim, diante disso tudo, particularmente, concluímos que Jesus é natural de Nazaré enão de Belém como nos querem fazer crer alguns interpretadores bíblicos, certamente, parajustificarem dogmas instituídos pelas suas correntes religiosas ou calcados apenas nastradições.

Antes de finalizar vamos colocar dois pontos, nos quais se verá a opinião de váriosautores, para que você, caro leitor, veja por si mesmo que de tudo quanto foi dito, ainda causapolêmica a questão da cidade de Nazaré ter existido ou não à época de Jesus e se em vez deNazareno não seria Ele um nazireu?

Nazaré existia ou não?

O modo pelo qual os autores dos evangelhos falam de Nazaré não é menoscaracterístico. Seu nome não figura no Antigo Testamento. Os autoresjudeus do século I também nada dizem sobre ela, se bem que eles se façamnotar (particularmente Flávio Josefo) pela amplitude de suas informações sobreo pequeno país que era a Judeia. Ouve-se falar de Nazaré, pela primeiravez, nas fontes que datam do século III. Ora, nos evangelhos, Nazaré échamada de “cidade”. (Mateus, II, 33; Lucas, I, 26; II, 39, etc.) Não parece,portanto, que Nazaré tenha sido uma cidadezinha perdida que pudesseser ignorada por todos os historiadores da Judeia.

Porém, por que se encontra esse nome tantas vezes nos evangelhos? Paraexplicar isso, convém lembrar que no Livro dos Juízes, no Antigo Testamento,fala-se, por duas vezes, que Sansão será o “nazareno de Deus”. A raiz dessapalavra em hebraico, nazir, significa um justo cuidadoso na observância estritade certos ritos. Os autores dos evangelhos não conheciam a Judeia senãopelos textos do Antigo Testamento e achando visivelmente, que“nazareno” significava originário de Nazaré, deram esse nome ao lugardo nascimento do Cristo, sem sequer suspeitar que semelhantelocalidade ou vila não existia na Judeia. (LENTSMAN, 1963, p. 177, grifonosso).

Estive recentemente em Nazaré e fiz exaustivas pesquisas com o propósitode comprovar as declarações contidas nos registros Rosacruzes; a maioria demeus leitores ficará provavelmente surpresa em saber que, ao tempo em queJesus nasceu, não havia cidade ou vila na Galileia com o nome de Nazarée que a cidade que hoje traz este nome, na Galileia, não só é uma cidaderecente mas também veio a ter este nome, por causa da insistência dos

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investigadores em encontrar alguma localidade que tivesse o nome deNazaré, na Galileia. (LEWIS, 2001, p. 57, grifo nosso).

Houve grandes dificuldades na busca de um lugar que correspondesse aonome de Nazaré, na Galileia, visto que nenhuma cidade com este nome foramencionada no Velho Testamento e nenhum dos mapas antigos do tempo doCristo revelava a existência desse local. Um pequeno povoado chamado “en-Nasira”, entretanto, foi localizado bem longe do Mar da Galileia eimediatamente rebatizado “Nazaré” e associado à infância de Jesus. Adescoberta deste povoado en-Nasira ocorreu no terceiro século depois de Cristo,e desde então passou a ser conhecido pelo nome de Nazaré, embora ainda hojecontinuem a faltar quaisquer evidências que justifiquem o uso desse nome. EmMarcos VI: 1,2 diz-se que Jesus voltou a seu próprio país e que Seus discípuloso seguiram e que, quando chegou o Shabat, ele começou a ensinar na sinagoga.No quarto verso do mesmo capítulo, Jesus se refere ao fato de que Ele era umprofeta em Seu próprio país, entre seus próprios parentes e em Sua própriacasa. Essas referências foram interpretadas como sendo relativas a Nazaré, acidade onde muitos estudiosos da Bíblia acreditam que Jesus nasceu e passou ainfância. Ora, se é verdade que Jesus retornou à Sua cidade natal e pregou nasinagoga para grandes multidões, não poderia ter sido em en-Nasira, ou achamada Nazaré; mesmo no segundo e terceiro séculos após o nascimento deJesus, en-Nasira ou Nazaré ainda não tinha uma sinagoga nem erasuficientemente grande para possuir qualquer edificação ampla onde multidõespudessem ter ouvido Jesus pregando, nem havia multidões nas vizinhanças paraouvi-Lo. Portanto, as referências de Marcos à Sua cidade natal não podem tersido relativas a en-Nasira. En-Nasira era tão-somente um povoado em torno deum poço chamado na época de “poço da casa da guarda”, embora, segundodescobri, tenha sido chamado, nos últimos anos, de “Poço de Santa Maria”. Estamudança de nome e a atribuição de significado religioso a um local semimportância da Palestina é bem típica das modificações que estão sendo feitasnaquele país para agradar os turistas.

Procurando nos registros judaicos, vemos que estes confirmam que só noslivros do Novo Testamento, escritos muito após a vida de Jesus, há menção deNazaré como uma cidade da Galileia, e que este local não é mencionado noVelho Testamento, nos escritos históricos de Josefo nem no Talmude. Durante avida de Jesus, a cidade de Jafa era a mais importante na Galileia, sendo a quemais atraía os viajantes e era mais citada nos escritos históricos.

Nos registros da Igreja Católica Romana e nas suas enciclopédias, vemos queo vilarejo en-Nasira era conhecido estritamente como um povoado judeu até otempo de Constantino, havendo referências de ser habitado totalmente porjudeus. Esta pequena aldeia, em volta de um poço, portanto, não poderia tersido o centro da população gentia da Galileia. Hoje em dia há uma pequenaigreja ou capela em Nazaré, a qual visitei, supostamente erigida sobre a grutaonde Maria e José viviam no tempo da anunciação, quando o arcanjo revelou aMaria o iminente nascimento da encarnação do Logos. (LEWIS, 2001, p. 61-63,grifo nosso).

Será chamado Nazareno?

(Mateus 2:23) – “... assim se cumpriu o que foi anunciado pelos profetas:<Ele será chamado Nazareno>”.

Aqui, num pequenino trecho, não só um amontoado de erros, como muitamentira e má fé de Mateus (ou do escriba que fez o texto e atribuiu a ele aautoria do versículo). Mateus especializou-se em inventar “profeciasretroativas” que aconteciam muitos anos (pelo menos 40 anos) depois dosfatos terem sido relatados como acontecido. Como também Mateus inventavamuitas profecias do Antigo Testamento, sem que as citadas profecias realmenteestivessem no Antigo Testamento. Isto porque, não existe um único registrono Antigo Testamento a respeito de Nazaré ou Nazareno. Trata-se deinvencionice de Mateus (ou do escriba que escreveu por ele), escrevendo sobrea vida de Jesus mais de 70 anos após o seu nascimento e após a destruição deJerusalém no ano 70, e tentando fazer coincidir, no ano 70, “profeciasretroativas”, como se elas tivessem realmente se realizado. Aliás, Nazarésequer existia como cidade quando Jesus nasceu. Existia, sim, o lago deGenesaré (Mar de Tiberíades), mas não a cidade de Nazaré, que somenteveio a existir alguns anos (cerca de quinze anos) após Jesus ter nascido.

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Vejamos a má fé de Mateus (ou do escriba que escreveu por ele). Ele afirma,após o ano 70, época da destruição de Jerusalém e da diáspora e extermínio dosessênios, portanto 70 anos depois de Jesus já ter nascido, que 70 anos antesiria se realizar uma “profecia retroativa” e que Jesus iria ser chamado deNazareno.

Uma profecia ao Contrário, relatada depois do fato ter acontecido, passadosmais de 70 anos. Porém, o mais gritante é que além de Nazaré sequerexistir quando Jesus nasceu, sendo impossível, dessa forma, talregistro, Mateus ainda confunde Nazireu com Nazareno, que são coisascompletamente diferentes. (MACHADO, 2004, p. 168-169) (grifo nosso).

Mark Lidzbarski chega a afirmar que, durante a vida de Jesus, nemteria existido um lugar geográfico chamado Nazaré. Contra-argumentando, pode-se dizer que, embora não soubéssemos como era Nazarénos tempos de Jesus, achados arqueológicos confirmam a existênciadaquele povoado (se é que uns precaríssimos abrigos podem serchamado de “povoado”), no período entre cerca de 900 a.C. e 600 d.C., eesses achados incluem também peças datando do reinado de Herodes, o Grande(de 40 a 4 a.C.). Aliás, o comentário pouco lisonjeiro de Natanael, transmitidopelo Evangelho de São João: “De Nazaré pode, porventura, sair coisa que sejaboa?...”, pode ser uma alusão à precariedade do lugarejo, todavia promovida a“cidade” pela Bíblia. Em todo caso, não há nenhum indício de Jesus, Maria eJosé. Somente desde o século XI da nossa era, o nome Nazaré ficou sendocomprovado pela Fonte da Virgem Maria, onde até hoje as mulheres vão buscarágua com a qual enchem suas jarras, como o faziam nos tempos de Jesus...(KELLER, 2000, p. 367, grifo nosso).

Nazareno ou um Nazireu?

Da mesma forma, inexiste qualquer prova histórica ou arqueológica da “fugapara o Egito”, como tampouco existe prova da estada de Jesus em Nazaré. Aliás,a rigor, a Bíblia cita Jesus por muito mais vezes como “nazireu” do que“nazareno”, e “nazireu” pode ter vários significados, mas normalmente nãodefine o “homem de Nazaré”. Essa última interpretação poderia ser deduzidasomente de maneira indireta, de um trocadilho com a palavra hebraica “nezer”= “vara”, veja Isaías 11,1; “Sairá uma vara do tronco de Jessé e uma florbrotará da sua raiz”. De fato, o Evangelho de São Mateus torna a citar o termocontrovertido “nazareno” no contexto de uma profecia: “...e, chegando, habitouuma cidade chamada Nazaré, cumprindo-se desse modo o que tinha sido preditopelos profetas, que seria lá chamado Nazareno” (Mateus 2,23). Isso em nadafacilita as coisas, pois não deixa bem claro a que profetas o texto se refere (anão ser Isaías, autor das palavras supracitadas). Talvez se pretenda estabelecerum certo nexo com o termo “nazireu” (“consagrado a Deus”, qualificação outroraatribuída a Sansão (Juízes 13,5 e 7, 16,17)), que exigiu uma certa ascese porparte da pessoa assim qualificada (ele devia observar determinados tabus);contudo, tal conjetura não deixará de implicar em certos problemas filológicos.Assim, também, aí torna a surgir um sinal de interrogação, e a esse respeitocumpre não silenciar o fato de alguns cientistas interpretarem ospronunciamentos dos Evangelhos, mencionando Nazaré como “cidade dainfância e juventude” de Jesus, como meras construções, relacionadas com otítulo “nazireu”, não muito bem compreendido pelos evangelistas, os quais, porcausa disso, reinterpretam-nos e sumariamente o substituíram por “nazareno”.(KELLER, 2000, p. 366-367).

Em primeiro lugar, devemos tornar claro que o título de Nazareno não queriadizer que a pessoa que o tivesse fosse de uma cidade chamada Nazaré. O títulode Nazareno era dado pelos judeus a pessoas estranhas que não seguiam suareligião e que pareciam pertencer a um culto ou seita secreta que existira aoNorte da Palestina por muitos séculos; podemos verificar na Bíblia Cristã que opróprio João Batista era chamado de Nazareno. Também encontramos muitasoutras referências a pessoas conhecidas como nazarenos. Em Atos XXIV:5,encontramos um homem qualquer sendo condenado como provocador de umarebelião entre os judeus em todo o mundo e sendo chamado de “líder da seitados nazarenos”. Sempre que os judeus entravam em contato com alguém emseu país que fosse de outra religião, e especialmente se tivesse umacompreensão mística das coisas da vida e vivesse de acordo com um código

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ético ou filosófico diferente do judaico, chamavam-no de Nazareno por falta deum nome mais adequado.

Existiu realmente uma seita chamada Os Nazarenos, citada nos registrosjudaicos como uma seita de Primitivos Cristãos ou, em outras palavras, aquelesque eram essencialmente preparados para aceitar as doutrinas cristãs. De fato,os enciclopedistas e autoridades judaicas parecem concordar em que o termoNazareno abrangia todos os cristãos que haviam nascido judeus, que nãodesejavam ou não podiam abrir mão de seu antigo modo de vida, mas quetentavam ajustar as novas doutrinas às antigas. As enciclopédias judaicastambém afirmam ser bastante evidente que os Nazarenos e os Essênios tinhammuitas características em comum, e mostravam, portanto, tendência para omisticismo. Os Essênios e Nazarenos, na verdade, eram considerados heréticospelos judeus cultos, mas existe a seguinte diferença ou distinção no uso destesdois termos: os Essênios não eram tão conhecidos pela população da Palestinacomo os Nazarenos; um homem dificilmente era chamado Essênio a não ser porpessoas bem informadas, que conhecessem a diferença entre Essênios eNazarenos, ao passo que muitos Essênios e membros de outras seitas quelevavam uma vida peculiar ou não aceitavam a religião judaica eram chamadosde Nazarenos.

São Jerônimo, famosa autoridade bíblica, refere-se ao fato de que em seutempo ainda existia entre os judeus, em todas as sinagogas do Oriente, umaheresia condenada pelos fariseus, cujos seguidores eram chamados deNazarenos. Ele disse que estes acreditavam que Cristo, o Filho de Deus, havianascido da Virgem Maria, havia sofrido sob Pôncio Pilatos e ascendido aos céus.“Mas”, disse São Jerônimo, “embora pretendessem ser ao mesmo tempo judeuse cristãos, não eram nem uma coisa nem outra”.

Consultando as mais altas autoridades da Igreja Católica Romana, vemos queo título de Nazareno, aplicado ao Cristo, só ocorre uma vez na versão da Bíbliafeita por Douai, e esta autoridade declara que o termo “Jesus Nazareno” foiuniformemente traduzido como “Jesus de Nazaré”, o que representa um erro detradução, sendo a forma correta “Jesus, o Nazareno”. Em nenhuma parte doVelho Testamento existe a palavra Nazaré descrevendo uma cidade existente naPalestina, mas no Novo Testamento encontramos referências a Jesusregressando a uma cidade chamada Nazaré. Estas referências resultam datradução da frase “Jesus voltando aos Nazarenos” para “Jesus retomando aNazaré”. Um ponto interessante é reforçado pelas autoridades católicasromanas, que dizem que Jesus, embora fosse comumente chamado deNazareno, não pertencia absolutamente àquela seita.

Reunindo os registros judaicos e católicos romanos e comparando-os com asinformações contidas em nossos próprios registros, verificamos que osnazarenos constituíam uma seita de judeus que, embora tentasse seguir osantigos ensinamentos judaicos, acreditava na vinda do Messias, que nasceria demaneira singular e seria o Salvador de sua raça. Depois de iniciado o ministériode Jesus, esses Nazarenos aceitaram Jesus como o Messias e também asdoutrinas que Ele pregava, ao mesmo tempo que continuavam a tentar seguirmuitos fundamentos de sua religião judaica. Os registros judaicos afirmam queos Nazarenos rejeitaram Paulo, o Apóstolo dos Gentios, e que alguns Nazarenossó exaltavam em Jesus o fato de ser um homem justo. (LEWIS, 2001, p. 57-60)

Para efeito de argumentação, vamos conceder o benefício da dúvida e admitirque Mateus estivesse com falhas mentais (pois ele era contemporâneo de Jesuse que quando teoricamente escreveu o seu evangelho, logicamente já tinha maisde 80 anos) e com isso não se lembrou ou “confundiu” que Nazaré (a cidade)não existia quando Jesus nasceu, mas tão somente o lago de Genesaré.

Entretanto, como Mateus pode ter “confundido”, novamente, Nazareno(nascido em Nazaré) com Nazireu (de Nazir), que é um judeu que tomou osvotos de sacrifícios especiais, de não beber vinho, não comer uvas e não cortaros cabelos, que não era o caso de Jesus, pois Jesus era essênio, e como tal eraadepto da eucaristia, do ritual do pão e do vinho, e comia uvas. Não podendo,por isso mesmo, ser um Nazireu.

A profecia do Antigo Testamento a respeito do Nazireu, refere-se a Sansão enão a Jesus. Dessa forma, Mateus ao “confundir” a profecia do AntigoTestamento sobre Sansão, que era Nazireu, que não bebia vinho, não comiauvas e não cortava os cabelos, com Jesus, chamando-o de Nazareno, não é oque se pode dizer como um caso do acaso, quando a má fé e má intenção estão

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bastante claras. Mas o pior de tudo é dizer que cumpriu-se a profecia do AntigoTestamento afirmando que o messias se chamaria Jesus, quando os nomes de“Jesus”, assim como Nazaré, sequer são citados no Antigo Testamento. [...](MACHADO, 2004, p. 169)

NazarenoEsse adjetivo significa “natural de Nazaré”. Essa palavra é usada no Novo

Testamento referindo-se somente a Jesus, o qual tanto assim se chamou quantofoi chamado pelos outros. Ver Mat. 2:23, onde se lê que havia uma predição quedizia que Jesus seria chamado Nazareno. Mas a palavra também é usada noplural, em Atos 24:5, onde está em foco a seita dos “nazarenos”, isto é, osseguidores de Jesus. Isso mostra que Jesus foi chamado de “o nazareno” porparte de outras pessoas, amigas e inimigas, igualmente. Visto que o AntigoTestamento não menciona em parte alguma a cidade de Nazaré, ali também nãose lê qualquer coisa sobre os possíveis nazarenos. Acresça-se a isso que algunsintérpretes têm confundido o significado de nazareno com o significado denazireu (ver Núm. 6:1-21). No entanto, é possível que esteja em vista o termohebraico netser, “ramo”, pois Jesus, em diversos trechos bíblicos é chamado de“renovo de Jessé”, ou seja, alguém pertencente à linhagem de Davi.

[…]O título Nazareno, ainda que para nós seja um título famoso, por causa de

Jesus Cristo, nos dias dele geralmente era usado como termo de menoscabo(ver João 1:45 7:52). No plano terreno, Jesus não foi alguma árvore grandiosa,um filho reconhecido da casa real de Davi; mas tão somente um renovo deJessé. No entanto, sua grande estatura espiritual finalmente propagou a suafama pela terra inteira. Conforme dissemos acima, alguns comentadoresrelacionam a palavra “nazareno” aos indivíduos que, no Antigo Testamento, sãochamados “nazireus” (ver Núm. 6:2; 12:18-20), os quais faziam certos votosdifíceis de serem cumpridos, votos de consagração a Deus. Tais comentadores,pois, aplicam essa ideia a Cristo, imaginando que, na qualidade de nazareno, eleteria o mesmo propósito que tinham os nazireus. Assim interpretam Tertuliano,Jerônimo, Erasmo, Calvino e outros intérpretes modernos. Mas, a despeito dessainterpretação envolver uma aplicação útil, não parece que Mateus quisessedestacar tal coisa, em 2:23 de seu evangelho. Acrescente-se a isso que, tantono hebraico quanto no grego, nazareno e nazireu têm grafia diferente. Tambémhá alguma razão na interpretação que diz que Jesus seria desprezado, comohabitante da obscura cidade de Nazaré. Todavia, não parece ser isso o que oautor sagrado quis destacar nessa passagem. O que ele realmente queria eramostrar que Jesus pertencia à família de Jessé, como o Renovo de Davi, e,secundariamente, que o lugar onde Jesus residiu como criança, e onde tambémdeu início ao seu ministério, fora escolhido por Deus, apesar das diversascircunstâncias que poderiam ter servido de obstáculo a esse ministério.

Quanto à expressão “Jesus de Nazaré”, ver Marc. 10:47; Luc. 24,19. Osespíritos imundos assim chamaram a Jesus (Mar. 1:24; Luc. 4:34), tal como ofizeram os anjos que anunciaram a sua ressurreição (Mar. 16:6). É os trechos deMat. 26:71 e Mar.14:67 mostram que essa expressão foi usada pejorativamentepelos inimigos de Jesus. E acabou sendo dada, como apelido de menosprezo àcomunidade cristã (Atos 24:5). E Jesus continuou a ser vinculado a Nazaré,mesmo após a sua ressurreição, pelos seus discípulos (ver Atos 2:22; 3:6;10:38). (CHAMPLIN e BENTES, vol. 4, 1995d, p. 465).

Após a morte de Herodes, novamente funciona a mediunidade onírica deJosé: em sonhos um anjo manda-o regressar à “terra de Israel”, como aindahoje se diz: ςκ José obedeceu de imediato e (segundo Mateus)dispunha-se a regressar a Belém, quando “ouve dizer” que lá governavaArquelau, filho de Herodes. Instala-se nele o medo. Realmente, à morte deHerodes (4 A. C. ) Arquelau tinha 18 anos; mas como os judeus se opuseram aseu reinado, revoltando-se por não ter sido deposto o sumo sacerdote Joasar,ele mandou matar 3.000 judeus (Josefo, Ant. Jud. XVII, 9, 1). Mas à noite, outrosonho esclarece-o, indicando-lhe que se dirija à Galileia, “a uma cidade chamadaNazaré”. Como estamos vendo, essa cidade constituía para Mateus uma“novidade” absoluta. Parece que José e Maria nem a conheciam. Como conciliarcom as palavras de Lucas, de que eles eram da cidade de Nazaré, isto é, que látinham nascido e residiam normalmente? Teria sido mais fácil dizer que do Egitoregressaram à sua cidade de Nazaré... pois lá eles possuíam casa, a oficina decarpinteiro de José, os parentes e amigos. Entretanto, Mateus desconhece tudo

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isso, mostra-o desejoso de ir para Belém (fazer o quê?) e só o aviso .em sonho.o faz dirigir-se para Nazaré, como se fora um local que eles pisassem pelaprimeira vez. E ainda explica: “para que se cumprisse a profecia, que o chamaNAZOREU”. Nem é “nazareno”...

Esse gentilício é usado quatro vezes por Marcos e duas vezes por Lucas. Maso próprio Mateus emprega duas vezes nazoreu, que é utilizado uma vez porLucas, três vezes por João, e sete vezes por Atos.

Eram assim chamados (nazoreus) os cristãos por volta do ano 60 (At. 24:5).O Talmud denomina Jesus o NOZRI, e chama os cristãos NOZRIM.

Notemos que não há profecia alguma que diga dever o Messias ser chamado“nazareno” nem “nazoreu”. A única frase que poderia ser aplicada seria a deIsaías (11:1) quando diz que “do tronco de Jessé sairá um rebento, e de suasraízes sairá um renovo (= nezêr) que frutificará. E o Espírito de YHWH se deteránele”. Tendo Mateus apresentado Jesus como o último rebento (o renovo) nagenealogia, pode ter feito mentalmente uma aproximação, embora forçada.(PASTORINO, vol. 1, 1964, p. 90)

A Palavra “Nazareno” aparece com mais frequência sob a forma “Nazoreu”(nâshôray e nazôraios, em hebr. e grego). Porém, não se confunda essa palavracom “nazireu”! Com efeito, nos evangelhos temos onze vezes a forma nazoreu(Mt. 2:23 e 26:71; João, 18:5,7, e 19:19; Atos, 2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8;24:5 e 26:9) contra seis vezes a forma “nazareno” (Marc. 1:24; 10:47; 14:67 e16:6, e Luc. 4:34 e 24:19). Mesmo neste local o texto de Mateus varia noscódices entre nazarenus (Vaticano e outros) e nazoreu (Sinaítico e outros).(PASTORINO, vol. 6, 1969, p. 129)

Segundo João (episódio omitido nos sinópticos) Jesus se aproxima da malta epergunta “A quem procuram”. A resposta é rápida: “Jesus, o nazoreu”. Nooriginal não está “nazareno”, forma que só aparece em Marcos (1:24, 10:47;14:67 e 16:6) e Lucas (4:34 e 24:19). A forma “nazoreu” está em Mateus (2:23e 26:71), em Lucas (18:37); em João (18:5 e 7 e em 19:19) e nos Atos (2:22;3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 24:5 e 26:9), podendo reler-se o que escrevemos novol. 1._______(*) Passos estudados: Mt 26:47-56; Marc. 14:43-52; Lc 22.47-53; João, 18:2-12 (N. A.).

(PASTORINO, vol. 8, 1971, p. 70).

Levando-se em conta o que está aqui abordado, sobre esses dois pontos polêmicos,ficamos sem saber para que lado ir, pois se nem os especialistas se entendem, que dirá de nóssimples mortais? Em princípio, mantemos a nossa opinião anterior, por parecer-nos que amaioria das informações tende mais para o que lá concluímos. Certamente, que jamais iremosimpor a nossa maneira de pensar a quem quer que seja, pois se advogamos para nós o direitode livre pensar, somos, moralmente obrigados a dá-lo aos outros.

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A Fuga para o Egito

De todos os quatro evangelistas, apenas Mateus fala sobre esse episódio (2,13-23), queteria acontecido com a família de Jesus, cujo teor transcrevemos:

“Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse:‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito e fica lá até que eu te avise,porque Herodes vai procurar o menino para o matar’. José levantou-se durante a noite,tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte deHerodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: Euchamei do Egito meu filho (Os 11,1)”.

“Vendo, então, Herodes, que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado emandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos de dois anos parabaixo, conforme o tempo exato que havia indagado dos magos. Cumpriu-se, então, oque fora dito pelo profeta Jeremias: Em Ramá se ouviu uma voz, choro e grandeslamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação, porque já nãoexistem! (Jer 31,15)”.

“Com a morte de Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egito, edisse: ‘Levanta-te, toma o menino e sua mãe e retorna à terra de Israel, porquemorreram os que atentavam contra a vida do menino’. José levantou-se, tomou omenino e sua mãe e foi para a terra de Israel. Ao ouvir, porém, que Arquelau reinavana Judeia, em lugar de seu pai Herodes, não ousou ir para lá. Avisado divinamente emsonhos, retirou-se para a província da Galileia e veio habitar na cidade de Nazaré paraque se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Será chamado Nazareno”. (texto:Bíblia Sagrada, Ed. Ave Maria).

Por que será que somente Mateus cita tal acontecimento? Achamo-lo por demaisimportante, para que fosse esquecido pelos outros três evangelistas. Ou será que tal episódiode fato não teria ocorrido? Questionamentos que saltam à nossa mente, que, por estar livredas imposições dogmáticas das religiões tradicionais, nos leva a aplicar integralmente o:“examinai tudo, retende o que é bom” (1Ts 5,21).

Segundo Werner Keller (1909-1980), em seu livro E a Bíblia tinha razão...(p. 366),“inexiste prova histórica ou arqueológica da ‘fuga para o Egito’”, e para não ficar só nisso,acrescenta: “tampouco existe prova da estada de Jesus em Nazaré”. Vê-se que por aí já nosdeparamos com esses dois espinhosos problemas.

Alguns tradutores explicam essa narrativa como “um paralelo anterior na infância deMoisés, descrita pelas tradições rabínicas: segundo estas, quando o nascimento da criança foianunciado, por meio de visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar ascrianças recém-nascidas” (Bíblia de Jerusalém, p. 1705-1706).

Com respeito à morte das crianças, conta-nos Keller:

[…] Assim, hoje em dia usa-se de um cuidado bem maior do que outrora naapreciação da historicidade do infanticídio de Belém e, antes, tende-se aconsiderar o relato em questão como uma tentativa, condicionada à mentalidadecontemporânea que visa realçar a importância de Jesus, pelos meios usados naépoca (para tanto, existe ainda uma certa autenticidade histórica, representadapelas atitudes efetivamente tomadas por Herodes em sua contenda com osfariseus, por causa do Messias. Veja o fim do capítulo precedente. No entanto,há ainda mais. O relato do infanticídio de Belém estabeleceu um nexo entreJesus e Moisés, pois também desse último a Bíblia conta como escapou,milagrosamente, de perseguições idênticas, sofridas por parte do faraó egípcio(Êxodo 1.15, 2.10) (KELLER, 2000, p. 366)

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Quando o anjo aparece a José, dizendo para ele e sua família voltarem para Israel“porque morreram os que atentavam contra a vida do menino”, notamos que isso não fazsentido, pois, no início, a referência que se faz é a Herodes; o correto seria então dizer“morreu” e não “morreram”.

O primeiro aviso em sonho, José o segue fielmente; quando do segundo, demonstrareceio de voltar para Judeia, lugar indicado pelo anjo. Isso não condiz com seu comportamentoanterior, pois, pensando em deixar Maria, um anjo lhe aparece em sonho avisando que o filhoque ela levava na barriga é “obra do Espírito Santo”, já que ele ouve a voz do anjo e nãoabandona Maria. Apesar de relatado, esse fato não se coaduna com a cultura machista daquelaépoca. E até a bem pouco tempo atrás se isso acontecesse aqui em nossa sociedade mesmo amulher seria, com certeza, repudiada. E duvidamos que um homem, pela cultura daquelaépoca, ou mesmo dessa de pouco tempo atrás, descobrindo que sua futura mulher estivessegrávida e esse filho não fosse dele, ainda ficaria com ela...

Se José teve receio de ir para a Judeia porque estava sendo governada por um filho deHerodes, então, por que motivo foi para a Galileia que também estava sendo governada poroutro filho dele, no caso, Herodes Antipas? Não estaria correndo o mesmo risco?

Observamos que a primeira vez que Mateus cita o nome de alguma cidade relacionada aJesus, diz de Belém da Judeia, local onde nasceu. Quando do retorno do Egito fala que Josénão quis voltar para a Judeia, do que podemos concluir que deveria ser especificamente acidade de Belém. Cidade essa que, segundo se deduz das narrativas desse evangelista, teriasido o local onde Jesus viveu até que fosse para o Egito; só após a sua volta é que passou amorar em Nazaré. Entretanto, Lucas deixa muito claro que Maria e José viviam em Nazaré(1,26; 2,4); foram a Belém para se alistar no recenseamento; lá nasceu o menino e terminadoos dias de purificação, o levaram ao Templo, em Jerusalém, para cumprirem as prescrições daLei: “todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor” (Ex 13,2.15), após oque “voltaram à Galileia, para Nazaré, sua cidade” (Lc 2,39), afirmando, um pouco mais àfrente, que “foi a Nazaré, onde tinha crescido” (Lc 4,16).

É uma divergência para a qual não encontramos nenhuma explicação plausível, a nãoser de que a razão poderia estar mesmo com Lucas, já que também Marcos dá a entender queJesus, até o dia em que foi batizado por João Batista, morava em Nazaré (Mc 1,9) e queMateus, seguindo o que acreditavam na época, procurou adaptar a pessoa de Jesus àsprofecias sobre o Messias; por isso teria modificado a descrição dos acontecimentos, parasustentar esse pensamento. Entretanto, conforme já informamos anteriormente, não existeprova arqueológica da estada de Jesus em Nazaré, permanecendo, portanto, essa dúvida.

Que os bibliólatras nos desculpem, mas, após esse estudo, a visão que passamos a terdessa passagem não é coisa de que irão gostar, com certeza.

Primeiro, a “fuga” para o Egito é uma situação criada para tentar aplicar o que dizemser uma profecia de Oseias. Entretanto, ao analisarmos a passagem citada (Os 11,1),percebemos claramente que ela nem mesmo é uma profecia; trata-se, na verdade, de umacoisa já acontecida. Observe que o verbo “chamar” está no pretérito; portanto, fato dopassado. E mais a expressão “meu filho”, utilizada na passagem, se refere ao povo de Israel enão a uma pessoa em particular.

Segundo, a matança das crianças justificaria uma outra profecia, agora de Jeremias(31,15). Só que, como acontecido com a anterior, essa passagem também não é uma profecia;está relacionada à tomada de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia, que leva o povode Israel, que acabara de subjugar, cativo para o seu país; daí “o pranto de Raquel (sepultadaem Ramá, perto de Belém) pelos filhos massacrados ou deportados pelos caldeus depois dadestruição de Jerusalém em 596 a.C.,...”. (Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, p. 1062).

Terceiro, a ida para Nazaré foi forjada para relacioná-la ao cumprimento de mais umaoutra profecia que teria sido dita por vários profetas. Entretanto, a realidade é bem outra, poisnão há nenhuma profecia em que, pelo menos, um só profeta tenha dito: “Será chamadoNazareno”; é pura invenção do autor bíblico.

Sabemos que, o que estamos dizendo poderá chocar alguns; entretanto, aos que, acimade tudo, buscam a verdade, será ouvido de bom grado. A verdade que entendemos, nãonecessita ser imposta a ferro e fogo; ao contrário, quando alguém quer, por todos os meios,fazer com que os outros aceitem a sua verdade, é porque, com certeza, não está com ela, pois

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a verdade é algo tão cristalino que não necessita de nada mais, a não ser que seja mostrada.Os sábios a sentirão, enquanto que os ignorantes a contestarão.

O que nos conforta é que não estamos sozinhos nessa busca. Recentemente,encontramos um artigo, onde parte do texto tem a ver com o que estamos tratando aqui, doqual transcrevemos:

(...) E o segundo problema ainda mais grave, é que provavelmente Jesusnão nasceu em Belém. ‘Há quase um consenso entre os historiadores deque Jesus nasceu em Nazaré’, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro deEstudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte... Assim como onascimento em Belém, a terrível execução de recém-nascidos ordenada porHerodes e a fuga de Maria e José para o Egito também teriam sido uma ‘licençapoética do texto’, dessa vez para simbolizar que Jesus é o novo Moisés – já queessa narrativa é bem semelhante ao que se contava da vida do patriarcabíblico”. ‘Isso não foi uma criação maquiavélica para glorificar Jesus, era apenaso estilo literário da época’, diz Vitório. (CAVALCANTE, 2002, p. 43) (grifo nosso).

Sobre Jesus ter nascido em Nazaré e não em Belém é um assunto que, certamente,merece um estudo específico, o que fizemos no texto: “Jesus de Belém ou de Nazaré?”.

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Bodas de Caná: o primeiro sinal

Esse é o título da passagem em que João narra o primeiro milagre de Jesus. Apesar detemos refletido muito sobre ela, ainda não tínhamos nenhuma explicação que justificasse aatitude de Jesus em transformar água em vinho, para embebedar os convidados da festa deque participava.

Vejamos o episódio:

“No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesusestava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa de casamento, junto comseus discípulos.

Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse:

- Eles não têm mais vinho!

Jesus respondeu:

- Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou.

A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo:

- Façam o que ele mandar.

Havia aí seis potes de pedra de uns cem litros cada um, que serviam para os ritos depurificação dos judeus.

Jesus disse aos que serviam:

- Encham de água esses potes.

Eles encheram os potes até a boca.

Depois Jesus disse:

- Agora tirem e levem ao mestre-sala.

Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água transformada em vinho, sem saberde onde vinha. Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles que tiraram a água.Então o mestre-sala chamou o noivo e disse:

- Todos servem primeiro o vinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servemo pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora.

Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou seus sinais. Ele manifestou a suaglória, e seus discípulos acreditaram nele.

Depois disso, Jesus desceu para Cafarnaum com sua mãe, seus irmãos e seusdiscípulos. E aí ficaram apenas alguns dias”. (Jo 2,1-12).

Ao lermos essa passagem, podemos achar que Jesus tenha faltado com respeito à suamãe quando diz: “Mulher, que existe entre nós? Minha hora ainda não chegou”. Hoje, seusássemos a expressão “mulher”, talvez pensaríamos ser mesmo um desprezo, entretanto,naquela época correspondia à palavra “senhora”, com que, atualmente, tratamos com respeitoas mulheres. Jesus não estava negando qualquer relação entre Ele e sua mãe. A explicaçãoque encontramos foi que o sentido seria “em si nós nada temos a ver com esta falta de vinho.Minha hora de fazer milagres ainda não chegou. Contudo, a teu pedido, antecipo esta hora”(Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 1385).

Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o vamos encontrar no que apessoa encarregada da festa disse para o noivo: Todos servem primeiro o vinho bom e,quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom atéagora.

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Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua missão, podemosdizer que o “vinho bom guardado até agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aosrecebidos anteriormente, por meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de piorqualidade,. Até mesmo porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época nãoestava preparada para receber vinho de melhor qualidade, se assim podemos nos expressar.

O que podemos confirmar com o que, por várias vezes, foi dito por Jesus: “aprendesteo que foi dito, eu porém vos digo”, deixando-nos bem claro que os ensinamentos anterioresnão eram, daquele momento em diante, suficientes para “encher” o coração dos homens daverdade do Pai. Fatos que nos levam à conclusão de que Jesus veio trazer coisas novas. Osfariseus ficavam inconformados por Jesus não seguir as prescrições da Lei Mosaica, ao queobtiveram como resposta: “Não se coloca remendo de pano novo em pano velho, nem vinhonovo em odres velhos” (Mt 9,16-27).

Podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em comparação com esta imensa glória, oesplendor do ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2Cor 3,10), e “Dessa maneira éque se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de sua fraqueza e inutilidade – aLei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi introduzida uma esperança melhor pela qualnos aproximamos de Deus” (Hb 7,18-19).

Assim, não temos dúvida alguma quanto à superioridade dos ensinamentos de Jesus,principalmente se entendermos o sentido dessa passagem como o que estamos propondo.

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João Batista é mesmo Elias?

Pelo fato de não aceitarem a reencarnação, muitas pessoas têm defendido a tese deque João Batista não teria sido Elias em nova encarnação. Evidentemente, partem de umainterpretação pessoal, completamente associada ao dogmatismo religioso em que vivem,resultando em algo que pouco ou nada tem a ver com os textos bíblicos.

Faremos um estudo para ver qual é a realidade, esperando responder à pergunta inicial;mas, como sempre, em relação a esses, de quem falamos, não alimentamos a mínimapretensão de demovê-los de suas ideias com o que resultar desse estudo. A única coisa que irámodificar-lhes o pensamento será, por ironia do próprio destino, só mesmo a reencarnação, jáque ela é uma lei natural, que não pergunta a ninguém se nela crê ou não, para que lhe sujeitee se cumpra o “é necessário nascer de novo” (Jo 3,3).

Vamos analisar algumas passagens bíblicas para elucidar o caso.

O povo hebreu esperava a volta de Elias, confiante nas duas profecias do AntigoTestamento, que afirmam sobre o seu retorno. Propositalmente, as colocaremos na ordeminversa, ou seja, da mais nova para a mais antiga. Leiamo-la:

Eclo 48,10: “tu que foste designado nas ameaças do futuro, para apaziguar a cóleraantes do furor, para reconduzir o coração dos pais aos filhos e restabelecer astribos de Jacó”.

Nos versículos 1 a 12 do capítulo 48 do livro Eclesiástico, escrito por volta do ano 200a.C., está-se falando de Elias; então, a afirmativa de que “foste designado nas ameaças dofuturo” refere-se a uma profecia a respeito da volta de Elias. Na sequência, diz-se que um dosobjetivos de sua volta seria “para reconduzir o coração dos pais aos filhos”, exatamente o queiremos ver o anjo Gabriel afirmando a Zacarias sobre o personagem João Batista (Lc 1,14-18).E, certamente, corrobora o que encontramos em Malaquias (Ml 3,22-24[2]), que lhe é anterior,contendo essa mesma afirmação, conforme veremos um pouco adiante. E o versículo 11 iniciaafirmando “Felizes os que te virem...”, o que dá conotação de algo a acontecer no futuro.

A segunda passagem, onde, na verdade, se encontra a primeira profecia, está no últimolivro do A.T, que é o de Malaquias, que, segundo pudemos levantar, viveu cerca de 400 anosa.C. (Dicionário Prático - Barsa, p. 165); assim ele disse:

Ml 3,1: “Vejam! Estou mandando o meu mensageiro para preparar o caminho àminha frente. De repente, vai chegar ao seu Templo o Senhor que vocês procuram, omensageiro da Aliança que vocês desejam. Olhem! Ele vem! - diz Javé dos exércitos”.

Mais à frente, esse mensageiro é identificado, no mesmo texto do próprio profetaMalaquias:

Ml 3,23-24 ou 4,5-6: “Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venhao grandioso e terrível Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais voltem paraos filhos e o coração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei opaís à destruição total”.

O passo seguinte é quando, no tempo de Herodes, rei da Judeia, um sacerdotechamado Zacarias recebe a visita de um anjo, que lhe anuncia que sua mulher Izabel, apesarde estéril, daria a luz a uma criança, cujo nome deveria ser João (Lc 1,5-13); caracterizandoessa criança, o anjo Gabriel declara a Zacarias:

Lc 1,15-18: “[...] ele vai ser grande diante do Senhor. Ele não beberá vinho, nem

2 Em algumas traduções bíblicas essa passagem é citada como Ml 4,4-6.

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bebida fermentada e, desde o ventre materno, ficará cheio do Espírito Santo. Elereconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus. Caminhará à frente deles,com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhose os rebeldes à sabedoria dos justos, preparando para o Senhor um povo bemdisposto”.

Afirmando que a criança virá “com o espírito e o poder de Elias”, se usa da linguagemde época, para confirmar que aquela criança seria o espírito de Elias reencarnado. Isso seconfirma quando, na sequência, é dito “a fim de converter os corações dos pais aos filhos”,exatamente como consta em Eclesiástico (Eclo 48,10) e como também disse Malaquias naprofecia que anteriormente citamos (Ml 3,22-24 ou 4,4-6), na qual também se afirmacategoricamente que Elias haveria de voltar: “eu mandarei a vocês o profeta Elias”.

No dia em que o menino foi levado para ser circuncidado, Zacarias, mudo por castigoimposto pelo anjo, escreve, numa tábua, o nome que deveria ser dado a seu filho: João. Fezisso porque queriam dar à criança o mesmo nome do pai ou de algum parente. Logo após,Zacarias profetiza dizendo várias coisas (Lc 1,67-79), e dentre elas destacamos:

Lc 1,76-77: “E a você, menino, chamarão profeta do Altíssimo, porque irá à frente doSenhor, para preparar-lhe os caminhos, anunciando ao seu povo a salvação e perdãodos pecados”.

Isso confirma, primeiro, a profecia anterior de Malaquias e, segundo, o que o anjoGabriel havia dito a Zacarias, como para não deixar dúvidas de quem era aquele menino,embora, nos dias de hoje, haja os que, por puro dogmatismo, não enxergam isso.

Na narrativa, em que se relata o início da pregação de João Batista, lemos:

Lc 3,3-6: “E João percorria toda a região do rio Jordão, pregando o batismo deconversão para o perdão dos pecados, conforme está escrito no livro do profeta Isaías:‘Esta é voz daquele que grita no deserto: preparem o caminho do Senhor, endireitemsuas estradas. Todo vale será aterrado, toda a montanha e colina serão aplainadas; asestradas curvas ficarão retas, e os caminhos esburacados serão nivelados. E todohomem verá a salvação de Deus’”.

Como se nota, João, mais uma vez, está sendo relacionado a uma profecia a respeitoda vinda do Mensageiro.

Mais à frente, João Batista é preso por Herodes, e da prisão, envia seus discípulos aJesus. Logo após esse encontro de Jesus com os discípulos de João, ele, o Mestre, em sereferindo à “voz que clama no deserto” diz:

Mt 11,7-15: “O que é que vocês foram ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento?O que vocês foram ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas aqueles que vestemroupas finas moram em palácios de reis. Então, o que é que vocês foram ver? Umprofeta? Eu lhes afirmo que sim: alguém que é mais do que um profeta. É de Joãoque a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente; ele vaipreparar o teu caminho diante de ti'. Eu garanto a vocês: de todos os homens que jánasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céué maior do que ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu sofreviolência, e são os violentos que procuram tomá-lo. De fato, todos os Profetas e a Leiprofetizaram até João. E se vocês o quiserem aceitar, João é Elias que devia vir.Quem tem ouvidos, ouça”.

Na afirmação de que “é de João que a Escritura diz”, Jesus está relacionando JoãoBatista exatamente à profecia de Malaquias a respeito do envio do mensageiro (Ml 3,1),identificado pelo próprio profeta como sendo Elias (Ml 3,22-24), conforme já vimos.

Há, aqui, uma frase que nunca vimos ninguém comentar; entretanto, ela é muitosingular. Estamos falando da frase: “Desde os dias de João Batista até agora”, expressão que,por lógica, só faria sentido se João Batista não fosse contemporâneo de Jesus. Masacreditamos que é realmente isso que Jesus, de forma figurada, está afirmando o que, emoutras palavras, poderia ser dito assim: “Desde os dias de Elias até agora”, já que, na

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sequência, ele arremata claramente que João é Elias, aquele mesmo que havia de vir. Nacerteza de que muitos não acreditariam, completa: “quem tem ouvidos, ouça”, ou seja, quemquiser acreditar que acredite: João Batista é mesmo o Elias reencarnado.

Vale também observar que Jesus nunca impôs sua maneira de pensar a ninguém,exemplo que muitos não se preocupam e nem fazem questão de seguir; principalmente,aqueles que tentam incutir na cabeça dos outros suas interpretações pessoais dos textosbíblicos; seriam eles os falsos profetas de quem Jesus sempre falava? Em Mt 7,21-23 Ele nosdá algumas pistas sobre quem poderiam ser esses falsos profetas: usariam o nome dele para:(1) profetizar; (2) expulsar demônios e (3) fazer muitos milagres. Será que é de alguns líderesreligiosos atuais que Jesus está se referindo? Fica a resposta por sua conta, caro leitor.

Como explicar que João Batista seja o maior de todos os homens, mas que no “Reino doCéu” ele é o menor? Somente com a possibilidade de evolução individual de cada um de nós.Se isso não for verdade, haveremos de, forçosamente, acreditar que Deus age comparcialidade, contrariando a afirmação de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34), oque faria de Sua “justiça” uma justiça por demais humana, privilegiando algumas pessoas emdetrimento de outras.

Em outra passagem Jesus volta, novamente, a afirmar sobre João ser Elias. Ei-la:

Mt 17,1-13: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, os irmãos Tiago e João, e oslevou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles: oseu rosto brilhou como o sol, e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisso lhesapareceram Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra, edisse a Jesus: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas:uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias’. Pedro ainda estava falando, quandouma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra, e da nuvem saiu uma voz que dizia:‘Este é o meu Filho amado, que muito me agrada. Escutem o que ele diz’. Quandoouviram isso, os discípulos ficaram muito assustados, e caíram com o rosto por terra.Jesus se aproximou, tocou neles e disse: ‘Levantem-se, e não tenham medo’. Osdiscípulos ergueram os olhos, e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Aodescerem da montanha, Jesus ordenou-lhes: ‘Não contem a ninguém essa visão, atéque o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos’. Os discípulos de Jesus lheperguntaram: ‘O que querem dizer os doutores da Lei, quando falam que Elias deve virantes?’ Jesus respondeu: ‘Elias vem para colocar tudo em ordem. Mas eu digo a vocês:Elias já veio, e eles não o reconheceram. Fizeram com ele tudo o que quiseram. E oFilho do Homem será maltratado por eles do mesmo modo’. Então os discípuloscompreenderam que Jesus falava de João Batista”.

Transcrevemos a passagem por completo para podermos melhor explicá-la. Os espíritosMoisés e Elias aparecem no monte Tabor e conversam com Jesus, fato que Pedro, Tiago e Joãotestemunham (e ainda dizem que os mortos não se comunicam...). Os discípulos, lembrando-se das profecias a respeito da volta de Elias, ficam intrigados; daí pensaram: se Elias estáaqui, então como na Escritura é dito que ele voltaria? Em consequência pedem uma explicaçãoa Jesus: “O que querem dizer os doutores da Lei, quando falam que Elias deve vir antes?”. Aresposta de Jesus sobre isso é categórica: “Elias já veio, e eles não o reconheceram”. Fato quepor si só se explica porque o espírito que animou Elias esteve reencarnado como João Batista;entretanto, nem todos o reconheceram. É por isso que no texto consta “eles”, os doutores daLei, e não “ninguém”, que abrangeria o desconhecimento por parte de todo mundo, inclusivedos apóstolos, de que João era Elias. Quanto aos apóstolos, podemos dizer que apenasqueriam essa confirmação por parte de Jesus, pois já supunham que João era mesmo Elias, jáque não teriam feito essa pergunta se não cressem na reencarnação.

Será interessante vermos essa passagem pela narrativa de Marcos; leiamo-la:

Mc 9,1-13: “E Jesus dizia: 'Eu garanto a vocês: alguns dos que estão aqui, nãomorrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com poder'. Seis dias depois, Jesustomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e os levou sozinhos a um lugar à parte,sobre uma alta montanha. E se transfigurou diante deles. Suas roupas ficarambrilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira no mundo as poderia alvejar.Apareceram-lhes Elias e Moisés, que conversavam com Jesus. Então Pedro tomou a

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palavra e disse a Jesus: 'Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: umapara ti, outra para Moisés e outra para Elias'. Pedro não sabia o que dizer, pois elesestavam com muito medo. Então desceu uma nuvem e os cobriu com sua sombra. E danuvem saiu uma voz: 'Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz!' E, de repente,eles olharam em volta e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles.Ao descerem da montanha, Jesus recomendou-lhes que não contassem a ninguém oque tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Elesobservaram a recomendação e se perguntavam o que queria dizer 'ressuscitardos mortos'. Os discípulos perguntaram a Jesus: 'Por que os doutores da Lei dizemque antes deve vir Elias?' Jesus respondeu: 'Antes vem Elias para colocar tudo emordem. Mas, como dizem as Escrituras, o Filho do Homem deve sofrer muito e serrejeitado. Eu, porém, digo a vocês: Elias já veio e fizeram com ele tudo o que queriam,exatamente como as Escrituras falaram a respeito dele'".

Será que o “ressuscitar dos mortos” aí equivale a reencarnar? Os discípulos discutiamsobre o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” e, ao que parece, não chegaram a umdenominador comum; assim, querendo um esclarecimento, perguntam a Jesus sobre a voltade Elias. Obviamente, como estavam conversando sobre ressurreição dos mortos, e nessaconversa sai o nome de Elias, é porque, certamente, tinham Elias como morto e não como umarrebatado.

Muito interessante o que pudemos ver quanto ao teor do versículo 13, em duas outrastraduções bíblicas bem antigas. Na Bíblia Paulinas (1957) e na Bíblia Barsa (1965), nesseverso consta o seguinte:

Mc 9,13: “Mas digo-vos que Elias já veio (e fizeram dele quanto quiseram) comoestá escrito dele”.

A diferença entre os textos bíblicos pode ter sido porque o que está aqui entreparênteses é, certamente, uma glosa. Conforme o Dicionário Bíblico, glosa “são os acréscimosfeitos a um texto para explicá-lo, corrigi-lo e adaptá-lo. De modo geral colocados à margempelos autores, as glosas são progressivamente inseridas no texto até pelos próprios copistas”.(MONLOUBOU e DU BUIT, 1997, p. 328). Assim, temos o texto original, sem a glosa: “Masdigo-vos que Elias já veio como estava escrito dele”, ou seja, corrobora as duas profecias, jácitadas.

Embora tudo isso quanto colocamos, até aqui, seja claro aos que não estãoencabrestados por sua liderança religiosa, ainda continuarão aparecendo dogmáticos comargumentos contrários a essa verdade bíblica, colocando Jesus como mentiroso, já que foi Elequem disse que João era Elias, e não nós, os Espíritas, fato que não há como contestar.

Falta-nos ainda fazer uma análise da passagem que relata a morte de João Batista; é oque faremos agora; mas, primeiro, leiamo-la:

Mt 14,7-11: “Então Herodes prometeu com juramento que lhe daria tudo o que elapedisse. Pressionada pela mãe, ela disse: 'Dê-me aqui, num prato, a cabeça de JoãoBatista'. O rei ficou triste, mas por causa do juramento na frente dos convidados,ordenou que atendessem o pedido dela, e mandou cortar a cabeça de João naprisão. Depois a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e esta a levou paraa sua mãe”.

Considerando que a reencarnação está diretamente associada à lei de causa e efeito, amorte de João Batista é mais um fato que se ajusta ao nosso conjunto de provas, pois elemorreu exatamente da mesma forma que, quando estava encarnado como Elias, fez pereceros sacerdotes de Baal: teve a cabeça cortada. Vejamos o relato:

1Rs 18,40: “Então Elias disse a eles: ‘Agarrem os profetas de Baal. Não deixem escaparnenhum’. E eles os agarraram. Elias fez os profetas de Baal descer até o riachoQuison, e aí os degolou”.

1Rs 19,1: “Acab contou a Jezabel o que Elias tinha feito e como tinha matado a fiode espada todos os profetas”.

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E para que ninguém diga que a lei de causa e efeito não é bíblica, como ao gosto dosdogmáticos, apresentamos para sustentação do nosso entendimento as seguintes passagens:

Jó 4,8: “Pelo que eu sei, os que cultivam injustiça e semeiam miséria, são esses que ascolhem”.

Jo 8,34: “Jesus respondeu: ‘Eu garanto a vocês: quem comete o pecado, é escravo dopecado’”.

Mt 26,52): “Jesus, porém, lhe disse: ‘Guarde a espada na bainha. Pois todos os queusam a espada, pela espada morrerão’”.

Gl 6,7: “Não se iludam, pois com Deus não se brinca: cada um colherá aquilo que tiversemeado”.

Há uma passagem em que Jesus ressalta a lei de causa e efeito ao estabelecer umacorrelação entre a doença de uma pessoa como consequência de, anteriormente, ter “pecado”.É o caso de um paralítico, que assim se encontrava há trinta e oito anos, que foi curado numdia de sábado. Pouco tempo depois Jesus o encontra no templo e lhe diz: “Olha que já estáscurado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior” (Jo 5,14). Não resta dúvida que,perante essa fala de Jesus, podemos concluir que a paralisia desse homem estava diretamenterelacionada a um “pecado” cometido por ele, embora, pelo texto não dê para sabermos se foiou não de uma outra vida. Jesus ainda lhe adverte que se pecar outra vez a doença poderá serpior, reafirmando essa lei.

Vamos agora analisar as principais objeções que se levantam contra João Batista serElias reencarnado. Iremos dividi-las em dois grupos; um específico quanto a essa questão e ooutro mais genérico, onde argumentam contra a reencarnação, dizendo que não é bíblica e queJesus nunca pregou tal coisa. Convém ressaltar que as genéricas, não raro, têm sido usadascomo rota de fuga e de compensação, perante a inocuidade das objeções específicas.

1 - Elias não poderia ter reencarnado porque não morreu, mas foi arrebatado.

Se João, o Batista, fosse mesmo Elias reencarnado, Elias teria de ter morridopara reencarnar. Ora, sabemos que Elias nunca morreu, pois foi arrebatado vivoao céu (2Rs 2,11). Perguntamos aos espíritas qual o texto da Bíblia queconfirma a morte de Elias? A resposta é: nenhum. Elias não morreu. Será que osespíritas aceitariam a Bíblia como um livro inspirado, ou vão torcer o significadodo texto?

O grande problema é que muitas pessoas acreditam piamente em tudo que consta daBíblia, como se, realmente, ela fosse, “capa a capa”, de inspiração divina. Certamente, o seriase não houvesse nela a mínima contradição; no entanto, podemos ver que elas existem; massó percebem isso os que estão livres das “viseiras dogmáticas”. No presente caso, acontecemvárias. Vejamo-las:

a) Gn 3,19: “[...] tu és pó e ao pó tornarás”.

Elias, caso tivesse sido arrebatado, não teria voltado ao pó conforme o que Deusestabeleceu aqui nessa passagem como coisa que acontecerá a todo ser humano.

b) 1Cor 15,50: “Isto afirmo, irmãos, que carne e sangue não podem herdar oreino de Deus, [...]”.

Se Elias foi arrebatado, certamente que foi para o reino dos céus no corpo físico, ouseja, com sua carne e seu sangue, fato que vem contrariar o que está aqui dito nesse passo.

c) Jo 3,13: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, asaber, o Filho do homem”.

Se o arrebatamento de Elias for verdadeiro, então ele subiu ao céu, e antes do queJesus, o que contradiz essa fala de Jesus, que foi a única pessoa que havia subido ao céu, eninguém mais, conforme suas próprias palavras.

d) Hb 9,27: “[...] aos homens está ordenado morrerem uma só vez [...]”.

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Se Elias não morreu - nem uma única vez -, fica evidente que essa passagem não secumpriu.

e) At 10,34: “[...] Reconheço por verdade que Deus não faz acepção depessoas; [...]”.

Explica-nos o Houaiss que acepção é: “escolha, predileção por alguém; inclinação,tendência em favor de pessoa(s) por sua classe social, privilégios, títulos etc.”.Consequentemente, se o tal do arrebatamento aconteceu a Elias, há evidente contradição como texto aqui citado. E, por outro lado, considerando que Tiago disse que “Elias é homem fracocomo nós” (Tg 5,17), qual seria então, a razão desse suposto privilégio de Elias, já que ele éigual a nós?

f) Jo 6,63: “O espírito é que vivifica; a carne para nada aproveita; [...]”.

Na possibilidade de Elias ter sido arrebatado, ele foi “em carne” para o mundoespiritual; mas isso é estranho em função do “a carne para nada se aproveita”;porquanto, nessa passagem, fica claro que o Espírito é que é o mais importante.

g) Jo 4,24: “Deus é Espírito, [...]”.

Agora, sim, é que as coisas se tornaram mais incoerentes, uma vez que Deus, sendoespírito - essa é a nossa semelhança para com Ele -, certamente vive em seu reino nessacondição. Entretanto, Elias teria que viver em corpo físico, caso tivesse sido arrebatado. Se forverdade o que disse Jesus, de que o “reino dos céus está dentro de vós” (Lc 17,21),então ele não é um lugar, mas um estado de consciência, ficando, portanto, semqualquer sentido alguém ser arrebatado fisicamente.

h) 2Cr 21,12: “Então lhe chegou às mãos uma carta do profeta Elias”.

Nesse livro, o de Crônicas, está se afirmando que Elias envia uma carta a Jorão (formaabreviada de Jeorão), fato que comprova que ele não foi arrebatado coisíssima nenhuma, umavez que o envio dessa carta aconteceu cerca de dez anos depois do seu supostoarrebatamento, o que comprovamos com: “De acordo com a cronologia de 2Rs, Elias tinhadesaparecido antes do reinado de Jorão de Israel (2Rs 2; 3,1) e, portanto, antes de Jorão deJudá (2Rs 8,16; cf. no entanto 2Rs 1,17)” (Bíblia de Jerusalém, p. 607). A não ser que ocorreio daquela época não tenha sido tão eficiente quanto o atual e tenha atrasado a entregadessa carta.

Ainda temos o tradutor Russell P. Shedd (1929- ), teólogo evangélico, que assim tentaexplicar o passo 2Cr 21,12:

Elias já havia subido aos céus antes da entrega da sua carta (cf. 2Rs3,11), que soaria como uma voz de condenação vinda do além. Elias talvezprofetizara os crimes de Jeorão, com os castigos que lhe sobreviriam, à suafamília e à sua nação. Elias, também, foi formidável oponente de Jezabel, mãede Atalia, e sogra de Jeorão. (Bíblia Shedd, p. 640) (grifo nosso).

A sua hipótese de que a carta “soaria como uma voz de condenação vinda do além” é,para nós, algo inusitado saindo da boca de um evangélico.

Com apenas a informação de que “Elias já fora trasladado ao céu quando esta carta foientregue a Jeorão”. (Bíblia Anotada, p. 586), sem maiores considerações, para, talvez, nãoterem que admitir o que Shedd coloca como uma possibilidade.

É em 2Rs 2,11 que se narra o suposto arrebatamento de Elias, fato que causadivergência mesmo entre os teólogos; vejamos a opinião de uma equipe de tradutorescatólicos e protestantes: “O texto não diz que Elias não morreu, mas facilmente se podechegar a essa conclusão” (Bíblia de Jerusalém, p. 509).

2 – No monte da transfiguração, quem apareceu foi Elias e não João Batista, comoera de se esperar se João fosse a última encarnação de Elias.

Se João Batista fosse a reencarnação de Elias, aquele que teria aparecido nomonte da transfiguração, deveria ser João Batista e não Elias (Mt 17,1-6). Pois

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de acordo com a doutrina espírita: a última pessoa reencarnada é que deveaparecer.

Obviamente que, como um princípio geral, isso está certo; o que não se deve égeneralizar, pois, de acordo com a Doutrina Espírita, o que acontece é isso: “Os Espíritos quese tornam visíveis se apresentam, quase sempre, sob as aparências que tinham quandovivos, e que pode fazê-los reconhecer”. (KARDEC, 1993h, p. 108). A expressão “quasesempre” retira o caráter genérico, abrindo a possibilidade de os espíritos apresentarem-se naforma em que as pessoas, às quais se dirigem, possam reconhecê-los; assim, “Podendo tomartodas as aparências, o Espírito se apresenta sob a que melhor o faça reconhecível, se tal é oseu desejo”. (KARDEC, 2007b, p. 146). Dessa forma, se o espírito apresentou-se como Elias enão como João Batista, é porque ele queria se fazer reconhecer como Elias e não como João;foi isso o que aconteceu.

Portanto, pela Doutrina Espírita, há casos em que o espírito pode se manifestar com aaparência de qualquer outra encarnação, desde que tenha evolução moral para isso. Operispírito, como sendo o corpo espiritual, pode ser moldado à vontade do espírito, uma vezque ele possui entre suas propriedades a da plasticidade, que, com o poder do pensamento,permite ao espírito assumir uma outra aparência, mas sempre com a aparência de uma desuas encarnações. É o que se pode, inclusive tirar dessa fala de Kardec:

É assim, por exemplo, que um Espírito se faz visível a um encarnado quepossua a vista psíquica, sob as aparências que tinha quando vivo na épocaem que o segundo o conheceu, embora haja ele tido, depois dessaépoca, muitas encarnações. Apresenta-se com o vestuário, os sinaisexteriores - enfermidades, cicatrizes, membros amputados, etc. - que tinhaentão. Um decapitado se apresentará sem a cabeça. Não quer isso dizer quehaja conservado essas aparências, certo que não, porquanto, como Espírito, elenão é coxo, nem maneta, nem zarolho, nem decapitado; o que se dá é que,retrocedendo o seu pensamento à época em que tinha tais defeitos, seuperispírito lhes toma instantaneamente as aparências, que deixam deexistir logo que o mesmo pensamento cessa de agir naquele sentido. Se, pois,de uma vez ele foi negro e branco de outra, apresentar-se-á como branco ounegro, conforme a encarnação a que se refira a sua evocação e à que setransporte o seu pensamento. (KARDEC, 2007e, p. 323) (grifo nosso).

O perispírito, por ser totalmente maleável, terá a aparência que o espírito queira lhedar, pela força do seu pensamento, conforme, por aqui, se confirma:

[…] Mas a matéria sutil do perispírito não possui a tenacidade, nem a rigidezda matéria compacta do corpo; é, se assim nos podemos exprimir, flexívele expansível, donde resulta que a forma que toma, conquanto decalcada na docorpo, não é absoluta, amolga-se à vontade do Espírito, que lhe pode dar aaparência que entenda, ao passo que o invólucro sólido lhe oferece invencívelresistência.

Livre desse obstáculo que o comprimia, o perispírito se dilata ou contrai,se transforma: presta-se, numa palavra, a todas as metamorfoses, deacordo com a vontade que sobre ele atua. Por efeito dessa propriedade doseu envoltório fluídico, é que o Espírito que quer dar-se a conhecer pode, emsendo necessário, tomar a aparência exata que tinha quando vivo, até mesmocom os acidentes corporais que possam constituir sinais para o reconhecerem.(KARDEC, 2007b, p. 81-82) (grifo nosso).

Quanto mais evoluído for um espírito, mais facilmente conseguirá dirigir sua vontadepara moldar o perispírito na aparência que desejar. É o que Kardec nos explica:

[…] O Espiritismo nos faz compreender como podem os Espíritos achar-seentre nós. Comparecem com seu corpo fluídico ou espiritual e sob aaparência que nos levaria a reconhecê-los, se se tornassem visíveis.Quanto mais elevados são na hierarquia espiritual, tanto maior é neles opoder de irradiação. É assim que possuem o dom da ubiquidade e que podem

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estar simultaneamente em muitos lugares, bastando para isso que enviem acada um desses lugares um raio de suas mentes. (KARDEC, 2007c, p. 416)(grifo nosso).

No caso de João Batista, Jesus disse que entre os nascidos de mulher ele era o maior,assegurando, portanto, sua condição de espírito evoluído, embora Tiago tenha dito o contrário,fato que já citamos.

3 - A Bíblia fala que João Batista teve um ministério parecido com o de Elias (Lc1,17). Este versículo será completamente esclarecido se comparado com a históriade Elias e Eliseu (2Rs 2,9-15).

João Batista cumpriu funcional e profeticamente o ministério de Elias, poisentendemos o texto da seguinte maneira: João Batista, deveria fazer o seuministério dentro do espírito ministerial de Elias (Ml 4,5-6; Lc 1,17).

Em relação ao versículo que diz que João Batista ia no espírito de Elias (Lc1,17), a Bíblia não diz que João Batista ia com o espírito de Elias. Existe umagrande diferença entre ir no espírito e ir com o espírito de Elias. A palavra nosignifica no mesmo ímpeto, semelhante. Para provar essa colocação, vamos vercomo João Batista e Elias eram semelhantes.

JOÃO BATISTA ELIASPerseguido por uma mulher(Herodias) e por um rei (Herodes).(Mt 14,3-5 e Mc 6,18-20)

Foi perseguido por uma mulher (Jezabel) epor um rei (Acabe). (1Rs 19,1-3 e 1Rs21,20)

Usava uma capa de pelos. (Mt 3,4) Usava também uma capa. (1Rs 19,19)Era intrépido. (Lc 3,7) Também era intrépido. (1Rs 18,27)Foi o último profeta. (Lc 16,16) Simboliza os profetas.

De doze livros bíblicos consultados [3], apenas quatro deles usam o “no”, o que, emtermos percentuais, representa apenas 33% do total. Consequentemente, na maioria consta otermo “com”, e se nisto prevalecer a voz da maioria, então o argumento aqui enfocado cai porterra.

Quanto à questão de ministério semelhante, é apenas uma tentativa inepta para quenão fique evidenciada a ideia da reencarnação, uma vez que não é isso o que consta da Bíbliae nem mesmo poder-se-ia interpretar a passagem dessa maneira, uma vez que Jesus nãodeixou dúvidas ao dizer que “João é Elias que devia vir”. Se a intenção da profecia fossemesmo indicar um “profeta semelhante”, bastaria a Malaquias usar a mesma expressãoempregada em Dt 18,18, onde se diz: “Suscitarei um profeta semelhante a ti”.

Por outro lado, se, às vezes, argumentam a não existência da reencarnação, pois essapalavra não consta da Bíblia, pelo mesmo motivo podemos aplicar à palavra “ministério”, quese usou na frase: “A Bíblia fala que João Batista teve um ministério parecido com o de Elias”.Ademais os que usam desse argumento e acreditam na Trindade, apenas provam falta decoerência ou, quiçá, excesso de esperteza em utilizar apenas de passagens que lhes convém.

Vejamos agora a mencionada história de Elias e Eliseu:

2Rs 2,9-15: “Depois que passaram o rio, Elias disse a Eliseu: ‘Peça o que você quiser,antes que eu seja arrebatado da sua presença’. Eliseu pediu: ‘Deixe-me como herançadupla porção do seu espírito’. Elias disse: ‘Você está pedindo uma coisa difícil. Em todocaso, se você me enxergar quando eu for arrebatado da sua presença, isso que pedelhe será concedido; caso contrário, não será concedido’. E, enquanto estavam andandoe conversando, apareceu um carro de fogo com cavalos de fogo, que os separou um dooutro. E Elias subiu ao céu no redemoinho. Eliseu olhava e gritava: ‘Meu pai! Meu pai!Carro e cavalaria de Israel!’ Depois não o viu mais. Então Eliseu pegou sua própriatúnica e a rasgou em duas partes. Pegou o manto de Elias, que havia caído, e voltoupara a margem do Jordão. Segurando o manto de Elias, bateu com ele na água,dizendo: ‘Onde está Javé, o Deus de Elias?’ Bateu na água, que se dividiu em duaspartes. E ele atravessou o rio. Ao vê-lo, os irmãos profetas, que estavam a certa

3 Ver relação nas referências bibliográficas

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distância, comentaram: ‘O espírito de Elias repousa sobre Eliseu’. Então foram aoseu encontro, se prostraram diante dele”.

Para o espírito de Elias repousar sobre Eliseu, há de ter havido a morte do tesbita. Deigual modo vemos, nos dias de hoje, ocorrendo com inúmeras pessoas, esse fenômeno deespírito repousar, o que para nós não é outra coisa senão a influência de um espíritodesencarnado sobre um encarnado. Mas exigir que àquela época entendessem dessa forma épedir muito, com certeza.

A relação das semelhanças, entre os dois profetas, está mais para se confirmar queJoão Batista é mesmo Elias do que para qualquer outra coisa.

Por outro lado, a profecia de Malaquias é clara quanto à promessa do envio de Elias,pois o cita nominalmente, e não alguém semelhante a ele como mostramos, e nem Jesus disseque João era semelhante a Elias, como querem os dogmáticos, justamente para fugirsorrateiramente da ideia da reencarnação.

4 - João Batista disse claramente que não era Elias.

Em alguns passos parece haver uma ideia de reencarnação, mascombatemos tal ideia com a passagem bíblica: “Então, lhe perguntaram: Quemés, pois? És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu o profeta? Respondeu: Não”. (Jo1,21). Assim, é o próprio João Batista que nega tal fato.

O que ocorre é que, quando o espírito passa a habitar um corpo físico, ele perdetemporariamente a lembrança de suas outras vidas; daí ser perfeitamente normal a respostanegativa de João Batista à pergunta se ele era Elias. Por outro lado, aí ficaremos num dilema,pois em quem devemos acreditar: em Jesus que afirmou categoricamente que João Batista eraElias; ou no próprio João que disse não ser? De nossa parte estamos com Jesus, e pronto!

Mas a lembrança de outras vidas pode surgir de uma hora para outra, o que,facilmente, poder-se-á confirmar lendo a obra do Dr. Ian Stevenson (1918-2007),Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birth Marks and Birth Defects,(Vol. I: Birthmarks, 1200 páginas e vol. II: Birth Defects and Other Anomalies, 1100 páginas)e a sinopse desse livro, Where Reincarnation and Biology Intersects: A Synops. Nessa obra oautor relata 225 casos de crianças que se lembraram de uma outra vida dos, nada menos,2600 investigados por ele. A pesquisa do Dr. Stevenson, na opinião do pesquisador brasileiro,Dr. Hernani de Guimarães Andrade (1913-2003):

Pessoalmente, consideramos essa obra do Dr. Stevenson como uma das maisimportantes e indiscutíveis evidências de apoio à ideia da reencarnação. É aculminação das investigações acerca de casos de reencarnação, devido à qualpreconizamos vir a ocorrer dentro de poucos anos o total reconhecimento dareencarnação como uma lei biológica da natureza. (ANDRADE, 2000, p.74) (grifo do original).

Os que se apegam demais à negação, não se dão conta de que, se naquele tempo nãoacreditassem que uma pessoa, que havia vivido, pudesse viver novamente num outro corpo,não haveria sentido nessa pergunta feita a João Batista, fato que comprova que, àquela época,se acreditava na reencarnação, um dos significados para a palavra ressurreição. E, para eles, ofato de Elias ter que voltar, inclusive num novo corpo, incontestavelmente era coisa pacífica noseio da população; isso porque, se assim não fosse, não teria havido razão para terem sidoenviados sacerdotes e levitas para fazerem esse tipo de pergunta; veja o leitor que o povotinha plena consciência da reencarnação, pois havia a certeza de que ele, João Batista, era areencarnação de outro profeta, embora não tivessem a certeza de qual dos profetas ele era areencarnação; daí a razão da pergunta, mandada a ele ser formulada: “Tu és Elias?”. (Jo1,21).

Além disso, no Velho Testamento, temos um versículo que nos induz a concluir daexistência de nossas vidas passadas: Sb 8,19-20: “Eu era um jovem de boas qualidades etive a sorte de ter uma boa alma, ou melhor, sendo bom, vim a um corpo sem mancha”.

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(Sb 8,19-20), quanto à lembrança iremos usar dos argumentos do amigo de Jó, que lhe disse:“Somos de ontem, e nada sabemos” (Jó 8,9). E é óbvio que o contexto é outro, porém serefere a um passado remoto. É com ele que se pode explicar o porquê de João Batista ternegado ser Elias, pois não se lembrava de sua encarnação como o Tesbita. Entretanto, emboraele não soubesse quem ele foi em encarnação anterior, tinha plena consciência da missão quedeveria cumprir (Jo, 1,23), ao afirmar que vinha realizar o que dissera Isaías (Is 40,3).

Se João Batista não for mesmo Elias, então os cristãos que assim acreditam deveriammudar de religião, já que é exatamente por esse motivo, ou seja, falta de cumprimento dasprofecias, que, para os judeus, Jesus não é o Messias e, por conseguinte, o judaísmo é quedeveria ser a religião própria para abrigá-los. Já que, profeticamente, a vinda de Jesus teriaque ser precedida da vinda de Elias, para anunciar a vinda do Messias.

5 – A alegação de que Elias seja João Batista não procede, tanto pelo contexto dasEscrituras quanto pela pregação dele.

Quando o "Elias reencarnado" viu a Jesus, exclamou: “Eis o Cordeiro deDeus, que tira o pecado do mundo”. Para ele, que viria restaurar todas as coisas,é Jesus, e não nós através de sucessivas vidas, que pagamos o preço pelosnossos pecados. A revelação completa que hoje está na Bíblia confere com o queJoão Batista trouxe, hoje não precisamos mais oferecer cordeiros em expiação,Cristo, o Cordeiro de Deus, hoje, é a nossa páscoa (1Cor 5,7). Como oscordeiros do Velho Testamento expiavam os pecados?? Como eles deveriamser?? Pedro responde em sua carta: "Sabendo que não foi com coisascorruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira deviver, que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com precioso sangue,como de um cordeiro sem defeito e sem mancha, o sangue de Cristo" (1Pe18,19).

Apesar de João Batista ter dito “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo1,29), o fato é que ele também disse que “Eu vos batizo com água, para arrependimento;mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias nãosou digno de levar”. (Mt 3,11). Portanto, em se considerando que o próprio João disse queJesus é mais poderoso que ele, não pode prevalecer sua opinião à de Jesus. Reputamos aoMestre a autoridade suprema para a qual devem convergir nossas atenções e prioridades.Neste caso, como Jesus identifica, claramente e sem rodeios, a identidade espiritual de JoãoBatista, torna-se de importância secundária o que possa advir de seus discípulos, que venha acontradizer a qualquer de seus ensinos, uma vez que: “Nenhum discípulo está acima domestre”. (Mt 10,24). Portanto, preferimos crer que a palavra final cabe a Jesus e não aPedro, Paulo, João Batista ou a qualquer outro, no sentido de João Batista ser mesmo Elias,tanto pelo contexto das escrituras quanto pela pregação dele a seus discípulos, para os quaisensinava claramente sobre os “mistérios do Reino de Deus”. Os mesmos que, por fim,“compreenderam que Jesus lhes tinha falado a respeito de João Batista” (Mt 17,13).

Quanto à questão de que “o sangue de Jesus lavou nossos pecados”, trata-se de maisuma opinião pessoal de autores bíblicos, contrária ao que Ele pregou. “A cada um segundosuas obras” (Mt 16,27), a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do juízo final (Mt25,31-46), são passagens que asseguram que, realmente, somos nós mesmos que nossalvamos. Os discípulos apenas transferiam a Jesus o papel da vítima do holocausto daspráticas ritualísticas dos judeus, quando matavam um novilho, sem defeito, para a expiaçãodos pecados do povo. Diremos como Paulo de Tarso: “se Jesus morreu pelos nossos pecados:comamos e bebamos”, pois já estamos salvos. Entretanto, essa absurda ideia contém umacontradição, uma vez que, pelo costume da época, os pecados perdoados eram osanteriormente cometidos em relação ao momento do ritual. Não havia, portanto, nenhumarelação para com os pecados futuros. Podemos confirmar isso em “... Sua morte aconteceupara o resgate das transgressões cometidas no regime da primeira aliança; ...” (Hb 9,15) Porconseguinte, a crer nessa expiação dos pecados por Jesus, haveremos de arrumar outro Cristopara pagar pelos nossos, tomando-se como ponto de partida os ocorridos da sua morte até osdias de hoje. Outra opção é, quem sabe, ficar aguardando a vinda de um próximo “cordeiro”?E como fica o “não peques mais”? (Jo 5,14; 8,11).

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6 – João não era Elias, mas “o” Elias, ou seja, alguém com as qualidades de Elias.

Ainda em nossos dias usamos esse estilo de expressão: "Nunca mais surgiráum Rui Barbosa". "O Ronaldinho é um verdadeiro Pelé". São termoscomparativos. [Se acreditais na vinda de um Elias], "e, se quiserdes dar crédito,ele é o Elias que havia de vir" (Mt 11.14).

Por suas mensagens vibrantes e seu corajoso desempenho diante desituações difíceis, Elias tornou-se símbolo dos profetas. Moisés, por exemplo, erasímbolo da Lei (Lc 16.31). As profecias sobre a vinda de Elias não secontradizem. Muito pelo contrário. Vejam: Malaquias 4.5: "Eis que eu vos envioo profeta Elias, antes que venha o dia grande e terrível do Senhor; e convertereio coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais; para que eu nãovenha e fira a terra com maldição". Lucas 1.15-17: "Porque será grande diantedo Senhor, e não beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do EspíritoSanto, já desde o ventre de sua mãe. E converterá muitos dos filhos de Israelao Senhor, seu Deus. E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, paraconverter o coração dos pais aos filhos e os rebeldes, à prudência dos justos,com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto". Logo, as profecias davinda de Elias se cumpriram em João Batista. Portanto, Elias veio na pessoa deJoão Batista. É esta a real interpretação de Mateus 11.14 e 17.10-13.

Os que assim argumentam se esquecem de mencionar que a frase "nunca mais surgiráum Rui Barbosa" não é sinônima de "nunca mais surgirá o Rui Barbosa", da mesma forma quecorreto é "Ronaldinho é um verdadeiro Pelé" e não "Ronaldinho é o verdadeiro Pelé". Por estemotivo não consideramos que seja de uma boa lógica concluir que a expressão "ele é oElias", seja o mesmo que dizer "ele é um Elias". Basta, para isso, observar atentamentecomo Jesus se expressa, de modo a não deixar sobre isso a menor sombra de dúvida:

Mt 11,10: “É de João que a Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro àtua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti'“.

Mt 17,12: “Mas eu digo a vocês Elias já veio, e eles não o reconheceram”.

E, além disso, não adianta se apegar demais a esse pormenor, tendo em vista que aexpressão “é o Elias” (Mt 11,14) não consta de todas as traduções bíblicas como, porexemplo: Bíblia Pastoral – Paulus e Escrituras Sagradas – Novo Mundo. Nas edições SBTB eSBB já encontramos “é este o Elias”, e na Paulinas (1957, 1977 e 1980), na Bíblia Barsa,Bíblia Anotada – Mundo Cristão e na Bíblia Shedd, já lemos “ele mesmo é o Elias”. Fica claroque, na maioria delas, o entendimento é objetivo, quando se afirma, embora de maneira umpouco diferente, que João Batistas é mesmo Elias, e não uma comparação, como querem osantirreencarnacionistas.

Além das Bíblias que acabamos de citar, quanto ao fato de usarem o “ele mesmo éElias” (Mt 11,14), que insistentemente afirmamos ao longo deste estudo, ainda podemosacrescentar a tradução de Louis-Isaac Le Maître de Sacy (1613-1684):

“Se quiserdes compreender o que vos digo, ele mesmo é o Elias que há de vir”.

Essa versão consta no Evangelho Segundo o Espiritismo (KARDEC, 2007c, p. 92), noqual Kardec utilizou-se dos textos bíblicos da tradução francesa da Bíblia de Sacy (KARDEC,2007c, p. 26).

Podemos ainda apresentar a tradução do professor Carlos Torres Pastorino (1910-1980), ex-sacerdote formado em Teologia e Filosofia, por um Seminário Católico em Roma,catedrático em grego, hebraico e latim, em a Sabedoria do Evangelho, vol. 3, (1964c, p. 13),que é a seguinte:

“E se quereis aceitar (isto), ele mesmo é Elias que estava destinado a vir”.

Pastorino, portanto, corrobora a tradução de Sacy, quanto ao uso do “ele mesmo”, que,no texto bíblico, em se referindo a João, não deixa margem a mirabolantes exegese, para fugirda realidade bíblica de que João Batista foi mesmo Elias reencarnado.

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Tudo nos leva a crer que essa deve ser a tradução correta, que reflete o texto originaldisponível, que foi mudado, justamente para escamotear a ideia da reencarnação, pois, comela, o fiel salva a si próprio; não precisa, via de consequência, de líder que venha abrir a“porta do reino dos céus”, para que ele possa entrar. Essa simples suspeita tornou-se umaconvicção diante desta explicação:

A tradução do vers. 14 não coincide com as comuns. Mas o grego ébem claro: kai (e) ei (se) thélete (quereis) decsásthai (aceitar, inf. pres. ) autós(ele mesmo) estin (é) Hêlías (Elias) ho méllôn (part. presente de mellô,destinado, "o que estava destinado") érchesthai (inf. pres.: a vir).

A Vulgata traduziu: "et si vultis recipere, ipse est Elias qui venturus est", emque o particípio futuro na conjunção perifrástica dá o sentido de obrigação oudestino do presente do particípio méllôn; acontece que o latim ligou num sótempo de verbo (venturus est) o sentido dos dois verbos gregos (ho méllônérchesthai). Com essa tradução, porém, o sentido preciso do originalficou algo "arranhado". Se a tradução fora literal, deveríamos ler, na Vulgata(embora com um latim menos ortodoxo): "ipse est Elias debens venire", o quecorresponde exatamente à nossa tradução: "ele mesmo é Elias quedevia (estava destinado) a vir". Levados pela tradução da Vulgata, ostradutores colocam o futuro do presente (que deverá vir), quando a ação énitidamente construída no futuro do pretérito. (PASTORINO, vol. 3, 1964c, p.16) (grifo nosso).

A velha questão da tradução sempre se torna um problema para o entendimento dotexto bíblico, além de não termos certeza absoluta de que o que ali está escrito correspondede fato ao texto primitivo.

Por outro lado, colocar Elias como corajoso é, no mínimo, falta de conhecimento bíblico,pois após ele degolar os profetas de Baal, foge, como se diz popularmente, com “o rabo entreas pernas”, de Jezabel, mulher de Acab, sétimo rei de Israel (875-853), que promete matá-lopor conta disso (1Rs 19,1-3). No máximo, no nosso entender, ele deveria ser considerado umsanguinário covarde, face a sua atitude de matar e fugir.

Aliás, tomando das próprias palavras dos contraditores podemos dizer “Logo, asprofecias da vinda de Elias se cumpriram em João Batista. Portanto, Elias veio na pessoa deJoão Batista”, uma vez que o espírito, que animava esses dois personagens, era o mesmo, ouseja, João Batista era Elias em nova encarnação. Dessa forma a profecia de Malaquias, na qualDeus prometeu enviar Elias, foi completamente cumprida. Aos que não acreditam nisso,devem apresentar-nos uma boa desculpa para justificar que Deus não tenha enviado Eliascomo prometeu, mas uma outra pessoa no lugar dele, tornando-O um enganador.

Há também algumas objeções genéricas que merecem ser comentadas:

1 - Os judeus não criam em reencarnação, e sim na ressurreição dos mortos (Mc6,14-16 e Lc 9,7-8).

Será que é isso mesmo a verdade? Analisemos para constatar. Tomemos as passagenscitadas:

1ª) Mc 6,14-16: “O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome tinha-se tornadofamoso. Alguns diziam: ‘João Batista ressuscitou dos mortos. É por isso que os poderesagem nesse homem’. Outros diziam: ‘É Elias’. Outros diziam ainda: ‘É um profeta comoos profetas antigos’. Ouvindo essas coisas, Herodes disse: ‘Ele é João Batista. Eumandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!’".

Interessante a argumentação de que Jesus fazia milagres pelos poderes de João Batistaque agia sobre Ele. Isso é ressurreição do corpo físico? Não! Mas, então, o que é? É o queconhecemos por influência espiritual. Uma pessoa morre e, ressuscitada em espírito, passa ainfluenciar uma pessoa encarnada. Portanto, a ideia de ressurreição, nesta passagem, nadatem a ver com aquela ressurreição do final dos tempos, aceita pelos dogmáticos. Ressuscitar,nesse passo, é voltar à condição espiritual.

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2ª) Lc 9,7-9: “O governador Herodes ouviu falar de tudo o que estava acontecendo, eficou sem saber o que pensar, porque alguns diziam que João Batista tinha ressuscitadodos mortos; outros diziam que Elias tinha aparecido; outros ainda, que um dos antigosprofetas tinha ressuscitado. Então Herodes disse: ‘Eu mandei degolar João. Quem éesse homem, sobre quem ouço falar essas coisas?’ E queria ver Jesus”.

Nessa passagem é flagrante o uso da palavra ressurreição com o significado dereencarnação. Se as pessoas acreditavam que Jesus poderia ser Elias, Jeremias (Mt 16,14) ouum dos antigos profetas ressuscitado isso não é ressurreição, mas sim reencarnação, já que sefosse Jesus um deles, estaria num novo corpo, o de Jesus, obviamente. Quem pensa assim,acredita que alguém já morto poderia voltar num novo corpo como outra pessoa. Éexatamente isso o que definimos como reencarnação; portanto, provamos que na época seacreditava em reencarnação, sim; só que para designá-la usavam a palavra ressurreição, quetambém possuía, àquela época, outros significados.

Em uma certa oportunidade, Jesus pergunta aos discípulos: “Quem dizem os homensque é o Filho do Homem?" Eles responderam: "Alguns dizem que é João Batista; outros, que éElias; outros ainda, que é Jeremias, ou algum dos profetas" (Mt 16,13-14). Isso confirma queo povo acreditava na ressurreição em outro corpo, reencarnação para nós. Só que há algoimportante nessa passagem: é que Jesus não protestou contra essa crença popular, o quesignifica que, tacitamente, a confirma. É como diz um velho provérbio: “quem cala consente”.

Alguém poderá perguntar: “Mas o que tem a ver ressurreição com reencarnação?” Aoque responderemos: dependendo do contexto, muita coisa; aliás, são conceitos semelhantes.Como?! Expliquemos, utilizando, para isso, esse passo citado (Mt 16,14) na versão de Lucas:

Lc 9,19: “Eles responderam: 'Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias;mas outros acham que tu és algum dos antigos profetas que ressuscitou'".

Observar bem o que pensavam a respeito de quem era Jesus: “tu és algum dos antigosprofetas que ressuscitou”. O que se pode entender disso é que o verbo “ressuscitar”, utilizadonessa frase, tem, indubitavelmente, a nítido significado de reencarnar. Se Jesus, segundosuspeitavam, poderia ser qualquer um dos antigos profetas, isso só é possível acontecer pelareencarnação.

Por outro lado, como, nessa oportunidade, Jesus não combateu a ideia de que alguémpoderia vir como uma outra pessoa, Ele, de certa maneira, sanciona a crença na reencarnação,pois, se não fosse uma realidade, certamente, que ele teria negado de forma contundente, demaneira a não deixar que as pessoas pensassem equivocadamente a respeito desse assunto.

Russell Norman Champlin (1933- ), renomado exegeta protestante, analisando apassagem Mt 16,14, correlata a essa de Lucas (Lc 9,19), disse:

“Uns dizem: João Batista”. Mat. 14:1 demonstra que Herodes adotou essateoria: “Este é João Batista; ele ressuscitou dos mortos”. Provavelmente, então,alguns dos herodianos também pensavam assim. Essa ideia circulava entre opovo. Dificilmente podemos crer que muitos pensavam que João Batistaressuscitara dos mortos, porque a maioria sabia que Jesus e João foramcontemporâneos. Tal teoria, portanto, reflete a doutrina da transmigraçãoda alma. É óbvio que essa crença exercia influência nas escolas dosfariseus, e, ainda que nunca tivesse sido totalmente aceita por todo o povo,muitos indivíduos (provavelmente a maioria) aceitavam-na comoverdadeira. Conforme tais ideias se tinham desenvolvido nas escolas dosfariseus, dizia-se que ainda viviam as almas dos grandes profetas, e que emtempo oportuno, em momentos de grande necessidade, como alguma crisenacional, etc., tais almas poderiam tomar corpo novamente. No caso de JoãoBatista, não podemos afirmar que essa crença refletisse a ideia da“reencarnação”, mas deve ser interpretada como “transmigração” ou“possessão”. Porém, uma vez admitida a ideia que Jesus era Elias,Jeremias, ou outro personagem do passado, então se pode afirmar queessa crença era idêntica à “reencarnação”. O termo “transmigração” éusado por muitas vezes como sinônimo de “reencarnação”. A identificaçãode Jesus com João Batista, pelo menos, poderia preservar a identificação deJesus com a esperança messiânica, porque era crença geral, entre o povo,

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que João era Elias reencarnado, e Elias seria o precursor do Messias. Maspode-se afirmar, à base dessa ideia, que tais pessoas não aceitavam que Jesusfosse o Messias. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 443) (grifo nosso).

Esta aí uma prova de que os judeus acreditavam na reencarnação, que, para eles,consistia em ressuscitar em outro corpo.

Mas, ainda vamos trazer outra fonte para comprovar essa questão. Nós buscaremosesta informação no historiador daquela época chamado Flávio Josefo, que viveu entre 37 a 103d.C. Suas obras históricas são: “Antiguidades Judaicas”, “Guerra dos Judeus” e “Resposta deFlávio Josefo a Ápio”, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.

Josefo, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:

[...] Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um outromundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas ouvirtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida e queoutras voltam a esta. [...]” (JOSEFO, 2003, p. 416).

E, quando alguns soldados, derrotados na guerra contra os romanos, pensavam emsuicidarem-se, alerta-os dizendo:

[...] Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade daqueles,que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas mãos, a vida,que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas almas voam puraspara o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr dos séculos,animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as almas dosímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são precipitados nastrevas do inferno; [...] (JOSEFO, 2003, p. 600) (grifo nosso)

Assim, podemos dizer que os fariseus, grupo religioso que existia à época de Jesus,acreditavam numa ressurreição em outro corpo. Ora, isso não é nada mais nada menos do queaquilo que entendemos por reencarnação.

Esse argumento de que os judeus não acreditavam na reencarnação, é, quase sempre,utilizado pelos fundamentalistas, porém, não contam a história toda. Vários autores afirmamque acreditavam sim, como, por exemplo, Severino Celestino da Silva (1949- ), em Analisandoas Traduções Bíblicas, onde apresenta, para comprovação, esta frase do Rabino Arieh Karplan(1934-1983): “Não é possível entender a Cabalá sem acreditar na eternidade da alma e suasreencarnações” (SILVA, 2001, p. 158).

Mais a frente, Celestino cita a opinião de uma outra pessoa:

Sobre a Reencarnação, apresentamos, aqui, para ilustrar, o depoimento doRabino Shamai Ende, colaborador da Revista Judaica “Chabad News”,publicação de Dez a Fev 1998. Vejamos o texto na íntegra: “O conceito deGuilgul (Reencarnação) é originado no judaísmo, sendo que uma almadeve voltar várias vezes até cumprir todas as mitsvot(1) da Torá. Alémdisso, cada alma tem uma missão específica. Caso não tenha cumprido asua, a alma deve retornar a este mundo para preencher tal lacuna.Somente pessoas especiais sabem exatamente qual é sua missão devida. [...]”.______(1) Mitsvot – plural de mitsvá que significa mandamento ou prática de boas obras –caridade.

(SILVA, 2001, p. 161) (grifo do original).

O Rabino Philip S. Berg (1929- ), em Reencarnação as Rodas da Alma, afirma que:

A palavra hebraica para reencarnação é Guilgul Neshamot, que literalmentequer dizer ‘roda da alma’. É para esta vasta roda metafísica, com sua coroa

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constelada de almas, como estrelas nas bordas de uma galáxia, que devemosdirigir nosso olhar, se desejamos ver além da aparência da inocência punida e damaldade recompensada. Guilgul Neshamot é uma roda em constantemovimento e, ao girar, as almas vêm e vão diversas vezes, num ciclo denascimento, evolução e morte e novo nascimento. A mesma evoluçãoocorre com o corpo no decorrer de uma única vida. Ocorre o nascimento, ocrescimento das células, a paternidade e a morte – novos corpos produzidospelos antigos, dando assim continuidade à forma física. É sempre um pai queconcede sua semente para que haja continuidade, num processo sem fim.(BERG, 1998, p. 17-18) (grifo nosso).

Berg, quando desenvolve o tema dentro da ótica cabalista, diz a certa altura:

Entre todos os que aceitam a doutrina da reencarnação, talvez oscabalistas sejam os únicos que acreditam que uma alma pode retornar numnível inferior daquele que deixou em uma vida anterior. Efetivamente, se o pesodo tikun (correção) for suficientemente pesado, uma alma humana poderá seencontrar reencarnada no corpo de um animal, de uma planta ou até mesmo deuma pedra. (BERG, 1998, p. 29) (grifo nosso)

O conceito Espírita difere sobremaneira, porquanto não admitimos retrocesso, ou seja,uma alma humana não reencarna nunca no corpo de um animal.

“A Cabala é o significado mais profundo e oculto da Torá, ou Bíblia”, diz Berg, o queconfirma que é um conhecimento do judaísmo místico, segundo suas próprias palavras.

2 - Fica claro que Jesus nunca ensinou a reencarnação.

Dizer que Jesus nunca ensinou a reencarnação é forçar a barra, ignorando que ele nãodisse, em momento algum, que estavam em erro os que o supunham ser Elias, Jeremias, oualgum dos antigos profetas. É recusar a ver o que disse a Nicodemos “é necessário nascer denovo” (Jo 3,3). Certo é que em algumas Bíblias não é dito “nascer de novo”, mas “nascer doalto”. Entretanto, podemos ponderar que a tradução da palavra grega anóthem, segundoalguns estudiosos, tanto pode ser uma quanto a outra; daí, para não realçar a ideia dareencarnação, foi melhor colocar aquela que não levasse as pessoas a entenderem comoreencarnação. Mas, pela dúvida de Nicodemos, fica claro que o sentido era nascer de novomesmo: “Como é que um homem pode nascer de novo, se já é velho? Poderá entrar outra vezno ventre de sua mãe e nascer?” (Jo 3,4). Na sequência, Jesus não nega que seja sobre issoque está dizendo, mas reforça com outras palavras: “Eu garanto a você: ninguém pode entrarno reino de Deus, se não nascer da água e do Espírito” (Jo 3,5), donde devemos tomar a águacomo símbolo da origem da matéria ou, como entendem alguns, uma analogia ao líquidoamniótico.

Por outro lado, mesmo que Jesus não a tivesse ensinado, isso não significa que ela nãoexista, pois, convém lembrar que Ele disse: “Ainda tenho muitas coisas para dizer, mas agoravocês não seriam capazes de suportar” (Jo 16,12).

3 - A Bíblia combate tal ensinamento

Curioso é que os contrários não se cansam de nos afirmar que a Bíblia não fala, emmomento algum, em reencarnação; mas, quando o assunto é combatê-la, aí sim, nela se dizalgo. Parece brincadeira! Só que, quando apresentam as passagens para comprovar o quealegam, verificamos que é pura interpretação equivocada, já que sempre as usam fora do seucontexto. Vejamos algumas, normalmente citadas.

Hb 9,27: “[...] aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois disto oJuízo”.

Essa é uma das mais interessantes, já que nem mesmo se sabe quem é o autor; daí ésingular que usem um autor completamente desconhecido para contestar o que Jesus afirmou:“João é Elias que devia vir” (Mt 11,14). Poderia ser um argumento forte contra a reencarnaçãose o autor tivesse dito: “aos homens está ordenado viverem uma só vez”.

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Lázaro, o filho da viúva de Naim e a filha de Jairo, entre outros que ressuscitaram,morreram duas vezes, provando que, em se acreditando nisso, a “ordem” contida napassagem é inconsistente. Mas, de qualquer forma, esse autor não está completamenteerrado, pois fisicamente em cada vida só morremos uma vez mesmo e em definitivo, por sinal.

Ainda em relação a essa passagem: até o presente ninguém conseguiu nos esclarecerse haverá dois julgamentos ou não. Se “depois disto o Juízo”, e em algumas Bíblias, está “logodepois”, qual será a utilidade de mais um juízo no final dos tempos? Quem for condenado noprimeiro, poderá se salvar no segundo? Mas, se ficarmos apenas no que se diz nessa frase,então ninguém ficará esperando a ressurreição no último dia para ser julgado.

4 – O homem não pode se salvar por si mesmo

“A Palavra de Deus, nos diz que é em Jesus que o homem consegue aexpiação dos seus pecados (Jo 8,24; 1Jo 1,7-9). O homem só é salvo pela graçade Deus, sem nenhum esforço meritório (Ef 2,8-9; At 4,12; Rm 4,4-5)”.

Se isso for verdadeiro então o “Sede perfeitos como é perfeito o vosso pai celestial” (Mt5,48) torna-se um ensinamento inoperante que Jesus nos passou, pois, certamente, numavida só, espírito algum conseguirá ser perfeito como o Pai o é. Perfeito no passo,provavelmente tenha o mesmo significado de “[...] assim como é santo o Deus que oschamou, também vocês tornem-se santos em todo o comportamento, porque a Escritura diz:'sejam santos, porque eu sou santo'” (1Pe 1,16) (ver também Lv 11,45; 19,2; 20,7-8). Masninguém disse que não conseguimos a salvação a não ser por Jesus; entretanto, ela não serápela graça e nem será pelo seu sangue derramado na cruz; porém unicamente seguindo osseus ensinamentos: “É pelo evangelho que vocês serão salvos” (1Cor 15,2) ou “Em Cristo,também vocês ouviram a Palavra da verdade, o Evangelho que os salva” (Ef 1,13).

Certamente que, não fosse a graça de Deus em nos dar outra oportunidade, estaríamosfritos; portanto, é pela graça de Deus mesmo que somos salvos. Entretanto, não é salvação“de graça” como muitos pensam, pois haverá de ser “segundo a suas obras” (Mt 16,27), acrermos no que Jesus disse.

Por outro lado, se a nossa salvação não estivesse em nossas mãos, então, Deus,certamente, salvaria a todos, já que isso só dependeria da vontade dele.

Uma crença que se opõe à reencarnação é a do inferno eterno; mas não há comoexplicá-lo diante disso: “O Senhor é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno.Não repreende perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira. Não nos tratasegundo os nossos pecados, nem nos retribui consoante as nossas iniquidades” (Sl103,8-10).

Uma coisa que ainda estamos esperando é alguém nos provar que Deus tenha criado oinferno, lugar destinado ao suplício eterno dos contraventores de Suas leis. Que nos mostremque a pena para os que não cumprem os Dez Mandamentos seja ir para o inferno, já que énesse momento que Deus deveria tê-lo, certamente, criado.

5 - A proposta de uma vida feliz através da reencarnação não é atestada pela Bíblia.

E nem poderia ser de outra forma, já que “Ainda tenho muitas coisas para dizer, masagora vocês não seriam capazes de suportar” (Jo 16,12). Como, naquela época, não tinhamuma noção clara quanto a isso, não adiantaria explicar o que não eram capazes de entender.

O que assegura uma vida feliz é a vivência do Evangelho em toda a sua plenitude, e areencarnação é a oportunidade oferecida para todos aqueles que viveram e morreram, semhaverem tido a chance de ouvir o Evangelho. A reencarnação pode até não garantir uma vidafeliz, mas garante a oportunidade de vivê-la. Em contrapartida, nossos críticos evitam dizerque a proposta contrária, a de vida única, não dá essa mesma garantia para todos. Aliás, nemmesmo os que se acham merecedores de uma vida futura feliz, apenas por pregarem oEvangelho, sem o praticar, têm essa garantia.

Procuramos desenvolver esse estudo de forma a provar que essa questão de JoãoBatista ser Elias é muito clara no Evangelho; tão clara como a luz do Sol ao meio-dia, num

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“céu de brigadeiro”. Entretanto, percebemos que por interesses, que não nos cabe aqui citá-los, as lideranças religiosas procuram esconder isso de seus fiéis, mantendo-os na ignorância.Qualquer pessoa de bom senso, ou que não se encontra atrelada a dogmas, verá que isso éponto irrefutável. Só não vê quem não quer. Finalizando, repetimos essas palavras de Jesus:“Quem tem ouvidos, ouça” (Mt 11,15).

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Eucaristia: Jesus a instituiu?

Para justificar a eucaristia pegam o momento em que Jesus, ceando com os seusapóstolos, distribui o pão e o vinho. Fato acontecido, segundo alguns, na sexta-feira anterior àda sua crucificação.

Vamos iniciar nossa análise comparando as passagens bíblicas que narram a ocasiãoconsiderada como sendo a instituição da eucaristia para, com isso, termos uma visão doassunto.

Mt 26,26-29: Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção, opartiu, distribuiu aos discípulos, e disse: "Tomem e comam, isto é o meu corpo." Emseguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: "Bebam dele todos, poisisto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos,para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não beberei desse frutoda videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino do meu Pai."

Mc 14,22-25: Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,o partiu, distribuiu a eles, e disse: "Tomem, isto é o meu corpo." Em seguida, tomouum cálice, agradeceu e deu a eles. E todos eles beberam. E Jesus lhes disse: "Isto é omeu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos. Eu garantoa vocês: nunca mais beberei do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novono Reino de Deus."

Lc 22,14-20: Quando chegou a hora, Jesus se pôs à mesa com os apóstolos. E disse:"Desejei muito comer com vocês esta ceia pascal, antes de sofrer. Pois eu lhes digo:nunca mais a comerei, até que ela se realize no Reino de Deus." Então Jesus pegou ocálice, agradeceu a Deus, e disse: "Tomem isto, e repartam entre vocês; pois eu lhesdigo que nunca mais beberei do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus." Aseguir, Jesus tomou um pão, agradeceu a Deus, o partiu e distribuiu a eles, dizendo:"Isto é o meu corpo, que é dado por vocês. Façam isto em memória de mim."Depois da ceia, Jesus fez o mesmo com o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliançado meu sangue, que é derramado por vocês”.

Fato curioso é que João não fala absolutamente nada sobre essa distribuição de pão evinho, considerando que ele também encontrava-se presente no evento; inclusive, se foi ele odiscípulo a quem Jesus amava, certamente estaria a seu lado, pois é ele quem descreve commaior número de pormenores tal acontecimento.

Se compararmos Mateus e Marcos, cujas narrativas são bem semelhantes, veremosque, no primeiro, consta um acréscimo da expressão “para remissão dos pecados”, o quepoderá ser muito bem uma interpolação para justificar a ideia do sangue com poder para remiros pecados, embora Jesus tenha dito “a cada um segundo as suas obras” (Mt 16,27).Interessante é que nenhum dos dois evangelistas falou em “façam isto em memória de mim”,expressão essa só escrita em Lucas. Aí é a questão de se perguntar: qual deles falou averdade? Logo, devemos entender o ato de comer e beber constante dessa passagem comouma metáfora, sob pena de se estar aceitando a pregação de canibalismo. Se na eucaristiaestá presente o corpo e o sangue de Jesus, não há alternativa a não ser entender tal práticacomo um ato, mesmo que simbólico, de canibalismo; não é mesmo?

Mas o que devemos fazer, isto sim, é sair do nosso egoísmo para distribuir com osnecessitados o pão nosso de cada dia. Entre fazer isso e comer o corpo e beber do sangue deCristo, qual dos dois entendimentos está seguindo a orientação de “amar ao próximo como a simesmo”?

Por outro lado, é necessário decidir qual das três situações devemos aceitar, no que serefere à nossa salvação, já que, simultaneamente, pregam estas três hipóteses...:

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a) que basta somente receber o perdão de Deus;

b) que já fomos perdoados pelo derramamento do sangue de Jesus; ou

c) que seremos salvos pela simples condição de crer e de ser batizado (Mc 16,16).

Vejamos o que Geza Vermes (1924- ) nos mostra, analisando essas palavras ditas porJesus durante a ceia:

Quatro relatos da Última Ceia sobreviveram no Novo Testamento. Elesconcordam entre si sobre vários pontos essenciais, mas também ostentamvariações substanciais. Também é notável que o Evangelho de João nãocontenha qualquer relato da ceia de Páscoa compartilhada por Jesus e seusdiscípulos. Isto se deve sem dúvida ao fato de a prisão e crucificação de Jesusterem acontecido, segundo o Quarto Evangelho, um dia antes da festa, nãopodendo consequentemente ser questão de qualquer participação de Jesusnuma ceia real de Páscoa. João especifica que os dignitários que entregaramJesus a Pilatos recusaram-se a entrar em seu palácio, no pretório, a fim depermanecerem ritualmente puros “e poder comer a Páscoa” (ver João 18,28).Há um consenso geral entre intérpretes do Novo Testamento de que anarrativa da Última Ceia, com a sua exiguidade de detalhes concretos,foi escrita acima de tudo para registrar o que desde o princípio a igrejaprimitiva compreendeu como a instituição de um ritual religiososignificativo, a Eucaristia. Queira ou não, essa visão eclesial afetaretrospectivamente o significado das palavras que presumidamente teriam vindodos lábios de Jesus. (VERMES, 2006a, p. 344-345) (grifo nosso).

O teólogo John Dominic Crossan (1934-), co-fundador do The Seminar Jesus, citado porJosé Pinheiro de Souza (1938-), parece-nos ainda mais enfático, conforme se pode ver nestesdois parágrafos:

Por conseguinte, a Ceia Eucarística não pode ter sido instituída peloJesus Histórico. O renomado teólogo e ex-padre católico John DominicCrossan, em seu livro O Jesus Histórico, argumenta que a Ceia Eucarística,interpretada literalmente, não é originária de Jesus histórico (cf. CROSSAN,1994, p. 398-399).

Mais precisamente, ele mostra que a Ceia Eucarística, como referida num doslivros mais antigos do cristianismo, o chamado Didaqué (ou “Instrução dos DozeApóstolos”), escrito por volta do final do Século I de nossa era (mas descobertosomente no ano de 1883), nada tem a ver com os acréscimos posteriorescatólicos a respeito da Ceia Eucarística, supostamente instituída por Jesus, esobre o suposto milagre da “transubstanciação”. Na Ceia Eucarística descrita nolivo Didaqué (capítulos 9 e 10), “não há qualquer menção de uma refeiçãofeita para comemorar a Páscoa, de uma última ceia, nem de algumaconexão com a morte de Jesus ou sua celebração”. (CROSSAN, 1994, p.400).(SOUZA, 2011, p. 139) (grifo do original).

Na passagem de Mateus, em nota de rodapé, os tradutores da Bíblia de Jerusalém nosexplicam: “Estamos no meio da ceia pascal. É em gestos precisos e solenes do ritual judaico(ações de graças a Iahweh pronunciadas sobre o pão e sobre o vinho) que Jesus enxerta osritos sacramentais do novo culto que instaura” (p. 1751). Apenas uma perguntinha: ouenxertaram usando o nome de Jesus? Além do mais, isso se deu no primeiro dia dos pãesázimos (Mt 26,17); portanto, é mesmo um ritual judaico realizado durante a celebração daPáscoa. Essa ceia, com a distribuição de pão e vinho, fazia mesmo parte dos rituais judeus,conforme explica Ernest Renan (1823-1892):

[...] Naquela refeição, assim como em muitas outras (48). Jesus praticou seurito misterioso da divisão do pão. Como se acreditou, desde os primeiros anosda Igreja, que a refeição em questão tivesse acontecido no dia de Páscoa etivesse sido o banquete pascal, naturalmente veio a ideia de que a instituiçãoeucarística se fizera naquele momento supremo. Partindo da hipótese de queJesus sabia antecipadamente com precisão quando morreria, os discípulos

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deveriam ter sido levados a supor que ele reservara para aquelas últimas horasuma enorme quantidade de atos importantes. Como, aliás, uma das ideiasfundamentais dos primeiros cristãos era a de que a morte de Jesus fora umsacrifício, substituindo todos os da antiga Lei, a Ceia tornou-se o sacrifício porexcelência, o ato constitutivo da nova aliança, o sinal do sangue derramado paraa salvação de todos (49). O pão e o vinho, relacionados à própria morte, foram,dessa forma, a imagem do Novo Testamento, que Jesus selara com seussofrimentos, a comemoração do sacrifício do Cristo até a sua vinda (50).Muito cedo esse mistério se fixou num pequeno relato sacramental, quepossuímos em quatro versões (51) muito parecidas entre si. O quartoevangelista, tão preocupado com ideias eucarísticas (52), que descrevea última ceia com tanta prolixidade, que liga a ela tantas circunstânciase discursos(53), não conhece esse relato. Isso prova que nãoconsiderava a instituição da Eucaristia como uma particularidade daCeia. Para o quarto evangelista, o rito da Ceia é a lavagem dos pés.______(48) Luc., XXIV, 30-31, 35, representa a divisão do pão como um hábito de Jesus.(49) Luc., XXII, 20.(50) I Cor., XI, 26.(51) Mat. XXVI, 26-28; Marc., XI, 22-24; Luc., XXII,19-21; I Cor., XI, 23-25.(52) Cap. VI.(53) Cap. XIII-XVII.

(RENAN, 2004, p. 360-361) (Grifo nosso).

Seria interessante que aqui fôssemos ver essa passagem bíblica, citada por Renan, aprimeira da lista acima, na qual ele disse ser, a divisão do pão, um hábito de Jesus, que, paraum melhor entendimento, iremos começá-la num versículo anterior ao citado; então, leiamo-la:

Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia maisadiante. Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: "Fica conosco, pois já é tarde e anoite vem chegando." Então Jesus entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa comos dois, tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles. Nisso os olhos dosdiscípulos se abriram, e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frentedeles. Então um disse ao outro: "Não estava o nosso coração ardendo quando ele nosfalava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?" Na mesma hora, eles selevantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os onze, reunidos com osoutros. E estes confirmaram: "Realmente, o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão!"Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinhamreconhecido Jesus quando ele partiu o pão. (Lc 24, 28-35).

Jesus, depois de ressuscitado, foi reconhecido pelos dois discípulos, que estavam sedirigindo a Emaús, exatamente pelo ato de partir o pão. Dessa forma, a conclusão de Renan éabsolutamente correta, não sendo, portanto, o ritual de partir o pão e beber vinho a instituiçãoda eucaristia, rito sacramental praticado em determinadas correntes religiosas.

Estranhamos que tal fato ainda venha a acontecer, pois a nós, da forma que épraticado, mais parece, voltamos a dizer, um ritual de canibalismo do que qualquer outra coisa.Povos primitivos acreditavam que, ao se comer o corpo de um guerreiro que haviam matado, asua força e coragem, muito valorizadas por esses povos, passariam àquele que fizesse doguerreiro vencido o seu “prato do dia”.

Qual será a razão para se justificar que os fiéis ainda “comam do corpo e bebam dosangue” de Jesus, que creem presentes na hóstia, após ser consagrada pelo sacerdote? Paranós é algo sem sentido, principalmente considerando que Jesus disse “não é o que entra pelaboca que torna o homem impuro” (Mt 15,11); da mesma forma podemos entender que o queentra pela boca não torna o homem puro. Consequentemente podemos concluir que, mesmoque se coma algo sagrado (hóstia), ninguém tornar-se-á um ser purificado por isso.

Pesquisando outras fontes sobre o assunto, encontramos o autor Bart D. Ehrman(1955- ), considerado a maior autoridade sobre o Novo Testamento do mundo, dizendo:

[...] Em um de nossos mais antigos manuscritos gregos, assim como em

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vários testemunhos latinos, temos:

E tomando o cálice, dando graças, ele disse: “Tomai-o, reparti-o entre vós,pois eu vos digo que não beberei do fruto da vinha a partir de agora, até quevenha o reino de Deus”. E tomando o pão, dando graças, ele o partiu e o deua eles, dizendo: “Isto é o meu corpo... Mas vede que a mão daquele que metrai está comigo nesta mesa” (Lucas 22,17-19).

Contudo, na maioria de nossos manuscritos, há um acréscimo ao texto,que soará familiar a muitos leitores da Bíblia, visto que se assentou nastraduções modernas. Ali, depois que Jesus diz: “Isto é meu corpo”, elecontinua dizendo as palavras: “'Que foi dado por vós; fazei isto em memória demim', e fez o mesmo com o cálice após a refeição, dizendo: 'Este cálice é a novaaliança em meu sangue derramado por vós'”.

Estas são as palavras, muito familiares, da “instituição” da Ceia do Senhor,registradas também sob uma forma muito similar na primeira carta de Paulo aosCoríntios (1 Coríntios 11,23-25). A despeito do fato de serem tãofamiliares, há boas razões para pensar que esses versículos nãoestavam no original do Evangelho de Lucas, mas que foramacrescentados para ressaltar que foram o corpo partido e o sanguederramado de Jesus que trouxeram a salvação “para vós”. [...]

Além do mais, não se pode deixar de notar que os versículos, por maisfamiliares que sejam, não representam a própria compreensão queLucas demonstra ter da morte de Jesus. É uma característicasurpreendentemente do retrato que Lucas faz da morte de Jesus – por maisestranho que isso seja à primeira vista – que ele nunca, em nenhuma outrapassagem, indica que a morte em si seja o que traz a salvação dopecado. Em nenhum outro lugar de toda a obra em dois volumes de Lucas(Lucas e Atos dos Apóstolos), se diz que a morte de Jesus foi “por vós”. De fato,nas duas ocasiões em que a fonte de Lucas (Marcos) indica que foi por meio damorte de Jesus que veio a salvação (Marcos 10,45; 15,39), Lucas mudou adisposição do texto (ou o eliminou). Em outros termos, Lucas tem umacompreensão diferente da forma com que a morte de Jesus conduz à salvação,diferente da de Marcos (da de Paulo e da de outros escritores cristãos antigos).(EHRMAN, 2006, p. 175-176). (grifo nosso).

Assim, dentro da visão desse renomado autor, um dos textos a que se apegam parajustificar a eucaristia não é outra coisa senão uma adulteração dos originais bíblicos. E, pelovisto, ele não está sozinho em sua tese. Vejamos também a opinião de David Flusser (1917-2000):

Jesus seguia a ordem essênia em suas refeições de festa e, em especial, naúltima ceia, ou seguia a ordem não-sectária: vinho e pão? Segundo Mateus eMarcos, Jesus primeiro abençoava o cálice e depois o pão, mas a situação emLucas é diferente. “Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele osapóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco estapáscoa, antes de meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, atéque ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando um cálice, havendo dadograças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois vos digo que de agora em diantenão mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus. E,tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é meucorpo” (Lc 22:14-19). Aí termina o texto de Lucas, de acordo com o famosoCodex Bezae, a antiga tradução latina, e dois antigos manuscritos siríacos.Todos os leitores atentos reconhecerão com facilidade que o que sesegue em Lucas nos outros testemunhos é tirado de 1 Cor 11:23-26, demodo que temos aqui a estranha situação de que no texto aceito aparecem doiscálices, um no começo e o outro no final. Tanto a Versão Padrão Revista como aNova Bíblia Inglesa adotaram o ponto de vista correto, de que Lc 22:19b-20não fazia parte do texto original de Lucas. Depois que Jesus disse do pãopartido ‘Isto é meu corpo” fazendo alusão a sua iminente morte violenta, elecontinuou e tornou-se mais explícito, dizendo: “Todavia a mão do traidor estácomigo à mesa” (Lc 22:21). (FLUSSER, 2000, p. 227) (grifo nosso).

Confirma-se, portanto, que o texto de Lucas (Lc 22,19b-20) foi um acréscimo posterior.

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Geza Vermes, citado mais acima, nos informou que são registrados no Novo Testamentoquatro relatos da Última Ceia, já citamos e analisamos três deles - Mt 26,26-29; Mc 14,22-25e Lc 22,14-20 -, falta-nos, portanto, o último, que será visto agora.

Apesar de aqui, neste estudo, aparecer cronologicamente posterior, na verdade, é oprimeiro relato bíblico, escrito por volta do ano 57 d.C., enquanto, que os outros foramredigidos no período compreendido entre os anos de 65 a 80 d.C. (4) (BARRERA, 1999).Corroborando essa questão da primazia do relato de Paulo, argumenta Geza Vermes:

Há uma terceira ocorrência que, embora considerada pertencente à tradiçãooral pela maioria dos estudiosos, chama a minha atenção por sua peculiaridade.Relaciona-se ao relato de Paulo sobre o estabelecimento da refeiçãoeucarística. Ele se queixou da divisão entre os membros da igreja de Corintoao compartilharem da ceia do Senhor. Em vez de partilharem uma refeiçãocomunal, os ricos e os pobres usavam provisões próprias, e o resultadoera que alguns ficavam com fome enquanto outros se embriagavam(1Cor 11:20-21). Eles deveriam partilhar, ordenava Paulo, o mesmo pão,simbolizando o corpo, e a mesma taça, simbolizando o sangue do Senhor,fazendo-os contemplar a morte do Senhor até o seu retorno. Aeucaristia de Paulo é basicamente um lembrete alegórico ou místico dofim violento de Jesus. Todavia, ele não se estende tão chocantemente quantoJoão (ver acima p. 32, n. 7), e mesmo um pouco menos do que os Sinópticos(Mt 26:26-9; Mc 14:22-5; Lc 22:15-20), na identificação real do pão e do vinhocom o corpo e o sangue a serem respectivamente, comido e bebido. Paulo temsua própria maneira de relatar o acontecimento tanto em 1Cor 11 quanto em1Cor 10:16-7. Ele ensina que o propósito da união ou comunhão mística com ocorpo e o sangue de Cristo é aglutinar simbolicamente os muitos membros daigreja num todo único.

É claro, é concebível que Paulo tenha reeditado a versão tradicional –embora nem nos Evangelhos Sinópticos haja dois relatos iguais dainstituição da eucaristia – e que a última ceia de João nada tenha a vercom a eucaristia. Mas parece-me que a fórmula introdutória de Paulo sugereque ele quisesse dizer algo original, e não apenas reproduzir a história tãoamiúde repetida. Ao passar adiante a tradição da igreja e a ele transmitida poragentes anônimos, como a morte, o sepultamento, a ressurreição e as apariçõesposteriores de Jesus (1Cor 15:3-5), ele prefacia a sua declaração com“Transmiti-vos... aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 15:3). No caso daeucaristia, entretanto, está dito que a sua fonte é Jesus, implicando que lhe foradiretamente revelada. “Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vostransmiti” (1Cor 11:23). Se eu estiver certo na interpretação dessa passagem,isto quereria dizer que a narrativa de Paulo separa-se da tradiçãoregistrada nos Evangelhos Sinópticos por volta de quinze a quarenta ecinco anos mais tarde, visto que a primeira Epístola aos coríntios foiescrita em c. 55 d.C. Consequentemente, a redação de Paulo pode ter sido afonte primária da formulação no Novo Testamento do estabelecimentoda eucaristia. Em outras palavras, há grande chance de que a interpretaçãoeucarística da refeição comunal da igreja seja devida a Paulo, e que os editoresde Marcos, Mateus e especialmente de Lucas, que segue Paulo mais de perto, atenham introduzido nas suas respectivas narrativas nos Evangelhos Sinópticos.(VERMES, 2006b, p. 86-87) (grifo nosso).

Vejamos o teor relativo ao trecho da primeira carta de Paulo aos coríntios:

1Cor 11,17-26: “Dito isso, não posso elogiar vocês, porque as suas assembleias, emvez de ajudá-los a progredir, os prejudicam. Antes de tudo, ouço dizer que, quandoestão reunidos em assembleia, há divisões entre vocês. E, em parte, eu acredito nisso.É preciso mesmo que haja divisões entre vocês, a fim de que se veja quem dentrevocês resiste a essa prova. De fato, quando se reúnem, o que vocês fazem não écomer a Ceia do Senhor, porque cada um se apressa em comer a sua própriaceia. E, enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Será que vocês não têm suascasas onde comer e beber? Ou desprezam a Igreja de Deus e querem envergonharaqueles que nada têm? O que vou dizer para vocês? Devo elogiá-los? Não! Nesse ponto

4 Marcos (anos 65-70), Mateus (anos 70/80) e Lucas (anos 70/80) (BARRERA, 1999, p. 287-289)

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não os elogio. De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti paravocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois dedar graças, o partiu e disse: 'Isto é o meu corpo que é para vocês; façam istoem memória de mim'. Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice,dizendo: 'Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes quevocês beberem dele, façam isso em memória de mim'. Portanto, todas as vezesque vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a mortedo Senhor, até que ele venha”.

Você, caro leitor, deve ter observado que Ehrman e Flusser fizeram menção a essepasso, dando-o como sendo a origem do que consta em Lucas, exatamente, aquele querecomenda “Façam isto em memória de mim”, destoando de Mateus e Marcos que nada falamdisso.

O versículo final esclarece o objetivo da ceia: “Portanto, todas as vezes que vocêscomem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, atéque ele venha”, o que difere, em muito, daquilo que Lucas disse.

Em James D. Tabor (1946- ), em A dinastia de Jesus: a história secreta das origens docristianismo, vamos encontrar outras explicações que são bem interessantes de se ver:

Ironicamente, os mais antigos relatos da última refeição na quarta-feira ànoite vêm de Paulo, e não de qualquer dos evangelhos. Em uma carta a seusseguidores na cidade grega de Corinto, escrita por volta de 54 d.C., Paulopassa adiante a tradição que dizia ter "recebido" de Jesus: "Jesus, nanoite em que foi traído, tomou um pão, e tendo dado graças, partiu-o e disse:'Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isso em memória de mim: Do mesmomodo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: 'Este cálice é a nova Aliança nomeu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim'” (1Coríntios 11:23-25).

Essas palavras, tão familiares aos cristãos como parte da Eucaristiada Missa, são repetidas com ligeiras variantes em Marcos, Mateus eLucas. Representam a síntese da fé cristã, o pilar do evangelho cristão: ahumanidade está salva dos pecados pelo sacrifício do corpo e do sangue deJesus. Qual é a probabilidade histórica de que essa tradição baseadanaquilo que Paulo disse ter "recebido" de Jesus represente o que Jesusdisse durante a última ceia? Tão surpreendente quanto possa parecer,existem alguns problemas autênticos a considerar.

Em cada refeição judaica, o pão é partido, o vinho partilhado, e abênção dada - mas a ideia de comermos carne humana e bebermossangue, mesmo que simbolicamente, é de todo alheia ao judaísmo. ATorá proíbe especificamente a ingestão de sangue, não só para osisraelitas, mas para todos. A Noé e a seus descendentes, comorepresentantes de toda a humanidade, já tinha sido proibido "ingerir sangue"(Gênesis 9:4). Moisés tinha prevenido, "se qualquer homem da Casa de Israelou gentio, residente no meio deles, ingerir qualquer espécie de sangue, eu mevoltarei contra esse que ingere sangue e eliminá-lo-ei de seu povo" (Levítico17:10). Em outra ocasião, Tiago, o irmão de Jesus, refere-se a isto como uma"exigência”, para que os não judeus pudessem juntar-se à comunidade nazarena- não ingerirão sangue (Atos 15:20). Essas restrições dizem respeito ao sanguede animais. Ingerir carne e sangue humanos não era proibido, erasimplesmente inconcebível. Essa sensibilidade generalizada em relação àmera ideia de "beber sangue" mostra a improbabilidade de Jesus ter usado taissímbolos.

Como dissemos, a comunidade essênica, em Qumrã, descreveu, em um deseus manuscritos, um futuro "banquete messiânico", no qual o MessiasSacerdotal e o Messias da linhagem de Davi sentar-se-iam com os membros dacomunidade crente e abençoariam a sagrada refeição de pão e vinho como acelebração do Reino de Deus. Teriam certamente ficado espantados comqualquer simbolismo sugestivo de que o pão fosse a carne humana, e o vinho, osangue. (10) Tal ideia simplesmente não poderia ter partido de Jesuscomo judeu.

Portanto, qual a origem dessa linguagem? Se aparece primeiramente comPaulo, e ele não a recebeu de Jesus, então qual seria sua fonte? As maiores

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semelhanças encontram-se em alguns ritos mágicos greco-romanos.Existe um papiro grego que registra um encantamento amoroso, no qual ummacho pronuncia certos feitiços sobre um cálice de vinho, que representa osangue que o deus egípcio Osíris tinha dado à sua consorte Ísis para que ela oamasse. Quando sua amante bebe o vinho, ela simbolicamente se une a seuamado pelo seu sangue. (11) Em outro texto, o vinho é transformado na carnede Osíris. (12) Simbolicamente, comer a "carne" e beber o "vinho" eraparte de um rito mágico de união na cultura greco-romana.

Devemos considerar que Paulo cresceu imbuído da cultura greco-romana, na cidade de Tarso, na Ásia Menor, fora da terra de Israel. Ele nuncaconheceu ou falou com Jesus. A relação que ele pretendeu com Jesus é"visionária”, e não com um Jesus de carne e osso, caminhando na terra.

Quando os Doze se reuniram para substituir Judas, depois da morte de Jesus,colocaram como condição para fazer parte do grupo ter estado com Jesus desdeo tempo de João Batista até a crucificação (Atos 1:21-22). Ter visões e ouvirvozes não eram qualificações suficientes para um apóstolo.

Em segundo lugar, e de forma ainda mais reveladora, o evangelho de Joãonarra os acontecimentos daquela última refeição na noite de quarta-feira, mas nunca se refere às palavras de Jesus instituindo essa novacerimônia da Eucaristia. Se Jesus, na realidade, iniciou a prática de comer opão como sendo seu corpo, e beber o vinho como sendo seu sangue na sua"última ceia" como poderia João tê-la omitido? O que João escreve, segundotodas as indicações, é que Jesus sentou-se para participar de uma refeiçãojudaica comum. Após a ceia, ele se levantou, pegou uma bacia de água e umpano, e começou a lavar os pés de seus discípulos, mostrando como o professore mestre deveria agir como criado - mesmo para seus discípulos. Jesuscomeçou, então, a descrever como iria ser traído, e João nos diz que Judasabruptamente abandonou a ceia.

O evangelho de Marcos está muito próximo, em suas ideiasteológicas, àquele de Paulo. Parece possível que, em sua descrição da últimaceia, feita uma década depois da de Paulo, Marcos tenha inserido otradicional "coma o meu corpo" e "beba o meu sangue" em seuevangelho, influenciado pelo que Paulo afirma ter recebido. Tanto Mateuscomo Lucas baseiam inteiramente suas narrativas em Marcos, e Lucas é tambémum convicto defensor de Paulo. Tudo parece levar a Paulo. Como veremos, nãohá qualquer prova de que os primeiros seguidores judeus de Jesus,conduzidos ao quartel-general em Jerusalém por Tiago, o irmão deJesus, tenham alguma vez praticado qualquer rito dessa natureza. Comotodos os judeus, eles santificavam o vinho e o pão como parte de uma refeiçãosagrada, e provavelmente tinham presente a noite em que ele havia sido traído,lembrando-se da última refeição com Jesus.

Na realidade, para resolver essa questão, precisamos de uma fonteindependente, cristã, que não tenha sido influenciada por Paulo, que possaesclarecer a prática original dos seguidores de Jesus. Felizmente, em 1873, essetexto foi encontrado em uma biblioteca em Constantinopla. É intitulado Didache,e data do início do século II d.C. (13) Fora mencionado pelos primeiros autoresda igreja, mas desaparecera até ser descoberto acidentalmente por umsacerdote grego, o Padre Bryennios, em um arquivo de manuscritos antigos.Didache significa "Ensinamentos”, em grego, e seu título completo é "OsEnsinamentos dos Doze Apóstolos”. Trata-se de um antigo "manual deinstruções", provavelmente escrito para ser utilizado por aspirantes ao batismocristão. Contém muitas instruções e exortações éticas, mas também capítulossobre o batismo e a Eucaristia - a sagrada refeição do pão e vinho. É aí queentra a surpresa. Ele oferece as seguintes bênçãos para o pão e o vinho:

No que se refere à Eucaristia, darás graças da seguinte forma.Em primeiro lugar, quanto ao cálice: "Damos-vos graças, Pai nosso, pelasanta vinha de Davi, vosso filho, que nos destes a conhecer através de Jesus,vosso filho. Para vós a glória eterna". E quanto ao pão: Damos-vos graças,Pai nosso, pela vida e sabedoria que nos comunicastes através de Jesus,vosso filho. Para vós, glória eterna. (14)

Notem que não há menção ao vinho, representando o sangue, ou aopão, representando a carne. E, no entanto, é um registro da primeira refeiçãoda Eucaristia cristã! Este texto nos faz lembrar muito das descrições da sagrada

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refeição messiânica nos Manuscritos do Mar Morto. O que temos aqui é acelebração messiânica de Jesus como o Messias da linhagem de Davi, e a vida ea sabedoria que ele trouxe à comunidade. Evidentemente, essa comunidade deseguidores de Jesus nada sabia da cerimônia proposta por Paulo. Se a prática dePaulo viera realmente de Jesus, seguramente esse texto tê-la-ia incluído.

Existe mais um ponto importante a esse respeito. Na tradição judaica, é ocálice de vinho que, primeiramente, é abençoado, depois o pão. Essa é a ordemque encontramos na Didache. Mas no relato de Paulo da "Ceia do Senhor", Jesusabençoa primeiro o pão, depois o cálice de vinho - justamente o oposto. Podeparecer um detalhe insignificante até examinarmos o relato de Lucas sobre aspalavras de Jesus, durante a refeição. Embora ele siga basicamente a tradiçãode Paulo, ao contrário deste, Lucas fala primeiro no cálice de vinho, depois nopão e, em seguida, em outro cálice de vinho! O pão e o segundo cálice de vinhoele interpreta como o "corpo" e o "sangue" de Jesus. Mas quanto ao primeirocálice - na ordem que se esperaria da tradição judaica - nada é dito querepresente "sangue". Ao contrário, Jesus diz, "Eu vos digo, doravante nãobeberei da fruta da videira até a chegada do Reino de Deus" (Lucas 22:18). Essatradição do primeiro cálice, só encontrada em Lucas, é uma pista do que deveriater sido a tradição original antes de a versão Paulina ter sido inserida, agoraconfirmada pela Didache.

Vista sob essa luz, essa última refeição tem sentido histórico. Jesus disse aseus seguidores mais próximos, reunidos secretamente na Sala do AndarSuperior, que ele não partilharia com eles outra refeição até a chegada do Reinode Deus. Ele sabe que Judas iniciará, naquela noite, os procedimentos queculminarão com sua prisão. Suas esperança e prece são de que, da próxima vezem que estiverem sentados juntos para comer, dando a tradicional bênçãojudaica do vinho e do pão - o Reino de Deus já tenha chegado.

Uma vez que Jesus se reuniu só com seu Conselho dos Doze, nessa últimarefeição privada, Tiago e os três outros irmãos de Jesus teriam estadopresentes. Isso foi confirmado em um texto perdido chamado Evangelho dosHebreus, que era usado por judeus-cristãos que rejeitavam os ensinamentos e aautoridade de Paulo. Sobrevive apenas em algumas citações, preservadas porautores cristãos, como Jerônimo. Uma das passagens nos diz que Tiago, o irmãode Jesus, depois de ter bebido do cálice que Jesus fizera circular, afiançou quetambém ele não comeria ou beberia até ver o Reino chegar." Portanto, temosaqui a prova textual de uma tradição que recorda a presença de Tiago na últimarefeição.______(10) Manuscritos do Mar Morto, The Messianic Rule (1QSa) 2.11-25.(11) The Demotic Maginal Papyrus of London and Leiden 15.1-6, em The Greek MagicalPayri in Translation, incluing the Demotic Spells, ed. Hans Dieter Betz (Chicago: Universityof Chicago Press, 1968).(12) Papyri graecae magicae 7.643ff.(13)Didache é promunciado como did-a-quei.(14) Didache 9:1-3, em Bart Ehrman, trad. The Apostolic Fathers, Loeb Classical Library24, vol. 1 (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2003), p. 431.

(TABOR, 2006, p. 215-219). (grifo nosso).

Realmente, a questão de comer carne e beber sangue para um judeu era algoimpensável; por isso, Jesus, que nasceu, viveu e morreu como judeu, jamais teria dito isso.

É bem possível que essa linguagem de Paulo, foi proposital para os gentios (=pagãos),que, certamente, estavam acostumados esse tipo de coisa. Em José de Souza Pinheiro(1938- ), encontramos apoio a essa hipótese:

Como nos esclarece o teólogo Franz Griese (cf. GRIESE, p. 174-175), notempo de Paulo, os pagãos e os judeus costumavam sacrificar animaisaos respectivos deuses. A carne desses animais sacrificados era consumidanos mercados públicos, na qualidade de carne de Júpiter (o Senhor dos deuses),carne de Minerva (deusa da sabedoria) etc., segundo as divindades a quemhaviam sido sacrificados os animais. Os consumidores escolhiam a carneque mais lhes convinha, crendo que comendo essa carne recebiam umabênção especial da divindade respectiva, e até entrar em certa uniãocom ela, mediante aquela carne.

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É da maior importância ter presente essas crenças da antiguidade, paracompreender o sentido das palavras nos escritos daqueles que viviam naquelaépoca e estavam imbuídos de suas ideias.

Pois bem, o apóstolo Paulo, para induzir os novos cristãos, oriundosdos povos pagãos, a não participarem dos sacrifícios pagãos e nãocomerem a carne dos animais sacrificados aos ídolos, proíbe essaprática, substituindo-a pela "Ceia do Senhor", dizendo que, como pelacarne dos ídolos, o homem participa dos "demônios", ou seja, dos "deusespagãos", do mesmo modo pelo consumo do pão e do vinho eucarísticos o cristãoparticipa do "Cristo da fé" (cf. GRIESE, p. 175).

Mas, como afirma Griese (ibid.), não há a menor dúvida de que Paulo nãoacreditava numa participação literal da própria pessoa dos deuses pagãos,mediante a carne dos ídolos e, portanto, tampouco na participação literal daverdadeira pessoa de Cristo, mediante o pão e o vinho eucarísticos.

Os coríntios (como Paulo) também tinham um conceito simbólico muitosimples da eucaristia e, certamente, não tinham a convicção de que o pão seriao verdadeiro corpo e o vinho o verdadeiro sangue de Cristo. Eles apenasacreditavam que, ao comerem o pão e ao beberem o vinho, participavam doCristo da fé, do mesmo modo como os pagãos acreditavam que participavamsimbolicamente dos seus deuses comendo a carne dos animais sacrificados emsua honra (cf. GRIESE, p. 179). (SOUZA, 2011, p. 134) (grifo nosso).

Recorreremos agora a Edward Carpenter (1844-1929) que nos traz algo bem curioso arespeito da palavra eucaristia:

Eu já falei sobre várias das principais doutrinas do Cristianismo - ouseja, do pecado, do sacrifício, da Eucaristia, do Salvador, doRenascimento e da transfiguração - mostrando que eles não são únicosem nossa religião, mas sim comuns a quase todas as religiões do mundoantigo. A lista pode ser muito aumentada, mas não há necessidade de nosatermos a um assunto que, de modo geral, já foi compreendido. Dedicarei, noentanto, uma ou duas páginas para um exemplo, que eu julgo muitointeressante e cheio de sugestão profunda.

[...]E, ainda, o fato extraordinário é que uma crença parecida existe em todas as

religiões antigas e pode nos remeter ao passado. A palavra hóstia, que éusada na missa católica para representar o pão e o vinho no altar, símbolos docorpo e do sangue de Cristo, vem do latim Hóstia, que no dicionáriosignifica "um animal morto em sacrifício, uma oferta para compensarum pecado". Isso nos leva de volta ao estágio do totem, quando toda a tribo,como eu já expliquei, coroava um touro, um urso ou um outro animal com florese prestavam-lhe honras com comida e adoração, sacrificavam a vítima para oespírito do totem da tribo e o comiam em uma festa eucarística - e o curandeiroou sacerdote que dirigia o ritual vestia a pele desse animal como um sinal deque ele representava o totem -, divindade, participando do sacrifício de "simesmo para si mesmo". Isso nos faz lembrar dos khonds em Bengal sacrificandoseus meriahs coroados e enfeitados como deuses e deusas; dos astecas fazendoo mesmo; dos quetzalcoatl furando seus cotovelos e dedos para tirar sangue,oferecido em seu próprio altar; ou de Odin sendo pendurado, por vontadeprópria, em uma árvore. "Sei que fui pendurado em uma árvore que foibalançada pelo vento por nove longas noites. Uma lança atravessou meu corpo,fui levado a Odin. eu para mim”. E assim por diante. Os exemplos são infinitos."Sou a oblação". diz Krishna no Bhagavad Gita (22). "Sou o sacrifício, a oferendaaos ancestrais". "No real conceito ortodoxo de sacrifício", diz Elie Reclus (23). "aoferenda consagrada, seja ela um homem, uma mulher ou uma virgem, umcarneiro ou novilha, galo ou pombo, representa a divindade..._______(22) Cap. IX, V. 16.(23) Primitive Folk, cap. VI.

(CARPENTER, 2008, p. 90-91) (grifo nosso).

Então, no fundo, temos que a eucaristia nada mais é que um ritual de origem pagã.

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É inacreditável que ainda se adotem, nos dias atuais, práticas religiosas tidas “comobíblicas”, quando, na verdade, são, em sua esmagadora maioria, atos pagãos, para usar umaexpressão ao gosto dos teólogos. É o caso que estamos analisando, que é corroborado porHolger Kersten (1952- ) e Elmar R. Gruber (1955- ), que, narrando o culto persa a Mitra,dizem: “O serviço religioso semanal era realizado aos domingos, dia dedicado ao deus. Acerimônia mais importante do culto era uma ceia que constava de vinho e pão – oferecidona forma de hóstias consagradas que tinham o sinal da cruz”. (KERSTEN e GRUBER, p.316). (grifo nosso).

Curiosa é a frase a seguir, atribuída a Mitra, que nos coloca diante de um fato, emrelação ao qual qualquer semelhança não é mera coincidência: "Aquele que não comer minhacarne e não beber meu sangue para ser um comigo, e eu um com ele, aquele não conhecerá asalvação". (FREKE e GANDY, 2002, p. 11 e 52). Será que com a realização desses dois atos,simultaneamente, não teremos exatamente o que se faz no ritual da santa missa?

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A conversa de Jesus com Nicodemos

O que temos observado, e que achamos muito interessante, é que as pessoas que nãoacreditam na reencarnação fazem de tudo para retirar essa ideia da Bíblia, como se isso, por sisó, fosse resolver a questão. Estes indivíduos pressupõem, ingenuamente, que se a Bíblia nãodisser nada sobre a reencarnação, esta não irá existir. Já falamos, e por várias vezes, que aBíblia não é um compêndio de Ciência e que, por isso, não podemos determinar a existência ounão de qualquer uma das leis naturais com base em suas páginas. Para nós, a reencarnaçãoestá no âmbito das leis naturais, não tendo nada a ver com religião, como a querem levar aesse campo seus contraditores, para, daí, apresentarem a Bíblia como prova de sua nãoexistência. Nosso objetivo será exatamente o de provar o contrário.

Após retirarem, mudarem ou interpretarem de forma equivocada e tendenciosaalgumas passagens, arrematam categóricos: “não está lá”. Isso satisfaz, evidentemente, aosque aceitam tudo sem questionar e aos que, subjugados pela liderança religiosa, não ousamcontestá-la, esquecendo-se de que somente “onde se acha o Espírito do Senhor aí existe aliberdade” (2Cor 3,17).

Vamos analisar uma das passagens, talvez a que causa maior polêmica entre osantirreencarnacionistas de carteirinha, ou seja, os cristãos fundamentalistas, para extrair delao seu significado.

A passagem está em João capítulo 3, versículos de 1 a 12; leiamos:

1. Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um notável entre osjudeus. 2. à noite ele veio encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vensda parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deusnão estiver com ele”. 3. Jesus lhe respondeu: "Em verdade, em verdade, te digo:quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”. 4. Disse-lhe Nicodemos:“Como pode um homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio desua mãe e nascer?” 5. Respondeu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quemnão nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. 6. O que nasceuda carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. 7. Não te admires de eu te haverdito: deveis nascer de novo. 8. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, masnão sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele quenasceu do Espírito”. 9. Perguntou-lhe Nicodemos: “Como isso pode acontecer?” 10.Respondeu-lhe Jesus: “És mestre em Israel e ignoras essas coisas? 11. Em verdade,em verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos,porém não acolheis o nosso testemunho. 12. Se não credes quando vos falo das coisasda terra, como crereis quando vos falar das coisas do céu?” (Bíblia de Jerusalém).

O realce, em negrito, aos termos dos versículos 3 e 7, é nosso, já que devemosdestacá-los mais à frente.

a) A Teologia Católica

A polêmica instala-se por conta do termo grego anóthem, que, segundo os exegetas,tanto pode ser entendido como “de novo” quanto “do alto”. Isso é um prato cheio para que osteólogos tirem dessa passagem a ideia da reencarnação, para introduzirem a do batismo, para,com isso, justificarem este ritual.

Uma das traduções que destacamos é a da Bíblia de Jerusalém, pelo motivo dela tersido elaborada por uma equipe de tradutores católicos e protestantes. Nela lemos a seguinteexplicação: “João emprega um termo grego, anóthem, que significa também ‘do alto’ (cf. 3,7.31). Esse duplo sentido não existe na língua de Jesus e de Nicodemos”. (p. 1847).Aqui vemos um golpe de morte naqueles que querem buscar nisso um pretexto para retirardessa passagem a ideia da reencarnação.

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Vejamos o que encontramos em outras Bíblias católicas:

Ave Maria: no v. 4 está dito “renascer”, e quanto ao v. 5 explicam que é uma alusão aobatismo. (p. 1386).

Pastoral: apenas no v. 3 usaram “do alto”, buscam, também, relacionar essa passagemao rito do batismo. (p. 1356-1357).

Barsa: aplicaram ao v. 3 a expressão “renascer de novo”, no v. 5 “renascer” e no 7“nascer outra vez”. Embora não falem nada sobre batismo, implicitamente querem levar a essaideia quando, no v. 5, ao invés de colocar “e do Espírito”, mudam para “e do Espírito Santo”.Um detalhe importante dessa Bíblia é sua antiguidade; foi editada em 1965, do queconcluímos que nas edições mais recentes, a preocupação de retirar a ideia da reencarnaçãofica mais evidente. (Novo Testamento, p. 79).

Santuário: Usam no v. 3 e 5 “de novo”; na explicação do v. 3 colocam:

O termo grego aqui empregado é ambíguo. Tanto se pode traduzir por ‘nascerde novo’ como por ‘nascer do alto’. Nicodemos entende-o no primeirosentido, como se vê pelo contexto. Jesus, porém, reconduz a conversa aoseu caminho: os que pertencem ao Reino, não são os que nasceram da carne edo sangue (os descendentes de Abraão, como pensavam os judeus), mas os quenasceram de Deus (cf. Jo 1,13). Tal nascimento realiza-se no batismo (Jo 3,5).(p. 1574) (grifo nosso).

Do Peregrino: informam-nos que Nicodemos em grego quer dizer “vitória do povo”;aliás, muito significativo para a ideia da reencarnação. (p. 2552).

Vozes: nos v. 3 e 7, aplicam o “do alto”, dando a seguinte explicação:

A expressão nascer do alto (v. 3) em grego pode ser entendida tambémcomo nascer de novo, como faz Nicodemos (v. 4), no sentido de serconcebido e dado à luz. Jesus, no entanto, fala de um novo nascimento de Deus,da água e do Espírito Santo (v.5), numa referência direta ao rito do batismo (cf.1,12s). (p. 1275) (grifo nosso).

Aqui temos a confirmação de que, pelo contexto, a expressão deverá ser entendidacomo “nascer de novo”, pois foi assim que Nicodemos entendeu, conforme nos afirmam algunstradutores da Bíblia. Não adianta, para justificar o contrário, querer comparar o significado deuma palavra colocada em textos diferentes, uma vez que ela poderia, muito bem, tersignificados distintos, o que somente o contexto em que cada uma está poderá dar a conhecê-los.

Quanto à questão do batismo, iremos falar mais à frente, noutro tópico.

b) A Teologia Protestante

Tanto a Novo Mundo, quanto a SBB e a Mundo Cristão, utilizam o “nascer de novo”.Dessa última transcreveremos as explicações a seguir:

3:3 nascer de novo. Lit., de cima (como em 3:31; 19:11), embora a palavratambém signifique “outra vez”, “de novo” (Gl 4:9). O novo nascimento ouregeneração (Tt 3:5) é o ato de Deus que concede vida eterna ao que crê emCristo. Como resultado, tal pessoa torna-se membro da família de Deus (1 Pe1;23) com uma nova capacidade e um novo desejo de agradar a seu Pai celeste(2 Co 5;17).

3:5 Quem não nascer da água e do Espírito. Várias interpretações têm sidosugeridas para o termo água neste versículo: (1) Que ela se refere ao batismocomo condição para a salvação. Isto, porém, contradiz muitas outras passagensdo N.T. (Ef 2:8-9). (2) Representa o ato de arrependimento indicado pelobatismo de João. (3) Refere-se ao nascimento físico; assim, o versículo diria:“Quem não nascer a primeira vez da água e a segunda vez do Espírito”. (4)Significa a palavra de Deus, como em Jo 15;3. (5) É um sinônimo para o EspíritoSanto, sendo esta a tradução: “da água, isto é, do Espírito”. Uma verdade é

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clara: o novo nascimento vem de Deus através do Espírito. (p. 1322).

Vez por outra, recorremos a um renomado filósofo do século XVII, Baruch de Espinosa(1632-1677), já que, o que afirmou, ainda prevalece em nossos dias. Agora novamente ofaremos; assim leiamos:

Admira-me bastante, pois, a engenhosidade de pessoas, como aquelas dequem já falei, que enxergam na Escritura mistérios tão profundos que se tornaimpossível explicá-los em qualquer língua humana e que, além disso,introduziram na religião tantas matérias de especulação filosófica que a Igrejaaté parece uma academia e a religião uma ciência, ou melhor, uma controvérsia.[...]. (ESPINOSA, 2003, p. 208).

O comum dos teólogos, todavia, entende que se devem interpretarmetaforicamente aquelas passagens em que se atribuem a Deus coisas que elesconseguem ver pela luz natural serem incompatíveis com a natureza divina, aopasso que tudo aquilo que escapa à sua capacidade de compreensão se deveráaceitar à letra. Porém, se todas as passagens daquele gênero que se encontramna Escritura tivessem obrigatoriamente de ser interpretadas e entendidasmetaforicamente, então a Bíblia não teria sido escrita para o povo e para o vulgoignorante, mas unicamente para os especialistas, designadamente os filósofos.(ESPINOSA, 2003, p. 213).

Aqui é interessante notar que mais um tiro mortal é dado, dessa vez em relação àquestão de relacionar a passagem ao ritual do batismo como condição sine qua non para asalvação, conforme ainda podemos perceber em alguns argumentos teológicos.

c) A Teologia Espírita

Vamos apresentar os argumentos de um escritor espírita sobre este assunto. No livro“Analisando as Traduções Bíblicas”, o autor Severino Celestino da Silva (1949- ), no capítuloXVII – A Reencarnação no Novo Testamento, ao se referir à passagem de João 3,1-12, diz-noso seguinte:

Este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que querem negar aReencarnação. No entanto, é o mais claro e contundente de todos, por isso,existe um verdadeiro malabarismo por parte destes, no sentido de obscurecer overdadeiro e claro sentido desta passagem. Iniciamos pelo vocábulo “anóten”que em grego pode significar “de novo” e “do alto”.

Nesta passagem, esse vocábulo significa realmente “de novo”, porém amaioria dos exegetas emprega o termo “do alto” para justificar a suadescrença na Reencarnação. Este malabarismo envolve também a questãogramatical na tradução do texto, como veremos mais adiante. Colocaremos,aqui, muitas observações e conceitos empregados, sobre este texto, feitos porTorres Pastorino na sua obra “Sabedoria do Evangelho”, com relação ao textogrego. Concordamos plenamente com todos os seus conceitos, razão por que ousaremos para reforçar nossa exegese. A análise do texto hebraico é de autoriae responsabilidade nossa.

Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: “AQUELE QUE NÃONASCER “DO ALTO”. Observe, no entanto, que a pergunta feita por Nicodemos,em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente em nascer“de novo” e não “do alto”: Como “pode o homem, depois de velho, entrarpela segunda vez (duteron) no ventre materno?”.

Esta ambiguidade de entendimento só acontece na língua grega, porque nohebraico, que foi realmente a língua em que Jesus dialogou com Nicodemos,este problema não existe. O texto é bem claro e jamais pode significar “doalto”. Diz o seguinte: (“im lô iauled ish mimkôr 'al lô-iukal lirôt et-malkuthaelohim”) im=se, lô=não, iualed=incompleto do grau qal(1) do verbo“nolad”=nascer, ish=um homem, mimikôr=palavra composta, formada pormi=de + makôr=fonte de água viva, origem. Existe a expressão hebraica“Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da vida”. Observe que não existe nadareferente “ao alto”, no texto grego, como muitos querem se fazer entender.Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em origem, no sentido de se

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voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente, “não poderá” (lô-iuchal=incompleto do verbo iachôl=poder) ver o reino de Deus (lirôt et-malkut haelohim).

Assim, no diálogo, a palavra grega “anóten” tem o sentido e significado de'de novo', portanto, Jesus falava de retorno, ou seja, de Reencarnação mesmo,como foi visto no texto hebraico.

Lembramos, ainda, que Nicodemos já era um cidadão de idade avançada e oCristo lhe fala da Reencarnação (Nascer de Novo), como uma esperança ereconforto para ele, mostrando-lhe que a vida não termina com a morte, nem osvelhos devem temer a morte, pois podem renascer e começar tudo novamente.

Na sequencia, Cristo confirma que era isso mesmo que Ele queria dizer:“Quem não nascer de água (materialmente, com o corpo denso, dadoque o nascimento físico é feito através da bolsa d’água do líquidoamniótico), veja o cap. VII deste livro, Salmo 23 e de espírito(pneumatos), ou seja, que adquira nova personalidade no mundoterreno, em cada nova existência, a fim de progredir). Se Nicodemosentendeu ao pé da letra as palavras de Jesus, o Mestre as confirma aopé da letra e reforça o seu ensino. Com efeito, o espírito, ao reentrar navida física, pode ser considerado o mesmo espírito que reinicia suasexperiências, esquecido de todo passado”.

A questão gramatical: No texto em grego não há artigo diante das palavras“água” (ek ydatos= de água) “e espírito” (kai pneumatos), portanto, otexto fala em nascer “de água e de espírito”. Não é portanto, nascer da águado batismo, nem do espírito, mas de água (por meio da água) e de espírito(pela Reencarnação do espírito).

O primeiro versículo do Gênesis (1:1) fala que no princípio criou Deus osCéus e a terra. A palavra 'céus' em hebraico “Shamaim” (2) - significa:“Carrega água”, “Ali existe água”; “fogo e água” que misturados um aooutro, formaram os Céus.

Como podemos observar, tudo começou com as águas. Água é vida e essaera a crença geral naquela época. É lógico que o Cristo não falava de batismo esim de retorno através da água. Lembramos ainda que 99% da constituição dascélulas reprodutoras são água.

Daí a explicação que segue: “o que nasce da carne (ek tês sarkos) comartigo (tês) em grego, é carne”, isto é com corpo físico, com toda ahereditariedade física herdada do corpo dos pais; “e o que nasce doespírito (ek tou pneumatos) é espírito”, ou seja, o espírito quereencarna provém do espírito da última encarnação com toda ahereditariedade pessoal (cármica) que traz do passado.

E Jesus prossegue: “Por isso não te admires de eu te dizer: é-vosnecessário nascer de novo”. Observe a diferença de tratamento: “dizer-TE”no singular, e “é-VOS” no plural, porque o renascimento é para todos, nãoapenas para Nicodemos. E mais: “o espírito sopra (isto é, age, reencarna,se manifesta onde quer), e não sabes de onde veio (ou seja, sua últimaencarnação), nem para onde vai (qual será a próxima).

As palavras de Jesus foram de modo a embaraçar Nicodemos, queindaga: “como pode ser isso?” E Jesus: “Tu que (entre nós dois) éMestre de Israel, te perturbas com estas coisas terrenas? Que te nãoacontecerá então, se te falar das coisas celestiais (espirituais)?”.

Logicamente Jesus não podia esperar que Nicodemos entendesse asinterpretações mais profundas desse ensinamento, nem tão pouco estavaquerendo ensinar-lhe o batismo, nesta passagem, como muitos queremjustificar

Se o Cristo falava realmente do batismo para Nicodemos, por que não oconvidou a se batizar? E por que o próprio Cristo não o batizou? Leia em João4:2 que Cristo não batizava, quem batizava eram os discípulos. E por que diantede tantas curas, milagres e encontros, como no da “Adúltera”, com “Zaqueu”,com o “Centurião”, com a “Cananeia”, Cristo nunca falou em batismo? Nãoseria uma oportunidade para este convite? No entanto, sua recomendação erapara a mudança interior: “vai e não peques mais para que coisa pior nãote venha acontecer”.

E Jesus conclui exemplificando: “como Moisés ergueu a serpente nodeserto, assim o Filho do Homem será erguido da Terra”. (Veja a história

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da serpente erguida no deserto no Livro Números – vaicrá- 21:4-9).Aqui o Cristo prevê o que aconteceria a Ele, ou seja, a sua morte na cruz

para que hoje seja erguido na terra como filho de Deus e dirigente de toda anação terrena.

Paulo, em sua epístola a Tito 3:4-5, interpreta bem esta citação do Cristo:“Mas quando apareceu a vontade de Deus, nosso salvador, e o seu amorpara com os homens, não por obras da justiça que tivéssemos feito,mas segundo sua misericórdia nos salvou pelo lavatório dareencarnação, e pelo renascimento de um espírito santo”.

Aqui, Paulo deixa bem claro que Deus nos salvou não porque o tivéssemosmerecido, mas por Sua misericórdia, servindo-se da reencarnação a qual é um“lavatório” (de água) e um “renascimento do espírito”. A palavra grega dotexto a que se refere Paulo é παλιγγενεσίας “Palingenesia” – isto é,“renascimento”, “Novo Nascimento”, REENCARNAÇÃO.______(1) Esclarece-nos o autor do livro, Dr. Severino que: O termo QAL ou qal é uma palavrahebraica que significa "Fácil" que tem o sentido gramatical de "forma fácil" ou "simples" deconjugação do verbo na língua hebraica. O verbo em hebraico possui sete graus deconjugação (Qal, nif'al, piel, pual, hif'iil, haf'al e hitpa'el.) Nesse caso específico foicolocado com relação ao verbo nascer (nolad-em hebraico). O incompleto que é o futurodo verbo na forma QAL que é a mais simples das conjugações.(2) Neste ponto é colocada a palavra em hebraico:

(SILVA, 2001, p. 238-242) (os grifos são do original).

Deixa-nos Severino Celestino, e com clareza meridiana, um posicionamento sereno eequilibrado diante da passagem analisada, embora saibamos que não irá agradar aosfundamentalistas. Mas como já o dissemos, não é este o nosso objetivo.

Como sempre argumentam que, naquela época, não existia a ideia conceitual dareencarnação, devemos, por amor à verdade, apresentar as provas de que isso não temfundamento.

A primeira questão é que, se nós formos buscar a palavra “reencarnação” na Bíblia, nãoa encontraremos. Entretanto, facilmente encontraremos uma outra terminologia que é usadaem algumas situações, com o conceito de reencarnação, e que é a palavra “ressurreição”.

Quatro são as ideias que eles tinham sobre ressurreição:

1ª - alguém voltar a viver na condição de espírito;

2ª - reviver no mesmo corpo físico;

3ª - voltar a viver num outro corpo físico; e

4ª - ressurgir em espírito e, nessa condição, influenciar uma pessoa.

Mais informações sobre essas quatro ideias poderão ser vistas no texto “Ressurreição, osignificado bíblico”, disponível no site www.paulosnetos.net

Para exemplificar a terceira ideia, podemos citar a narrativa de Lucas (9,18-20) sobre oepisódio em que Jesus pergunta aos seus discípulos o que o povo pensava dele, ao que lheresponderam: "Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; mas outros achamque tu és algum dos antigos profetas que ressuscitou". Pela resposta podemos perceberque é exatamente a ideia da reencarnação, pois Jesus só poderia ser Elias, Jeremias, que écitado em Mt 16,14, ou algum outro dos antigos profetas, se aceitassem essa possibilidade deressurreição no sentido de reencarnação, termo, inclusive, usado no texto. A prova que nãoentendiam bem sobre a reencarnação, aqui com o nome de ressurreição, é pelo fato de teremcitado João Batista, que foi contemporâneo de Jesus.

Considerando que nos foi informado que Nicodemos era um fariseu, não podemosdeixar de falar dessa classe política e religiosa que existia àquela época. Nós buscaremos estainformação num historiador que viveu naquele tempo, chamado Flávio Josefo (37-1-3 d.C.).Suas obras históricas são: Antiguidades Judaicas, Guerra dos Judeus e Resposta de FlávioJosefo a Ápio, que, em nosso caso, fazem parte do livro História dos Hebreus.

E a título de informação transcrevemos:

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Quem foi Flávio Josefo? Foi ele um escritor e historiador judeu que viveuentre 37 a 103 d.C. Seu pai foi sacerdote e sua mãe descendia da casa realhasmoneana. Portanto, Josefo era de sangue real. Ele foi muito bem instruído navasta cultura judaica, bem como na grega. Falava perfeitamente o latim – oidioma do Império Romano, e também o grego. Logo cedo na vida demonstrouintenso zelo religioso, filiando-se ao grupo religioso dos fariseus. (...) (JOSEFO,2003, p. 41).

Ele, descrevendo a maneira de viver dos fariseus, coloca:

(...) Eles julgam que as almas são imortais, que são julgadas em um outromundo e recompensadas ou castigadas segundo foram neste, viciosas ouvirtuosas; que umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida eque outras voltam a esta. (...) (JOSEFO,2003, p. 416) (grifo nosso).

E quando alguns soldados, derrotados na guerra contra os romanos, pensavam emsuicidar-se, alerta-os dizendo:

(...) Não sabeis que Ele difunde suas bênçãos sobre a posteridade daqueles,que depois de ter chamado para junto de si, entregam em suas mãos, a vida,que, segundo as leis da natureza, Ele lhes deu e que suas almas voam puraspara o céu, para lá viverem felizes e voltar, no correr dos séculos,animar corpos que sejam puros como elas e que ao invés, as almas dosímpios, que por loucura criminosa dão a morte a si mesmos são precipitados nastrevas do inferno; (...) (JOSEFO, 2003, p. 600) (grifo nosso).

Assim, é justo dizer que os fariseus acreditavam numa ressurreição em outro corpo,ainda que não se tenha dito quantas vezes. Ora, isso não é nada mais nada menos do queaquilo que entendemos por reencarnação.

Podemos, ainda, para corroborar a afirmativa de que ela era crença no judaísmo, trazerpara comprovação os conhecimentos contidos na Cabala, que, segundo seus estudiosos, é osignificado mais profundo e oculto da Torá.

O Rabino Philip S. Berg (1929- ), em Reencarnação as Rodas da Alma, diz que:

A palavra hebraica para reencarnação é Guilgul Neshamot, que literalmentequer dizer ‘roda da alma’. É para esta vasta roda metafísica, com sua coroaconstelada de almas, como estrelas nas bordas de uma galáxia, que devemosdirigir nosso olhar, se desejamos ver além da aparência da inocência punida e damaldade recompensada. Guilgul Neshamot é uma roda em constante movimentoe, ao girar, as almas vêm e vão diversas vezes, num ciclo de nascimento,evolução e morte e novo nascimento. A mesma evolução ocorre com o corpo nodecorrer de uma única vida. Ocorre o nascimento, o crescimento das células, apaternidade e a morte – novos corpos produzidos pelos antigos, dando assimcontinuidade à forma física. É sempre um pai que concede sua semente paraque haja continuidade, num processo sem fim. (BERG, 1998, p. 17-18).

Severino Celestino, citando o Rabino Shamai Ende, diz:

Sobre a Reencarnação, apresentamos, aqui, para ilustrar, o depoimento doRabino Shamai Ende, colaborador da Revista Judaica “Chabad News”,publicação de Dez a Fev 1998. Vejamos o texto na íntegra: “O conceito deGuilgul (Reencarnação) é originado no judaísmo, sendo que uma almadeve voltar várias vezes até cumprir todas as mitsvot(1) da Torá. Alémdisso, cada alma tem uma missão específica. Caso não tenha cumprido asua, a alma deve retornar a este mundo para preencher tal lacuna.Somente pessoas especiais sabem exatamente qual é sua missão devida. [...]”.______(1) Mitsvot – plural de mitsvá que significa mandamento ou prática de boas obras –caridade.

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(SILVA, 2001, p. 161) (grifo do original).

Disso podemos concluir que Nicodemos, sendo um fariseu, fatalmente acreditava quealguém poderia voltar; entretanto, não sabia como isso poderia acontecer, razão daquelas suasperguntas a Jesus.

Será que Jesus pregou o Batismo? Um fato incontestável é que Jesus nasceu, viveu emorreu como judeu. Também não há como discutir que o batismo não era a prática ritualísticano judaísmo, que sabemos ser a da circuncisão, ato a que, segundo narrativa no Evangelho, opróprio Jesus foi submetido.

Curioso é que, dos quatro evangelistas, somente João diz algo sobre o batismo.Primeiro, ele afirma que Jesus batizava (Jo 3,22); entretanto, logo depois contradiz o que disseantes dizendo que Jesus mesmo não batizava, mas sim os seus discípulos (Jo 4,2), o que nosdeixa desconfiados, pois sabemos que os Evangelhos foram escritos em grego, exceto o deMateus que foi em aramaico, e que João era iletrado, portanto, sem instrução (At 4,13); como,então, poderia ter escrito o Evangelho que lhe é atribuído? Por isso, não é absurdo supor que,na verdade, outra pessoa o escreveu, fato que nos coloca diante também da possibilidade deque os textos poderiam ter sido “ajeitados” aos interesses dogmáticos daquela época. Todavia,a contradição pode ser apenas aparente, já que o batismo de Jesus não era o mesmo batismode João Batista. Sobre isso, encontramos uma passagem que diz: “Eu, na verdade, vos batizoem água, na base do arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do queeu, que nem sou digno de levar-lhe as alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e emfogo.” (Mt 3,11).

Outrossim, considerando que Nicodemos “era membro do Conselho supremo chamadoSinédrio” (Bíblia Sagrada Ave Maria, p. 1386), portanto, entendedor das práticas ritualistas dosjudeus, não teria cabimento a pergunta (És mestre em Israel e ignoras essas coisas?) feita porJesus a ele. Se Jesus estivesse mesmo se referindo ao batismo, certamente, que paraNicodemos, era muito fácil de entender. Se ele desconhecia é porque, na verdade, era sobreoutra coisa que Jesus lhe falava. Pelos seus questionamentos ao Mestre, fica claro que era algomais profundo do que um simples batismo, tinha, portanto, que ser de um assunto maiscomplexo que esse. Com certeza, a reencarnação é algo assim, já que a maioria das pessoaspor “ignorar essas coisas”, não sabem exatamente sobre “como pode um homem velho voltara nascer de novo”; daí fazer a mesma pergunta que fez Nicodemos: “porventura irá entrar noventre de sua mãe para nascer pela segunda vez?” A esses responderemos igual a Jesus: “Nãote admires disso”.

Sobre o que Nicodemos entendeu, transcrevemos esse trecho da história na versão deHuberto Rohden (1893-1981), renomado teólogo:

Então passa o Mestre a mostrar a seu novel discípulo que o principal não éfazer algo, mas ser alguém.

– Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não pode ver oReino de Deus.

Nascer de novo? Nicodemos logo pensa em reencarnação material ereplica:

– Como pode um homem velho nascer de novo?E, um tanto irônico, acrescenta:– Será que pode voltar ao ventre de sua mãe e nascer mais uma vez?

(ROHDEN, 2007, p. 73-74) (grifo nosso)

É importante esse entendimento de Rohden, porquanto mesmo sem aceitar areencarnação, como se poderá ver no desenrolar de sua versão da história, ele admite queNicodemos entendeu sim que o que Jesus falava era sobre reencarnação.

Não obstante tudo isso, se o batismo nas águas fosse mesmo uma prática recomendadaaos Cristãos, porque Paulo não deu ênfase a isso? Ele mesmo o responde:

“Para que ninguém diga que fostes batizados em meu nome. É verdade, batizeitambém a família de Estéfanas, além destes, não sei se batizei algum outro. Porque

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Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não em sabedoriade palavras, para não se tornar vã a cruz de Cristo”. (1Cor 1,15-17).

Kardec assim explicou o texto de João, em exame:

Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também seatente na significação do termo água que ali não fora empregado naacepção que lhe é própria.

Muito imperfeitos eram os conhecimentos dos antigos sobre as ciênciasfísicas. Eles acreditavam que a Terra saíra das águas e, por isso, consideravam aágua como elemento gerador absoluto. Assim é que na Gênese se lê: "O Espíritode Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; - Que ofirmamento seja feito no meio das águas; - Que as águas que estão debaixo docéu se reúnam em um só lugar e que apareça o elemento árido; - Que as águasproduzam animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terrae sob o firmamento."

Segundo essa crença, a água se tornara o símbolo da naturezamaterial, como o Espírito era o da natureza inteligente. Estas palavras:"Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito",significam pois: "Se o homem não renasce com seu corpo e sua alma." E nessesentido que a principio as compreenderam. Tal interpretação se justifica, aliás,por estas outras palavras: O que é nascido da carne é carne e o que é nascidodo Espírito é Espírito. Jesus estabelece aí uma distinção positiva entre o Espíritoe o corpo. O que é nascido da carne é carne indica claramente que só o corpoprocede do corpo e que o Espírito independe deste. (KARDEC, 2007c, p. 91)(grifo nosso).

Informa-nos, também o escritor L. Palhano Jr. (1946-2000):

(...) A água tinha grande simbolismo entre os hebreus; tanto o espírito comoas águas são fecundos (Is 32:15; 44:3; Ez 36:25-27); o espírito é coisa queDeus envia e derrama, como água (Jl 3:1-2; Zc 12:10). Água era umaexpressão para indicar influências boas ou más, como no (Sl 1:3): “Pois serácomo a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto naestação própria, e cujas folhas não caem; e tudo quanto fizer prosperará”. (...)(PALHANO JR, 2001, p. 403) (grifo do original)

Daí a necessidade de entendê-la pelo seu simbolismo e não no sentido literal comoquerem se apegar os que não acreditam na reencarnação. Ademais, se compararmos osversículos 5 e 6 e a respectiva conclusão no 7, veremos que não poderá ser mesmo do batismoque Jesus falava. Existe uma evidente relação entre o versículo 5 e o 6, especificamente nasexpressões “nascer da água” com “nasceu da carne é carne” e “nasceu do Espírito” com“nasceu do Espírito é espírito”. Essa relação nada tem a ver com batismo e nem mesmo comrenovação espiritual como acreditam muitos outros, já que Jesus finaliza taxativo: “Não teadmires de eu te haver dito: deveis nascer de novo” (v. 7), significando que o homemfisicamente descende do homem, e o Espírito provém de Deus.

Por outro lado, sendo a reencarnação coisa da terra, explicaria, indubitavelmente, essafala final de Jesus a Nicodemos: “Se não credes quando vos falo das coisas da terra, comocrereis quando vos falar das coisas do céu?” (v. 12).

Uma outra questão para análise é: João Batista era Elias reencarnado?

Após tecer comentários sobre o diálogo entre Jesus e Nicodemos, Allan Kardec conclui:

Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em S. João,podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já nãoacontece com esta passagem de S. Mateus, que não permite equívoco: ELEMESMO é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem alegoria: é uma afirmaçãopositiva. [...] (KARDEC, 2007c, p. 92).

Igualmente julgamos oportuno abordar essa questão, já que é um dos argumentos que

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reforçam a reencarnação, pois aqui irá nos ajudar a fortalecer a convicção que essa ideia era,de fato, não somente comum à época de Jesus, como também está presente no texto bíblico.

Primeiramente, citaremos a passagem em que Jesus faz o reconhecimento público daidentidade de João Batista, narrado em Mt 11,7-14:

“Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões a respeito deJoão: ‘O que é que vocês foram ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? O quevocês foram ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas aqueles que vestemroupas finas moram em palácios de reis. Então, o que é que vocês foram ver? Umprofeta? Eu lhes afirmo que sim: alguém que é mais do que um profeta. É de João quea Escritura diz: 'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teucaminho diante de ti'. Eu garanto a vocês: de todos os homens que já nasceram,nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino do Céu é maior doque ele. Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do Céu sofre violência, e sãoos violentos que procuram tomá-lo. De fato, todos os Profetas e a Lei profetizaram atéJoão. E se vocês o quiserem aceitar, João é Elias que devia vir. Quem tem ouvidos,ouça’".

A profecia citada por Jesus é a de Malaquias (3,1), que, mais à frente (vv 23-24),identifica quem será esse mensageiro:

“Vejam! Eu mandarei a vocês o profeta Elias, antes que venha o grandioso eterrível Dia de Javé. Ele há de fazer que o coração dos pais voltem para os filhos e ocoração dos filhos para os pais; e assim, quando eu vier, não condenarei o país àdestruição total”.

Quando o anjo anuncia a Zacarias que sua esposa estava grávida, diz ele sobre omenino:

“Ele reconduzirá muitos do povo de Israel ao Senhor seu Deus. Caminhará à frentedeles, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aosfilhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, preparando para o Senhor um povo bemdisposto". (Lc 1,16-17).

Além de fechar com a citação final da profecia de Malaquias, ressaltemos que ainda ésintomática a expressão “com o espírito e o poder de Elias”, compreensível aos que acreditamna reencarnação.

Aqui merecem destaque dois versículos dessa citação que estamos analisando.

O primeiro é aquele que diz “de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior doque João Batista” (Mt 11,11). Analisando-o, chegamos à conclusão que, se não houver umaetapa anterior em que as pessoas possam evoluir, João Batista foi um ser privilegiado, pois jáveio “maior que todos os homens”; quer dizer, mais evoluído que todos os homens, fato quecontraria o princípio de que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). No entanto, éplenamente coerente, quando se aceita a reencarnação como um fator de progresso doEspírito. Por outro lado, completa Jesus: “No entanto o menor no reino dos céus é maior queele” (Mt 11,11), o que dentro de uma justiça divina, só poderá ocorrer se houver a todos nós apossibilidade de evoluirmos em outras vidas.

O segundo é o que o segue, onde está dito: “Desde os dias de João Batista até agora, oReino do Céu sofre violência...” (Mt 11,12). Importante esta afirmativa, mas ela só caberia seJoão Batista tivesse vivido antes, já que não há sentido algum dizer isso citando uma pessoacontemporânea. Explicando melhor, poderíamos dizer que “desde o tempo em que João Batistaviveu como Elias, o Reino dos Céus sofre violência...”; dessa forma ficará perfeitamente lógicaa afirmativa, coisa que não acontecerá, se não aceitarmos que João Batista seja areencarnação do profeta Elias,como também ficará de acordo com a afirmativa de Jesus: “Joãoé Elias que devia vir” (Mt 11,14).

Jesus, prevendo a incredulidade de muitos, ainda alerta: “Ouça quem tem ouvidos deouvir” (Mt 11,15), ou seja, se quiser ouvir o que estou afirmando é exatamente isso: JoãoBatista é o Elias reencarnado.

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A outra passagem, é aquela em que Jesus sobe ao monte Tabor e se transfigura (Mt 17,1-9), ocasião em que aparecem os espíritos de Moisés e Elias e conversam com Jesus. Nasequencia (vv. 10-13) é narrada a dúvida dos discípulos, pois, ao verem Elias, ficarampreocupados em relação à profecia a respeito de sua volta (Ml 3,1.23-24). Explica-lhes Jesus:"Elias vem para colocar tudo em ordem. Mas eu digo a vocês: Elias já veio, e eles não oreconheceram. Fizeram com ele tudo o que quiseram..." (v. 11-12). A essa explicação “osdiscípulos compreenderam que Jesus falava de João Batista” (v. 13). Não precisa ser maisóbvio.

Entretanto, algumas pessoas, dando mais crédito ao discípulo do que ao Mestre (Mt10,24), alegam, contra a crença na reencarnação, que João Batista afirmou não ser Elias,esquecendo-se de que o mais importante e a afirmação de Jesus que ele era.

Considerando que “Deus é Espírito” (Jo 4,24), “O espírito é que dá a vida a carne nãoserve para nada” (Jo 6,63) e “a carne e o sangue não podem herdar o Reino dos céus” (1Cor15,50), não podemos aceitar que Elias tenha sido arrebatado de corpo e alma ao céu.Fatalmente, aconteceu a ele, como acontecerá a todos nós, o “e ao pó retornarás” (Gn 3,19).Estamos adiantando aos que tentariam justificar que João Batista não poderia ser Eliasreencarnado, já que Elias não ultrapassou o portal da morte.

Ainda poderemos colocar que, para algumas situações que passamos nessa vida,somente se acreditarmos na reencarnação é que encontraremos explicação satisfatória. Muitasdas nossas dores e sofrimentos são provenientes de erros pretéritos, fato não ignorado naépoca de Jesus, já que supunham que uma pessoa poderia vir com certa deformidade emvirtude do passado delituoso. Essa crença é perfeitamente percebida quando, ao verem umcego de nascença, os discípulos perguntam a Jesus: “Quem foi que pecou foi ele ou seuspais?” (Jo 9,2).

Jesus faz uma relação clara entre nossos erros (pecados) e situações dolorosas, aodizer a um doente que acabara de curar: “não peques mais, para que te não aconteça coisapior” (Jo 5,14). Somente haverá sentido em se falar em carma, para nós espíritas Lei de açãoe reação, se houver a crença na reencarnação, já que ambos os conceitos estão intimamenteligados.

Poderemos ainda acrescentar que é pela reencarnação que todos nós um dia estaremosno reino dos Céus, uma vez que esse é o destino fatal de todos nós, já que é do desejo deDeus que todos os homens sejam salvos (1Tm 2,4). Certa feita, Jesus disse aos chefes dossacerdotes e anciãos do povo “... Eu garanto a vocês: os cobradores de impostos e asprostitutas vão entrar antes de vocês no Reino dos Céus” (Mt 21,31), demonstrandoclaramente que, apesar de tudo, eles um dia estariam no Reino dos Céus; apenas que osdetestáveis cobradores de impostos e as desprezadas prostitutas chegariam antes deles.

André Luiz, pela psicografia de Francisco Cândido Chico Xavier (1910-2002), disse, aocomparar a encarnação do espírito num corpo físico, que é o mesmo que estarmos numaprisão. Então, lembramo-nos de um final de uma fala de Jesus em que afirma: “... você irápara a prisão. Eu garanto: daí você não sairá, enquanto não pagar até o último centavo" (Mt5,25-26). Além do progresso, essa é também mais uma utilidade da reencarnação, ou seja,por ela todos nós, quitamos os nossos débitos perante as leis divinas. Aliás, preferimos a issoque irmos irremediavelmente para um inferno eterno, onde nunca conseguiremos pagarnossos débitos, situação em que a Justiça humana seria muito melhor que a divina.

Concluímos seguramente, sem nenhum medo de estarmos errados, que realmente apassagem analisada diz da reencarnação. O contexto histórico nos dá conta de que areencarnação era crença no judaísmo, embora com o nome de ressurreição. A grandedificuldade é que encontramos essa palavra com vários sentidos; daí a grande confusão quecausa a alguns, principalmente àqueles que não querem, por razões dogmáticas, aceitar areencarnação como uma realidade.

Citaremos, para corroborar o que temos dito aqui, o que os pesquisadores HolgerKersten (1951- ) e Elmar R. Gruber (1955- ) disseram no livro O Buda Jesus:

Analisando as teorias de Pitágoras, descobrimos que sua teoria dareencarnação veio da Índia. Apesar de todos os expurgos, essa ideiatambém é preservada em várias passagens do Novo Testamento, a ponto

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de ter-se a impressão de que esse conceito não-cristão foi ensinado pelo próprioJesus. [...]

Pode-se portanto afirmar que, nessa época, a ideia do renascimento e datransmigração da alma estava enraizada no sentimento popular dos judeus. Issopode ser demonstrado em várias passagens do Novo Testamento. Lembramo-nos da pergunta dos discípulos a Jesus sobre o homem que era cego denascença: “Quem pecou, ele ou os pais para que ele tenha nascido cego?” (João9,20. A hipótese de que o próprio homem tivesse pecado pressupõe,naturalmente, que o pecado tivesse sido cometido numa vida anterior,constituindo uma aceitação da ideia do carma. [...]

Essa crença evidente no renascimento que encontramos no Novo Testamentonão era, de modo algum, familiar aos judeus dos primeiros tempos. Foi afilosofia helênica que a disseminou por todas as regiões dentro de sua esfera deinfluência. O conceito de renascimento (gilgul) só se tornou conhecidonos círculos judaicos por volta do início do nosso milênio. Os talmudistasacreditavam que Deus havia criado um número determinado de almas judias,que renasciam constantemente. Como punição elas, retornavam no corpo deanimais. De acordo com essa ideia, o ser humano tinha que experimentar umalonga transmigração da alma (gul-neschama) até alcançar a redenção (tikkun –a harmonia). A ideia de que a redenção só ocorre quando é atingido o objetivodo desenvolvimento terreno indica a origem hindu e budista do conceito e sósurgiu entre os judeus durante o período helênico.

A ideia da reencarnação sem dúvida ocupou um lugar de destaque navisão que Jesus tinha da vida. Isso coloca duas possibilidades: ou Jesus eraum mestre da sabedoria helenista que adotou o conceito de renascimento comouma abordagem filosófica, ou extraiu a ideia de fontes hindus. No entanto, amaneira pela qual a ideia do renascimento é integrada à sua mensagem,constituindo um componente fundamental de seu entendimento sobre aredenção, torna a hipótese das raízes hindus muito plausível. Apenas na Índia areencarnação desfrutou de tal aceitação, e apenas na Índia ela esteve ligada auma moral semelhante à que Jesus divulgou na Palestina. É por isso que osensinamentos budistas de Jesus soavam tão estranho aos judeus.

O tema renascimento está presente em muitas passagens do NovoTestamento15. Jesus fala de suas vidas passadas e de seu retorno,assumindo desta forma uma clara defesa da ideia da reencarnação. Suareferência mais explicita a uma existência anterior (“Antes que Abraão fosse, eusou” - João 8:58) encontra um paralelo no mais antigo relato sobre a vida deBuda, o Nidanakartha, onde o Desperto é apresentado como um serpreexistente desde o início dos tempos.

As passagens mais importantes do Novo Testamento em que Jesusrevela sua crença no renascimento estão no Evangelho segundo João(João 3:1-4, 7:9-11). Infelizmente, elas têm sido enormementemutiladas por traduções incorretas. Graças ao cuidadoso trabalho deGünther Schwarz, muitos desses erros foram corrigidos. Em diversaspublicações, esse teólogo conseguiu restabelecer o texto aramaico original dosEvangelhos a partir das traduções gregas existentes, que usou então como basepara urna nova versão alemã. O resultado de todos esses anos de trabalho é aobra Jesus-Evangelium16, na qual, com a ajuda de seu filho Jörn Schwarz, reuniuos quatro Evangelhos canônicos e fontes não-bíblicas. Esse "Evangelho de Jesus"será uma constante fonte de referência em nossa análise dos paralelos com obudismo. As citações dessa obra serão abreviadas como "JeEv".

Na tradução correta, o verdadeiro significado das ideias de Jesus sobre orenascimento se torna evidente. Uma noite, sabendo que Jesus "fora enviadocomo mestre" (JeEv 5:11), Nicodemos, um fariseu, foi até ele. Na traduçãoalemã usual, a conversa com Nicodemos é acompanhada por incompreensíveispalavras de Jesus: "Se um homem não nascer do alto, não poderá ver o reino deDeus" (João 3:3). A versão não autorizada é menos enigmática: "Se o homemnão nascer de novo, não poderá ver o reino de Deus". Nos séculos seguintes, aIgreja empenhou-se em suprimir do Novo Testamento todas asreferências à reencarnação, sem contudo conseguir eliminá-lastotalmente. Nessa nova versão, corretamente traduzida, a intenção daspalavras de Jesus volta a se tornar clara. Nicodemos pergunta a Jesus: "O quedevo fazer para entrar no Reino de Deus?" Jesus responde: "Em verdade, emverdade, vos digo: quem não nascer de novo e de novo, não poderá ser(re)admitido no Reino de Deus". Nicodemos então pergunta: "Como pode um

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homem nascer de novo e de novo se já é velho? Pode ele voltar ao ventre damãe e nascer de novo?" Ao que Jesus replica: "Não te admires do que eu disse,é preciso nascer de novo e de novo".

O que está em questão é a readmissão no Reino de Deus como princípio efim da existência humana. Essa lição deve ser compreendida à luz daspassagens da Bíblia em que Jesus diz que João Batista é Elias que voltou à terra(Mateus 11:13-15, 17:10-13; Marcos 9:11-13) e em que ele próprio éconsiderado um Elias, um Jeremias ou um dos outros profetas renascido. Nãoexiste pois nenhuma dúvida de que Jesus estava falando de umrenascimento físico, no sentido hindu de reencarnação. Visto nessecontexto, o erro de tradução de um famoso versículo de Mateus (18:3) deve sercorrigido. Jesus supostamente teria dito: "Se não vos converterdes e não vosfizerdes como crianças...", quando o surpreendente resultado da traduçãocorreta é: "Se não renascerdes, não entrareis no Reino dos Céus"17. (JeEv 5:12-16).________15. Otto Flink (Schopenhauers Seelenwanderungslehre und ihre Quellen) menciona asseguintes passagens: Mateus 14:1-2, 1Cor 15:35-55; Mateus 17:9-12; Lucas 9:7,8,19;Marcos 9:9-13; Mateus 19:28-30; João 3,3 e 3:8. Ele acredita que a ideia de carma estápresente em João 9:2-3; Mateus 19:30; Mateus 5:4,26; Marcos 10:19-31; Lucas 18:29-20.16. Schwarz e Schwarz (1993).17. Schwarz (1990), p. 46.

(KERSTEN e GRUBER, s/d, p. 129-132) (grifo nosso).

Acreditamos que, por motivos de interesses de poder e de dinheiro, a liderança religiosaatual não faz a mínima questão de esclarecer essas dúvidas, pois estariam colocando em riscoesses seus interesses. Mas estamos confiantes em que, muito mais cedo do que queremalguns, a ciência dará o veredicto definitivo, quando provar categoricamente a lei natural dareencarnação, única coisa pela qual poderemos explicar inúmeros questionamentos humanos,e é por ela que a justiça e a misericórdia de Deus se manifestam em plenitude.

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O Ritual do Batismo

Sempre nos causou espécie ver passagens bíblicas mencionando o ritual do batismo,em particular a que relata o batismo de Jesus, uma vez que esse rito, conforme sabemos, nãofazia parte das práticas religiosas dos hebreus. Assim, não descobrimos por qual motivo que,de uma hora para outra, aparece, na Bíblia, alguém realizando o batismo, porquanto, naquelaépoca, a circuncisão (Lv 12,3) é que era o ritual praticado para a iniciação religiosa. Para nóssó existe uma explicação possível para isso. Embora saibamos que ela não irá agradar aosfundamentalistas, mas, como buscamos a verdade, não nos resta senão a alternativa dededuzir que tal episódio seja fruto de interpolação.

Mais ainda: ficamos convictos dessa possibilidade, quando os próprios textos bíblicosnos levaram justamente a essa hipótese. É o que se verá no desenrolar desse estudo.

Cairbar Schutel (1868-1938), em O Batismo, assim relata:

Esta prática, que assinala períodos milenários, parece ter nascido na GréciaAntiga, logo após a constituição de uma seita que cultuava a Deusa da Torpeza,a quem denominavam Cotito e a quem os atenienses rendiam os seus louvores.Esta seita, constituída de sacerdotes que tinham recebido o nome de baptas,porque se banhavam e purificavam com perfumes antes da celebração dascerimônias, deixou saliente nas páginas da História esse ato como símbolo dapurificação do Espírito. (SCHUTEL, 1986, p. 15).

Em Ademar Faria Júnior (1968- ) e Cláudio Bueno da Silva (1952- ), autores da obraAlgumas contradições Bíblicas, encontramos mais detalhes dessa história:

O batismo com a água tem origens remotas no seio de diferentes povos, mascoube à influência grega sobre as estruturas romanas e hebraicas a adoção dobatismo do arrependimento utilizado por João Batista às margens do rio Jordão.Na Grécia Antiga, havia os Baptas, que eram os sacerdotes da deusa Cotito.Para se tornar um adorador da deusa, havia a necessidade de se apresentar notemplo e, dentro da piscina baptismal, se arrepender de todos os erroscometidos até aquele momento. A partir daí, o indivíduo estava em condições deser mergulhado na piscina e se apresentar como um novo adorador da deusa. Obatismo, portanto, é uma cerimônia eminentemente pagã e que foi absorvidapelas religiões tradicionais. (FARIA JÚNIOR E SILVA, 2013, p. 69)

Corroborando essa versão temos ainda o escritor Celso Martins (1942- ), que, em NasFronteiras da Ciência, afirma:

[...] Batizando as criaturas nas águas do Rio Jordão como símbolo darenovação espiritual de cada seguidor seu, João estava apenas lançando mão deum rito que remontava à Grécia antiga, pois o batismo é uma prática pagã quenos veio dos sacerdotes da deusa Cotito. Eles se banhavam antes de dedicarsuas oferendas à referida deusa da mitologia dos gregos. Como tais sacerdotesse chamavam baptas, daí surgiu a etimologia da palavra batismo, banho emágua, no ritualismo de muitas seitas cristãs e também orientais. (MARTINS,2001, p. 30) (grifo do original).

Em Jesus e sua Doutrina, A. Leterre (1862-1936), por sua vez, nos diz ser outra a suaorigem:

Os antigos persas apresentavam o recém-nascido ao padre, perante o Sol,simbolizado pelo fogo. O padre pegava a criança e a colocava em uma bacia com

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água, a fim de lhe purificar a alma. Nessa ocasião o pai dava nome ao filho. [...]A cerimônia do batismo, no verdadeiro sentido de banho expiatório, já

havia, também, na Índia, milhares de anos antes de existir a Europa, tendo daípassado para o Egito. Na Índia eram as águas do Gange, consideradas sagradas,como ainda hoje, que possuíam esta propriedade purificadora, apesar de ser ofoco da cólera-morbo; do Gange passou-se para o Indus, igualmente sagrado,de onde se propagou ao Nilo, do mesmo modo sagrado, para, finalmente,terminar no Jordão, onde João as empregava com o mesmo fim e como simplesformalidade do seu rito. (LETERRE, 2004, p. 172-173) (grifo do original).

Seja lá qual for a origem, o que fica claro, pelo acima exposto, é que ela estáindubitavelmente ligada às práticas de povos ditos pagãos. Em Samuel Noah Kramer (1897-1990), vemos isso de forma mais clara:

Desde os dias do cativeiro em Babilônia, e daí em diante, o judaísmoapresenta um enxame de místicos religiosos com visões apocalípticassobre o futuro do homem. Por meio desses visionários, diz o eminenteorientalista W. F. Albright, "elementos inumeráveis da fantasia pagã e até mitosinteiros entraram na literatura do judaísmo e do cristianismo". Por exemplo, orito do batismo - diz ele - remonta às religiões da Mesopotâmia, comotambém muitos dos elementos na história da vida de Cristo. Entre estes oDr. Albright inclui a sua concepção por uma virgem, o seu nascimentorelacionado com os astros, e os temas da prisão, da morte, descida aos infernos,o desaparecimento por três dias e posterior ascensão aos céus. (KRAMER, 1983,p. 169) (grifo nosso).

Foi por volta do ano 150 a.C., com a fundação da seita judaica dos essênios, que esseritual de iniciação, passou a ser praticado na Palestina, conforme se lê em Russell N. Champlin(1933- ):

[…] Os manuscritos descobertos entre os Papiros do Mar Mortoilustram fartamente que os essênios (com quem João evidentemente seassociou) eram uma seita que praticava o batismo, requerendo batismode arrependimento para os convertidos, além de praticarem outrasabluções entre eles. Os hinos de Qumran falam de batismo de fogo, tais comoum rio em chamas que engolfaria os "lançados fora": e alguns bons intérpretesreputam esse batismo de fogo como algo que se refere ao juízo. Parece bemcerto, porém, a despeito do conhecimento de João sobre tais ideias, que ele usada ideia como algo benéfico, que visava o remanescente arrependido e não osincrédulos. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 288) (grifo nosso).

Sobre essa seita, explicam-nos Russell N. Champlin (1933- ) e J. M. Bentes: (1932- ):

ESSÊNIOS

Eles formavam uma ordem monástica judaica, que parece ter surgidono século II A.C. Eles eram exemplos de uma incomum grandeza moral epureza espiritual (embora houvesse alguns abusos e distorções). Provavelmentefoi a primeira sociedade humana a condenar a escravatura, tanto como principioquanto como uma prática. Era uma sociedade comunal, esotérica eextremamente ascética. Procurava lugares isolados a fim de ali viverem eporem em prática a sua fé. Uma das regiões escolhidas era aquela em redor domar Morto. Alguns estudiosos têm associado um ramo dessa seita com osManuscritos do Mar Morto. Os essênios eram uma das três principais seitasjudaicas, as outras duas eram os fariseus e os saduceus. (CHAMPLIN eBENTES, vol. 2, 1995b, p. 522) (grifo nosso).

Completando suas explicações, informam-nos:

A Teologia dos Essênios

Grande parte do que os essênios acreditavam já foi descrita - nas seções

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anteriores - deste artigo. Afastando-se do judaísmo comum, eles rejeitavam aguerra (pois eram pacifistas); demonstravam uma veneração especial pelo sol,embora não saibamos dizer até que ponto isso os conduzia. Eram comunistasreligiosos. Proibiam juramentos. Se excluirmos essas coisas, contudo, suascrenças eram parecidas com as do judaísmo em geral. No entanto, eleseram um movimento restaurador exclusivista, que pensava que o antigojudaísmo apostatara, e que eles eram o verdadeiro Israel. Também édigno de menção o fato de que eles eram deterministas estritos. Eles criam napreexistência e imortalidade da alma, assumindo uma espécie de ponto de vistaplatônico-filônico sobre a alma. Também acreditavam na reencarnação. Aalma, a princípio, habitava na pureza; mas então, ao unir-se com o corpomaterial, ficou aprisionada, e foi assim que a corrupção da alma teve início. Elessupunham que as almas boas iriam para a bem-aventurança, ao passo que asalmas más seriam punidas eternamente. As influências religiosas a que estavamsujeitos, e que explicam em parte algumas de suas doutrinas e práticas,parecem ter vindo do judaísmo, especialmente do farisaísmo, do parseísmo, dopaganismo sírio, do pitagoreanismo e do neoplatonismo.

Como uma seita distinta, os essênios desapareceram após adestruição de Jerusalém (ano 70 D.C.). Nunca são mencionados no NovoTestamento, embora haja alusões às suas crenças quanto ao celibato, aosjuramentos e ao ascetismo. Ver Mat. 5:34ss, 19:11,12 e Col. 2:8,18,23. Areferência na epístola aos Colossenses, porém, quase certamente é aognosticismo. (CHAMPLIN e BENTES, vol. 2, 1995b, p. 524) (grifo nosso).

Ao se afirmar que “suas crenças eram parecidas com as do judaísmo em geral”, não hácomo não pensar que “quem parece” não é; assim, não se poderia dizer que praticavam ojudaísmo, embora, cressem nisso.

O estudioso Geza Vermes (1924- ), considerado um dos maiores especialistas dosmanuscritos do Mar Morto, assim explica esse ritual:

A primeira imagem do batismo, originalmente um rito judaico deimersão, aponta para a purificação, tanto física como espiritual. Era umaprática comum, geralmente repetível e repetida. Era prescrita para apurificação ritual de judeus, sacerdotes e levitas e leigos israelitas, afim de que eles pudessem entrar no santuário de Jerusalém e participarno culto do Templo. Em um nível mais prático, o banho cerimonial combinavahigiene com a purificação alegórica que se voltava contra formas de impureza.Era imposto para marcar o fim de certas doenças contagiosas, comoenfermidades dermatológicas ou genitais designadas por termos genéricos como“lepra” e “corrimento”. Um banho ritual também restaurava o estado de purezaapós contatos com um corpo morto, após relações sexuais para ambos os sexos,e após a menstruação e o parto para as mulheres.

Algumas formas específicas de batismo judeu só eram praticadasuma vez. Este é o caso do batismo de penitência pregado por João Batista, quevisava eliminar a impureza do pecado e indicar a mudança na direção de umavia pia conducente ao Reino de Deus. Parece que os essênios de Qumrãsubmetiam-se a um banho ritual especial, dedicado à renovaçãoespiritual durante a cerimônia de entrada no pacto sectário (1QS 5:12-14). Fiando-se num costume que provavelmente remontava ao primeiro séculod.C., o judaísmo rabínico também obrigava homens e mulheres gentiosque desejassem se converter ao judaísmo a passar pelo batismoprosélito, além da circuncisão no caso do homem. Entretanto, seja reiterado ouúnico, o batismo judeus sempre conservou o seu simbolismo primário de banhoou purificação pela água.

Em geral, Paulo não mostra interesse pelo ritual judaico e, se usa a noção deimpureza, é sempre no sentido moral. Para ele, o batismo é dotado de umsignificado alegórico que nada tem a ver com banho. O tanque em que obatismo tinha lugar simboliza acima de tudo a tumba da qual Jesus levantou-sena Páscoa. Assim, quando os que passavam pela cerimônia de iniciação nomistério cristão eram imersos (isto é, enterrados) na água batismal, elesestavam abraçando alegoricamente a morte do Cristo ao juntar-se a ele em seutúmulo; e quando era reerguidos, estavam reencenando e comungandomisticamente com a ressurreição de Cristo. Dali em diante, eles lhe pertenciam.

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O drama é delineado por Paulo em poucas e pungentes palavras: “Ou não sabeisque todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, é na sua morte que fomosbatizados? Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte paraque, como Cristo foi ressuscitado detre os mortos pela glória do Pai, assimtambém nós vivamos vida nova” (Rm 6:3-4) Reinterpretando deste modo aimagem original do rito batismal, Paulo ofereceu aos cristãos um meio parase apropriarem da virtude tanto da cruz como da ressurreição. Não é necessáriodizer que, com a introdução generalizada da aspersão infantil em substituição àimersão na administração do sacramento, que originalmente era reservadoapenas aos adultos iniciados e realizado na Páscoa, o poderoso simbolismopaulino foi morto de vez. (VERMES, 2006a, p. 111-112) (grifo nosso).

Vê-se, que, na opinião de Vermes, o ritual do batismo tem origem no ritual depurificação que os judeus eram obrigados a fazer para entrarem no Tempo e para algumasoutras situações específicas.

Como o ritual de iniciação religiosa dos judeus era a circuncisão, certamente, por isso,não encontramos o batismo em nenhum passo do Antigo Testamento.

A primeira vez em que ele aparece, na Bíblia, é no Novo Testamento, quando João, obatista, às margens do rio Jordão, batizava, para o perdão dos pecados, aqueles queconfessavam publicamente os seus (Mt 3,6). Jesus vai a seu encontro para ser batizado, masJoão reconhecendo que o Mestre é maior que ele Lhe diz: “Eu é que preciso ser batizado porti, e tu vens a mim?” (Mt 3,14); entretanto, por insistência do Messias, batiza–O.Imediatamente após o batismo, uma voz, vinda do céu, afirma: “Este é o meu filho amado,que muito me agrada” (Mt 3,17).

É-nos estranha essa atitude de Jesus, porquanto João Batista somente batizava os quevinham a seu encontro para confessar os seus pecados (Mt 3,5-6), o que, segundo Marcos,significava que fazia o batismo de conversão para o perdão dos pecados (Mc 1,4-5). Seria ocaso de se perguntar: Jesus, então, tinha pecados? Estaria ele se convertendo naquelemomento? Fica-nos difícil aceitar isso...

Observamos que João Batista identificou Jesus como o Messias, fato confirmado peloplano espiritual (a voz que vinha do céu); diante disso, concluímos que não haveria a mínimapossibilidade de dúvida por parte da “voz que clama no deserto” de quem Ele era. Entretanto,isso não é um fato, pois, algum tempo depois, logo após ser preso, João Batista manda algunsde seus discípulos perguntarem a Jesus: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperaroutro?" (Mt 11,2-3). Falta coerência nisso, já que, conforme relatado, João sabia perfeitamentequem era Jesus, e se, porventura, houvesse alguma dúvida de sua parte, ela teria sidocompletamente sanada pela manifestação espiritual ocorrida após o batismo, que apresentaJesus como o Messias. Assim, a dúvida é de nossa parte para saber qual das duas situaçõesrealmente ocorreu, já que uma é contraditória à outra.

Então, não é de todo improvável que a passagem, que relata o batismo de Jesus, é quenão espelhe a realidade, que pode muito bem ter sido criada para validar e justificar o ritual dobatismo realizado pelas igrejas ditas cristãs, pois, o que nos é claro é que elas, na verdade,praticam mesmo é o batismo de João. Tal prática ritualística vem, a nosso ver, contrariar o queo próprio João Batista afirmou: “Eu batizo vocês com água para a conversão. Mas aquele quevem depois de mim é mais forte do que eu. E eu não sou digno nem de tirar-lhe as sandálias.Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3,11); o que é umaevidente demonstração de que o batismo que ele praticava era um ritual que, após a vinda doMessias, deveria deixar de ser ministrado. Ele colocava, isto sim, o batismo do “Espírito Santoe com fogo” como aquele a que todos deveriam se submeter, argumento esse que, também,se pode confirmar de uma ordem de Jesus aos apóstolos: “Não se afastem de Jerusalém.Esperem que se realize a promessa do Pai, da qual vocês ouviram falar: 'João batizou comágua; vocês, porém, dentro de poucos dias, serão batizados com o Espírito Santo'"(At 1,4-5). Por isso, concluímos que o relato do batismo aplicado em Jesus é bem provável queseja mesmo uma interpolação, visto que o batismo que Jesus promete é o “com o EspiritoSanto”, e não o “com água”. Assim, devemos ver que “O símbolo do batismo do Espírito (fogo)e o caráter e os resultados desse batismo mostram a superioridade do ministério de Jesus, emcontraste com o de João” (CHAMPLIN, vol. 1, 1995a, p. 287-288). Não devemos desconsiderarque a figura do fogo e do vento são símbolos bíblicos que representam a presença divina

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(CHAMPLIN e BENTES, 2005b).

Interessante é que os fariseus e os saduceus também queriam ser batizados (Mt 3,7);entretanto, foram prontamente rechaçados, já que João não via neles nenhuma postura dearrependimento. Essa atitude dele nos induz a acreditar que não era mesmo sua intençãocolocar o batismo como um ritual, pois, se assim o fosse, ele teria batizado aquela “raça devíboras”. João Batista deixou claro o motivo mais importante pelo qual estava batizando aodizer: "... para que ele fosse manifestado a Israel, vim eu, por isso, batizando comágua" e "... o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele quevires descer o Espírito, e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo" (Jo1,31-33). Ou seja, foi apenas para ele identificar o Messias. Mas, uma vez cumprido essepropósito, já que a Lei e os profetas vigoraram até João (Mt 11,13 e Lc 16,16), deixa de sernecessário o batismo de água praticado por João, passando a vigorar, daí em diante, o batismoverdadeiro, o de Jesus. Este, sim, é o autêntico batismo cristão: com Espírito Santo e comfogo. Com o primeiro simbolicamente se limpa por fora; já com o segundo se transforma pordentro.

Há uma curiosidade nessa passagem de João; vejamo-la a partir do versículo 29 ao 34,deixando em separado o que queremos ressaltar:

“No dia seguinte, João viu Jesus, que se aproximava dele. E disse: "Eis o Cordeiro deDeus, aquele que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu falei: 'Depois demim vem um homem que passou na minha frente, porque existia antes de mim'.

31. Eu também não o conhecia. Mas vim batizar com água, a fim de que ele semanifeste a Israel." 32. E João testemunhou: "Eu vi o Espírito descer do céu,como uma pomba, e pousar sobre ele.

33. Eu também não o conhecia. Aquele que me enviou para batizar com água, foiele quem me disse: 'Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e pousar, esse équem batiza com o Espírito Santo'. 34. E eu vi, e dou testemunho de que este éo Filho de Deus." (Jo 1,29-34)

Essa duplicidade de informações dos versículos 31-32 com 33-34 (observar osdestaques em negrito), parecem-nos algo sem sentido, “soando” mais como uma tentativa demodificar o texto anterior, que pode até não ter sido o original, já que os originais foramtotalmente “perdidos”, ao longo do tempo.

Ademais, observemos que, embora Mateus, Marcos e Lucas afirmassem que Jesustenha sido batizado, João, o evangelista, um dos discípulos bem próximo a Jesus, nada dizsobre isso. É singular este fato, para algo que dizem ser muito importante. E se o batismofosse tão imprescindível como alguns afirmam, então, por que Jesus não atendeu a JoãoBatista, que Lhe disse “eu é que devo ser batizado por ti” (Mt 3,14)? Sem contar que osapóstolos não foram batizados em água, mas o foram no Espírito Santo (At 1,4-5; 2,4).Exatamente por isso é que podemos reafirmar que, a nosso ver, o batismo em água não possuisustentação bíblica para a sua aplicação, pois estaria contrariando a determinação de Jesus,citada em At 1,4-5, cujo teor veremos mais adiante, que é o mesmo que foi revelado a JoãoBatista (Jo 1,33).

Vejamos que Paulo, o apóstolo dos gentios, percebe claramente essa diferença:

“... Paulo... chegou a Éfeso e, achando ali alguns discípulos, perguntou-lhes:Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes? Responderam-lhe eles: Não, nemsequer ouvimos que haja Espírito Santo. Tornou-lhes ele: Em que fostes batizadosentão? E eles disseram: No batismo de João. Mas Paulo respondeu: Joãoadministrou o batismo do arrependimento, dizendo ao povo que cresse naquele queapós ele havia de vir, isto é, em Jesus. Quando ouviram isso, foram batizados emnome do Senhor Jesus. Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles oEspírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam” (At 19,1-6).

Com isso fica claro que o batismo de João, ou seja, o de água, não tinha valor; casocontrário, Paulo teria deixado as coisas como estavam, uma vez que já haviam sidosubmetidos ao batismo de João e não teria ministrado o batismo em nome do Senhor Jesus,

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que fica claro ser pela imposição das mãos. E quanto ao fato de se batizar “em nome de Jesus”e não “em nome da Trindade” queremos, neste momento, caro leitor, apenas chamar a suaatenção, pois iremos falar sobre isso um pouco mais à frente.

Em outra oportunidade Paulo disse enfático: “De fato, Cristo não me enviou parabatizar, mas para anunciar o Evangelho...” (1Cor 1,17), do que podemos ver claramente que,na sua convicção, fundamentada na orientação de Cristo, o batismo não era importante parasalvação de ninguém. Além disso, parece-nos bastante inusitado que Jesus não tenha enviadoPaulo, o “vaso escolhido” (At 9,15), para batizar, quando supostamente teria instruído os seusdiscípulos, quanto a essa prática. Aliás, é sabido que a expansão do cristianismo se deveexatamente a ele. Que Jesus tenha realmente orientado os discípulos sobre isso, é, para nós,algo controverso; porém, a instrução “ide e pregai a todas as nações” (Mt 28,19) confirmaessa instrução a Paulo para anunciar o Evangelho, porquanto, trata-se da mesma coisa compalavras diferentes.

O curioso é que Paulo vai ainda mais longe: também era contrário ao ritual quepraticavam naquela época, no caso, a circuncisão. Senão vejamos:

“De resto, cada um continue vivendo na condição em que o Senhor o colocou, tal comovivia quando foi chamado. É o que ordeno em todas as igrejas. Alguém foi chamado àfé quando já era circuncidado? Não procure disfarçar a sua circuncisão. Alguém não eracircuncidado quando foi chamado à fé? Não se faça circuncidar” (1Cor 7,17-18).

Evidentemente, não deixou de questionar tal ritual dizendo: “Qual é a utilidade dacircuncisão” (Rm 3,1)? Ele, Paulo, responde demonstrando que isso não faz a menor diferença:”Não tem nenhuma importância estar ou não estar circuncidado. O que importa éobservar os mandamentos de Deus” (1Cor 7,19). Justificando o seu entendimento: “Então,será que Deus é Deus somente dos judeus? Não será também Deus dos pagãos? Sim, ele éDeus também dos pagãos. De fato, há um só Deus que justifica, pela fé, tanto oscircuncidados como os não circuncidados” (Rm 3,29-30).

Usando dos mesmos argumentos de Paulo, em relação ao batismo de água, diríamos:“não tem nenhuma importância estar ou não estar batizado, já que o que importa é observaros mandamentos de Deus”.

Oportuno registrarmos estas considerações de Champlin a respeito de Paulo:

Dando prosseguimento às definições expostas pelo apóstolo Paulo, devemostambém observar que em nenhuma de suas passagens dogmáticas acerca dasalvação ele vincula o batismo em água com a mesma. Os capítulos primeiro aquinto de sua epístola aos Romanos, onde ele considera cuidadosamente toda aquestão da justificação e com minúcias, devem ser objeto de nosso exame. Nãohá ali qualquer alusão ao batismo em água. Chegando ao sexto capítulo dessamesma epístola, onde o batismo em água é símbolo de nossa união vital eessencial com Cristo, em sua morte e ressurreição - a morte ao pecado, aressurreição à vida que conduz à salvação - é impossível pensarmos, poresse trecho, que o batismo em água ocupasse a elevada posição, nocristianismo primitivo, que o mesmo ocupa dentro do esquema falso daregeneração batismal. Ora, Paulo jamais teria ignorado a posição do batismo emágua, em suas passagens dogmáticas sobre a salvação, se esse fizesse parteintegrante da salvação. É muito árduo para a fé de quem quer que seja pensarque Paulo tenha defendido qualquer doutrina que se assemelhasse, ainda queremotamente, à regeneração pelo batismo, se por batismo, estivéssemos nosreferindo ao ato externo de sermos batizados em água, mediante aspersão,derramamento, imersão ou qualquer outro modo. (CHAMPLIN, vol. 3, 2005c, p.67) (grifo nosso).

Portanto, fica clara a posição do batismo em água no cristianismo nascente.

Para análise e melhor entendimento desse assunto, podemos dividir os acontecimentosem dois períodos: o primeiro é relacionado aos que sucederam durante a vida de Jesus,enquanto que o segundo se refere aos ocorridos depois de sua morte. Isso é importante paraseparar o joio do trigo; mas, para tanto, devemos, primeiramente, questionar: Jesus batizoualguém? Orientou a seus discípulos a fazê-lo? Teriam sido eles batizados? Se Jesus falou de

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algum batismo, devemos procurar saber qual. Vejamos o que podemos encontrar no primeiroperíodo dos acontecimentos.

Quanto a saber se Jesus batizou alguém, só no Evangelho de João é que vamosencontrar algo a esse respeito. Em determinado momento ele diz que sim, ou seja, que Jesusbatizava; porém depois desmentiu e disse que não; mas quem batizava eram seus discípulos(Jo 4,1-2). Em relação a seus discípulos é fato curioso, pois nenhum dos outros evangelistasafirmou isso; somente em João é que consta essa história, que mais parece ser “história”mesmo. Isso é incomum, pois não vemos, em momento algum, Jesus orientando a seusdiscípulos para que realizassem tal prática, o que podemos comprovar com o seguinte passo:

“Então Jesus chamou seus discípulos e deu-lhes poder para expulsar os espíritosmaus, e para curar qualquer tipo de doença e enfermidade... Jesus enviou os Dozecom estas recomendações:... ‘Curem os doentes, ressuscitem os mortos,purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça, deemtambém de graça!...’” (Mt 10,1-8, ver tb Mc 3,14-15 e Lc 9,1-2).

Por outro lado, mesmo que seja verdadeira a hipótese dos discípulos de Jesus estarembatizando, isso não significa que praticavam o batismo em água, porquanto, o texto de João(Jo 4,1-1) não especifica qual tipo de ritual eles estariam adotando.

De outra feita, Jesus faz várias recomendações a setenta e dois discípulos (Lc 10,1) nãoestando, também, entre elas o batismo. Assim, observamos que Jesus, quando vivo, passouvárias orientações aos discípulos, mas não há nenhuma relacionada ao batismo. Será quedepois de morto teria mudado de ideia, uma vez que tal recomendação só aparece após estefato? É o que veremos agora.

Entrando agora no segundo período, perguntamos: depois de sua morte, o queaconteceu? Encontramos no evangelho apenas duas passagens em que, supostamente, Jesusteria orientado o batismo. Falamos supostamente, pois demonstraremos que uma delas éinterpolação grosseira e a outra um reconhecido acréscimo ao texto primitivo.

Analisemos a primeira passagem em que aparecem as orientações de Jesus ressurretoaos discípulos (ver tb Mc 16,14-18):

Mt 28,16-20: ”Os onze discípulos foram para a Galileia,... Então Jesus se aproximou, efalou: '... Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meusdiscípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, eensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês...'”.

Essa passagem é o que, por último, encontramos em Mateus, fechando, vamos assimdizer, o seu evangelho; porém, é somente nele que se vê a recomendação de se batizar “emnome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”; ou seja, em toda a Bíblia é o único passo que dizisso. Chama-nos a atenção o fato de que, naquela época, não se acreditava na Trindade,provando que isso é uma vergonhosa interpolação para justificar a reimplantação de práticasritualistas pagãs, posteriormente à morte de Jesus. Agiram dessa forma para transparecer queera coisa comum no período em que Ele ainda vivia entre os discípulos.

Léon Denis (1846-1927), em Cristianismo e Espiritismo, disse:

Depois da proclamação da divindade de Cristo, no século IV, depois daintrodução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século VII, muitaspassagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que exprimissem asnovas doutrinas (Ver João I, 5,7). “Vimos, diz Leblois (145), na BibliotecaNacional, na de Santa Genoveva, na do mosteiro de Saint-Gall, manuscritos emque o dogma da Trindade está apenas acrescentado à margem. Mais tardefoi intercalado no texto, onde se encontra ainda”.______(145) “As bíblias e os iniciadores religiosos da humanidade”, por Leblois, pastor deStrasburgo.

(DENIS, 1987, p. 272) (grifo nosso).

Grifamos apenas para ressaltar que a origem dessa informação foi tirada da fala de um

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pastor; isto é importante para demonstrar a imparcialidade de quem dá a notícia.

Entretanto, para nossa própria e grata surpresa, conseguimos também perceber essainterpolação, ao lermos Orígenes (185-254), considerado como um dos “Pais da Igreja”, queviveu na Antiguidade cristã. Na sua obra apologética intitulada Contra Celso (cerca de 248),ele, refutando as críticas deste filósofo pagão contra os cristãos, transcreve, em seu discurso,muitas passagens bíblicas, e, entre elas, cita Mt 28,19 com o seguinte teor: “Ide, portanto, efazei que todas as nações se tornem discípulos” (ORÍGENES, 2004, p. 154), o que atesta que aexpressão “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” foi mesmo umacréscimo posterior, para, certamente, com ele se justificar o dogma da Trindade.

O historiador e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, David Flusser (1917-2000), que lecionou no Departamento de Religião Comparada por mais de 50 anos, nascido naÁustria, foi estudioso da literatura clássica e talmúdica, conhecia 26 idiomas, informa que:

De acordo com os manuscritos de Mateus que foram preservados, o Jesusressuscitado ordenou aos seus discípulos batizar todas as nações “em nome doPai e do Filho e do Espírito Santo”. A fórmula trinitária franca, aqui, é de fatonotável, mas já foi mostrado que a ordem para batizar e a fórmula trinitáriafaltam em todas as citações das passagens de Mateus nos escritos deEusébio anteriores ao Concílio de Niceia. O texto de Eusébio de Mt 28:19-20antes de Niceia era o seguinte: “Ide e tornai todas as nações discípulas em meunome, ensinando-as a observar tudo o que vos ordenei”. Parece que Eusébioencontrou essa forma do texto nos códices da famosa biblioteca cristã emCesareia.75 Esse texto mais curto está completo e coerente. Seu sentido é claroe tem seus méritos óbvios: diz que o Jesus ressuscitado ordenou que seusdiscípulos instruíssem todas as nações em seu nome, o que significa que osdiscípulos deveriam ensinar a doutrina de seu mestre, depois de sua morte, talcomo a receberam dele. (FLUSSER, 2001, p. 156) (grifo nosso).

O “ide e tornai todas as nações discípulas em meu nome, ensinando-as a observar tudoo que vos ordenei”, aqui citado, é algo que não se pode desprezar, porquanto, Eusébio deCesareia (c. 265-339), defendendo a divindade de Cristo, em História Eclesiástica, nadaadvogou a favor da Trindade, que é justamente o que se quer fazer crer existir no texto deMateus (28,19-20).

É importante, também, transcrevermos a nota 75 em que Flusser menciona a sua basede informação:

Ver D. Flusser, "The Conclusion of Matthew in a New Jewish ChristianSource", Annual of the Swedish Theological lnstitute, vol. V, 1967, Leiden, 1967,pp. 110-20; Benjamin J. Hubbard, “The Matthean Redaction of a PrimitiveApostolic Commissioning", SBL, Dissertation Series 19, Montana, 1974. Maistestemunho da conclusão não-trinitária de Mateus está preservado numtexto copta (ver E. Budge, Miscelleaneous Coptic Texts, Londres, 1915, pp. 58e seguintes, 628 e 636), onde é descrita uma controvérsia entre Cirilo deJerusalém e um monge herético. "E o patriarca Cirilo disse ao monge: 'Quem temandou pregar essas coisas?' E o monge lhe disse: 'O Cristo disse: Ide a todo omundo e pregai a todas as nações em Meu nome em cada lugar". O texto écitado por Morcon Smith, Clement of Alexandria and a Secret Cospel of Mark,Harvard University Press, Cambridge, Mass, 1973, p. 342-6. (FLUSSER, 2001, p.170) (grifo nosso).

Na sequência, Flusser diz que...

“um testemunho adicional das versões mais curtas de Mt 28:19-20afoi descoberto há pouco tempo numa fonte judeu-cristã...” (FLUSSER,2001, p. 156), citando como fonte: “Sh. Pinès, 'The Jewish Christians of theEarly Centuries of Christianity According to a New Source', The Israel Academyof Sciences and Humanities Proceedings, vol. II, nº 13, Jerusalém, 1966, p. 25”.(FLUSSER, 2001, p. 170) (grifo nosso).

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Apresentamos o jornalista espanhol Pepe Rodríguez (1953- ), que abordando esseassunto, na obra Mentiras fundamentais da Igreja Católica, afirma o seguinte:

[…] a Igreja, ao basear-se em Mt 28,19, para afirmar que é católica, “porquea missão que lhe foi atribuída por Cristo se refere à totalidade do génerohumano”, comete dois atropelos. Por um lado, baseia-se num versículo que éuma interpolação, dado tratar-se de um versículo que foiposteriormente acrescentado ao texto original de Mateus. […](RODRÍGUEZ, 2007, p. 210) (grifo nosso).

Para corroborar tudo isso, iremos apresentar a opinião de Geza Vermes, um dosmaiores especialistas sobre a história do cristianismo, que, falando sobre esse passo, disse:

[...] Nos programas missionários anteriores, não houve questão quanto aobatismo, e menos ainda quanto a batizar nações inteiras. Além disso, o batismoadministrado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo não temprecedente não só nos Evangelhos, mas também em qualquer lugar detodo o Novo Testamento. A fórmula que ocorre em Atos dos Apóstolos ébatismo “em nome de” Jesus (At 2,38; 8,16; 10,48; 19,5) e, em Paulo, batismo“em Cristo” (Rm 6,3; Gl 3,27). Fora de Mateus, a fórmula trinitária, Pai, Filho eEspírito Santo ocorre pela primeira vez no manual litúrgico da igreja primitivaintitulado Didaqué ou Instrução dos Doze Apóstolos, que é datado da primeirametade do século II d.C. Tudo isso aponta para uma origem tardia de Mt28,18-20. [...] (VERMES, 2006b, p. 377-378) (grifo nosso).

Com base nessa citação de Vermes, podemos colocar dois argumentos para contradizeressa passagem de Mateus: 1º) é que Jesus, quando vivo, não recomendou o batismo de água,mas um outro, o que veremos mais à frente; 2º) em Atos (2,38; 8,16; 10,48 e 19,5) temos aprova de que se batizava somente “em nome de Jesus”, evidenciando falta grave de quem feza interpolação por não ter percebido esse pequeno detalhe. Eh!... Não há mesmo crimeperfeito!

Mas esse fato não passou despercebido pelos tradutores da Bíblia de Jerusalém, que ominimizam dizendo:

É possível que, em sua forma precisa, essa fórmula reflita influência do usolitúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva. Sabe-se que o livro dosAtos fala em batizar “no nome de Jesus” (cf. At 1,5+; 2,38+). Mais tarde deveter-se estabelecido a associação do batizado às três pessoas da Trindade.Quaisquer que tenham sido as variações nesse ponto, a realidade profundapermanece a mesma. O batismo une à pessoa de Jesus Salvador; ora, toda asua obra salvífica procede do amor do Pai e se completa pela efusão do Espírito.(explicação para Mt 28,19, p. 1758) (grifo nosso).

A segunda passagem, em que se supõe Jesus ter dito algo sobre o batismo, é essa:

Mc 16,14-16: “Por fim, Jesus apareceu aos onze discípulos... disse-lhes: ’Vão pelomundo inteiro e anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade. Quemacreditar e for batizado, será salvo. Quem não acreditar, será condenado’".

Aqui se percebe claramente que atribuíram essas palavras a Jesus, fato tão óbvio quese torna difícil negar, especialmente se verificarmos dois pormenores na frase: “quem nãoacreditar, será condenado”. O primeiro é que para ela ser coerente com a afirmativaantecedente de “quem acreditar e for batizado, será salvo”, teria que ser uma sentençanegativa da seguinte forma: “Quem não acreditar e não for batizado, será condenado”. Nosegundo, temos que se Jesus só pregou o amor, e sempre admitiu o livre-arbítrio (quem temouvidos ouça), jamais imporia um castigo condenando alguém a alguma coisa. Vale relembraro que falou à mulher surpreendida em adultério, que Lhe foi apresentada para que dissesse oque fazer: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais”. (Jo 8,1-11). Podemos atésugerir que se faça um teste de veracidade desse passo, recomendando o que se diz sobre os

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sinais que seguirão aos que creem. O teste é simples: basta que peguem em serpentes ebebam algum veneno mortífero, pois, na sequência imediata, o texto afirma que nada dissolhes fará mal (Mc 16,17-18). Essa, pagamos para ver...

Além disso, se compararmos essa passagem com o que encontramos em Atos, veremosque não era esse o pensamento corrente, já que nessa outra nem se fala em batismo;vejamos: “Crê no Senhor Jesus, e serás salvo, tu e tua casa” (At 16,31). Desconcertante éque, nesse versículo, se diz que apenas “um da família” precisa crer para que sua casa, querdizer, toda sua família, seja salva. Já no verso de Marcos a norma é outra, uma vez que não sónada foi dito dos familiares, mas, também, porque afirma que a regra para todos é: "quemcrer e for batizado...", levando-nos a uma certeza de ser interpolação mal feita.

Mais complexa fica essa questão da salvação, já que também está dito: “... o Evangelhoque vos preguei,... por ele sereis salvos,...” (1Cor 15,1-2), deixando-nos completamenteperdidos quanto a saber o que efetivamente irá nos salvar; fora o que foi afirmado por Jesus:“a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27).

Entretanto, para não dar a impressão de que isto é só opinião nossa, vamos apresentaro que disseram os tradutores da Bíblia de Jerusalém. Leiamos suas observações relativas aMarcos, capítulo 16, versículos de 9 a 20:

O trecho final de Mc (vv. 9-20) faz parte das Escrituras inspiradas; é tidocomo canônico. Isso não significa necessariamente que foi escrito por Mc.De fato, põe-se em dúvida que este trecho pertença à redação dosegundo evangelho. – As dificuldades começam na tradição manuscrita.Muitos mss, entre eles o do Vat. e o Sin., omitem o final atual... A tradiçãopatrística dá também testemunho de certa hesitação. – Acrescentemos que,entre os vv. 8 e 9, existe, nessa narrativa, solução de continuidade. Alémdisso, é difícil admitir que o segundo evangelho, na sua primeira redação,terminasse bruscamente no v. 8. Donde a suposição de que o final primitivodesapareceu por alguma causa por nós desconhecida e de que o atualfecho foi escrito para preencher a lacuna. Apresenta-se como um breveresumo das aparições do Cristo ressuscitado, cuja redação é sensivelmentediversa da que Marcos habitualmente usa, concreta e pitoresca. Contudo, o finalque hoje possuímos era conhecido, já no séc. II por Taciano e santo Ireneu, eteve guarida na imensa maioria dos mss gregos e outros. Se não se pode provarter sido Mc o seu autor, permanece o fato de que ele constitui, nas palavras deSwete, “uma autêntica relíquia da primeira geração cristã”. (Bíblia de Jerusalém,p. 1785) (grifo nosso).

Apesar desses argumentos, é certo que ainda encontraremos pessoas que continuarãoa aceitar a frase como verdadeira. Mesmo que fosse, por coerência, é muito improvável queJesus tivesse falado do batismo de João. O mais certo é que tivesse se referido ao batismo"com Espírito Santo e com fogo", pois é o que sucede a todo aquele que crê em suas palavrase pratica seus ensinos.

Concordamos plenamente com a afirmativa de que no texto existe solução decontinuidade (Houaiss: divisão, interrupção, hiato), fácil de se perceber. Nos versículos 1 a 7,conta que, juntamente com Maria, mãe de Tiago e Salomé, Maria Madalena foi ao sepulcrobem cedo no primeiro dia da semana. Entraram no túmulo - o verbo no plural implica queforam as três -, porém nele encontraram somente um jovem que disse que Jesus haviaressuscitado e que era para elas darem essa notícia aos discípulos, orientando-os para irempara a Galileia onde o veriam. E aí seguem os versículos 8 a 11, que transcrevemos:

“8. Então as mulheres saíram do túmulo correndo, porque estavam com medo eassustadas. E não disseram nada a ninguém, porque tinham medo.9. Depois de ressuscitar na madrugada do primeiro dia após o sábado, Jesus apareceuprimeiro a Maria Madalena, da qual havia expulsado sete demônios.10. Ela foi anunciar isso aos seguidores de Jesus, que estavam de luto e chorando.11. Quando ouviram que ele estava vivo e fora visto por ela, não quiseram acreditar”.

Percebe-se que realmente falta algo para completar o versículo 8, pois a interrupçãoabrupta é evidente. Entretanto, isso não faz dos versículos 9 a 20 o complemento correto

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desse capítulo. Aliás, o que constatamos aqui foram três incoerências:

1ª) se foram ao túmulo também Maria, mãe de Tiago e Salomé, por que Jesus somenteapareceu a Maria Madalena se essas três mulheres estavam juntas, até mesmo quandoentraram no túmulo?;

2ª) se foi afirmado que encontraram no túmulo um jovem e não a Jesus, então, Ele, defato, até aí, não aparecera a ninguém;

3ª) como o versículo 9 trata do mesmo fato dos versículos anteriores (1 a 7) e vemosno versículo 8 que as mulheres saíram correndo do túmulo, sem que Jesus tivesse aparecido aelas, mas apenas um jovem (anjo), como, na sequência (versículo 9), é dito ter Jesusaparecido a Maria Madalena, e só a ela? Ora, como foi o anjo que apareceu, Jesus só poderiater aparecido após o anjo, hipótese em que elas já não estariam mais no túmulo, pois, deacordo com o versículo 8, elas saíram correndo; logo, igual às outras mulheres, ela já nãoestava mais lá; além disso, Madalena não estava sozinha...

Que essa passagem de Marcos não deveria ser usada para sustentar o batismo quepraticam é um fato. Inclusive é o que podemos comprovar pela opinião do tradutor da BíbliaAnotada que, em relação a Mc 16,9-20, diz: “... A discutível genuinidade dos vv. 9-20 tornapouco sábio construir uma doutrina ou basear uma experiência sobre eles(especialmente os vv. 16-18)” (Bíblia Anotada, p. 1265) (grifo nosso). E, especificamente,quanto ao versículo 16, ele explica: “Esta pode ser uma referência ao batismo do EspíritoSanto (1Cor 12:13). O batismo com água não salva (veja as notas sobre At. 2:38; 1Pe3:21)” (Bíblia Anotada, p. 1265) (grifo nosso).

Entretanto, sabemos existir corrente religiosa que se apoia nela para não batizar ascrianças, mas somente os adultos. Argumentam que é necessário “crer primeiro” para entãoser batizado; e como uma criancinha não tem condições de crer em nada, não tem sentidobatizá-la, só fazendo isso mais tarde, na época em que já tenha adquirido a capacidade dedecidir por si mesma a sua crença em Jesus. Aliás, como Ele também não foi batizado emcriança, tomam disso um outro argumento para não realizar o batismo naqueles que aindaestão se alimentando do leite materno. Seria até um bom argumento desde que não estivessebaseado nessa passagem.

Mais outras opiniões sobre essa parte do evangelho de Marcos:

Mc 16,9-20: Este trecho difere muito do livro até aqui; por isso éconsiderado obra de outro autor. Os cristãos da primeira geraçãoprovavelmente quiseram completar o livro de Marcos com um resumo dasaparições de Jesus e uma apresentação global da missão da Igreja. Parece quese inspiraram no último capítulo de Mateus (28,18-20), em Lucas (24,10-53),em João (20,11-23) e no início do livro dos Atos dos Apóstolos (1,4-14). (BíbliaSagrada, Edição Pastoral, p. 1307) (grifo nosso).

Mc 16,1-8: A conclusão original do evangelho de Marcos é surpreendente edesconcertante, a ponto de os escritores posteriores terem acrescentadoum epílogo, respaldado como canônico pela autoridade da Igreja... (Bíblia doPeregrino, p. 2446) (grifo nosso).

Mc 16,9: A passagem 9-20 falta nos manuscritos mais antigos. Não éprovavelmente de Marcos. (Bíblia Sagrada Editora Ave Maria, p. 1344) (grifonosso).

Mc 16:9-20: Estes versículos não aparecem em dois dos principaismanuscritos do Novo Testamento, embora estejam presentes num grandenúmero de outros manuscritos e versões. Se eles não forem parte genuína dotexto de Marcos, o final abrupto do v. 8 deve-se, provavelmente, à perdados versículos que formavam a conclusão original. […] (Bíblia Anotada, p.1265) (grifo nosso).

Seguindo em nossa análise, veremos que, pelo evangelho de Lucas (cap. 24), nada foirecomendado aos discípulos com relação a esse nosso assunto. Mas, como Lucas, segundo osexegetas, é o autor do livro Atos dos Apóstolos, é nele que encontramos as recomendações deJesus, na versão desse evangelista:

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At 1,1-5: “... Jesus começou a fazer e ensinar, desde o princípio, até o dia em que foilevado para o céu. Antes disso, ele deu instruções aos apóstolos que escolhera, movidopelo Espírito Santo... Estando com os apóstolos numa refeição, Jesus deu-lhes estaordem: ‘Não se afastem de Jerusalém. Esperem que se realize a promessa do Pai, daqual vocês ouviram falar: 'João batizou com água; vocês, porém, dentro depoucos dias, serão batizados com o Espírito Santo’...”.

Conforme já dissemos anteriormente, Jesus pregou, sim, um batismo, mas o batismodo Espírito Santo e não o da água. E aqui, dessa passagem, não consta que devemos serbatizados “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, como está em Mateus, evidenciando,mais uma vez, que isso é mesmo uma interpolação. E, em relação aos discípulos, o batismo doEspírito Santo, foi o único ao qual eles se submeteram; o que nos leva a concluir que, casohouvesse necessidade de batismo, esse é o que deveria ter sido feito. O cotejo entre “Joãobatizou com água” e “vocês, porém,... serão batizados com o Espírito Santo” demonstra, deforma cristalina, ser este último o que deve prevalecer, conforme já o dissemos.

Sobre esse passo, vejamos como Champlin o aborda:

Na história da interpretação desse batismo do Espírito Santo, originalmentese entendia que era algo separado e distinto do batismo em água; mas,finalmente, veio a ficar ligado a essa ordenança externa, especialmentenaquelas porções da igreja cristã onde eram exageradas a importância e asbênçãos decorrentes do batismo em água. Porém, essa associação do batismodo Espírito Santo e sua operação, com o batismo em água, labora em erropatente, porque se trata de duas coisas inteiramente separadas,porquanto em sentido algum o batismo em água pode realizar o que obatismo do Espírito Santo visa fazer no crente. Alguns intérpretes procurammostrar que o batismo em água confere ao indivíduo aquilo que o batismo doEspírito Santo promete fazer, e usam o trecho de Atos 19:1-6 na tentativa dedemonstrá-lo. Porém, apesar de ser verdade que o batismo cristão em água éexaltado nessa passagem do batismo de João, contudo, o sexto versículo, quedescreve a imposição de mãos por parte dos apóstolos, que conferiu aosindivíduos envolvidos no relato o batismo ou plenitude do Espírito, aparece comoalgo separado e distinto, isto é, uma ação distinta do batismo em água, queaparece no quinto versículo daquele mesmo capítulo, sendo evidente que asduas coisas não têm por intuito ser entendidas como se fossem a mesma coisa,partes integrantes de uma mesma ação e bênção. As interpretaçõessacramentais do batismo em água, entretanto, têm exagerado eobscurecido o seu sentido, o qual, apesar de importante, não é mesmoatribuído ao batismo do Espírito Santo. (CHAMPLIN, vol. 3, 2005c, p. 25)(grifo nosso).

Podemos, ainda nesse ponto, colocar o que Pedro disse: “Foi então que me lembrei dadeclaração do Senhor, quando disse: ‘É verdade que João batizou com água, mas vóssereis batizados no Espírito Santo’” (At 11,16). Essa passagem confirma a citadaanteriormente, na qual se encontra o que Lucas disse.

E, por fim, vejamos a narrativa de João.

Jo 20,19-23: “Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadasas portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dosjudeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: ‘A paz esteja com vocês’. ‘... Assimcomo o Pai me enviou, eu também envio vocês’. Tendo falado isso, Jesus soprousobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles quevocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês nãoperdoarem, não serão perdoados’".

Em João não encontramos Jesus recomendando diretamente nenhum tipo de batismo.Mas, por outras passagens, já citadas, podemos entender que “ao soprar sobre os discípulos”Jesus estava realizando o batismo do Espírito Santo, aquele que tinha prometido a eles.Inclusive, era esse o praticado pelos discípulos; senão vejamos:

At 2,38: “Pedro lhes respondeu: ‘Convertei-vos e cada um peça o batismo em nome

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de Jesus Cristo, para conseguir perdão dos pecados. Assim recebereis o dom doEspírito Santo’”.

At 10,44-48: “Pedro ainda falava, quando o Espírito Santo desceu sobre todos osque escutavam seu discurso. Os fiéis de origem judaica, que tinham ido de Jope comPedro, ficaram admirados por verem que o dom do Espírito Santo tinha sidoderramado também sobre os não-judeus. De fato, eles os ouviam falar em diversaslínguas e glorificar a Deus. Então Pedro disse: ‘Quem poderá recusar a água dobatismo a esses, que receberam o Espírito Santo da mesma forma que nós?’ E decidiuque fossem batizados em nome de Jesus Cristo...”.

Observe, caro leitor, que uma parte do passo de Atos 10,44-48 tem tudo para tersofrido uma interpolação; talvez por quererem justificar o batismo com água. Vejamos otrecho para análise: “Então Pedro disse: ‘Quem poderá recusar a água do batismo a esses,que receberam o Espírito Santo da mesma forma que nós?’”. Se dele retirarmos a expressão“a água do batismo” o texto estaria mais coerente em sua estrutura e significado; senãovejamos: “Quem poderá recusar a esses, que receberam o Espírito Santo da mesma formaque nós?” Assim, percebemos que a expressão “a água do batismo” não tem nada a ver com oassunto abordado por Pedro, que, certamente, questionava se essas pessoas iriam serrecusadas, mesmo depois de terem recebido o “dom do Espírito Santo”. Isso pode serfacilmente confirmado na sequência de Atos, quando narra Pedro tentando explicar oacontecido aos fiéis de origem judaica:

At 11,15-18: “Logo que comecei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles, damesma forma que desceu sobre nós no princípio. Então eu me lembrei do que oSenhor havia dito: 'João batizou com água, mas vocês serão batizados no EspíritoSanto'. Deus concedeu a eles o mesmo dom que deu a nós por termos acreditadono Senhor Jesus Cristo. Quem seria eu para me opor à ação de Deus?' Ao ouvir isso, osfiéis de origem judaica se acalmaram e glorificaram a Deus, dizendo: 'Também aospagãos Deus concedeu a conversão que leva para a vida!'.

Diante disso, a questão da expressão “a água do batismo”, em At 10,47, nos remete auma interpolação, visando justificar a instituição do ritual do batismo de água.

Ressaltamos, também, a questão falada anteriormente, quando comentamos At 19,1-6,sobre a fórmula do batismo, que, ao invés de “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”,batizavam somente “em nome de Jesus”. Aliás, com relação a essa última expressão, podemosencontrar dez outras passagens [5] nas quais se diz para fazer algo “em nome de Jesus”,enquanto que nenhuma em relação à primeira, pois a única encontrada provou-se ser umainterpolação. Mesmo que se aceite o batismo de água, vê-se que a decisão de Pedro em At10,48 foi a de batizar em nome de Jesus e não no da “santíssima” trindade.

Em meio ao que conseguimos levantar nos Atos dos Apóstolos, encontramos duaspassagens interessantes; uma confirma tudo a respeito do batismo do Espírito Santo,enquanto a outra estabelece um certo conflito com isso; vejamo-las:

At 8,15-18: “Ao chegarem, Pedro e João rezaram pelos samaritanos, a fim de que elesrecebessem o Espírito Santo. De fato, o Espírito ainda não viera sobre nenhum deles; eos samaritanos tinham apenas recebido o batismo em nome do Senhor Jesus.Então Pedro e João impuseram as mãos sobre os samaritanos, e eles receberam oEspírito Santo. Simão viu que o Espírito Santo era comunicado através da imposiçãodas mãos...”

At 19,3-6: “Paulo perguntou: 'Que batismo vocês receberam?' Eles responderam: 'Obatismo de João'. Então Paulo explicou: 'João batizava como sinal de arrependimento epedia que o povo acreditasse naquele que devia vir depois dele, isto é, em Jesus'. Aoouvir isso, eles se fizeram batizar em nome do Senhor Jesus. Logo que Paulo lhesimpôs as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles, e começaram a falar em línguas e aprofetizar”.

5 Mt 18,5; 18,20; 24,5; Mc 9,39; 9,41; 16,17; Jo 14,13-14; 14,26; 15,26; 16,23-24.26.

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Na primeira, a impressão que se tem é que havia um batismo em nome de Jesus, talvezse referindo ao batismo em água, e um outro no qual receberam o Espírito Santo; enquantoque, na segunda, o batizar em nome de Jesus se liga ao batismo do Espírito Santo, realizadopela imposição de mãos. Então surge a natural dúvida: haverá dois batismos? Bom; quem irános responder essa questão é Paulo, que, taxativo, disse aos efésios: “há um só Senhor, umasó fé, um só batismo“ (Ef 4,5).

Há ainda uma outra passagem bíblica em que, apesar de não se relacionar ao batismo,querem os teólogos, com suas interpretações dogmáticas, atribuir-lhe tal sentido. É apassagem que narra o diálogo de Jesus com Nicodemos, conforme o evangelho de João:

Jo 3,1-12: “[...] Jesus lhe respondeu: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem nãonascer de novo não pode ver o Reino de Deus’. Disse-lhe Nicodemos: ‘Como pode umhomem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e nascer?’Respondeu-lhe Jesus: ‘Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água edo Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da carne é carne, o quenasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver dito: deveis nascer denovo. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde ele vemnem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito’.Perguntou-lhe Nicodemos: ‘Como isso pode acontecer?’ Respondeu-lhe Jesus: ‘Ésmestre em Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em verdade, te digo: falamos doque sabemos e damos testemunho do que vimos, porém, não acolheis o nossotestemunho. Se não credes quando vos falo das coisas da terra, como crereis quandovos falar das coisas do céu?’”

Sobre esse assunto, o primeiro ponto, inclusive, já poderíamos ter falado antes, quandocitamos trechos do evangelho de João. É que nos parece muito estranho atribuir a autoriadesse evangelho a ele, porquanto sabemos que foi escrito em grego - por volta de 100 d.C. - eque, como Pedro, João era iletrado e sem instrução (At 4,13), ficando-nos uma enormesuspeita de que “falaram” por ele; ou, então, isso veio por uma provável psicografia. Osegundo é em relação ao fato de que Jesus não batizou nem recomendou batismo de água aninguém, conforme estamos constatando neste estudo.

Quanto ao conteúdo deste texto, não há explicação para que Nicodemos “ignorasseessas coisas”, sendo ele um membro do Sinédrio, especialmente se Jesus estivesse sereferindo ao batismo, pois, se fosse isso mesmo, certamente ele O teria entendido. Seignorava, é porque, na verdade, era sobre outra coisa que Jesus lhe falava. Pelos seusquestionamentos a Jesus, fica claro que era algo muito mais profundo do que um simplesritual, como o do batismo; portanto, seria um assunto mais complexo que esse. Com certeza,a reencarnação é algo assim, já que a maioria das pessoas, por “ignorar essas coisas”, nãosabe exatamente como pode “um homem velho voltar a nascer de novo; porventura, iráentrar no seio de sua mãe e nascer”? A esses, Jesus replicaria, como já o fizera antes: “Não teadmires disso”.

Para justificarem o batismo nessa passagem concentram seus argumentos no trecho“quem não nascer da água”, pretendendo jogar por terra todo o simbolismo que, naqueletempo, se via nisso:

[...] A água tinha grande simbolismo entre os hebreus: tanto o espírito comoas águas são fecundos (Is 32:15; 44,3; Ez 36:25-27); o espírito é coisa queDeus envia e derrama, como água (Jl 3,1-2; Zc 12;10). Água era uma expressãopara indicar influências boas ou más, como no (Sl 1,3): “Pois será como a árvoreplantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria, ecujas folhas não caem; e tudo quanto fizer prosperará”. [...] (PALHANO, 2001,p. 403).

Então, concluímos que Jesus, após sua ressurreição, manteve-se coerente com o quepensava sobre o batismo aquoso antes de sua morte; a mudança ocorreu por conta deinterpolações e acréscimos. Ainda bem!

A justificativa de alguns para o ritual do batismo, é porque todos, ao nascermos,trazemos como herança (genética?) o pecado original. De fato, é bastante “original” o pecado

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de Adão e Eva; apenas isso, pois, ao imputarem-no a todos nós, além de cometerem a maiordas injustiças, é contrário ao que determina “a palavra de Deus”, para usar da linguagem dosdogmáticos:

Dt 24.16: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dospais. Cada um será executado por causa de seu próprio crime”; ou

Ez 19,20: “O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca seráresponsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho”.

Mas, se tal coisa é verdadeira, se devemos ser batizados por conta do pecado original,então como justificar o batismo de Jesus, já que todos nós acreditamos que Ele tenha nascidopuro? Por que Jesus nunca disse: Vá, seja batizado e será salvo? Evidentemente é porqueJesus nunca pregou o batismo de João, apesar de, conforme já o dissemos, encontrarmos umapassagem bíblica (Mc 16,14-16), sobre a qual já comentamos, colocando isso como se fossempalavras de Jesus.

Por outro lado, entre o ritual do batismo praticado por João Batista e o realizado hojeem dia, há grande diferença, pois o anterior era o batismo do arrependimento que só erarealizado após a pessoa confessar seus pecados, o que não acontece quando, por exemplo, sebatiza uma criança recém-nascida. De fato, o batismo nos primeiros tempos do cristianismoera tido como sendo um ritual que conferia uma espécie de selo ao novo cristão, ao novoconvertido, ou seja, o ritual não era uma causa, mas uma consequência da conversão. E hoje,mesmo no caso de pessoas adultas, que fizeram "estudo bíblico" para se batizarem, elas nãoconfessam seus pecados nem antes, nem durante, nem após a cerimônia. Além disso, o ritualera o de submersão (mergulho); mas vemos que, nas práticas atuais, nem sempre o fazemdessa forma, já que, em determinadas correntes religiosas, apenas se esparge água sobre ocrente, enquanto que em outras se derrama água sobre a sua cabeça. Com isso, ratificamos oque dissemos anteriormente sobre as igrejas cristãs praticarem mesmo é só o batismo deJoão.

Mas, quem tem razão? Qual dos “Espíritos Santos” lhes está inspirando o batismocorreto? E como saber se a pessoa, que está batizando, está mesmo inspirada por um espíritosanto?

Uma outra questão: as mulheres eram batizadas? Segundo narrativa bíblica, sim (At8,12); mas isso é inusitado já que, pela cultura da época, as mulheres não tinham o menorvalor; inclusive, parece-nos que nem mesmo participavam dos rituais religiosos (1Cor 14,34-35), só admitidos aos homens. Convém relembrar ainda que o ritual de iniciação judaica era acircuncisão; obviamente, feita somente aos do sexo masculino. Sabendo-se que as mulheresestão salvas “por dar à luz filhos” (1Tm 2,15), não haveria necessidade de batizá-las visando-lhes a salvação por esse ritual; não é mesmo? E como fica o pecado cometido por Eva, ofamoso pecado original?

Justificam alguns que, pelo fato de Jesus ter sido batizado, nós também devemos sê-lo.Embora já tenhamos demonstrado por que Jesus foi batizado (Jo 1,31.33), afirmamos que, seo simples fato dele ter sido batizado nos obriga a isso, então, por questão de coerência e delógica, devemos manter o ritual da circuncisão, já que Jesus também se submeteu a talprática. Ah! Só mais um lembrete: Jesus também foi crucificado... Quem se habilita?

Outros mais, talvez, apresentem alguma passagem bíblica para corroborar o batismo,por puro apego a rituais, dos quais não querem largar mão; por isso não buscam uma visão doconjunto e se dão por satisfeitos com a primeira passagem que encontram. Muitos desses,provavelmente, irão querer contestar esse nosso texto; mas, se não pesquisam sobre oassunto e ainda ficam presos às interpretações dogmáticas, o que poderemos fazer?... A essesapenas apresentamos esta passagem:

Hb 5,11-14: “Temos muito a dizer sobre este assunto, mas é difícil explicar, porquevocês se tornaram lentos para compreender. Depois de tanto tempo, vocês já deviamser mestres; no entanto, ainda estão precisando de alguém que lhes ensine as coisasmais elementares das palavras de Deus. Em vez de alimento sólido, vocês ainda estãoprecisando de leite. Ora, quem precisa de leite ainda é criança, e não tem experiênciapara distinguir o certo do errado. E o alimento sólido é para os adultos que, pela

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prática, estão preparados para distinguir o que é bom e o que é mau”.

Certamente, que, também, não poderemos desconsiderar os que, tentando justificar obatismo, virão a nós apresentando um documento, no qual dizem estar algumasrecomendações de Jesus a seus discípulos, intitulado Didaquê, ou Ensino dos Doze Apóstolos.

O escritor e tradutor Henry Bettenson (1910-1979), em Documentos da Igreja Cristã,cita essa obra informando que ela foi descoberta em Constantinopla no ano de 1875, com dataincerta e autor desconhecido, procedência e importância controvertidas. (BETTENSON, 1967,p. 100). Vejamos, a transcrição:

VII. Quanto ao batismo, batizareis na forma seguinte: tendo comoantecipadamente disposto todas as coisas, batizai em o nome do Pai e doFilho e do Espírito Santo, em água viva; se não tiverdes água viva, batizai emoutra água; se não puderdes em água fria, fazei em água quente. Se nãotiverdes nem uma nem outra, derramai água na cabeça três vezes em o nomedo Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, jejuem, além de outrosque o possam, o batizante e o postulante. A este último mande-se jejuar um oudois dias antes.

…..........................................................................................IX. No tocante à eucaristia, dareis graças desta maneira: primeiramente

sobre o cálice: “Damos-te graças, Pai nosso, pela santa vinha de Davi, teuservo, que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu Servo. A ti seja glóriaeternamente!”. Em seguida, sobre o pão partido: “Damos-te graças, Pai nosso,pela vida e pelo conhecimento que nos manifestaste mediante Jesus, teu Servo.A ti seja a glória eternamente! Como este pão achava-se disperso sobre osmontes e, reunido, se fez um, assim, desde os confins da terra, seja congregadatua Igreja no teu Reino. Pois tua é a glória e o poder, por Jesus Cristo,eternamente”. Que ninguém coma nem beba da eucaristia, exceto osbatizados em nome do Senhor, pois sobre ela disse o Senhor: “Não deis oque é santo aos cachorros”. (BETTENSON, 1967, p. 101) (grifo nosso).

Poder-se-ia nela encontrar uma boa justificativa para se “legalizar” o batismo;entretanto, fora os problemas de sua data e procedência, mencionada por Bettenson, vemos,pelo menos, dois outros:

1º) há uma forte incoerência entre o que se diz no item VII e no IX; pois, se noprimeiro recomenda-se “batizar em o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, no último, émencionado “os batizados em nome do Senhor”, exatamente a fórmula do batismo em Atosdos Apóstolos, que, seguramente, o “Senhor” se trata de Jesus, uma vez que a frase citada –“Não deis o que é santo aos cachorros” - é dele e consta em Mt 7,6;

2º) a determinação de que o postulante ao batismo também jejuasse, por um ou doisdias, não a vimos em nenhum outro lugar, razão pela qual, até se justifica, já que nenhumaigreja recomenda que se faça o jejum; consequentemente, isso implica em que tacitamentenão a têm como verdadeira.

Dessa questão do jejum, ainda podemos tira a conclusão de que, na verdade, somentese batizavam pessoas adultas, colocando a atitude dos que batizam crianças recém-nascidasem completo desacordo com as práticas que dizem decorrer da Bíblia.

Um argumento bem interessante encontramos em Iakov Abramovitch Lentsman (1908-1967), que, em A Origem do Cristianismo, disse:

Os outros dogmas maiores do cristianismo brilham igualmente pela ausênciano Apocalipse. Nada é dito aí sobre o batismo, por exemplo. “Não faças o malà terra, lê-se no capítulo VII, versículos 3-4, nem ao mar, nem às árvores, atéque tenhamos marcado com o selo a fronte dos servidores do nosso Deus. Eouvi o número daqueles que tinham sido marcados com o selo, cento e quarentae quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel”. Ao enumerar essas dozetribos, o autor acrescenta para cada uma delas: doze mil “marcados com o selo”.Ele teria dito “batizados”, incontestavelmente, se o sacramento do batismo jáexistisse no seu tempo. Há no Apocalipse uma dezena de passagens emque se poderia esperar encontrar alusões ao batismo, mas nada há

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sobre ele. (LENTSMAN, 1963, p. 114) (grifo nosso).

Sua conclusão, para nós, é um argumento excelente, que fica difícil ser refutado.

Mas cabe-nos um esclarecimento final a respeito do batismo, aquele que era o praticadonaquela época; para isso vamos recorrer a L. Palhano Jr. (1946-2000), que explica:

Batismo. (Do grego: bapto, mergulhar). Ritual de purificação. João Batistaadministrava um batismo de arrependimento para a remissão de pecados(Marcos 1,4), antecipando o batismo no espírito e em fogo (verdade) que oMessias exerceria (Mateus 3,10). O batismo cristão está arraigado na açãoredentora de Jesus e o ato d'Ele, quando se submeteu ao batismo de João(Marcos 1,9), demonstrou e efetivou sua solidariedade com os homens. Naigreja primitiva, o batismo não era com água, mas com a imposição das mãossobre aquele que se convertia e objetivava o chamado 'dom do espírito santo',isto é, sensibilizar aquele que era batizado para que ganhasse percepçãoespiritual ou mediúnica (Atos 19,6). O batismo com água é um mero ritual semnenhum valor moral e os espíritas não devem se preocupar com isso. Trata-sede um sacramento dogmático que afirma ter ação salvadora um ato externo,ritualístico, mais uma obrigação religiosa que descaracteriza a obrigação doesforço próprio, para o merecimento da paz e da felicidade. O batismo decriancinhas, para apagar o 'pecado original', é o resultado da ação judaizantesofrida pelos cristãos, pois nada mais é do que a substituição do sinal dacircuncisão ao oitavo dia de nascido para o filho varão. O espiritismo preconiza ainutilidade de qualquer culto, ritual, sacramento, paramento, sinal, para ascoisas religiosas, visto que os verdadeiros adoradores de Deus o adoram emespírito e verdade (João 4,23). (PALHANO JR, 1999, p. 173).

Esperamos, caro leitor, que esse estudo lhe possa ser útil em alguma coisa, se não que,pelo menos, encontre algo para que reflita sobre a “verdade que liberta”.

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A traição de Judas – uma história mal contada

É interessante como alguns temas bíblicos não resistem a uma análise mais profunda.Vários deles, que já tratamos em outros textos, nos proporcionam a certeza de que muitasnarrativas constantes da Bíblia são uma deliberada e sutil montagem para se chegar a umobjetivo previamente definido. Daí porque muitas delas foram amoldadas a esse propósito,passando por cima da verdade histórica que tais escritos deveriam conter.

Muitas pessoas se chocam com atitudes como essa nossa: a de uma análise crítica.Entretanto, não abrimos mão de fazer uso da inteligência com a qual nos dotou o Criador. Nós,seres humanos racionais, temos que usar esse dom, pois, não usá-lo é abdicar da únicafaculdade que nos difere dos animais, ditos irracionais; por isso, acreditamos que sóofendemos mesmo a Deus, quando não utilizamos a nossa inteligência plenamente.

Reconhecemos, entretanto, ser muito difícil a inúmeras pessoas, principalmente as quenão pesquisam, abandonar conhecimentos adquiridos, especialmente quando foram passadoscomo verdades divinas, sob coação ideológica. Ou seja, o simples questionamento daveracidade das mesmas já é, por si só, considerado como grave ofensa à divindade. Essapossibilidade de heresia acaba gerando um bloqueio mental, em função do medo de crer-senum consequente castigo por esse tipo de “pecado”. Assim, somos “levados” a aceitar, sem omínimo questionamento, o que nos tem sido imposto como verdade absoluta. Com o tempo,passamos ao despautério de defender ideias, que nunca analisamos ou criticamos, como senossas fossem.

O assunto que trataremos, desta vez, está relacionado a uma suposta traição a Jesus,que teria sido realizada por Judas Iscariotes, um de seus discípulos. Inclusive, tudo que constana Bíblia sobre ele está somente nas passagens que iremos ver a seguir. Dizemos suposta,porquanto, particularmente, acreditamos que o Sinédrio tinha poderes de vida e morte sobreas pessoas, não precisava, portanto, de ninguém para delatar Jesus. O Sanhedrin ou o GrandeConselho dos Anciãos de Israel, com 71 homens sobre a presidência do sumo sacerdote,“podia decretar sentença de morte contra os judeus da Judeia por motivo de ofensa religiosa,mas não executá-la antes de confirmação do poder civil”. (DURANT, 1957, p. 211).

Bart D. Ehrman (1955- ), especialista em Novo Testamento, em sua obra Quemescreveu a Bíblia: por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são, traz-nos aseguinte informação:

[…] Os autores de alguns dos livros do Novo Testamento não eram quemalegavam ser ou quem se imaginou que seriam. Em alguns casos, isso se deuporque um escrito anônimo, no qual o autor não indicava quem era, foiposteriormente atribuído a alguém que, na verdade, não o escreveu. Mateusprovavelmente não escreveu Mateus, por exemplo, nem João, João; por outrolado, nenhum livro de fato alega ter sido escrito por uma pessoa chamadaMateus ou João. Em outros casos, isso aconteceu porque o autor mentiu sobresua identidade, alegando ser alguém que não era. […] (EHRMAN, 2013, p. 19).

Essa é a razão pela qual usaremos a expressão “o autor de” ao referirmos aosEvangelhos, uma vez que, os estudiosos modernos não mais atribuem a autoria dos textos aosnomes que constam em seus títulos.

O autor de Lucas, afirma que, após satanás ter entrado em Judas, este foi procurar ossacerdotes para ver de que maneira lhes entregaria Jesus (Lc 22,3-6). Os sacerdotes ficaramtão satisfeitos com essa ideia que combinaram em lhe dar dinheiro, uma vez que elesdesejavam, de há muito tempo, eliminar “o herético”. Tal acontecimento se deu, na versão doautor desse Evangelho, antes da festa dos Ázimos; evidentemente, antes da ceia de páscoa,cujo prato principal era um cordeiro morto especificamente para essa finalidade. No entanto,segundo o autor de João, esse fato se deu após a ceia (Jo 13,26-27), apesar de um pouco

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antes, ele ter dito: “Enquanto ceavam, tendo já o diabo posto no coração de Judas, filho deSimão Iscariotes, que o traísse” (Jo 13,2), sendo, por conseguinte, omisso sobre qualquercombinação anterior entre Judas e os sacerdotes. Portanto, podemos verificar que há evidenteconflito entre as narrativas, quanto ao tempo em que o fato se deu.

Merece ser ressaltado que se a morte de Jesus foi para remissão de nossos pecados,como comumente se pensa ou insistem que creiamos, então, Judas não poderia, porcoerência, ser considerado um traidor, porquanto devemos admitir que a missão dele, emboraespinhosa, era a de entregar Jesus. Entretanto...

Nada disso faz muito sentido. Mesmo a solução religiosa mais comum – deque, embora Judas esteja efetivamente cumprindo a vontade de Deus,ele é culpado porque se rendeu a Satanás – não leva em consideração ascontradições. Até o autor parece ter dificuldade ao tentar explicar a falta delógica – como a questão dos discípulos se perguntando se Judas teria ido fazercompras tarde da noite. Não, isso não faz sentido. (CHURTON, 2009, p. 219,grifo nosso).

Concordamos plenamente com Tobias Churton (1960- ), não faz mesmo sentido algum.

Quanto à questão dessa combinação com os sacerdotes, Mateus diz que Judas pediudinheiro para lhes entregar Jesus (Mt 26,15), enquanto que Marcos (14,11) e Lucas (22,5)afirmam que foram os sacerdotes que tomaram a iniciativa de retribuir ao discípulo, dando-lhedinheiro como recompensa pelo seu ato ignominioso. Um bom observador perceberá que,pelas suas narrativas, Mateus teve uma evidente preocupação, qual seja, a de relacionar Jesuscom as profecias, inclusive, muito mais que os outros três autores dos Evangelihos. Daí ser eleo único que diz sobre o quanto Judas teria recebido, dando como certa a importância de trintamoedas de prata (Mt 26,15; 27,3). Essas duas passagens que falam disso são, geralmente,relacionadas a Zc 11,12-13, no pressuposto de que ela seja uma profecia; entretanto, os fatosali narrados se referem ao próprio profeta Zacarias; não é, por conseguinte, uma revelaçãosobre algo que fosse ocorrer no futuro.

Ainda sobre essa questão das moedas, é oportuno colocarmos o que, em O beijo damorte, nos informa Churton:

[…] A quantia de 30 peças de prata não era um preço convencional outroca, mas um número profético, simbólico – foi o preço pago por um povoingrato pelos serviços de Deus. Na profecia, a quantia é uma ninharia, nãouma fortuna.

Uma simples barganha de informações em troca de dinheiro dificilmenteenvolveria esses símbolos. Se Judas pensou que estava traindo “Deus”, eraquase certo que ele estava louco, e, portanto, merecia compaixão, ou pelomenos uma cura.

É opinião geral dos estudiosos que o relato da troca pela prata foisimplesmente extraído dos escritos proféticos e usado como umahistória de “cumprimento”, para preencher uma falta de conhecimentodo que aconteceu. Se esse for o caso, essa troca não pode ter um pesosignificativo na alegada culpa de Judas. (CHURTON, 2009, p. 234, grifo nosso).

Como se diz “vendeu barato”, portanto, até o valor, supostamente combinado, deixa-nos realmente na dúvida se tal troca, de fato, aconteceu.

Ao narrar os acontecimentos durante a ceia, Mateus relata: “Enquanto comiam, Jesusdisse: 'Eu lhes garanto: um de vocês vai me trair'. Eles ficaram muito tristes e, um por um,começaram a lhe perguntar: 'Senhor, será que sou eu?' (Mt 26,21-22). Achamos beminteressante é que todos eles não confiavam e si mesmo, pois ao dizerem “Senhor será quesou eu?” estavam demonstrando que intimamente tinham “potencial” para praticar tal ato ou“Será que todos eles estavam preocupados, pois todos tinham sido tentados a trai-lo – e suasnegativas são expressões de culpa?” (CHURTON, 2009, p. 198). E Jesus, ao responder essaindagação de cada um dos discípulos sobre quem o trairia, teria dito: “Quem vai me trair, éaquele que comigo põe a mão no prato. O Filho do Homem vai morrer, conforme a Escriturafala a respeito dele..." (Mt 26,23-24). Passagem que é relacionada ao Sl 41,10, onde Davi

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reclama sobre um amigo que o trai. O que nos leva a concluir que tal passagem não é umaprofecia; assim, não poderia estar relacionada a Jesus, como querem os que buscam, nasEscrituras, apoio para seus dogmas. Davi foi traído por um amigo, seu próprio conselheiro, denome Aquitofel, conforme narrativa em 2Sm 15,12.31. O final trágico da vida desse “amigo daonça” foi enforcar-se (2Sm17,23); com isso, querem, igualmente, atribuir esse mesmo destinoa Judas, como iremos ver mais à frente.

Outra coisa que nos parece sem nenhum sentido, principalmente pela maneira com aqual Jesus agia para com os outros, é que Ele tenha, com efeito, se preocupado em delatar oseu traidor, conforme narrado em Jo 13,26, quando, para identificar quem o trairia, diz aos queo acompanhavam, naquela ceia, que seria a quem desse um pão molhado; dito isso,imediatamente, molha um pão e o entrega a Judas, delatando o pobre coitado. Talvez apreocupação aqui seja buscar mais uma forma de relacionar tal episódio a uma profecia sobreesse acontecimento, que sabemos não existir.

Mateus (26,48) e Marcos (14,44) dizem que Judas havia combinado com os sacerdotesum sinal – o beijo – para que pudessem identificar quem era Jesus, e, obviamente, o colocamfazendo isso (Mt 26,49; Mc 14,45). Lucas, apesar de não relatar absolutamente nada sobreesse sinal, diz que Judas se aproximando de Jesus o saúda com um beijo (Lc 22,47). Enquantoque João não fala de ter havido uma combinação de sinal, nem que Jesus teria dito algo arespeito, e nem mesmo coloca Judas beijando a Jesus, já que, para ele, foi o Mestre que seadiantou, aos guardas acompanhados de Judas, se identificando a eles como sendo Jesus, oNazareno, a quem procuravam (Jo 18,3-5). Fatos novamente conflitantes.

Nenhum outro Evangelho, a não ser o de João, coloca Judas como sendo aquele que,entre os discípulos, cuidava da “bolsa”; vai ainda mais longe acusando-o de ladrão (Jo 12,6).Como uma acusação grave dessa não foi feita por mais ninguém? Aí ficamos com a dúvida deChurton que disse “O Evangelho de João nos informa – não sabemos com que justificaçãohistórica – que Judas tomava conta da bolsa (do dinheiro)” (CHURTON, 2009, p. 192). SeJudas, realmente, fosse um gatuno, por que motivo o deixaram tomando conta do dinheiro?Alguém colocaria um ladrão como seu administrador financeiro? Não seria, evidentemente,para colocar a honra desse discípulo em jogo, fórmula encontrada para se justificar que, porser assim, ele não teria também nenhum escrúpulo em trair o seu próprio Mestre? Essahipótese, para nós, é a mais viável.

Não bastassem os que já encontramos, aparecem-nos agora mais dois evidentesconflitos.

O primeiro está relacionado à forma pela qual Judas deu cabo à sua vida, movido,segundo relata o autor de Mateus, por profundo remorso. Estranhamente é o único Evangelhoque fala disso; nenhum outro autor apresenta uma linha sequer sobre Judas ter searrependido. Continuando seu relato, o autor de Mateus diz que Judas se enforcou (27,5);entretanto, em Atos (1,18) está se afirmando que ele “precipitando-se, caiu prostrado earrebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram”, mudando, desta maneira, aversão anterior a respeito de sua morte. Encontramos a seguinte explicação para esse passo:“Possivelmente a narração da morte de Judas enforcando-se, está inspirada na história damorte de Aquitofel (cf. 2Sm 17,23)” (Bíblia Sagrada Santuário, p. 1463). Conforme citamosanteriormente Aquitofel enforcou-se, mas querer, daí, apenas por inspiração, atribuir a Judasuma morte semelhante é lamentável, pois esse fato bíblico deveria ter sido relatado fielmentecomo ocorrido, aliás, não só esse, mas todos os outros; não como o autor do relato quer quetenha acontecido, o que nos coloca diante de uma mera suposição.

Quem sabe se não houve uma outra justificativa para Judas se enforcar? É o que nospropõe Churton:

Quando o arqueólogo israelense Yigael Yadin escavou a fortaleza e o paláciode Massada, o mundo todo descobriu que no ano de 74 d.C. zelotes devotos, emsua determinação de manter sua religião livre da contaminação romana,estavam prontos a cometer suicídio em massa em vez de se render aosromanos. “Nunca novamente!” Talvez Judas tenha se enforcado para não seentregar aos soldados romanos. O cenário político mais detalhado quesurgiu dessa pesquisa arqueológica deu outra direção à ideia do suicídiode Judas. […] (CHURTON, 2009, p. 190, grifo nosso).

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Já tivemos a oportunidade de ver algumas pessoas tentando conciliar os dois tipos demorte de Judas, dizendo várias coisas como, por exemplo, que no seu enforcamento ele teriacaído num precipício. Mas será que isso pode ser levado em conta? O estudioso Bart D.Ehrman (1955- ), ex-evangélico, falando a respeito disso, afirmou:

Ao longo dos anos os leitores tentaram conciliar esses dois relatos damorte de Judas. Como ele podia se enforcar e cair “de cabeça para baixo”,para que sua barriga se abrisse e seus intestinos se espalhassem pelo solo?Interpretes engenhosos, querendo fundir os dois relatos em uma sónarrativa verdadeira, tiveram grande dificuldade com isso. Talvez Judastivesse se encorcado, a corda arrebentado e ele caído no chão de cabeça, separtido ao meio. Ou talvez tivesse se enforcado, e como isso não tivesse dadocerto, então subiu em uma rocha alta e se jogou de cabeça n o campo. Outalvez... bem, talvez alguma outra coisa.

O importante, contudo, é que os dois relatos oferecem versões diferentessobre como judas morreu. Por mais misterioso que seja dizer que caiu de cabeçae se rasgou, pelo menos isso não é se “enfocar”. […] (EHRMAN, 2010, p. 60-61,grifo nosso).

Ao pesquisarmos, para obtermos outras explicações, para nossa própria surpresa,deparamo-nos também com uma outra versão sobre sua morte; leiamos:

[…] a maneira como ele morreu. Existem essencialmente três tradiçõesdiversas sobre a questão:

1. A narrativa do livro de Atos parece indicar que a morte de Judas Iscariotesfoi violenta, produzida por alguma espécie de queda incontrolável,evidentemente por algum precipício abaixo.2. Há também a narrativa de Mat. 27:3-10, segundo a qual Judas Iscariotesenforcou-se.3. Por semelhante modo, há uma história, preservada por Papias,discípulo do apóstolo João (ou do “presbítero”) de que Judas Iscariotes foiatacado por alguma enfermidade asquerosa, que causou uma excessivainchação de seu corpo e que, estando ele nessas condições físicas, foiesmagado por uma carroça, em um lugar de estreita passagem, por ondeordinariamente poderia ter passado com sucesso, se não tivesse inchadotanto. (Ver J.A. Cramer, Catanae in Evangelia, S. Matthaei et S. Marci,Oxford: Typographeo Academico, 1884, sobre o vigésimo sétimo capítulo doevangelho de Mateus). Alguns intérpretes têm sugerido que essa história,preservada por Papias, na realidade é a mesma que aparece historiada naspáginas do livro de Atos e que a tradução que aqui aparece como“precipitando-se” (comum, de resto, a todas as traduções), traduz um termomédico obscuro (no grego prestheis), que indicava inchação excessiva. (Essateoria é exposta na obra “The Beginnings of Christianity”, editores F.J. FoakesJackson e Kirsopp Lake: Londres, The Macmillan Co. 1933, V. págs. 22-30).

Além das ideias acima expostas, várias outras interpretações têm aparecido,ou de natureza inteiramente apócrifa, ou como variações das tradições jáexistentes. Alguns intérpretes têm asseverado que as palavras “...foi enforcar-se...”, da passagem de Mat. 27:5, na realidade deveriam ser traduzidas porsufocou-se, deixando um tanto vago o modo real de sua morte. Outrosestudiosos têm pensado que essas palavras significam que ele foi consumidopelo remorso de consciência. Mui provavelmente essas explicações vieram alume na tentativa de reconciliar a narrativa do livro de Atos com o relato doevangelho de Mateus, posto que, mediante tais interpretações, nenhum modoespecifico de morte pode ser atribuído à narrativa de Mateus. Tais tentativas,não obstante, não são bem fundadas, e nem têm sido bem recebidas pelosestudiosos em geral.

Uma outra tentativa de reconciliação entre essas duas narrativas, é aquelaque diz que as narrativas do evangelho de Mateus e do livro de Atos sãodescrições de várias etapas da morte de Judas. - A ideia é que Judas pendurou-se por uma corda ou em um ramo, o qual ter-se-ia partido, precipitando-o parabaixo e propiciando as condições descritas em Atos. Essa interpretação temdeixado a vários estudiosos satisfeitos; mas outros têm-na considerado

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como mera tentativa de harmonizar os relatos bíblicos a qualquer custo,até mesmo ao preço da honestidade.

É justo dizermos que o problema permaneceu praticamente sem solução nostempos antigos; e para muitos intérpretes, é nesse ponto de insolubilidade que oproblema se encontra até hoje. Mas todas as narrativas, até mesmo aslendárias, concordam sobre o ponto de que Judas Iscariotes sofreu algumaforma de morte violenta e horrenda. […] (CHAMPLIN e BENTES, 1995, p. 622,grifo nosso).

O segundo diz respeito ao destino dado às moedas. O autor de Mateus menciona queJudas as teria devolvido, atirando-as dentro do santuário, que, recolhidas pelos sacerdotes,foram, por deliberação deles, destinadas à compra do campo do oleiro, para servir de cemitérioaos estrangeiros (Mt 27,3-10), citando que isso aconteceu para se cumprir o que dissera oprofeta Jeremias. Mas essa história nos parece mal contada, pois em Atos se diz que o próprioJudas teria comprado um campo (At 1,18), que até poderia ser esse do oleiro; mas, dequalquer forma, está em conflito com a versão anterior.

Na maioria das Bíblias em que consultamos, dizem que as profecias relacionadas a Mt27,9: “Cumpriu-se, então, o que foi dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas deprata, preço do que foi avaliado, a quem certos filhos de Israel avaliaram e deram-nas pelocampo do oleiro, assim como me ordenou o Senhor”, estariam nos passos: Zc 11,12-13 e Jr32,5-16, ou Jr 18,1-4 e 19,1-3 (Bíblia Anotada, p. 1229). Há, portanto, sérias dúvidas quantoà identificação da profecia específica relacionada ao episódio. Como já falamos sobre a citaçãode Zacarias, fica-nos, por conseguinte, apenas as de Jeremias para dizermos alguma coisa. Emnotas explicativas sobre elas encontramos que: “A citação é uma combinação artificial de Jr32,6-9 e Zc 11,12-12” (Bíblia do Peregrino, p. 2386); isso nos deixa diante da realidade deque, por se admitir que seja “uma combinação artificial”, estamos, certamente, diante de maisuma tentativa de se relacionar acontecimentos no Novo Testamento com ocorrênciasregistradas no Antigo Testamento, tidas como se fossem verdadeiras profecias.

Quem tiver a curiosidade de consultar a passagem citada de Zacarias não encontraránela algo no qual se possa qualificá-la como profecia; são apenas fatos relacionados àquelemomento vivido por esse profeta. E quanto a Jeremias, não se encontra absolutamente nadaque ele tenha comprado alguma coisa por trinta moedas. Sobre a compra de um terreno, sim,como podemos ver em 32,6-12; mas uma situação circunstancial, explicada da seguinteforma:

À primeira vista se trata de um incidente: a compra e venda de um terrenosegundo as normas e o procedimento da legislação judaica. O narrador secompraz em registrar todos os detalhes, mostrando que a lei foi estritamentecumprida e que o ato é juridicamente válido. O surpreendente dessa compra-e-venda é que se realiza às vésperas da catástrofe inevitável. Que sentido temnesse momento comprar um terreno para que fique em poder da família? Tudojá está perdido. Mas o absurdo do ato é a chave do seu sentido. Para efeitoslegais imediatos, a compra nada servirá; para efeitos proféticos, é admirável atode esperança no futuro. É um oráculo em ação, Jeremias profetiza ao vivo: nãosó palavras, nem ação simbólica, mas ato real jurídico. Esse ato significa ofuturo que ele antecipa: a jarra de barro onde se guarda o contrato é um penhorque Deus concede. Apesar do que está para acontecer, a terra continua sendopropriedade dos judaítas: a terra prometida aos patriarcas e possuída duranteséculos... (Bíblia do Peregrino, p. 1928).

Podemos ainda confirmar isso com a seguinte explicação: “A citação [Mt 27,9] é tiradana realidade de Zacarias (11,12-13). Mas, ele lembra também diversos versículos de Jeremiasonde se faz menção do campo e do oleiro (32,6-6; 18,2-12)”. (Bíblia Ave-Maria, p. 1319).Ressaltamos que a expressão “ela lembra”, é uma afirmativa que depõe contra o próprio textoque, positivamente, diz ser de Jeremias essa profecia.

Percebemos que as narrativas possuem diversos fatos conflitantes entre si, deixando-nos na convicção que tudo não passa, na melhor das hipóteses, de um ajuste dos textos parase chegar a um objetivo pré-determinado, conforme já falávamos, desde o início. Para se teruma ideia mais exata sobre isso, colocaremos a passagem Mt 27,1-26, que, para tornar a

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explicação mais fácil de ser entendida, iremos dividi-la em três partes:

I) 1-2: De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povoconvocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles o amarrarame o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador.

II) 3-10: Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foidevolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos, dizendo:“Pequei, entregando à morte sangue inocente”. Eles responderam: "E o que temos nóscom isso? O problema é seu". Judas jogou as moedas no santuário, saiu, e foi enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: "É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue". Então discutiram em conselho, eas deram em troca pelo Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros. Épor isso que esse campo até hoje é chamado de “Campo de Sangue”. Assim se cumpriuo que tinha dito o profeta Jeremias: “Eles pegaram as trinta moedas de prata - preçocom que os israelitas o avaliaram - e as deram em troca pelo Campo do Oleiro,conforme o Senhor me ordenou”.

III) 11-26: Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: “Tu és o rei dosjudeus?” Jesus declarou: “É você que está dizendo isso”. E nada respondeu quando foiacusado pelos chefes dos sacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou: “Não estásouvindo de quanta coisa eles te acusam?” Mas Jesus não respondeu uma só palavra, eo governador ficou vivamente impressionado. Na festa da Páscoa, o governadorcostumava soltar o prisioneiro que a multidão quisesse...”.

Para o que queremos colocar não é necessário citar toda a narrativa; assim, omitimos orestante da sequencia dessa última (vv. 16-26), pois até aqui, no versículo 15, já encontramoso suficiente para entendermos e percebermos que os versículos de 3-10 nada têm a ver com ocontexto geral daquilo relatado na passagem. Inclusive, no versículo 3 está dito que Judas viuque Jesus havia sido condenado, quando, no desenrolar do texto, esse fato ainda não haviaacontecido, que só veio acontecer mais à frente. A quebra brusca na sequencia dessanarrativa, não deixou de ser percebida pelo tradutor da Bíblia do Peregrino, conforme nosexplica:

O episódio da morte de Judas interrompe estranhamente o curso do relato,como se a entrega de Jesus ao governador ultrapassasse suas previsões.Sabemos que a figura de Judas alimentou desde cedo fantasias legendárias.Lucas dá versão diferente (At 1,18-20). A morte violenta do perseguidor ouculpado é tema literário conhecido (p. ex. Absalão, 2Sm 18: Antíoco Epífanes,2Mc9; em versão poética vários oráculos proféticos, p.ex. Is 14; Ez 28). Antesde morrer, Judas acrescenta seu testemunho sobre a inocência de Jesus.Confessa o pecado, mas desespera do perdão... (Bíblia do Peregrino, p. 2385-2386).

Isso vem confirmar todas as nossas suspeitas de que tudo foi um calculado “arranjo”visando ajustar os textos às conveniências dos interessados para que eles tivessem referênciasàs suas idiossincrasias. E, em relação ao assunto tratado, temos fortes suspeitas de que váriosoutros trechos foram intercalados às narrativas bíblicas, para amoldá-los a um propósitodeterminado. Podemos citar, como exemplo, Mt 26,14-16; 21-25; 28,11-15; Mc 10,10-12;14,18-21; Lc 22,3-6, 21-23; Jo 1,33; 11,12-16, para que você, caro leitor, faça uma análisemais aprofundada.

Podemos ainda recorrer a Ernest Renan (1823-1892), que disse:

Quanto ao desgraçado Judas de Cariote, lendas terríveis correram sobresua morte. Disseram que, com o prêmio de sua perfídia, comprara umas terrasnos arredores de Jerusalém. Havia, justamente, ao sul do monte Sião, um localchamado Hakeldama (campo de sangue)(8). Pensou-se que era a propriedadeadquirida pelo traidor(9). Segundo uma tradição, ele se matou(10). Segundouma outra, ele levou um tombo na sua propriedade e, como consequência, suasentranhas se espalharam pelo chão(11). Segundo outras, ele morreu de umaespécie de hidropsia, acompanhada de circunstâncias repugnantes que foramtomadas como castigo do céu(12). O desejo de comparar Judas a

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Achitofel(13) e de mostrar nele o cumprimento das ameaças que oSalmista pronunciou contra o amigo pérfido(14) pode ter dado ensejo aessas lendas.______8. São Jerônimo, De situ et nom. Loc. hebr., para a palavra Acheldama. Eusébio (ibid.) dizao norte. Mas os itinerários confirmam a lição de São Jerônimo. A tradição que nomeiaHaceldama à necrópole situada no fundo do vale de Hinon remonta pelo menos à época deConstantino.9. Atos, I, 18-19. Mateus, ou melhor, seu interlocutor, deu aqui um tom menos satisfatórioà tradição, a fim de ligar a isso a circunstância de um cemitério para estrangeiros, que seachava perto dali, e de encontrar uma pretensa confirmação em Zacarias, XI,12-13.10. Mat. XXVII, 5.11. Atos, l.c.; Pápias, em Ecumenius, Enarr, in Act. Apost., II e em Fr. Münter, Fragm.Patrum graec. (Hafniae, 1788, fasc. I, p. 17 e seg.; Teofilacto, em Mat., XXVII, 5.12. Pápias, em Münter, l.c., Teofilacto, l.c.13. II Sam., XVII,23.14. Salmos LXIX e CIX.(RENAN, 2004, p. 397, grifo nosso).

Ficamos a pensar como se sentiu e como ainda pode estar se sentindo Judas sobre tudoquanto lhe imputam como procedimento. O pobre coitado ainda é julgado e condenado, anosapós anos, pelos ditos “cristãos”, que, com certeza, não cumprem o: “Não julgueis os outrospara não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes, sereis julgados e coma medida que medirdes sereis medidos” (Mt 7,1-2). Não bastasse isso, ainda é humilhado,malhado e, ao final, é espetacularmente “detonado”. Infelizmente esse nos parece ser o seudestino cruel, que se perpetua anualmente nas comemorações da Semana Santa realizadaspor determinadas religiões cristãs tradicionais.

Reabrimos esse “processo”, pois temos em mãos a revista Discovery Magazine demarço/2005, com uma interessante reportagem intitulada Últimos momentos de Jesus,assinada pelo jornalista Walter Falceta Jr. (1971[?]- ), da qual transcrevemos os seguintestrechos:

(...) Mas pesquisas mais recentes lançam novos olhares especialmente sobreo odiado Judas – aquela figura que, vestida em boneco de trapos, mobiliza osmalhadores nos Sábados de Aleluia.

Ao contrário da tradição, os estudos modernos são mais complacentes com odiscípulo dissidente, tido no imaginário popular como um homem ambicioso esem caráter. O magistrado israelense Haim Cohn, ex-juiz da Suprema Corte deIsrael, autor de O Julgamento e a Morte de Jesus, defende que, à época daPaixão, Jesus já era conhecido em Jerusalém e sabia-se de seu costume demeditar no Monte das Oliveiras. “Não seria necessário, portanto, quealguém indicasse seu refúgio”, diz Cohn. Dessa forma, o episódio do “beijoda traição”, que teria sido protagonizado por Judas para indicar aossoldados romanos o momento adequado da captura de Jesus,pertenceria ao campo da lenda e não da realidade...

Para outros especialistas, o perfil de Judas foi moldado para representar osarquétipos da maldade. De acordo com o bispo da Igreja Anglicana John Spong,de Newark (EUA), até o nome de Judas teria sido escolhido para remeter oinconsciente coletivo ao termo “judaísmo”, numa estratégia para marcarnegativamente a imagem dos primeiros opositores do cristianismo.

FICÇÃO NOS EVANGELHOS

Na década passada, o padre Raymond Brown, ex-professor do SeminárioTeológico União, de Nova York, produziu o mais detalhado estudo sobre o queaconteceu nos últimos dias da vida de Cristo. Um calhamaço de 1.600 páginas, olivro The Death of J. B. Howell the Messiah (“A morte do Messias”, ainda nãoeditado no Brasil) compara os argumentos de vários intérpretes da Bíblia, oschamados exegetas, à luz de dados históricos. Em seus textos, Brown dá créditoaos escritos oficiais e estimula uma leitura conservadora das Escrituras. Mesmoassim, admite que o objetivo dos autores dos textos sagrados era evangelizar enão reconstituir fatos históricos. Segundo ele, é natural que tenham recorrido àficção para expor suas ideias. Brown considera, por exemplo, que a história das30 moedas que, segundo a Bíblia, Judas recebeu dos sacerdotes do Sinédrio

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para entregar Cristo passou a simbolizar o suposto gosto dos judeus pelodinheiro. (FALCETA JÚNIOR, p. 28-33, grifo nosso).

Isso vem, de certa forma, em apoio ao que deduzimos de nossos estudos bíblicos; sinalque não estamos sendo heréticos sozinhos, embora isso não nos preocupe, pois para nós oque é mais importante é que se restabeleça a verdade.

Vejamos, agora, o que Geza Vermes (1924- ), renomado exegeta, diz sobre o trecho deMateus, que cita Judas (Mt 27,3-10):

Mateus insere uma breve passagem sobre Judas entre o julgamento de Jesuspelo Sinédrio e a transferência do caso para Pilatos. Ele faz o traidor arrepender-se e devolver o suborno. Os evangelistas são inocentes das especulaçõesmodernas sobre motivos elevados de Judas, tal como o seu desejo de forçarJesus a revelar seu messianismo oculto. Não é dada nenhuma hora exata.Segundo Mateus, o julgamento de Jesus ocorre na casa de Caifás, mas oencontro de Judas com os chefes dos sacerdotes e os anciãos é situado noTemplo, local diferente sem dúvida numa ocasião diferente. Como asautoridades sacerdotais se recusaram a aceitar o dinheiro de volta, Judas ojogou fora e, desesperado, enforcou-se. O restante da história tem toda aaparência de um conto folclórico artificialmente combinado com umacitação escritural para transformar o acontecimento em cumprimento deuma profecia. Deixados diante de um dilema – o que fazer com o dinheiro desangue devolvido, impróprio para o tesouro do Templo –, os chefes dossacerdotes decidem usá-lo para comprar um campo para o sepultamento deestrangeiros. Havia um terreno em Jerusalém conhecido como "Campo deSangue", e uma tradição cristã primitiva o associava à desventura de Judas. Oaspecto profético do incidente é amplamente produzido por Mateus. Diz-se quea citação é de Jeremias, mas trata-se de uma invenção ou, maisexatamente, de uma mistura adulterada de Zacarias 11,12-13 eJeremias 18,2-3; 36,6-15. É impossível discernir nos extratos bíblicos sequeruma remota ligação com o episódio de Judas. Aqui, como em muitos outroslugares, Mateus empenha-se em retratar a história da Paixão, perturbadorapara crentes e pouco atraente para supostos convertidos, como uma sequênciade eventos profeticamente previstos e providencialmentepredestinados. (VERMES, 2007, p. 53-54, grifo nosso).

Esse empenho de Mateus em relacionar Jesus a várias profecias, foi também percebidopor nós, inclusive, objeto de um estudo à parte, com o título de “Será que os profetaspreviram a vinda de Jesus?”, que poder ser visto em www.paulosnetos.net.

Fechamos com Churton, que disse: “Temos a liberdade de suspeitar que os autores dosEvangelhos realmente não sabiam o que aconteceu”. (CHURTON, 2009, p. 236).

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A questão do bom ladrão

A passagem de Lucas a respeito do “bom ladrão” é, muitas vezes, utilizada,principalmente pelos nossos detratores de plantão, para sustentar a ideia de que não existe areencarnação. Não querendo entrar detalhadamente neste assunto, apenas gostaríamos dedizer para aqueles que não a aceitam, que vejam como ela é obvia nas seguintes passagens:

Mt 17,12: “Mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhetudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem”.

Mt 11,14-15: “E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. Quem temouvidos para ouvir, ouça”.

Jo 3,3: “Jesus respondeu, e disse-lhe: 'Na verdade, na verdade te digo que aquele quenão nascer de novo, não pode ver o reino de Deus'”.

Jo 3,7: “Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo”.

Vemos que, infelizmente, muitos ainda não “têm ouvidos de ouvir”. Nãocompreendemos como podem conceber uma Justiça Divina sem a reencarnação. Já que, paranós, a reencarnação é o único meio de “sermos perfeitos como o Pai Celestial” (Mt 5,48),conforme nos recomenda Jesus, a não ser que Ele nos tenha ensinado algo que nãopudéssemos fazer, o que seria um absurdo.

Voltando ao que nos propomos, achamos por bem fazer uma análise desse episódio,para que possamos encontrar a verdade. Vamos, então, às narrativas bíblicas sobre talacontecimento, tiradas da Bíblia Anotada, Editora Mundo Cristão:

Mt 27,44: “E os mesmos impropérios lhe diziam também os ladrões que haviamsido crucificados com ele”.

Mc 15,32: “Também os que com ele foram crucificados o insultavam”.

Lc 23,39-43: “Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele, dizendo:'Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também'. Respondendo-lhe, porém, ooutro repreendeu-o dizendo: 'Nem ao menos temes a Deus, estando sob igualsentença? Nós na verdade com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atosmerecem; mas este nenhum mal fez'. E acrescentou: 'Jesus, lembra-te de mim quandovieres no teu reino'. Jesus lhes respondeu: 'Em verdade te digo que hoje estaráscomigo no paraíso'”.

Jo 19,18: “Onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado, e Jesus nomeio”.

Ressaltamos que se a Bíblia, segundo dizem, é totalmente inspirada por Deus por quenão narram os Evangelistas os mesmos fatos? Ora, se a fonte de inspiração é de uma mesmaorigem, Deus, deveriam ser tais narrativas completamente iguais, pelo menos quanto aofundo. Poderemos até aceitar palavras diferentes, mas não com divergências quanto ao fatoocorrido; e aqui ele é narrado de forma diferente, conforme iremos observar a seguir:

1 – Quanto ao diálogo:

Mateus, Marcos e João nada relatam de qualquer diálogo entre os três crucificados.

2 – Quanto à atitude:

Mateus e Marcos dizem que os ladrões estavam, isto sim, entre os que escarneciam deJesus. Só Lucas diz que Jesus teria dito para um deles que “hoje estarás comigo no Paraíso”.

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3 – Quanto à testemunha:

João que estava ao pé da cruz, ou seja, a testemunha ocular, nada diz sobre estediálogo de Jesus com um dos ladrões.

Por curiosidade, vamos ver como essa frase aparece nas Bíblias de outras editoras:

Mundo Cristão: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”.

Vozes: “Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso”.

Pastoral: “Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo no paraíso”.

Ave Maria: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso”.

Barsa: “Em verdade te digo: que hoje serás comigo no paraíso”.

Loyola: “Eu te asseguro: hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.

Perguntaríamos, então, qual delas é a frase mais verdadeira? Enquanto algumas dizem“em verdade”, outras dizem “eu garanto” e “eu te asseguro”, apesar dessas Bíblias terem comoorigem o mesmo segmento religioso.

Um detalhe que julgamos importante é que essa afirmação, atribuída a Jesus, pode serencontrada nos documentos apócrifos: Evangelho de Nicodemos (TRICCA, vol. I, 1992a, p.238), Descida de Cristo ao inferno (TRICCA, vol. I, 1992a, p. 261) e o denominado Declaraçãode José de Arimateia”, nesse, inclusive, é citado o nome dele como sendo Dimas (TRICCA, vol.II, 1992b, p. 285). Transcrevemos um trecho da fala do “bom ladrão”:

E enquanto ele pendia na cruz, ao ver os prodígios que se sucederam,acreditei nele e roguei a ele dizendo: “Senhor, quando reinares, não te esqueçasde mim”. E ele logo disse-me: “Em verdade em verdade te digo, hojemesmo estarás comigo no paraíso”. (TRICCA, vol. I, 1992a, p. 261) (grifonosso).

Observe, caro leitor, que a fala encontrada no apócrifo Descida de Cristo ao inferno é amesma que se encontra no Evangelho de Lucas. Assim, ficamos na dúvida se a passagem deLucas, a respeito do “bom ladrão”, não teria sido tomada exatamente desse e dos outros doisdocumentos, cuja autenticidade não foi reconhecida pela Igreja Católica, uma vez que elemesmo declara que escreveu “após acurada investigação de tudo deste o início”, o queconstata que ele não foi inspirado.

Por outro lado, vários outros autores confirmam o que Severino Celestino da Silva(l1949- ) disse em seu livro Analisando as Traduções Bíblicas:

Sabemos que os manuscritos originais do Novo Testamento não possuíampontuação, e em face do fato de o grego clássico (incluindo o grego koiné, noqual foi escrito o Novo Testamento) gozar de ampla liberdade no tocante àordem das palavras, é impossível, à base do próprio texto grego, provar um ladoou outro dessas ideias contraditórias. (SILVA, 2001, p. 309-310)

Assim, não fica difícil entender que nas traduções colocaram a pontuação conforme aconveniência de cada tradutor.

Analisando, especificamente essa frase, e, se admitirmos que isso realmente tenhaacontecido, teremos uma contradição de Jesus, pois Ele mesmo disse: a cada um segundosuas obras. (Mt 16,27). E, quando do episódio com Madalena, após sua ressurreição, disseEle a esta mulher: “Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meusirmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo20,17). Ora, se Jesus, três dias após sua morte, ainda não tinha subido ao Pai, como Elepoderia ter afirmado ao “bom ladrão”, que hoje estarás comigo, ou seja, justamente no dia desua morte na cruz?

Outros questionamentos temos para apresentar: se muitos acreditam que, segundo asescrituras, os mortos ficam dormindo, como admitir a entrada dele direto ao paraíso? E comofica o tão falado dia do Juízo final, não haverá mais esse juízo?

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Por outro lado, o “bom ladrão”, ao reconhecer que “nós na verdade com justiça, porquerecebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez”, ele estáaceitando a justiça dos homens, e por mais forte razão, aceitaria a Justiça de Deus que lhedaria uma pena merecida. Assim, podemos concluir também que ele não estava pedindo umarecompensa por algo que não tivesse feito, mas, apenas que Jesus se lembrasse dele quandovoltasse; certamente visando o perdão dos seus pecados, não é mesmo?

Além disso, o dito “bom ladrão” (e, diga-se de passagem, é o único ladrão bom dahistória da humanidade) somente reconheceu que ele e o outro tinham motivos para morreremcrucificados, e que Jesus era um inocente sendo condenado; assim, já que não houve nemmesmo um simples arrependimento, por parte dele, por que o prêmio? Se for verdadeira essaregra, então, qual a vantagem de ser correto durante toda uma vida se podemos ir para o céuapenas por um arrependimento de última hora?

Narra Mateus (20,20-23) que a mãe dos filhos de Zebedeu chega a Jesus com oseguinte pedido: “Ordena que estes meus dois filhos se sentem um à tua direita e outro à tuaesquerda, no teu reino”. Não vemos Jesus atendendo ao pedido desta abnegada mãe; aocontrário, disse-lhe: “Mas quanto a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, nãome cabe concedê-lo, porque estes lugares são destinados àqueles para os quais meu Pai osreservou”. Ora, se aqui Jesus afirma que não cabe a Ele conceder um lugar no Paraíso ou reinodos céus, como, então, promete um lugar ao “bom ladrão”? Será que Ele estariacontradizendo-se? Acreditamos que não, pois tanto nesse caso, quanto no outro, teria que agirsem conceder qualquer tipo de privilegio, ou seja, “a cada um segundo suas obras”.(Mt 16,27).

Não bastassem os fatos acima, uma análise cuidadosa da cena do Calvário revela que oladrão pode não ter morrido naquele mesmo dia, pois João (19,31-33) nos diz: "Osjudeus, pois, para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, visto como era a Preparação(pois era grande o dia de Sábado), rogaram a Pilatos que lhes quebrassem as pernas, e quefossem tirados. Foram, pois, os soldados e, na verdade, quebraram as pernas do primeiro, eao outro que com ele fora crucificado; mas, vindo a Jesus, e vendo-O já morto, não Lhequebraram as pernas".

Arnaldo B. Christianini (? - ) aborda a questão do costume de quebrar as pernas em seulivro Subtilezas do Erro, de onde transcrevemos:

Por que "quebrar as pernas" dos justiçados? Porque o crucificado não morriano mesmo dia. Cristo foi caso excepcional e sabemos que não morreu dosferimentos ou da hemorragia, mas de quebrantamento do coração. Morreu dedor moral por suportar os pecados do mundo. Mas os outros, não, e as crônicasdescrevem o condenado esvaindo-se lentamente durante dias.

Diz, por exemplo o comentário de J. B. Howell:"O crucificado permanecia pendurado na cruz até que, exausto pela dor, pelo

enfraquecimento, pela fome e a sede, sobreviesse a morte. Duravam ospadecimentos geralmente três dias, e às vezes, sete." (1)

É óbvio que os homens de maior robustez física duravam até sete dias nacruz. No caso em tela, os judeus, não permitiram que se conservasse umcriminoso na cruz no dia de sábado, pois consideravam um desrespeito àsantidade do dia de repouso.

"De acordo com o costume, quebravam as pernas dos criminosos depois deos haverem removido da cruz, deixando-os estendidos no chão, até que osábado passasse. Depois do sábado haver passado, sem dúvida esses doiscorpos foram outra vez amarrados na cruz, e lá ficaram diversos dias, atémorrerem..."

Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do pôr-do-sol, é porque não haviam, morrido ainda. Na pior das hipóteses viveram ainda,pelo menos, um dia a mais que o Mestre. Como podia, um deles, estar nomesmo dia junto de Jesus?______(1) E. Howell, Comentário a S. Mateus, pág. 500.

(CHRISTIANINI, 1965, p. 274-275).

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Se era necessário quebrar as pernas aos dois malfeitores, antes do pôr-do-sol, é porquenão haviam morrido ainda. Na pior das hipóteses, viveram ainda pelo menos um dia a maisque o Mestre. Como podia, um deles, estar no mesmo dia junto de Jesus?

Já falamos, várias vezes, mas não custa repetir. Coloquemos a frase do seguinte modo:Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso. Veja como uma simples vírgula mudacompletamente o sentido do texto... Desta forma, é muito mais condizente com a JustiçaDivina, pois um indivíduo somente irá para o Paraíso, quando tiver realizado as obras quejustifiquem merecê-lo, não importando quanto tempo levará para isso.

Também não estaria em conflito com o texto: “Ora, se invocais como Pai aquele que,sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, portai-vos com temor durante otempo da vossa peregrinação, ...” (1Pd 1,17). E, para reforçar que Deus não faz mesmoacepção de pessoas, pedimos para consultar: Dt 10,17; 2Cr 19,7; Jó 34,19; At 10,34; 15,9;Rm 2,11; Ef 6,9 e Cl 3,25.

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Espíritos em Prisão

Reza o credo católico que Jesus “[...] padeceu sob o poder Pôncio Pilatos, foicrucificado, morto e sepultado. Desceu aos infernos e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos;subiu aos céus e está sentado à mão direita de Deus-Pai, todo-Poderoso, de onde há de virjulgar os vivos e os mortos. [...]”.

A pergunta é: o que Jesus teria ido fazer nos infernos? De onde tiraram essa ideia?Bom, parece-nos que isso foi retirado da primeira carta de Pedro (3,19-20), onde se diz queJesus pregou “aos espíritos em prisão”, acrescentando que esses espíritos são os que foramdesobedientes nos dias de Noé, ou seja, até antes do dilúvio.

Disso se pode concluir que, pela Bíblia, a palavra espírito significa um ser humanodesencarnado e que os espíritos exercem influência sobre os encarnados. É o que se verificapor várias passagens bíblicas, onde encontramos os espíritos (imundos ou impuros) exercendodomínio sobre uma pessoa (o possesso de Gerasa, em Mt 8,28-34; Mc 5,1-20 e Lc 8,26-39; opossesso de Cafarnaum, em Mc 1,21-28 e Lc 4,31-37, e o menino mudo e epilético, em Mt17,14-21; Mc 9,14-29 e Lc 9,37-43). Os seres aos quais se denominam demônios são, semsombra de dúvidas, os espíritos, tendo em vista que, pelas passagens citadas, as narrativasora dizem demônio ora espírito impuro, demonstrando, portanto, que são palavras sinônimas.

Mas, voltando à questão inicial, o que teria Jesus pregado a esses espíritos em prisão?A resposta ainda se encontra na primeira carta de Pedro (4,6), onde ele diz que “o Evangelhofoi pregado também a mortos”. Resumindo: Jesus desceu aos infernos para pregar oEvangelho aos espíritos dos que haviam morrido até o dilúvio.

Três questões nos surgem agora: a primeira, por que só pregou para os que viveramaté Noé, e os que morreram após o dilúvio até o início de sua pregação não tiveram aoportunidade de receber essa pregação? Então onde fica “Deus não faz acepção de pessoas”(Rm 2,11)? A segunda, é que se Jesus foi pregar aos mortos, que se encontravam nos infernos(em prisão), é pelo fato de que esses condenados poderiam ser recuperados? Em função dessapossibilidade de recuperação, na qual acreditamos, podemos afirmar que na hipótese doinferno existir mesmo, ele não poderá ser eterno. Até mesmo porque somente se fica na prisãoaté que seja pago o último centavo da dívida (Mt 5,26). Terceira, se Jesus foi aos infernospregar aos mortos concluímos que os mortos foram julgados; daí, haveria alguma explicaçãoracional para o tal juízo final, onde serão julgados os vivos e os mortos?

Vejamos agora o que dizem os teólogos.

Os protestantes, nos explicam a expressão “pregou aos espíritos em prisão”, dizendo:

Alguns pensam que esta frase significa que Cristo, entre Sua morte eressurreição, desceu ao Hades e ofereceu aos que viveram antes de Noé (v. 20)uma segunda oportunidade de salvação, uma doutrina que não temapoio escriturístico. Outros pensam que foi apenas uma proclamação de Suavitória sobre o pecado aos que estavam no Hades, sem o oferecimento de umasegunda chance. É Mais provável que este versículo seja uma referência aoCristo pré-encarnado pregando através de Noé àqueles que, por terem rejeitadoSua mensagem, agora são ‘espíritos em prisão’. (Bíblia Anotada, p. 1566). (grifonosso).

Já com relação à pregação do Evangelho a mortos, dizem:

a mortos, I.e., cristãos já falecidos O evangelho foi pregado àquelesmártires agora mortos. Eles foram julgados na carne e condenados ao martíriosegundo padrões humanos de justiça, mas estão vivos espiritualmente depois damorte. Outra interpretação deste versículo relaciona esta pregação àquela

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mencionada em 3:19. (Bíblia Anotada, p. 1566). (grifo nosso).

Diremos que o apoio escriturístico para a pregação de Jesus aos espíritos que estavamna prisão é confirmado pela própria passagem questionada, como também em 1Pe 4,6; masem nota nessa passagem, dizem que Jesus teria ido pregar aos cristãos já falecidos. Essahipótese é completamente sem sentido, para não dizer absurda, pois os que seguiam Jesus sóforam chamados de cristãos mais tarde (At 11,26), por volta do ano 37 d.C., época dafundação da Igreja de Antioquia; isso, considerando que a morte de Jesus se deu na Páscoa de30, nos dá aproximadamente 7 anos depois da morte de Cristo. Resta-nos portanto, aalternativa de que realmente Jesus foi pregar aos espíritos em prisão.

Os católicos, por sua vez, explicam:

Provável alusão à descida de Cristo ao limbo. Quem sejam os espíritos aosquais Jesus foi pregar, é controverso. Há quem afirme que se trata dos espíritosmaus, aos quais Cristo anunciou a derrota e a sujeição; outros, ao contrário,veem neles os incrédulos dos tempos de Noé; mas provavelmente são os justosdo A. T. que haviam esperado no Cristo. (Bíblia Sagrada Paulinas, p. 1329-1330)

E, em relação aos mortos dizem:

Quanto a esses mortos, cfe 3,19. São os justos que morreram pelo dilúvio,entre os quais houve os que se arrependeram de seus pecados, embora essearrependimento tardio, tendo salvo a alma, não serviu para salvar o corpo damorte. Há quem sustente tratar-se de mortos espirituais. (Bíblia SagradaPaulinas, p. 1330).

A atitude de Jesus descer aos infernos apenas para anunciar aos espíritos maus a suaderrota e sujeição, não condiz com tudo que Ele pregou e exemplificou. Isso seria apenas umademonstração de superioridade com consequente humilhação daqueles aos quais estaria sedirigindo; portanto, fora de propósito. Seriam os justos como sugerem? Se os justos estavamna prisão é porque mereceram castigo; ora, só pelo fato de se merecer castigo é umaconsequência de não ser justo, pois justo merece prêmio, não castigo.

Limbo? Ora, na Bíblia não encontramos nada a respeito. Afinal o que é isso? Segundo oDicionário da Bíblia Barsa seria:

“residência das almas das crianças mortas sem terem sido batizadas, ...quemnão tiver cometido pecado mortal não será castigado com o inferno e de que sóos que tiverem tido o pecado original apagado pelo Batismo (de água, sangueou desejo) é que entrarão no céu” (Dicionário Barsa, p. 159).

Ah! O que esses teólogos não inventam para justificarem seus dogmas?! Veja bem;criam um lugar que não existe, estabelecendo as condições para os que para lá irão; tudo semnenhum apoio bíblico; apenas como justificativa a seus dogmas. Essa, por exemplo, do pecadooriginal não condiz com: “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pelaculpa dos pais: cada um será morto pelo seu próprio pecado” (Dt 24,16).

Mas afinal, a quem Jesus teria pregado? Teria pregado a todos ou somente aos quemorreram do dilúvio para trás? Já que todos podem dar a sua opinião, diremos que“provavelmente” Jesus tenha pregado a todos os espíritos que estavam “presos”, até mesmoporque Deus trata todos de igual modo. Mas presos onde? Acreditamos que no “umbral”, ondetodos os espíritos, que ainda não possuem evolução suficiente para se desvincularem doplaneta Terra, ficam presos nessa faixa em volta dela. Assim, não admitimos que o “inferno”seja eterno, nem que os “mortos” ficam dormindo à espera do juízo final. O grande problemaque surgirá se aceitarem isso, é que vai para o beleléu a fortuna que fazem usando o dízimonão é mesmo?

Alguém poderá dizer: Mas o credo que conheço não fala em “infernos”, cita “mansãodos mortos”. É fato; entretanto, ao que tudo indica mudou-se a forma de rezar o credo parafugir dos inevitáveis questionamentos. Estão querendo, como se diz popularmente, “tapar o

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Sol com a peneira” apenas isso. Não adianta, pois um dia a verdade haverá de aparecer.

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A morte de Agripa

A ingenuidade de muitos em acreditar piamente em todas as narrativas bíblicas, comose fossem verdades irrefutáveis, é digna de pena. A grande maioria dessas pessoas, se nemmesmo ousa admitir uma simples dúvida, que dirá contestar aquilo que se encontra relatadona Bíblia, já que pressupõem que tudo que ali está é plena verdade proveniente de Deus.Ainda não perceberam que, por conta da esperteza da liderança religiosa da antiguidade,tacitamente incorporada pela atual, foi o que transformou a Bíblia num livro cujo conteúdopassou a ser supostamente a palavra de Deus. Foi a forma fácil e prática que se encontroupara manter sob seu domínio os fiéis: ovelhas que não berram.

Leiamos esse acontecimento conforme a narrativa bíblica:

Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e Sidônia. Estes fizeram umacordo entre si e se apresentaram diante de Herodes, depois de conquistarem asgraças de Blasto, o camareiro real. Eles pediam a paz, já que seu país recebiamantimentos do território do rei. No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajesreais, tomou seu lugar na tribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial. O povo começou aclamar: "É a voz de um deus, e não de um homem!" Mas, imediatamente, o anjo doSenhor feriu Herodes, porque ele não tinha dado glória a Deus. E Herodesexpirou, carcomido por vermes. (At 12,20-23) (grifo nosso).

Segundo os tradutores da Bíblia Anotada, esse personagem é “Herodes Agripa I, netode Herodes, o Grande, que reinara ao tempo do nascimento de Cristo. Agripa, pelo menosexteriormente, era um zeloso praticante dos rituais judaicos e era um patriota em questõesreligiosas” (p. 1378). E, em relação à sua morte, completam: “Josefo afirma que Herodesadoeceu subitamente durante seu discurso e, depois de cinco dias de sofrimento, morreu (44A.D.)” (p. 1379).

Vejamos então, para conferir, o que Josefo (37 a 103 d.C.), o historiador hebreu, fala arespeito desse assunto. A versão de Josefo, parece-nos ser bem diferente dessa que acabamosde citar. Vamos iniciar seu relato após Agripa ter sido preso, acusado por um liberto de nomeEutico, de desejara morte do imperador Tibério, para que seu amigo Caio o substituísse nopoder:

Um dia, quando Agripa estava com outros prisioneiros diante do palácio, afraqueza, que lhe causava a tristeza, fez que ele se apoiasse a uma árvoresobre a qual uma coruja veio pousar. Um alemão, que era do número dessesprisioneiros, tendo-o notado, perguntou a um soldado que o olhava e que estavaacorrentado com ele, quem era aquele homem; tendo sabido que era Agripa, omais notável de todos os judeus pela glória de sua origem, rogou-lhe que seaproximasse dele, a fim de que pudesse ouvir de sua boca alguma coisa sobreos costumes de seu país. O soldado assim fez; o alemão, então, disse a Agripa,por meio de um intérprete: “Bem vejo que uma mudança tão grande e tãorepentina de vossa sorte vos aflige, e que dificilmente acreditaríeis que a divinaprovidência vos dará a liberdade, muito em breve. Mas eu tomo os deuses comotestemunhas, os deuses que eu adoro e os que são reverenciados neste país,que me puseram nestas cadeias, de que, o que eu vos tenho a dizer, não é paravos dar uma vã consolação, sabendo, como eu sei, que quando as prediçõesfavoráveis não são seguidas de seus efeitos só servem para aumentar a nossatristeza. Quero pois dizer-vos, embora com perigo, o que essa ave que acabade voar sobre vossa cabeça vos pressagia. Estareis bem depressa emliberdade e elevado a tão grande poder, que sereis invejado por aqueles queagora têm compaixão de vossa infelicidade. Sereis feliz durante todo o resto devossa vida e deixareis filhos que sucederão à vossa felicidade. Mas quandovirdes aparecer de novo essa mesma ave, sabei que somente vosrestarão cinco dias de vida. Eis o que os deuses vos pressagiam e como

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eu tenho conhecimento disso, julguei dever dar-vos essa alegria, para amenizarvossos males presentes, com esperança de tantos bens futuros. Quando vosencontrardes em tão grande prosperidade não nos esqueçais, eu vos rogo, etrabalhai para nos tirar da miséria em que nos encontramos”. A predição dessealemão pareceu tão ridícula a Agripa, que provocou nele, naquele instante, umagargalhada, tão forte que depois causou-lhe a ele mesmo, espanto e admiração.(JOSEFO, 2003, p. 425-426) (grifo nosso).

Será que essa profecia foi cumprida? Para sabermos o que aconteceu, continuemos orelato de Josefo um pouco mais à frente, cujo tempo decorrido é cerca de seis meses depois:

Trouxeram nesse mesmo tempo duas cartas de Caio; uma endereçada aosenado, com a qual lhe dava o anúncio da morte de Tibério e de que ele o haviaescolhido para substituí-lo no império; a outra, a Pisão, governador da cidade,que dizia a mesma coisa, ordenando-lhe tirar Agripa da prisão e permitir-lhevoltar à sua casa. Assim ele se viu livre de todo temor: e embora estivesseainda guardado, vivia no resto, como queria. Pouco depois, Caio veio a Romapara onde fez trazer o corpo de Tibério, mandando fazer-lhe, segundo o costumedos romanos, soberbos funerais. Ele quis pôr Agripa em liberdade, no mesmodia, mas Antônia aconselhou-o a diferir, não, porque não sentisse afeto por ele,mas porque julgava que aquela precipitação iria contra o decoro, porque não sepodia apressar tanto a liberdade daquele a quem Tibério conservava preso, semmanifestar ódio por sua memória. No entanto, alguns dias depois, Caiomandou chamá-lo e não se contentou em dizer-lhe que mandasse cortar oscabelos, mas lhe pôs a coroa na cabeça; depois fê-lo rei da tetrarquia queFelipe havia possuído e acrescentou-lhe ainda a de Lisânias. Quis também comosinal de seu afeto dar-lhe uma cadeia de ouro do mesmo peso da de ferro queele havia usado e mandou em seguida Marullhe, como governador da Judeia.(JOSEFO, 2003, p. 427) (grifo nosso).

Então se a primeira parte da profecia, dita pelo alemão, foi cumprida, fica provado queos deuses, que lhe passaram a informação, estavam certos. Mas, e quanto à segunda parte daprofecia, a que dizia a respeito de sua morte? Será que Agripa ouviu a coruja piar novamente?Voltemos à Josefo e leiamos:

No terceiro ano do seu reinado ele celebrou na cidade de Cesareia, queantigamente era chamada a Torre de Estratão, jogos solenes em honra doimperador. Todos os grandes e toda a nobreza da província, reuniram-se nessafesta; no segundo dia dos espetáculos Agripa veio bem cedo, pela manhã, aoteatro, com uma veste cujo forro era de prata trabalhada com tanta arte, quequando o sol o iluminava com seus raios, desprendiam-se reflexos tão vivos deluz, que não se podia olhar para ele sem se sentir tomado de um respeito, mistode temor. Mesquinhos bajuladores, então, com palavras melífluas que destilamveneno mortal no coração dos príncipes, começaram a dizer que até entãohaviam considerado seu rei, como um simples homem, mas que agora viam queo deviam reverenciar como um deus, rogando-lhe que se lhes mostrassefavorável, pois parecia que ele não era como os demais, de condição mortal.Agripa tolerou essa impiedade, que deveria ter castigado mui rigorosamente.Mas, logo levantando os olhos, viu uma coruja, por sobre sua cabeça,pousada numa corda estendida no ar e lembrou-se de que aquela ave era umpresságio de sua infelicidade como outrora tinha sido de sua prosperidade.Soltou, então, um profundo suspiro e sentiu, ao mesmo tempo, as entranhasroídas por uma dor horrível. Voltou-se para seus amigos e disse-lhes: “Aqueleque quereis fazer acreditar que é imortal, está prestes a morrer e essanecessidade inevitável não podia ser uma mais pronta convicção de vossamentira. Mas é preciso querer tudo o que Deus quer. Eu era muito feliz e nãohavia príncipe de quem eu devesse invejar a felicidade”. Dizendo estas palavras,sentiu que as dores cresciam cada vez mais; levaram-no ao palácio e a notíciaespalhou-se imediatamente, de que ele estava prestes a exalar o último suspiro.Logo todo o povo, com a cabeça coberta de um saco, segundo costume denossos pais, fez oração a Deus pela saúde e todo o ar ressoou com gritos elamentações. O príncipe que estava no quarto mais alto do palácio, vendo-os delá, prostrados por terra, não pôde reter as lágrimas; as dores, porém,continuaram por cinco dias a fio e o levaram, aos cinquenta e quatro

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anos de sua vida, sétimo do seu reinado, pois reinara quatro sob o imperadorCaio, nos três primeiros dos quais ele só tinha a tetrarquia, que fora de Filipe, eno quarto, acrescentaram-lhe a de Herodes; nos três anos em que reinou sobCláudio, esse imperador deu-lhe também a Judeia, a Samaria e Cesareia. Mas,embora suas rendas [*] fossem muito grandes, ele era liberal e tão magnânimoque era obrigado ainda a pedir emprestado.______[*] O grego diz: Mil e duzentas vezes dez mil, sem nada mais especificar.

(JOSEFO, 2003, p. 453). (grifo nosso).

Interessantíssimo é que as duas previsões, constantes da profecia, que foram ditas peloalemão a Agripa, se cumpriram. Ora, ele mesmo afirmou a ter recebido dos deuses, o queentão prova que não era somente o Deus dos hebreus que tinha profetas aqui na terra. Seráque havia um acordo entre os deuses de ambos – o do alemão e o dos hebreus?Provavelmente; haja vista o cumprimento integral da profecia.

Vejamos, agora, os pontos que foram aumentados:

Lucas: Herodes estava enfurecido com os habitantes de Tiro e Sidônia. Estes fizeramum acordo entre si e se apresentaram diante de Herodes, depois de conquistarem as graças deBlasto, o camareiro real. Eles pediam a paz, já que seu país recebia mantimentos do territóriodo rei.

Josefo: Nada fala desse assunto. Coloca o evento quando do acontecimento de jogossolenes oferecidos por Agripa em honra ao imperador, ocasião em que se reuniram váriospríncipes e toda a nobreza para essa majestosa festa.

Lucas: No dia marcado, Herodes vestiu-se com os trajes reais, tomou seu lugar natribuna, e lhes dirigiu a palavra oficial

Josefo: Fala que Agripa chegou ao local dos jogos de manhã usando “uma veste cujoforro era de prata trabalhada com tanta arte, que quando o sol o iluminava com seus raios,desprendiam-se reflexos tão vivos de luz, que não se podia olhar para ele sem se sentirtomado de um respeito, misto de temor.” Não diz absolutamente nada de que Agripa tenhafeito, da tribuna, algum tipo de discurso oficial.

Lucas: O povo começou a clamar: "É a voz de um deus, e não de um homem!"

Josefo: O motivo para que alguns o elevaram à categoria de um deus, foi justamente aroupa brilhante citada anteriormente. Condição não contestada por Agripa, que ainda, segundoJosefo, deveria tê-los castigados. E quem disse alguma coisa foram os mesquinhosbajuladores, o que pode não significar necessariamente que teria sido o povo, que dá umaideia de que todos, ou pelo menos, a maioria dos que ali estavam.

Lucas: Mas, imediatamente, o anjo do Senhor feriu Herodes, porque ele não tinha dadoglória a Deus. E Herodes expirou, carcomido por vermes.

Josefo: Após o episódio acima, Agripa vê uma coruja o que o faz lembrar-se daprofecia que ouvira do alemão; daí sim é que ele fala ao povo contestando a sua condição dedeus, assumindo sua condição de mortal e dizendo-lhes que brevemente estaria morto. O fatoimediato é que ele começou a passar mal, sentindo muitas dores. Nesse estado, Agripapermaneceu por cinco dias, quando finalmente dá o seu último suspiro. Embora Josefo não falenada sobre o enterro de Agripa, é de se presumir que aconteceu, pois, se tivesse ocorrido algoem contrário, seria ponto de destaque que não passaria despercebido por um historiador.Assim, Agripa não foi imediatamente carcomido por vermes, fato que, para salvar o textobíblico, devemos considerar como épico. E mais: o motivo da morte de Agripa nada tem a vercom ele não ter dado glória a Deus.

Por aqui provamos que, no presente caso, quem contou o conto, aumentou não foi umsó ponto, mas vários. Os relatos históricos não podem ser preteridos às narrativas bíblicas,cujos autores não se preocuparam nem com a verdade histórica, nem mesmo com a ordemcronológica dos acontecimentos, a eles só interessavam os seus heróis enaltecidos.

Sempre estamos ouvindo dogmáticos querendo salvar a veracidade dos textos bíblicos,relegando os fatos históricos, arqueológicos e mesmo científicos, na doce ilusão de que “tá naBíblia é verdade”. Coitados, pois ainda acham que conseguirão tapar o Sol com uma peneira!

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O antigo testamento foi revogado por Jesus?

Neste texto estudaremos algumas passagens do Evangelho buscando compreender aspalavras de Jesus, visando deixar o mais claro possível o que Ele pensava, de modo quetambém você, leitor, tenha elementos suficientes para tirar sua própria conclusão.

Mt 5,17-18: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar,vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: 'Até que o céu e a terra passem, nemum 'i' ou um 'til' jamais passará da lei, até que tudo se cumpra'”.

Essa é a passagem em que se apoiam para concluir que Jesus estaria confirmando todaa Bíblia. Mas, com essa fala, Ele estava apenas querendo dizer que devia se cumprir tudo queDele está escrito na Lei e nos profetas, dizendo que nem um “i” ou nem um “til” do que aliconsta deixaria de ser cumprido; isso ficará bem claro, no desenrolar desse estudo.

Lc 10,25-28: “E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com intuito de porJesus em provas, e disse-lhe: 'Mestre, que farei para herdar a vida eterna?' Então Jesuslhe perguntou: 'Que está escrito na lei? Como interpretas?' A isto ele respondeu:'Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuasforças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo'. EntãoJesus lhe disse: 'Respondeste corretamente; faze isto, e viverás'”.

Se Jesus, quando disse a respeito da Lei (Mt 5,17-18), estivesse mesmo se referindo atodo o Pentateuco mosaico, estaria em contradição com esta passagem, pois considerou comocorreta a resposta do intérprete, que somente disse que está escrito o: “Amarás o Senhor teuDeus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teuentendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ora, na legislação de Moisésexistem muitas outras coisas para se cumprirem além dessas, que, segundo os exegetas, são,ao todo, 613 normas.

Lc 16,16-17: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendoanunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele. E émais fácil passar o céu e a terra, do que cair um til sequer da lei”.

Se a Lei e os profetas vigoraram até João é porque depois de João está vigorando algodiferente, uma nova legislação. Ela não é nada mais nada menos que o Evangelho, ou seja, oNovo Testamento. A questão de “cair um til sequer da lei” se refere a tudo que há nela comrelação às profecias sobre a vinda de Jesus. Assim, os acontecimentos que iriam ocorrer comEle é que seriam cumpridos e não, como querem alguns, que todas as ordenações contidas lá,devam ser rigorosamente seguidas. Até mesmo porque, como iremos ver mais adiante,especificamente algumas delas Ele as alterou profundamente, como é o caso, por exemplo, daquestão do “olho por olho”.

Lc 24,25-27: “Ele então lhes disse: 'Ó homens sem inteligência, como é lento ovosso coração para crer no que os profetas anunciaram! Não era preciso que Cristosofresse essas coisas para entrar na glória?' E partindo de Moisés começou apercorrer todos os profetas, explicando em todas as Escrituras, o que diziarespeito a ele mesmo”.

Após ressuscitar, Jesus caminha com dois discípulos que estavam indo para a aldeia deEmaús, e lhes explica o que constava nas Escrituras a respeito dele. Iniciando por Moisés,percorre todos os profetas, ou seja, esclarece-lhes somente o que era importante e quedeveria ser cumprido nesse contexto. Portanto, confirma o que estamos dizendo desde o início,quer dizer, que Ele não veio revogar ou abolir as profecias a Seu respeito. Se tudo nasEscrituras fosse mesmo importante, não iria restringir-se a só explicar o que nelas diziam

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sobre Ele. E para provar que não estamos distorcendo os fatos, vejamos a passagem seguinte:

Lc 24,44-45: “A seguir Jesus lhes disse: 'São estas palavras que eu vos falei,estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de mim estáescrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos'. Então lhes abriu oentendimento para compreenderem as Escrituras”.

Veja você, caro leitor, que é perfeitamente claro o que Jesus quis dizer quanto aocumprimento das Escrituras. Não era, portanto, tudo quanto existia nelas, mas somenteimportava que se cumprisse tudo o que dele estava escrito nela, ou seja, sua origem dacasa de Davi, sua missão, todo o seu padecimento que culminou com sua morte na cruz e suagloriosa ressurreição. Assim, não há como entender de outra forma, a não ser que as palavrasde Jesus não sirvam para nada ou que as queiramos distorcer.

Jo 1,17: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vierampor Jesus Cristo”.

Aqui temos uma nítida demonstração de que a Lei de Moisés não é de sumaimportância para os cristãos, já que a VERDADE veio por Jesus Cristo, e é a Ele que nósprocuramos seguir, e não a Moisés. Não poderemos dizer que a Lei de Moisés não teve o seuvalor; é claro que teve; entretanto, como diz Jesus, somente até João (Lc 16,16). Isso porque,para um povo atrasado, ela foi um fator de desenvolvimento.

Jo 1,45: “Filipe encontrou Natanael e lhe falou: 'Achamos aquele de quemescreveram Moisés na Lei e os Profetas, Jesus, filho de José de Nazaré'”.

Passagem que vem confirmar que as profecias a respeito do Messias estavam secumprindo no momento em que Jesus inicia a sua vida pública. E era justamente nisso que oshebreus esperavam, ansiosamente, que se cumprissem as Escrituras.

Jo 7,23: “Se um homem recebe a circuncisão no sábado, para cumprir a Lei deMoisés, por que vos irritais contra mim porque curei totalmente um homem nosábado?”.

Jo 8,5-7: “Na Lei, Moisés nos manda apedrejar as adúlteras; mas tu o que dizes? [...]Jesus [...] lhes disse: ‘Aquele de vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeirapedra'”.

Se, realmente, as leis que Moisés passou ao povo hebreu fossem todas provenientes doCriador, por que nestas duas passagens não se diz: cumprir a Lei de Deus e Na lei, Deusnos manda, respectivamente? Porque eram leis de Moisés e não provenientes da divindade.Tanto é que, na questão da adúltera, Jesus não disse ao povo para cumprir a Lei; antes, aocontrário, revoga-a, inclusive, demonstrando uma inteligência que Lhe era peculiar. Deustambém nunca diria: “Não cobiçar a mulher do próximo”, mandamento que realça ser,obviamente, um produto da cultura de uma sociedade machista daquela época; nada mais queisso, sendo, portanto, da forma que está expressa, lei dos homens e não de Deus.

Paulo, em carta aos romanos, disse-lhes o seguinte:

Rm 7,5: “Enquanto viviam segundo a carne, as paixões pecaminosas, estimuladaspela Lei, produziam fruto para a morte em nossos membros”.

Podemos deduzir desta passagem, que a Lei estimulava paixões pecaminosas? Se foristo mesmo, é porque ela, a Lei, não era a VERDADE, que veio somente com Jesus. E noversículo seguinte continua:

Rm 7,6: “Mas agora, livres da Lei, estamos mortos para aquilo que nos conservavaprisioneiros, de sorte, que podemos servir a Deus conforme um espírito novo enão segundo a letra antiga”.

Livres da Lei, ou seja, que não estamos mais submissos a ela. Não é claro isso? Se

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podemos servir a Deus conforme um espírito novo, qual seja, os ensinamentos de Jesus, porque ficar ainda apegados a Moisés (letra antiga)? O Antigo Testamento foi revogado, ou aindaqueremos permanecer na dúvida?

Mt 5,19-20: “Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores,e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele,porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas efariseus, jamais entrareis no reino dos céus”.

Nosso quadro é: Jesus na passagem evangélica do Sermão do Monte, onde iniciadizendo os novos ensinamentos que deveremos cumprir. São as verdades que Ele passa atodos nós como roteiro de vida. São apenas os mandamentos que disse para que não osviolássemos. A partir dali, também, é que altera e revoga a legislação de Moisés; confirmamosisso com as passagens relativas ao capítulo 5 de Mateus, que serão colocadas logo a seguir.

Mt 5,21-22: “Ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não matarás; e: Quem matar estarásujeito a julgamento'. Eu, porém, vos digo que todo aquele que (sem motivo) se irarcontra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmãoestará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito aoinferno de fogo”.

Moisés: Não matarás. Jesus: que não devemos nem mesmo irar contra ou insultar aonosso irmão.

Mt 5,27-28: “Ouvistes que foi dito: 'Não adulterarás'. Eu, porém, vos digo: Qualquerum que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela.

Moisés: Não adulterarás. Jesus: só o fato de olhar para uma mulher com intençãoimpura, já cometemos adultério.

Mt 5,31-32: “Também foi dito: 'Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta dedivórcio'. Eu, porém, vos digo: Qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso derelações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com arepudiada comete adultério.

Moisés: poder-se-ia repudiar a mulher. Jesus: se a repudiares estás expondo a mulherao adultério.

Mt 5,33-37: “Também ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não jurarás falso, mascumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos'. Eu, porém, vos digo:De modo algum jureis: Nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por serestrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei; nem jures pelatua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, a tuapalavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno”.

Moisés: Não jurarás falso. Jesus: De modo algum jureis.

Mt 5,38-42: “Ouvistes que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente'. Eu, porém, vosdigo: Não resistais ao perverso; mas a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhetambém a outra; e ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe tambéma capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede,e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes”.

Moisés: Olho por olho, dente por dente. Jesus: Quem te ferir na face direita, volta-lhetambém a outra.

Mt 5,43-48: “Ouvistes que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'. Eu,porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para quevos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e

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bons, e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, querecompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E se saudardessomente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também omesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”.

Moisés: Odiarás o teu inimigo. Jesus: Amai os vossos inimigos.

Encontramos apoio ao nosso pensamento no exegeta Bart D. Ehrman (1955- ), que emsua obra O que Jesus disse? O que Jesus não disse?; quem mudou a Bíblia e por quê, assim seexpressou:

Contudo, logo depois, os cristãos passaram a aceitar outros escritos ao ladodas Escrituras judaicas. Essa aceitação pode ter tido origem no ensinoautorizado do próprio Jesus, à medida que seus seguidores tomaram a suainterpretação das escrituras como dotada da mesma autoridade conferida àspalavras das próprias escrituras. Jesus pode ter estimulado essa compreensãopelo modo como parafraseava alguns de seus ensinamentos. No Sermão daMontanha, por exemplo, vê-se Jesus expondo leis dadas por Deus aMoisés e depois dando sua própria e mais radical interpretação delas,indicando que a sua interpretação é a autorizada. (EHRMAN, 2006, p. 40-41) (grifo nosso).

Reputamos a opinião de Ehrman como de grande importância, pois ele é considerado omaior especialista em Novo Testamento da atualidade.

E, objetivamente, quanto à questão da revogação do Antigo Testamento, vejamos o queencontramos de apoio a essa tese no Novo Testamento:

1Cor 15,2: “É pelo evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem demodo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.

Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a palavra da verdade, o Evangelho queos salva”.

Paulo deixa claro que é pelo Evangelho que seremos salvos; em outras palavras, elenão aceita o Antigo Testamento como algo com que possamos nos salvar.

Hb 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa desua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa alguma) e, por outrolado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. E, visto que nãoé sem prestar juramento (porque aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, maseste, com juramento, por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá;Tu és sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador desuperior aliança”.

Hb 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente,quanto é ele também mediador de superior aliança instituída com base emsuperiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido semdefeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E, defato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliançacom a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada aprimeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido, está prestes adesaparecer”.

Hb 10,9: “... Desse modo, Cristo suprime o primeiro culto para estabelecer osegundo”.

Se até aqui ainda poderia existir alguma pequena sombra de dúvida, agora foidefinitivamente dissipada por estas narrativas da carta aos Hebreus. Poderíamos até dizer:“quem tem ouvidos que ouça”, mas diremos quem tem olhos veja: a aliança anterior éfraca, inútil e com defeito, enquanto que a nova é superior a ela. Quanto ao “estáprestes a desaparecer”, só não desapareceu ainda por causa da insistência de alguns que

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querem, a todo custo, manter viva a legislação de Moisés contida no Antigo Testamento.Repetindo: Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneiraalguma estaria sendo buscado lugar para segunda.

Corroboramos nossa ideia com Ehrman:

Já mencionei que esta é a visão apresentada na epístola dos Hebreus, doNovo Testamento, livro que tenta mostrar que a religião baseada emJesus é superior à religião do judaísmo, em todos os sentidos. Para oautor de Hebreus, Jesus é superior a Moisés, que deu a Lei aos judeus(Hb 3); ele é superior a Josué, que conquistou a terra prometida (Hb 3); ele ésuperior aos sacerdotes que oferecem sacrifícios no templo (Hb 4-5); e, o maismarcante, ele é superior aos próprios sacrifícios (Hb 9-10). […]. (ERMAN, 2008,p. 78) (grifo nosso).

Clara, então, fica a questão de Jesus ser superior a Moisés.

Mc 2,18-22: “Como os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando, foram lheperguntar: 'Por que é que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, eos teus não?' Jesus lhes respondeu: 'Por acaso ficaria bem que os convidados para umcasamento fizessem jejum, enquanto o esposo está com eles? Enquanto está, nãoconvém. Mas virá um tempo em que o esposo lhes será tirado. Então sim, eles vãojejuar. Ninguém costura um remendo de pano novo em roupa velha. Do contrárioo remendo novo, pelo fato de encolher, estraga a roupa velha e o rasgão fica pior.Ninguém põe vinho novo em velhos recipientes de couro. Caso contrário, o vinhoarrebentaria os recipientes. Ficariam perdidos os recipientes e também o vinho. Paravinho novo, recipientes novos!'”.

Seria o mesmo que Jesus dizer: Se vocês ficarem apegados aos ensinamentos deMoisés, não conseguirão suportar nem compreender o que agora vos trago. Onde se falavasobre os jejuns? Não é no Velho Testamento, que, tanto os fariseus e quanto os discípulos deJoão Batista, tiravam o que seguiam? Lembremo-nos de que “a Lei e os Profetas vigoraramaté João” (Lc 16,16). Assim, não fica claro sua revogação por Jesus? Só não o é para os queainda insistem em seguir Moisés. Mais claro fica quando tomamos da nota de rodapé constantedo Novo Testamento, Edições Loyola, o seguinte: “Tanto o pano novo como o vinho novo sãosímbolos duma nova era (cf. At 10,11; Hbr 1,11; Gên 49,11-12); os cristãos devem estaranimados dum espírito novo, incompatível com antigas prescrições do judaísmo jáultrapassadas” (p. 57).

Há um episódio na vida de Jesus que nos levou a formar uma forte convicção que seusensinamentos eram superiores aos de Moisés. É a passagem em que João narra, o que sesupõe como sendo, o primeiro milagre de Jesus. Apesar de termos refletido muito sobre ela,ainda não tínhamos nenhuma explicação que justificasse a atitude de Jesus em transformarágua em vinho, para embebedar os convidados da festa de que participava.

Vejamos o episódio:

Jo 2,1-11: “No terceiro dia, houve uma festa de casamento em Caná da Galileia, e amãe de Jesus estava aí. Jesus também tinha sido convidado para essa festa decasamento, junto com seus discípulos. Faltou vinho e a mãe de Jesus lhe disse: 'Elesnão têm mais vinho!' Jesus respondeu: 'Mulher, que existe entre nós? Minha hora aindanão chegou'. A mãe de Jesus disse aos que estavam servindo: 'Façam o que elemandar'. Havia aí seis potes de pedra de uns cem litros cada um, que serviam para osritos de purificação dos judeus. Jesus disse aos que serviam: 'Encham de água essespotes'. Eles encheram os potes até a boca. Depois Jesus disse: 'Agora tirem e levem aomestre-sala'. Então levaram ao mestre-sala. Este provou a água transformada emvinho, sem saber de onde vinha. Os que serviam estavam sabendo, pois foram eles quetiraram a água. Então o mestre-sala chamou o noivo e disse: 'Todos servem primeiro ovinho bom e, quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém,guardou o vinho bom até agora'. Foi assim, em Caná da Galileia, que Jesus começou

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seus sinais. Ele manifestou a sua glória, e seus discípulos acreditaram nele”.

Mas qual é o verdadeiro sentido dessa passagem? Nós o encontraremos naquilo que apessoa encarregada da festa disse para o noivo: “Todos servem primeiro o vinho bom e,quando os convidados estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom atéagora”. Considerando que, com esse primeiro ato público, Jesus inicia a sua missão, podemosdizer que o “vinho bom guardado até agora” são os ensinamentos de Jesus, superiores aosrecebidos anteriormente, por meio de Moisés que seria simbolicamente o vinho de piorqualidade, até mesmo porque, e sem querer desmerecê-los, a humanidade daquela época nãoestava preparada para receber vinho (ensinamento) de melhor qualidade, se assim podemosnos expressar.

Tudo o que já dissemos anteriormente sobre os ensinos de Jesus, vale para corroboraressa nossa opinião. Mas podemos ainda trazer como apoio a isso: “Em comparação com estaimensa glória, o esplendor do ministério da antiga aliança já não é mais nada” (2Cor3,10), e “Dessa maneira é que se dá a ab-rogação do regulamento anterior em virtude de suafraqueza e inutilidade – a Lei, na verdade, nada levou à perfeição – e foi introduzida umaesperança melhor pela qual nos aproximamos de Deus” (Hb 7,18-19).

Concluímos que Jesus não se restringiu a só revogar os rituais e sacrifícios como algunspensam, para nós, foi muito mais além disso. Comprovamos também que não distorcemos asnarrativas da Bíblia à nossa conveniência, de que tanto nos acusam. São elas, exatamente,que nos dão uma base sólida para afirmar com absoluta certeza que:

1 – O cumprimento da lei e dos profetas a que Jesus se refere no Evangelho é apenascom relação às profecias contidas nas Escrituras sobre Ele mesmo;

2 – Que somente tem que ser cumprido da Lei: Amar a Deus sobre todas as coisas e aopróximo como a ti mesmo.

3 – Que nunca disse para seguirmos toda a Lei, aqui entendida como todo oPentateuco.

É muito comum recorrerem aos apologistas do cristianismo primitivo para justificar esseou aquele ponto, entretanto, quando é algo contrário à crença vigente passam por cima, comose não tivessem visto. Vejamos, por exemplo, o que encontramos em Justino de Roma.

A opinião de Justino de Roma (c. 100-165 d.C.), tido como o melhor apologista doséculo II, é bem clara no debate que manteve com um sábio judeu, Trifão, que algunsestudiosos identificam como sendo o célebre rabino Tarfão, morto em 155, uma vez que Trifãoseria a forma grega do hebraico Tarfão. (JUSTINO, 1995, p. 107). Desse debate, intituladoDiálogo com Trifão, que durou dois dias, transcrevemos:

[…] Contudo, nós não a [confiança] depositamos por meio de Moisés ou daLei, pois nesse caso estaríamos fazendo o mesmo que vós. Com efeito, ó Trifão,eu li que deveria vir uma lei perfeita e uma aliança soberana em relação àsoutras, que agora devem ser guardadas por todos os homens que desejam aherança de Deus. A Lei dada sobre o monte Horeb já está velha e pertenceapenas a vós. A outra, porém, pertence a todos. Uma lei colocada contraoutra lei anula a primeira; uma aliança feita posteriormente tambémdeixa sem efeito a primeira. Cristo nos foi dado como lei eterna edefinitiva e como aliança fiel, depois da qual não há mais nem lei, nemordem, nem mandamento. […] (JUSTINO, 1995, p. 127) (grifo nosso).

Mais claro que isso é querer muito; não é mesmo?

Agora, podemos responder ao questionamento inicial: O Antigo Testamento foirevogado por Jesus? Sim; sem nenhuma sombra de dúvida. E é por isso que não nos sentimosna obrigação de cumprir nada do que consta nele, até mesmo para sermos coerentes com oque pensamos e por acreditar nessa fala de Jesus: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). Por que Ele se colocou como sendo o caminhoque conduz ao Pai e não a Moisés? É porque somente os seus ensinos é que devem serseguidos.

Esse é o entendimento a que chegamos. Entretanto, não há como obrigar ninguém a

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pensar como nós. A única coisa que pedimos é para que as pessoas deixem de se apegar emdemasia aos velhos ensinamentos, como se eles fossem verdadeiros. A Terra já não é mais ocentro do Universo, visto que o homem, percebendo a ignorância de tal afirmativa, finalmente,aceitou a voz da Ciência. Além de que, muitas coisas não foram mudadas pelas cúpulasreligiosas, justamente para que elas conservassem, a todo custo, o domínio que têm sobre opovo e, também, para que pudessem mantê-lo a todo custo. Ainda hoje encontramos as quebuscam incutir a validade dos ensinamentos do Antigo Testamento não se dando conta de que“rompestes com Cristo, vós que buscais a justiça na Lei; caístes fora da graça” (Gl 5,4).Sabemos que não fazem isso por ignorância, mas por esperteza visando dominar seus “fiéis”, afim de conseguir e manter o “poder” e o “dinheiro” na base do que podemos chamar deterrorismo religioso.

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Jesus ficava calado?

Vez por outra, ouvimos a afirmativa de que não devemos responder a isso ou quilo, poisJesus não respondeu a ninguém, sempre permanecia calado. Interessante como certas coisasfacilmente são transformadas em mito. O mito, como sabemos, é algo que prolifera e mesmoque seja o maior erro, torna-se uma verdade para muitos. Isso acontece, pois, normalmente,não somos dados a questionamentos, preferindo seguir pela “trilha do bezerro” que abrir novocaminho pela mata.

Recebemos recentemente um e-mail em que uma leitora nos propunha uma reflexãosobre nossa atitude de sempre defender a Doutrina Espírita dos ataques gratuitos feitos pelosdetratores de plantão, nos sugerindo que, talvez, fosse melhor que ficássemos caladosseguindo o exemplo do Mestre.

Sinceramente, até então não tínhamos pensado mais seriamente sobre isso mas dessavez, não sabemos o porquê, resolvemos ir à fonte para conhecer como exatamente as coisasse deram. Assim, caro leitor, apresentamos agora o fruto de nosso estudo sobre esse assunto.

Iremos analisar várias passagens bíblicas a fim de podermos saber como era realmenteo comportamento de Jesus: ficava mesmo calado? Não! Quem tiver curiosidade de ler maisdetidamente o Evangelho verá que a liderança religiosa da época – escribas, fariseus,saduceus, sacerdotes e anciãos do povo - não deram tréguas a Jesus. Entretanto, as narrativasnos dão conta de que o Mestre jamais ficou calado, sempre os respondeu à altura e nemmesmo os poupou de, por várias vezes, chamá-los de hipócritas e em uma oportunidade oscomparou a sepulcros caiados, brancos por fora e podres por dentro. Isso a nosso ver não éficar calado.

Ao reler essas passagens foi que nos demos conta disso. Veja, se temos ou não razão:

Mt 5,20: “Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar a dosdoutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu".

Percebe-se por aqui que Jesus, em relação aos escribas e fariseus, já os tomava a contade pessoas às quais não devíamos seguir o exemplo, cuja justiça não deveria ser imitada.

Mt 12,1-8: “Naquele tempo, Jesus passou por uns campos de trigo, num dia de sábado.Seus discípulos ficaram com fome, e começaram a apanhar espigas para comer. Vendoisso, os fariseus disseram: 'Eis que os teus discípulos estão fazendo o que não épermitido fazer em dia de sábado!' Jesus perguntou aos fariseus: 'Vocês nunca leram oque Davi e seus companheiros fizeram, quando estavam sentindo fome? Como eleentrou na casa de Deus, e eles comeram os pães oferecidos a Deus? Ora, nem paraDavi, nem para os que estavam com ele, era permitido comer os pães reservadosapenas aos sacerdotes. Ou vocês não leram também, na Lei, que em dia de sábado, noTemplo, os sacerdotes violam o sábado, sem cometer falta?. Pois eu digo a vocês: aquiestá quem é maior do que o Templo. Se vocês tivessem compreendido o que significa:'Quero a misericórdia e não o sacrifício', vocês não teriam condenado estes homens quenão estão em falta. Portanto, o Filho do Homem é senhor do sábado'”.

Essa questão de fazer algo no sábado era para eles um ponto de honra daí não perdiamoportunidade de importunar Jesus, quando ele fazia algo nesse dia. Ao ser questionado, sobrea atitude de seus discípulos em providenciar alimentação num dia de sábado, Jesus respondeu-lhes à altura não deixando passar batido, como se diria popularmente.

Mt 12,9-14: “Jesus saiu desse lugar, e foi para a sinagoga deles. Aí havia um homemcom uma das mãos paralisada. E, para poderem acusar Jesus, os fariseusperguntaram: 'É permitido fazer cura em dia de sábado?' Jesus respondeu: 'Suponham

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que um de vocês tem uma só ovelha, e ela cai num buraco em dia de sábado. Será queele não a pegaria e não a tiraria de lá? Ora, um homem vale muito mais do que umaovelha! Logo, é permitido fazer uma boa ação em dia de sábado'. Então Jesus disse aohomem: 'Estenda a mão'. O homem estendeu a mão, e ela ficou boa e sadia como aoutra. Logo depois, os fariseus saíram e fizeram um plano para matar Jesus”.

Na continuação da narrativa anterior vemos Jesus curando num dia de sábado mas,nem numa situação de estar praticando o bem, os intolerantes de sua época achavam certaessa atitude. Vemos, hoje em dia, os fundamentalistas agindo quase que da mesma forma. Ostempos mudam, mas, para muitos, é como se isso não ocorresse, já que ficam apegados aopassado.

Mt 12,22-37: “Então levaram a Jesus um endemoninhado cego e mudo. Jesus o curou,de modo que ele falava e enxergava. E todas as multidões ficaram admiradas, eperguntavam: 'Será que ele não é o filho de Davi?' Os fariseus ouviram isso, edisseram: 'Ele expulsa os demônios através de Belzebu, o príncipe dos demônios!'Sabendo o que eles estavam pensando, Jesus disse: 'Todo reino dividido em gruposque lutam entre si, será arruinado. E toda cidade ou família dividida em grupos quebrigam entre si, não poderá durar. E se Satanás expulsa Satanás, ele está divididocontra si mesmo. Como, então, o seu reino poderá sobreviver? Se é através de Belzebuque eu expulso os demônios, através de quem os filhos de vocês expulsam osdemônios? Por isso, serão eles mesmos que julgarão vocês. Mas se é através doEspírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus chegou paravocês. Ainda: como alguém pode entrar na casa de um homem forte, e se apoderar desuas coisas, se antes não amarrar o homem forte? Só depois poderá roubar a sua casa.Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, espalha. É porisso que eu digo a vocês: todo pecado e blasfêmia será perdoado aos homens; mas ablasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Quem disser alguma coisa contra o Filhodo Homem, será perdoado. Mas quem disser algo contra o Espírito Santo, nunca seráperdoado, nem neste mundo, nem no mundo que há de vir. Se vocês plantarem umaárvore boa, o fruto dela será bom; mas se vocês plantarem uma árvore má, também ofruto dela será mau, porque é pelo fruto que se conhece a árvore. Raça de cobrasvenenosas! Se vocês são maus, como podem dizer coisas boas? Pois a boca fala aquilode que o coração está cheio. O homem bom tira coisas boas do seu bom tesouro, e ohomem mau tira coisas más do seu mau tesouro. Eu digo a vocês: no dia dojulgamento, todos devem prestar contas de cada palavra inútil que tiverem falado.Porque você será justificado por suas próprias palavras, e será condenado por suaspróprias palavras'".

Nem ainda saímos do capítulo doze e já encontramos mais uma outra situação em quea liderança religiosa, cega no seu saber, questiona a Jesus, quando o Mestre liberta umacriatura endemoninhada. Para seus adversários ele fazia isso porque era o príncipe dosdemônios ao que Jesus lhes responde com maestria. E, destacamos, ao final ainda os chamade raça de cobras venenosas, atiçando a ira deles. Daqui percebemos que também a liderançareligiosa nos dias atuais faz exatamente a mesma coisa em relação ao Espiritismo, que, apesarde libertar muitas pessoas das influências espirituais inferiores, é taxado de “obra dodemônio”. Deveríamos repetir Jesus dizendo-lhes: raça de víboras?

Mt 12,38-42: “Então alguns doutores da Lei e fariseus disseram a Jesus: 'Mestre,queremos ver um sinal realizado por ti'. Jesus respondeu: 'Uma geração má e adúlterabusca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal do profeta Jonas.De fato, assim como Jonas passou três dias e três noites no ventre da baleia, assimtambém o Filho do Homem passará três dias e três noites no seio da terra. No dia dojulgamento, os homens da cidade de Nínive ficarão de pé contra esta geração, e acondenarão. Porque eles fizeram penitência quando ouviram Jonas pregar. E aqui estáquem é maior do que Jonas. No dia do julgamento, a rainha do Sul se levantará contraesta geração, e a condenará. Porque ela veio de uma terra distante para ouvir asabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão'"

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Aos doutores da Lei e fariseus que queriam um sinal como prova de que Jesus eramesmo o Messias resposta de Jesus não se fez esperar; tanto que, nessa ocasião, os chama degeração má e adúltera.

Mt 15,1-14: “Alguns fariseus e diversos doutores da Lei, de Jerusalém, se aproximaramde Jesus, e perguntaram: 'Por que os teus discípulos desobedecem à tradição dosantigos? De fato, comem pão sem lavar as mãos!' Jesus respondeu: 'Por que é quevocês também desobedecem ao mandamento de Deus em nome da tradição de vocês?Pois Deus disse: 'Honre seu pai e sua mãe'. E ainda: 'Quem amaldiçoa o pai ou a mãe,deve morrer'. E no entanto vocês ensinam que alguém pode dizer ao seu pai e à suamãe: 'O sustento que vocês poderiam receber de mim é consagrado a Deus'. E essapessoa fica dispensada de honrar seu pai ou sua mãe. Assim vocês esvaziaram apalavra de Deus com a tradição de vocês. Hipócritas! Isaías profetizou muito bem sobrevocês, quando disse: 'Esse povo me honra com os lábios, mas o coração deles estálonge de mim. Não adianta nada eles me prestarem culto, porque ensinam preceitoshumanos.' Em seguida, Jesus chamou a multidão para perto dele, e disse: 'Escutem ecompreendam. Não é o que entra na boca que torna o homem impuro, mas o que saida boca, isso torna o homem impuro'. Então os discípulos se aproximaram, e disserama Jesus: 'Sabes que os fariseus ficaram escandalizados com o que disseste?' Jesusrespondeu: 'Toda planta que não foi plantada pelo meu Pai celeste será arrancada. Nãose preocupem com eles. São cegos guiando cegos. Ora, se um cego guia outro cego, osdois cairão num buraco'”.

A liderança religiosa tinha um apego exagerado à tradição, fazia dela uma questãoreligiosa daí se espantarem quando os discípulos não lavaram as mãos antes de comerem.Novamente recebem de Jesus uma resposta à altura, que os chama de hipócritas e guiascegos.

Mt 16,5-12: “Quando atravessaram para o outro lado do mar, os discípulos seesqueceram de levar pães. Então Jesus disse: 'Prestem atenção, e tomem cuidado como fermento dos fariseus e dos saduceus'. Os discípulos pensavam consigo mesmos: 'Éporque não trouxemos pães'. Mas Jesus percebeu, e perguntou: 'Por que vocês estãopensando na falta de pães, homens de pouca fé? Vocês ainda não compreendem, nemmesmo se lembram dos cinco pães para cinco mil homens, e de quantos cestos vocêsrecolheram? Nem dos sete pães para quatro mil homens, e quantos cestos vocêsrecolheram? Como é que não compreendem que eu não estava falando de pão comvocês? Tomem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus'. Então elesperceberam que Jesus não tinha falado para tomar cuidado com o fermento de pão,mas com o ensinamento dos fariseus e saduceus”.

Aqui Jesus recomenda aos discípulos para não seguirem o ensinamento dos fariseus esaduceus. Ficamos a pensar se Jesus não manteria esse discurso à liderança religiosa atual!Assim, com essa atitude, Jesus deixa claro que os ensinamentos deles não são de cunhodivino, mas apenas fruto de seus próprios interesses, tal e qual está acontecendo nos diasatuais.

Mt 19,1-12: “Quando Jesus acabou de dizer essas palavras, ele partiu da Galileia, e foipara o território da Judeia, no outro lado do rio Jordão. Numerosas multidões oseguiram, e Jesus aí as curou. Alguns fariseus se aproximaram de Jesus, eperguntaram, para o tentar: 'É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher porqualquer motivo?' Jesus respondeu: 'Vocês nunca leram que o Criador, desde o início,os fez homem e mulher? E que ele disse: 'Por isso, o homem deixará seu pai e suamãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne'? Portanto, eles já não sãodois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar'. Osfariseus perguntaram: 'Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio aodespedir a mulher?' Jesus respondeu: 'Moisés permitiu o divórcio, porque vocês sãoduros de coração. Mas não foi assim desde o início. Eu, por isso, digo a vocês: quem sedivorciar de sua mulher, a não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra,comete adultério'. Os discípulos disseram a Jesus: 'Se a situação do homem com amulher é assim, então é melhor não se casar'. Jesus respondeu: 'Nem todos entendem

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isso, a não ser aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados, porquenasceram assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros, ainda, secastraram por causa do Reino do Céu. Quem puder entender, entenda'".

Obviamente, que nesse episódio, os fariseus não estavam querendo se instruir, masqueriam colocar Jesus em situação difícil, ou seja, tudo que dissesse seria usado contra ele.Esse episódio é semelhante ao que nos acontece agora, quando algum fundamentalista emiteperguntas capciosas, intentando colocar-nos contra a “palavra de Deus”.

Mt 21,23-27: “Jesus voltou ao Templo. Enquanto ensinava, os chefes dos sacerdotes eos anciãos do povo se aproximaram, e perguntaram: 'Com que autoridade fazes taiscoisas? Quem foi que te deu essa autoridade?' Jesus respondeu: 'Eu também vou fazeruma pergunta para vocês. Se responderem, eu também direi a vocês com queautoridade faço isso. De onde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?' Mas elesraciocinavam, pensando: 'Se respondemos que vinha do céu, ele vai dizer: 'Então, porque vocês não acreditaram em João?' Se respondemos que vinha dos homens, temosmedo da multidão, pois todos consideram João como um profeta'. Eles entãoresponderam a Jesus: 'Não sabemos'. E Jesus disse a eles: 'Pois eu também não voudizer a vocês com que autoridade faço essas coisas'”.

A todo momento Jesus era questionado quanto à sua autoridade, ao que semprerespondia altura dos seus interlocutores, de forma que os deixava acuados perante suaspróprias colocações. Diríamos, popularmente: “perderam uma ótima ocasião de ficar calados”.

Mt 21,33-46: "Escutem essa outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha,cercou-a, fez um tanque para pisar a uva, e construiu uma torre de guarda. Depoisarrendou a vinha para alguns agricultores, e viajou para o estrangeiro. Quando chegouo tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos agricultores parareceber os frutos. Os agricultores, porém, agarraram os empregados, bateram num,mataram outro, e apedrejaram o terceiro. O proprietário mandou de novo outrosempregados, em maior número que os primeiros. Mas eles os trataram da mesmaforma. Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu próprio filho, pensando: 'Eles vãorespeitar o meu filho'. Os agricultores, porém, ao verem o filho, pensaram: 'Esse é oherdeiro. Venham, vamos matá-lo, e tomar posse da sua herança'. Então agarraram ofilho, o jogaram para fora da vinha, e o mataram. Pois bem: quando o dono da vinhavoltar, o que irá fazer com esses agricultores?' Os chefes dos sacerdotes e os anciãosdo povo responderam: 'É claro que mandará matar de modo violento esses perversos,e arrendará a vinha a outros agricultores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo'.Então Jesus disse a eles: 'Vocês nunca leram na Escritura: 'A pedra que os construtoresdeixaram de lado tornou-se a pedra mais importante; isso foi feito pelo Senhor, e éadmirável aos nossos olhos'? Por isso eu lhes afirmo: o Reino de Deus será tirado devocês, e será entregue a uma nação que produzirá seus frutos. Quem cair sobre essapedra, ficará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair, será esmagado'. Os chefes dossacerdotes e os fariseus ouviram as parábolas de Jesus, e compreenderam que estavafalando deles. Procuraram prender Jesus, mas ficaram com medo das multidões, poiselas consideravam Jesus um profeta”.

Constata-se, também, que Jesus não deixava por menos quando se defrontava comessa “raça de cobras venenosas”. Aqui, percebe-se, claramente, que a parábola é dirigida aeles tal fato, nitidamente percebido por todos, lhes aumentava a raiva que nutriam por Jesus.Aguardavam, assim, o momento propício para lhe darem o venenoso bote.

Mt 22,15-22: “Então os fariseus se retiraram, e fizeram um plano para apanhar Jesusem alguma palavra. Mandaram os seus discípulos, junto com alguns partidários deHerodes, para dizerem a Jesus: 'Mestre, sabemos que tu és verdadeiro, e que ensinasde fato o caminho de Deus. Tu não dás preferência a ninguém, porque não levas emconta as aparências. Dize-nos, então, o que pensas: É lícito ou não é, pagar imposto aCésar?' Jesus percebeu a maldade deles, e disse: 'Hipócritas! Por que vocês metentam? Mostrem-me a moeda do imposto'. Levaram então a ele a moeda. E Jesusperguntou: 'De quem é a figura e inscrição nesta moeda?' Eles responderam: 'É de

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César'. Então Jesus disse: 'Pois deem a César o que é de César, e a Deus o que é deDeus'. Ouvindo isso, eles ficaram admirados. Deixaram Jesus, e foram embora”.

Nunca perderam uma oportunidade de colocar Jesus numa situação difícil, sendo issocabalmente denotado nessa situação. Percebendo a segunda intenção deles, Jesus, sem meiaspalavras, disse-lhes: “hipócritas!” Não poucas vezes os chamou desse modo, apontando-lhes afalsidade.

Mt 22,23-33: “Os saduceus afirmam que não existe ressurreição. Alguns deles seaproximaram de Jesus, e lhe propuseram este caso: 'Mestre, Moisés disse: 'Se alguémmorrer sem ter filhos, o irmão desse homem deve casar-se com a viúva, a fim de quepossam ter filhos em nome do irmão que morreu'. Pois bem, havia entre nós seteirmãos. O primeiro casou-se, e morreu sem ter filhos, deixando a mulher para seuirmão. Do mesmo modo aconteceu com o segundo e o terceiro, e assim com os sete.Depois de todos eles, morreu também a mulher. Na ressurreição, de qual dos sete elaserá mulher? De fato, todos a tiveram'. Jesus respondeu: 'Vocês estão enganados,porque não conhecem as Escrituras, nem o poder de Deus. De fato, na ressurreição, oshomens e as mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu. E, quanto àressurreição, será que não leram o que Deus disse a vocês: 'Eu sou o Deus de Abraão,o Deus de Isaac e o Deus de Jacó'. Ora, ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos'.Ouvindo isso, as multidões ficaram impressionadas com o ensinamento de Jesus”.

A pergunta dos saduceus não tinha por objetivo esclarecerem-se sobre o assunto, mas,tão somente, constatar se Jesus possuía a capacidade de se explicar, já que, intimamente,acreditavam que não por conseguinte, adveio o desejo de pegá-lo com suas próprias palavras.

Mt 22,34-40: “Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito os saduceus se calarem.Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus para o tentar: 'Mestre,qual é o maior mandamento da Lei?' Jesus respondeu: 'Ame ao Senhor seu Deus comtodo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é omaior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximocomo a si mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos'”.

Nem bem deixou os saduceus acuados, aparecem-lhe os fariseus, que, no íntimo,pensavam serem mais capazes que os primeiros. Assim, fizeram um novo questionamento aJesus. Com certeza orgulhosos que eram, pensavam, intimamente, conduzirem Jesus àquiloque obstinadamente queriam: usar as palavras do Mestre para obterem um bom motivo de omatarem ou, na pior das hipóteses, confrontá-lo com o político.

Mt 22,41-46: “Os fariseus estavam reunidos, e Jesus lhes perguntou: 'O que é quevocês acham do Messias? Ele é filho de quem?' Os fariseus responderam: 'De Davi'.Então Jesus disse: 'Como é que Davi, pelo Espírito, o chama Senhor, quando afirma: 'OSenhor disse ao meu Senhor: sente-se à minha direita, até que eu ponha os seusinimigos debaixo dos seus pés'? Se o próprio Davi o chama de Senhor, como ele podeser seu filho?' E ninguém podia responder a Jesus uma só palavra. Desse dia emdiante, ninguém mais se arriscou a fazer perguntas a Jesus”.

Nessa passagem, verifica-se que Jesus é quem os indaga. Agindo sabiamente, os colocaem uma situação embaraçosa. O feitiço virou contra o feiticeiro, diríamos. Enfrenta-osdestemido, mesmo conhecendo suas reais intenções mas não os deixava sem respostas àssuas indagações, por mais difíceis que fossem.

Mt 23,1-12: “Jesus falou às multidões e aos seus discípulos: 'Os doutores da Lei e osfariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, vocês devem fazer eobservar tudo o que eles dizem. Mas não imitem suas ações, pois eles falam e nãopraticam. Amarram pesados fardos e os colocam no ombro dos outros, mas elesmesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. Fazem todas assuas ações só para serem vistos pelos outros. Vejam como eles usam faixas largas natesta e nos braços, e como põem na roupa longas franjas, com trechos da Escritura.Gostam dos lugares de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas;

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gostam de ser cumprimentados nas praças públicas, e de que as pessoas os chamemmestre. Quanto a vocês, nunca se deixem chamar mestre, pois um só é o Mestre devocês, e todos vocês são irmãos. Na terra, não chamem a ninguém Pai, pois um só é oPai de vocês, aquele que está no céu. Não deixem que os outros chamem vocês líderes,pois um só é o Líder de vocês: o Messias. Pelo contrário, o maior de vocês deve seraquele que serve a vocês. Quem se eleva será humilhado, e quem se humilha seráelevado'”.

Ao recomendar a todos que não agissem como os doutores da lei e fariseus,implicitamente, estava chamando-os, indubitavelmente, de hipócritas. Jesus vai mais longequando menciona que gostavam de serem vistos, dos primeiros lugares, de serem destacadosna multidão, deixando a descoberto todo orgulho que acalentavam em seus corações. Podemosacrescentar que usavam a religião para esse fim, fato comum, também, nos dias de hoje,quando essa liderança religiosa, que se vê por aí, busca na religião um veículo de satisfação deseu próprio interesse, ao invés de se preocupar, efetivamente, com a salvação dos fiéis.

Mt 23,13-36: "Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês fecham o Reinodo Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam.Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês exploram as viúvas, e roubamsuas casas e, para disfarçar, fazem longas orações! Por isso, vocês vão receber umacondenação mais severa. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocêspercorrem o mar e a terra para converter alguém, e quando conseguem, o tornammerecedor do inferno duas vezes mais do que vocês. Ai de vocês, guias cegos! Vocêsdizem: 'Se alguém jura pelo Templo, não fica obrigado, mas se alguém jura pelo ourodo Templo, fica obrigado'. Irresponsáveis e cegos! O que vale mais: o ouro ou o Temploque santifica o ouro? Vocês dizem também: 'Se alguém jura pelo altar, não ficaobrigado, mas se alguém jura pela oferta que está sobre o altar, esse fica obrigado'.Cegos! O que vale mais: a oferta ou o altar que santifica a oferta? De fato, quem jurapelo altar, jura por ele e por tudo o que está sobre ele. E quem jura pelo Templo, jurapor ele e por Deus que habita no Templo. E quem jura pelo céu, jura pelo trono deDeus e por aquele que nele está sentado. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseushipócritas! Vocês pagam o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, e deixam delado os ensinamentos mais importantes da Lei, como a justiça, a misericórdia e afidelidade. Vocês deveriam praticar isso, sem deixar aquilo. Guias cegos! Vocês coamum mosquito, mas engolem um camelo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseushipócritas! Vocês limpam o copo e o prato por fora, mas por dentro vocês estão cheiosde desejos de roubo e cobiça. Fariseu cego! Limpe primeiro o copo por dentro, e assimo lado de fora também ficará limpo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas!Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estãocheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora, parecem justosdiante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça. Ai de vocês,doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês constroem sepulcros para os profetas, eenfeitam os túmulos dos justos, e dizem: 'Se tivéssemos vivido no tempo de nossospais, não teríamos sido cúmplices na morte dos profetas'. Com isso, vocês confessamque são filhos daqueles que mataram os profetas. Pois bem: acabem de encher amedida dos pais de vocês! Serpentes, raça de cobras venenosas! Como é que vocêspoderiam escapar da condenação do inferno? É por isso que eu envio a vocês profetas,sábios e doutores: a uns vocês matarão e crucificarão, a outros torturarão nassinagogas de vocês, e os perseguirão de cidade em cidade. Desse modo, virá sobrevocês todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo,até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vocês assassinaram entre o santuárioe o altar. Eu garanto a vocês: tudo isso acontecerá a essa geração".

Essa é, talvez, a passagem em que mais Jesus chamou a liderança religiosa dehipócrita. Aqui, desnudou aqueles falsos líderes, demonstrando que realmente preocupavam-se tão somente com aquilo que pudesse satisfazer seus desejos, explorando, para isso, a fé dopovo. Infelizmente, tal forma de proceder está presente nos “lideres” contemporâneos.

Mc 2,1-12: “Alguns dias depois, Jesus entrou de novo na cidade de Cafarnaum. Logo seespalhou a notícia de que Jesus estava em casa. E tanta gente se reuniu aí que já não

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havia lugar nem na frente da casa. E Jesus anunciava a palavra. Levaram então umparalítico, carregado por quatro homens. Mas eles não conseguiam chegar até Jesus,por causa da multidão. Então fizeram um buraco no teto, bem em cima do lugar ondeJesus estava, e pela abertura desceram a cama em que o paralítico estava deitado.Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: 'Filho, os seus pecados estãoperdoados'. Ora, alguns doutores da Lei estavam aí sentados, e começaram a pensar:'Por que este homem fala assim? Ele está blasfemando! Ninguém pode perdoarpecados, porque só Deus tem poder para isso!' Jesus logo percebeu o que eles estavampensando no seu íntimo, e disse: 'Por que vocês pensam assim? O que é mais fácildizer ao paralítico: 'Os seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se, pegue asua cama e ande?' Pois bem, para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poderna terra para perdoar pecados, - disse Jesus ao paralítico eu ordeno a você: Levante-se, pegue a sua cama e vá para casa'. O paralítico então se levantou e, carregando asua cama, saiu diante de todos. E todos ficaram muito admirados e louvaram a Deusdizendo: 'Nunca vimos uma coisa assim!'".

Algumas vezes esses críticos não tinham coragem de externar suas ideias mas, mesmoassim, no íntimo, o faziam. Jesus, conhecendo-lhes o pensamento, rebate essa crítica “mental”para não perder mais essa oportunidade de provar-lhes a incoerência de suas atitudes.

Mc 2,15-17: “Mais tarde, Jesus estava comendo na casa de Levi. Havia várioscobradores de impostos e pecadores na mesa com Jesus e seus discípulos; com efeito,eram muitos os que o seguiam. Alguns doutores da Lei, que eram fariseus, viram queJesus estava comendo com pecadores e cobradores de impostos. Então elesperguntaram aos discípulos: 'Por que Jesus come e bebe junto com cobradores deimpostos e pecadores?' Jesus ouviu e respondeu: 'As pessoas que têm saúde nãoprecisam de médico, mas só as que estão doentes. Eu não vim para chamar justos, esim pecadores'".

Mas não havia nada que Jesus fizesse que agradasse essa liderança religiosa... Tudoquanto fazia era motivo de críticas. Será que é mera coincidência o que está acontecendo nosdias atuais em relação ao Espiritismo, ou será que os líderes religiosos de hoje são ossaduceus e fariseus de antanho em nova reencarnação?

Mc 2,18-22: “Os discípulos de João Batista e os fariseus estavam fazendo jejum. Entãoalguns perguntaram a Jesus: 'Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseusfazem jejum e os teus discípulos não fazem?' Jesus respondeu: 'Vocês acham que osconvidados de um casamento podem fazer jejum enquanto o noivo está com eles?Enquanto o noivo está presente, os convidados não podem fazer jejum. Mas vão chegardias em que o noivo será tirado do meio deles. Nesse dia eles vão jejuar. Ninguém põeum remendo de pano novo em roupa velha; porque o remendo novo repuxa o pano e orasgo fica maior ainda. Ninguém coloca vinho novo em barris velhos; porque o vinhonovo arrebenta os barris velhos, e o vinho e os barris se perdem. Por isso, vinho novodeve ser colocado em barris novos'".

O apego às determinações de Moisés também era um dos motivos pelos quais eles nãodeixavam de criticar as atitudes de Jesus, já que o Mestre não parecia muito disposto a seguirao pé da letra tais recomendações. Analisando a sua resposta podemos entender que Jesusclaramente sobrepõe seus ensinamentos aos de Moisés; todavia, apesar disso ser tão óbvio, aliderança religiosa finge não ver. Para ela é interessante manter também a legislação anterior,pois é desta a premissa de que só se salvará aquele fiel que, pontualmente, pagar o dízimo.

Lc 16,14-15: “Os fariseus, que são amigos do dinheiro, ouviam tudo isso, e caçoavamde Jesus. Então Jesus disse para eles: 'Vocês gostam de parecer justos diante doshomens, mas Deus conhece os corações de vocês. De fato, o que é importante para oshomens, é detestável para Deus'”.

Mais uma vez, Jesus ressalta a hipocrisia dos fariseus. Assim como ocorria àquelaépoca, a liderança religiosa atual caçoa daqueles que vêm justamente tentar restaurar osverdadeiros ensinamentos de Jesus mediante o Espiritismo.

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Lc 19,37-40: “Quando Jesus estava junto à descida do monte das Oliveiras, toda amultidão de discípulos começaram, alegres, a louvar a Deus em voz alta, por todos osmilagres que tinham visto. E dizia: 'Bendito seja aquele que vem como Rei, em nomedo Senhor! Paz no céu e glória no mais alto do céu'. No meio da multidão, algunsfariseus disseram a Jesus: 'Mestre, manda que teus discípulos se calem'. Jesusrespondeu: 'Eu digo a vocês: se eles se calarem, as pedras gritarão'”.

Nota-se que até mesmo o fato de Jesus ter sido aclamado pelos seus discípulos,incomodava os fariseus. Mas não ficaram sem resposta, já que esse é o estilo do Mestre, queperfeitamente estamos identificando ao longo desse estudo.

Aqui, terminamos as passagens em que Jesus responde a todas as críticas dos seusopositores, dando, a todas elas, a devida resposta. Não os poupou ao chamá-los de hipócritas,raça de víboras, entre outras denominações. Entretanto, agora vamos apresentar uma atitudeainda mais enérgica de Jesus, a qual demonstra, perfeitamente, que ele não agia como ummanso cordeirinho, conforme querem que pensemos. Vejamos:

Mt 21,12-13: “Jesus entrou no Templo, e expulsou todos os que vendiam e compravamno Templo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores depombas. E disse: 'Está nas Escrituras: 'Minha casa será chamada casa de oração'. Noentanto, vocês fizeram dela uma toca de ladrões'”.

Nesse ponto, mais energicamente ainda, agiu Jesus ao expulsar do Templo os cambistase todos que estavam ali a vender, levando-nos a concluir que ele não era tão manso assimcomo querem pintá-lo. Acaba por insinuar que eram todos eles ladrões na toca.

Bom; até agora somente apontamos passagens demonstrando que Jesus não cultivavao silêncio. Alguém poderia nos perguntar: “será que você não está distorcendo os fatos,considerando que, possivelmente, em algum momento, ele tenha mesmo silenciado?” Aresposta é negativa: a verdade joga por terra toda essa ideia que tentam nos passar, ou seja,de um Mestre sem personalidade, pois, para nós, quem age tão mansamente assim édesprovido dessa característica. Vejamos então esta passagem:

Mt 27,1-2.11-14: “De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos dopovo convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles oamarraram e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador. Jesus foi posto diantedo governador, e este o interrogou: 'Tu és o rei dos judeus?' Jesus declarou: 'É vocêque está dizendo isso'. E nada respondeu quando foi acusado pelos chefes dossacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou: 'Não estás ouvindo de quanta coisa eleste acusam?' Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou vivamenteimpressionado”.

Está aí a única passagem em que Jesus nada respondeu. Foi exatamente aquela em queos chefes dos sacerdotes e anciões o acusaram diante de Pilatos. Mas isso se justifica, poisconsciente de seu destino, em relação à sua missão, simplesmente entregou-se a ele.Pensamos que, se tivesse resistido, teria sido solto, obviamente, assim, se sua missão eramorrer na cruz, esse fato não deveria ocorrer, se ele se defendesse a sua missão não teria sidocumprida.

A conclusão obtida nesse estudo é a seguinte: devemos sim, contestar todas as críticase acusações que fazem ao Espiritismo, atitude perfeitamente compatível com a de Jesus, aquem devemos seguir incondicionalmente.

Mas, para que não fiquemos adstritos apenas à nossa opinião pessoal, vejamos o que oconfrade Divaldo Pereira Franco (1927- ), disse há tempos, especificamente em 17/06/2001,quando, ao comparecer no programa “Espiritismo Via Satélite”, pela Rede Visão, lhe fizemosesta pergunta:

Caro Divaldo, considerando que Kardec no Projeto 1868, sugere que entre asatribuições da Comissão Central, a ser criada para coordenar o movimento espírita,estaria a refutação dos ataques ao Espiritismo resumimos que os Espíritos Superioresconcordaram com essa recomendação de Kardec. Assim lhe perguntamos: será quehoje os Espíritos não concordam com isso, ou seja, que não devemos refutar os ataques

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à Doutrina Espírita ou isso é coisa dos Espíritas? A sua resposta foi:

Naturalmente devemos refutar. Mas refutar numa linguagem nobre. O difícil éencontrar as pessoas que possuam condições para enfrentar esses debates semdescerem aos níveis infelizes dos agressores. A nossa imprensa Espírita, namedida do possível, através de homens e mulheres admiráveis, tem refutado asagressões que o Espiritismo vem sofrendo.

Ainda há pouco lemos aqui, na Internet, a Rede Visão refutando agressõesmuito dolorosas, desonestas e não autenticas veiculadas por uma revistaprotestante que a espalhou por todo o mundo. Espíritas de diferentes paísesreceberam essa revista, inclusive na Bélgica e na Itália, na qual está exarado umataque muito grosseiro à reencarnação, sem qualquer fundamento, porque todaa documentação é adulterada e direcionada e, no entanto, aqui a Rede Visão,através da Internet como pode ser lida, está enfrentando. E o vem fazendo commuita assiduidade. Nós devemos, sim, refutar todas as agressões à Doutrinanobre, mas nunca descermos ao baixo nível dos nossos agressores.

Apenas a título de informação: o que Divaldo cita que leu na Internet, são, porcoincidência, textos de nossa autoria que estavam publicados no site da Rede Visão.

O e-mail, do qual falamos no início, foi providencial e sinceramente já agradecemos aoautor por nos tê-lo enviado, pois ele foi motivo de estudo e reflexão de nossa parte. Se, antes,tínhamos alguma dúvida em relação à defesa da Doutrina Espírita, embora saibamos que opróprio Kardec não deixou por menos, fato que parece ser ignorado pela maioria dos Espíritas,agora não temos mais, pois enganam-se os que pensam que Jesus ficou o tempo todo calado;e é por ele que nos esforçamos, tentando seguir o seu exemplo.

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Ressurreição da Carne?

Não é de hoje que este assunto é encarado, pelos fiéis das inúmeras correntesreligiosas cristãs, como uma coisa líquida e certa. Entretanto, a ciência vem afirmar que onosso corpo físico, no processo de sua decomposição, restitui à natureza os elementos -carbono, hidrogênio, azoto, oxigênio, etc. - de quem tomou emprestado.

Este é mais um dos muitos motivos pelo qual não se concilia a Ciência com a religião,mas numa análise mais profunda, sem preconceito e nem dogmatismo, vimos que,biblicamente falando, a ressurreição nunca foi a da carne, como se apregoa por aí.

Parece-nos que, pela análise de algumas passagens bíblicas, o que encontramos foijustamente o contrário. Vejamos:

Mt 22,30: “De fato, na ressurreição, os homens e as mulheres não se casarão, poisserão como os anjos do céu”.

Todos nós acreditamos que, indiscutivelmente, os anjos não possuem corpo físico. Jesusafirma que na ressurreição os homens e mulheres serão como os anjos do céu, por isso não secasarão, Ele nos remete à questão da ressurreição espiritual.

Jo 4,24: “Deus é Espírito”.

Aqui temos um paradoxo, pois a nós, segundo a crença dogmática, caberia viver noplano espiritual na mesma condição de vida que tínhamos aqui no plano físico, enquanto Deus,nesse mesmo plano para o qual iremos, vive puramente na condição espiritual. Absurdoteológico incompatível com a lógica, pois o plano espiritual está para o corpo espiritual, como oplano terreno está para o corpo físico.

Para a manutenção da vida do nosso invólucro carnal é necessário, dentre inúmerascoisas, oxigênio, água e alimentação. Será que haverá tudo isso no lugar para onde dizem queiremos após a morte? O pior é que todas essas coisas deverão existir tanto no céu quanto noinferno, já que muitos correm o risco de terem como destino o lago de fogo. Quem sabe ummilagre resolva essa questão?...

Jo 6,63: “... o espírito é que dá vida a carne de nada serve”.

Será que os teólogos nunca leram essa passagem? Se a carne de nada serve, entãoqual a sua utilidade no plano espiritual?

Lc 16,19-23: “Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino, e davabanquete todos os dias. E um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, que estavacaído à porta do rico... Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para juntode Abraão. Morreu também o rico, e foi enterrado. No inferno, em meio aos tormentos,o rico levantou os olhos, e viu de longe Abraão, com Lázaro a seu lado”.

Considerando-se que o rico foi enterrado, pode-se concluir que foi isso o que ocorreutambém a Lázaro. Tendo acontecido isso, forçosamente somos obrigados a aceitar que essesdois personagens não foram para o outro lado da vida, se encontravam, conforme a narrativa,na condição de espíritos.

Lc 23,43: “Jesus respondeu: ‘Eu lhe garanto: hoje mesmo você estará comigo noParaíso’".

Se essa afirmativa atribuída a Jesus for verdadeira, então a condição em que o “bomladrão” transportou-se ao “paraíso” foi na condição espiritual, pois seu corpo deve, segundo o

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costume da época, ter servido de repasto aos urubus, já que os corpos dos executados, nessascondições, ficavam expostos para impressionar os transeuntes.

Lc 23,46: “Pai em tuas mãos entrego o meu Espírito”.

Acaso Jesus tivesse dito, pelo menos, “Pai, em tuas mãos entrego-me”, poderia haveralguma dúvida quanto ao fato. Entretanto, Ele entrega o seu espírito, já que sabia que a carnede nada serve, conforme já houvera afirmado.

1Cor 15,44-50: “... é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existeum corpo animal, também existe um corpo espiritual,... a carne e o sangue nãopoderão herdar o reino de Deus”.

Paulo, sempre usado para sustentar algumas interpretações de conveniência, é quemtambém podemos usar para contestar, por mais uma vez, a crença na ressurreição da carne.Observe que o apóstolo dos gentios diz taxativamente que ressuscita o corpo espiritual earremata, como que para não deixar dúvidas, dizendo que o corpo físico não pode herdar oreino de Deus.

Esses textos, aqui relacionados, são suficientes para reconhecermos que iremosressuscitar no corpo espiritual e não no corpo físico, como ainda é aceito e defendido pormuitos.

Mas alguém poderia objetar dizendo que Jesus teria ressuscitado em corpo físico, fatoque confirmaria a ressurreição da carne.

Pelos relatos bíblicos Jesus foi crucificado às nove horas da manhã tempo insuficientepara que, às primeiras horas do dia, ocorresse primeiro a reunião do Sinédrio, depois, emrelação a Jesus, sua prisão, as torturas que sofreu, sua condução a Pilatos, a Herodes, e aPilatos novamente, para que caminhasse até o Gólgota carregando a cruz, deixando-nos emdúvida quanto aos fatos descritos como ocorridos.

Uma coisa que poucas pessoas sabem é que a morte por crucificação não era imediatalevava-se, segundo alguns estudiosos, de dois a três dias outros estendem esse tempo a atécinco dias.

[…] Jesus sabia muito bem como os romanos tratavam os líderes rebeldes.Herodes podia usar a espada, mas o método romano, aperfeiçoado ao longo deduzentos anos de história, era a crucificação. Chegava-se a demorar três diaspara morrer, a agonia era insuportável, e as vítimas nuas serviam comoexemplos infames e aterradores para o populacho. […] (TABOR, 2006, p. 193-194).

A morte por crucificação era um processo lento. Podia demorar doisou três dias. (TABOR, 2006, p. 234) (grifo nosso).

Como não quebraram seus ossos, o que faziam para apressar a morte do condenado, econsiderando o tempo entre a crucificação e a morte foi de apenas seis horas, resta-nos adúvida, por não termos elementos seguros para acreditar no relatado.

É tão evidente que o tempo foi curto que até Pilatos, quando foram reclamar-lhe ocorpo, se surpreende de que Jesus há havia morrido (Mc 15,44).

Como o dogmatismo não manda mais ninguém para a fogueira, querendo demonstrarpreviamente como os ímpios irão arder no fogo do inferno, pensadores têm surgidoquestionando até mesmo a veracidade dos próprios textos bíblicos, quanto à realidade damorte de Jesus na cruz. Essas dificuldades que acabamos de colocar, podem nos remeter aessa hipótese.

Para se ver, por exemplo, que os relatos não são tão mais inquestionáveis assim,transcrevemos do capítulo “Jesus não morreu na cruz” constante do livro A Sociedade Secretade Jesus, de autoria de Roméro da Costa Machado (1948- ), o seguinte trecho:

Ao raiar do dia, no sábado, vendo o sepulcro aberto e tendo o corpo de Jesus

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sumido, os guardas, com medo de Pilatos, vão até os sacerdotes saduceus econtam-lhes a história do desaparecimento do corpo de Jesus. No que ossacerdotes saduceus tranquilizam os guardas e garantem que, caso a históriachegue aos ouvidos de Pilatos, eles (os sacerdotes) iriam convencer Pilatos anão punir os guardas, deixando-os em paz, pois era sabido que os discípulos deJesus iriam mesmo tentar roubar o corpo.

Esta história está parcialmente contada em Mateus (28:11-15) Entretanto,como o cadáver de Jesus jamais apareceu e isto desmoronaria a tese daressurreição, pois ninguém ressuscita sem morrer e para morrer tem que haverum cadáver; este corpo de Jesus morto jamais apareceu. E Mateus, novamente,conta exatamente esta história do roubo do corpo, mas depois diz que émentira.

Para os próprios cristãos, segundo evidências claras na Bíblia, Jesus nãomorreu na cruz. Senão vejamos:

João (20:11-17) - Dois essênios de branco (confundidos como anjos) sãovistos no sepulcro e Jesus – depois de "morto" - diz para Madalena, dentro dosepulcro, que ainda não havia morrido.

“Jesus disse-lhe: - Não Me detenhas porque ainda não subi para Meu Pai".Lucas (24:4-5) - Dois essênios de branco, resplandecentes, estão no sepulcro

vazio e falam para Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago: - “Por que buscaisentre os mortos Aquele que vive?"

Mateus (28:3) - Um essênio, vestido de branco, estava no sepulcro e fala àsmulheres sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. (Aqui uma questãosimples: Se Jesus tivesse morrido (matéria) e ressuscitado (espírito)... onde foiparar o corpo? Tinha de haver um corpo. Tinha de haver a matéria).

Marcos (16:5) - Um jovem essênio, vestido de branco, guardava o túmulo deJesus e fala com Madalena, Salomé e Maria Mãe de Tiago. - Aqui sai Joana eentra Salomé, mas tudo bem - (Novamente a mesma questão simples: Se Jesustivesse morrido e ressuscitado... onde foi parar o corpo?)

João (20:5-7) - Pedro entra no sepulcro e encontra ataduras de curativos eligaduras espalhadas por toda parte. (Se Jesus havia morrido na cruz... por quecolocaram ataduras, remédios, unguentos e ligaduras num "morto", como asque Pedro encontrou no sepulcro? Coloca-se atadura e remédio em morto?)

Lucas (24:36-43) - Diante do espanto dos discípulos que imaginavam estarvendo um espírito, Jesus confessa aos discípulos, com todas as palavras que Elenão havia morrido na cruz. E para provar que era Ele mesmo, Jesus diz: - "Vedeas Minhas mãos e os Meus pés?; Sou Eu mesmo!". E para provar que não eraespírito e sim carne, complementa:- "Apalpai-me e olhai que um espírito nãotem carne, nem ossos, como verificais que eu tenho!"

E para encerrar de vez a discussão sobre espírito e matéria, Jesus pedecomida aos discípulos ainda assombrados: - "Tendes aí alguma coisa que secoma?". Deram-lhe então uma posta de peixe assado e, tomando-a, comeudiante deles".

Pode um relato ser mais claro? Ou seja, nem mesmo os cristãos, maiscegamente fiéis seguidores da Bíblia, podem acreditar na morte de Jesus nacruz, pois o relato de Lucas (24:26-43) é claro demais, cristalino demais,insofismável, resistente até ao mais insano dos exegetas de bicicleta. Jesus dizclaramente que não havia morrido na cruz ("não ascendi ao pai"), que não eraespírito e sim carne (e para provar que não era espírito e sim carne,complementa: Apalpa-me e olhai que espírito não tem carne nem ossos comoverificais que eu tenho") e para finalizar Jesus pede comida e bebida, e de fatocome peixe assado e bebe com os discípulos. (MACHADO, 2004, p. 297-300).

Argumentos que não encontramos meios de como rebatê-los ainda mais pelo fato deencontrarmos essa mesma informação em outra fonte. Vejamos:

Quando se refere à crucificação, o Alcorão diz o seguinte: ‘Eles não omataram, não o crucificaram, mas isso lhes pareceu (Alcorão 4,156). ... Certosmuçulmanos do Paquistão... para eles, Jesus foi de fato pregado à cruz, mas,quando o retiraram de lá, Ele ainda vivia. Então, livre da cruz, ele se curou epartiu para a Índia. (Revista Grandes Líderes da História, p. 29).

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Tudo isso de certa forma poderia vir a corroborar o que está escrito em At 1,3: “Foi aosapóstolos que Jesus, com numerosas provas, se mostrou vivo depois da sua paixão: durantequarenta dias depois apareceu a eles,...”. Lucas, “... após fazer um estudo cuidadoso de tudoo que aconteceu desde o princípio,...” (Lc 1,3), afirma que Jesus se mostrou vivo, o queconfirmaria aquilo que encontramos em outras fontes. É aqui que ficamos em dúvida, pois seJesus se apresentou fisicamente, então a tese, que apresentamos para uma reflexão, de queele na verdade não morreu na cruz, seria uma possibilidade que deveria ser mais bemanalisada.

Todavia, alguém dirá: "Como é que os mortos ressuscitam? Com que corpo voltarão?"Insensato! Aquilo que você semeia não volta à vida, a não ser que morra. E o que você semeianão é o corpo da futura planta que deve nascer, mas simples grão de trigo ou de qualqueroutra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer: ele dá a cada uma das sementes ocorpo que lhe é próprio. Nenhuma carne é igual às outras: a carne dos homens é de um tipo, ados animais é de outro, e de outro a dos pássaros e de outro ainda a dos peixes. Há corposcelestes e há corpos terrestres. O brilho dos celestes, porém, é diferente do brilho dosterrestres. Uma coisa é o brilho do sol, outra o brilho da lua, e outra o brilho das estrelas. Eaté de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo acontece com a ressurreição dosmortos: o corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; é semeado desprezível,mas ressuscita glorioso; é semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força; é semeadocorpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe um corpo animal, também existe umcorpo espiritual.

Calma, não somos nós que está dizendo isso é um outro Paulo, o de Tarso (1Cor 15,35-44). Sua afirmação da existência do corpo espiritual é de tamanha clareza que não deveriadeixar margem a dúvidas, nem tampouco o surgimento de interpretações equivocadas.

Mas isso ainda não é tudo, pois quando, um pouco mais à frente, ele arremata a suaargumentação, a coisa fica ainda mais clara veja: “Eu lhes digo, irmãos, que a carne e osangue não podem receber em herança o Reino de Deus, nem a corrupção herdar aincorruptibilidade”. (1Cor 15,50).

Há uma passagem muito elucidativa em que os saduceus, que afirmavam não existirressurreição, perguntaram a Jesus sobre a situação de uma mulher que havia se casado comsete irmãos (para cumprir a lei do Levirato) queriam saber, quando da ressurreição, de qualdos sete ela seria mulher; que Jesus responde: “De fato, na ressurreição, os homens e asmulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu” (Mt 22,30). Ora, todos nósaceitamos que os anjos são seres espirituais; daí, se seremos iguais a eles, então,consequentemente, também seremos seres espirituais, condição em que ressuscitaremos. Aafirmação de “seres espirituais” implica necessariamente na existência de um corpo espiritual.

Na sequência, ainda afirma Jesus: “Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o queDeus vos declarou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó?’ Ora, ele nãoé Deus de mortos, mas sim de vivos” (Mt 22,32-33). Veja bem se Deus é Deus de vivos, e osaqui citados foram Abraão, Isaac e Jacó, que já haviam morrido, concluímos que eles viviamna condição espiritual. Os que acham que a ressurreição será no final dos tempos, devem ficardesconcertados diante dessa passagem, pois, apesar do final dos tempos ainda não terchegado, Jesus sugere que esses três personagens já estavam ressurretos e, portanto, vivos.

A visão de Pedro sobre a morte e ressurreição de Cristo, também não deixa margem àressurreição da carne. Segundo ele, o que aconteceu foi que Jesus “... Morto na carne, foivivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão,” (1Pe 3,18-19).

Assim, diante disso e de tudo o que já colocamos anteriormente, como ainda advogar aressurreição da carne? Ela, a ressurreição da carne, falando à maneira do gosto de muitosteólogos, não possui respaldo bíblico.

Terminamos o estudo sobre esse assunto, esperando contribuir para o esclarecimentodessa questão; mas, obviamente, não passa por nossa cabeça a unanimidade em relação aoque expomos, já que muitas pessoas, infelizmente, possuem a mente fechada para qualquercoisa que vá de encontro ao seu pensamento original, mesmo sendo este completamentecontraditório. Pior ainda são os adeptos do: “creio, ainda que absurdo!”.

Percebemos em algumas pessoas, um certo medo de questionar o que a teologiatradicional lhes passou: isso é fruto de um terrorismo religioso, pois quem está com a verdade

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não teme absolutamente nada. Entretanto, os que são frágeis na convicção e os que sabemque suas ideias não são realmente verdadeiras, farão de tudo para contestar aquilo que possacontrariar seus interesses. Mas devemos lembrar Jesus que dizia: “conhecereis a verdade e averdade vos libertará” (Jo 8,32).

Encerramos ressaltando que: “... onde se acha o Espírito do Senhor aí existe aliberdade” (2Cor 3,17), do que é fácil concluir que, onde não há liberdade, o Espírito do Senhornão se encontra.

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O que efetivamente nos salva?

Vamos iniciar contando uma historinha fictícia e que não alcança, necessariamente,toda a justificativa que os evangélicos dariam para explicar a sua crença na salvação, tratamo-la de forma bem simples apenar para ter um ponto de partida.

Apreensivo, chega o fervoroso crente, junto ao seu líder religioso, e pergunta: “Pastor,saberia me dizer o que acontecerá agora com meu pai, que acaba de morrer: ele irá para océu ou para o inferno? O Sr. sabe, ele era um criminoso de mão cheia, tendo, em sua vida,cometido vários crimes. Gostaria de saber qual é o destino dele, pois, apesar de tudo o quefez, acreditava em Jesus, tinha uma fé inabalável e nem mesmo o dízimo omitiu em pagá-lo.”.O Pastor pensou um pouco, procurando “acessar” em sua memória a “pasta” contendo os seusconhecimentos bíblicos, para dar uma explicação plausível. Passados alguns minutos,respondeu: “Meu caríssimo irmão, a Bíblia diz: 'Porque pela graça sois salvos, por meio da fé;e isto não vem de vós, é dom de Deus. (Ef 2,8)'”. Portanto, pela palavra de Deus, ele irá parao céu, pois tinha fé e a fé é o que nos basta para salvar-nos”. “Amém Pastor!”, respondeu oconsulente, já mais tranquilo e certo que seu pai estaria no céu.

Para o profeta Isaías, a questão seria bem mais complexa:

“[...] Quando vossos juízos se exercem sobre a terra, os habitantes do mundoaprendem a justiça. Porém, se se perdoar o ímpio, ele não aprenderá a justiça, naterra da retidão ele se entregará ao mal e não verá a majestade do Senhor” (Is 26,9-10– Bíblia Sagrada Ave Maria).

O pensamento de que se deve exercer o juízo, ou seja, julgar e aplicar a devida pena,como forma de levar o criminoso a arrepender-se é tão claro, que ficamos sem saber o porquêdas pessoas não o entenderem e daí ficarem buscando outras alternativas para a salvação.

Procuramos essa mesma passagem em outras Bíblias: foi por aí que começamos aentender, o porquê de muitas das divergentes nas interpretações dos textos bíblicos. Vejamo-la na versão da SBB, cuja tradução é a normalmente adotada por algumas correntesprotestantes:

“[...] porque, havendo os teus juízos na terra, os moradores do mundoaprendem justiça. Ainda que se mostre favor ao ímpio, nem por isso aprende ajustiça; até na terra da retidão ele pratica a iniquidade, e não atenta para a majestadedo SENHOR”. (Is 26,9-10)

Aqui, ter o entendimento igual ao que encontramos na tradução anterior, é, realmente,mais difícil, pois o fundo do pensamento está subentendido. Mas, embora varie na forma, aessência é a mesma.

Se Deus, por algum motivo, deixasse de “castigar” um criminoso, estaria pervertendo ojuízo. Ora, isso é algo que Ele não poderá deixar de fazer, sem que conflite com o teor destepasso: “Porque, segundo a obra do homem, ele lhe paga; e faz a cada um segundo o seucaminho. Também, na verdade, Deus não procede impiamente; nem o Todo-Poderosoperverte o juízo”. (Jó 34,11-12).

Ainda não conseguimos entender porque as pessoas divergem tanto em relação à nossasalvação, considerando-se que todos, supostamente, trabalham com a mesma fonte: osEvangelhos. Para uns, basta ter fé; para outros, é necessário praticar as boas obras. Isso deixamuitas pessoas em dúvida para saber qual é mesmo a base da nossa salvação.

Paulo de Tarso é o autor bíblico mais utilizado para sustentar a questão da fé, comoforma de salvar-se. Sabemos que ele não foi discípulo de Jesus; inclusive, no início docristianismo, perseguia os cristãos, até que um dia, na estrada de Damasco, teve um encontrocom o espírito de Jesus, que o questiona: “Saulo, Saulo, porque me persegues?” (At 9,4). A

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partir deste episódio, passa a dedicar-se, de corpo e alma, à propagação da doutrina doMestre, conforme os relatos bíblicos.

A sua missão foi, segundo entendemos, a de divulgar o Evangelho entre os pagãos; daío chamarem de “Apóstolo dos gentios”. Fez diversas viagens para propagar a Boa Nova. Sãodele as principais cartas contidas no Novo Testamento, nas quais iremos buscar o seupensamento a respeito desse assunto.

Depois, iremos ver o que outras pessoas, daquela época, também pensavam,especialmente Tiago, Pedro, João e, decisivamente, aquele a quem nenhum ensino poderácontradizer: JESUS.

Vejamos o pensamento de Paulo. Devemos confessar, de antemão, que não é nada fácilentender Paulo, pois, às vezes, parece contraditório, já que em algumas oportunidades leva-nos a crer que a fé é que salva, ao passo que em outras dá-nos a ideia que são as obras;enfim, as coisas ficam realmente muito confusas. Até Pedro reclamava isso de Paulo; veja: “Éo que, aliás, ele ensina em todas as suas cartas. Nelas existem passagens de difícilcompreensão; e existem pessoas ignorantes e inconstantes que lhes deformam o sentido,como aliás o fazem com outras partes das Escrituras, para a sua própria ruína” (2Pe 3,16).Pedro está, absolutamente, correto em seu pensamento; inclusive, poderemos,tranquilamente, aplicá-lo a inúmeros líderes religiosos dos dias de hoje, já que os vemos“deformando o sentido das Escrituras”.

De início, é oportuno colocarmos a seguinte explicação:

O próprio Paulo não conheceu pessoalmente Jesus. O que ele fez foi aexperiência do Cristo ressuscitado. Portanto, ao anunciar o Evangelho aospagãos, foi preciso adaptá-lo à mentalidade dos ouvintes, respondendo àspreocupações que eles tinham, conservado o que era essencial e deixando delado o que não era importante. (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 1438). (grifo nosso).

É importante ter isso em mente, já que o apóstolo dos gentios usava linguagemadequada aos ouvintes, o que, em algumas situações, pode levar a crer-se numa aparentecontradição no que fala.

Vejamos alguns trechos de Paulo, que colocaremos não na ordem em que aparecem naBíblia; mas na cronológica aceita pelos exegetas:

1Ts 1,2-3: “Sempre damos graças a Deus por vós todos, fazendo menção de vós emnossas orações, lembrando-nos sem cessar da obra da vossa fé, do trabalho doamor, e da paciência da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, diante de nossoDeus e Pai”.

Nesta primeira passagem, que analisamos, observamos Paulo dar graças a Deus porquetodos praticavam “obra da fé, do trabalho do amor”, já nos deixando mais seguro, quanto aoseu pensamento a respeito do que irá salvar-nos.

1Cor 13,1-13: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e nãotivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda quetivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e aindaque tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesseamor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dospobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor,nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; oamor não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, nãobusca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça,mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amornunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão;havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte, conhecemos, e em parteprofetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte seráaniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorriacomo menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

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Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agoraconheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois,permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”.

Fica claro que Paulo prega o amor acima de tudo. Explicam-nos: “À diferença do amorpassional e egoísta, a caridade (agápe) é um amor de dileção, que quer o bem do próximo.[...]” (Bíblia de Jerusalém, p. 2009). Ainda encontramos, mais esta: “Amor. A palavra grega éagape. [...] Agape é mais que afeição mútua; expressa a valorização altruísta no objetoamado. [...]” (Bíblia Anotada, p. 1449). Verificamos que há divergência quanto à acentuaçãodessa palavra.

Nessa passagem, está óbvio que o amor (caridade) é maior que a fé, embora nãoimplique dizer que não necessitamos da fé; pelo contrário, é por exatamente termos muita féque praticamos a caridade.

1Cor 15,1-2: “Irmãos, lembro a vocês o Evangelho que lhes anunciei, que vocêsreceberam e no qual permanecem firmes. É pelo Evangelho que vocês serãosalvos, contanto que o guardem do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocêsterão acreditado em vão”.

Esta é, talvez, a passagem mais clara, onde o pensamento de Paulo não deixa nenhumamargem a qualquer tipo de dúvida; nem mesmo com interpretações destorcidas consegue-semudá-lo. Se é pelo Evangelho que seremos salvos, então nossa salvação está na aplicação, nonosso dia a dia, das leis divinas, ensinadas por Jesus, ou seja, é a prática do amor ao próximo.

1Cor 15,28: “E quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprioFilho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo emtodos“.

Para que “Deus seja tudo em todos”, é necessário que todos estejam no mesmo nívelde moralidade, onde o amor possa ser a virtude por excelência, que deverá espelhar-se,diuturnamente, na ação de cada um de nós. Isso, não se consegue com penas eternas, nemcom salvação de uns poucos privilegiados. Fica aí a questão: então o que é que consegue levartodos para o mesmo nível, para que “Deus seja tudo em todos”?

2Cor 5,10: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para quecada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal”.

O Apóstolo Paulo volta, novamente, a falar sobre o “a cada um segundo suas obras”,reafirmando o seu pensamento. Se não estivermos extrapolando-o, acreditamos que aqui eledá uma ideia de que temos algo além do corpo físico.

Gl 2,16: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela féem Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pelafé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhumacarne será justificada”.

Vejamos o que Paulo quer dizer com “não ser justificado pelas obras da lei”; afinal, deque obras ele falava? Certamente, que se referia às obras da Lei, ou seja, da Lei de Moisés,que, depois do advento de Jesus, não deve servir como base para a salvação aos que se dizemcristãos. Seremos justificados pelos nossos atos, ou seja, tornaremos justos pela fé em Cristo.Mas, voltamos a dizer, não fé passiva, só pela fé operante. Também João percebeu isso:“Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17).

Esta passagem merece ser completada pelo estudo que L. Palhano Jr. (1946-2000) fazem seu livro Aos Gálatas – A Carta da Redenção. Diz Palhano:

Para compreendermos melhor o texto acima, é preciso meditar e entrar noverdadeiro significado das expressões: “justificado”, “obras da lei”, “fé” e“carne”. É o que pretendemos fazer a seguir. O verbo empregado na epístolapara justificado é dikaicó, característico de Paulo e tão empregado por ele, que épreciso entendê-lo de modo correto. Na margem da Revised Standard Version of

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Bible, o termo é traduzido como “tido por justo”, isto é, considerado justo ouaprovado aos olhos de Deus; e o ponto a ser decidido era a maneira pela qual oindivíduo alcançaria uma posição aceitável diante de Deus (Guthrie). (38)

Vamos agora à expressão “obras da lei”. Talvez devêssemos fazer aqui umparêntese para um estudo pormenorizado sobre essa expressão, mas não ofaremos; acrescentá-lo-emos mais tarde ou em um apêndice. Por ora, vamosapenas destacar, sem mais delongas, o seu significado correto. A expressãogrega ex ergon nomou tem sido traduzida para o português como “pelas obrasda lei”, contudo pela proposta de Tenney (39), uma tradução mais exata seria“por obras legais”, isso porque a palavra “lei” foi usada sem o artigo definido,principalmente em certas frases escolhidas que transmitem significaçõesespecializadas. A ausência do artigo usualmente significa que a qualidade doconceito escolhido é salientado, em lugar da sua identidade, embora em Gálatase em outras epístolas, Paulo se refira à “lei mosaica” como a principalconcretização do conceito. Em Robertson (40) podemos ler claramente que, “emgeral, quando nomos é indefinido em Paulo, refere-se à lei mosaica”, porconsequente, “lei”, nessas instâncias, é um termo que se refere ao sistema depensamento ou ao código de ação envolvido, em lugar de qualquer documentoparticular. É evidente então que Paulo estava se referindo não a que oindivíduo “não seria justificado por suas obras, mas sim, não seriajustificado pelas obras da legalidade religiosa”, isto é, pelocumprimento das formalidades preconizadas por códigos religiososcomo “rituais”, “festas”, “cerimoniais”, “dogmas”, ou quaisquerexigências tais como “dízimos”, guardar os “sábados”, coisas deste tipo,mas que seria justificado “pela fé em Jesus Cristo”.

Para um conceito mais científico de fé, podemos dizer que ela é a capacidadede sintonizar-se com Deus (Jesus Cristo, no caso, o representa) e, para isso, épreciso reconhecer a sua paternidade divina, amando-o sobre todas as coisas(Mt 22,37) e realizar a sua vontade, amando o próximo como a si mesmo (Mt22,39). Como ensinou Jesus, aí estão toda a lei e os profetas. É óbvio que essafé tem que vir acompanhada de obras que a testifiquem; ter fé só por ter denada adianta. Dizer que crê em Cristo não salva ninguém, mesmo batendo nopeito, porquanto:

... a quem pensar que a fé por si só é suficiente, sou levado a dizer:Acreditais na existência de Deus? No inferno, os demônios também acreditame, no entanto, estremecem. Porventura ainda não vê, ó homem sempercepção, que a fé sem obras é inútil e morta? (Tg 2, 19 e 20).

[...]Quanto à expressão “carne” (grego sarx), ela quer dizer “ninguém, nenhuma

pessoa viva”, será justificado “pelas obras da lei”. Trata-se de uma sinédoque,uma figura de linguagem comum da vida diária, como “cérebros” em lugar deeruditos, “cabeças” em lugar de gado e “vapor” em lugar de navio. Temos assimas chaves da interpretação do versículo 2,16. Ele é muito importante para oentendimento da proposta de Paulo, não entendida ou distorcida pelos ditos“doutos das igrejas”. Vamos concluir o estudo desse versículo, traduzindo-o parauma linguagem mais atual, que nos mostra como ele deve ser entendido:

Sabemos que o homem não é considerado justo nem aprovado por Deuspelo seu desempenho nas formalidades prescritas na lei, mas pela féoperante em Jesus Cristo. Nós próprios somos reconhecidos justos pela nossafé e não pela obediência ao estipulado como lei, por reconhecermos queninguém pode salvar-se apenas por praticar liturgias (obras da lei).

______38. Guthrie, D. Gálatas, introdução e comentários, São Paulo, Vida Nova, 1984, p. 107.39. Tenney, M. C. Galatian: the charter of christiam liberty. Michigan, EerdmansPublishing, 1950, p. 194.40. Roberton, A. T. A grammar of the greek new Testament in the light of historicalresearch, 3ª edição. New York, George H. Doran Co. 1919, p. 796.

(PALHANO JR., 1999, p. 76-79). (grifo nosso)

Exatamente a linha de raciocínio que adotamos.

Gl 5,4-6: “Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça

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tendes caído, Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porqueem Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a féque opera pelo amor”.

Se querem seguir a lei mosaica, tudo bem, porém, considerem-se “separados doCristo”. No fundo, a questão é bem simples: ou você segue Jesus e pode-se dizer cristão, ousegue Moisés, e assuma sua condição de judeu. Na atualidade, o que vemos é o somatório dosdois: cristão-judeu, dizem seguir Cristo, mas não abrem mão de Moisés.

Paulo, não tinha a Lei mosaica como norma, inclusive, questiona a validade dacircuncisão, contida nela; para ele, sendo “obras da lei” não mais tinha valor algum,porquanto, o que deveria prevalecer é o que Jesus pregou e ensinou.

A expressão “a fé que opera pelo amor”, dá-nos a verdadeira ideia de Paulo a respeitodo amor. Conforme dissemos anteriormente, é o amor que faz a fé ser operante; não é,portanto, uma fé no sentido de somente se crer.

Gl 5,14: “Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teupróximo como a ti mesmo”.

Não foi isso exatamente o que Jesus disse? Entretanto, ao Jesus acrescentar que toda aLei e os profetas se achavam contidos nesse mandamento, disse, em outras palavras, que dalei mosaica isso era o que poder-se-ia, realmente, considerar como lei divina.

Gl 6,2: “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo”.

“Levar as cargas uns dos outros” não é a ação na caridade, por amor ao próximo? Nãoé assim, que, conforme Paulo, estaremos cumprindo a lei do Cristo? Não são, portanto, asobras da lei que fala, mas dessas obras – levar as cargas uns dos outros –, que são aexpressão do ensinamento do Cristo. Com isso, fica impróprio argumentar, que é a fé quesalva; não é mesmo?

Gl 6,7-9: “Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homemsemear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará acorrupção; mas o que semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna. E não noscansemos de fazer bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermosdesfalecido”.

É o que chamamos de Lei de Ação e Reação, vulgarmente denominada de Carma. Nãohá como se iludir diante de alguma outra opção sedutora; tudo o que fizermos voltará contranós ou a nosso favor. Se semearmos ódio, colheremos exatamente o ódio; se, ao contrário,plantarmos amor, ceifaremos amor. Por isso, Paulo adverte para não nos cansarmos de fazer obem, pois na época da colheita é isso que iremos colher.

Rm 2,5-8: “Mas, segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira parati no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus; o qual recompensará cadaum segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança emfazer bem, procuram glória, honra e incorrupção; mas a indignação e a ira aos que sãocontenciosos, desobedientes à verdade e obedientes à iniquidade;”.

Nessa passagem não existe dúvida alguma no que diz Paulo sobre o juízo de Deus, que:“recompensará cada um segundo as suas obras”. Aqui não contradiz o que Jesus colocou,conforme iremos verificar mais à frente, e a justiça, como a entendemos, exige isso.

Rm 2,9-11: “Tribulação e angústia sobre toda a alma do homem que faz o mal;primeiramente do judeu e também do grego; glória, porém, e honra e paz aqualquer que pratica o bem; primeiramente ao judeu e também ao grego; porque,para com Deus, não há acepção de pessoas”.

A consequência é tribulação e angústia, para quem faz o mal; glória, honra e paz paraquem pratica o bem. Ora, isso só pode ocorrer pela ação do homem, ou seja, por suas própriasobras (=ações), o que podemos confirmar pela passagem imediatamente anterior. E para os

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que dizem ser os únicos salvos, ou os que se julgam na “religião eleita”, podemos acrescentar,usando Paulo, que: “Deus não faz acepção de pessoas”. Assim, perguntamos: de onde tiram aideia absurda de que Deus estabelece algum tipo de privilégio?

Rm 2,12-13: “Portanto, todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; etodos aqueles que pecaram com Lei, pela Lei serão julgados. Porque os que ouvem a leinão são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados”.

Novamente estamos diante de um pensamento que não deixa margem a qualquer tipode dúvida; os que praticam as recomendações divinas são os que serão justificados, não osque somente as ouvem, mas permanecem de braços cruzados. A prática é mais importanteque a fé. Como praticar a lei? Fazendo o bem ao próximo.

Rm 3,21-28: “Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo otestemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristopara todos e sobre todos os que creem; porque não há diferença. Porque todospecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pelasua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciaçãopela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantescometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da sua justiça neste tempopresente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. Onde estálogo a jactância? É excluída. Por qual lei? Das obras? Não; mas pela lei da fé.Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei”.

Paulo, veementemente, combatia os judaizantes, que eram os cristãos hebreus, quequeriam de qualquer forma fazer com que os novos convertidos ao Evangelho, que ele chamade “fé em Jesus Cristo”, praticassem as exigências da Lei, ou seja, obras da lei moisaica. Acircuncisão, por exemplo, foi motivo de grandes controvérsias no cristianismo primitivo. Algunsqueriam que os neófitos fossem circuncidados, conforme determinava a Lei de Moisés;entretanto, outros como Paulo, achavam que não havia a mínima necessidade, já que a“graça” de Deus, por meio de Jesus, era superior às leis mosaicas. Assim, ao dizer que ohomem é justificado pela fé sem as obras da lei, está querendo dizer que o homem tornar-se-ia justo ao aderir ao Evangelho de Jesus, não sendo mais necessário cumprir as “obras da Lei”,ou seja, a legislação mosaica. Deixando bem claro, que não está pregando a fé inoperantecomo supõem alguns, mas, repetimos, a fé demonstrada pelas ações a favor do próximo. Vistodessa forma não contraria nada do que, por ele, foi dito e que já analisamos em itensanteriores.

Rm 8,28-30: “E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bemdaqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes àimagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aosque predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes tambémjustificou; e aos que justificou a estes também glorificou”.

Encontramos a seguinte explicação:

O projeto eterno de Deus é predestinar, chamar, tornar justo e glorificar acada um e a todos os homens, fazendo com que todos se tornem imagemdo seu Filho e reúnam como a grande família de Deus. O projeto nãoexclui ninguém. Mas o homem é livre: pode aceitar ou recusar tal projeto, podeescolher a vida ou a morte, salvar-se ou condenar-se. (Bíblia Sagrada Pastoral,p. 1450). (grifo nosso).

Veja bem, a questão da predestinação para sermos TODOS à imagem de Jesus. O quepoderíamos dizer em outras palavras: pela vontade de Deus todos nós estaremos um dia namesma evolução que Jesus. Seremos justificados em Jesus, quando aplicarmos, no dia a dia,os seus ensinamentos, sintetizados no amor incondicional. Portanto, a predestinação não é o“já se possuir um lugar garantido”, sem ter que fazer absolutamente nada; mas é algo que

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iremos chegar com nosso próprio esforço e pelas nossas próprias ações, nada de ser “degraça”.

Rm 10,4-13: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê. Ora,Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que fizer estas coisasviverá por elas. Mas a justiça que é pela fé diz assim: Não digas em teu coração: Quemsubirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a Cristo.) ou: Quem descerá ao abismo? (isto é,a tornar a trazer dentre os mortos a Cristo.) Mas que diz? A palavra está junto de ti, natua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se com atua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitoudentre os mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com aboca se faz confissão para a salvação. Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crernão será confundido. Porquanto não há diferença entre judeu e grego; porque ummesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque todo aqueleque invocar o nome do SENHOR será salvo”.

Se perdermos de vista, o que, anteriormente, disse Paulo, poderemos concluir queagora ele prega a fé. Mas, ainda aqui, ele trata da questão de Deus não fazer acepção daspessoas, que todo aquele que invocar o nome de Jesus será salvo. Quem crê realmente emJesus deve praticar o que ele ensinou; caso contrário, a crença é completamente inútil: “Nemtodo aquele que diz Senhor, Senhor, entrará no reino do céu” (Mt 7,21). Talvez pelo públicoalvo, Paulo não quis dizer mais a fim de completar o que realmente pensava. Para eles, o fatoextraordinário de Jesus ter ressuscitado dos mortos, era mais uma certeza de que Deus nãoestava abandonando o seu povo. Jesus iria continuar orientando, como ainda o faz, a todas ascriaturas para que, na prática do Evangelho, todos possam salvar-se. Iremos verposteriormente a salvação segundo Jesus, para não termos mais dúvidas sobre o que nossalva.

Rm 13,8-11: “A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameisuns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Com efeito: Nãoadulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; ese há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teupróximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que ocumprimento da lei é o amor. E isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora dedespertarmos do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós doque quando aceitamos a fé”.

Agora, Paulo está completamente, ou será melhor dizer explicitamente, de acordo comos ensinamentos de Jesus. E observe a afirmativa de que o cumprimento da lei é o amor.Amor a todos e de tal forma e intensidade que não conseguiremos ficar inertes ao vermos umirmão necessitado sem, imediatamente, entrarmos em ação, e o ajudarmos naquilo que eleprecisar. Tal como Jesus, ele, Paulo, resume a lei mosaica a “amarás ao teu próximo como a timesmo”. E se Paulo pregasse que somente a fé é que salva, não teria dito: “a nossa salvaçãoestá agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé”. Aceitar a fé é pouco; necessárioé praticá-la, pois só assim demonstraremos que amamos o próximo como a nós mesmos.

Ef 1,3-4: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou comtodas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeunele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveisdiante dele em amor”.

Tornar santo e irrepreensível diante de Cristo em amor é, segundo a máxima que nosdeixou, o que devemos fazer, que não é outra coisa senão o “amar ao próximo como a nósmesmos”. Ora, quem ama ao próximo, certamente, presta-lhe auxílio todas as vezes que fornecessário. Esse ato de caridade é realizado porque se tem muito amor.

Ef 2,8-9: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é domde Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie”.

Chegamos na passagem citada em nossa história, no início deste estudo. É comumvermos essa citação somente até o versículo nove, sem que coloquem a conclusão de Paulo

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(v.10,) que é importante para entender o seu pensamente de forma correta; Ei-lo: “Porquesomos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou paraque andássemos nelas” (Ef 2,10).

“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé”, ou seja, o amor de Deus faz com quesejamos salvos. Na visão Espírita isso é mais claro, pois o amor de Deus nos arrasta a Ele,vamos assim dizer, de tal sorte que a única escolha que nós temos é se iremos devagar oudepressa. “Salvos por meio da fé” é fazermos o que determina Jesus em seu Evangelho,principalmente o “amar ao próximo como a nós mesmos”. Isso é um dom de Deus, porque,por sua exclusiva vontade, Ele quer que sigamos os exemplos do Mestre, uma vez que, Ele nosfoi enviado, justamente, para servir-nos de modelo e guia.

Se somos criados em Jesus Cristo é porque é o desejo de Deus que andemos nas boasobras, amando indistintamente a todos os que estão nessa caminhada conosco, já que nospredestinou exatamente para isso. Não foram as boas obras o que ele praticou o tempo todoem que esteve aqui na Terra encarnado?

Cl 3,12-14: “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de entranhasde misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade; suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixacontra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. E, sobretudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição”.

Paulo entendeu muito bem, o ensinamento de Jesus, deixando-o mais claro ainda,aquele em que diz: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”.(Mt 5,48). Amor operante. Nada de só crer e achar que com isso está tudo bem. O amorincondicional é aquilo que nos ligará à perfeição, nada mais justo, pois “Quem não ama nãoconhece a Deus, porque Deus é amor. Deus é amor.” (1Jo 4,8).

Cl 3,15-17: “E a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo,domine em vossos corações; e sede agradecidos. A palavra de Cristo habite em vósabundantemente, em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aosoutros, com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando ao SENHOR com graça emvosso coração. E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo emnome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”.

Colocamos essa passagem para completar o pensamento de Paulo dito na anterior.

A expressão “para a qual também fostes chamados em um corpo”, estaria implícita apreexistência do espírito? Particularmente pensamos que sim, pois, se fomos chamados em umcorpo, é porque estávamos vivendo sem ele.

Deseja Paulo que a palavra de Cristo habitasse em nós abundantemente, em toda asabedoria, ou seja, que possamos entender tudo o que ele nos ensinou, demostrando isso naprática do dia a dia. A plenitude do amor em nós é a completa aplicação dos ensinamentos deJesus, que tornar-se-ia, então, o “vínculo da perfeição”.

1Tm 2,1-4: “Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações,intercessões, e ações de graças, por todos os homens; pelos reis, e por todos os queestão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda apiedade e honestidade; porque isto é bom e agradável diante de Deus nossoSalvador, que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimentoda verdade”.

Paulo exorta a Timóteo a praticar boas obras a favor de todos: amor altruísta!Perguntamos: Se Deus quer que todos os homens se salvem, quem poderá ser contra avontade de Deus?

Seria interessante também vermos o pensamento de Tiago (irmão do Senhor). FoiTiago quem dirigiu a Igreja de Jerusalém. No chamado Concílio de Jerusalém, ano 49 d.C., foia sua decisão prevaleceu na primeira divergência entre os cristãos na polêmica questão dacircuncisão. Ele exercia uma forte liderança, muito maior que a de Pedro, tido como o primeiroPapa. As correntes religiosas se divergem quanto ao grau de parentesco de Tiago com Jesus.

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Os católicos colocam-no como primo, já que o termo irmão, segundo eles, servia para designartambém primo. Os protestantes já o têm como meio irmão de Jesus. Entretanto ao usaremdesse mesmo termo para designar alguns dos discípulos que eram irmãos, não dizem queeram primos.

Mateus narra: “Não é este o filho do carpinteiro? e não se chama sua mãe Maria, e seusirmãos Tiago, e José, e Simão, e Judas? E não estão entre nós todas as suas irmãs? De ondelhe veio, pois, tudo isto?” (Mt 13,55-56). Não temos dúvida que eram mesmo irmãosconsanguíneos de Jesus, até mesmo, porque a cultura da época exigia da mulher muitosfilhos; caso contrário não seria uma boa esposa. Se isso estiver correto, é mais uma forterazão, para vermos que o pensamento de Tiago condiz com o de Jesus.

Tg 1,22-27: “E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-voscom falsos discursos. Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, ésemelhante ao homem que contempla ao espelho o seu rosto natural; porque secontempla a si mesmo, e vai-se, e logo se esquece de como era. Aquele, porém, queatenta bem para a lei perfeita da liberdade, e nisso persevera, não sendo ouvinteesquecidiço, mas fazedor da obra, este tal será bem-aventurado no seu feito. Sealguém entre vós cuida ser religioso, e não refreia a sua língua, antes engana o seucoração, a religião desse é vã. A religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, éesta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se dacorrupção do mundo”.

Prática das obras ou fé? Não deixa margem para alguma dúvida: “cumpridores dapalavra”. Essa colocação de Tiago é muito interessante: “A religião pura e imaculada para comDeus é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção domundo”, ou seja, prática do amor ao próximo pela realização dos atos de caridade.

Tg 2,8: “Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teupróximo como a ti mesmo, bem fazeis”.

Este pensamento é igual ao de Paulo, e corresponde, também, ao que Jesus ensinou.Onde está dito alguma coisa sobre fé? Aliás, até mesmo Moisés chegou a recomendar isso (Lv19,18).

Tg 2,14-18: “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver asobras? Porventura a fé pode salvá-lo? E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiveremfalta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos,e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virádaí? Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma. Mas diráalguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eute mostrarei a minha fé pelas minhas obras”.

Ao terminar dizendo que mostrarei a minha fé pelas minhas obras, Tiago traz o conceitoque falamos anteriormente, quando falávamos do pensamento de Paulo de ser uma féoperante. Quem tem fé deve mostrá-la com as obras que realiza. Que adianta ter fé se o irmãoa seu lado passa fome? É o questionamento incontestável de Tiago para os que dizem queapenas a fé é que salva.

Tg 2,21-23: “Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quandoofereceu sobre o altar o seu filho Isaque? Bem vês que a fé cooperou com as suasobras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada. E cumpriu-se a Escritura, que diz: Ecreu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo deDeus”.

Para provar que são as obras a base para a justificação, Tiago nos dá o exemplo deAbraão. Mostra que a fé é aperfeiçoada pelas obras.

Tg 2,26: “Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fésem obras é morta”.

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Não há o que contestar a clareza desse pensamento. É tão claro e objetivo, quecontinuamos não entendemos porque as pessoas ainda têm a coragem de dizer que é somentea fé que salva.

Não podemos deixar de citar o pensamento de Pedro, que foi um dos discípulos deJesus, inclusive, aceito por alguns como sendo o primeiro Papa, por isso devia conhecer maisprofundamente os ensinamentos do Mestre.

At 10,34-35: “Então Pedro, tomando a palavra, disse: Na verdade reconheço que Deusnão faz acepção de pessoas;mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação,o teme e pratica o que é justo”.

1Pe 1,17: “E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julgasegundo a obra de cada um, andai em temor, durante o tempo da vossaperegrinação”.

Encontramos novamente a expressão que o julgamento será “segundo a obra de cadaum”, reafirmando o pensamento de todos no cristianismo primitivo. Os homens, infelizmente,deturparam os ensinamentos de Jesus, para sua própria perdição. Também confirma que Deusnão faz acepção de pessoas, ou seja, não há privilégios junto a justiça divina.

1Pe 3,8-12: “E, finalmente, sede todos de um mesmo sentimento, compassivos,amando os irmãos, entranhavelmente misericordiosos e afáveis. Não tornandomal por mal, ou injúria por injúria; antes, pelo contrário, bendizendo; sabendo quepara isto fostes chamados, para que por herança alcanceis a bênção. Porque quemquer amar a vida, e ver os dias bons, refreie a sua língua do mal, e os seus lábios nãofalem engano. Aparte-se do mal, e faça o bem; busque a paz, e siga-a. Porque os olhosdo Senhor estão sobre os justos, E os seus ouvidos atentos às suas orações; Mas orosto do Senhor é contra os que fazem o mal”.

Recomendações que já ouvimos, só que com outras palavras, de Paulo e Tiago. Tudoisso também condiz com os ensinamentos de Jesus.

1Pe 4,8-11: “Mas, sobretudo, tende ardente amor uns para com os outros;porque o amor cobrirá a multidão de pecados. Sendo hospitaleiros uns para com osoutros, sem murmurações, cada um administre aos outros o dom como o recebeu,como bons despenseiros da multiforme graça de Deus. Se alguém falar, fale segundoas palavras de Deus; se alguém administrar, administre segundo o poder que Deus dá;para que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo, a quem pertence a glória epoder para todo o sempre. Amém”.

Agora fica mais clara a questão do amor corresponder ao sentimento de caridade paracom o próximo. Fechando: “A caridade cobre uma multidão de pecados”; é por isso que amáxima no Espiritismo é: “Fora da caridade não há salvação”, que, inclusive, é algo que todospodem fazer, independentemente de religião ou crença, ou seja, tem um caráter totalmenteuniversalista.

2Pe 1,2-10: “Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e deJesus nosso Senhor; visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito àvida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude;pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elasfiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pelaconcupiscência há no mundo. E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência,acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência atemperança, e à temperança a paciência, e à paciência a piedade, e à piedadeo amor fraternal, e ao amor fraternal a caridade. Porque, se em vós houver eabundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento denosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, nadavendo ao longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados.Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição; porque,

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fazendo isto, nunca jamais tropeçareis”.

Acompanhando o raciocínio de Pedro veremos que ele coloca a caridade entre as coisasimportantes, que devemos acrescentar à nossa fé. Dizendo, ao final, que quem não possuiessas coisas é cego, ou seja, não entendeu nada do ensinamento de Cristo e que, portanto,são “ociosos e estéreis no conhecimento de Cristo”, fechando magistralmente seu pensamento.

João, o discípulo a quem Jesus mais amava, conhecia, portanto, seus ensinamentos.

1Jo 3,17-18: “Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhecerrar as suas entranhas, como estará nele o amor de Deus? Meus filhinhos, nãoamemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade”.

Nem precisamos dizer mais nada, tão óbvio que fica a questão do amor expresso em obras.

E aqui temos de uma das visões de João, registrada no Apocalipse, o seguinte:

Ap 20,11-12: “[...] Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono. Eforam abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortosforam julgados de acordo com sua conduta, conforme o que estava escrito noslivros”.

Particularmente não gostamos muito de citar o livro Apocalipse, por achá-lo muito cheiode metáforas e com isso abre-se sua interpretação a milhares de possibilidades. Apesar disso,no passo em questão é clara o critério de separação das almas, foram “julgadas de acordo comsua conduta”, conforme o que estava escrito nos livros, ou seja, nossas ações são “registradas”para que todas elas sejam medidas e pesadas.

Da maneira de viver que os cristãos primitivos tinham, poderemos intuir sobre qual foia mensagem que entenderam como norma de conduta para salvarem-se.

At 2,42-47: “Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhãofraterna, no partir do pão e nas orações. Em todos eles havia temor, por causa dosnumerosos prodígios e sinais que os apóstolos realizavam. Todos os que abraçarama fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suaspropriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme anecessidade de cada um. Diariamente, todos juntos frequentavam o Templo e nascasas partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração.Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a cada dia o Senhoracrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação”.

Aceitavam a salvação e por isso agiram como se todos fossem verdadeiramente irmãos,ajudando uns aos outros. Chegaram ao ponto de vender os seus próprios bens para repartir odinheiro, no fundo, estavam demonstrando o amor ao próximo como a si mesmos, única“chave” que abre a porta que nos conduzirá à salvação.

Veremos agora o pensamento de Jesus e não devemos nos esquecer que o discípulonão pode ser superior ao mestre, conforme nos alertara: “Na verdade, na verdade vos digoque não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que oenviou” (Jo 13,16).

Mt 5,3: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino doscéus”.

Mt 5,5: “Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra”.

Mt 5,8: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus”.

Será que Jesus não foi tão claro assim, quanto à questão do que devemos fazer parasalvar-nos? Não se refere ele a coisas ligadas à nossa moralização, que cabe a cada umesforçar-se para fazer? E considerando o atual estado da humanidade, quando é que osmansos herdarão a Terra? Bem, pode ser que Deus mande outro dilúvio e resolva estaquestão. É mais um questionamento, que fica sem resposta, levando-se em conta que “Deusnão faz acepção de pessoas” e que tem em grau infinito a sua misericórdia e justiça.

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Mt 5,48 “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial”.

Sendo a perfeição a nossa meta, como atribuir uma outra coisa como um fator que nossalvará? Se somente o crer em Jesus fosse o suficiente, por que motivo manda-nos serperfeito, como perfeito é o Pai celestial? Mas que perfeição é essa que nos recomenda buscar?Nada mais que a perfeição do amor, uma vez que Deus é a expressão máxima do amor.

Mt 5,17-20: “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mascumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modonenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido. Qualquer,pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinaraos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que oscumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Pois eu vos digo que, se avossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reinodos céus”.

Se os que violarem um destes mandamentos será o menor no reino dos céus, sinal quetodos irão para lá, caso seja um lugar circunscrito. Portanto, a salvação é para todos, porém,condicionada a cumprir os mandamentos, mesmo que leve séculos para se conseguir isso.

Mt 7,11-14: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos,quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhaspedirem? Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lhotambém vós a eles; porque esta é a lei e os profetas. Entrai pela porta estreita;porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são osque entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que conduzà vida, e poucos são os que a encontram”.

Se dar o inferno eterno para a grande maioria das pessoas é coisa boa? Então,podemos crer que houve uma inversão de valores. A coisa é bem simples: se nós que somosmaus fazemos de tudo para dar somente coisas boas para nossos filhos, com muito mais razãoDeus nos dará, pois o seu amor é infinitamente maior que o de um pai humano. Portanto, ahipótese de inferno eterno é fruto da ignorância humana, não é uma criação de Deus.

A regra de ouro aqui estabelecida – fazer os outros o que queremos que os outros nosfaçam – é relacionada a atitude, que se todos nós aplicássemos, o mundo seria completamenteoutro. É na aplicação plena dessa lei, que iremos merecer estar junto com Deus, casocontrário, estaremos tomando uma direção errada, que nunca nos levará ao nosso objetivo.

Porta larga e porta estreita simboliza os vícios e as virtudes, são eles que abrirão ounão as “portas” do “céu”. Assim, tudo, que aqui nesse passo expõe-se, tem a ver com reformainterior, agir no bem, nada de salvação “de graça” para ninguém, mas com esforço pessoal nosentido de domar suas más paixões, de forma, que a meta de amar ao próximo como a simesmo seja atingida.

Mt 7,21-27: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, masaquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos me dirão naqueledia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome nãoexpulsamos demônios? e em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhesdirei abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais ainiquidade. Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica,assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; e desceu achuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e não caiu,porque estava edificada sobre a rocha. E aquele que ouve estas minhas palavras, enão as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a sua casa sobrea areia; e desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos, e combateram aquelacasa, e caiu, e foi grande a sua queda”.

Muitos religiosos ainda dizem que as pessoas estão salvas por pertencerem a umadeterminada Igreja ou por apenas ter fé, ou por só crer em Jesus como salvador, etc.;entretanto, parecem que fazem vistas grossas a essa passagem da Bíblia. Quem não praticaros ensinos de Jesus, não receberá recompensa alguma. É bem simples!

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Mt 16,27: “Porque o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; eentão dará a cada um segundo as suas obras”.

Como já prevíamos anteriormente a salvação para Jesus está nas obras, já que cadaum será julgado pelas suas obras e não por crer, pertencer a alguma denominação religiosa,em muito, menos porque Jesus morreu na cruz. E ainda existem pessoas querendo contradizerJesus, dizendo que são estas outras coisas que salvam, embora muitos deles, na prática diária,fazem do dízimo o instrumento de “sua própria salvação”: a financeira.

Mt 18,1-4: “Naquela hora chegaram-se a Jesus os discípulos e perguntaram: Quem é omaior no reino dos céus? Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles, edisse: Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes comocrianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, quem se tornarhumilde como esta criança, esse é o maior no reino dos céus”.

Fazer-se como crianças, significa deixar de lado as paixões, vícios, preconceitos, rixas,ódios, maledicência, intolerância, desejo de vingança, pois tudo isso representa inferioridademoral, que, certamente, é obstáculo para estarmos junto a Deus, por ser Ele a perfeição plena.E todo que nos afasta dela, consequentemente, também, nos afasta de Deus.

Mt 18,23-35: “Por isso o reino dos céus é comparado a um rei que quis tomarcontas a seus servos; e, tendo começado a tomá-las, foi-lhe apresentado um que lhedevia dez mil talentos; mas não tendo ele com que pagar, ordenou seu senhor quefossem vendidos, ele, sua mulher, seus filhos, e tudo o que tinha, e que se pagasse adívida. Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, tempaciência comigo, que tudo te pagarei. O senhor daquele servo, pois, movido decompaixão, soltou-o, e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrouum dos seus conservos, que lhe devia cem denários; e, segurando-o, o sufocava,dizendo: Paga o que me deves. Então o seu companheiro, caindo-lhe aos pés, rogava-lhe, dizendo: Tem paciência comigo, que te pagarei. Ele, porém, não quis; antes foiencerrá-lo na prisão, até que pagasse a dívida. Vendo, pois, os seus conservos o queacontecera, contristaram-se grandemente, e foram revelar tudo isso ao seu senhor.Então o seu senhor, chamando-o á sua presença, disse-lhe: Servo malvado, perdoei-tetoda aquela dívida, porque me suplicaste; não devias tu também ter compaixão do teucompanheiro, assim como eu tive compaixão de ti? E, indignado, o seu senhor oentregou aos verdugos, até que pagasse tudo o que lhe devia. Assim vos fará meuPai celestial, se de coração não perdoardes, cada um a seu irmão”.

A moral da história é que ao devedor foi dado um prazo para pagar a dívida, portanto,tinha obrigação de fazer o mesmo com aquele que lhe devia. Ainda podemos tirar disso que adívida há que ser paga, não é perdoada da forma como acreditam. O perdão de Deus existequando ele nos dá oportunidades de reparar o mal praticado. Acontecerá de igual formaconosco, quando infligirmos as leis divinas, pois será necessária a reparação, única forma deharmonizarmos com elas. Ao que não “pagarem” suas dívidas serão metidos na prisão dacarne, até que pagem.

Mt 19,16-23: “E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: 'Bom Mestre,que bem farei para conseguir a vida eterna?' E ele disse-lhe: 'Por que me chamasbom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guardaos mandamentos'. Disse-lhe ele: 'Quais?' E Jesus disse: 'Não matarás, não cometerásadultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe, e amaráso teu próximo como a ti mesmo'. Disse-lhe o jovem: 'Tudo isso tenho guardado desde aminha mocidade; que me falta ainda?' Disse-lhe Jesus: 'Se queres ser perfeito, vai,vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, esegue-me'. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitaspropriedades. Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que é difícilentrar um rico no reino dos céus”.

Nessa passagem fica nítida a questão da prática da caridade. O jovem rico tinha fé ecumpria todas as outras determinações religiosas; entretanto não se preocupava com os

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necessitados, porquanto, ainda não os amavam como a si mesmo. Daí Jesus recomendar-lhevender tudo e doar aos pobres para ter um tesouro no céu. Apegado demais aos bensterrenos, o jovem foi-se embora triste.

Mt 20,1-16: “Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, proprietário,que saiu de madrugada a contratar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou comos trabalhadores o salário de um denário por dia, e mandou-os para a sua vinha. Cercada hora terceira saiu, e viu que estavam outros, ociosos, na praça, e disse-lhes: Idetambém vós para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Outra vez saiu,cerca da hora sexta e da nona, e fez o mesmo. Igualmente, cerca da hora undécima,saiu e achou outros que lá estavam, e perguntou-lhes: Por que estais aqui ociosos o diatodo? Responderam-lhe eles: Porque ninguém nos contratou. Disse-lhes ele: Idetambém vós para a vinha. Ao anoitecer, disse o senhor da vinha ao seu mordomo:Chama os trabalhadores, e paga-lhes o salário, começando pelos últimos atéos primeiros. Chegando, pois, os que tinham ido cerca da hora undécima, receberamum denário cada um. Vindo, então, os primeiros, pensaram que haviam de recebermais; mas do mesmo modo receberam um denário cada um. E ao recebê-lo,murmuravam contra o proprietário, dizendo: Estes últimos trabalharam somente umahora, e os igualastes a nós, que suportamos a fadiga do dia inteiro e o forte calor. Masele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça; não ajustaste comigoum denário? Toma o que é teu, e vai-te; eu quero dar a este último tanto como ati. Não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu soubom? Assim os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos”.

Pelo trabalho todos receberam o mesmo pagamento, ainda que alguns tenham sidoretardatários. É o que acontecerá conosco, todos fomos chamados, os que prontamenteatenderam ao pedido, receberão mais cedo a sua recompensa, mas será exatamente a mesmaque será dada aos que demorarem a atender ao chamado. Justiça é dar para todos a mesmarecompensa, quando o esforço ou o trabalho for o mesmo, o tempo para realizar não é amedida, mas a capacidade de cada um fazer a tarefa, que lhe foi designada.

Mt 21,31-32: “Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram eles: O segundo. Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entramadiante de vós no reino de Deus. Pois João veio a vós no caminho da justiça, e nãolhe deste crédito, mas os publicanos e as meretrizes lho deram; vós, porém, vendoisto, nem depois vos arrependestes para crerdes nele”.

Essa resposta que Jesus deu aos sacerdotes e anciãos do povo é muito interessante,porquanto, ele sabia que essa “turba” fazia tudo levá-lo à morte, e mesmo assim ele diz queirão para o “reino do Deus”; porém, os publicanos e as meretrizes, ou seja, aquelas pessoasque eles consideravam gente de má vida, chegariam na frente deles. Inclusive, Jesus acusa-osde não terem arrependido e nem acreditado em João Batista. Ora, se isso não aconteceu comoé que iram merecer o “reino de Deus”, certamente, haverá outras oportunidades para que elestambém possar arrependerem-se. Portanto, o reino de Deus é “para todos”, ninguém ficará defora.

Mt 25,31-46: “E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjoscom ele, então se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidasdiante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; eporá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos queestiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino quevos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e destes-me decomer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostesver-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos comfome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimosestrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ouna prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo quequando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então dirátambém aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o

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fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; porque tive fome, e não medestes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo estrangeiro, nãome recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não mevisitastes. Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimoscom fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não teservimos? Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a umdestes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim. E irão estes para o tormentoeterno, mas os justos para a vida eterna”.

Essa passagem simboliza o dia do juízo, dia em que todos devemos prestar contas aDeus de tudo o que fizemos. Quem foi para a direita de Deus (bom lugar) foram os de fé ou osque fizeram obras? As obras exemplificadas são: dar de comer aos famintos, vestir os nus, darágua a quem tem sede, hospedar os viajantes, visitar os doentes e os prisioneiros, tudo issorepresenta atos de amor ao próximo.

No simbolismo, a separação dos bons dos maus é pela fé de cada um? Pela religião? Oupelas obras praticadas a favor do próximo? Repetimos: “FORA DA CARIDADE NÃO HÁSALVAÇÃO”.

Mc 16,14-16: “Por último, então, apareceu aos onze... disse-lhes: ’Ide por todo omundo, e pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado serásalvo; mas quem não crer será condenado’".

É de conhecimento de todos nós que os versículos 16 a 20, do capítulo 16 do Evangelhode Marcos não fazem parte de alguns manuscritos antigos (Vat. E Sin.,) (Bíblia de Jerusalém,p. 1785), portanto, trata-se de um acréscimo por conta de um autor piedoso e desconhecido.Sua redação é tão conflitante que salta aos olhos; vejamos a frase: “quem não crer serácondenado”. Para ela ser coerente com o que se afirmou antes, ou seja, “quem crer e forbatizado será salvo”, haveria de ser uma sentença negativa da seguinte forma: “Quem nãocrer e não for batizado será condenado”. A expressão “não for batizado” ficou faltando, na“inspiração” da frase bíblica.

Lc 10,25-37: “E eis que se levantou um certo doutor da lei, tentando-o, e dizendo:'Mestre, que farei para herdar a vida eterna?' E ele lhe disse: 'Que está escrito nalei? Como lês?' E, respondendo ele, disse: 'Amarás ao Senhor teu Deus de todo oteu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teuentendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo'. E disse-lhe: 'Respondestebem; faze isso, e viverás'. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse aJesus: E' quem é o meu próximo?' E, respondendo Jesus, disse: 'Descia um homem deJerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, eespancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelomesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modotambém um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas umsamaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntimacompaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e,pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; e,partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuidadele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. Qual, pois, destes trêste parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?' E ele disse: 'Oque usou de misericórdia para com ele'. Disse, pois, Jesus: 'Vai, e faze da mesmamaneira'”.

Essa parábola do Bom Samaritano é por demais conhecida de todos. Somente por ela jápoderíamos saber o que, realmente, irá salvar-nos. O sacerdote representa todos os líderesreligiosos preocupados consigo mesmo, sem nenhum sentimento de amor ao próximo. Pelolevita poderemos identificar todas as pessoas ligadas a uma determinada religião, que, apesarde possuírem alguém que os ensinem o que fazer, não fazem absolutamente nada a favor dopróximo. São ambos, sacerdote e levita, egoístas como muitos dos crentes nos dias de hoje.

O samaritano era considerado herege pelos dois religiosos que passaram, a passoslargos, diante do homem caído à beira da estrada; entretanto, é o exemplo dele que Jesus

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recomenda seguir. Foi justamente este bondoso herege que, com obras, provou que tinha maisfé que os outros dois. Ele deveria ser um ponto de referência para determinadas pessoas quevivem a criticar a crença dos outros. Fiquem certos, de uma vez por todas, que, para Deus,somente será justificado quem praticar a lei de amor; lembrem-se: “A Deus ninguém engana”(Gl 6,7).

Lc 19,1-10: “Tendo Jesus entrado em Jericó, ia atravessando a cidade. Havia ali umhomem chamado Zaqueu, o qual era chefe de publicanos e era rico. Este procuravaver quem era Jesus, e não podia, por causa da multidão, porque era de pequenaestatura. E correndo adiante, subiu a um sicômoro a fim de vê-lo, porque havia depassar por ali. Quando Jesus chegou àquele lugar, olhou para cima e disse-lhe: Zaqueu,desce depressa; porque importa que eu fique hoje em tua casa. Desceu, pois, a toda apressa, e o recebeu com alegria. Ao verem isso, todos murmuravam, dizendo: Entroupara ser hóspede de um homem pecador. Zaqueu, porém, levantando-se, disse aoSenhor: Eis aqui, Senhor, dou aos pobres metade dos meus bens; e se emalguma coisa tenho defraudado alguém, eu lho restituo quadruplicado. Disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, porquanto também este é filho deAbraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”.

Aqui, nesse passo, temos o tiro mortal na ideia da salvação ”de graça”. A fala de Jesus“hoje veio a salvação a esta casa”, é significativa, pois foi a mudança de atitude por parte deZaqueu, que levou a essa consequência, nada, portanto, de salvar-se somente por crer emJesus. Crer em Jesus ele, Zaqueu, creu, porém, foi pela sua nova postura diante da vida que asalvação chegou à sua casa. É dentro deste conceito, que “o filho do homem veio buscar esalvar o que se havia perdido”, muito diferente da salvação “de graça”, pregada por aí.

Jo 13,34-35: “Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assimcomo eu amei vocês, vocês devem se amar uns aos outros. Se vocês tiverem amoruns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos".

Se o critério para a salvação fosse outro não havia nem sentido Jesus mandar seusdiscípulos amarem uns ao outros, como ele os havia amando.

Muitas pessoas insistem em pegar frases soltas da Bíblia para tentarem justificar seuspensamentos. Ora, não há como afastar a frase do seu contexto imediato, e de todo oconjunto da Bíblia. E o que é mais curioso é que sempre dizem que somos nós é que fazemosisso.

Aos que querem isolar passagens, em Dt 28,30 temos uma que servirá como um bomexemplo: “Desposar-te-ás com uma mulher, porém outro homem dormirá com ela; edificarásuma casa, porém não morarás nela; plantarás uma vinha, porém não aproveitarás o seufruto”. Veja que ela, fora do contexto, é uma coisa absurda que Deus propõe a fazer.Entretanto, dentro do contexto é apenas uma ameaça que Deus está fazendo; vejamos noversículo 15 o início da narrativa: “Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do SENHORteu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus estatutos, quehoje te ordeno, então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão”.

O que vemos então? É pura e simplesmente “Deus” dizendo ao povo hebreu que, se nãoguardasse os seus mandamentos, Ele iria aplicar várias maldições, entre elas a do versículo30, que escolhemos para exemplo.

Essa narrativa, diga-se de passagem, está confirmando que não existe inferno, pois, seele fosse real como querem alguns, “Deus” teria dito: “se não cumprirem meus mandamentosirão para o fogo do inferno”. Até mesmo porque: “Assim, também, não é vontade de vosso Pai,que está nos céus, que um destes pequeninos se perca” (Mt 18,14). Se é vontade de Deus queninguém se perca; ninguém se perderá e pronto!

Quanto à questão da justiça divina, que muitas vezes falamos, podemos ter um bomexemplo na legislação brasileira, provavelmente a de muitos outros países, que assegura atodos os filhos (herdeiros) partes iguais na herança de seus pais, quando estes morrerem. Issotodos nós consideramos como um avanço da sociedade, pelo motivo de que, anteriormente,alguns pais davam cotas maiores, ou às vezes até tudo, para um dos filhos, em detrimento dorestante. Ora, não acreditamos que a legislação divina seja pior que a humana para dar o reino

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do céu, caso seja um lugar circunscrito, a alguns privilegiados em detrimento de quase atotalidade das pessoas que formam a humanidade terrena. É inconcebível isso!

Parece-nos que os evangélicos tomam de João e de Paulo a sua crença sobre asalvação, por isso achamos oportuno trazer ao nosso estudo as considerações que a nossaamiga Lúcia da Silveira Sardinha Pinto Souza (1966- ), ex-evangélica, fez a respeito da“salvação pela fé” a um evangélico:

A doutrina teológica central das igrejas evangélicas ensina a salvação pela féatravés da graça, por acreditar que Jesus morreu na cruz por nossos pecados.Entretanto, esta forma de salvação NÃO é ensinada em Mateus, Marcos e Lucas(Evangelhos Sinóticos), que são os Evangelhos mais antigos, embora se tratemde cópias de cópias, conforme já falamos. O Evangelho de Marcos é consideradoo mais antigo, seguido pelo de Mateus e Lucas, e então pelo de João (escritocerca de 90 anos d.C.). A doutrina da salvação pela fé e redenção vem do livrode João, o último Evangelho a ser escrito. Nos Evangelhos Sinóticos, NÃO HÁUMA ÚNICA PALAVRA sobre ter que acreditar em Jesus a fim de ir para o céu.Com exceção de Marcos 16:16, que é considerado pela maioria dos estudiososbíblicos como uma interpolação, ou uma falsificação, considerando que muitosdos primeiros manuscritos do Evangelho de Marcos não contêm este versículo,Marcos nunca escreveu nada sobre ter que acreditar que Jesus morreu por vocêou sobre "salvação pela fé". Os Evangelhos Sinóticos começaram a ser escritospor volta de 50 anos depois de Cristo. Se "ter que crer em Jesus para ser salvo"fosse a doutrina máxima do Cristianismo daquele tempo, por que é que Mateus,Marcos e Lucas não falam nada a respeito disso? Teriam omitido algo tãoimportante?

De fato, Jesus disse que tudo o que você tem que fazer para Deus perdoar osseus pecados é isto:

Mateus 6:14 "Porque se perdoardes aos homens as suas ofensas, tambémvosso Pai celeste vos perdoará".

Quando alguém pergunta a Jesus diretamente o que ele tinha que fazer paraser salvo e ter a vida eterna, Mateus claramente registra uma salvação pelasobras:

Mateus 19:16-21 "E eis que alguém, aproximando-se, lhe perguntou: Mestre,que farei eu de bom, para alcançar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Porque me perguntas acerca do que é bom? Bom, só existe um. Se queres,porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele lhe respondeu: Quais?Respondeu Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirásfalso testemunho; honra a teu pai e a tua mãe, e amarás o teu próximocomo a ti mesmo. Replicou-lhe o jovem: Tudo isso tenho observado; o queme falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teusbens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me".

Ainda em Mateus, Jesus pregou sobre as bem-aventuranças que enfatizamque aqueles que têm bom caráter e boas atitudes herdarão o Reino de Deus,que é uma outra maneira de dizer que eles irão para o céu.

Mateus 5:3 "Bem - aventurados os humildes de espírito, porque deles é oreino dos céus".

Mateus 5:4 "Bem - aventurados os que choram, porque serão consolados".

Mateus 5:5 "Bem - aventurados os mansos, porque herdarão a terra".

Mateus 5:6 "Bem - aventurados os que têm fome e sede de justiça, porqueserão fartos".

Mateus 5:7 "Bem - aventurados os misericordiosos, porque alcançarãomisericórdia".

Mateus 5:8 "Bem - aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus".

Mateus 5:9 "Bem - aventurados os pacificadores, porque serão chamadosfilhos de Deus".

Já no Evangelho de João, que foi escrito mais ou menos 40 anos depois doEvangelho de Mateus, nós temos versículos tais como:

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João 3:16 "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filhounigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vidaeterna".

João 3:18 "Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado,porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus".

João 3:36 "Por isso quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, semantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece aira de Deus".

João 8:24 "Por isso eu vos disse que morrereis nos vossos pecados; porquese não crerdes que eu sou morrereis nos vossos pecados".

João 11:25 "Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê emmim, ainda que morra, viverá".

Agora dê uma olhada no livro de Marcos. Ele também não menciona que vocêtem que acreditar em Jesus para ser salvo, exceto por um versículo no últimocapítulo de Marcos:

Marcos 16:16 "Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crerserá condenado".

Entretanto, repito, a maioria dos estudiosos acredita que este versículo éuma interpolação, ou uma falsificação, considerando que muitos dos primeirosmanuscritos do Evangelho de Marcos não contêm este versículo, e além dissoele não se encaixa com todo o resto de Marcos que não ensina a "salvação pelafé". Tirando a parte da interpolação, Marcos nunca escreveu nada sobre ter queacreditar que Jesus morreu por você, sobre salvação pela fé ou sobre o conceitode redenção. Do mesmo modo, o Evangelho de Lucas é também como oEvangelho de Mateus e de Marcos e não menciona crença na "salvação pela fé".

É claro que os evangélicos responderão dizendo que temos que colocar todosos Evangelhos juntos para se obter a história completa. Porém, os EvangelhosSinóticos começaram a ser escritos só por volta de 50 anos depois de Cristo,portanto, se a doutrina da salvação pela fé fosse ponto central da pregação deJesus, não era de se esperar que tanto Mateus quanto Marcos e Lucasescrevessem sobre isto de maneira muito clara em seus evangelhos? Por que elanão é mencionada de modo algum nos três primeiros Evangelhos? A razão lógicanos diz que eles nunca ouviram tal coisa e nem apoiavam tal ideia, porque ela sóse desenvolveu mais tarde quando os primeiros líderes cristãos decidiramadicionar tal doutrina, no então Evangelho de João.

O Evangelho de João foi o resultado do desenvolvimento da teologia da igrejadaquele tempo. É neste livro que encontramos os versículos sobre salvação pelafé, sobre nascer de novo, sobre redenção, e sobre ter que acreditar que Jesusmorreu por nossos pecados. Em muitas de suas páginas, você encontrará Jesusdizendo algo sobre ter que acreditar nele. Quando os evangélicos citamversículos do Evangelho sobre ser salvo, eles sempre se referem a João. Não éde se surpreender que para muitos evangélicos o Evangelho de João é ofavorito. Todos os versículos mencionados sobre ter fé e acreditar em Jesus sãodo Evangelho de João. Mas é muito estranho que apenas no último Evangelho aser escrito, que surgiu cerca de 90 anos d.C., seja o único a falar sobre "termosque acreditar em Jesus" para sermos salvos, isso ninguém pode negar.

A Teologia da Salvação se desenvolveu no meio da Igreja enquanto os livrose cartas do Novo Testamento ainda estavam sendo escritos. Repare que, deacordo com Marcos, Cristo era um homem; mas, de acordo com Mateus e Lucasele era um semideus; enquanto João insiste que ele era o próprio Deus. Éinteressante notar que Lucas, em seu Evangelho, por não ter conhecido Jesuspessoalmente, fez uma acurada investigação colhendo relatos das testemunhasoculares, e escreveu então a Teófilo um relato em ordem sobre tudo o que sepassou. Dos Evangelhos Sinóticos, o de Lucas é o que foi escrito de maneiramais organizada. Ele fez o que um repórter faria hoje em dia. Entrevistou astestemunhas oculares que presenciaram tudo o que aconteceu na morte eressurreição de Jesus e que também relataram tudo o que o Mestre ensinou. E ointeressante é que no relato das testemunhas oculares, NÃO HÁ NADA sobre"ter que acreditar em Jesus" para ser salvo. Isto não é estranho?

Porém, em Atos dos Apóstolos, Lucas passa a falar sobre "salvação pela fé" enão é muito difícil adivinhar o porquê disso - ele era companheiro e colaborador

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do apóstolo Paulo, aquele cuja ênfase da pregação é a "salvação pela fé". Éóbvio que quando Lucas escreveu Atos dos Apóstolos, ele já estava sob forteinfluência das ideias paulinas. A ênfase da pregação de Paulo está na salvaçãopela graça, pela fé e não pelas obras, como vemos em:

Efésios 2:8-9 "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vemde vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie".

Entretanto, Paulo jamais se encontrou com Jesus (pelo menos nãofisicamente)! Ele também nunca escreveu nada sobre o que Jesus disse. Econsiderando que ele nunca esteve com o Cristo histórico, ele obviamente nãosabia e nem era qualificado para nos contar o que o Cristo histórico tinhaensinado quando esteve na Terra.

Em compensação Tiago, que segundo a Bíblia Anotada por Scofield(Protestante), era irmão de Jesus (Mt. 13:55; Mc. 6:3; Gl. 1:18-19 "Decorridostrês anos, então subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas, e permaneci comele 15 dias; e não vi outro dos apóstolos, senão a Tiago, o irmão do Senhor"), efoi o chefe da primeira igreja cristã em Jerusalém, além de ter sido irmão desangue de Jesus e ter convivido com o Mestre, é conhecido como o apóstolo dasobras, pois a ênfase de sua carta está nas boas obras:

Tiago 2:14 "Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé,mas não tiver obras? Pode acaso semelhante fé salvá-lo?"

Tiago 2:17 "Assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta".Aqui há, claramente, duas doutrinas opostas em jogo... qual devemos seguir?

A que nos é ensinada nos Evangelhos Sinóticos e por Tiago; ou a que está noEvangelho de João, último Evangelho a ser escrito (cerca de 90 anos d.C.) e osensinos de Paulo que não conviveu e nem conheceu o Jesus histórico? Este é umquestionamento justo, não acha?" (SOUZA, L. S. S. P.http://www.apologiaespirita.org/apologia/artigos/025_Salvacao_pela_fe_ou_pelas_obras.pdf)

Antes de encerrar, não podemos deixar de falar sobre os rituais de sacrifícios ou rituaisde expiação pelo pecado. A maioria das pessoas nem tem ideia do que se fazia na época deMoisés, quando foram, supostamente, instituídos por Deus. Dizemos supostamente porque oprofeta Jeremias afirmou que: “[quando] os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisaalguma acerca de holocaustos ou sacrifícios”. (Jr 7,21-22).

Lv 1,1-9: “Iahweh chamou Moisés e da Tenda de Reunião falou-lhe, dizendo: 'Fala aosisraelitas; tu lhes dirás: Quando um de vós apresentar uma oferenda a Iahweh,podereis fazer essa oferenda com animal grande ou pequeno. Se a sua oferendaconsistir em holocausto de animal grande, oferecerá um macho sem defeito;oferecê-lo-á à entrada da Tenda da Reunião, para que seja aceito perante Iahweh.Porá a mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita para que se faça por ele orito de expiação. Em seguida imolará o novilho diante de Iahweh, e os filhos deAarão, os sacerdotes, oferecerão o sangue. Eles o derramarão por todos oslados, sobre o altar, que se encontra à entrada da Tenda da Reunião. Em seguidaesfolará a vítima e a dividirá em quartos, e os filhos de Aarão, os sacerdotes, porãofogo sobre o altar e colocarão a lenha em ordem sobre o fogo. Depois os filhos deAarão, os sacerdotes, colocarão os quartos, a cabeça e a gordura em cima da lenha queestá sobre o fogo do altar. O homem levará com água as entranhas e as patas, e osacerdote queimará tudo sobre o altar. Este holocausto será uma oferendaqueimada de agradável odor a Iahweh”. (Bíblia de Jerusalém) (a mesma coisa está emLv 1,10-13, para ofertas de gado miúdo e em Lv 1,14-17, para a de aves).

Ficamos a imaginar que “belo” quadro nós podemos “pintar” com as determinaçõesacima: sangue dos animais para tudo quanto é lado, mais parecendo com um ritual de magianegra. (Cruz!). Não podemos deixar de classificar esses rituais como próprios de religiõesprimitivas, nas quais achavam que os deuses aceitavam o sangue e a vida dos animais –algumas até de seres humanos –, como forma de perdoar seus “pecados”.

O ritual de expiação, segundo os tradutores da Bíblia de Jerusalém:

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A Expiação é o sacrifício pelo qual o homem que ofendeu a Deus,transgredindo a aliança, pode voltar à graça. O animal oferecido em sacrifício(kipper) foi interpretado como resgate (koper; cf. Ex 30,12). Nos sacrifícios deexpiação, os ritos de sangue desempenhavam papel primordial (17,11; cf.4,1+; 4,12+). Conhecida pelos assírio-babilônicos e pelos cananeus, aexpiação ligou-se aos fundamentos da Lei israelita. […] (Bíblia deJerusalém, p. 162). (grifo nosso).

É, sem dúvida alguma, plágio dos rituais de outros povos, portanto, pagãos.

Ao quererem transferir tal barbaridade à pessoa de Cristo, é onde reside o grandeproblema das religiões tradicionais, pois pensam que com um ritual totalmente pagão Deus irá“apagar” os pecados da humanidade. Da forma que vemos, são até incoerentes, por que parao sacrifício de Cristo na cruz ser algo desse tipo, faltou:

a) “Porá a mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita”;

b) “oferecerão o sangue. Eles o derramarão por todos os lados, sobre o altar”;

c) “Em seguida esfolará a vítima e a dividirá em quartos”;

d) “ o sacerdote queimará tudo sobre o altar” para que fosse “de agradável odor aIahweh”.

Tudo isso estritamente dentro das normas do ritual de expiação, mencionadas no passoacima citado (Lv 1,1-10).

Ademais, como sempre vimos dizendo, os rituais eram feitos para pecados jácometidos, nunca para pecados futuros, daí precisamos arrumar um segundo Cristo, para sersacrificado pelos pecados cometidos após a morte do primeiro Cristo; procedimento que teriaque ser feito, novamente, com um terceiro Cristo, quarto, quinto,...

E, talvez, o que vemos de maior importância, pois trata-se do valor dos sacrifícios.Considerando que “não falei nada nem dei ordem alguma sobre holocaustos e sacrifícios” (Jr7,22) e “aprendei o que significa misericórdia quero, e não sacrifícios” (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7),como atribuir algum valor expiatório aos sacrifícios, incluindo, ai, o que atribuem a Jesus?

E, finalizando, colocaremos essa frase de Jesus:

“Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vosdigo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras.Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa dasmesmas obras. Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tambémfará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas, porque eu vou para meuPai”. (Jo 14,10-12).

Veja bem: as obras que Jesus faz não vem dele, mas do Pai, e ele afirma que podemosfazer essas mesmas obras e até maiores; nos dá a certeza que as obras que fazemos serãopara cumprir a vontade de Deus. Mas, quais são as obras de Jesus? No tempo que passoujunto de nós, curou enfermos, deu vista a cegos, curou paralíticos, libertou pessoas deespíritos maus, enfim, somente obras de amor, o amor operante de que já falamos por váriasvezes.

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Toda Escritura é mesmo inspirada?

Sempre nos aparecem pessoas defendendo a origem divina da Bíblia, usando, parasustentar essa posição, da seguinte passagem:

“Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar, para corrigir,para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado paratoda boa obra”. (2Tm 3,16-17).

Ora, como foram os homens que a escreveram, retirar, dela mesma, algo para provarsua veracidade não seria agir com bom senso. É como aceitar o argumento de um falsário deque aquilo que ele fez é verdadeiro. Como já dissemos, em outras oportunidades, usar dessetipo de argumentação é ficar, literalmente, rodando em círculo. Aliás, os que fazem isso são,normalmente, aqueles que dificilmente leem alguma coisa fora do meio religioso em quevivem. Aí vale a frase: “Quem ouve um sino só escuta um som, não podendo, portanto, saberse está afinado” (LETERRE, 2004).

Essa forma de argumentação é, segundo Rodrigo Farias (?- ), do tipo “Raciocíniocircular ou Petição de Princípio”, que assim explica:

Esse é um erro comuníssimo em debates ou pregações religiosas. Trata-sesimplesmente de afirmar a mesma coisa com outras palavras. Alguns exemplos:

1. "Por que a Bíblia é a Palavra de Deus? Ora, porque ela foi inspirada pelopróprio Criador."

ou, ainda, no que eu chamaria de "variação Tostines":

2. "A Bíblia é perfeita porque é a Palavra de Deus. E como sabemos que ela éa Palavra de Deus? Pela sua perfeição."

Esse exemplo é fácil de encontrar, especialmente nos meios evangélicos maisconservadores. É importante ressaltar que ele foi posto aqui apenas para ilustrarum tipo de raciocínio falacioso muito frequente, não para desmerecer a Bíblia oua crença de quem quer que seja.

Um exemplo laico agora:3. "Eu acho que alpinismo é um esporte perigoso porque é inseguro e

arriscado."Dizer que algo é "inseguro e arriscado" não é o mesmo que dizer que ele é

"perigoso"? Ora, o que essa "explicação" acrescentou que justificasse a ideia deque alpinismo é perigoso? Nada. Simplesmente, repetiu-se a primeira afirmaçãocom outras palavras.

4. "Por que eu sou a pessoa mais indicada para o trabalho? Porque eudescobri que, dentre todos os outros candidatos, e considerando minhasqualificações, eu sou a melhor pessoa para o trabalho."

Valem as mesmas observações. Porém prestemos atenção num detalhe: àsvezes, quando a "justificativa" é muito longa, podemos nos perder e nãonotarmos que a pessoa acabou não dando evidências para aquilo que disse. Umexemplo trágico poderia ser a frase de Goebbels, propagandista do regimenazista alemão: "Uma mentira, repetida muitas vezes, acaba se tornando umaverdade." Afirmações muito repetidas podem ganhar um status tal que aspessoas podem nunca ter parado para pensar realmente no porquê deacreditarem nelas. Crenças inculcadas desde a infância ou em períodos defragilidade emocional são casos típicos. Por isso, tenhamos a máxima prudênciacom aquilo que nos chega aos ouvidos e com a maneira como abordaremoscertas crenças arraigadas num debate; antes de questionar os outros, convémdarmos uma olhada na nossa própria fé em certas premissas, que talvez nuncatenhamos analisado criticamente. (FARIAS, 2007, Internet).

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O filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), em seu livro Tratado Teológico-Político, fezuma interessante observação, que é atualíssima; vejamo-la:

Toda a gente diz que a Sagrada Escritura é a palavra de Deus que ensina aoshomens a verdadeira beatitude ou caminho da salvação: na prática, porém, oque se verifica é completamente diferente. Não há, com efeito, nada com que ovulgo pareça estar menos preocupado do que em viver segundo osensinamentos da Sagrada Escritura. É ver como andam quase todos fazendopassar por palavra de Deus as suas próprias invenções e não procuram outracoisa que não seja, a pretexto da religião, coagir os outros para que pensemcomo eles. Boa parte, inclusive, dos teólogos está preocupada é em saber comoextorquir dos Livros Sagrados as suas próprias fantasias e arbitrariedades,corroborando-as com a autoridade divina. (ESPINOSA, 2003, p. 114).

Falando a respeito das interpretações, que visam esconder as contradições existentesna Bíblia, Espinosa apresenta um argumento desconcertante, tanto quanto oportuno, qualseja:

Os comentadores, porém, na tentativa de conciliar essas contradiçõesmanifestas, inventa cada um aquilo que pode e o engenho lhe deixa, e,enquanto estão assim adorando as letras e as palavras da Escritura, mais nãofazem, como já o dissemos, que expor os autores da Bíblia ao ridículo, a pontode parecer até que eles não sabiam falar nem expor com nexo aquilo quetinham para dizer. (ESPINOSA, 2003, p. 181).

E, ainda, sobre os que creem cegamente em tudo que consta da Bíblia, não deixou,também, de fazer suas valiosas considerações, com o seguinte teor:

Julgam que é piedoso não se fiar na razão e no próprio juízo e que é ímpioduvidar daqueles que nos transmitiram os livros sagrados: mas isso não épiedade, é pura demência! Afinal, pergunto eu, o que é que os preocupa? O queé que receiam? Porventura a religião e a fé só podem ser mantidas se oshomens forem totalmente ignorantes e despedirem definitivamente a razão? Seé isso o que pensam, então é porque a Escritura lhes inspira mais medo queconfiança. (ESPINOSA, 2003, p. 225-226).

Sempre estamos recorrendo a esse renomado filósofo, porquanto, vemos muito do quefala como coisas bem atuais, que, se não o citássemos como origem, certamente, elas seriamtomadas como sendo de um autor hodierno.

Uma posição que merece ser lembrada é a dos estudiosos Russel N. Champlin (1933- )e J. M. Bentes (1932- ), constante de um dos volumes da obra Enciclopédia de Bíblia, teologiae filosofia, da qual transcrevemos os trechos:

Finalmente, devemos lembrar que as declarações de que a Bíblia nãocontém erro alicerçam-se sobre o dogma humano e levaram séculos parase desenvolver. A própria Bíblia não revindica isso para si mesma. […]

[…] Mas, supor que eles [os autores sagrados] tivessem de estar certos emtudo não passaria de dogmas humanos que precisavam de séculos para sedesenvolver. Os próprios autores não reivindicaram inerrância; e mesmoque o tivessem feito, não poderiam comprová-la. Aquele que precisa apelarpara o mito da inerrância é um infante espiritual que precisa de mamadeiraadredemente preparada. […] (CHAMPLIN e BENTES, 1995a, p. 36) (grifo nosso)

Tiro mortal: “aquele que precisa apelar para o mito da inerrância é um infante espiritualque precisa de mamadeira adredemente preparada”.

Não vamos, neste presente estudo, relacionar textos bíblicos para provar que eles nãosão inspirados, porquanto já fizemos isso em várias outras ocasiões; apenas deixaremosregistrado que nem tudo é o que nos parece ser:

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Muitos anos se passariam, porém, antes que o jeovismo se tornasse umareligião do livro. Os exilados haviam levado muitos rolos do arquivo realde Jerusalém consigo para a Babilônia, e lá estudaram e editaram essesdocumentos. Se tivessem permissão de voltar para casa, esses registros dahistória e do culto do seu povo poderiam desempenhar um importante papel narestauração da vida nacional. Mas os escribas não encaravam essesEscritos como sacrossantos e se sentiam livres para acrescentar novaspassagens, alterando-as para adequá-las à suas novas circunstâncias.Não tinham ainda noção alguma de texto sagrado. Na verdade, existiammuitas histórias no Oriente Médio sobre tábuas celestes que haviamdescido miraculosamente à terra e comunicado conhecimentos secretos,divinos. Corriam histórias em Israel sobre as pedras gravadas que Jeová dera aseu profeta Moisés, que falara com ele face a face (4). Mas os rolos do arquivode Judá não pertenciam a esse grupo e não desempenhavam nenhum papel noculto de Israel._______(4) Geo Widengren. The Ascension of the Apostle and the Heavenly Book, Uppsala eLeipzig. 1950, passim; Wilfred Cantwell Smith, What Is Scripture? A ComparativeApproach, Londres, 1993, p. 59-61.(ARMSTRONG, 2007, p. 17-18) (grifo nosso).

Embora fossem reverenciados, esses textos ainda não haviam setornado “Escritura”. As pessoas sentiam-se livres para alterar Escritosmais antigos, mas havia um cânone de livros sagrados prescritos. Mas elescomeçaram a expressar as aspirações mais elevadas da comunidade. Osdeuteronomistas que celebravam a reforma de Josias estavam convencidos deque Israel se encontrava no limiar de uma nova era gloriosa; contudo, em 622ele foi morto num conflito em o Exército egípcio. […] (ARMSTRONG, 2007, p. 30)(grifo nosso).

[…] No fim do século II, houve uma explosão de piedade apocalíptica. Emnovos textos, judeus descreveram visões escatológicas em que Deus intervinhapoderosamente nos negócios humanos, estraçalhava a presente ordem corruptae inaugurava uma nova era de justiça e pureza. Enquanto lutava para encontraruma solução, o povo de Judá dividiu-se numa miríade de seitas, cada umainsistindo que somente ela era o verdadeiro Israel. (40). Esse foi, contudo, umperíodo bastante criativo. O cânone da Bíblia ainda não fora finalizado.Ainda não havia Escritura definitiva, nenhuma ortodoxia, e poucas seitassentiam-se obrigadas a se conformar a leituras tradicionais da Lei e dosProfetas. Algumas até se sentiam em liberdade para escrever Escriturasinteiramente novas. A diversidade do final do período do Segundo Templo foirevelada quando a biblioteca da comunidade de Qumram foi descoberta em1942._______(40) Jacob Neusner, “Judaism and Christianity in the First Century”, in Philip R. Davies eRichard T. White (orgs.) A Tribute to Geza Vermes; Essays in Jewish and ChristianLiterature and History, Sheffield, 1990, p. 256-7.(ARMSTRONG, 2007, p. 46-47) (grifo nosso).

Portanto a nossa proposta aqui será apenas a análise dessa frase com a qual abrimosesse estudo. Entretanto, para uma visão geral, traremos a seguinte informação resultante dogrupo The Jesus Seminar (Seminário de Jesus), que contou, entre exegetas e teólogos, comcerca de duzentos acadêmicos, que se debruçaram, por sete anos, no exame dos Evangelhos.

Em última análise, esses acadêmicos chegaram à conclusão de que Jesusjamais disse 82% do que os evangelhos atribuem a ele. A maior parte dos 18%restantes foram considerados duvidosos, sobrando apenas 2% de dizeresincontestavelmente autênticos. (STROBEL, 2001, citando Gregory A. BOYDE,Jesus under siege, Wheaton, Victor, 1995, p. 88).

Ao que nos parece a informação de Boyde, em relação aos 2%, pode não estartotalmente correta, porquanto os percentuais apurados no Seminário de Jesus (SJ), têm outrosvalores:

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[…] Os pesquisadores do SJ chegaram a concluir que apenas 18%(dezoito por cento) do total de palavras atribuídas a Jesus nosEvangelhos podem ser realmente consideradas autênticas e que apenas16% (dezesseis por cento) do total de ações a ele atribuídas nosEvangelhos pode ser, de fato, consideradas autênticas, ou seja,aproximadamente 82% das palavras e 84% das ações atribuídas a Jesus nosEvangelhos não são verdades históricas, mas crenças cristãs (cf. FUNK & THEJESUS SEMINAR, p. 1) (SOUZA, 2011, p. 67) (grifo nosso).

Isso leva-nos a crer que Boyde pegou os 18% e deduziu 16%, sobrando os 2%, quandona realidade, isso não poderia ter sido feito, pois versam sobre temas diferentes, ou seja,enquanto um trata de 18% das palavras o outro já se refere a 16% das ações.

Mesmo levando-se em conta esses dois percentuais distintos, vê-se que a coisa é muitomais séria do que, inicialmente, poder-se-á supor.

Uma outra opinião, que reputamos de grande valor, é a do ex-evangélico Bart D.Ehrman (1955- ), porquanto ele é considerado, segundo os entendidos, a maior autoridade emBíblia do mundo. Ehrman é Ph.D. em Teologia pela Princeton University e dirige oDepartamento de Estudos Religiosos da University of North Carolina, Chapel Hill. É especialistaem Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia e heresia, manuscritos antigos e na vida deJesus.

Ehrman gravou uma série de conferências, muito populares nos Estados Unidos, para aTeaching Company, além de ser prefaciador do livro Evangelho de Judas, publicadorecentemente. Leiamos o que ele afirma em seu livro O que Jesus disse? O que Jesus nãodisse?:

[...] Eu sempre voltava a meu questionamento básico: de que nos vale dizerque a Bíblia é a palavra infalível de Deus se, de fato, não temos as palavras queDeus inspirou de modo infalível, mas apenas as palavras copiadas pelos copistas– algumas vezes corretamente, mas outras (muitas outras!) incorretamente? Deque vale dizer que os autógrafos (isto é, os originais) foram inspirados? Nós nãotemos os originais! O que temos são cópias eivadas de erros, e a vastamaioria delas são centúrias retiradas dos originais e diferentes deles,evidentemente, em milhares de modos. (EHRMAN, 2006, p. 17). (grifo nosso).

[...] Uma coisa é dizer que os originais foram inspirados, mas averdade é que não temos os originais. Então, dizer que eles foraminspirados não me serve de grande coisa, a não ser que eu possareconstruir os originais. E além disso, a vasta maioria dos cristãos, em toda ahistória da Igreja, não teve acesso aos originais, fazendo de sua inspiração umobjeto de controvérsia. Nós não apenas não temos os originais, como não temosas primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as cópias das cópiasdos originais, ou as cópias das cópias das cópias dos originais. O que temossão cópias feitas mais tarde, muito mais tarde. Na maioria das vezes,trata-se de cópias feitas séculos depois. E todas elas diferem umas dasoutras em milhares de passagens. (EHRMAN, 2006, p. 20). (grifo nosso).

Em suma, meus estudos do Novo Testamento grego e minhas pesquisas dosmanuscritos que o contêm me levaram a repensar radicalmente o meuentendimento do que é a Bíblia. Antes disso – a começar de minha experiênciade novo nascimento no ensino fundamental, passando por meu períodofundamentalista no Moody, até chegar aos meus tempos de evangélico emWheaton -, minha fé baseava-se completamente em uma certa visão da Bíbliacomo palavra infalível de Deus, integralmente inspirada. Agora, deixei de ver aBíblia desse modo. A Bíblia passou a ser para mim um livrocompletamente humano. Do mesmo modo como os copistas humanoscopiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros autoreshumanos escreveram os originais dos textos das Escrituras. Ela é umlivro humano do começo ao fim. E foi escrita por diferentes autores humanos,em diferentes épocas e em diversos lugares para atender a diferentesnecessidades. Muitos desses autores sem dúvida se sentiam inspirados por Deuspara dizer o que disseram, mas tinham suas próprias perspectivas, suas própriascrenças, seus próprios pontos de vista, suas próprias necessidades, seuspróprios desejos, suas próprias compreensões, suas próprias teologias. Tais

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perspectivas, crenças, pontos de vista, necessidades, desejos, compreensões eteologias deram forma a tudo o que eles disseram. Por todas essas razões é queesses escritores diferem um do outro. Entre outras coisas, isto significava queMarcos não disse a mesma coisa que Lucas porque não quis dar a entender omesmo que Lucas. João é diferente de Mateus – eles não são os mesmos. Pauloé diferente dos de Atos dos Apóstolos. E Tiago é diferente de Paulo. Cada autoré um autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se tratesempre de autores homens) tem a dizer. A Bíblia, feitas todas as contas, éum livro inteiramente humano.

Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo distinta davisão que eu tinha quando era um cristão evangélico – e que não é a visão damaioria dos evangélicos de hoje. (ERMAN, 2006, p. 21-22) (grifo nosso).

Mas será que Ehrman não estaria sendo radical? É o que veremos no decurso desteestudo. Ele certamente tem razão, quando diz:

[…] Para os escritores do Novo Testamento, incluindo nosso maisantigo autor, Paulo, as “escrituras” apontavam para a Bíblia judaica, acoletânea de livros que Deus dera a seu povo e que predizia a vinda do Messias,Jesus”. (EHRMAN, 2006, p. 40) (grifo nosso).

Em relação à Bíblia judaica, surge-nos um outro problema, porquanto a quantidade delivros que ela possuía não é a mesma que hoje vemos no Antigo Testamento constante dasbíblias cristãs:

Os judeus tinham outros livros, que eram também muito importantes parasua vida religiosa, como por exemplo os livros dos profetas (como Isaías,Jeremias e Amós), os poéticos (Salmos) e os históricos (como Josué e Samuel).Por fim, algum tempo depois do início do cristianismo, uma série desses livroshebraicos – vinte e dois deles – passou a ser considerada cânon sagradodas Escrituras, a Bíblia judaica atual, aceita pelos cristãos como a primeiraparte do cânon cristão, o Antigo Testamento (2)._______(2) Para um esboço da formação do cânon judaico das Escrituras, ver: SANDERS, James.“Canon, Hebrew Bible”. In: FREEDMAN, David Noel (Ed.). The anchor Bible dictionary. NewYork: Doubleday, 1998, p. 1838-1852.

(EHRMAN, 2006, p. 30) (grifo nosso).

Essa informação, sobre a quantidade de livros, pode ser confirmada em Flávio Josefo(37-103 d.C.), um historiador hebreu, autor de História dos Hebreus, obra que, talvez, possaser a fonte de Ehrman:

[...] Não pode haver, de resto, nada de mais certo do que os escritosautorizados entre nós, pois que eles não poderiam estar sujeitos a controvérsiaalguma, porque só se aprova o que os profetas escreveram há vários séculos,segundo a verdade pura, por inspiração e por movimento do espírito de Deus.Não temos pois receio de ver entre nós um grande número de livros que secontradizem. Temos somente vinte e dois que compreendem tudo o que sepassou, e que se refere a nós, desde o começo do mundo até agora, e aos quaissomos obrigados a prestar fé. Cinco são de Moisés, que refere tudo o queaconteceu até sua morte, durante perto de três mil anos e a sequência dosdescendentes de Adão. Os profetas que sucederam a esse admirável legislador,escreveram em treze outros livros, tudo o que se passou depois de sua morteaté o reinado de Artaxerxes, filho de Xerxes, rei dos persas e os quatro outroslivros, contêm hinos e cânticos feitos em louvor a Deus e preceitos para oscostumes. Escreveu-se também tudo o que se passou desde Artaxerxes até osnossos dias, mas como não se teve, como antes, uma sequência de profetas nãose lhes dá o mesmo crédito, que aos outros livros de que acabo de falar e pelosquais temos tal respeito, que ninguém jamais foi tão atrevido para tentar tirarou acrescentar, ou mesmo modificar-lhes a mínima coisa. Nós osconsideramos como divinos, chamamo-los assim: fazemos profissão deobservá-los inviolavelmente e morrer com alegria se for necessário, para prová-

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lo. [...] (JOSEFO, 1990, p. 712) (grifo nosso).

Podemos concluir que, no tempo de Josefo, o Antigo Testamento só possuía vinte e doislivros, enquanto que, hoje, na Bíblia usada pelos católicos, ele possui quarenta e seis livros, ena dos protestantes apenas trinta e nove livros.

Visando apenas completar as informações sobre Josefo, transcrevemos:

[…] Josefo oferece informações sobre o cânon de livros inspirados dosjudeus, cujo número diz reduzir-se a “somente 22” (Contra Apião 1,37-43). Ocânon conhecido por Josefo difere do da Bíblia hebraica no máximo em umúnico livro, pela omissão do Ecl ou do Ct. (BARRERA, 199, p. 194) (grifonosso).

[…] Como, quando e quem já tinha concordado que eram especiais? Emreação a esse ponto, só dispomos de um indício fragmentário, algumasafirmações feitas por Josefo na década de 90 d.C.

Nelas, Josefo, comparava as escrituras judaicas com os muitos textosconflitantes dos gregos: os judeus, dizia, ele, não tinham milhares de livrosinconsistentes, mas “apenas 22, que são devidamente reconhecidos e contêm osregistros de todos os tempos”. Ele não relacionava quais eram estes livros, masé certo que se referia aos cinco livros da lei, aos treze livros de história querecuavam até a época de Artaxerxes (todos escritos, segundo acreditava ele,pelos profetas) e aos quatro “livros de hinos a Deus e preceitos para a condutahumana” (Salmos, provérbios e, presumivelmente, o Cântico dos Cânticos e oEclesiastes). Também conhecia outros livros além desses 22, mas os consideravainferiores, embora fossem livros de história (não tinha sido escritos porprofetas). (FOX, 1996, p. 100-101) (grifo nosso).

Com isso, nós ficamos diante de uma nova encruzilhada: qual delas é a verdadeira? Ade Josefo, a dos católicos ou a dos protestantes? Optamos pela de Josefo.

Muito provavelmente temos no historiador, escritor e professor australiano GeoffreyNorman Blainey (1930- ) a razão pela qual o Novo Testamento foi juntado ao Antigo, usadopelo judaísmo:

Durante seus dois primeiros séculos de existência, o cristianismo enfrentouum obstáculo: competia com religiões criadas havia muito tempo. Os romanostendiam a apreciar o antigo. Adoravam os deuses antigos. Sua admiração porHomero, Platão e Aristóteles devia-se, em parte, ao fato de serem antigos. Osromanos questionavam o seguinte: se o cristianismo continha uma verdadevital, por que essa verdade não foi descoberta pelos grandes homens dopassado? Para vencer esse preconceito, os cristãos enfatizaram sualigação com a religião judaica, muito mais antiga. (BLAINEY, 2012, p. 43)(grifo nosso).

Achamos bem plausível essa explicação de Blainey, que transcrevemos de sua obraUma breve História do Cristianismo.

Um ponto importante, que não podemos relegar à segundo plano, é o fato de saber sePaulo, quando escrevia, estava pensando que suas cartas fariam parte das Escrituras. Sobreisso vejamos o que Karen Armstrong (1944- ), estudiosa do judaísmo, do cristianismo e doislamismo, diz:

[…] Paulo viajou muito na diáspora e fundou comunidades na Síria, na ÁsiaMenor e na Grécia, determinado a disseminar o evangelho até os confins daTerra antes que Jesus retornasse. Ele escreveu cartas a seus conversos,respondendo às suas perguntas, exortando-os e explicando a fé. Paulo nempor um instante pensou que fazia uma “Escritura”; como estavaconvencido de que Jesus retornaria ainda durante a sua vida, nuncaimaginou que as gerações futuras estudariam cuidadosamente suasepístolas. Era considerado um mestre consumado, mas tinha plena consciênciade que seu temperamento explosivo significava que não era apreciado em toda

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parte. Contudo, suas cartas às igrejas de Roma, Corinto, Galácia, Filipos eTessalônica (29) foram preservadas, e, após sua morte, no início dos anos 60,escritores cristãos que o reverenciavam escreveram em seu nome edesenvolveram suas ideias em cartas às igrejas de Éfeso e Colossos, eredigiram cartas supostamente póstumas dirigidas a Timóteo e Tito,companheiros de Paulo.______(29) A autoria da primeira epístola aos tessalonicenses é discutida; talvez ela não tenhasido escrita por Paulo.

(ARMSTRONG, 2007, p. 63-64) (grifo nosso).

Portanto, apoiar-se naquilo que, no Novo Testamento, se atribui a Paulo não é uma boaalternativa para justificar-se a inspiração divina da Bíblia. E no caso especifico das cartasdirigidas a Timóteo e a Tito, por terem sido escritas após a morte de Paulo, a única maneira depreservar a autoria delas, como sendo de Paulo, é considerá-las como resultado de umapsicografia, o que irá contrariar o dogma das igrejas cristãs sobre a impossibilidade decomunicação com os mortos.

E para complicar ainda mais a situação, nem mesmo sabe-se, com segurança, quemforam os autores de seus livros; incluindo os do Novo Testamento, mais recentes do que os daBíblia judaica:

[…] Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentosforjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é a Bíblia que estamosfalando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, é isso o queeles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foiescrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos paraenganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vistaque representavam. (EHRMAN, 2010, p. 154) (grifo nosso)

"Não sabemos quem escreveu os evangelhos. Quando apareceram, elescircularam anonimamente, e só mais tarde foram atribuídos a figurasimportantes da Igreja primitiva. (60) Os autores eram cristãos judeus, (61)que escreviam em grego e viviam nas cidades helenísticas do Império Romano.Eram não somente escritores criativos - cada um com suas tendênciasparticulares -, mas também redatores competentes, que editarammateriais anteriores. Marcos escreveu por volta de 70; Mateus e Lucas nofinal dos anos 80, e João no final dos anos 90. Os quatro evangelhos refletem oterror e a ansiedade desse período traumático. […]_______(60) Fredricksen, Jesus, p. 19.(61) Há uma crença muito difundida de que Lucas era gentio, mas não há provaincontestável disso.(ARMSTRONG, 2007, p. 71) (grifo nosso).

Se não temos certeza de quem, realmente, são os autores dos Evangelhos, como lhesatribuir origem divina, a não ser por puro fanatismo religioso?

E quanto ao Novo Testamento como um todo, é oportuno transcrever o que Ehrman dizde sua formação:

[…] Hoje, muitos cristãos podem achar que o cânon do NovoTestamento simplesmente surgiu um dia, logo após a morte de Jesus...nada mais distante da verdade. Tendo isso claro, podemos identificar aprimeira vez em que um cristão listou os vinte e sete livros do nossoNovo Testamento – nem mais, nem menos. Por mais surpreendente que possaparecer, esse cristão escrevia na segunda metade do século IV, mais oumenos trezentos anos depois que os livros do Novo Testamento tinhamsido escritos. O autor foi um poderoso bispo de Alexandria chamado Atanásio.No ano 367 E.C., Atanásio escreveu sua carta pastoral anual às igrejasegípcias sob sua jurisdição e, nela, incluiu um conselho acerca de quais livrosdeviam ser lidos como escritura nas igrejas. Ele relaciona vinte e sete livros,com exclusão de todos os demais. Essa é a primeira instância que chegou aonosso conhecimento de alguém declarando que esse nosso conjunto de

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livros era o Novo Testamento. Mas nem o próprio Atanásio resolveu aquestão de uma vez por todas. Os debates continuaram durante décadas,durante séculos até. Os livros que hoje chamamos de Novo Testamento nãoforam reunidos em um cânon e declarados Escrituras, em instância última efinal, sem que se passassem centenas de anos depois que os textos em sitinham sido produzidos. (ERMAN, 2006, p. 46) (grifo nosso).

Certamente que se os livros, que compõem o Novo Testamento, foram escritostrezentos anos antes de alguém citá-los como fazendo parte dele, muita coisa pode ter sidomudada em relação ao que realmente aconteceu, pois é sabido que “quem conta um conto,aumenta um ponto”.

Ademais, cabe-nos a pergunta: como foram escolhidos? Encontramos a resposta emPepe Rodríguez (1953- ), autor do livro Mentiras fundamentais da Igreja Católica, como aBíblia foi manipulada, do qual transcrevemos:

A seleção dos evangelhos canónicos foi feita no concílio de Niceia (325) eratificado no de Laodiceia (363). O modus operandi, ou o processoutilizado, para distinguir entre textos verdadeiros e falsos, foi, segundoa tradição, o da “eleição milagrosa”. Foram apresentados, de facto, quatroversões para justificar a preferência pelos quatro livros canónicos: 1) depois deos bispos terem rezado muito, os quatro textos voaram por si sós e forampousar-se sobre um altar; 2) puseram todos os evangelhos em competiçãosobre um altar e os apócrifos caíram ao chão, enquanto os canónicos não semexeram; 3) depois de escolhidos, os quatro foram colocados sobre o altar e foipedido a Deus que se neles houvesse qualquer palavra falsa os fizesse cair aochão, o que não sucedeu com nenhum deles; 4) o Espírito Santo, na forma deuma pomba, penetrou no recinto de Niceia e pousando no ombro de cada bisposussurrou a cada um deles quais eram os evangelhos autênticos e quais osapócrifos. Esta última versão revelaria, além do mais, que uma boa parte dosbispos presentes no concílio eram surdos ou muito incrédulos, visto ter havidogrande oposição à selecção – por voto maioritário, que não unânime – dosquatro textos canónicos actuais. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 68) (grifo nosso).

Seja lá qual tenha sido a forma de escolha, dentre as aqui apresentadas, não restadúvida que ela não teve como base nenhum critério técnico, apenas valeram-se da sorte. E énisso que acreditam ter sido inspirados... Como o fanatismo embota a inteligência daspessoas, cegando-as completamente.

Diante de tudo isso, temos que ter muito cuidado ao tirar alguma coisa das Escrituras,pois nem tudo que está lá é inspiração divina, conforme confirma-nos Paul Johnson (1928- ),autor de História do cristianismo:

[…] o estudo dos textos escriturais, aplicando os novos métodos de análisehistórica e com auxílio da filologia e da arqueologia, revelaram as Escriturascomo uma coletânea de documentos muito mais complexa do que se haviaimaginado até então – um assombroso composto de alegorias e fatos, aser peneirado como qualquer outra peça de literatura antiga. (JOHNSON,2001, p. 456) (grifo nosso).

Temos que abrir a mente para aceitar, pacificamente, essa triste realidade ou seremoslevados de roldão pelo maremoto causado pelas descobertas arqueológicas ou pelo resultadoda análise crítica dos textos bíblicos pelos especialistas.

Essa passagem foi retirada da segunda carta a Timóteo, cuja autoria alguns exegetasainda atribuem a Paulo. A nossa pesquisa, entretanto, nos remete a uma outra hipótese. O quejulgamos importante dela é que constatamos que não foi só um crítico quem colocou, sobsérias dúvidas, essa suposta autoria de Paulo. É o que passaremos a ver a partir de agora.

O primeiro da lista é Ernest Renan (1823-1892), filósofo e historiador, que, na sua obrasobre a vida apostólica de Paulo, disse:

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[...] Imperfeitas e pesadas são as Epístolas apócrifas do NovoTestamento, por exemplo as escritas a Tito e a Timóteo; [...]

[...] Cabe destacar ainda que Márcion, que em geral também se inspirou nacrítica dos textos de Paulo e que repudiava com convicção as Epístolas aTito e a Timóteo, admitira sem contestar, na sua compilação, as duas Epístolascitadas. [Colossenses e Efésios]. (RENAN, 2004a, p. 17) (grifo nosso).

Sobram as duas Epístolas a Timóteo e a Epístola a Tito. Grandes obstáculosoferece a autenticidade destas três epístolas. Eu as considero comopeças apócrifas. Para o provar, poderia demonstrar que a linguagem destestrês textos não é a de Paulo; poderia destacar uma quantidade de períodos e deexpressões ou exclusivamente próprias ou particularmente utilizadas pelo autorque, sendo características, deveriam encontrar-se em proporção análoga nasoutras epístolas de Paulo, o que não acontece. Além disso, faltam-lhes outrasexpressões, que são como a assinatura de Paulo. Poderia principalmente mostrarque estas epístolas contêm um elevado número de detalhes que não seapropriam ao autor suposto, nem aos supostos destinatários. (36) A habitualcaracterística das cartas elaborada com uma intenção doutrinária é a de que ofalsário vê o público sobre a cabeça do destinatário e escreve a este coisasmuito conhecidas, muito familiares, mas que o falsário pretende fazerconhecidas do público. As três epístolas que discutimos têm, num grau elevado,esta característica. (37) Paulo, cujas cartas autênticas são tão especiais, tãoprecisas, Paulo que, acreditando num fim do mundo próximo, nunca supõe quevirá a ser lido através dos séculos, teria sido aqui um pregador geral,despreocupado com o seu correspondente para lhe fazer sermões que nãotinham nenhuma relação com ele e dirigir-lhe um pequeno código de disciplinaeclesiástica, considerando o futuro. (38) Mas estes argumentos, que por si sóseriam decisivos, posso perfeitamente dispensá-los. Para provar a minha tese,utilizarei apenas argumentos que o sejam por assim dizer materiais; procurareidemonstrar que não existe maneira destas epístolas encaixarem-se nem noquadro conhecido nem no quadro provável da vida de Paulo. Inicialmente muitoimportante é a semelhança perfeita destas três epístolas entre si, semelhançaque nos impede a admiti-las como autênticas ou a repeli-las como apócrifas. Asparticularidades que as distinguem profundamente das outras epístolas de Paulosão as mesmas. As expressões pouco usuais ao estilo de Paulo, encontram-sepor igual em todas as três. As imperfeições, que tornam a sua linguagemindigna de Paulo, são idênticas. É esquisito que cada vez que Paulo escreve aosseus discípulos, se esqueça da sua maneira corriqueira, caindo nas mesmasdivagações, nas mesmas bobagens. As próprias ideias dão lugar a umaobservação análoga.

As três epístolas estão repletas de conselhos vagos, exortaçõesmorais de que Timóteo e Tito, familiarizados por um comércio cotidianocom as ideias do apóstolo, não tinham nenhuma necessidade. Umaespécie de gnosticismo são os erros que nelas se combatem. Nas três epístolasa preocupação do autor não muda; reconhece-se a ideia obsidiante e incansávelde uma ortodoxia já formada e de uma hierarquia já desenvolvida. Muitas vezesos três escritos repetem-se entre si (39) e copiam as outras epístolas de Paulo.(40) Sem dúvida que, se estas três epístolas foram ditadas por Paulo, todas sãode um determinado período da sua vida, (41) distante em muitos anos do tempoem que redigiu as outras epístolas. Qualquer hipótese que coloque entre estastrês epístolas um intervalo de três ou quatro anos, por exemplo, ou que coloqueentre elas algumas das outras epístolas, deve ser repudiada inteiramente. Existeapenas uma única hipótese para explicar a semelhança das três epístolas entresi e a sua dessemelhança com as outras, ou seja, que é a de que foram escritasnum espaço de tempo muito curto e muito tempo após as outras, numa épocaem que todas as circunstâncias que rodeavam o apóstolo tinham mudado, tendoele envelhecido e alterado as suas ideias e o seu estilo. A possibilidade de provaressa hipótese, não significa que se resolva a questão. O estilo de um homempode mudar; mas de um estilo o mais impressionante e inimitável que nuncaexistiu, não se passa para um estilo prolixo e sem vigor. (42) Além disso, talhipótese é formalmente destruída pelo que nós conhecemos, com segurança, davida de Paulo. A seguir, isso será demonstrado.______36 Por exemplo, as direções solenes (confronte-se com Filém., 1; e contudo Paulo eramenos amigo de Filémon do que de Tito e Timóteo); as longas dissertações que Paulo fazsobre o seu apostolado (I Tim., I, 11 e seg.; II, 7), dissertações que, sendo dirigidas a um

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discípulo, são completamente inúteis; a enumeração das suas virtudes (II Tim., 10,11); asua convicção na salvação final (II Tim. IV, 8; cf. I Cor., IV, 3-4; IX, 27) I Tim., I, 13, ébem do estilo de um discípulo de Paulo. I Tim., II, 2, não pode explicar-se nos últimosanos de Nero; devia ser escrito depois da proclamação de Vespasiano. Ibid. V, 18,encontra-se aí citada com graphé uma passagem de Lucas, X,7: ora o Evangelho de Lucasnão existia, pelo menos como graphé, antes da morte de Paulo. Por fim a organização dasigrejas, a hierarquia, o poder presbiterial e episcopal são, nessas epístolas, muito maisdesenvolvidos do que seria natural supor nos últimos anos da vida de Paulo (ver. Tit. I,5 eseg. etc.; Timóteo recebeu as insígnias espirituais pela imposição das mãos do colégio dospadres de Listres: I Tim., IV,14). A doutrina sobre o casamento I Tim., II, 15; IV,3: V,14(cf. III, 4,12; V,10) é também de uma época mais atual e está em contradição com I Cor.,VII, 8 e seg., 25 e seg. O destinatário das Epístolas a Timóteo supõe-se em Éfeso; por quenão se encontra nestas epístolas nenhuma comissão, nenhuma saudação específica paraos efésios?37 Observe-se, por exemplo, II Tim., III,10-11, ou melhor, I Tim., I,3 e seg., 20; Tit., I,5 eseg., e a menção de Pôncio Pilatos, I Tim., VI, 13 etc.38 Destaca-se a insignificância da passagem I Tim., III, 114-115, que procura mostrarrazão destas inúteis ampliações.39 Compare-se I Tim., I,4; IV,7; II Tim., II,23; Tit., III,9; I Tim. III, 2; Tit., I,7; I Tim.,IV,1 e seg., II Tim., III, 1 e seg.; I Tim., II,7; II Tim., I,11. Observe-se a analogia namaneira de introduzir no assunto. I Tim., 1,3, e Tit. I, 5.40 II Tim., I,3 (Rom., I,9), 7 (Rom., VIII,15); II,20 (Rom., IX, 21); IV, 6 (Fil., I,30; II,17;III, 12 e seg.).41 Nas duas epístolas que lhe são dirigidas observe-se que Timóteo figura como umhomem ainda jovem: I Tim., IV,12; II Tim., II,22.42 Apesar de Lamennais ter mudado muito, o seu estilo manteve sempre a mais perfeitaunidade.

(RENAN, 2004a, p. 24-26) (grifo nosso).

Na sequência, Renan faz considerações sobre estas epístolas de Paulo, demonstrandoque, pelas características e pelo conteúdo, não podem ser mesmo desse autor bíblico.

Vejamos também o que Robin Lane Fox (1946- ), escritor e professor de HistóriaAntiga, disse:

[...] as duas epístolas a Timóteo são postas sob suspeita pelo estilo, e sãopor fim desautorizadas por seu conteúdo e por sua localização (um bispo único;a falta de conhecimento de Timóteo e sua descrição descabida dosacontecimentos que o cercavam). Seus autores foram muito ousados emsua falsificação. “Pedro, apóstolo de Cristo”, “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus”,é como se dizem chamar. Talvez estivessem escrevendo o que achavam quePedro e Paulo “devessem” ter escrito, mas ainda assim mentiram para seusleitores. Se a Primeira Epístola a Timóteo é obra do século II, bem podia estarlevando em conta o terceiro Evangelho quando cita o texto sobre “o salário dotrabalhador”. Também atribuída a Paulo um texto enfático contra a ordenaçãodas mulheres: “Pois não permito que a mulher ensine, nem tenha domínio sobreo homem, mas que esteja em silêncio” (I Timóteo 2:12).

É a Segunda Epístola a Timóteo que contém o texto que os fundamentalistastanto idealizam: “Toda escritura é divinamente inspirada e proveitosa paraensinar, para repreender, para corrigir” (II Timóteo 3:16). A tradução édiscutível, bem como a autoridade do texto. Isto dá uma boa ideia dascomplexidades envolvidas na veracidade da Bíblia: o texto que foiindevidamente empregado em apoio de uma visão literal da inspiraçãodivina de toda a Bíblia é, ele próprio, obra de um autor que mentiu sobresua identidade. (FOX, 1996, p. 125-125) (grifo nosso).

Agora iremos ver, para ampliar a abrangência de nossa pesquisa, o que dizem algunstradutores bíblicos, pessoas com inegáveis conhecimentos sobre a Bíblia, cujos pensamentosdestacamos:

As cartas a Timóteo e a Tito são dirigidas a dois dos mais fiéis discípulos dePaulo (At 16,14; 2Cor 2,13). Elas dão diretivas para a organização e condutadas comunidades confiadas a eles. É por isso que se tornou costumeiro, desde oséculo XVIII, chamá-las “pastorais”. Essas cartas divergem de maneirasignificava de outras cartas paulinas. Há considerável diferença devocabulário. Muitas das palavras comuns em outras epístolas desapareceram, e

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há também uma proporção muito maior de palavras não usadas em outro lugarpor Paulo. O estilo não é mais apaixonado e entusiasta, mas mitigado eburocrático. O modo de resolver problemas mudou. Paulo simplesmente condenafalso ensinamento em lugar de argumentar persuasivamente contra ele.Finalmente, é difícil situar essas cartas na vida de Paulo, assim como éconhecida dos Atos dos apóstolos. É compreensível, portanto, que aautenticidade das pastorais seja disputada.

Muitos explicam as diferenças postulando um Paulo mais velho, que deve terdado muito mais espaço a um secretário (possivelmente Lucas, 2Tm 4,11) elevando em conta que nada conhecemos da vida de Paulo subsequente à sualibertação da prisão em Roma. Igual número de estudiosos rejeitam taisargumentos como subjetivos demais, e sustenta que as pastorais foramcompostas por um discípulo de Paulo no fim do século I para tratar deproblemas de uma igreja muito diferente. Embora não impossível em si mesma,esta hipótese não é sustentada por qualquer evidência de que cartas pseudo-epigráficas fossem comuns e aceitáveis. 2Ts 2,2 e Ap 22,18 mostram que osprimeiros cristãos viam a necessidade de distinguir entre escritos autênticos eforjados. Uma posição intermediária entre esses dois extremos defende-a poruma minoria que acredita que um leal seguidor de Paulo herdou três cartas queTimóteo e Tito conservaram até sua morte. Ele então expandi essas cartas,acrescentando o que pensava que seria dito por Paulo diante das circunstânciasmudadas da igreja. As pastorais então não são do Apóstolo, mas contêmfragmentos paulinos autênticos (p.e., 2Tm 1,15-18; 4,9-15; Tt 3,12-14). A faltade concordância sobre a extensão e número dos fragmentos é uma sériafraqueza dessa hipótese, que também falha em prover qualquer evidênciacontemporânea desta pratica editorial postulada.

A natureza insatisfatória de todas as hipóteses correntes sugere que poderiater sido um engano tratar as pastorais como um bloco unificado. Nessaaproximação, observações e afirmações são confusas. O que é visto comoverdadeiro para uma carta é afirmado como válido para as outras duas. Oexame minucioso, porém, revela que 1Tm e Tt são mais próximas um da outrado que ambas a 2Tm. Se a última é considerada separadamente, não háobjeções convincentes de elas terem sido escritas por Paulo. Dirigidas aindivíduo, sua divergência em relação a epístolas dirigidas a igrejas tem seuparalelo nas diferenças entre as cartas de Inácio à igreja de Esmirna e ao seubispo, Policarpo. Uma vez que se reconheça que 2Tm 4,6 não é referência àmorte próxima, 2Tm se coloca naturalmente dentro do último período da prisãode Paulo em Roma (At 28,16s), quando olhava para a liberdade.

Se 2Tm é aceita como autêntica, o isolamento de 1Tm e Tt no corpus paulinotorna-se cada vez mais marcante. Em particular elas desenvolvem uma visão doministério que contrasta vividamente com o ethos missionário dinâmico de Paulo(1Ts 1,6-8; Fl 2,13-16. Predomina um conceito burguês pela respeitabilidade eaceitação, 1Tm 2,1-2; 6,2; Tt 3,1-2), e as qualidades dos ministros são asrequeridas de todos os burocratas (1Tm 3,1-13; Tt 1,5-9). Deste modo houveuma evolução definida nas igrejas paulinas. Uma igreja entusiástica radiantecom o Espírito tornou-se um cômodo lar. Todavia, embora a liderançacarismática tenha dado caminho á direção institucional, não há evidência do tipodo episcopado monárquico atestado por Inácio de Antioquia. A autoridade naigreja é colegial, e os “bispos” (1Tm 3,22-5), têm as mesmas funções que os“anciãos” (1Tm 5,17). Cada “ancião” precisa ter as qualidades de “bispo” (Tt1,6-9). Assim, 1Tm e Tt não deveriam ser datadas muito tardiamente noprimeiro século. (Bíblia de Jerusalém, Introdução às Epístolas de Paulo, p. 1963-1964).

“Epístolas pastorais” é o nome dado aos escritos dirigidos a Timóteo e a Tito,companheiros de missão de Paulo. A expressão caracteriza bem a naturezadestas cartas, desde o II século atribuídas a Paulo. Elas contêm instruções eexortações sobre o reto desempenho do ministério pastoral nas comunidades,sobre a organização da Igreja e a luta contra as heresias. As três epístolasforam escritas na mesma época e pelo mesmo autor.

[...]É difícil enquadrar estes dados na vida de Paulo como nos é

conhecida dos Atos e de suas epístolas autênticas. Agora Paulo estáalgemado (2,9), enquanto na primeira prisão em Roma vivia em prisãodomiciliar (At 28,16). Clemente Romano e o Cânon de Muratori admitem quePaulo, depois da primeira prisão romana, pregou na Espanha por certo tempo,

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foi novamente preso e por fim martirizado em Roma. Ora, as epístolas pastoraissupõem viagens de Paulo no Oriente após a prisão romana (61-63). Este quadrohistórico depõe contra a autenticidade das Pastorais. Além do mais, ateologia, a linguagem e o estilo, a organização da Igreja e a luta contraas heresias dificilmente se coadunam com o que sabemos de Paulo aseu tempo. A hipótese de um secretário ter redigido as epístolas enquantoPaulo estava preso a segunda vez em Roma, ou de que nestas epístolas temosfragmentos autênticos, são insuficientes para afastar as sérias objeções dacrítica contra a autenticidade das Pastorais.

O mais provável é que o seu autor não seja um discípulo imediato dePaulo, mas um admirador da segunda ou da terceira geração cristã.Segundo o costume da literatura helenística e judaica da época, produziu estascartas pseudônimas, atribuindo-as a Paulo a quem considerava o maior dosapóstolos. O motivo que o levou a escrever foi o desejo de ser fiel ao evangelhopregado pelo grande apóstolo, diante da ameaça das heresias e da necessidadede organizar bem as comunidades a fim de esconjurar os perigos para a féapostólica. Neste sentido a 1Tm e Tt podem ser vistas como a primeiraconstituição eclesiástica, e a 2Tm como o discurso de despedida, ou otestamento espiritual de Paulo às vésperas de seu martírio. A data decomposição pode ser colocada pelo ano 100. (Bíblia Sagrada Editora Vozes, AsEpístolas Pastorais, p. 1407) (grifo nosso).

Introdução[...]Supôs-se que as cartas fossem de Paulo, e acreditou-se nisso durante

séculos. Porém surgiu a crítica dos estudiosos e, com ela, a dúvida, comoindicam as passagens em que Paulo fala de si na primeira pessoa (p. ex. 1Tm1,11.12-16; 2Tm 4,6-8.16-18 etc.)Autenticidade

As razões contra a autenticidade são fortes; referem-se à linguagem,à mentalidade, à situação proposta, e afetam as três cartas como corpo.

a) O vocabulário . Segundo um cálculo cuidadoso, de 848 palavras que as trêscartas usam, 306 não aparecem no resto do chamado corpo paulino, 175 nãoconstam no resto do NT; faltam palavras típicas do vocabulário paulino, outrasfrequentes escasseiam, algumas mudam de significado; díkaios significahonrado, pístis é um corpo de doutrina. Estilo: apararam-se a vivacidade, apaixão e o movimento; não argumenta para provar seu ensinamento; predominauma tonalidade pacata e suave. A língua grega é mais depurada, mais próximado grego helenístico.

b) Mentalidade. A preocupação central das três cartas é garantir as igrejascomo instituição, conservar o ensinamento tradicional e defender-se dasameaças de desvio doutrinal. Para isso é preciso nomear chefes competentes econfiáveis, manter a ordem e a concórdia, regular o culto. O autor repete oadjetivo “são/sã” para referir-se à ortodoxia, fala da “verdade”, repete que“alguns se afastaram de...” Ao ímpeto de evangelizar sucede aqui o esforço pormanter.

c) O quadro em que as cartas se inserem não combina com o que sabemospor outras informações de Paulo. Se o apóstolo vai morrer em breve (2Tm 4,5-8), como pode chamar Timóteo de jovem (1Tm 4,11)? O ancião deverá ter saídoda sua prisão romana para retomar sua atividade no Mediterrâneo oriental.

Essas razões somadas são mais fortes, mas não determinantes. Osdefensores da autenticidade as rebatem, principalmente com evasivas; que comos anos o vigor e a combatividade de Paulo amainaram; que um tema diferenteexigia uma linguagem nova; que se valia de um secretário redator; que seupensamento tinha evoluído. E que em nossa informação sobre a atividade dePaulo há importantes lacunas, e aí as cartas poderiam encaixar-se. As réplicassão fracas: um ancião muda radicalmente de vocabulário? Esquece seus temaspreferidos?Teorias sobre o autor

Aceitando como mais provável a não autenticidade das três cartas,pensa-se que é um discípulo imediato ou mediato, da geração seguinte.Recorre à pseudonímia, procedimento corrente naquela época. Dá às suasinstruções a forma de carta, escolhendo como destinatários dois insignespersonagens do círculo paulino. Aceitamos que pôde utilizar material original do

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apóstolo. Provavelmente sentia-se herdeiro legítimo de Paulo; talvez os rivaiscitassem Paulo, deformando seu ensinamento.

Não faltou a teoria de um compilador que teria composto e dado forma àstrês cartas com fragmentos autênticos do apóstolo.

Nada do que foi dito diminui o valor canônico das Pastorais. São parteintegrante do NT, reconhecida sempre por todas as confissões religiosas. [...]

A data de composição seria o final do séc. I ou começo do séc. II. (Bíblia doPeregrino, Introdução - Primeira e segunda carta a Timóteo e carta a Tito, p.2847-2848) (grifo nosso).

Assim, por mais três fontes diferentes, chegamos à mesma conclusão de que a Epístola,em que se encontra o passo citado, visando tornar evidente a inspiração bíblica como sendodivina, não é de Paulo.

À guisa de informação, detalhamos: Bíblia do Peregrino versão do Pe. Luís AlonsoSchökel (1920-1998), contou com uma equipe de quatorze colaboradores; Bíblia Sagrada Ed.Vozes, coordenação geral Ludovico Garmus (1939- ), junto com mais onze pessoas, entretradutores e revisores, e a Bíblia de Jerusalém, em cujo corpo, composto de católicos eprotestantes, havia três coordenadores e um número de dezoito tradutores/revisores. Como sevê é uma quantidade respeitável de pessoas envolvidas, cuja competência não poder-se-á sercolocada em dúvida.

Em nosso estudo, deparamos com essa frase escrita de duas maneiras diferentes, asquais transcrevemos apenas o início, porquanto, é ele o que nos interessa neste momento:

“Toda Escritura é inspirada por Deus é útil para instruir, [...]”

“Toda Escritura divinamente inspirada, é útil para ensinar, [...]”

A primeira frase é encontrada nas Bíblias pelas versões Mundo Cristão, Traduções NovoMundo, Santuário, Vozes, Ave Maria e Paulus: de Jerusalém, do Peregrino e Pastoral e asegunda pelas versões Barsa, Loyola, Paulinas, SBB.

A equipe de tradutores da Bíblia de Jerusalém, que sabemos ter sido composta deexegetas católicos e protestantes, informa-nos (p. 2077) que, na Vulgata, ela se encontradessa forma:

“Toda Escritura, inspirada por Deus, é útil.”

É interessante observar a mudança na redação dessa frase, porquanto dizer que “TodaEscritura é inspirada por Deus” é uma coisa bem diferente daquilo que se quer afirmar dizendo“Toda Escritura divinamente inspirada”. A ideia que se passa nessa última frase é que existemoutras Escrituras, porém não inspiradas. Ora, isto vai ao encontro da afirmação de Paulo (e daconclusão apresentada pelos vários biblicistas citados), viabilizando-a como a de maior chancede ser a mais próxima do original. Isso agora compromete os próprios tradutores bíblicos,deixando-nos a crer na possibilidade de que mais lhes preocupavam eram suas ideias do que ados autores aos quais traduziam.

A afirmação pela frase de que “Toda Escritura é inspirada por Deus”, aproxima-sedaquilo que Faria, denominou de “raciocínio do '8 ou 80'”, no caso, por conta do significado dapalavra “toda” nesta frase.

Não podemos deixar de mencionar que há um passo que pode muito bem ser usadopara defender a ideia de que, pelo menos, as cartas de Paulo faziam parte das Escrituras;vejamo-lo primeiro pela versão da Bíblia de Jerusalém:

2Pe 3,16: “Isto mesmo faz ele em todas as cartas, ao falar nelas desse tema. Éverdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que osignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras (d), para aprópria perdição”.

Em nota explicam-nos, os tradutores:

(d) Lit.; “o resto das Escrituras”, com o que se compra a compilação feita econhecida dessas cartas. Temos aqui um dos primeiros indícios de

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equivalência entre os escritos cristãos e os livros do AT (cf. 1Mc 12,9+,1Rs 5,27+). (Bíblia de Jerusalém, p. 2124) (grifo nosso).

Ao verem algo que parece justificar pontos defendidos pelas Igrejas, os nobrestradutores não levaram em conta fatos importantes que podem derrubar, e de fato derrubam,aquilo que querem defender como verdade, conforme iremos ver.

Estranhamos o fato de alguma obra ser considerada “Escritura”, pois todas as vezes queo termo Escrituras foi usado se refere ao Antigo Testamento, o que podemos corroborar comGeza Vermes:

[...] Finalmente, as cartas de Paulo, que já formavam um corpo literário, sãochamadas de “Escrituras” (3:15-16). Em todos os outros livros do NovoTestamento, e mesmo no cristianismo posterior, só o Velho Testamentoostenta este título. (VERMES, 2006, P. 137) (grifo nosso).

Isso nos remete à conclusão que tal fato pode ter sido construído depois, possivelmentealgum copista tentando referendar as cartas de Paulo como também inspiradas.

Por outro lado, os que ainda quiserem continuar aceitando o passo de Paulo a Timóteo(2Tm 3,16-17), devem ser pelo menos coerente, e considerar como Escritura inspirada apenaso Antigo Testamento.

Em qualquer estudo de textos bíblicos é prudente vermos como constam em outrasBíblias o texto que queremos analisar, pois, geralmente, encontraremos coisas beminteressantes.

Temos em mãos três Bíblias da Edições Paulinas (1957, 1977 e 1980), tradução de Pe.Matos Soares, das quais iremos transcrever o teor:

2Pe 3,16: “Como também (faz) em todas as suas cartas, em que fala disto, nas quaishá algumas coisas difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes adulteram(como também as outras Escrituras) para usa própria perdição”. (Bíblia SagradaPaulinas 1977, p. 1333; 1980, p. 1333).

O texto das três seria idêntico, não fosse o da edição mais antiga (1957), ter a mais aexpressão “(na fé)”, entremeio as palavras “inconstantes” e “adulteraram”; mas isso éinsignificante e nem vem mesmo ao caso. O que queremos destacar é que um dos trechos queestá em parênteses, mais especificamente o seguimento “como também as outrasEscrituras”. Um texto bíblico colocado entre parênteses, geralmente, ocorre porque se tratade glosa (Bíblia de Jerusalém, p. 15), que é entendida como:

GLOSA. Diz-se de um texto, em geral de poucas palavras, que nãopertence à obra original do autor mas foi acrescentado por outros(glosadores). A finalidade de uma glosa é explicar o texto existente.Inicialmente as glosas eram escritas à margem do texto. Mais tarde os copistasas introduziram no próprio texto. As modernas edições críticas dos textosoriginais, que são a base para as traduções vernáculas modernas, procurameliminar tais glosas. (Bíblia Vozes, p. 1525) (grifo nosso)

Comparando-se o texto da Edições Paulinas com o da Bíblia de Jerusalém, vemos que aglosa já não é mais colocada entre parênteses, passando a fazer parte do texto. Ora, isso équerer levar o leitor a acreditar como inspirado um texto que é obra de um copista piedoso.

Em razão disso, não teria nenhum sentido pegar esse passo de Pedro, pois delebaseiam-se numa glosa, ou seja, um acréscimo, para justificar que as cartas de Paulo já tinha“características” de Escrituras. Um exemplo disso é o que consta nesta nota:

16. As outras Escrituras: significa que no tempo do autor desta carta pelomenos um grupo de cartas paulinas Já era considerado de valor igual aodos outros livros da Escritura. Este é "um versículo muito importante, poiscontém em germe a doutrina da inspiração e da canonicidade do Novo

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Testamento e, em segundo lugar, a regra hermenêutica que condena o livreexame na interpretação dos textos sagrados. Pedro mostra que conhececerto número de cartas paulinas e em parte as supõe conhecidas dos leitores.Isto nos deixa perceber que nas igrejas eram recolhidos como sagrados osescritos dos Apóstolos. É o começo da história da Cânone neotestamentário' (G.Saldarini). (Bíblia Sagrada – Paulinas, 1977, p. 1333) (grifo nosso).

Se, como disse Pe. Matos Soares, a regra de hermenêutica condena o livro exame, hátambém que se considerar, no mínimo, o contexto histórico bem como a origem e autoria dotexto para, primeiramente, termos certeza se é autêntico ou não. O que temos encontrado éafirmações de que exegetas modernos não aceitam a Segunda carta de Pedro como autêntica.A título de exemplo, transcrevemos:

[…] Mas há outras complicações que põem em dúvida a autenticidade esugerem data mais tardia. A linguagem apresenta notáveis diferenças emrelação a 1Pe. Todo o cap. 2 é retomada, livre mas patente, da epístola deJudas. A coleção das epístolas de Paulo parece já formada (3,15s). O grupoapostólico é posto em paralelo com o grupo profético e o autor fala como se nãofizesse parte deles (3,2). Estas dificuldades autorizam certas dúvidas quesurgiram desde a antiguidade. Não apenas o uso da epístola não é atestadocom certeza antes do séc. III, mas também alguns a rejeitaram, como otestemunham Orígenes, Eusébio e Jerônimo. Além disso, muitos críticosmodernos recusam-se, por sua vez, a atribuí-la a são Pedro, e é difícilnão lhes dar razão. […] (Bíblia de Jerusalém, p. 2105) (grifo nosso).

O autor se identifica como “Simão Pedro” (1,1) e “testemunha” de Cristo(1,16-18). Mas, ao contrário da 1Pd que foi logo aceita como autêntica ecanônica, sobre a 2Pd já na Igreja antiga pairaram dúvidas devido àgrande diferença de linguagem entre as duas epístolas. A tardiaaceitação da epístola pelas igrejas orientais e ocidentais (Séc. V/VI) e asua dependência da epístola de Judas, composta após a morte de S.Pedro, levou a maioria dos exegetas a negar a autenticidade da 2Pd.(Bíblia Vozes, p. 1439) (grifo nosso).

A Segunda Epístola de Pedro, longe de ser uma obra do apóstolo maisantigo de Jesus, é provavelmente a composição mais recente do NovoTestamento, datada de 125 d.C., senão depois. A análise literária mostraque foi composta depois da Epístola de Judas (escrita por volta de 100d.C.), pela qual foi visivelmente influenciada. Além disso, o documentoevidencia um desencanto conspícuo nas fileiras dos fiéis, causado pelaprolongada demora do retorno de Jesus. O próprio autor não esperavatestemunhar a Parusia (2Pd 1:14-15). As alusões a uma massa de falsosensinamentos indica um crescimento do gnosticismo, o que aponta para o séculoII. […] (VERMES, 2006, P. 137) (grifo nosso).

O que não entendemos é o fato de mesmo sabendo que o autor da carta não é Pedro,por que motivo ainda a consideram inspirada? A culpa disso, certamente, é o dogmatismo,que, infelizmente, não deixa as pessoas enxergarem as coisas de um outro ângulo, pelo qualpoder-se-ia descobrir o que é realmente verdadeiro ou não.

O que se percebe dos que se apressam em apontar textos da Bíblia, para justificar suaorigem divina, é que não se dão ao trabalho de pesquisa, não analisam nada. E questionar?Nem pensar! Já que, para eles, tudo que lá se encontra é absolutamente verdadeiro. É claroque, diante dessa premissa, certamente não conseguirão ver nenhum erro ou contradição, pormais óbvios que sejam.

Apenas cabe-nos apresentar alguma coisa visando a corroborar tudo quanto foicolocado anteriormente, já que, pela consistência e coerência, inclusive, quanto ao númerosignificativo de exegetas envolvidos nas traduções, revisões e estudos bíblicos aqui citados,nos alinhamos com as opiniões mostradas neste estudo

Começaremos por um questionamento bem simples: será que o termo “Escritura”, ditopor Paulo, se refere à Bíblia como um todo? A resposta iremos encontrar na explicação aopasso 2Tm 3,15-16: “Neste tempo, o NT estava ainda em período de gestação. Por isso, otermo 'Escrituras' refere-se, em concreto aos livros do AT”. (Bíblia Sagrada Edição Santuário,

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p. 1768). Isso é um golpe mortal naquilo que se apresenta como forte indício da inspiraçãodivina ser “capa a capa”. Mas estaria essa informação coerente com os textos bíblicos? Sim,pois Paulo foi, acima de tudo, um ferrenho defensor do Evangelho e que, ao mesmo tempo,combatia a Lei.

Pode-se, por exemplo, vê-lo, num corpo a corpo, contra a circuncisão, ritual judaico,contido no Antigo Testamento (Lv 12,3) que determinava que todos os meninos deveriam sercircuncidados, aos oito dias de nascido. Isso era aplicado, talvez por analogia, aos convertidosnão procedentes do judaísmo. Assim é que, nos primórdios do cristianismo, queriam aplicaressa lei aos que se convertiam a essa nova crença; mas que ainda não haviam sidocircuncidados. A atitude de Paulo, quanto a isso, foi radical: “De resto, cada um continuevivendo na condição em que o Senhor o colocou, tal como vivia quando foi chamado. É o queordeno em todas as igrejas. Alguém foi chamado à fé quando já era circuncidado? Não procuredisfarçar a sua circuncisão. Alguém não era circuncidado quando foi chamado à fé? Não sefaça circuncidar. Não tem nenhuma importância estar ou não estar circuncidado. O queimporta é observar os mandamentos de Deus” (1Cor 7,17-19).

Seu combate à legislação mosaica ainda poderá ser visto em:

Rm 7,4-6: “Meus irmãos, o mesmo acontece com vocês: pelo corpo de Cristo, vocêsmorreram para a Lei, a fim de pertencerem a outro, que ressuscitou dos mortos, eassim produzirem frutos para Deus. De fato, quando vivíamos submetidos a instintosegoístas, as paixões pecaminosas serviam-se da Lei para agir em nossos membros, afim de que produzíssemos frutos para a morte. Mas agora, morrendo para aquilo quenos aprisionava, fomos libertos da Lei, a fim de servirmos sob o regime novo doEspírito, e não mais sob o velho regime da letra”.

Gl 2,21: “Portanto, não torno inútil a graça de Deus, porque, se a justiça vematravés da Lei, então Cristo morreu em vão”.

E o próprio Jesus, também estabelece essa divisão, entre a nova lei e a lei mosaica,quando disse que “a Lei e Profetas vigoraram até João” (Lc 16,16), ou seja, esse foi o período– de Moisés a João Batista -, no qual ela teve valor como regra religiosa, depois, só aquilo queestiver relacionado à missão de Jesus que foi a de implantar o Evangelho. Essa sim, foi agrande preocupação de Paulo, conforme, para exemplo, podemos ver nessas passagens:

Rm 1,1: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo e escolhido paraanunciar o Evangelho de Deus,”

Rm 1,16: “Não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para asalvação de todo aquele que acredita, do judeu em primeiro lugar, mas também dogrego”.

Rm 10,16: “Mas, nem todos obedeceram ao Evangelho. Isaías diz: 'Senhor, quemacreditou em nossa pregação?'"

Rm 15,16: “Sou ministro de Jesus Cristo entre os pagãos, e a minha função sagradaé anunciar o Evangelho de Deus, a fim de que os pagãos se tornem oferta aceita esantificada pelo Espírito Santo”.

1Cor 1,17: “De fato, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar oEvangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil acruz de Cristo”.

1Cor 9,16: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; pelo contrário, éuma necessidade que me foi imposta. Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!”.

1Cor 15,2: “É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem domodo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.

Ef 1,13: “Em Cristo, também vocês ouviram a Palavra da verdade, o Evangelho queos salva [...]”

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2Ts 1,6-8: “Deus fará o que é justo: vai mandar tribulações para aqueles que osoprimem, e a vocês, que são agora oprimidos, como também a nós, ele dará descanso,quando o Senhor Jesus se manifestar. Ele virá do céu com seus anjos poderosos, emmeio a uma chama ardente. Virá para vingar-se daqueles que não conhecem a Deus enão obedecem ao Evangelho do Senhor Jesus”.

Deixaremos aos que, porventura, ainda queiram alegar que Paulo pregava a validadedas “Escrituras”, como um todo, o ensejo de nos apresentarem as passagens em que eleestaria dando essa orientação. Nem mesmo a podemos considerar como sendo toda arevelação divina, pois Cristo não deixou dúvida quanto a isso ao afirmar: “Tenho ainda muitoque vos dizer, mas não podeis agora suportar” (Jo 16,12), reservando, portanto, para o futurooutras revelações, quando passariam a ter melhores condições de assimilá-las.

E, para finalizar, vemos que todas as opiniões, que citamos neste estudo, a respeito deserem outros os autores das epístolas mencionadas, são, de fato, coerentes, o que poderemosconfirmar com o próprio Paulo que reclamara sobre isso; vejamos:

2Ts 2,1-3: Agora, irmãos, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e ao nossoencontro com ele, pedimos a vocês o seguinte: não se deixem perturbar tão facilmente!Nem se assustem, como se o Dia do Senhor estivesse para chegar logo, mesmo queisso esteja sendo veiculado por alguma suposta inspiração, palavra, ou cartaatribuída a nós. Não se deixem enganar de nenhum modo!

Assim, não há alternativa mais coerente, senão aquela de aceitar a hipótese levantadapor Renan de que as três cartas pastorais (as duas a Timóteo e uma a Tito) são, sem dúvidaalguma, apócrifas. A consequência disso é que, por tabela, a pessoa encarregada de escolheros livros para comporem a “Vulgata”, S. Jerônimo (c. 347-420), fatalmente, também, ele nãoestava “totalmente” inspirado pelo Espírito Santo, segundo afirmou Clemente VIII (Papa de1592 a 1605), derrubando todo o alicerce dos que advogam tal coisa.

O biblicista José Reis Chaves (1935- ) trata deste assunto em seu livro A Face Ocultadas Religiões, ele, pessoalmente, nos resumiu da seguinte forma:

É óbvio que se existisse a tal de inspiração tal qual dizem, São Jerônimo teriaque ser o mais inspirado, pois foi ele que escolheu os livros tidos comocanônicos (legais), verdadeiros, o que não aconteceu com os apócrifos (ocultos,desconhecidos), para formar a Vulgata. Lembremo-nos de que a Vulgata jáexistia, mas foi a de São Jerônimo que se tornou oficial e aprovada pelo PapaDâmaso e passou a ser a Bíblia do cristianismo, com seu Velho e NovoTestamentos.

Por tudo isso, e, especialmente, por vários outros textos, nos quais estudamosinúmeras outras passagens bíblicas, acabam derrubando, inevitavelmente, e a contragosto demuitos bibliólatras, a crença literal de que é a palavra de Deus e de que ela é toda inspiradapor Deus, colocando a Bíblia, como um livro de cunho eminentemente humano. Certamente,que nossa opinião, reconhecemos, não tem mesmo um grande valor, mas, pelo menos, ela vaiao encontro da conclusão pessoal a que também chegou Ehrman, considerado por muitosestudiosos como sendo a maior autoridade em Bíblia do mundo. Nosso conhecimento, pois,nem de longe se pode comparar com o dele.

Antes de finalizar esse estudo, voltemos, mais uma vez, ao eminente filósofo holandês:

[...] Não quero, no entanto, acusar de impiedade os adeptos das váriasseitas por adaptarem às suas opiniões as palavras da Escritura. [...] Acuso-os denão querer reconhecer aos outros a mesma liberdade e perseguir como inimigosde Deus todos os que não pensam como eles, por mais honestos e praticantesda verdadeira virtude que sejam, ao mesmo tempo que estimam como eleitosde Deus os que os seguem em tudo, ainda quando se trata de pessoasmoralmente incapazes. (ESPINOSA, 2003, p. 215).

[...] A fé, portanto, concede a cada um a máxima liberdade de filosofar, detal modo que se pode, sem cometer nenhum crime, pensar o que se quisersobre todas as coisas. As únicas pessoas que ela condena como heréticas e

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cismáticas são as que ensinam opiniões que incitem à insubmissão, ao ódio, àsdissensões e à cólera; em contrapartida, só considera fiéis aqueles que, tantoquanto a sua razão e as suas capacidades lhes permitem, espalham a justiça e acaridade. (ESPINOSA, 2003, p. 222).

Ao encerrar este estudo, convém deixar bem explícito que o nosso objetivo, desde oinício, é somente a busca da verdade, aliás, essa deveria ser a meta de todos nós. Plena razãotem o teólogo alemão Holger Kersten (1951- ), quando disse:

Uma pessoa que frequenta uma igreja cristã não pode deixar de assumiruma postura crítica, frente à proliferação de obscuros artigos de fé, e dosdeveres e obrigações que a envolvem. Sem termos tido outros conhecimentos, epor termos crescido sob a única e exclusiva influência do estabelecido, somoslevados a acreditar que, por subsistirem há tanto tempo, devem,necessariamente, ser verdade. (KERSTEN, 1988, p. 12-13).

Em hipótese alguma deveremos deixar de procurar a verdade, porquanto, é atravésdisso que estaremos indo ao encontro dessas palavras de Jesus: “conhecereis a verdade, e averdade vos libertará” (Jo 8,32).

Descobrimos um pensamento de Paulo, do qual temos, frequentemente, nos utilizado, eque é: “o Senhor é o Espírito; e onde se acha o Espírito do Senhor aí existe a liberdade” (2Cor3,17). Isso que nos leva à conclusão de que, onde não existe liberdade, o Espírito do Senhornão se encontra. Mas o que isso tem a ver com o assunto em pauta? Poderá alguém nosperguntar. Em princípio nada, mas quando ficamos sabendo o que ocorre “por detrás dosbastidores”, vemos sua aplicação prática. Leiamos o seguinte relato:

Bruce me convenceu a tentar me tornar um cristão “sério” e a me dedicarpor inteiro à fé cristã. Isso significava estudar Escrituras em período integral noMoody Bible Institute, o que, entre outras coisas, implicaria uma drásticamudança de estilo de vida. ...matriculei-me no Moody, entrei e lá permaneci atéo segundo semestre de 1973.

A experiência no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia bíblica,o que significava encarar muito estudo bíblico e vários cursos de teologiasistemática. Ensinava-se uma só perspectiva em todos esses cursos, subscritapor todos os professores (eles todos assinavam um termo de compromisso) epor todos os estudantes (nós também o assinávamos): a Bíblia é a palavrainfalível de Deus. Ela não contém erros. É completamente inspirada e é, emtodos os seus termos, “inspiração verbal plena”. Todos os cursos que fizpressupunham e ensinavam e ensinavam essa perspectiva; qualquer outra eraconsiderada desviante e até mesmo herética. Acho que alguém pode chamarisso de lavagem cerebral. [...] (EHRMAN, 2006, p. 14) (grifo nosso).

Entendemos, assim, que, com esse modesto estudo, temos boas chances de convencera muitos, mas não aos doutos e críticos, já que estamos cientes de que a “técnica de lavagemcerebral” se aplica por ai a mancheias, o que resulta na validade do ditado popular: “o piorcego é aquele que não quer ver”.

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O Consolador veio no Pentecostes?

Os teólogos, se não todos, pelo menos na sua grande maioria, afirmam que oConsolador prometido por Jesus (Jo 14,16) teria vindo no dia de Pentecostes (At 2,1-4); quemsabe se não buscaram apoio a isso no documento apócrifo denominado Caverna dos Tesouros,do qual extraímos:

Decidiram jejuar, até receberem todos juntos o Espírito, o Paráclito, no dia dePentecostes, ali mesmo onde estavam reunidos. Foram-lhes distribuídas línguas,e cada um partiu para ensinar os povos, de acordo com a língua que lhes foradada;... (TRICCA, Apócrifos III, p. 100).

Se isso for verdade, então a base para essa afirmação é tirada de uma fonteconsiderada não inspirada, colocando, portanto, em sérios apuros os que assim pensam.

O primeiro ponto importante a se levantar é aquele em que vamos demonstrar que oConsolador não é o Espírito Santo, porquanto, àquela época, nem ele nem essa terminologiaexistiam, uma vez que é uma criação posterior para sustentar o dogma da Trindade. Em toda aBíblia a passagem Mt 28,19-20 é a única em que se nomeiam as supostas pessoas daTrindade.

Sabemos que o dogma da Trindade se iniciou no Concílio Ecumênico de Niceia, em 325,quando Jesus foi divinizado; a providência seguinte foi também dar status de Deus ao EspíritoSanto, fato que ocorreu no Concílio de Constantinopla, em 381. (CHAVES, 2006). Depois, foisó ajustar os textos do Novo Testamento a essa nova realidade; aí, onde havia “um” espíritosanto (puro), transformaram em “o” Espírito Santo, eleito a terceira pessoa da Trindade.

Ademais, estudiosos bíblicos têm esse passo de Mateus (28,19-20) como umainterpolação. Por exemplo, o historiador e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém,David Flusser (1917-2000), que lecionou no Departamento de Religião Comparada, por maisde 50 anos, nascido na Áustria, estudioso da literatura clássica e talmúdica, e conhecedor de26 idiomas, informa que:

De acordo com os manuscritos de Mateus que foram preservados, o Jesusressuscitado ordenou aos seus discípulos batizar todas as nações “em nome doPai e do Filho e do Espírito Santo”. A fórmula trinitária franca, aqui, é de fatonotável, mas já foi mostrado que a ordem para batizar e a fórmulatrinitária faltam em todas as citações das passagens de Mateus nosescritos de Eusébio anteriores ao Concílio de Niceia. O texto de Eusébio deMt 28:19-20 antes de Niceia era o seguinte: “Ide e tornai todas as naçõesdiscípulas em meu nome, ensinando-as a observar tudo o que vos ordenei”.Parece que Eusébio encontrou essa forma do texto nos códices da famosabiblioteca cristã em Cesareia. 75 Esse texto mais curto está completo e coerente.Seu sentido é claro e tem seus méritos óbvios: diz que o Jesus ressuscitadoordenou que seus discípulos instruíssem todas as nações em seu nome, o quesignifica que os discípulos deveriam ensinar a doutrina de seu mestre, depois desua morte, tal como a receberam dele. (FLUSSER, 2001, p. 156). (grifo nosso).

Transcreveremos a nota (75) em que Flusser coloca sua base de informação:

Ver D. Flusser, "The Conclusion of Matthew in a New Jewish ChristianSource", Annual of the Swedish Theological lnstitute, vol. V, 1967, Leiden, 1967,pp. 110-20; Benjamin J. Hubbard, “The Matthean Redaction of a PrimitiveApostolic Commissioning", SBL, Dissertation Series 19, Montana, 1974. Maistestemunho da conclusão não-trinitária de Mateus está preservado numtexto copta (ver E. Budge, Miscelleaneous Coptic Texts, Londres, 1915, pp. 58

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e seguintes, 628 e 636), onde é descrita uma controvérsia entre Cirilo deJerusalém e um monge herético. "E o patriarca Cirilo disse ao monge: 'Quem temandou pregar essas coisas?' E o monge lhe disse: 'O Cristo disse: Ide a todo omundo e pregai a todas as nações em Meu nome em cada lugar". O texto écitado por Morcon Smith, Clement of Alexandria and a Secret Cospel of Mark,Harvard University Press, Cambridge, Mass, 1973, pp. 342-6. (FLUSSER, 2001,p. 170).

Na sequência, Flusser diz que “um testemunho adicional das versões mais curtas de Mt28:19-20a foi descoberto há pouco tempo numa fonte judeu-cristã...” (FLUSSER, 2001, p.156), citando como fonte: Sh. Pinès, “The Jewish Christians of the Early Centuries ofChristianity According to a New Source”, The Israel Academy of Sciences and HumanitiesProceedings, vol. II, nº 13, Jerusalém, 1966, p. 25. (FLUSSER, 2001, p. 170).

Em sua obra apologética intitulada Contra Celso (cerca de 248) Orígenes(185-254),refutando a esse filósofo pagão, cita inúmeras passagens bíblicas, entre as quais Mt 28,19:“Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos” (ORÍGENES, 2004, p. 154). Oque prova incontestavelmente que a expressão “batizando-os em nome do Pai, do Filho e doEspírito Santo” é uma interpolação que foi colocada posteriormente para se justificar o dogmada Trindade.

Essa interpolação é até fácil de ser comprovada, pois, enquanto no versículo serecomendava batizar “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), os discípulossó o faziam “em nome de Jesus” (At 2,37; 10,48; 19,5), do qual também se utilizavam paraexpulsar os espíritos (At 16,18).

Por outro lado, não foi por mera coincidência que esse acréscimo esteja no último passodo Evangelho de Mateus; certamente, como não encontraram outro lugar melhor para situá-loacharam por bem colocá-lo ali mesmo, bem no final. Então, fica aí demonstrado, de formaclara, que essa expressão é uma interpolação. Assim, qualquer relação que se queiraestabelecer entre o Consolador e o Espírito Santo não faz sentido algum.

Um outro ponto, também não menos importante, é que devemos situar as coisas notempo próprio. Assim, não é válido usar o Evangelho de João para justificar alguma coisa emLucas, pois, como sabemos, os Evangelhos foram escritos em épocas diferentes. Segundo oprof. Julio Trebolle Barrer (?- ), Marcos por volta de 65 a 70, Lucas entre 70 e 80, Mateus noperíodo de 70 e 80, e, finalmente, João, no ano de 90 (BARRERA, 1995, p. 287); mas é bomressaltar que os estudiosos não se entendem quanto a essas datas. Desse modo, depois damorte de Jesus, até um certo período, os textos eram utilizados isoladamente; isso deve teracontecido por não haver necessidade, à época, de uma “uniformização” das descrições dosfatos acontecidos com Jesus, já que não havia condições de se estabelecer uma sistematizaçãono sentido de tornar os escritos esparsos em um único corpo doutrinário dos ensinamentosdeixados pelo Mestre. O que pudemos corroborar com J. Lentsman (1908-1967):

Assim, cada evangelho era endereçado a um meio determinado, etinha limitada, desse modo, sua esfera de ação a uma ou outra região.Sua inclusão no cânone deu-se muito mais tarde, como consequência de umaescolha dos escritos cristãos mais autorizados aos olhos dos crentes.(LENTSMAN, 1963, p. 38) (grifo nosso).

Mas, com a sistematização desses ensinamentos, visando dar uma característicasinóptica aos Evangelhos, certamente houve uma “necessidade” (para não dizer conveniência)de algumas “adequações” de alguns textos a algumas interpretações dos dirigentes religiososde então. Vejamos:

Quanto aos livros do Novo Testamento, houve também certa confusão, já quealém dos livros inspirados, circulavam outros que gozavam também de muitoprestígio entre as comunidades cristãs, alguns dos quais atribuídos aos própriosApóstolos. Em compensação, alguns dos livros inspirados não eram aceitos comotais por pessoas de prestígio na própria Igreja.

Os Concílios de Hipona e de Cartago, celebrados em fins do séc. IV, pelaprimeira vez apresentaram uma lista oficial dos livros inspirados, tanto

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do Novo como do Antigo Testamento, entre os quais se incluíram osdeuterocanônicos também do Novo, que são: Epístolas de S. Tiago, 2ª e 3ª deS. João, de S. Judas, 2ª de S. Pedro, aos Hebreus e o Apocalipse.

Como nenhum desses concílios africanos, por seu caráter local, implicasse aautoridade oficial da Igreja universal, houve necessidade de se proclamar denovo, em forma solene, a doutrina tradicional católica, o que se fez no ConcílioEcumênico de Florença, celebrado no ano de 1441 e, posteriormente, no deTrento em 1546, onde se enumeram de forma definitiva os livros que constituema Bíblia. (Bíblia Barsa – A Igreja e a Bíblia, p. xii). (grifo nosso).

Então, somente após o final do séc. IV, é que temos algo próximo da Bíblia como aconhecemos hoje. E para ser mais específico, leiamos:

No ano de 367 E.C., Atanásio escreveu sua carta pastoral anual às igrejasegípcias sob sua jurisdição e, nela, incluiu um conselho acerca de quais livrosdeviam ser lidos como escritura nas igrejas. Ele relaciona nossos vinte e setelivros, com exclusão de todos os demais. Essa é a primeira instância que chegouao nosso conhecimento de alguém declarando que esse novo conjunto de livrosera o Novo Testamento. (EHRMAN, 2006, p. 46).

Isso significa que não assiste razão aos que, querendo interpretar uma passagem,relacionam, no sentido de completar, um escritor com outro. A se aceitar isso, então,preferimos ficar com a opinião de Orígenes de Alexandria (185-254), considerado um dos “Paisda Igreja”, porquanto foi um expoente do cristianismo nascente. Vejamos o que ele disse:

E como as práticas legais eram uma figura, penso eu, e a verdade era o queo Espírito Santo lhes ensinara, foi dito: “Quando vier o Espírito de Verdade, elevos conduzirá à verdade plena” (Jo 16,13); como se dissesse: à verdade integraldas realidades das quais, não possuindo senão as figuras, vós acreditáveisadorar a Deus com a verdadeira adoração. De acordo com a promessa deJesus, o Espírito de Verdade veio sobre Pedro e lhe disse, a respeito dosquadrúpedes e répteis da terra e dos pássaros do céu: “Levanta-te, Pedro, imolae come!” Ele voltou a si, embora ainda imbuído de superstição, pois mesmo aoouvir a voz divina ele responde: “De modo algum, Senhor, pois jamais comialguma coisa impura e profana”. E lhe ensinou a doutrina sobre os alimentosverdadeiros e espirituais com estas palavras: “Ao que Deus purificou, nãochames tu de profano”. E depois desta visão, o Espírito de Verdade, conduzindoPedro “à verdade plena”, lhe disse “o muito que vos dizer” que ele não podia“suportar enquanto Jesus estava ainda presente segundo a carne. (ORÍGENES,p. 122-123). (grifo nosso).

E é por isso que afirmamos que cada um deles tem que se explicar por si mesmo.Sendo assim, ou seja, que temos que relacionar o autor com ele mesmo, fomos buscarprimeiramente Lucas. Em seu Evangelho pudemos encontrar apenas duas passagens quepoderíamos entender como alguma promessa sendo feita: a primeira é onde João Batista dizque “Ele é quem batizará vocês com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3,16); e a segunda équando Jesus recomenda aos discípulos não se preocuparem com o que irão falar, pois “nessahora o Espírito Santo ensinará o que vocês devem dizer” (Lc 12,12). Ambas não servem desuporte, pelo simples motivo de que falam em Espírito Santo, que, conforme demonstramos,esse epíteto não “existia”, ainda.

Jesus ressurreto, entre outras coisas, disse aos discípulos: “Agora eu lhes enviareiaquele que meu Pai prometeu. Por isso, fiquem esperando na cidade, até que vocês sejamrevestidos da força do alto". (Lc 24,49), por que não Ele não falou “revestidos do EspíritoSanto”? Muito estranho! Mas vejamos a opinião de um exegeta sobre esse versículo:

Lc 24,49: “... envio sobre vós a promessa de meu Pai...” A promessaque se cumpriu no dia de Pentecostes, antecipa também, neste passo bíblico, adeclaração mais completa que se vê no livro de Atos, que Lucas tencionavaescrever, a fim de completar a sua obra em dois volumes, que versa sobre asorigens do cristianismo (Lucas-Atos); e não é mesmo impossível que Lucas já

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tivesse dado início a essa obra, em algum estágio preliminar. Este versículo éparalelo a Atos 1,4-5, 8; 2,1-13. A promessa feita pelo Pai, que é o próprioEspírito Santo, não é claramente definida nos evangelhos sinópticos,mas poderemos aceitar o trecho de Luc. 11,13 como indicação sobre isso; e nãohá que duvidar que a mensagem de João Batista, na tradição evangélica maisprimitiva, conforme nos é dada em Marc. 1;8 - “mas ele vos batizará com oEspírito Santo...” - deve ser compreendida como paralela à promessa aquiregistrada. Trata-se, por conseguinte, da tradição evangélica mais remota. Oevangelho de João a anuncia de forma ainda mais clara. (ver João 14:16 e15:26). A ordem dada aos discípulos de se demorarem em Jerusalém, até quese cumprisse essa promessa, é paralela à passagem de Atos 1:4. (CHAMPLIN,2005b, vol. 2, p. 247). (grifo nosso).

Observamos que o autor diz que a promessa não é claramente definida nos evangelhossinópticos, embora tente, de alguma forma, estabelecer uma ligação dela com o Evangelho deJoão. O que ele não percebeu é que não poderia relacionar essa passagem de Lucas ao queconsta em João, pelas razões já expostas.

Em Atos dos Apóstolos, Lucas já narra da seguinte forma:

At 1,4-8: “...'Não se afastem de Jerusalém. Esperem que se realize a promessa doPai, da qual vocês ouviram falar: 'João batizou com água; vocês, porém, dentro depoucos dias, serão batizados com o Espírito Santo'... Mas o Espírito Santo descerásobre vocês, e dele receberão força para serem as minhas testemunhas...'".

Pelo que se pode entender, a promessa aqui é o batismo com o Espírito Santo;entretanto, está se prometendo o que não existe. No dia de Pentecostes é, quando se supõe,que houve o cumprimento dessa promessa; leiamos:

At 2,1-4: “Quando chegou o dia de Pentecostes, todos eles estavam reunidos nomesmo lugar. De repente, veio do céu um barulho como o sopro de um forte vendaval,e encheu a casa onde eles se encontravam. Apareceram então umas como línguas defogo, que se espalharam e foram pousar sobre cada um deles. Todos ficaram repletosdo Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhesconcedia que falassem”.

Novamente aparece a expressão Espírito Santo, que só poderia ser entendida como “umespírito santo”, não a pessoa da Trindade que, conforme provado, não se falava dela ainda. Secada um falava conforme o espírito lhe concedia, já não é mais o Santo; então, temos, nessaocorrência, um fenômeno mediúnico, onde cada um falava sob a ação de um espírito. Aqui,percebe-se, claramente, a mediunidade em propulsão espontânea a todos os discípulos. Fatoidêntico se repetirá novamente nos episódios conhecidos como o “Pentecostes samaritano” (At8,14-17) e o “Pentecostes dos pagãos” (At 10,44-46) (CHAMPLIN, 2005c, vol. 3, p. 45).Vejamo-los:

At 8,14-17: “Os apóstolos, que estavam em Jerusalém, souberam que a Samariaacolhera a Palavra de Deus, e enviaram para lá Pedro e João. Ao chegarem, Pedro eJoão rezaram pelos samaritanos, a fim de que eles recebessem o Espírito Santo. Defato, o Espírito ainda não viera sobre nenhum deles; e os samaritanos tinham apenasrecebido o batismo em nome do Senhor Jesus. Então Pedro e João impuseram as mãossobre os samaritanos, e eles receberam o Espírito Santo”.

At 10,44-46: “Pedro ainda estava falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todosos que ouviam a Palavra. Os fiéis de origem judaica, que tinham ido com Pedro, ficaramadmirados de que o dom do Espírito Santo também fosse derramado sobre ospagãos. De fato, eles os ouviam falar em línguas estranhas e louvar a grandezade Deus...”

Por isso, então, poder-se-á concluir, numa boa lógica, que, a supor seja o Espírito Santoo Consolador, ele veio por três vezes; a primeira aos discípulos (At 2,1-4), aos quais apromessa foi feita, e duas agora, nessas passagens, de uma forma generalizada. Assim, emqual delas deve-se ter como sendo o cumprimento da promessa de sua volta? Fica aí a nossa

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dúvida, porque a que se considera a primeira (At 2,1-4), os próprios textos bíblicos arelacionam a uma profecia de Joel, conforme se verá.

Em relação ao Pentecostes narrado em At 2,1, temos duas observações importantes. Aprimeira é que, na própria Bíblia, esse fato não é relacionado à promessa do Consolador, mas auma outra bem mais antiga; leiamos:

At 2,14-18: “Então Pedro ...falou em voz alta: 'Homens da Judeia e todos vocês que seencontram em Jerusalém! Compreendam o que está acontecendo e prestem atençãonas minhas palavras: ...está acontecendo aquilo que o profeta Joel anunciou:'Nos últimos dias, diz o Senhor, eu derramarei o meu Espírito sobre todas aspessoas. Os filhos e filhas de vocês vão profetizar, os jovens terão visões e os anciãosterão sonhos. E, naqueles dias, derramarei o meu Espírito também sobre meus servose servas, e eles profetizarão”.

Se aqui está se relacionando o fenômeno do Pentecostes à profecia de Joel, que viveuno século VIII a.C.; então, não está reservado o direito a ninguém de mudar isso, pararelacioná-lo ao cumprimento da promessa do envio do Consolador. Podemos confirmar comRussell N. Champlin (1933- ):

No dia de Pentecoste, o Espírito Santo desceu sobre todos quantos estavamreunidos no mesmo cenáculo, num total de cerca de cento e vinte pessoas. Nãose há de duvidar que essa dádiva do Espírito envolvendo mais do que os dozeapóstolos, segundo fica subentendido no trecho de Atos 2:14, como tambémna profecia de Joel, conforme Simão Pedro mencionou em seu sermão, comointerpretação daquela extraordinária ocorrência, que acabara de suceder. (VerAtos 2:16-21 e Joel 2:28-32). Essa profecia revela-nos como o Espíritohaveria de ser derramado sobre toda a carne, de modo pleno etransbordante. Os cento e vinte irmãos reunidos no cenáculo, pois, foram osprimeiros a experimentar isso. (Champlin, 2005c, vol. 3, p. 45) (grifo nosso).

Comprova-se, então, como sendo a realização da profecia de Joel.

A segunda observação é que, no dia citado como o Pentecostes, o fenômeno podemesmo nem ter ocorrido, conforme se pode ver na explicação dada a respeito de At 2,1-13,cujo teor é: “O relato é simbólico. De fato, quando o autor escreveu, as comunidades cristãs jáse haviam espalhado por todas as regiões aqui mencionadas”. (Bíblia Sagrada Pastoral, p.1391). Certamente agiram com prudência em não dizer diretamente que o dito fenômeno nãoocorreu, preferindo ir pelo caminho do simbólico, para salvar a Bíblia da contradição do textobíblico com os fatos realmente ocorridos.

Como em Lucas não encontramos nada, quem sabe se agora, ao analisarmos João,possamos encontrar algo?... Leiamos a passagem relacionada à promessa:

Jo 14,15-26: "'Se me amais, guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, eele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja sempre convosco, o Espírito daVerdade, que o mundo não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós oconhecereis, porque ele habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos,voltarei para vós outros... Respondeu Jesus: '... Isto vos tenho dito, estando aindaconvosco; mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome,esse vos ensinará todas as cousas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito'”.

O que significa Consolador? Segundo Champlin, a palavra Consolador significa “alguémchamado para o lado de outrem, a fim de ajudar” (CHAMPLIN, 2005b, vol. 2, p. 534).

Interessante essa afirmação de que enviaria “outro”; é sinal que Jesus se consideravacomo sendo um Consolador. E muito curioso, também, é que a cidade onde Jesus fixouresidência, que se tornou centro do seu ministério, chamava-se Cafarnaum, que, segundoPastorino, significa “cidade do Consolador” (PASTORINO, vol. 1, 1964a, p. 139).

Neste passo Jesus também afirma que voltará. Se aqui o Consolador é especificadocomo o Espírito da Verdade, por que mais à frente ele passa a ser o Espírito Santo, epíteto

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esse que nem existia? Certamente que é por uma interpolação; ou, quem sabe, se esse últimotambém não seria o Espírito de Verdade, que sofreu uma modificação na sua terminologia?...

Jo 15,26-27: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai,o Espírito da Verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim; e vóstambém testemunhareis, porque estais comigo desde o princípio”.

Aqui se reafirma a identidade do Consolador como sendo o Espírito da Verdade,acrescentando que ele dará testemunho de Jesus. Um detalhe, que depois voltaremos a falar, éque Jesus afirma que os discípulos também iriam testemunhar.

Jo 16,7-11: “Mas eu vos digo a verdade: ‘Convém-vos que eu vá, porque se eu nãofor, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei.Quando ele vier convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo: do pecado,porque não creem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me vereis mais;do juízo, porque o príncipe desse mundo já está julgado’”.

Percebemos que há uma estreita relação entre a vinda do Consolador com a questão deJesus ter que partir, o que se justifica, porquanto Ele mesmo é quem o enviaria ou, quemsabe, voltaria para cumprir sua promessa: “Não vos deixarei órfãos, voltarei para vósoutros (Jo 14,18); inclusive, como está dito no passo, que ainda estabelece a missão doConsolador.

Jo 16,12-14: "Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora;quando vier, porém, o Espírito da Verdade, ele vos guiará a toda a verdade;porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará ascousas que hão de vir. Ele me glorificará porque há de receber do que é meu, e vo-lohá de anunciar”.

Jesus afirma que não falou tudo que era para ser dito aos discípulos, e que a missão doEspírito da Verdade, o Consolador, seria também para que fosse completado o seuensinamento.

Vejamos agora, a última passagem de João, na qual se vê a manifestação do EspíritoSanto:

Jo 20,19-23: “Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadasas portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dosjudeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: 'A paz esteja com vocês'. Dizendoisso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos ficaram contentes por ver oSenhor. Jesus disse de novo para eles: 'A paz esteja com vocês. Assim como o Pai meenviou, eu também envio vocês'. Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo:“Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serãoperdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados”.

O fato aqui relatado aconteceu exatamente no mesmo dia em que Jesus ressuscitou, oprimeiro dia da semana; é, então, o dia de domingo, ou seja, o terceiro dia após ter sidosepultado. Nele Jesus afirma que o Pai o enviou e sopra sobre os discípulos o “Espírito Santo”.Assim, a promessa que João citou anteriormente foi cumprida aqui nesse momento, segundo aforma de entendimento dos adeptos das religiões tradicionais.

Nesse ponto, iremos ver, em A Gênese, como Allan Kardec (1804-1869) abordou sobreo assunto, já que isso foi objeto de sua preocupação:

Anunciação do Consolador

35. Se me amais, guardai os meus mandamentos - e eu pedirei a meu Pai eele vos enviará outro Consolador, a fim de que fique eternamente convosco: - OEspírito de Verdade que o mundo não pode receber, porque não o vê; vós,porém, o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós. - Mas oConsolador, que é o Santo Espírito, que meu Pai enviará em meu nome, vosensinará todas as coisas e fará vos lembreis de tudo o que vos tenho dito. (S.

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João, 14:15 a 17 e 26. - O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. VI.).36. - Entretanto, digo-vos a verdade: Convém que eu me vá, porquanto, se

eu não me for, o Consolador não vos virá; eu, porém, me vou e vo-lo enviarei. -E, quando ele vier, convencerá o mundo no que respeita ao pecado, à justiça eao juízo: - no que respeita ao pecado, por não terem acreditado em mim; - noque respeita à justiça, porque me vou para meu Pai e não mais me vereis; noque respeita ao juízo, porque já está julgado o príncipe deste mundo.

Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas presentemente não as podeissuportar.

Quando vier esse Espírito de Verdade, ele vos ensinará toda a verdade,porquanto não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tenha escutado e vosanunciará as coisas porvindouras.

Ele me glorificará, porque receberá do que está em mim e vo-lo anunciará.(S. João, 16:7 a 14.).

37 - Esta predição, não há contestar, é uma das mais importantes, do pontode vista religioso, porquanto comprova, sem a possibilidade do menor equívoco,que Jesus não disse tudo o que tinha a dizer, pela razão de que não o teriamcompreendido nem mesmo seus apóstolos, visto que a eles é que o Mestre sedirigia. Se lhes houvesse dado instruções secretas, os Evangelhos fariamreferência a tais instruções. Ora, desde que ele não disse tudo a seus apóstolos,os sucessores destes não terão podido saber mais do que eles, com relação aoque foi dito; ter-se-ão possivelmente enganado, quanto ao sentido das palavrasdo Senhor, ou dado interpretação falsa aos seus pensamentos, muitas vezesvelados sob a forma parabólica. As religiões que se fundaram no Evangelhonão podem, pois, dizer-se possuidoras de toda a verdade, porquanto ele,Jesus, reservou para si a completação ulterior de seus ensinamentos. Oprincípio da imutabilidade, em que elas se firmam, constitui um desmentido àspróprias palavras do Cristo.

Sob o nome de Consolador e de Espírito de Verdade, Jesus anunciou a vindadaquele que havia de ensinar todas as coisas e de lembrar o que ele dissera.Logo, não estava completo o seu ensino. E, ao demais, prevê não só que ficariaesquecido, como também que seria desvirtuado o que por ele fora dito, vistoque o Espírito de Verdade viria tudo lembrar e, de combinação com Elias,restabelecer todas as coisas, isto é, pô-las de acordo com o verdadeiropensamento de seus ensinos.

38 - Quando terá de vir esse novo revelador? É evidente que se, na época emque Jesus falava, os homens não se achavam em estado de compreender ascoisas que lhe restavam a dizer, não seria em alguns anos apenas que poderiamadquirir as luzes necessárias a entendê-las. Para a inteligência de certas partesdo Evangelho, excluídos os preceitos morais, faziam-se mister conhecimentosque só o progresso das ciências facultaria e que tinham de ser obra do tempo ede muitas gerações. Se, portanto, o novo Messias tivesse vindo pouco tempodepois do Cristo, houvera encontrado o terreno ainda nas mesmas condições enão teria feito mais do que o mesmo Cristo. Ora, desde aquela época até osnossos dias, nenhuma grande revelação se produziu que haja completado oEvangelho e elucidado suas partes obscuras, indício seguro de que o Enviadoainda não aparecera.

39 - Qual deverá ser esse Enviado? Dizendo: “Pedirei a meu Pai e ele vosenviará outro Consolador”, Jesus claramente indica que esse Consoladornão seria ele, pois, do contrário, dissera: “Voltarei a completar o que vos tenhoensinado”. Não só tal não disse, como acrescentou: A fim de que fiqueeternamente convosco e ele estará em vós. Esta proposição não poderiareferir-se a uma individualidade encarnada, visto que não poderia ficareternamente conosco, nem, ainda menos, estar em nós; compreendemo-la,porém, muito bem com referência a uma doutrina, a qual, com efeito, quando atenhamos assimilado, poderá estar eternamente em nós. O Consolador é,pois, segundo o pensamento de Jesus, a personificação de uma doutrinasoberanamente consoladora, cujo inspirador há de ser o Espírito deVerdade.

40 - O Espiritismo realiza, como ficou demonstrado (cap. 1, nº 30),todas as condições do Consolador que Jesus prometeu. Não é umadoutrina individual, nem de concepção humana; ninguém pode dizer-se seucriador. É fruto do ensino coletivo dos Espíritos, ensino a que preside oEspírito de Verdade. Nada suprime do Evangelho: antes o completa e elucida.

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Com o auxílio das novas leis que revela, conjugadas essas leis às que a Ciênciajá descobrira, faz se compreenda o que era ininteligível e se admita apossibilidade daquilo que a incredulidade considerava inadmissível. Teveprecursores e profetas, que lhe pressentiram a vinda. Pela sua forçamoralizadora, ele prepara o reinado do bem na Terra.

[...]42. - Se disserem que essa promessa se cumpriu no dia de

Pentecostes, por meio da descida do Espírito Santo, poder-se-á responderque o Espírito Santo os inspirou, que lhes desanuviou a inteligência, quedesenvolveu neles as aptidões mediúnicas destinadas a facilitar-lhes a missão,porém que nada lhes ensinou além daquilo que Jesus já ensinara, porquanto, noque deixaram, nenhum vestígio se encontra de um ensinamento especial. OEspírito Santo, pois, não realizou o que Jesus anunciara relativamenteao Consolador; a não ser assim, os apóstolos teriam elucidado o que, noEvangelho, permaneceu obscuro até ao dia de hoje e cuja interpretaçãocontraditória deu origem às inúmeras seitas que dividiram o Cristianismo desdeos primeiros séculos. (KARDEC, 2007e, p. 439-443) (negrito nosso, itálico dooriginal).

Como foi citado o item 30 do capítulo I de A Gênese, iremos também transcrevê-lo paraque o entendimento não fique prejudicado:

30 - O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo, como este partiudas de Moisés, é consequência direta da sua doutrina. A ideia vaga da vidafutura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia epovoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um corpo, umaconsistência, uma realidade à ideia. Define os laços que unem a alma ao corpo elevanta o véu que ocultava aos homens os mistérios do nascimento e da morte.Pelo Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por que está naTerra, por que sofre temporariamente e vê por toda parte a justiça de Deus.

Sabe que a alma progride incessantemente, através de uma série deexistências sucessivas, até atingir o grau de perfeição que a aproxima de Deus.Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de origem, são criadas iguais,com idêntica aptidão para progredir, em virtude do seu livre-arbítrio; que todassão da mesma essência e que não há entre elas diferença, senão quanto aoprogresso realizado; que todas têm o mesmo destino e alcançarão a mesmameta, mais ou menos rapidamente, pelo trabalho e boa vontade.

Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais favorecidas umas do queoutras; que Deus a nenhuma criou privilegiada e dispensada do trabalhoimposto às outras para progredirem; que não há seres perpetuamente votadosao mal e ao sofrimento; que os que se designam pelo nome de demônios sãoEspíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal no espaço, como opraticavam na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os anjos ouEspíritos puros não são seres à parte na criação, mas Espíritos que chegaram àmeta, depois de terem percorrido a estrada do progresso; que, por essa forma,não há criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres inteligentes,mas que toda a criação deriva da grande lei de unidade que rege o Universo eque todos os seres gravitam para um fim comum que é a perfeição, sem queuns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos filhos das suaspróprias obras. (KARDEC, 2007e, p. 37-38).

Considerando:

a) que a expressão “Espírito Santo” não deveria ser relacionada ao Consolador;

b) que temos que identificar com o texto do próprio evangelista, e não com de umoutro, se o Consolador já veio ou não;

c) que Jesus disse que voltaria;

d) que também disse que os discípulos o testemunhariam;

então, fatalmente, teremos que concluir que, dentro do Novo Testamento, não seencontra nenhuma passagem na qual poderemos afirmar que o Consolador teria voltado

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naquela época; portanto, isso nos remete a um tempo num futuro mais distante daquelaépoca.

Assim, o Espiritismo vem assumir essa condição de ser o Consolador, pelas razõesexpostas por Kardec e por ter João Evangelista, portanto, pelo pelo menos um dos discípulostestemunhando, embora não possamos afirmar taxativamente que outros não participaram sópelo motivo de não termos nada escrito a respeito deles.

Apenas para esclarecer, informamos que, para nós, o Espírito da (de) Verdade é Jesus.

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Jesus pode ser considerado Deus?

Esse assunto torna-se recorrente, visto determinadas pessoas ainda insistirem na tesede que Jesus seja o próprio Deus, tomando-se uma ou outra passagem bíblica para justificaressa interpretação. Obviamente, que faz parte de quase todas as culturas religiosas a crençade que a divindade a qual prestavam culto viria a Terra e após fecundar uma mulher, essasempre uma virgem, daria nascimento a um semideus. Se não estivermos nos enganando nainterpretação do pensamento do psiquiatra suíço C. G. Jung (1875-1961), o fundador dapsicologia analítica, isso poderia ser classificado como um arquétipo (JUNG, 1988).

O certo é que Jesus, tendo nascido e vivido como um judeu, nunca diria tal coisa; é oque, de fato, percebemos pelas narrativas dos Evangelhos. A lei judaica seria implacávelquanto a isso; certamente, que resultaria no apedrejamento, até a morte, do blasfemo, numrito sumário sem qualquer possibilidade de apelação para alguma instância superior.

Como ainda não tivemos a oportunidade de fazer um estudo sobre o tema, vamosaproveitar esse momento para fazê-lo, de uma forma bem abrangente; para isso é necessárioque analisemos várias passagens bíblicas, nas quais estaremos grifando os trechos quejulgamos importantes, visando ressaltá-los.

Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito peloprofeta: 'Vejam: a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamadoEmanuel, que quer dizer: Deus está conosco'”.

Essa passagem certamente que nada tem a ver com o assunto; entretanto, vemos que,algumas vezes, é usada para justificar a condição de Jesus ser Deus, por ter vindo cumpriressa e muitas outras supostas profecias. Não vamos aqui estender muito a explicação sobreisso, pois ela poderá ser vista no seu todo em nosso texto “Será que os profetas previram avinda de Jesus?”, disponível no site www.paulosnetos.net.

Em Isaías é que iremos encontrar a conjecturada profecia relacionada a esse passo:“Pois saibam que Javé lhes dará um sinal: A jovem concebeu e dará à luz um filho, e ochamará pelo nome de Emanuel”. (Is 7,14). Entretanto, pelo contexto bíblico, iremos perceberque, na verdade, Deus está prometendo um sinal ao rei Acaz, que seria exatamente o filhodele que estaria por nascer, o que podemos confirmar com a seguinte explicação: “O sinalprometido a Acaz é o seu próprio filho, do qual a rainha (a jovem) está grávida. Esse meninoque está por nascer é o sinal de que Deus permanece no meio do seu povo (Emanuel = Deusconosco)”. (Bíblia Sagrada Pastoral, p. 955).

Outro fato curioso é que o nome Jesus significa “Deus é salvação”; obviamente,diferente de Emanuel que quer dizer “Deus está conosco”, que é aquele previsto na passagemtida como profecia para ser dado à criança.

Mc 2,7: “Por que fala assim este homem? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecadossenão um só, que é Deus?”

Mc 10,18: “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senãoum que é Deus”.

Jo 5,44: Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros e não buscais aglória que vem do único Deus?

Jo 17,3: E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o único Deus verdadeiro,e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste.

Rm 3,30: “De fato, há um só Deus que justifica, pela fé, tanto os circuncidados comoos não circuncidados”.

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Rm 16,27: “ao único Deus sábio seja dada glória por Jesus Cristo para todo o sempre.Amém”.

1Cor 8,4: “Quanto, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que oídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus, senão um só”.

1Cor 8,6: “Contudo para nós existe um só Deus: o Pai. Dele tudo procede, e para eleé que existimos. E há um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por meio doqual também nós existimos”.

Gl, 3,20: “Ora, esse intermediário não representa uma pessoa só, e Deus é um só”.

Ef 4,6: “Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, que age por meio detodos e está presente em todos”.

1Tm 1,17: “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus, seja honra eglória para todo o sempre. Amém”.

1Tm 2,5-6: "Porque existe um só Deus. E entre ele e os homens há um sóintermediário, que é Jesus Cristo seu Filho, que é, ele próprio, homem também; o qualse deu a si mesmo como preço da salvação de toda a humanidade. Esta é a mensagemque Deus trouxe ao mundo no momento oportuno"

Tg 2,19: “Você acredita que existe um só Deus? Muito bem! Só que os demôniostambém acreditam, e tremem!”

Jd 1,24-25: “Àquele que pode guardar-vos da queda e apresentar-vos perante suaglória irrepreensíveis e jubilosos, ao único Deus, nosso Salvador, mediante JesusCristo nosso Senhor, glória, majestade, poder e domínio, antes de todos os séculos,agora e por todos os séculos! Amém”.

Um dos pontos fortes para que Jesus fosse elevado à condição de Deus está,certamente, na crença da Trindade, onde a divindade seria três pessoas, iguais e distintas aomesmo tempo. Não iremos abordar essa questão aqui, por já ter jeito um estudo sobre otema; mas iremos apenas argumentar que, por essas passagens, não há como atribuir talcoisa; julgamos ser interpretações equivocadas de quem quer vê-las assim, porquantonenhum desses passos fala disso. E, para ver que crença de Deus ser um só não é coisa nova,citamos do Antigo Testamento:

Dt 4,35: “Foi a você que lhe mostrou isso, para você ficar sabendo que Javé é o únicoDeus e que não existe outro além dele”.

Dt 4,39: “Portanto, reconheça hoje e medite em seu coração: Javé é o único Deus,tanto no alto do céu, como aqui em baixo, na terra”.

Is 44,6: “Assim diz Javé, o Rei de Israel, seu redentor, Javé dos exércitos: Eu sou oprimeiro, eu sou o último, fora de mim não existe outro Deus”.

Is 45,14: “Deus está somente com você e não existe nenhum outro, não existemoutros deuses”.

Is 45,18: “Porque assim diz, Javé, que criou os céus, o único Deus, que formou aterra, que a fez e a firmou em suas bases; ele não a fez para ser um caos, mas paraser habitada; Eu sou Javé e não existe outro”.

Is 46,9: “Lembrem-se das coisas há muito tempo passadas, pois eu sou Deus, e nãoexiste outro. Eu sou Deus, e não existe outro igual a mim”.

1Rs 8,60: “Assim, todos os povos da terra saberão que só Javé é Deus e que não hánenhum outro”.

Se você, leitor, se interessar pelo tema Trindade, pedimos a sua permissão para lherecomendar o nosso texto “Trindade: um mistério criado por um leigo, anuído pelos teólogos”,no site: www.paulosnetos.net.

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Mt 4,1-11: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentadopelo Diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome.Chegando, então, o tentador, disse-lhe: 'Se tu és Filho de Deus manda que estaspedras se tornem em pães'. Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: 'Nem só de pãoviverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus'. Então o Diabo o levouà cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: 'Se tu és Filho deDeus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teurespeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca tropeces em alguma pedra'.Replicou-lhe Jesus: 'Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus'.Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos domundo, e a glória deles; e disse-lhe: 'Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares'.Então ordenou-lhe Jesus: 'Vai-te, Satanás; porque está escrito: 'Ao Senhor teu Deusadorarás, e só a ele servirás'. Então o Diabo o deixou; e eis que vieram os anjos e oserviram”.

No Evangelho segundo Marcos, o primeiro a ser escrito, segundo os especialistas, nãose especifica essas três tentações; o autor diz, apenas, genericamente, que no períodoassinalado Jesus foi tentado por Satanás. No de Lucas, no final do relato, há algo interessante;nele narra-se: “Assim, tendo o Diabo acabado toda sorte de tentação retirou-se dele atéocasião oportuna” (Lc 4,13). O que nos chamou a atenção foi a expressão “retirou-se dele”,dando a impressão de que Jesus estava possuído pelo diabo, o que vai muito além dastentativas de levar o Mestre a fazer as cousas que lhe foram sugeridas por ele.

Causou-nos muita estranheza o fato de Jesus, ao ser sugerido para adorar o tentador,tenha dito “não tentarás o Senhor teu Deus”, uma vez que o “dito cujo” o havia reconhecidoapenas como o Filho de Deus e não como Deus. Essa afirmativa pode levar à interpretação deque aqui Jesus estaria insinuando que ele seria o próprio Deus, fato que não vemos a não serem algumas narrativas de João, caso não tenhamos maior cuidado em buscar o sentido exatodo que este fala.

A grande dúvida que nos envolve é: se as tentações de Jesus, que aqui nos sãonarradas, de fato ocorreram, então, é evidente a contradição, em si considerando Jesus comosendo Deus, com o que foi dito por Tiago, pois, segundo ele “Deus não pode ser tentado pelomal” (Tg 1,13); assim, não nos cabe aceitar Jesus como sendo mesmo o próprio Deus.

Por outro lado, ampliando nosso campo de pesquisa, verificamos que essa supostatentação de Jesus tem precedentes em outras culturas religiosas. O escritor, filósofo, filólogo ehistoriador francês Ernest Renan (1823-1892), por exemplo, nos informa um fato curioso; dizele que “O deserto era, segundo a crença popular, a morada dos demônios”. (RENAN, 2004, p.165). Aliás, até mesmo os hebreus assim pensavam, conforme comprovam estas passagens:

Lv 16,10: “mas o bode sobre que cair a sorte para Azazel será posto vivo perante oSenhor, para fazer expiação com ele a fim de enviá-lo ao deserto para Azazel6”.

Lv 16,20-22: “... Arão... apresentará o bode vivo; e, pondo as mãos sobre a cabeça dobode vivo, confessará sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todas assuas transgressões, sim, todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça dobode, e envia-lo-á para o deserto, pela mão de um homem designado para isso.Assim aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles para uma região solitária;e esse homem soltará o bode no deserto”.

Lv 17,7: “Daqui em diante e para sempre, os israelitas nunca mais oferecerãosacrifícios aos demônios do deserto, pois, se fizerem isso, estarão sendo infiéis aDeus”.

Encontramos nessa crença, de que os demônios moravam no deserto, o motivo peloqual Jesus foi levado ao deserto para ser tentado. E, segundo Juan Arias (1932- ), jornalista,pesquisador, escritor e ex-padre “o que o demônio propõe a Jesus em suas tentações sãojustamente coisas típicas dos magos, como voar através das nuvens ou transformar pedras empães” (ARIAS, 2001, p. 177). Devemos também somar a isso uma outra crença, a de que os

6 Azazel, conforme nos informam os tradutores da Bíblia de Jerusalém (p. 183-184), é o nome de um demônio que osantigos hebreus e cananeus acreditavam que habitasse o deserto.

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líderes espirituais deveriam sofrer algum tipo de tentação antes de iniciarem a sua missão.Vejamos alguns exemplos:

Mais ou menos com a idade de 30 anos, isto é, com a mesma idade de Jesus,Buda inicia sua carreira espiritual. Durante um jejum e penitência, é tentadopelo mal da mesma forma como Jesus o foi pelo diabo, após quarenta dias equarenta noites de abstinência. No Oriente é comum uma história que atribui aZoroastro uma semelhante tentação, que também aparece na saga dossantos cristãos. (KERTEN, 1988, p. 85) (grifo nosso).

Durante sete dias Buda permaneceu sentado sob a árvore bodhi, sem semover, em abençoado êxtase. Conta a lenda que, durante esse período, ele foitentado por Mara, o demônio. (KERSTEN e GRUBER, 1995(?), p. 28) (grifonosso).

Na mesma linha, como o inimigo de Hórus era Sata, deduz-se que daí teriavindo a teoria de satanás e dos demônios contida nos evangelhos. Hórus,assim como Jesus mil anos depois, também lutou no deserto, durantequarenta dias, contra as tentações de Sata, numa luta simbólica entre a luze a escuridão. (ARIAS, 2001, p. 112) (grifo nosso).

Portanto, as mencionadas tentações de Jesus nada mais são do que um reflexo deculturas religiosas, incorporadas aos Evangelhos para que o mesmo padrão do que aconteciacom os que eram considerados filhos de deuses e/ou seus reveladores fosse mantido.

Corroborando nosso entendimento, veja o leitor o que dizem os evangelhos:

Mt 4,16-17: “Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que se lhe abriram oscéus, e viu o Espírito Santo de Deus descendo como uma pomba e vindo sobreele; e eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem mecomprazo”.

Mc 1,9-11: “E aconteceu naqueles dias que veio Jesus de Nazaré da Galileia, e foibatizado por João no Jordão. E logo, quando saía da água, viu os céus se abrirem, eo Espírito, qual pomba, a descer sobre ele; e ouviu-se dos céus esta voz: Tu ésmeu Filho amado; em ti me comprazo”.

Lc 3,21-22: “Quando todo o povo fora batizado, tendo sido Jesus também batizado, eestando ele a orar, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu sobre ele em formacorpórea, como uma pomba; e ouviu-se do céu esta voz: Tu és o meu Filho amado;em ti me comprazo”.

Jo 1,32: “E João deu testemunho, dizendo: Vi o Espírito descer do céu comopomba, e repousar sobre ele”.

Interessante é a divergência; afinal, o que se viu?: o Espírito Santo de Deus, o EspíritoSanto ou simplesmente o Espírito? E como será que desceu sobre ele? Vejamos o que Bart D.Ehrman (1955- ) nos diz: “Ver, por exemplo, Marcos 1:10. Em grego, o versículo dizliteralmente que o Espírito desceu 'para dentro' de Jesus”. (EHRMAN, 2008, p. 374) (grifonosso). Ora, se o Espírito desceu para dentro de Jesus, caso seja esse espírito o Espírito Santo,então, pode-se concluir que os dois (Jesus e o Espírito Santo) são distintos um do outro. Emais que o Espirito Santo é maior do que Jesus, porquanto, somente após a “descida” desseespírito sobre Ele é que o Nazareno inicia a sua pregação ao povo, desempenhando a suamissão de Messias, após o caminho endireitado por João (Mt 3,3) ou seja, depois de estar soba ação do Espírito Santo. Isso será confirmado em Mt 12,31-32, que analisaremos um poucomais à frente.

Mt 9,6-8: “'Pois bem, para que vocês saibam que o Filho do Homem tem poder naterra para perdoar pecados - então disse Jesus ao paralítico: Levante-se, pegue a suacama e vá para a sua casa'. O paralítico então se levantou, e foi para a sua casa.Vendo isso, a multidão ficou com medo e louvou a Deus, por ter dado tal poder aoshomens”.

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A expressão “Filho do Homem”, encontrada inúmeras vezes (doze vezes em Mateus,treze vezes em Marcos, vinte e seis vezes em Lucas e doze vezes em João), foi usada porJesus para se colocar como um homem e não como o próprio Deus; fato que também pode serobservado, quando, após curar esse paralítico, a multidão louvou a Deus por ter dado tal poderaos homens, ou seja, com isso estavam se referindo a Jesus como homem; portanto, é certoque o tinham mesmo nessa condição, não como sendo o próprio Deus.

Mt 11,27: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conheceplenamente o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece plenamente o Pai, senão o Filho, eaquele a quem o Filho o quiser revelar”.

Caso Jesus se considerasse Deus não havia razão para Ele dizer que recebera todas ascoisas do Pai, porquanto, já as tinha por si mesmo.

Mt 12,31-32: “É por isso que eu digo a vocês: todo pecado e blasfêmia será perdoadoaos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Quem disser algumacoisa contra o Filho do Homem, será perdoado. Mas quem disser algo contra oEspírito Santo, nunca será perdoado, nem neste mundo, nem no mundo que há devir.”

Ora, se toda blasfêmia contra o Filho do Homem será perdoada e a contra o EspíritoSanto nunca será, a conclusão, que depreendemos disso, é que ele, o Espírito Santo, ésuperior ao Filho do Homem, além de não ser Jesus. Então, a igualdade na Trindade, propaladapelos que nela creem, não existe. Se não existe, consequentemente, Jesus, não podendo ser oEspírito Santo, muito menos poderá ser Deus.

Mt 12,48-49: “Ele, porém, respondeu ao que lhe falava: Quem é minha mãe? e quemsão meus irmãos?·E, estendendo a mão para os seus discípulos disse: Eis aqui minhamãe e meus irmãos”.

Mt 25,34-40: “Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meuPai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; eraforasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estavana prisão e fostes ver-me. Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimoscom fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimosforasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou naprisão, e fomos visitar-te? E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempreque o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim ofizestes.·E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes aum destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes”.

Mt 28,9-10: “E eis que Jesus lhes veio ao encontro, dizendo: Salve. E elas,aproximando-se, abraçaram-lhe os pés, e o adoraram. Então lhes disse Jesus: Nãotemais; ide dizer a meus irmãos que vão para a Galileia; ali me verão”. (fato ocorridodepois de sua ressurreição).

Jo 10,17: “Disse-lhe Jesus: Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vai ameus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vossoDeus”.

Ao tratar a todos, povo e discípulos, como irmãos, Jesus, seguramente, o faz por ter asi mesmo nessa condição; não numa infinitamente mais elevada, que seria aquela se Ele fossea própria divindade. E, numa outra oportunidade, afirmou: “Em verdade, em verdade vosdigo: Aquele que crê em mim, esse também fará as obras que eu faço, e as fará maioresdo que estas; porque eu vou para o Pai;” (Jo 14,12). Ora, disso não podemos concluir outracoisa senão que Jesus se igualou a todos nós, a não ser que tenhamos o que aqui está ditocomo inverídico.

Mt 14,23: “Tendo-as despedido, subiu ao monte para orar à parte. Ao anoitecer,estava ali sozinho”.

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Mt 26,36: “Então foi Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmane, e disse aosdiscípulos: Sentai-vos aqui, enquanto eu vou ali orar”.

Mt 26,39: “E adiantando-se um pouco, prostrou-se com o rosto em terra e orou,dizendo: Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice; todavia, não seja comoeu quero, mas como tu queres”.

Mt 26,44: “Deixando-os novamente, foi orar terceira vez, repetindo as mesmaspalavras”.

Lc 3,21: “Quando todo o povo fora batizado, tendo sido Jesus também batizado, eestando ele a orar, o céu se abriu;”

Lc 6,12: “Naqueles dias retirou-se para o monte a fim de orar; e passou a noite todaem oração a Deus”.

Lc 9,28: “Cerca de oito dias depois de ter proferido essas palavras, tomou Jesusconsigo a Pedro, a João e a Tiago, e subiu ao monte para orar”.

Mantendo-se a crença de que Jesus é Deus, julgamos totalmente fora de propósito Eleorar para si mesmo; tal coisa, por tão absurda, fere-nos a razão. Até onde sabemos somenteos mortais comuns oram a Deus. E, inclusive, num desses momentos, Jesus pede a Deus paraafastar dele o cálice, fraqueza não condizente com a sua condição de Espírito puro, mensageirodivino; pior ainda se ele fosse mesmo Deus.

Mt 16,13-14: “Tendo chegado à região de Cesareia de Filipe, Jesus perguntou aosdiscípulos: ‘Quem dizem por aí as pessoas que é o filho do homem?’ Responderam:‘Umas dizem que é João Batista, outras que é Elias, outras enfim, que é Jeremias oualgum dos profetas’”.

Mt 26,67-68: “Então, cuspiram no seu rosto e cobriram-no de socos. Outros lhe davambordoadas. E lhe diziam: ‘Mostra que és profeta, ó Cristo, advinha quem foi que tebateu?’”

Jo 7,40: “Muitos daquela gente que tinham ouvido essas palavras de Jesus afirmavam:‘Verdadeiramente ele é o profeta’”.

Jo 9,17: “Perguntaram ainda ao cego: ‘Qual é a tua opinião a respeito de quem te abriuos olhos?’ Respondeu: ‘É um profeta’”.

Lc 24,19 “... Jesus de Nazaré foi um profeta, poderoso em obras e palavras diante deDeus e do povo”.

At 2,22: “Homens de Israel, escutai o que digo: ‘Jesus de Nazaré foi o homemcredenciado por Deus junto a nós com poderes extraordinários, milagres e prodígios.Bem sabeis as coisas que Deus realizou através dele no meio de vós’”.

Por esses passos temos, seguramente, que o povo e os discípulos pensavam ser Jesusum profeta e não o próprio Deus; porém, não é só isso: Ele mesmo assim se qualificava;senão vejamos:

Lc 13,33: “Entretanto devo continuar meu caminho hoje, amanhã e no dia seguinte,porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém”.

Mc 6,4-5: “Mas Jesus lhes dizia: ‘Um profeta só deixa de ser honrado em sua pátria,em sua casa e entre seus parentes. E não podia ali fazer milagre algum’”.

Observamos, assim, que tanto o povo como os seus discípulos acreditavam que Jesusera um profeta, o que aqui, nesses passos, está sendo confirmado pelo próprio Mestre. Napassagem que se segue também veremos como o tinham.

Mt 17,1-6: “Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, a Tiago e a João, irmãodeste, e os conduziu à parte a um alto monte; e foi transfigurado diante deles; o seu

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rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eisque lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Pedro, tomando a palavra, disse aJesus: 'Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três cabanas, uma parati, outra para Moisés, e outra para Elias'. Estando ele ainda a falar, eis que umanuvem luminosa os cobriu; e dela saiu uma voz que dizia: Este é o meu Filho amado,em quem me comprazo; a ele ouvi. Os discípulos, ouvindo isso, caíram com o rosto emterra, e ficaram grandemente atemorizados”.

Percebemos que Pedro, ao sugerir a construção de três cabanas7, uma para cada umdos personagens - Jesus, Moisés e Elias -, o faz porque tem os três no mesmo nível, ou seja,estabeleceu uma igualdade entre eles; via de consequência, tomou Jesus como um profeta, tale qual os outros dois foram, sem qualquer tipo de privilégio, como aconteceria caso o vissecomo Deus.

Mt 20,20-23: “Aproximou-se dele, então, a mãe dos filhos de Zebedeu, com seus filhos,ajoelhando-se e fazendo-lhe um pedido. Perguntou-lhe Jesus: 'Que queres?' Ela lherespondeu: 'Concede que estes meus dois filhos se sentem, um à tua direita e outro àtua esquerda, no teu reino'. Jesus, porém, replicou: 'Não sabeis o que pedis; podeisbeber o cálice que eu estou para beber?' Responderam-lhe: 'Podemos'. Então lhesdisse: 'O meu cálice certamente haveis de beber; mas o sentar-se à minha direita eà minha esquerda, não me pertence concedê-lo; mas isso é para aqueles paraquem está preparado por meu Pai'”.

Certamente que, se houvesse igualdade entre Jesus e Deus, Ele mesmo poderia teratendido ao pedido da mãe dos filhos de Zebedeu; porém, não o fez e foi logo dizendo quesomente o Pai poderia fazê-lo. Portanto, não há como aceitar que Jesus seja Deus, usando-sede seus próprios argumentos.

Mt 24,30-36: “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem, e todas astribos da terra se lamentarão, e verão vir o Filho do homem sobre as nuvens do céu,com poder e grande glória. E ele enviará os seus anjos com grande clangor detrombeta, os quais lhe ajuntarão os escolhidos desde os quatro ventos, de uma à outraextremidade dos céus. Aprendei, pois, da figueira a sua parábola: Quando já o seuramo se torna tenro e brota folhas, sabeis que está próximo o verão. Igualmente,quando virdes todas essas coisas, sabei que ele está próximo, mesmo às portas. Emverdade vos digo que não passará esta geração sem que todas essas coisas secumpram. Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras jamais passarão. Daqueledia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão sóo Pai”.

Se encontramos alguma coisa que Jesus, o filho, não sabe, somente o Pai é que temconhecimento, não há razão para supô-los uma só personalidade. Será que o Pai tem segredospara Jesus ou existem coisas que estariam acima do conhecimento deste? Qualquer que seja aresposta, dela nós só podemos concluir que nem tudo o filho sabe; portanto, diante disso,Jesus não pode ser Deus.

Mt 27,46: “Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamásabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”.

Totalmente fora de propósito, caso Jesus fosse Deus, Ele clamar a si próprio (Deus) portê-Lo desamparado. Aliás, em outra oportunidade, Ele disse “meu Pai, vosso pai, meu Deus,vosso Deus” (Jo 20,17); portanto, reforçando sua condição de igualdade para conosco, umavez que Ele não se coloca nem mesmo como alguém superior a qualquer um de nós, comotambém como sendo Deus. Por sua elevação moral, pode, nesse sentido, ser consideradosuperior, pois é um Espírito puro que nos foi enviado por Deus, para regenerar a humanidade.

Mt 28,2: “E eis que houvera um grande terremoto; pois um anjo do Senhor descera docéu e, chegando-se, removera a pedra e estava sentado sobre ela”.

7Algumas traduções trazem tendas, que significa, abrigos rústicos para residência temporária. (Bíblia Anotada, p.1209).

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Na intimidade, ficamos confabulando com “os meus botões” sobre os grandes prodígiosatribuídos a Deus, tais como criar o Universo, mandar chover para inundar a Terra de água,confundir a língua dos terráqueos, abrir o Mar Vermelho em duas muralhas, parar o Sol paraaumentar as horas do dia, fazer chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra,derrubar as muralhas de Jericó, entre outros feitos extraordinários narrados na Bíblia, comonão pôde mover uma simples pedra que fechava seu túmulo, foi preciso que um anjo, umainsignificante de suas criaturas, o fizesse? Diria um homem precavido: “Sei não, mas esse aí,que colocaram no túmulo, não poderia ser Deus”.

Mc 1,24: “Que temos nós contigo, Jesus, nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quemés: o Santo de Deus”.

Tomando-se como verdadeira essa passagem, estaremos diante de uma situação bemembaraçosa, pois satanás, aquele que dizem ter sido expulso do céu, identifica Jesus como oSanto de Deus e não o próprio. Essa informação é importante, uma vez que ele, satanás,sendo um dos filhos de Deus, que vivia no reino dos céus (Jó 1,6), conhecia pessoalmente aDeus, vamos assim dizer, então, como atribuiu a Jesus outra condição? Diante do que secoloca aqui, não nos cabe aceitar Jesus como sendo mesmo o próprio Deus.

Mc 10,18: “Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senãoum que é Deus”.

Se Jesus não aceita o epíteto de bom, porquanto, segundo sua maneira de pensar, issosó pode ser atribuído a Deus; assim, não há outra conclusão a chegar senão a de que Ele nãose considerava como sendo o próprio Deus, por mais que queiram, via dogmatismo, colocá-Lonessa condição.

Mc 10,27: “Jesus, fixando os olhos neles, respondeu: Para os homens é impossível,mas não para Deus; porque para Deus tudo é possível.

É a resposta dada por Jesus, quando foi questionado sobre quem poderia ser salvo.Seria mais lógico, caso fosse a divindade, Ele ter se incluído nessa afirmativa, quem sabe,dizendo: “... porque para mim tudo é possível”.

Mc 12,26-27: “Quanto aos mortos, porém, serem ressuscitados, não lestes no livro deMoisés, onde se fala da sarça, como Deus lhe disse: Eu sou o Deus de Abraão, oDeus de Isaque e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas de vivos.Estais em grande erro”.

Da mesma forma, que na situação anterior, aqui Ele deveria ter dito: “como eu já lhesdisse: eu não sou Deus de mortos”.

Mc 15,39: “Ora, o centurião, que estava defronte dele, vendo-o assim expirar, disse:Verdadeiramente este homem era filho de Deus”.

Se o reconhecessem como Deus essa frase só teria sentido se estivesse dessa forma:“Verdadeiramente este homem era Deus”; até mesmo porque, devemos convir, satanástambém é filho de Deus (Jó 1,6). Nesse caso, podemos até dizer que satanás seria filho deJesus. Então como Jesus não o repreendeu como a um filho, quando ele O tentava no deserto?

Lc 1,35: “Respondeu-lhe o anjo: 'Virá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimote cobrirá com a sua sombra; por isso o que há de nascer será chamado santo, Filhode Deus'”.

Será que o anjo se enganou, ou realmente toda a corte celeste tem Jesus como umhomem? Portanto, se O chamavam de “santo, filho de Deus” isso não é tê-lo como o próprioDeus.

Quanto ao uso da expressão “filho de Deus”, o jornalista Pepe Rodríguez (1953- ) colocao seguinte:

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Jesus, apesar de saber que a expressão “Filho de Deus” tinha sidonormalmente utilizada no Velho Testamento para designar figurasparticularmente importantes da história hebraica – como David, Salomão, outrosreis hebreus, o próprio Adão e os “filhos de Israel” –, em nenhuma passagemse refere a si próprio como filho de Deus (6), preferindo utilizar aexpressão “Filho do homem”, um termo utilizado por Daniel (Dan 7,13) eque, em aramaico, significa simplesmente “homem”, “ser humano” e nada mais.Procurar dar-lhe um outro qualquer significado não passa de um exercíciopróprio de uma imaginação febril.______6. A única excepção encontramo-la em Jo 6,32-45: “Moisés não vos deu o pão docéu; é meu Pai que vos dá o verdadeiro pão do céu; porque o pão de Deus é o que baixoudo céu e dá vida ao mundo. […] Eu sou o pão da vida; o que vem a mim deixará de terfome, e o que crê em mim jamais sentirá sede, […] todo aquele que o Pai me dá vem amim, e aquele que vem a mim não o deitarei fora, porque desci do céu, não para fazer aminha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. […] Porque esta é a vontade demeu Pai, que todo aquele que vê o Filho e crê n'Ele recebe a vida eterna, e eu oressuscitarei no último dia. […] Todo aquele que escuta o meu Pai e recebe o seuensinamento, vem a mim...” Porém, como mostrámos no seu devido momento, o textodo Evangelho de João, escrito pelo grego João, o Ancião, em princípios do séculoII, revela um Jesus absolutamente deformado, que fala com uma prepotênciadescarada, contrariamente à humildade que o caracteriza nos relatos dos trêssinópticos. Por exemplo, em Mc 10,18, deparamos com um Jesus que diz: “Porque mechamas bom? Ninguém, a não ser Deus, é bom”. Por outro lado, o Jesus do Evangelho deJoão fala de uma maneira azeda com os outros judeus e as suas afirmações soam aabsurdas na boca de um judeu, quando tudo o que sabemos sobre ele é que foi um judeu.Esta autodesignação como filho de Deus não merece, pois, qualquer crédito, emtermos históricos, além de nela ser claramente evidente a influência da filosofiaplatónica. Como se sabe, foi no contexto dessa filosofia que se desenvolveu a cristologiatal como a conhecemos hoje.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 178) (grifo nosso).

Baseando-nos no título da obra de Rodríguez, da qual transcrevemos esse texto,diremos que a elevação de Jesus ao status de um deus faz parte das “Mentiras fundamentaisda Igreja Católica”.

Lc 2,40: “E o menino ia crescendo e fortalecendo-se, ficando cheio de sabedoria; e agraça de Deus estava sobre ele”.

Essa narrativa é uma das poucas referências à infância de Jesus. Nela não vemossentido dizer que a graça de Deus estava sobre Ele, caso fosse o próprio Deus, uma vez que,para se chegar a essa conclusão, teria que ser afirmado algo mais ou menos assim: “a graçade Deus era ele”.

Lc 3,23: “Jesus tinha cerca de trinta anos quando começou sua atividade pública. E,conforme se pensava, ele era filho de José, [...]”.

Será que até aos trinta anos de vida, Jesus não foi considerado, pelos de Sua época,como sendo Deus, deixando-se para fazê-lo depois? Ou será que O tornaram Deusposteriormente? Ficamos com a segunda hipótese.

Jo 1,1-14: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, esem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens;a luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve umhomem enviado de Deus, cujo nome era João. Este veio como testemunha, a fim dedar testemunho da luz, para que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, masveio para dar testemunho da luz. Pois a verdadeira luz, que alumia a todo homem,estava chegando ao mundo. Estava ele no mundo, e o mundo foi feito porintermédio dele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não oreceberam. Mas, a todos quantos o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes opoder de se tornarem filhos de Deus; os quais não nasceram do sangue, nem davontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, ehabitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória

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do unigênito do Pai”.

Certamente, que Jesus sendo o Verbo de Deus, ou seja, aquele por quem Deus envia aSua mensagem à humanidade, ao encarnar-se como ser humano, podemos considerar o Verbose fazendo carne. Entretanto, o que não podemos fazer, por falta de lógica, é admitir que Jesusseja o próprio Deus encarnado, uma vez que se Deus não cabe num templo, com muito maiorrazão, não caberia num corpo humano, templo do Espírito. Salomão, com sua sabedoria,percebeu que: “Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que o céu, e até o céu doscéus, não te podem conter; quanto mais esta casa que edifiquei!” (1Rs 8,27), ou seja, nemmesmo na Terra é admitido que Deus caiba, o que perfeitamente podemos entender, por setratar de um ser infinito.

E, quanto ao versículo 14, que diz “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”,encontramos a seguinte explicação: “Esta expressão entre nós não é fiel ao original, que éem nós (do grego em hemin; e do latim in nobis, como está na Vulgata). (CHAVES, 2006, p.136). (negrito nosso). Em http://www.bibliacatolica.com.br/ confirmamos que, de fato, emgrego e latim, consta da forma aqui mencionada. O interessante é que isso mudacompletamente o sentido da frase, pois se o Verbo está em nós, é, certamente, a centelhadivina que todos nós possuímos, não se pode dizer que somente Jesus a tenha.

O filósofo, educador e teólogo Huberto Rohden (1893-1981) manifestou sua opiniãosobre isso da seguinte forma:

Que é o Cristo, o Ungido, que os antigos hebreus chamavam Messias, oEnviado?

O quarto Evangelho designa o Cristo com a palavra Logos, começando otexto com estas palavras:

"No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus".A palavra grega Logos é muito anterior à Era Cristã. Os filósofos antigos

de Alexandria e de Atenas, sobretudo, Heráclito de Éfeso, designavamcom Logos o espírito de Deus manifestado no Universo. Logos seria, pois,o Deus imanente, em oposição à Divindade transcendente, que não é objeto denosso conhecimento.

A Vulgata Latina traduz Logos por Verbo: "No princípio era o Verbo..."Logos, Verbo, Cristo são idênticos e designam a atuação da Divindade

Creadora, a manifestação individual da Divindade universal.Neste sentido, o Cristo é Deus, mas não é a Divindade. E neste sentido

diz ele aos Homens: "Vós sois deuses"; os homens são manifestações individuaisda Divindade Universal. A primeira e mais perfeita das manifestações daDivindade Universal, no Universo, é o Cristo, o Verbo, o Logos, que Paulo deTarso chama acertadamente "o primogênito de todas as creaturas" do Universo.

O Cristo é anterior à creação do mundo material. Ele é "o Primogênito detodas as creaturas". O Cristo não é creatura humana, mas a mais antigaindividualidade cósmica, que, antes do princípio do mundo, emanou daDivindade Universal.

O Cristo é Deus, mas não é a Divindade, que Jesus designa com onome Pai: "Eu e o Pai somos um, mas o Pai é maior do que eu".

Deus, na linguagem de Jesus, significa uma emanação individual daDivindade universal.

A confusão tradicional entre Deus e Divindade tem dado ensejo aintermináveis controvérsias entre os teólogos. Mas o texto do Evangelhoé claro: o Cristo afirmou ser Deus, mas nunca afirmou ser ele a própriaDivindade. (ROHDEN, 1996, p. 23-25) (grifo nosso).

Portanto, temos aí, por esse renomado teólogo ex-padre jesuíta, a confirmação de queJesus não é Deus, com base nessa passagem de João.

Encontramos, em nossa pesquisa, uma informação que será desconcertante para os queacreditam na divindade de Jesus, tomando-se esse trecho de João sobre o Verbo, porquantoela nos induz a concluir que o passo em questão tem grande possibilidade de tratar-se de umplágio do livro Rig-Veda da Índia, no qual consta este verso: “No princípio era Brahman, com

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quem estava o Verbo, e o Verbo é Brahman” (traduzindo-se a palavra “Vak” do sânscrito como“Verbo”. (LEWIS, 2008, p. 45).

Por outro lado, vemos a afirmativa de que Jesus é Filho unigênito, e João repete issopor mais quatro vezes (Jo 1,18; 3,16,18; 1Jo 4,9), enquanto em outras passagens se diz serele primogênito, estabelecendo um conflito, pois não se pode atribuir a uma mesma pessoasimultaneamente essas duas condições. Leiamos os passos:

Rm 8,28-29:“E sabemos que todas as coisas concorrem para o bem daqueles queamam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os quedantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem deseu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos;”.

Cl 1,12-15: “dando graças ao Pai que vos fez idôneos para participar da herança dossantos na luz, e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino doseu Filho amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; oqual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;”.

As afirmativas de que Jesus foi “o primogênito entre muitos irmãos” e “o primogênitode toda a criação” é um golpe mortal na crença de que Ele seja Deus, especialmente, aos quequerem usar a razão e a lógica como base de sua análise.

Rohden, provavelmente tomando dessas duas falas de Paulo, argumenta bem claro:

Quando Paulo de Tarso diz que o Cristo é o primogênito de todas ascreaturas, supõe ele que o Cristo seja creatura, e não o Creador, e todacreatura é evolvível, de perfeição elástica, aumentável. Nenhuma creatura podecoincidir com o Creador. " (ROHDEN, 1996, p. 45) (grifo nosso).

Outro autor bíblico que colocou Jesus como primogênito foi o de Hebreus:

Hb 1,1-6: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aospais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quemconstituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez também o mundo; sendo ele oresplendor da sua glória e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas ascoisas pela palavra do seu poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados,assentou-se à direita da Majestade nas alturas, feito tanto mais excelente do queos anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles. Pois a qual dos anjosdisse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei Pai, e ele meserá Filho? E outra vez, ao introduzir no mundo o primogênito, diz: E todos os anjosde Deus o adorem”.

Nesse passo, percebe-se que, para o autor, Jesus é superior aos anjos, os filhos deDeus (Jo 1,6) que, como sabemos, são Espíritos humanos desencarnados; certamente, por suacondição de Espírito puro, não se poderia dizer outra coisa dele.

Ao que nos parece, ele não fez confusão alguma no sentido de tomar Jesus como sendoDeus; ele O vê como manifestação da divindade, coisa bem diferente daquilo que algunsautores querem fazer-nos crer; porém, uma coisa não se definiu claramente, pois, nessepasso, ele situa Jesus acima dos anjos, no que se segue, já faz justamente o contrário:colocando-O abaixo dos anjos:

Hb 2,7-9: “Fizeste-o um pouco menor que os anjos, de glória e de honra ocoroaste, todas as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés. Ora, visto que lhe sujeitoutodas as coisas, nada deixou que não lhe fosse sujeito. Mas agora ainda não vemostodas as coisas sujeitas a ele; vemos, porém, aquele que foi feito um poucomenor que os anjos, Jesus, coroado de glória e honra, por causa da paixão damorte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos”.

É uma visão bem interessante, que, segundo acreditamos, contradiz o que sedogmatizou a respeito de Cristo, entronizando-O como a segunda pessoa da Trindade.

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Jo 1,15: “João deu testemunho dele, e clamou, dizendo: Este é aquele de quem eudisse: O que vem depois de mim, passou adiante de mim; porque antes de mim elejá existia.

Jo 8,58: “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes queAbraão existisse, eu sou”.

Cl 1,17: “Ele existe antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste”.

Não compreendendo que todos os Espíritos preexistem, tomaram essa afirmativa sobreJesus para sustentar a condição dele ser o próprio Deus. Certo estava o amigo de Jó ao dizer,embora em outro contexto, que “somos de ontem e nada sabemos” (Jó 8,9); mas,infelizmente, até o momento, isso não foi compreendido pelos teólogos, que não se deramconta do seguinte:

Disso ressalta um outro ensinamento de uma alta gravidade. Não seadmitindo que a alma já viveu, é necessário, de toda a necessidade, que elaseja criada no momento da formação e para uso de cada corpo; de onde sesegue que a criação da alma por Deus estaria subordinada ao caprichodo homem, e, na maior parte do tempo, o resultado do deboche. […] (KARDEC,1993f, p. 188) (grifo nosso).

Já, por muitas vezes, vimos pessoas usando o “eu sou” citado por João, para divinizarJesus, ao estabelecerem uma relação dessa afirmativa com o que foi dito em Ex 3,14: “[...]Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós”. O que não fazem para chegar aoque querem?... Na verdade quanto ao “eu sou” da frase de João trata-se do verbo existir, ouseja, Jesus está afirmando que ele existia antes de Abraão, nada mais que isso. Simples, dever isso: se em Êxodo, ao invés de “eu sou”, estivesse um dos nomes atribuídos a Deus, a falaficaria: “Assim dirás aos olhos de Israel Jeová me enviou a vós”. Façamos a mesma coisa nafrase de João: “[...] antes que Abraão existisse, Jeová”, ou seja, não tem cabimento, pois afrase ficará totalmente sem sentido, enquanto, que se entendermos o “eu sou” como “eu jáexistia”, isso perfeitamente se encaixa para se compreender o que foi dito. Além disso, em Jo14,10-11 Jesus afirma que “ eu estou no Pai, e que o Pai está em mim”, ou seja, estar noPai não é a mesma coisa que ser o pai e, por sua vez, o Pai está em mim, não significa dizer oPai sou eu.

Encontramos uma versão bem interessante para essa passagem de Êxodo: “Eu sou oSer. Assim dirás aos filhos de Israel: O Ser me enviou até a vós” (ASCH, 1958, p. 115), que,acreditarmos, dá uma tradução mais lógica ao passo.

Uma vez que citamos Paulo (Cl 1,17), é oportuno vermos também o que PepeRodríguez diz sobre ele:

Paulo deixou, no entanto, uma outra marca na doutrina, uma marca maisessencial e original que as precedentes. Estamos a referir-nos à preexistência deCristo e ao seu papel fundamental após a ressurreição. Paulo não concebiaJesus como um deus encarnado, e ainda menos como a segunda pessoada Santíssima Trindade. Para ele, o Jesus da Ascensão era o “Filho dohomem” dos místicos judeus. Segundo o ramo do ocultismo judeu, conhecidopor Maaseh Bereshit – em que Paulo fora iniciado e que procurava saber, a partirda leitura do Génesis, como tinha sido criado o homem –, Deus criou o HomemCelestial à sua imagem, como Arquétipo (Filho do homem), e foi à imagemdeste que Adão foi formado. Paulo integrou perfeitamente esta crença eadaptou-a ao seu objetivo, postulando que o Homem Celestial ou “Messias doAlto” encarnara em Jesus, o “Messias de Baixo”, transformando-o, assim, numSegundo Adão. (42).

Por outras palavras, a origem do contributo determinante de Paulo para acristologia radica em determinadas crenças do ocultismo rabínico, crenças quelhe eram caras desde a juventude e que não só se adaptaram perfeitamente àsua personalidade peculiar, como lhe fortaleciam a convicção de ser um eleitodivino. “O Cristo de Paulo”, conclui Schonfield no seu estudo (43), “não éDeus, mas sim a primeira criação de Deus. Na concepção de Paulo, nãohá lugar para qualquer fórmula trinitária do credo de Anastásio, nem

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para a outra doutrina por este defendida e segundo a qual o Filho foi“não feito, nem criado, mas gerado”. […]_____42. É essa problemática que Paulo se refere quando, por exemplo, escreve; “Razão porque está escrito: “O primeiro homem, Adão, foi um ser psíquico dotado de vida”; o últimoAdão é um espírito que dá vida” (ICor 15,45). Descrições e desenvolvimentos similaresencontram-se igualmente noutras epístolas enviadas por Paulo às comunidades da Ásia,aos Filipenses e aos Colossenses.43. Cf. Schonfield, H. J. (1987), Jesús ¿Mesías o Dios?, Martínez Roca, Barcelona, pp. 188-193.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 86-87) (grifo nosso).

Vê-se, portanto, que não há espaço para nos basearmos em Paulo visando elevar Jesusà categoria de um deus.

Jo 4,34: “Disse-lhes Jesus: 'A minha comida é fazer a vontade daquele que meenviou, e completar a sua obra'”.

Jo 5,30: “Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma; como ouço, assimjulgo; e o meu juízo é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontadedaquele que me enviou”.

Jo 6,38: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontadedaquele que me enviou”.

Fica clara a condição de Jesus ser subordinado a Deus, vindo ao mundo pela vontadeDele, para cumprir determinada missão; por conseguinte, não temos como não vê-Lo comoalguém que é inferior a Deus, embora, bilhões e bilhões de vezes moralmente superior aqualquer um de nós, seres humanos normais.

Jo 5,43: “Eu vim em nome de meu Pai, e não me recebeis; se outro vier em seupróprio nome, a esse recebereis”.

Jo 8,38: “Eu falo do que vi junto de meu Pai; e vós fazeis o que também ouvistes devosso pai”.

Jo 10,18: “Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho autoridadepara a dar, e tenho autoridade para retomá-la. Este mandamento recebi de meuPai”.

Jo 10,29: “Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai”.

Jo 14,21: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama;e aquele que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei, e me manifestarei aele”.

Jo 14,23: “Respondeu-lhe Jesus: Se alguém me amar, guardará a minha palavra; emeu Pai o amará, e viremos a ele, e faremos nele morada”.

Jo 15,10: “Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor; domesmo modo que eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneçono seu amor”.

Jo 15,15: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;mas chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos dei a conhecer”.

Jo 15,23-24: “Aquele que me odeia a mim, odeia também a meu Pai. Se eu entre elesnão tivesse feito tais obras, quais nenhum outro fez, não teriam pecado; mas agora,não somente viram, mas também odiaram tanto a mim como a meu Pai”.

Ninguém chama a si mesmo de “meu Pai”, a não ser que esteja completamente fora dojuízo. Até onde sabemos, não existe nenhuma lei natural que possa fazer alguém ser pai de simesmo; portanto, aqui temos claramente a distinção entre Jesus e Deus. E não há desculpa de

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“mistério” que possa resolver essa questão.

Jo 8,54: “Respondeu Jesus: 'Se eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória não énada; quem me glorifica é meu Pai, do qual vós dizeis que é o vosso Deus;'”.

Jo 20,17: “Disse-lhe Jesus: 'Deixa de me tocar, porque ainda não subi ao Pai; mas vaia meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus evosso Deus'”.

Verifica-se que Jesus se coloca exatamente na mesma condição que todos nós, pois seo Pai/Deus dele é o mesmo que o nosso, não podemos qualificá-Lo como sendo o próprioDeus, porquanto, dizer o contrário é não ser coerente com o que aqui Ele diz.

Jo 10,25: “Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. As obras que eu façoem nome de meu Pai, essas dão testemunho de mim”.

O correto seria dizer “as obras que eu faço, faço em meu nome”, caso Jesus seconsiderasse o próprio Deus.

Jo 10,30: “Eu e o Pai somos um”.

Jo 14,20: “Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu emvós”.

Jo 17,22: “E eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nóssomos um;”.

A primeira dessas passagens é a que é mais usada para sustentar a divindade de Jesus.O que não se faz para manter um dogma, pois aqui, de uma metáfora, fizeram uma realidade.Quando um padre diz ao casal, que abençoa, “agora vocês formam um só corpo”, tomandocomo base “o homem... se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24),devemos entender pelo sentido metafórico ou como coisa real? Da mesma forma, também nãopoderemos pegar o “Eu e o Pai somos um” a não ser no sentido figurado. E, tanto é verdade,que o que se diz em Jo 17,22 derruba aquilo que tomaram como verídico; inclusive, paraserem coerentes teriam que tomá-lo também no mesmo sentido de Jo 10,30, mas não é isso oque fazem. Caso Jesus quisesse que entendêssemos alguma igualdade, certamente teria ditoalgo mais ou menos assim: “Eu e o Pai somos a mesma pessoa”; fala bem explicita, de modo anão deixar qualquer possibilidade de dúvidas. Aliás, o que estamos vendo é que dezenas depassagens nos apontam para o fato de que Jesus não é Deus, enquanto com apenas uma“meia-dúzia de seis”, num linguajar popular, tentam nos contradizer, tomando de umainterpretação ortodoxa, que visa apenas sustentar dogmas impostos a ferro e fogo.

Recorramos novamente ao teólogo Rohden, que se manifestou da seguinte forma:

A visão de Jesus é inteiramente monista, e não monoteísta; para ele, há umaúnica Essência, que ele chama Pai, a qual se manifesta em muitas existências,ou creaturas. Depois de afirmar "Eu e o Pai somos um", acrescenta ele "mas oPai é maior do que eu", como se dissesse: Eu, o Cristo, estou na Divindademas não sou a Divindade; a Divindade é infinitamente maior do que eu.Ou então, em terminologia filosófica: Eu, a existência individual, sou umamanifestação da Essência Universal, que é maior que qualquer existência; vóstambém, meus discípulos, sois existências individuais, manifestações daEssência única da Divindade.

A manifestação individual da Divindade Universal é por ele chamada Deus.Quando foi acusado de se dizer Deus, não o negou, e acrescentou quetambém os homens eram Deus, isto é, manifestações individuais daDivindade Universal: "Vós também sois deuses".

Quando o Cristo se diz Deus, afirma ele que é uma manifestaçãoindividual da Divindade, mas não faz de si uma parcela ou pessoa daDivindade, como não faz dos homens parcelas ou pessoas da Divindade.Nenhuma creatura é parcela ou centelha da Divindade, como querem os poetas;se a Divindade se parcelasse, ela se diminuiria na razão direta do seu

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parcelamento.As creaturas são apenas manifestações da Divindade, ou existencializações

múltiplas da Essência una e única. (ROHDEN, 1996, p. 60-61) (grifo nosso).

E em Jesus Nazareno, Rohden, volta ao assunto, desta vez dizendo:

Há quase vinte séculos que a cristandade se agita em controvérsias sobre aquestão se Cristo é Deus ou não, confundindo Deus com Divindade.

Jesus faz ver aos seus adversários que ele, como a mais alta emanaçãoindividual (Deus) da Divindade não é escravo, mas Senhor do sábado, e não temde obedecer a leis humanas.

Em todo esse diálogo com seus ouvintes, afirma Jesus que o seu Cristo éDeus, mas que o Pai, que é a Divindade, é maior do que ele, o Cristo, a primeirae mais alta emanação individual da Divindade Universal. Entretanto, como osouvintes não sabiam distinguir entre Deus e Divindade (Pai), compreendem malas palavras de Jesus. Ele, porém, continua a afirma que está na Divindade e aDivindade está nele, embora a Divindade seja maior do que ele. Acrescenta quea Divindade também está em todos os homens, e todos os homens estão naDivindade, por isto, todo homem é Deus, uma emanação individual daDivindade, embora nenhum homem seja a própria Divindade Universal.

Para ilustrar esta verdade, poderíamos fazer o seguinte paralelo. Um raiosolar pode dizer: Eu e o Sol somos um; o Sol está em mim, e eu estou no Sol –mas o Sol é maior do que eu.

Esta imanência de Deus nas creaturas é chamada “panenteísmo” (tudo emDeus), que não é “panteísmo” (tudo é Deus).

A Divindade é a única Essência, que está imanente em todas as Existências.A Divindade é o Infinito, assim como a Essência única está em todas asExistências múltiplas. (ROHDEN, 2007, p. 103-104).

Rohden foi muito feliz em suas colocações; somente o fanatismo, que embota oraciocínio, impede de entendê-lo.

Ademais falta aos fanáticos um pouco mais de coerência, pois deveriam dar a outrostextos a mesma linha de interpretação que dão a “Eu e o pai somos um” (Jo 10,30). Vejamosos passos:

Rm 12,5: “Assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, eindividualmente uns dos outros”.

1Cor 10,17: “Pois nós, embora muitos, somos um só pão, um só corpo; porque todosparticipamos de um mesmo pão”.

Gl 3,28: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nemmulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.

Em nenhuma dessas falas de Paulo, poderemos dar uma interpretação literal, teremos,pois, por lógica e bom senso, tomá-las no sentido simbólico, tal e qual devemos aplicar à falade Jesus em João (Jo 10,30).

Mais uma fala de Paulo:

Gl 2,19-20: “Pois eu pela lei morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estoucrucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida queagora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a simesmo por mim”.

Se o “Cristo vive em mim” então, podemos concluir que Paulo é o Cristo. Sabemos serapelação, mas é exatamente isso que fazem a respeito de Jesus, quando querem tomá-lo àconta de ser o próprio Deus.

Acreditamos que as pessoas que creem na Trindade tomam Jesus por Deus, baseando-se no “Eu e o Pai somos um”; entretanto, esse entendimento carece de lógica, pois, para

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também justificar o Espírito Santo como sendo Deus, não apresentam uma afirmativa comoessa, no sentido de que o Espírito Santo e Deus também sejam um, ou mesmo umasemelhante, tal como: “Eu, o Pai e o Espírito Santo somos um”.

Jo 14,28: “Ouvistes que eu vos disse: 'Vou, e voltarei a vós. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai; porque o Pai é maior do que eu'”.

Não fosse a teimosia em querer sustentar suas crenças, essa passagem seria o “tiro demisericórdia” na questão de Jesus ser Deus, porquanto, ele aqui foi taxativo em afirmar queDeus é maior do que ele, e o que é maior, por questões de razão e lógica, não pode,simultaneamente, ser visto como se fosse uma igualdade. Aliás, dizer que formam uma únicaentidade, mas distintas ao mesmo tempo, já é, para nós, uma grande contradição.

Jo 15,1: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o viticultor”.

Percebemos que se tem de fazer muito esforço exegético para querer sustentar a tesede que Jesus é Deus, porquanto, são inúmeras as passagens que nos apontam na direçãocontrária. O sentido metafórico aqui é claro, não podemos tomar um pelo outro, ou seja, Jesuscomo sendo o próprio Deus, pois a videira não pode ser tomada pelo cultivador, da qual édono. Também, por lógica, não se deve tomar o filho com o pai, nem a coisa com o dono.

Jo 20,26-28: “Oito dias depois estavam os discípulos outra vez ali reunidos, e Tomécom eles. Chegou Jesus, estando as portas fechadas, pôs-se no meio deles e disse: 'Pazseja convosco'. Depois disse a Tomé: 'Chega aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos;chega a tua mão, e mete-a no meu lado; e não mais sejas incrédulo, mas crente'.Respondeu-lhe Tomé: 'Senhor meu, e Deus meu!'.

Essa é mais uma das passagens utilizadas para sustentar que Jesus é Deus. Preferimostomar de outra tradução a expressão final de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”, para facilitaro entendimento. É algo que sempre acontece conosco no dia a dia, quando nos surge umacontecimento extraordinário e exclamamos: “Meu Deus”. Ou ao encontramos um amigo quenão vemos de longa data, lhe dizer: “Meu Deus, você aqui!”. Certamente, que não queremoselevar ninguém à categoria da divindade; é apenas uma forma de falar, tal e qual,acreditamos, aconteceu com Tomé. Aliás, causa-nos espécie essa fala de Tomé só ter sidonarrada apenas por um dos evangelistas, quando fato semelhante a esse em importância - idade Jesus do Pretório ao Calvário -, foi narrado pelos quatro (Mt 27,31-32; Mc 15,20-21; Lc23,25-26 e Jo 19,16-17).

At 2,22: “Varões israelitas, escutai estas palavras: A Jesus, o nazareno, varãoaprovado por Deus entre vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus por ele fezno meio de vós, como vós mesmos bem sabeis;”.

Certamente que a afirmativa de Pedro, que Jesus era um varão aprovado por Deus,está bem longe de se atribuir a Ele uma condição divina, porquanto, ser aprovado varão é umacoisa, ser Deus é outra completamente diferente.

Pepe Rodríguez, mencionando esse passo, assim explica a questão:

Os Actos dos Apóstolos atestam exactamente isso, ou seja, que aprimitiva fé cristã distinguia cuidadosamente entre Deus e Cristo, como se vê,por exemplo, em Act 2,22, onde se diz:” Varões israelitas, escutai estaspalavras: Jesus de Nazaré, credenciado por Deus a vossos olhos por seusmilagres, prodígios e sinais que Deus fez por seu intermédio no meio de vós[...]”, ou em Act 7,55: “Ele [trata-se de Estêvão], cheio do Espírito Santo, olhoupara o céu e viu a glória de Deus e Jesus em pé à direita de Deus”. A invejávelvista de Estêvão talvez não seja tão boa como parece, se a tomarmos por umdos recursos literários de que Lucas habitualmente se serve para introduzir nosseus textos inspirados dados alheios aos próprios factos. No caso vertente, essedado é a famosa visão de Mc 16,19, que supõe Jesus “sentado à direita deDeus”. É evidente, no entanto, que quer para Lucas como para Marcos,Deus e Jesus são duas entidades absolutamente separadas, diferentes ede natureza distinta. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 175) (grifo nosso).

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Na opinião desse estudioso, em seu tempo, Jesus não era considerado Deus, isso foicoisa que aconteceu posteriormente, com o desenvolvimento do cristianismo, que muitoabraçou das crenças pagãs.

At 3,13: “O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou aseu Servo Jesus, a quem vós entregastes e perante a face de Pilatos negastes,quando este havia resolvido soltá-lo”.

A afirmativa de Pedro é categórica quanto à situação de Jesus de ser um servoglorificado por Deus, não cabendo nenhuma outra interpretação que eleve Jesus à condição deser o próprio Deus, numa encarnação humana.

At 3,22: “Pois Moisés disse: 'Suscitar-vos-á o Senhor vosso Deus, dentre vossosirmãos, um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser'”.

At 3,26: “Deus suscitou a seu Servo, e a vós primeiramente vo-lo enviou para quevos abençoasse, desviando-vos, a cada um, das vossas maldades”.

Continuando seu discurso, Pedro relaciona Jesus a Moisés que, segundo acreditavam,havia feito uma profecia de que Deus iria enviar um profeta semelhante a ele (Dt 18,15); dissosó temos uma alternativa: aceitar que Pedro e todos os outros discípulos tinham Jesus comoum profeta; não como a encarnação de Deus.

Por outro lado, a crença dos judeus era que, segundo as profecias, Deus lhes enviariaum Messias (ungido); não que ele mesmo viria para restabelecer a sua aliança com o povohebreu.

At 4,27-31: “Porque verdadeiramente se ajuntaram, nesta cidade, contra o teu santoServo Jesus, ao qual ungiste, não só Herodes, mas também Pôncio Pilatos com osgentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselhopredeterminaram que se fizesse. Agora pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças, econcede aos teus servos que falam com toda a intrepidez a tua palavra, enquantoestendes a mão para curar e para que se façam sinais e prodígios pelo nome de teusanto Servo Jesus. E, tendo eles orado, tremeu o lugar em que estavam reunidos; etodos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com intrepidez a palavra de Deus”.

Aí temos uma fala atribuída à comunidade cristã (v. 24), na qual se reafirma o quePedro dissera a respeito de Jesus, tendo-o como um santo servo de Deus, o que nos indica seressa a crença geral naquela época.

At 5,31: “Sim, Deus, com a sua destra, o elevou a Príncipe e Salvador, para dar aIsrael o arrependimento e remissão de pecados”.

Ora, se Deus elevou Jesus à condição de Príncipe e Salvador é porque Ele estava numasituação inferior a essa, razão pela qual, não O podemos ter como Deus, pois isso implica emcontradizer o que daí podemos entender.

At 9,22: “Saulo, porém, se fortalecia cada vez mais e confundia os judeus quehabitavam em Damasco, provando que Jesus era o Cristo”.

Se pela crença daquela época tinham Jesus como Deus, por que motivo Paulo nãotentava provar isso, mas que Jesus era o Cristo? Cristo significa em grego ungido e emhebraico messias, portanto alguém subordinado à divindade e não ela própria.

At 10,36-38: “A palavra que ele enviou aos filhos de Israel, anunciando a paz por JesusCristo (este é o Senhor de todos) esta palavra, vós bem sabeis, foi proclamada por todaa Judeia, começando pela Galileia, depois do batismo que João pregou, concernente aJesus de Nazaré, como Deus o ungiu com o Espírito Santo e com poder; o qualandou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do Diabo, porqueDeus era com ele”.

O que aqui ocorre é semelhante ao passo anterior; portanto, se Deus ungiu a Jesus com

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“o Espírito Santo e com poder” é pelo fato de que Ele não gozava dessa condição, o que nosleva a acreditar que era inferior à nova situação; aquela depois de ungido e de ter recebido opoder.

At 10,42: “este nos mandou pregar ao povo, e testificar que ele é o que por Deus foiconstituído juiz dos vivos e dos mortos.

Dessa fala de Pedro temos que Jesus disse que Deus o havia constituído juiz, como sóse outorga uma condição dessa a quem não a tem, esse é o motivo que não nos permiteconcluir que Jesus seja Deus; até mesmo porque, no sentido real, ninguém concede algumacoisa a ele mesmo.

Rm 1,1-4: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para oevangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santasEscrituras, acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne,e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade,pela ressurreição dentre os mortos - Jesus Cristo nosso Senhor,”.

Aqui a coisa vai mais longe, pois, se Jesus foi declarado Filho de Deus segundo oespírito de santidade, nós outros o que somos? Ainda mantemos a ideia dos dois comentáriosanteriores, pois Jesus foi declarado ser algo que antes não era; consequentemente, não temoscomo elevá-Lo a uma situação de ser Ele o próprio Deus.

Rm 1,8: “Primeiramente dou graças ao meu Deus, mediante Jesus Cristo, portodos vós, porque em todo o mundo é anunciada a vossa fé”.

2Cor 12,21: “e que, quando for outra vez, o meu Deus me humilhe perante vós, echore eu sobre muitos daqueles que dantes pecaram, e ainda não se arrependeram daimpureza, prostituição e lascívia que cometeram.”

Fl 1,2: “Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós”.

Fl 4,19: “Meu Deus suprirá todas as vossas necessidades segundo as suas riquezas naglória em Cristo Jesus”.

Fm 1,4: “Sempre dou graças ao meu Deus, lembrando-me de ti nas minhas orações”.

Teria Paulo perdido essas oportunidades para afirmar que Jesus era Deus, ou definirDeus como sendo três pessoas? Acreditamos que não, porquanto, não era essa a concepçãoque faziam de Jesus àquela época, conforme está ficando cada vez mais claro nesse estudo.

Rm 8,1-14: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em CristoJesus. Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e damorte. Porquanto o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deusenviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa dopecado, na carne condenou o pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisseem nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois os que sãosegundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo oEspírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas ainclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contraDeus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser; e os que estão nacarne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas noEspírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem oEspírito de Cristo, esse tal não é dele. Ora, se Cristo está em vós, o corpo, naverdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. E,se o Espírito daquele que dos mortos ressuscitou a Jesus habita em vós, aquele que dosmortos ressuscitou a Cristo Jesus há de vivificar também os vossos corpos mortais,pelo seu Espírito que em vós habita. Portanto, irmãos, somos devedores, não à carnepara vivermos segundo a carne; porque se viverdes segundo a carne, haveis demorrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis. Pois todos osque são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus”.

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Na verdade, não encontramos nada nessa passagem; porém, como a vimos ser citada(o que consta em negrito) para justificar que Jesus é Deus, resolvemos colocá-la aqui. Mas écerto que o Espírito de Deus habita em nós; não fomos criados à sua semelhança? O sentidofigurado não pode ser outro a não ser esse. E realmente, se uma pessoa não tem o Espírito deCristo, ou seja, age como Ele agiu, não é dele, porquanto, não o segue no exemplo.

Rm 9,3-5: “Porque eu mesmo desejaria ser separado de Cristo, por amor de meusirmãos, que são meus parentes segundo a carne; os quais são israelitas, de quem é aadoção, e a glória, e os pactos, e a promulgação da lei, e o culto, e as promessas; dequem são os patriarcas; e de quem descende o Cristo segundo a carne, o qual é sobretodas as coisas, Deus bendito eternamente. Amém.

Muitas vezes deparamos com uma situação como essa; a de que a pontuação usadapelos tradutores pode nos levar a uma conclusão equivocada do que se está querendo dizer. Seno trecho final (v. 5) fosse dito: “[...] e de quem descende o Cristo segundo a carne, o qual ésobre todas as coisas; Deus bendito eternamente. Amém”, perceberíamos que o sentido dafrase é diferente do que se poderia pensar que aqui estar-se-ia se dizendo que Jesus é Deus.

Quanto à questão da pontuação, é bom que se saiba:

[...] Um dos problemas com textos gregos antigos (o que incluiria todosos escritos cristãos mais primitivos, incluindo os do Novo Testamento) é que,quando eram copiados, não se usavam marcas de pontuação, não sefazia distinção entre minúsculas e maiúsculas e, o que é ainda maisestranho para leitores modernos, não havia espaços de separação entre aspalavras. Este tipo de escrito sequencial é chamado de scriptuo continua e, éclaro, muitas vezes, podia dificultar ler (nem falemos em entender) um texto. Aspalavras godisnowhere poderiam significar algo completamente distinto para umcrente (God is now here = Deus está aqui agora) e para um ateu (God isnowhere = Deus não está em parte alguma) e o que significa dizernojantardanoitepassadaamesaestavaabundante? Isso seria um acontecimentonormal ou extraordinário? (EHRMAN, 2006, p. 58) (grifo nosso).

Sabemos que os manuscritos originais do Novo Testamento nãopossuíam pontuação, e em face do fato de o grego clássico (incluindo o gregokoiné, no qual foi escrito o Novo Testamento) gozar de ampla liberdade notocante à ordem das palavras, é impossível, à base do próprio texto grego,provar um lado ou outro dessas ideias contraditórias. […] (SILVA, C., 2001, p.309-310) (grifo nosso).

[…] Os manuscritos originais também não tinham sinais depontuação. Estes foram introduzidos na arte de escrever em época recente. Éclaro, pois, que a pontuação moderna não é inspirada, e por isso não dá, àsvezes, sentido às palavras do original. (SILVA, A., 1997, p. 77) (grifo nosso).

Disso conclui o teólogo Russell N. Champlin (1933- ) “Já que os primeiros manuscritosdo N.T. são sem pontuação sistemática, editores e tradutores do texto devem inserir taismarcas de pontuação como parecem apropriadas à sintaxe e ao significado. […]” (CHAMPLIN,vol. 3, 2005c, p. 745). Isso, de fato, torna-se um problema muito sério, pois um sinal depontuação mudado de lugar, acrescentado ou suprimido, seja por interesse ou não de quem ofez, pode alterar profundamente o sentido do texto. Para exemplificar isso, vejamos como oversículo 5, do passo citado, se encontra em outras traduções bíblicas:

Bíblia do Peregrino: “[…] de sua linhagem segundo a carne descende o Messias. Sejapara sempre bendito o Deus que está acima de tudo. Amém”.

Bíblia Vozes: “[…] e deles é o Cristo segundo a carne. O Deus que está acima de tudoseja bendito pelos séculos! Amém”.

Tradução Novo Mundo: “[…] e de quem [procedeu] o Cristo segundo a carne: Deus,que é sobre todos, [seja] bendito para sempre. Amém”.

Observe-se que em todas, além da disposição dos vocábulos, há divergência napontuação, o que também ocorre comparando-as com a que transcrevemos mais acima.

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Certamente, que o sentido delas, em relação à primeira, é completamente diferente emvirtude da pontuação, entre um período e outro, pois, quer se usando um ponto, quer seusando os dois, não temos a mesma ideia de que no caso de usarmos uma vírgula, como notexto questionado. Assim, percebe-se que a intenção no texto é destacar Deus como sendo overdadeiro e não a Jesus, o que se pode perfeitamente confirmar pelas próprias palavras deJesus se referindo ao Pai: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o únicoDeus verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste”. (Jo 17,3).

As duas primeiras Bíblias – do Peregrino e Vozes - são de cunho católico e a últimaprotestante. Acreditamos, sinceramente, que o significado seja o que daqui tiramos dessastraduções e não o da outra citada anteriormente. Isso porque, conforme estamosdemonstrando, Jesus, àquela época, não era considerado como sendo o próprio Deus, somosobrigados a repetir. Esse fato veio a acontecer posteriormente, por imposição dos denominados“pais da Igreja”, cuja interpretação acabou prevalecendo; portanto, são eles os “pais dacriança”, ou seja, os culpados de transformar Jesus em Deus; e, na sequência, para abrigaresse absurdo teológico, foi criada a Trindade, que conforme acreditamos, foi copiada de outrasreligiões mais antigas.

O certo é que Paulo, autor da carta aos Romanos, não tinha Jesus como Deus. Esse fatoé importante, porquanto ele viveu bem mais próximo dos acontecimentos do que os “pais daIgreja”. Leiamos o que ele disse aos colossenses:

Cl 1,15-20: “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito, anterior aqualquer criatura; porque nele foram criadas todas as coisas, tanto as celestes comoas terrestres, as visíveis como as invisíveis: tronos, soberanias, principados eautoridades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas ascoisas, e tudo nele subsiste. Ele é também a Cabeça do corpo, que é a Igreja. Ele é oPrincípio, o primeiro daqueles que ressuscitam dos mortos, para em tudo ter aprimazia. Porque Deus, a Plenitude total, quis nele habitar, para, por meio dele,reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendoa paz pelo seu sangue derramado na cruz”.

Caso Paulo realmente pensasse que Jesus fosse Deus, nunca iria dizer "ele é a imagemdo Deus invisível" e "aprouve a Deus fazer habitar nele a plenitude”; e para quem afirma que"… não há senão um só Deus" (Rm 3,30), é porque não pensava em divinizá-lo ou em torná-loum Deus; certamente usou uma metáfora para evidenciar a grandeza de Jesus, que sabemoster participado da criação do mundo, como preposto de Deus.

1Cor 1,22-24: “Pois, enquanto os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria,nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para osgregos, mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder deDeus, e sabedoria de Deus”.

A figura de linguagem é notória; Paulo sempre colocou Jesus como mediador entreDeus e os homens (Gl 3,19-20; 1Tm 2,5) e, neste sentido, Ele está com o poder e a sabedoriade Deus, sem exatamente ser o próprio Deus. O autor de Hebreus, como exemplo, tem essamesma visão de Paulo, ou seja, para ele também Jesus é mediador. (Hb 8,6; 9,15 e 12,24).

1Cor 8,4-6: “Quanto, pois, ao comer das coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que oídolo nada é no mundo, e que não há outro Deus, senão um só. Pois, ainda que hajatambém alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra (como há muitosdeuses e muitos senhores), todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem sãotodas as coisas e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qualexistem todas as coisas, e por ele nós também”.

Gl 3,20: “Ora, o mediador não o é de um só, mas Deus é um só.

Ef 4,46: “Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma sóesperança da vossa vocação; um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus ePai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos”.

1Tm 2,5: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo

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Jesus, homem,”.

Também seriam excelentes oportunidades para Paulo dizer que existe um só Deus e quenele há três pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo; entretanto, não o faz, porquanto, aindanão havia sido criada a crença na Trindade, o que só aconteceu posteriormente, conforme já odissemos. Então, se aqui Jesus não foi elevado à categoria de um Deus, extemporaneamente,isso não deveria ter sido feito pelos teólogos dogmáticos. Na última passagem ainda se reforçaa condição de Jesus ser homem, embora não se possa negar sua condição de mensageiroDivino, o maior Espírito que pisou o solo da Terra.

2Cor 4,4: “nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, paraque lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagemde Deus.

Cl 1,13-15: “e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do seuFilho amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; o qual éimagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;”.

Confundir a imagem de uma pessoa com a própria pessoa é algo em que falta bomsenso e lógica, aos que assim procedem. Se Jesus é a imagem de Deus, não pode ser, aomesmo tempo, o próprio Deus, como a nossa imagem no espelho não é o nosso ser; é, narealidade, apenas um reflexo do “meu físico”.

Gl 4,4-5: “mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido demulher, nascido debaixo de lei, para resgatar os que estavam debaixo de lei, a fimde recebermos a adoção de filhos”.

Se, conforme se entende, Jesus não teria vindo destruir a Lei (Mt 5,17), tendo nascidode mulher e debaixo da lei, ou seja, nasceu de forma natural, como acontece a todos nós, poisessa é a Lei, então, ele é um ser humano, em igualdade de condições conosco. Aliás, Elemesmo afirmou “Tudo o que eu fiz, vós podeis fazer e até muito mais” (Jo 14,13); dessa formaEle se iguala a todos nós, sem se colocar na posição de um ser superior e divino. Essa frasetorna-se impossível aplicar-se caso Jesus seja um ser divino, na condição humana, porém,totalmente factível, se Jesus for um homem em missão divina.

Ef 4,11-13: “E ele deu uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros comoevangelistas, e outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dossantos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todoscheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, ao estado dehomem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo;”.

Ora, se podemos chegar à medida da estatura da plenitude de Cristo é sinal de que Elenão é Deus, porquanto, nunca chegaremos à plenitude de Deus, uma vez que, se isso pudesseacontecer, teríamos vários deuses; melhor dizendo, bilhões de deuses. Entretanto, não nosserá impossível chegar ao estado de homem feito (espírito puro).

Fp 2,5-11: “Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, oqual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa aque se devia aferrar, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a simesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus oexaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo nome; para que ao nomede Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, etoda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai”.

Aqui temos uma declaração bem conflitante com o restante dos textos bíblicos, na qualsupõem-se que Paulo declara ser Jesus igual a Deus; entretanto, parece-nos que os tradutoresda Bíblia de Jerusalém pensam de outra forma; tanto é que a palavra Deus está grafada emletra minúscula, querendo significar um homem “não-pecador” (Bíblia de Jerusalém, p. 2049).Esclarece-nos ainda mais, dizendo que o versículo 6b possuiu “outras traduções menosprováveis: 'não considerou o estado de igualdade com Deus como presa a agarrar”, “não

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reteve ciumentamente a condição que o igualava a Deus”, (Bíblia de Jerusalém, p. 2049). Issonos despertou a curiosidade para ver como consta em outras Bíblias. Vejamos:

Versões bíblicas Texto bíblico Fp 2,5-6:

SBTB/TBS, SBB eSBTB

"De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também emCristo Jesus, que sendo em forma de Deus, não teve por usurpaçãoser igual a Deus”.

Shedd e MundoCristão

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus,pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou comousurpação o ser igual a Deus;”.

De Jerusalém“Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus: Ele, estando naforma de Deus não usou de seu direito de ser tratado como umdeus”.

Barsa“E haja entre vós o mesmo sentimento que houve também em JesusCristo. O qual tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse neleuma usurpação ser igual a Deus:”

Paulinas/Loyola“Comportai-vos entre vós assim, como se faz em Jesus Cristo: ele, que éde condição divina, não considerou como presa a agarrar o seigual a Deus”.

Pastoral“Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Jesus Cristo:Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdadecom Deus”.

Ave Maria“Dedicai-vos mutualmente a estima que se deve em Cristo Jesus. Sendoele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade comDeus”.

Santuário“Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus: Eleque era de condição divina não reivindicou o direito de serequiparado a Deus”.

Vozes“Tende em vós os mesmos sentimentos que Cristo Jesus teve: Ele,subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si serigual a Deus”.

Paulinas 1957,1977 e 1980

“Tende em vós os mesmos sentimentos que (houve) em Jesus Cristo, oqual, existindo na forma (ou natureza) de Deus, não julgou quefosse uma rapina o seu ser igual a Deus”.

Novo Mundo“Mantende em vós esta atitude mental que houve também em CristoJesus, o qual, embora existisse em forma de Deus, não deuconsideração a ser igual a Deus”.

Temos o velho problema das traduções que, em obediência à concepção individual doautor bíblico, acabaram por transformar Jesus no próprio Deus, sem nenhum fundamento noque Ele disse, mas, apenas, seguindo crença generalizada entre os povos antigos. E nissoforam bem mais longe, pois, enquanto os pagãos acreditavam que o seu deus vinha à terra eem contato carnal com uma mulher virgem gerava um semideus, os cristãos elevaram o seusemideus à condição de Deus.

Tem plena razão o escritor José Pinheiro de Souza (1938- ), quando diz:

Do mesmo modo, os escritores cristãos da igreja primitiva (sobretudo Paulo eJoão), influenciados pela cultura mitológica dominante da época (a culturagrego-romana), onde era muito comum a crença em “encarnações divinas” e em“filiação divina”, não no sentido adotivo/metafórico/honorífico, mas no sentidonatural (físico/biológico), para enaltecer ao máximo a pessoa de Jesus e as suasações e, sobretudo, para dar credibilidade ao cristianismo nascente,absolutizaram-no, endeusando-o e fazendo-o super exclusivista, o único “Filhode Deus”, o único Deus encarnado (no sentido natural dessas expressões), oúnico salvador da humanidade, o único mediador entre Deus e os homens, oúnico fundador da verdadeira religião, o único que verdadeiramente ressuscitoudos mortos, etc. (SOUZA, 2010, p. 35-36).

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Mais à frente, acrescenta:

Paulo de Tarso, para dar credibilidade ao cristianismo primitivo e atrairseguidores de várias religiões do mundo pagão do Mediterrâneo, procurouconverter os adeptos dessas religiões pagãs, utilizando a estratégiamítica de que Cristo também era uma divindade salvadora, vinda do céu,tendo nascido miraculosamente (como os demais deuses das religiõespagãs) mediante um parto virginal, tendo sido morto e ressuscitadopara resgatar-nos de nossos pecados herdados do pecado de Adão eEva.

O Paulinismo, como estamos comprovando nesta obra, é, de fato, cópia e/ouincorporação de crenças, de cultos e de ritos de várias religiões pagãs de épocasmais antigas do que o cristianismo, destacando-se o culto a Ísis, a Dionisio e aMitra. Para atrair seguidores para o cristianismo, Paulo fez sincretismo comelementos de várias religiões e filosofias, particularmente com elementos dasreligiões de mistério do Egito, da Grécia, do paganismo greco-romano, da Índiae de várias outras culturas religiosas mais antigas:

As evidências da grande semelhança entre a religião cristã e outras crenças domundo antigo são volumosas, detalhadas, extremamente específicas eincrivelmente vastas, estendendo-se desde a sabedoria védica na Índia aos mitosnórdicos da Escandinávia, às lendas dos incas e à espiritualidade original dos povosindígenas da América do Norte (HARPUR, 2008, p. 43)

(SOUZA, 2010, p. 40-41) (grifo nosso).

Analisando-se friamente os textos bíblicos não podemos deixar de dar razão ao fato deque o cristianismo tem muito das religiões pagãs; somente não se vê isso por extremadaortodoxia.

Cabe-nos ressaltar que o prof. Pinheiro é da opinião de que foi Paulo o responsável peladivinização de Jesus, conforme se vê nesse seu texto. Outra pessoa que pensa da mesmaforma é a historiadora e advogada Paloma Sánchez-Garnica (1962- ), autora da obra O grandeArcano, da qual transcrevemos:

As massas arrastadas pela sua mensagem cresceram tanto nos anosposteriores à sua morte, que surgiram os oportunistas. A população romanizadagostava de ouvir a mensagem de Jesus de Nazaré. Mas essa populaçãoprecisava de um homem superior, reclamava que essa mensagem procedesse deum ser divino, pois estava acostumada a venerar mil deuses. Não se podiaapresentar o porta-voz daquelas palavras como um homem normal, e começou-se a tergiversar o fundamental em toda essa farsa: a ressurreição de Jesus deNazaré em corpo e alma, sua divinização levada ao extremo, equiparando-o aopróprio Deus, quando Ele em nenhum momento dissera que era Deus. […] Issopode ser comprovado nos Evangelhos. Nenhum dos quatro evangelistas põe naboca de Jesus sua identificação com Deus; quando lhe é perguntado quem é,responde que é “filho do homem”, dando a entender que era um homem semmais adjetivos, e isso já podia ser considerado corno a mais alta honraria.

Foi nas Epístolas de Paulo que apareceu a expressão “Filho de Deus”,e precisamente a Paulo se atribuiu a origem dessa ideia da ressurreiçãoe da divinização do homem.

Assim tudo começou. A partir de então, surgiu uma profusão de ideias e delinhas de pensamento: as lutas e enfrentamentos foram numerosos, até quevenceu uma dessas correntes; aquela fundada por Paulo e mantida pela correntegrega foi a que triunfou e se impôs ao restante; estabeleceu seu poderdefinitivamente no concílio de Niceia de 325 e afastou, destruiu, perseguiu ouconsiderou como hereges todos os que não estivessem de acordo com ela. Ostextos originais dos Evangelhos foram alterados, porque era necessárioadaptá-los à população a que eram dirigidos, uma população não judia,e sim romana, helenizada e com uma mentalidade distinta à dos judeus a quemJesus havia se dirigido; sua verdadeira mensagem ficou em um segundo plano:valia tudo para aumentar o número de discípulos da nova religião.

A partir desse momento, ou se estava com a Igreja ou contra ela. Em poucosanos, os perseguidos passaram a ser perseguidores; e assim se passaram dois

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mil anos. (SÁNCHEZ-GARNICA, 2008, p. 427-428) (grifo nosso).

Nosso objetivo em trazê-la foi para vermos que também ela afirma que os textosoriginais dos Evangelhos foram adulterados, para adaptá-los aos dogmas estabelecidos.

1Tm 3,16: “E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Aquele que semanifestou em carne, foi justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre osgentios, crido no mundo, e recebido acima na glória”.

Esse passo é mais um dos que precisamos ver o teor em outras traduções, parapodermos ver por qual motivo o tomam para sustentar que Jesus, como Deus, ter-se-iamanifestado na carne. Vejamos:

Versões bíblicas Texto bíblico 1Tm 3,16

SBTB“E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus semanifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos,pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória”.

SBB "E sem dúvida alguma grande é o mistério da piedade: Aquele que semanifestou em carne, foi justificado em espírito, [...]”.

Shedd e MundoCristão

“Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foimanifestado na carne foi justificado em espírito, […]”.

De Jerusalém “Seguramente, grande é o mistério da piedade: Ele foi manifestado nacarne, justificado no Espírito, [...]”.

Barsa “E visivelmente é grande o sacramento da piedade, com que Deus semanifestou em carne, foi justificado pelo espírito, [...]”.

Paulinas/Loyola: “Grande é, com certeza, o ministério da piedade. Ele foi manifestadona carne, justificado pelo Espírito, [...]”.

Pastoral “De fato, como é grande o mistério da piedade: ele se manifestou nacarne, foi justificado no espírito, […]”.

Do Peregrino “Grande é sem dúvida o mistério de nossa religião: Manifestou-secorporalmente, justificado no Espírito, [...]”.

Ave Maria “Sim, é tão sublime – unanimemente o proclamamos – o Mistério dabondade divina: manifestado na carne, justificado no Espírito, [...]”.

Santuário “Em verdade, grande mistério é o da piedade. Manifestou-se na carne,foi justificado pelo Espírito, […]”.

Vozes “Não pode haver dúvida de que é grande o mistério da piedade: Ele foimanifestado na carne, foi justificado no espírito, [...]”

Paulinas 1957,1977 e 1980

“E evidentemente é grande o mistério da piedade, que se manifestouna carne, que foi justificado pelo Espírito, visto pelos anjos, pregadoaos gentios, crido no mundo, exaltado na glória”.

Novo Mundo “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: aquele que foimanifestado na carne, foi justificado em espírito, […]”.

Enquanto nas versões da SBTB e Barsa a personagem que se manifestou na carne foi opróprio Deus, nas restantes foi Jesus. Visando resolver o impasse buscamos orientação emRussell Norman Champlin, que dá a seguinte explicação para “... Aquele que foi manifestadona carne...”:

Essas palavras ensinam tanto a “preexistência”, como a“encarnação” de Cristo. (Ver o trecho de João 1:1-3;14 acerca dessasdoutrinas bíblicas). A divindade de Cristo não é aqui ensinadadiretamente, mas somente uma pessoa divina poderia ter realizado tudoquanto aqui é atribuído a Cristo. (Ver Heb. 1:3 quanto a notas expositivas sobrea “divindade de Cristo”). Além disso, esta epístola defende a “humanidadeautêntica” de Jesus, o Cristo, o que era negado pelo docetismo ensinado pelosgnósticos. Cristo é a “epifania” de Deus, isto é, a sua “manifestação”. Assim

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sucedeu quando da encarnação, e assim sucederá novamente quando de sua“parousia” ou segundo advento. (ver as notas expositivas completas a esserespeito, em I Tes. 4:15. Quanto à exposição dessas verdades, nestas epístolaspastorais, ver os trechos de I Tim. 6:14 e II Tim. 1:10, que frisam a primeiramanifestação, e ver I Tim. 4:1,8, que salienta a segunda futura manifestação. Otrecho de I João 3:2 pode ser comparado quanto à primeira manifestação; e otrecho de I Tim. 4:2 pode ser posto em confronto com a passagem presente, notocante à ênfase sobre a autêntica humanidade de Jesus, como Verboencarnado, onde tal ideia combate, uma vez mais, o docetismo dos gnósticos). Avinda de Cristo foi “... na carne...” Essa expressão é usada exclusivamente aqui,nas “epístolas pastorais”. (Comparar com João 1:14 e I João 4:2; II João 7; Rom1:3; 8:3 e 9:5). O hino que encontramos aqui começa afirmando a verdadecentral do cristianismo, que faz parte do grande mistério da nossa fé.(CHAMPLIN, 2005e, p. 317) (grifo nosso).

Embora reconheça o real significado da expressão, Champlin busca dar-lhe o sentido dealgo que dá sustentação à divinização de Jesus. É sempre a mesma história que ocorre comaqueles que ficam presos aos dogmas estabelecidos: não enxergam o óbvio.

Quanto a explicação sobre a divergência nas traduções, encontramo-la em Bart D.Ehrman:

Em 1715, Wettstein foi à Inglaterra (em uma turnê literária) e teve completoacesso ao Códice Alexandrino, do qual já ouvimos falar quando abordamosBentley. Uma parte do manuscrito mereceu a atenção particular de Wettstein:era uma daquelas questões acessórias de consequências enormes: dizia respeitoao texto de uma passagem-chave do livro de I Timóteo.

A passagem em questão, I Timóteo 3, 16, fora usada durante muito tempopor defensores da teologia ortodoxa em apoio da visão segundo a qual o próprioNovo Testamento chama Jesus Deus. É que o texto, na maioria dos manuscritos,refere-se a Cristo como "Deus tornado manifesto na carne e justificado noEspírito". Como já indiquei no capítulo 3 deste livro, a maioria dos manuscritosabreviava os nomes sagrados (os chamados nomina sacra, e esse é o casojustamente aqui, onde o termo grego para Deus (ΘEOΣ é abreviado com duasletras, teta e sigma (ΘΣ), com uma linha traçada no topo das duas para indicarque se trata de uma abreviatura. Wettstein percebeu, ao examinar o CódiceAlexandrino, que a linha sobre as duas letras fora feita em uma tinta diferenteda que fora usada para as palavras circundantes, de onde se depreende queprovinha de uma mão tardia (isto é, traçado por um copista posterior). Alémdisso, o traço horizontal do meio da primeira letra, Θ, não fazia realmente parteda letra, mas era uma linha que vazara desde o outro lado do velho velino. Emoutros termos, em vez de se tratar de uma abreviatura (teta-sigma) de "Deus"(ΘΣ, a palavra era realmente formada por um ômicron e um sigma (OΣ), umapalavra completamente diferente, que significa simplesmente "quem". A redaçãooriginal do manuscrito não falava, pois, de Cristo como "Deus manifestado nacarne", mas de Cristo, "que foi manifestado na carne". De acordo com otestemunho antigo do Códice Alexandrino, Cristo deixa de ser explicitamentechamado de Deus nessa passagem. (ERMAN, 2006, p. 123)

Na verdade, já vimos uma variação textual relacionada a essa controvérsiacristológica em nossa discussão, no capítulo 4, das pesquisas textuais de J.J.Wettstein. Wettstein examinou o Códice Alexandrino, atualmente na BibliotecaBritânica, e determinou que em 1 Timóteo 3,16, onde a maioria dos manuscritosfala de Cristo como “Deus tornado manifesto na carne”, esse manuscritoprimitivo fala originalmente de Cristo “que foi tornado manifesto na carne”. Amudança, em grego, é muito sutil – é apenas a diferença entre as letras teta eômicron (ΘΣ e OΣ), que são muito semelhantes. Um copista tardio alterou avariante original, de modo que se deixou de ler “que” e passou a ler “Deus”(tornado manifesto na carne). Em outros termos, esse revisor tardio mudou otexto de modo a enfatizar a divindade de Cristo. É chocante perceber que amesma correção ocorreu em quatro dos nossos outros manuscritos primitivos de1 Timóteo. Todos eles encontraram revisores que mudaram o texto do mesmomodo, de modo que agora ele chama Jesus explicitamente de “Deus”. Esse setornou o texto da vasta maioria dos manuscritos bizantinos (isto é, medievais)posteriores – e por isso se tornou o texto da maioria das traduções antigas da

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Bíblias. (EHRMAN, 2006, p. 167).

Foi ótimo tomar conhecimento disso, pois agora temos argumentos para refutar aquelesque advogam que Jesus é o próprio Deus.

1Pe 3,18: “Porque também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelosinjustos, para levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificadono espírito;”.

A ressurreição espiritual de Jesus (vivificado no espírito) é um fato que leva muitaspessoas a divinizá-Lo, sem se darem conta de que todos os seres humanos tambémressuscitarão; uns para a glória (viver como espíritos puros), outros para a perdição (planetasinferiores, onde haverá prantos e ranger de dentes). O dia em que o homem se render àrealidade do Espírito, o que de fato somos, então entenderá isso; até lá continuará mantendosuas crenças, tal e qual crianças que, por exemplo, acreditam ser verdadeira a história,contada pelos adultos, de que os bebês são entregues por cegonhas.

1Jo 5,1: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo, é o nascido de Deus; e todoaquele que ama ao que o gerou, ama também ao que dele é nascido”.

Entendamos o que significa a palavra Cristo: “O termo de origem grega significa'ungido' e traduz o termo hebraico 'messias'. Os sumos sacerdotes (Lv 4,3-16; 15,16) e os reisde Israel (1Sm 12,3-5; 24,7.11; 2Sm 19,22) eram chamados de 'ungidos'”. (Bíblia SagradaVozes – p. 1520) e até mesmo Ciro, rei da Pérsia, um pagão recebe o título “ungido deIahweh” (Is 45,1) (Bíblia de Jerusalém, p. 1325). Assim, percebemos que se trata de um títuloe não um nome próprio como muitas vezes vemos nomeando-O, quando o correto seria dizer:Jesus, o Cristo. Se outras passagens bíblicas trazem pessoas também consideradas comoungidos, então não podemos dizer que a condição de “ungido” O transforma em divino, já quesua divindade decorre de sua evolução espiritual.

1Jo 5,7-8: “Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; eestes três concordam”.

Em princípio, esse passo nada teria a ver com o caso; entretanto, ele consta dealgumas Bíblias8 com teor semelhante a este da Bíblia Anotada:

“Pois há três que dão testemunho [no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; eestes três são um. E três são os que testificam na terra]: o Espírito, a água e osangue, e os três são unânimes num só propósito”.

Vejamos o que nos explicam sobre essa divergência (o que grifamos):

O texto dos vv. 7-8 é acrescido na Vulg. De um inciso (aqui abaixo entreparênteses) ausente dos antigos mss gregos, das antigas versões e dosmelhores mss da Vulg., o qual parece ser uma glosa marginal introduzidaposteriormente no texto: “Porque há três que testemunham (no céu: o Pai, oVerbo e o Espírito Santo, e esses três são um só; e há três que testemunham naterra); o Espírito, a água e o sangue, e esses três são um só” (Bíblia deJerusalém, p. 2132-2133). (grifo nosso).

De acordo com os melhores códigos, o texto original devia ser oseguinte: “O Espírito, a água e o sangue, e estes três são unânimes”. Estes vv.São conhecidos como o “Coma Joaneo”, cujo acréscimo tem sua autenticidadecontestada embora seja verdadeira a doutrina nele exposta. (Bíblia Barsa, NT, p.221). (grifo nosso).

Depois de “os que dão testemunhos”, ?ABVgSyh,p omitem as palavrasacrescentadas em mss. gr. Posteriores e na Vgc, a saber: 'no céu, o Pai, aPalavra, e o espírito santo; e estes três são um. (Trad. Novo Mundo, p. 1407).(grifo nosso).

8Bíblia Sagrada – SBTB, Bíblia Anotada, Bíblia Shedd, Bíblia Sagrada – SBB, Bíblia Sagrada – Paulinas, 9ª, BíbliaSagrada – Paulinas, 37ª ed. e Bíblia Sagrada – Barsa.

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Jung, ao dizer que “não existe uma só passagem do Novo Testamento na qual aTrindade seja mencionada dum modo que possa ser expresso numa linguagem racional”,remete-nos a uma nota na qual ele explica o seguinte:

O chamado Comma Johanneum que, sob este ponto de vista, constitui umaexceção, é um caso comprovadamente tardio e de origem duvidosa. Comotextus per se (texto em si) e como revelatum explicitum (como reveladoexplícito) seria a prova mais convincente da ocorrência da Trindade no NovoTestamento. Trata-se de 1Jo 5,7: “Porque são três os que testificam: o Espírito ea água e o sangue, e estes três estão de acordo, (isto é, convergem notestemunho de que Cristo veio “pela água e pelo sangue”. A Vulgata, nestelugar, traz a inserção tardia: “Quonian tres sunt, qui testiomonium dant in coelo:Pater, Verbum et Spiritus Sanctus: et hi tres unum sunt” [Porque três são os quedão testemunho no céu: o Pai, o Verbo e o Espirito Santo, e estes três são umsó].[...] (JUNG, 1988, p. 27).

Um estudioso que também fala disso é o ex-evangélico Bart D. Ehrman, Ph.D. emTeologia pela Princeton University e dirige o Departamento de Estudos Religiosos da Universityof North Carolina, Chapel Hill. É especialista em Novo Testamento, igreja primitiva, ortodoxia eheresia, manuscritos antigos e na vida de Jesus; ele afirma:

Havia, contudo, uma passagem-chave das Escrituras que os manuscritos-fonte de Erasmo não continham: trata-se do relato de 1 João 5,7-8, que ospesquisadores chamaram de o parêntese joanino, encontrado nos manuscritosda Vulgata latina, mas não na vasta maioria dos manuscritos gregos, umapassagem que foi, por muito tempo, a predileta entre os teólogoscristãos, dado que é a única passagem na Bíblia inteira que delineiaexplicitamente a doutrina da Trindade, segundo a qual há três pessoasna divindade, com todas as três constituindo um só Deus. Na Vulgata, apassagem é lida assim:

Há três que conduzem o testemunho nos céus: o Pai, o Verbo e o Espírito eesses três são um; e há três que conduzem o testemunho na terra, oEspírito, a água e o sangue, e esses três são um.

Trata-se de uma passagem misteriosa, mas inequívoca em seu apoio aosensinamentos tradicionais da igreja sobre o "Deus trino que é um". Sem esseversículo, a doutrina da Trindade deve ser inferida de uma série de passagenscombinadas para mostrar que Cristo é Deus, assim como o Espírito e o Pai, eque há, não obstante, um só Deus. Essa passagem, por seu turno, afirma adoutrina direta e sucintamente.

Mas Erasmo não a achou em seus manuscritos gregos, nos quaissimplesmente se lê: "Pois há três que dão testemunho: o Espírito, aágua e o sangue, e esses três são um". Para onde foram "o Pai, o Verbo e oEspírito"? Eles não figuravam no manuscrito primário de Erasmo, nem emnenhum dos demais que ele consultou. Por isso, naturalmente, ele os deixou defora de sua primeira edição do texto grego.

Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que tirou do sério os teólogos deseu tempo, que acusaram Erasmo de adulterar o texto, numa tentativa deeliminar a doutrina da Trindade e de desvalorizar o seu corolário, adoutrina da divindade plena de Cristo. Particularmente Stunica, um doseditores-chefes da Poliglota Complutense, veio a público desacreditar Erasmo einsistir em que, em edições futuras, ele restituísse o versículo a seu lugarcorreto.

Com o desenrolar dos fatos, Erasmo - provavelmente em um momento dedescuido - concordou em inserir o versículo em uma futura edição de seu NovoTestamento grego, sob uma condição: que seus adversários produzissem ummanuscrito grego no qual o verso pudesse ser encontrado (achá-lo nosmanuscritos latinos não era o bastante). Dessa forma, produziu-se ummanuscrito grego. Na realidade, ele foi produzido nessa ocasião. Parece quealguém copiou o texto grego das epístolas e, quando chegou à passagem emquestão, traduziu o texto latino para o grego, dando o parêntese joanino emsua forma teologicamente aproveitável, familiar. O manuscritoprovidenciado para Erasmo era, em outras palavras, uma produção do

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século XVI, feita sob encomenda. (EHRMAN, 2006, p. 91-92) (grifo nosso).

Assim, estamos vendo que a adição, que aparece em algumas traduções da Bíblia, temo objetivo de se justificar a Trindade, dogma de Constantino, anuído pela Igreja Católica, o quepoderá ser comprovado em nosso texto anteriormente indicado. Lembramos apenas que “Deusé realmente um, e é apenas em nossa capacidade limitada de conceber que Deus se tornatrês”. (Barth, Karl, 1969, apud LORENZEN, 2002, p. 57).

1Jo 5,20: “Sabemos também que já veio o Filho de Deu.s, e nos deu entendimentopara conhecermos aquele que é verdadeiro; e nós estamos naquele que éverdadeiro, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vidaeterna”.

Passagem ao gosto dos “divinizantes”, que, apressadamente, a apresentam parasustentar suas crenças. Só que a coisa pode não ser tanto quanto querem, visto que, essapassagem, na versão dos tradutores da Bíblia de Jerusalém, tem o seguinte teor:

Nós sabemos que veio o Filho de Deus e nos deu a inteligência para conhecermos oVerdadeiro (c). E nós estamos no Verdadeiro, no seu Filho Jesus Cristo. Este é o Deusverdadeiro e a Vida eterna.

Explicam-nos, em nota, o seguinte: c) Deus, o único verdadeiro (Jo 17,3+; cf. 8,31);1Ts 1,9; Ap3,4) e o único verdadeiramente conhecido pelo que ele é: Vida e Amor. (Bíblia deJerusalém, p. 2134). O que significa dizer que “O verdadeiro” que negritamos no passo deveser entendido como “Deus, o único verdadeiro”.

Na Bíblia Sagrada Vozes, encontramos a seguinte redação:

“Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecermos oVerdadeiro. E nós estamos no Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Ele é o verdadeiroDeus e a vida eterna”.

Observa-se, que o “este”, da tradução anterior, passa a ser “Ele”. Seus tradutores nosexplicam “O Verdadeiro” dessa forma: o verdadeiro Deus, ou então, Deus, o Verdadeiro.(Bíblia Sagrada Vozes, p. 1553). O que faz ter o sentido diferente da tradução anterior. Deigual modo a Bíblia Do Peregrino e Novo Testamento Loyola, encontramos “Ele”.

Assim, percebemos que a polêmica toda, em torno dessa passagem, está ligada àquestão de qual manuscrito se toma para as traduções. Por tudo que levantamos até omomento sobre o assunto, temos a convicção de que na passagem o “este” está se referindo aDeus e não a Jesus; essa ideia só se mantém por conta das traduções divergentes.

Considerando que, conforme já o dissemos alhures, o povo (Mt 16,13-14; 26,67-68; Jo7,40 e 9,17), os discípulos (Lc 24,19; At 3,22) e o próprio Jesus (Lc 13,33;. Jo 8,40 e Mc 6,4-5) diziam ser ele, o Mestre, um profeta; não somos nós que iremos negar isso, já que nãovivemos naquela época.

Seria de grande interesse ver como esse problema já vem de longa data, sem queainda se tenha ouvido as “vozes que clamam no deserto”.

Flávio Cláudio Juliano (em latim Flavius Claudius Iulianus) ou simplesmente Juliano(331-363) foi o último imperador pagão do Império Romano, e reinou entre 361 e a suamorte; vejamos o que Henry Bettenson (1910-1979), cita dele:

r. Juliano opina sobre cristianismo: O culto de Jesus e dos mártires JulianoContra Christianos, apud Cirilo de Alexandria contra Julianum, X (op. IX.326ss)

Mas, infortunadamente, não sois fiéis às tradições apostólicas: estas emmãos dos seus sucessores tornaram-se em máxima blasfêmia. Nem Paulo,nem Mateus, nem Lucas ou Marcos ousaram afirmar que Jesus é Deus.Foi o venerável João quem, constatando que grande número de habitantes dascidades gregas e italianas eram vítimas de epidemias, e ouvindo, imagino, queas tumbas de Pedro e Paulo se tornavam objeto de culto (privado, sem dúvida,mas sempre culto), João, repito, foi quem primeiro ousou fazer tal afirmação...

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Este mal se deve a João. Quem, entretanto, denunciará a causa desta outrainovação, qual seja, a veneração dos corpos de muitos cristãos mortosultimamente, além dos corpos dos apóstolos? Tendes enchido as praças comtumbas e monumentos... Opinais que no particular nem sempre valem aspalavras de Jesus... (Mt 23.27) declarando que os sepulcros estão cheios deimundície... como podeis invocar a Deus acima deles? (BETTENSON, 1967, p.49-50) (grifo nosso).

Ernest Renan (1823-1892) disse que “Jesus não declara em momento algum que eleseja Deus. Ele se diz em relação direta com Deus, se diz filho de Deus. A mais alta consciênciade Deus existente no seio da humanidade foi a de Jesus”. (RENAN, 2004, p. 138). E mais àfrente, encontramos:

Que jamais Jesus tenha pensado em se fazer passar por umaencarnação do próprio Deus, é uma coisa que não se pode duvidar. Talideia era profundamente estranha ao espírito do Judaísmo; não há nenhumvestígio dela nos Evangelhos sinóticos [25], só a encontramos indicada naspartes do quarto Evangelho que menos podem ser aceitas como um eco dopensamento de Jesus. Às vezes parece que Jesus toma precauções para repelirtal doutrina [26]. A acusação de passar por Deus, ou igual a Deus, éapresentada, mesmo no quarto Evangelho, como uma calúnia dosjudeus [27]. Nesse último Evangelho, Jesus se declara menor que seu Pai [28].Em outro lugar, confessa que o Pai não lhe revelou tudo [29]. Ele se toma porum homem além do comum, mas separado de Deus por uma distância infinita.Ele é filho de Deus; mas todos os homens o são ou podem tornar-se emdiversos níveis [30]. Todos, a cada dia, devem chamar a Deus seu pai; todosos ressuscitados serão filhos de Deus [31]. No Antigo Testamento a filiaçãodivina era atribuída a seres que não se pretendiam, de forma alguma,igualar a Deus [32]. A palavra “filho”, nas línguas semíticas e na língua doNovo Testamento, tem as mais variadas acepções [33]. Além disso, a ideia queJesus faz do homem não é essa ideia humilde que um frio deísmo introduziu. Emsua poética concepção da natureza, um único sopro permeia o universo: o soprodo homem é o de Deus. Habitando no homem, Deus vive pelo homem, assimcomo o homem que habita em Deus vive por Deus [34]. O idealismotranscendente de Jesus nunca lhe permitiu ter uma visão clara de sua própriapersonalidade. Ele é seu pai, seu Pai é ele. Ele vive em seus discípulos, está emtoda parte com eles [35]; seus discípulos são um, como ele e seu Pai são um[36]. A ideia, para ele, é tudo; o corpo, que faz a distinção das pessoas, não énada.______[25] Certas passagens, como Atos, II, 22, a excluem formalmente.[26] Mat. IV, 10; VII, 21, 22; XIX, 17; Marc. I, 44; III, 12; X, 17, 18; Luc., XVIII, 19.[27] João V, 18 e seg.; X, 33 e seg.[28] João XIV, 28.[29] Marc., XIII, 35.[30] Mat. V, 9,45; Luc. III, 38; VI, 35; XX, 36; João, 1, 12-13; X, 34-35, Comp. Atos,XVII, 28-29; Rom. VII, 14-17, 19, 21, 23; IX, 26; II Cor. VI, 18; Gálat. III, 26; IV, I eseg.; Fíl. II, 15; epístola de Barnabé, 14 (p. 10, Hilgenfeld, segundo o Codex Sinaïticus).e,no Antigo Testamento, Deuter. XIV, 1 e sobretudo Sabedoria II, 13, 18.1[31] Luc. XX, 36.[32] Gen. VI, 2; Jó I, 6; II, 1; XXVIII, 7; Salmo II, 7; LXXXII, 6; VII, 14.[33] O filho do diabo (Mat., XIII, 38; Atos, XIII, 10); os filhos deste mundo (Marc., III, 17;Luc., XVI, 8; XX, 34); os filhos da luz (Luc., XVI, 8; João, XII, 36); os filhos daressurreição (Luc., XX, 36); os filhos do reino (Mat., VIII, 12; XIII, 38); os filhos do esposo(Mat., IX, 15; Marc., II, 19; Luc., V, 34); os filhos da geena (Mat., XXIII, 15); os filhos dapaz (Luc., X, 6), etc. Lembremos que o Júpiter do paganismo é pater andron te theon te.[34] Comp. Atos, XVII, 28.[35] Mat. XVIII, 20; XXVIII, 20.[36] João X, 30; XVII, 21. Ver, em geral, os últimos discursos relatados pelo quartoEvangelho, principalmente o cap. XVII, que exprimem bem um lado do estado psicológicode Jesus, embora não se possa encará-los Como verdadeiros documentos históricos.

(RENAN, 2004, p. 260-264). (grifo nosso).

Bart D. Ehrman afirma incisivamente que “Os escritos originais do Novo Testamento,porém, raramente trazem algo tão categórico como a firmação 'Jesus é Deus'” (EHRMAN,

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2008, p. 324), em nota ele explica: “Há algumas passagens que se aproximam disso (porexemplo, João 8:58, 10:30, 14:9) e eis uma das razões pelas quais os proto-ortodoxosgostavam delas, mas nenhuma faz menção explícita de Jesus como Deus”. (EHRMAN, 2008, p.389).

Juan Arias, jornalista, filólogo, escritor e ex-sacerdote, nascido Arboleas, Almería(Espanha) em 1932. Cursou teologia, filosofia, psicologia, línguas semíticas e filologiacomparada na Universidade de Roma. Durante quatorze anos foi correspondente na Itália e noVaticano para o jornal espanhol El País. Antes disso, cobriu para o jornal Pueblo trabalhos do IIConcílio do Vaticano. Viajou inúmeras vezes ao redor do mundo acompanhando os papas PauloVI e João Paulo II. É autor de vários livros, publicados em mais de dez idiomas. Recebeu oPremio a la Cultura de la Presidencia del Gobierno e o Castiglione de Sicilia como melhorcorrespondente estrangeiro. Atualmente é correspondente no Brasil para El País e membro doComitê Científico do Instituto Europeu de Design. Da sua obra Jesus esse grande desconhecidotranscrevemos:

Jesus era diferente. Sem nunca renegar a sua condição de judeu cioso da Lei,foi imensamente crítico em relação à religião fossilizada de seu tempo. Nuncase proclamou Messias nem Deus, mas os que o seguiam, diante dosprodígios que realizava, sentiam-no como tal ou desejavam que o fosse. E, pormais que ele às vezes protestasse, dizendo que não era ele mas Deusquem operava os milagres, as pessoas e até os próprios apóstolosacreditavam literalmente que o novo Reino que ele anunciava era também umreino temporal e concreto que devolveria a Israel a liberdade perdida. Econfiaram nele. (ARIAS, 2001, p. 100-101) (grifo nosso).

Arias possui credenciais suficientes para darmos crédito ao que fala. Se tivesse numencontro com o Presidente dos Estados Unidos, certamente, que este lhe diria: “Esse é o cara”.

Concluímos dizendo que criar um mito é fácil, derrubá-lo torna-se a coisa mais difícil,tarefa quase impossível mesmo, visto que a grande maioria de nós não tem humildadesuficiente para reconhecer que está errado, de um lado; e de outro o apego aos conhecimentosadquiridos como certos faz com que neguemos quase tudo o que nos vem de forma contrária;mesmo diante de elementos comprobatórios das verdades que nos são apresentadas; ou seja,agimos puramente por preconceito. Nossa maneira de agir é tal qual a daqueles que nãoqueriam olhar o céu pelo telescópio de Galileu...

Se estendemos por demais esse estudo, não foi sem razão, visto tratar-se, como já odissemos, de um assunto polêmico; por isso seguimos: “O rigor da crítica exige uma buscalonga e precisa, um exame de cada ponto, depois dos quais, com vagar e precaução, podemosafirmar que estes autores dizem a verdade e aqueles outros mentem sobre os prodígios quenarram”. (ORÍGENES, 2004, p. 440).

Apenas mais três coisinhas, antes de finalizar, se nos permite a sua paciência, caroleitor. Todos nós temos repulsa aos rituais sangrentos de sacrifícios de animais; pior aindaquando, ao invés de animais, são utilizados seres humanos. A origem deles sabemos ser osrituais pagãos; mas, apesar disso, encontramos nas páginas da Bíblia, tanto um quanto ooutro. Os rituais de expiação pelos pecados praticados pelos judeus envolviam animais –touros, bodes, carneiros, cabritos, etc. -, na tola esperança de serem perdoados de seuspecados, quando o supremo Criador do Universo passa a perdoá-los por ter sentido o “odoragradável” de carne assada. Aliás, não sabemos quem inventou essa história, pois Deus negaveementemente que tenha instruído tais barbaridades: “Pois quando tirei do Egito osantepassados de vocês, eu não falei nada nem dei ordem alguma sobre holocaustos esacrifícios” (Jr 7,22) e também afirmou que “eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento deDeus mais do que holocaustos” (Os 6,6); essa afirmação foi confirmada pelo Mestre que disse:“E amá-lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como asi mesmo, é melhor do que todos os holocaustos e do que todos os sacrifícios". (Mc 12,33).

Manassés, rei de Judá (687-642 a.C.), chegou a sacrificar seu filho no fogo (2Rs 21,1-7), o que também fez Acaz, rei de Israel (737-732 a.C.) (2Cr 18,1-4). Jefté, nono juiz deIsrael, para cumprir uma promessa idiota que fez, mandou queimar sua filha (Jz 11,30-40),até mesmo toda Jerusalém foi acusada de entregar seus filhos para serem queimados (Ez16,20-21; Jr 19,4-5).

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Um outro sacrifício foi feito por Jerusalém; aquele que fazem questão de lembrar todosos anos na Semana Santa. É isso mesmo; embora, não tenham queimado Jesus, numaoferenda, não deixaram por menos; pregaram-no numa cruz. Sabemos que, na verdade, nãofoi um sacrifício oferecido; mas a cristandade tem sua morte como tal, o que corroboramos emRohden:

Infelizmente, porém, a ideia do bode expiatório que morreu para ojudaísmo, continua no cristianismo, com a diferença de que agora o bodeexpiatório não é mais um animal inocente, que, morrendo, extinga os pecadoshumanos, mas sim o único homem sem pecados que, segundo a teologia, pagacom sua morte os pecados da humanidade. (ROHDEN, 1996, p. 96) (grifonosso).

E aí, magistralmente, conclui:

Depois desse pagamento dos pecados da humanidade pelo sangue deJesus, era de se esperar que o homem estivesse quite com a justiçadivina; mas os teólogos ensinam que todo homem nasce de novo em estado depecado, vive e morre cheio de pecados – não se sabe em virtude de que lógica...(ROHDEN, 1996, p. 97) (grifo nosso).

Aceitando isso como querem, ou seja, o Messias como um “bode expiatório”, então,estamos diante de mais um absurdo teológico: Deus aceitando a expiação do pecado dahumanidade após um sacrifício humano, que foi o do seu filho Jesus.

Dito isso, vamos às três coisas:

1ª) Como um sacrifício de uma pessoa até a morte pode redimir o pecado de umaoutra?;

2ª) Caso Jesus seja mesmo Deus, ficaremos em grande dificuldade para entender, comoDeus, descendo do céu, encarnando num corpo humano (Jesus), utiliza-se de suamorte na cruz para oferecer-se em sacrifício a si próprio visando a remissão dospecados da humanidade. Não seria mais prático e, portanto, mais lógico fazer isso comum simples perdão?;

3ª) Considerando que os rituais de sacrifício eram feitos pelos pecados já cometidos,então devemos esperar um outro Cristo para morrer pelos nossos, os cometidos depoisde sua morte até o presente?

Fechando esse estudo, queremos apenas acrescentar que não temos a pretensão dedemover os que advogam a divindade de Jesus, da ideia de ser ele o próprio Deus, nemconvertê-los à nossa maneira de pensar; estamos apenas propondo uma reflexão sobre esseassunto, e os que tiverem “ouvidos de ouvir, que ouçam”. Você, caro leitor, poderá atéestranhar o motivo pelo qual enveredamos nessa reflexão. Respondemos: É que sempreachamos impossível seguir o exemplo de Jesus considerando-o como sendo Deus; e pensandoassim, nenhum esforço fazíamos para tal; entretanto, considerando-o um ser humanoencarnado como todos nós, e deixando a sua evolução fora disso, é mais viável assimentender, embora saibamos não ser uma tarefa muito fácil.

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A morte de Jesus foi para a remissão de pecados?

Sempre ouvimos dos cristãos tradicionais, especialmente os do segmento evangélico,que Jesus teria morrido na cruz para remissão dos nossos pecados. É um descalabro, que,certamente, não corresponde aos fatos históricos, pois, na realidade, a sua morte foi porquestões políticas, obviamente, com o incentivo dos líderes religiosos de sua época que nãotoleravam seu discurso.

O que percebemos é que as pessoas, que pensam dessa forma, querem, de fato, é asalvação “de graça”, pela qual não têm que fazer, absolutamente, nada para “ganhar” o “céu”.Aliás, modernamente, tem-se entendido que o “céu” e o “inferno” são estados de consciência enão lugares geográficos. Acreditamos que essa visão seja mesmo a interpretação lógica,levando-se em conta que Jesus disse aos fariseus “o reino de Deus está dentro de vós” (Lc17,21). Isso nos remete à conclusão que somente a transformação moral pode levar-nos aimplantá-lo dentro dos nossos corações, de forma que todas as nossas ações sejam pautadasna recomendação de “amar ao próximo como a si mesmo” (Mt 19,19).

É importante, para nosso estudo, saber a ordem cronológica dos textos bíblicos, poisisso nos auxiliará na tentativa de descobrir quem seria o autor epígrafe dessa crença de que amorte de Jesus foi para remissão dos pecados, que reputamos, absurda e de cunho totalmentepagão. Iremos basear-nos na ordem proposta pelo professor Julio Trebolle Barrera (?- ),doutorado em Filosofia Semítica e Teologia, membro do Comitê internacional de publicação dosManuscritos do Mar Morto, autor de vários livros sobre crítica textual.

1 Tessalonicenses (51)2 Tessalonicenses (51 ou anos 90)Gálatas (54-57)Filipenses (56-57)1 Coríntios (57)2 Coríntios (57)Romanos (58) Filêmon (56-57 ou 61-63)Colossenses (61-63 ou anos 70/80)Efésios (61-63 ou anos 90/100)Marcos (anos 65-70)Tito (65 ou 95-100)1 Timóteo (65 ou 95-100)2 Timóteo (66 ou 95-100)Hebreus (anos 60 ou 70/80)Mateus (anos 70/80)Lucas (anos 70/80)Atos dos Apóstolos (anos 70-80)1 Pedro (64 ou anos 70/80)Tiago (62 ou anos 70/80)João (anos 90)1 João (anos 90)2 João (anos 90)3 João (anos 90)Apocalipse de João (anos 90)2 Pedro (100-150)(BARRERA, 1999, p. 287-289)

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Vejamos, então, qual será o critério para a “salvação”, se é pelas obras, pela morte deJesus na cruz ou, se ainda, por algum outro motivo.

Salvação pelas obras?

O primeiro ponto a ser levantado é saber em que, de fato, consistia a “salvação” paraJesus. Acreditamos que podemos encontrá-la no que ele disse sobre qual o critério que seráusado para o julgamento de cada um de nós e na parábola do juízo final, conforme consta,respectivamente, dos seguintes passos:

Mt 16,27: “Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, eentão retribuirá a cada um de acordo com a própria conduta”.

Mt 25, 31-46: “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado de todosos anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serãoreunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa asovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à suaesquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: 'Venham vocês, quesão abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhespreparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deramde comer; eu estava com sede, e me deram de beber; eu era estrangeiro, e mereceberam em sua casa; eu estava sem roupa, e me vestiram; eu estavadoente, e cuidaram de mim; eu estava na prisão, e vocês foram me visitar'.Então os justos lhe perguntarão: 'Senhor, quando foi que te vimos com fome e tedemos de comer, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos comoestrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que tevimos doente ou preso, e fomos te visitar?' Então o Rei lhes responderá: 'Eu garanto avocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi amim que o fizeram'. Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: 'Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava comsede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberamem casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e naprisão, e vocês não me foram visitar'. Também estes responderão: 'Senhor, quandofoi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente oupreso, e não te servimos?' Então o Rei responderá a esses: 'Eu garanto a vocês: todasas vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não ofizeram'. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão paraa vida eterna”.

Em ambos os textos, podemos ver que, “quando o Filho do homem vier”, o julgamentoterá como critério a avaliação das ações a favor do próximo, que é exatamente o que se afirmacom a expressão: “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27), cujo teor foi reforçado com oexemplo dado no segundo passo.

Por outro lado, a própria ideia de ocorrer um julgamento já induz a conclusão lógica deque alguma coisa será medida, pesada ou avaliada o que, portanto, conflita com a morte dealguém visando a remissão de pecados, que nada mais é que uma crença de pagã. Os judeusadoraram-na em sua cultura religiosa, quando Moisés estabeleceu o ritual do bode expiatóriopara remissão dos pecados do povo. Vejamos o passo:

Lv 16,5-16: “Receberá da comunidade dos filhos de Israel dois bodes para osacrifício pelo pecado e um cordeiro para o holocausto. Depois de oferecer o bezerrocomo sacrifício pelo seu próprio pecado, e de ter feito a expiação por si mesmo e pelasua família, Aarão pegará os dois bodes e os apresentará diante de Javé, na entrada datenda da reunião. Tirará a sorte sobre os dois bodes: um será de Javé e o outrode Azazel. Pegará o que foi sorteado para Javé e o oferecerá como sacrifíciopelo pecado. Quanto ao bode que foi sorteado para Azazel, será colocado vivodiante de Javé, para fazer a expiação, e depois será mandado para Azazel nodeserto. Aarão oferecerá o bezerro do sacrifício pelo seu próprio pecado. Em seguidafará o rito de expiação por si mesmo e por sua família, e imolará o bezerro. Então

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encherá um incensório com brasas tiradas do altar diante de Javé e pegará doispunhados de incenso aromático em pó. Levará tudo para trás do véu, e colocará oincenso sobre o fogo, diante de Javé; uma nuvem de incenso cobrirá a placa que estásobre o documento da aliança; assim ele não morrerá. Depois pegará sangue dobezerro e aspergirá, com o dedo, o lado oriental da placa; depois, diante da placa farácom o dedo sete aspersões de sangue. A seguir imolará o bode do sacrifício pelopecado do povo e levará o sangue para trás do véu. Com esse sangue, fará omesmo que fez com o sangue do bezerro, aspergindo sobre a placa e diantedela. Fará desse modo o rito de expiação pelo santuário, pelas impurezas dosfilhos de Israel, pelas transgressões e por todos os pecados deles. Fará omesmo com a tenda da reunião, estabelecida entre eles no meio de suas impurezas”.

Por necessidade, Moisés atribuiu esse ritual como tendo origem divina. Embora nãotenha nenhum sentido em julgá-lo por conta disso, não quer dizer que ainda devemos praticaratos tão bárbaros como os aqui mencionados.

É bom deixar bem claro que Jesus, aquele a quem incondicionalmente seguimos, veiocom a missão específica de ensinar o “caminho de Deus” (Mt 22,16), não para servir de bodeexpiatório para “lavar” os pecados dos homens. Aliás, acreditamos que para não ficar algoforte designá-lo de “bode expiatório”, buscam, capciosamente, amenizar denominando-o“cordeiro expiatório”. Mudaram o termo; porém, a função continuou a mesma: morrer pagapagar pelos pecados dos outros.

Vejamos mais algumas passagens indicativas de que seremos responsabilizados pelasnossas ações:

Ex 34,7: “Ele conserva seu amor por milhares de gerações, tolerando a falta, atransgressão e o pecado, mas não deixa ninguém impune: castiga a falta dos paisnos filhos, netos e bisnetos".

Nm 14,18: “Javé, paciente e misericordioso, que perdoas a culpa e a transgressão,mas não nos deixas sem castigo; que castigas a culpa dos pais em seus filhos,netos e bisnetos”.

A crença de que haverá punição é algo bem claro nesses dois passos; porém, salta aosolhos a injustiça de se penalizar os filhos pela culpa dos pais. Da forma como está, certamenteentra em conflito com “Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pelaculpa dos pais. Cada um será executado por causa de seu próprio crime” (Dt 24,16, vertambém Jr 31,29-30 e Ez 18,20). É melhor explicarmos, pois, na verdade, não há injustiçaalguma. Vamos ver o primeiro passo, na versão dos tradutores da Bíblia de Jerusalém:

Ex 34,7: “[...] e castiga a falta dos pais nos filhos e nos filhos dos seus filhos, até aterceira e a quarta geração”.

O problema é que a preposição “até”, utilizada no texto, diz que os filhos e netossofrem pelos erros dos pais, coisa totalmente injusta, indigna mesmo daquilo que podemoschamar de Justiça Divina; porém, se ela fosse alterada para “na”, ainda que não fosse atradução correta, nada de injusto aconteceria. Veja, caro leitor, que essa simples mudança dapreposição faz uma enorme diferença, porquanto se a pena ocorrer “na” terceira e quartageração, o próprio espírito infrator estaria pagando, em “suaves prestações”, pelo erro quecometeu, uma vez que reencarna como seu neto ou bisneto, o que tornará a lei justa, vamosassim dizer, pois o espírito, que está sendo punido, não é outro senão aquele mesmo que atransgrediu.

Recentemente, tivemos a oportunidade de conhecer como é o teor deste texto (Ex34,7) na Torá e o anterior que fala quase a mesma coisa (Ex 20,6):

Ex 34,7: “[...] visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, sobreterceiras e quartas gerações.” (TEMPLO ISRAELITA, 2001, pag. 266, grifo nosso).

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Ex 20,6: “[...] que visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e quartasgerações, aos que me aborrecem; […]”. (TEMPLO ISRAELITA, 2001, p. 214, grifonosso).

Certamente, que a preposição “sobre” não tem o mesmo significado de “até”, estámais para ter o de “na”, conforme nossa sugestão, um pouco mais acima, em alterar o “até”,que consta de muitas traduções bíblicas cristãs.

Vale a pena colocar o que o profeta Ezequiel disse:

Ez 18,20: “O indivíduo que peca, esse é que deve morrer. O filho nunca seráresponsável pelo pecado do pai, nem o pai será culpado pelo pecado do filho. Ojusto receberá a justiça que merece e o injusto pagará por sua injustiça”.

Este é o senso de justiça que todos deveríamos ter: a pena deve somente ser aplicadaao próprio infrator. E, diante disso, cabe-nos fazer a pergunta: Como nos imputam o pecado deAdão e Eva, qual é a base que tomam para sustentar tamanho disparate?

Em Deuteronômio encontramos um trecho bem significativo, do qual podemos tirarinteressantes conclusões:

Dt 25,1-3: “Quando houver demanda entre dois homens e forem à justiça, eles serãojulgados, absolvendo-se o inocente e condenando-se o culpado. Se o culpadomerecer açoites, o juiz o fará deitar-se no chão e mandará açoitá-lo em suapresença, com número de açoites proporcional à culpa. Podem açoitá-lo atéquarenta vezes, não mais; isso para não acontecer que a ferida se torne grave, casoseja açoitado mais vezes, e seu irmão fique marcado diante de você”.

Retomando de nossos comentários, que dissemos alhures:

“absolvendo-se o inocente”: isto significa que não se deve condenar um inocente.

“condenando-se o culpado”: por questão de justiça o culpado deverá ser condenado.

“se o culpado merecer açoites”: sinal que pode haver situação especial em que oculpado não mereça receber um castigo; uma repreensão poderia, talvez, ser maisútil.

“o juiz... mandará açoitá-lo em sua presença”: a presença pessoal do Juiz indica anecessidade de se ter certeza do cumprimento da pena, se o culpado a merecer.

“com número de açoites proporcional à culpa”: sendo o castigo proporcional àculpa, significa que não poderá haver pena igual para todos os tipos de infração à lei.

“podem açoitá-lo até quarenta vezes, não mais”: significa, incontestavelmente,que tudo tem um limite, que a pena não poderá ser eterna, muito menos de morte,já que a pena deve ser efetiva, mas não definitiva.

Alguma dúvida quanto a necessária e justa punição, que se deve aplicar ao culpado?Aliás, é comum dizer-se, quando da ocorrência de algum crime bárbaro: “errou tem quepagar”. Será que esse mesmo senso de justiça, que advogamos, não se deve também atribui-lo a Deus no julgamento que irá fazer?

2Sm 7,13-14: “Ele é que vai construir uma casa para o meu nome. E eu estabelecerei otrono real dele para sempre. Serei para ele um pai e ele será um filho para mim. Seele falhar, eu o corrigirei com bastão e chicote, como se costuma fazer”.

Merece ser ressaltado que a intenção é corrigir quem errou e não punir, como pensa amaioria das pessoas. A correção indica o uso do amor, para reconduzir o infrator ao caminhocerto, já a punição leva-nos a crer em estar ela motivada pelo sentimento de vingança, no qualnão há nenhum intuito de mostrar o que deveria ter sido feito, visando a melhoria do infrator.

1Rs 8,32: “Escuta do céu e age. Julga os teus servos: condena o culpado, dando-lheo que merece, e absolve o inocente, tratando-o conforme a justiça dele”.

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Além de absolver o inocente é intrínseco ao critério de justiça condenar somente oculpado. Dessa forma, já se pode ver que a crença comum, naquela época, nada tem a vercom remissão de pecados.

2Mc 6,12-16: “Recomendo àqueles que lerem este livro, que não fiquem perturbadospor causa de tais calamidades. Ao contrário, pensem que esses castigos não vierampara destruir, mas apenas para corrigir a nossa gente. É sinal de grande bondadenão deixar por muito tempo sem castigo aqueles que cometem injustiça, masaplicar-lhes logo a merecida punição. O Senhor não age conosco como faz com osoutros povos, esperando pacientemente o tempo de castigá-los, até que os pecadosdeles cheguem ao máximo. Ele quis agir dessa forma conosco, para não chegarmosprimeiro ao extremo dos nossos pecados, e só então nos castigar. Significa que elenunca retira de nós a sua misericórdia. Mesmo quando nos corrige com desgraças, nãoestá abandonando o seu povo”.

Fantástica a assertiva de que “é sinal de grande bondade não deixar por muito temposem castigo aqueles que cometem injustiça”, melhor que isso não é preciso; porém, temosmais; sigamos em frente.

Jó 34,11: “Deus paga ao homem conforme as suas obras e retribui a cada umconforme a sua conduta”.

Pr 3,11-12: “Meu filho, não despreze a disciplina de Javé, nem se canse com o avisodele, porque Javé corrige aqueles que ama, como o pai corrige o filho preferido”.

Eclo 18,8-14: “A duração de sua vida é de cem anos no máximo. Como gota no mar egrão na areia, tais são os seus poucos anos frente a um dia da eternidade. É por issoque o Senhor tem paciência com os homens, e derrama sobre eles a suamisericórdia. Ele vê e reconhece que o fim deles é miserável, e por isso multiplicapara eles o seu perdão. A misericórdia do homem é para o seu próximo, porém amisericórdia do Senhor é para todos os seres vivos. Ele repreende, corrige, ensina edirige, como o pastor conduz o seu rebanho. Ele tem compaixão dos que aceitam acorreção, e dos que se esforçam para lhe cumprir os mandamentos”.

Is 26,10: “Se absolvermos o malvado, ele nunca aprende a justiça; sobre a terraele distorce as coisas direitas e não vê a grandeza de Javé”

Diante de coisas tão claras, como ainda querem atribuir a salvação ao fato de alguémter sido morto não por sacrifício a favor de alguém; mas puramente, por questões políticas?

No livro Apocalipse (anos 90), cuja autoria é incerta, mas, por tradição, é atribuída aJoão, discípulo de Jesus, temos, novamente, qual será o critério de julgamento:

Ap 20,12-13: “Vi então os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono. Eforam abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro da vida. Então os mortosforam julgados de acordo com sua conduta, conforme o que estava escrito noslivros. O mar devolveu os mortos que nele estavam. A morte e a morada dos mortosentregaram de volta os seus mortos. E cada um foi julgado conforme sua conduta”.

Corrobora tudo quanto foi apresentado até agora, inclusive, do que ouvimos do próprioJesus, negar isso é algo que só fanático consegue fazer sem lhe “doer” a consciência.

Vemos duas coisas curiosas neste livro. A primeira diz respeito ao fato de que João erailetrado (At 4,13), portanto, não sabia escrever, por isso, se foi ele mesmo quem escreveu oApocalipse, só pode ter sido na condição de médium de psicografia. A segunda, é que se tem oseu conteúdo como fatos que irão acontecer num tempo futuro, apesar de, no início e no fimdesse livro, ter sido alertado de que “o tempo está próximo” (At 1,3; 22,10). Quanto a isso,podemos dizer que não somos só nós que pensamos assim:

[…] Em vez de ser um livro sobre um futuro distante, tornar-se umaporta do diálogo sobre os desafios do presente imediato. Torna-se umlivro de advertências e de promessas.

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Os leitores originais do Apocalipse viviam sob constante ameaça de opressãoreligiosa por parte das autoridades religiosas e do império romano. Naqueleambiente não se podia falar – e com toda certeza não se podia escrever – nemuma palavra de crítica contra o governo ou outras autoridades. Caso alguémfosse flagrado de posse de tal literatura subversiva, seria levado à prisão, outalvez condenado à morte. Entretanto, se ninguém falasse ou escrevesse arespeito da opressão, esta teria vencido, controlando, silenciando e intimidandoa todos. Será que existe uma alternativa? Sim, e esta é a genialidade daliteratura do oprimido de um modo geral, e da literatura apocalíptica emparticular.

Eis o que fazer: dizer a verdade sobre aqueles que estão no poder – que sãocorruptos, sedentos por derramar sangue, e amaldiçoados – mas fazer issosecretamente. Não se menciona o “império romano”; menciona-se “a besta”.Não se fala sobre as autoridades religiosas corruptas; personificam-se estasmesmas autoridades como sendo “o falso profeta”. O imperador não é citado,mas conta-se a história de um dragão. Dessa forma recusa-se a ser silenciadopelo medo – e não se produz nenhuma evidência capaz de incriminação, asquais poderiam levar à tortura e também à morte os autores e os leitores de talliteratura.

Se o Apocalipse fosse um plano sobre um futuro distante, teria sidoininteligível para seus leitores originais, tanto quanto para os leitores detodas as gerações seguintes; e seria verdadeiro e plenamente relevantesomente para uma geração – a que vivesse no exato período de tempo arespeito do qual teriam sido feitos os prognósticos. Mas se o Apocalipse for, poroutro lado, um exemplar da literatura do oprimido, repleto de advertências epromessas sempre relevantes, será então um presente para cada uma dasgerações com os necessários inspiração, sabedoria e encorajamento. Dentrodessa perspectiva, o Apocalipse torna-se um livro poderoso sobre o Reino deDeus aqui e agora, disponível a todos. (MCLAREN, 2007, p. 216-218) (grifonosso).

Portanto, o pastor Brain D. McLaren (1956- ), a quem se acabou de ler, corrobora aquiloque tínhamos intuído desde a muito tempo.

Salvação pela morte de Jesus na cruz?

A questão que se coloca é: será que Jesus falou alguma vez que a sua morte na cruzseria para remissão dos pecados da humanidade? Em princípio, muitos fiéis diriam que sim;porém, a passagem que tomam como base, carece de uma análise mais profunda, coisa que,dificilmente, esses fiéis fazem, já que, regra geral, confiam cegamente no que seus líderes lhespassam. Vejamos o passo, que, nas Bíblicas católicas, é, geralmente, intitulado de “Instituiçãoda Eucaristia”, no qual isso é ventilado:

Mt 26,26-29: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,o partiu, distribuiu aos discípulos, e disse: 'Tomem e comam, isto é o meu corpo'. Emseguida, tomou um cálice, agradeceu, e deu a eles dizendo: 'Bebam dele todos, poisisto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor demuitos, para remissão dos pecados. Eu lhes digo: de hoje em diante não bebereidesse fruto da videira, até o dia em que, com vocês, beberei o vinho novo no reino domeu Pai'”.

Fora a questão estranha de Jesus ter recomendado, ainda que simbolicamente, quebebessem sangue, porquanto, isso era, expressamente, condenado pela legislação mosaica,que previa até mesmo a exterminação de quem o fizesse (Lv 3,17; 7,27; 17,10.14; 19,26),ainda temos que o derramamento de seu sangue seria para “remissão dos pecados”.Entretanto, quanto a isso, algo nos soou ser improvável, porquanto, nesse mesmo autor,lemos: “Aprendam, pois, o que significa: 'Eu quero a misericórdia e não o sacrifício'.Porque eu não vim para chamar justos, e sim pecadores” (Mt 9,13), fato que, para nós,conflita com o que se propõe nesse passo em análise.

Para sairmos desse impasse, resolvemos pesquisar nos outros Evangelhos para vercomo consta, pela pena de seus autores, a versão desse episódio. Foi aí que nos deparamoscom uma nova surpresa, embora já intuitivamente esperássemos por ela. Vejamos,

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primeiramente, a versão de Marcos (anos 65-70), pois, pelo que os estudiosos dizem, foi neleque Mateus (anos 70/80) teve a sua fonte:

Mc 14,22-25: “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo pronunciado a bênção,o partiu, distribuiu a eles, e disse: 'Tomem, isto é o meu corpo'. Em seguida, tomou umcálice, agradeceu e deu a eles. E todos eles beberam. E Jesus lhes disse: 'Isto é omeu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos. Eugaranto a vocês: nunca mais beberei do fruto da videira, até o dia em que beberei ovinho novo no Reino de Deus'”.

Se fosse nos dias atuais diríamos que Mateus, simplesmente, plagiou Marcos, pois, aspalavras utilizadas por este, que foi o primeiro a escrever, são quase as mesmas com as quaisMateus narra o episódio. O único detalhe, mas importante, é que Mateus acrescenta aexpressão “para remissão dos pecados”, que, obviamente, não se encontra em Marcos e nemnos outros dois evangelistas – Lucas e João.

Esse fato torna evidente que o texto do Evangelho Segundo Mateus sofreu umacréscimo; a questão é saber se foi o próprio autor ou algum piedoso teólogo, preocupado emdefender dogma de sua igreja. Podemos mesmo admitir que a expressão “para remissão dospecados” não foi acrescentada pelo autor de Mateus, pois, julgamos como hipótese maisprovável é que ela tenha sido uma adulteração dos textos ditos originais realizada por purointeresse dogmático. Tal fato não escapou ao teólogo e exegeta Russell Norman Champlin(1933- ), que assim explica:

“... para remissão...”: são palavras que não se encontram no evangelhode Marcos, no original grego, podendo ter sido acrescentadas como umaforma de interpretação pelo amor do evangelho de Mateus. Não obstante,é um comentário verdadeiro, consubstanciado por outras passagens. Jesusdisse: “... que está sendo derramado...” como antecipação, como se o seusangue já houvera sido derramado. (CHAMPLIN, vol. 1, 2005a, p. 596) (grifonosso).

Embora tenha percebido o acréscimo, ele tenta justificar-se dizendo que “é umcomentário verdadeiro, consubstanciado por outras passagens”; porém, faltou ao eminenteestudioso apontar quais passagens corroboram isso que diz, por isso presumimos que sejamestas que estamos analisando (Mt 26,28; Mc 14,24 e Lc 22,20).

Vejamos também a narrativa de Lucas (anos 70/80):

Lc 22,17-20: “Então Jesus pegou o cálice, agradeceu a Deus, e disse: 'Tomem isto, erepartam entre vocês; pois eu lhes digo que nunca mais beberei do fruto da videira, atéque venha o Reino de Deus'. A seguir, Jesus tomou um pão, agradeceu a Deus, o partiue distribuiu a eles, dizendo: 'Isto é o meu corpo, que é dado por vocês. Façam isto emmemória de mim'. Depois da ceia, Jesus fez o mesmo com o cálice, dizendo: 'Estecálice é a nova aliança do meu sangue, que é derramado por vocês'”.

Como em Lucas não temos nada sobre sangue derramado para “remissão de pecados”;mas apenas “derramado por vocês”, sem nenhuma preocupação em determinar que tenha sidopara remir pecados, seu depoimento é importantíssimo para vermos quem está com a razão,porquanto, ele mesmo afirmou que resolveu escrever depois de “fazer um estudo cuidadoso detudo o que aconteceu desde o princípio” (Lc 1,3). Se no resultado desse “estudo cuidadoso”não aparece, expressamente, nada sobre Jesus ter morrido para remissão de pecados, então,podemos, tranquilamente, concluir que isso não era crença comum àquela época. Assim, oacréscimo disso em Mateus, de duas uma: foi algo bem localizado, de alguns poucos crentesou adulteração posterior, por recreação dos teólogos de antanho. Conforme já o dissemos asegunda opção é, para nós, a mais provável.

Para completar o que os evangelistas disseram, vamos agora à narrativa de João (anos90), que se assemelha ao episódio da última ceia, narrado pelos outros:

Jo 6,51-59: “E Jesus continuou: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come

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deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, paraque o mundo tenha a vida'. As autoridades dos judeus começaram a discutir entre si:'Como pode esse homem dar-nos a sua carne para comer?' Jesus respondeu: 'Eugaranto a vocês: se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seusangue, não terão a vida em vocês. Quem come a minha carne e bebe o meusangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minhacarne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem come aminha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele. E como o Pai,que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, assim, aquele que me receber como alimentoviverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Não é como o pão que os pais devocês comeram e depois morreram. Quem come deste pão viverá para sempre'. Jesusdisse essas coisas quando ensinava na sinagoga de Cafarnaum”.

Nos outros três Evangelhos – Mateus, Marcos e Lucas –, temos que o sangue de Jesusfoi para selar a nova aliança e não para remissão de pecados da humanidade, João destoadisso, buscou dar um outro significado. Nele também não vemos nada de ter sido algo para“remissão dos pecados”.

Quanto a crença de que teria sido para selar a nova aliança, podemos, tambémacrescentar Paulo de Tarso que, com sua primeira carta aos coríntios (ano 57), confirma isso:

1Cor 11,23-25: “De fato, eu recebi pessoalmente do Senhor aquilo que transmiti paravocês. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dargraças, o partiu e disse: 'Isto é o meu corpo que é para vocês; façam isto em memóriade mim”. Do mesmo modo, após a Ceia, tomou também o cálice, dizendo: 'Este cálice éa Nova Aliança no meu sangue; todas as vezes que vocês beberem dele, façam issoem memória de mim'”.

Pela ordem cronológica, este foi o primeiro texto a ser escrito, que corrobora o queencontramos nos Evangelhos Sinópticos - Mateus, Marcos e Lucas –, quanto ao que, na época,acreditavam representar o sangue de Jesus derramado na cruz, inclusive, isso foi o queperceberam alguns tradutores bíblicos:

Como outrora no Sinal, o sangue das vítimas selou a aliança com Iahwehcom o seu povo (Ex 24,4-8+; cf. Gn 15,1+), assim, sobre a cruz, o sangue davítima perfeita, Jesus, selaria a “nova” aliança entre Deus e os homens(cf. Lc 22,20), a qual os profetas tinha anunciado (Jr 31,31+). Jesus atribui a sia missão de redenção universal que Isaías atribuído só “Servo de Iahweh” (Is42,6; 49,6; 53,12, cf. 42,1+; cf. Hb 8,8; 9,14; 12,24). A ideia de nova aliançaestá presente também em Paulo, não só em 1Cor 11,25, mas em diversosoutros contextos que mostram sua grande importância (2Cor 3,4-6; Gl 3,15-20;4,24). (Bíblia de Jerusalém, 2002, p. 1752) (grifo nosso).

A antiga Aliança ou pacto entre Javé e o seu povo tivera como sinal decontrato uma cerimônia de aspersão de sangue de animais (cf. Ex 24,8). A novaAliança baseia-se no sangue de Jesus. (Bíblia Sagrada Santuário, 1984, p.1480) (grifo nosso).

O sangue da nova aliança: a primeira aliança de Deus com o povo foi seladapelo sangue das vítimas oferecidas em sacrifício. A nova aliança é feita pelosangue das vítimas oferecidas em sacrifício. A nova aliança é feita pelosangue de Cristo, vítima oferecida em sacrifício pelo gênero humano. (BíbliaSagrada Ave-Maria, 1989, p. 1317) (grifo nosso).

Aliança: A primeira aliança foi estabelecida pelo sangue aspergido de animaissacrificados (cf. Hb 9,19ss). A nova aliança tornou-se válida através dosangue vertido do Filho de Deus (Hb 8,7-13). (Bíblia Shedd, 2005, p. 1376)(grifo nosso).

Assim, todos os tradutores envolvidos nessas Bíblias citadas têm a morte de Jesus nacruz como um selo para a nova Aliança, nada de remissão de pecados da humanidade. Naverdade, quando admitem isso estão fazendo um paralelo com o que teria acontecido comMoisés:

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Ex 24,4-8: “Moisés colocou por escrito todas as palavras de Javé. Depoislevantou-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha e doze estelas para asdoze tribos de Israel. Em seguida, mandou alguns jovens de Israel oferecerholocaustos e imolar novilhos a Javé como sacrifício de comunhão. Moiséspegou a metade do sangue e colocou em bacias; a outra metade do sangue, ele aderramou sobre o altar. Pegou o livro da aliança e o leu para o povo. Eles disseram:"Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos". Moisés pegou o sangue e oespalhou sobre o povo, dizendo: "Este é o sangue da aliança que Javé faz comvocês através de todas essas cláusulas".

Caso insistam em considerar que o sangue de Jesus tenha sido para remissão dospecados, veremos que, pelo que consta do ritual aqui descrito, faltou pegar o seu sangue eespalhá-lo sobre o povo, por mais tétrico e próprio de filmes de terror que isto seja.

Julgamos que é desse ato que surgiu a ideia de que nenhum pacto poderia ser feito semque fosse derramado sangue, conforme poder-se-á ver em Hebreus, cujo passo, um poucomais à frente, iremos transcrever.

Vejamos agora a explicação dos tradutores da Bíblia Vozes para a passagem de Mateus(Mt 26,26-29):

O testamento de sangue que será derramado por muitos para aremissão dos pecados (v. 28) é o conceito desenvolvido na epístola aosHebreus (9,16-28). O sangue de Jesus presente no cálice vai adquirir o direitoà redenção dos pecados e à graça e glória. É o último convívio de Jesus antes damorte (v. 29), garantia do banquete celeste no reino do Pai (8,11). (BíbliaSagrada Vozes, 1989, p. 1208) (grifo nosso).

Parece-nos que aqui já temos uma pista para iniciar a busca a fim de saber qual é aorigem dessa ideia de que o sangue de Jesus serviu para a remissão dos pecados dahumanidade.

Antigamente, admitia-se que o autor de Hebreus fosse Paulo, hoje não se sabe ao certoquem foi; provavelmente, tenha sido um seu seguidor, porquanto nele “Pode-se todaviareconhecer ressonâncias do pensamento paulino” (Bíblia de Jerusalém, p. 2083).

É, pelo visto, já apareceu o pai dessa criança:

1Cor 15,3-4: “[...] Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; elefoi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; [...]”.

Rm 4,24-25: “[...] acreditamos naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus nossoSenhor, o qual foi entregue à morte pelos nossos pecados e foi ressuscitado paranos tornar justos”.

Rm 5,8-9: “Mas Deus demonstra seu amor para conosco porque Cristo morreu por nósquando ainda éramos pecadores. Assim, tornados justos pelo sangue de Cristo,com maior razão seremos salvos da ira por meio”.

Col 1,13-14: “Deus Pai nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o Reinodo seu Filho amado, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados”.

Ef 1,7: “Por meio do sangue de Cristo é que fomos libertos e nele nossas faltasforam perdoadas, conforme a riqueza da sua graça”.

Paulo é o autor dessas cartas – 1ª Coríntios (ano 57), Romanos (ano 58); Colossenses(anos 61-63 ou 79/80), Efésios (anos 61-63 ou 90/100) –, cujos textos transcrevemos. Éimportante não esquecermos de que ele foi um judeu bem ortodoxo e que, pessoalmente, nãoconheceu a Jesus e nem era um dos seus apóstolos.

Não podemos deixar de observar que em 1Cor 15,3-4, vemos dois fatos dos quais sediz ter acontecido “conforme as Escrituras”. É importante a elucidação de Champlin sobre isso:

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[…] Não está aqui em foco a coleção dos escritos neotestamentários,porquanto as epístolas paulinas aos Coríntios foram escritas antes dosevangelhos, não existindo ainda um “cânon” do N.T. quando Pauloregistrou essas palavras. A alusão é ao A.T. e àquelas passagens que oscristãos primitivos consideravam como profecias sobre a morte expiatória deCristo. […] (CHAMPLIN, 2005d, p. 237) (grifo nosso).

Na verdade, apesar de algumas tentativas de relacionar a passagens no A.T., não háuma só sequer que objetivamente poder-se-ia atribuir aos dois assuntos tratados por Paulo.

Vários tradutores bíblicos mencionam Isaías 53, como sendo a profecia realizada;porém, é bom deixar claro que os versículos compreendidos entre Isaías 52,13–53,12, nosquais apresentam o servo sofredor, este, segundo o contexto, é a nação de Israel. Portantonão há sentido algum em querer atribuir tal epíteto a Jesus.

Algo bem interessante encontramos em Pepe Rodríguez (1953- ), de cuja obra Mentirasfundamentais da Igreja Católica, como a Bíblia foi manipulada, transcrevemos:

[…] No texto conhecido como o Canto do Servo de Iavé (Is 42,1-9; 49,1-6;50,4-9; 52,13; 53,12), que deve ser lido no contexto do exílio e do cativeiroa que foi submetido o povo hebreu, o sacrifício expiatório dossofrimentos do Servo (personificação da comunidade exilada e,portanto, do verdadeiro povo de Israel) é apresentado como tendo sidoaceite por Iavé. Foi a maneira encontrada pela elite sacerdotal de assegurar a“salvação” de todo o povo, apesar de este nada ter feito para a merecer – “oJusto, meu Servo, muitos há-de justificar-se” (Is 53,11), ele “será a Aliança doshomens, a luz das nações” (s 42,6).

Apesar de não haver qualquer relação entre estes textos do VelhoTestamento e a história de Jesus, os cristãos transformá-lo-ão num pilar básicoda sua fé, ao lê-los com a confirmação do “varão de dores” (Is 53,3) e o anúnciodo papel do messias sofredor desempenhado pelo nazareno como a sua paixão ea sua morte. Ao tornar profético o relato de Isaías, extraviando conscientementeo seu verdadeiro sentido, a Igreja intentou conferir um sentido triunfante,glorioso e divino à execução de Jesus que, de outro modo, teria sido apenas umfracasso puro e simples. (RODRÍGUEZ, 2007, p. 191) (grifo nosso).

Para justificar a execução de Jesus que, aos olhos do mundo, sópodia passar por um fracasso da sua missão, desde cedo se começou adifundir a ideia de que era necessário que o nazareno morresse“segundo a Escritura”. Dito de outro modo, a sua crucificação não só estiveradesde sempre prevista nos planos de Deus, como essa ocorrência se podiadeduzir da leitura dos textos bíblicos. Para documentar uma tamanha asneira, aIgreja procedeu ao rastreio de todos os textos do Velho Testamento, até depararcom versículos que, devidamente manipulados e extraídos do seu contexto,pudessem ser convertidos em profecias virtuais do mistério da paixão de Cristo.

Nessa perspectiva, a atitude cobarde dos discípulos de Jesus face à suaprisão encontrou fundamento profético em Zac 13,7; o suborno recebido porJudas, em Zac 11,13; a compra do campo do oleiro, em Jer 32,6; o discurso deJesus perante o Conselho e a sua afirmação de que estaria sentado à direita doPai e de que apareceria sobre as nuvens, em Dan 7,13, e no Salmo 110,1; assuas palavras “Tenho sede”, no Salmo 22,16; o episódio da esponja embebidaem vinagre, no Salmo 69,22; a sua exclamação de se considerar abandonadopor Deus, no Salmo 22,2; o eclipse do Sol, em Am 8,9; etc.(2).

A crucificação em si – o facto de ser exposto num madeiro – era muito maisdifícil de justificar profeticamente, pela boa razão de que a única profecia bíblicaque se lhe podia aplicar conduzir a resultados demasiados perigosos. O textoque, com esse intuito, foi utilizado pelos primeiros cristãos figura no Dt 21,22-23. Diz ele: "Quando um homem, culpado de uma falta que mereça a morte, forexecutado e exposto num madeiro, o seu cadáver não deverá passar a noite nosuplício, mas o enterrarás no mesmo dia, porque um dependurado é objecto damaldição de Deus, e não deves manchar a terra que Iavé, teu Deus, querpartilhar contigo” (3) Terá sido Jesus amaldiçoado por Deus por ter sido“exposto num madeiro”? Que cada um, inspirado pela palavra de Deus, expressaatravés da legislação do Deuteronômio, tire as suas próprias conclusões.

Em definitivo, foi nos Salmos 22 e 69, assim como no capítulo 53 de

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Isaías (todo ele falso, como vimos), que a Igreja encontrou os textosnecessários e suficientes para dar cobertura profética à paixão e Jesus.Não será exagero nosso, no entanto, voltar a lembrar que todos os textos ditos“proféticos” se aplicam única e exclusivamente a situações que ocorrerammuitos séculos antes do nascimento de Jesus. Razão por que qualquer supostaprofecia do Velho Testamento que se pretenda relacionar com a vida e a obra donazareno carece absolutamente de fundamento (4).

Ao vermos o modo como a Igreja forçou o sentido de muitosversículos do Velho Testamento, para os converter em profecias e, actocontínuo, os utilizar na sustentação da missão de que investiu Jesus, depois dasua execução, talvez convenha trazer à colação o aviso que se acha escrito emMt 7,15-17: “Guardai-vos dos falsos profetas que vêm até vós vestidos de pelesde ovelha mas que por dentro são como lobos rapaces. Pelos seus frutos osconhecereis. Porventura, colhem-se uvas no espinhos e figos nos cardos? Todaa árvore boa dá bons frutos, toda a árvore má dá maus frutos”. Este parece ser,sem dúvida, o parágrafo mais inspirado de Mateus._______2. Não vamos reproduzir todos os textos do Velho Testamento que supostamenteprofetizam as correspondentes passagens dos Evangelhos; ver-nos-íamos obrigados atranscrever o contexto de cada um deles, o que seria tão incómodo quão absurdo. Nãodeixamos, no entanto, de recomendar a quem tiver dúvidas sobre o que afirmamos quepegue numa Bíblia e proceda por si às referidas comparações e verá com os seus própriosolhos como foi desavergonhada e infantil a fabricação de profecias bíblicas relativas àpaixão de Jesus.3. Neste passo, não nos servimos do texto da Bíblia católica de Nácar-Colunga, queutilizamos em todo este livro, por estar escandalosamente mal traduzido. A verão queapresenta é a seguinte: “Quando alguém cometeu um crime digno de morte, que sejamorto dependurado num madeiro, e o seu cadáver não ficará no m adeiro durante a noite,não deixareis de o enterrar no próprio dia, porque o enforcado é maldição de Deus, e nãohá-de manchar a terra que Iavé, teu Deus, te deu em herança”; a palavra “enforcado”,com que se pretende criar uma distância entre este passo e o tipo de morte que sofreuJesus, não só aparece em nenhuma tradução objectiva da Bíblia (seja ela católica ouindependente) como, inclusivamente, está ausente de outras versões absolutamentecatólicas. É o caso, por exemplo, da que nos servimos neste passo (Cf. Sagrada Bíblia,traduzida por Félix Torres e Severiano del Páramo, Apostolado de la Prensa, Madrid, 1928,p. 349).4. Como o leitor poderá constatar por si próprio, é muito fácil encontrar profecias naBíblia. Experimente fazer o que nós mesmos fizemos: ao abrirmos a Bíblia ao acaso,saíram-nos as páginas 704-705; quando começámos a ler, deparamos com este versículo:"Mesmo que se forme contra mim um exército, o meu coração manter-se-á firme. Mesmoque parta em guerra contra mim, não deixarei, mesmo então, de continuar tranquilo” (Sl27, 3). A uma primeira leitura, é evidente que se trata de uma profecia claríssima de“Rambo” - especialmente do seu filme O Encurralado; ou talvez de um filme de JamesBond; ou, melhor ainda, do líder sectário David Koresh, mortalmente cercado pelas forçasespeciais do FBI, no seu rancho de Waco; mas também pode estar a referir-se ao cercofinal de Che Guevara em La Higuera pelo exército boliviano; ou, talvez seja urna descriçãoperfeita do comportamento do valente e honesto monsenhor Oscar Romero, assassinadoem El Salvador; ou ainda pode estar a profetizar a detenção de Jesus de Nazaré por todauma coorte do exército romano; ou, talvez...

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 192-194) (grifo nosso).

Podemos, portanto, concluir que a morte e ressurreição de Jesus não foi profetizada porninguém; é produto do delírio dogmático dos teólogos de antanho.

Além disso não há nenhuma profecia a respeito de que, especificamente, alguémdeveria ressuscitar no terceiro dia, nem mesmo em Oseias, conforme podemos ver: “Vinde, etornemos para o Senhor, porque Ele despedaçou, e nos sarará, fez a ferida, e a ligará. Depoisde dois dias nos dará a vida: ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele” (Os6,1-2) (Bíblia Sagrada – SBB). Percebe-se que aqui, não se trata de ressurreição, mas delevantar alguém que, após vários castigos, fica quase desfalecido, sendo revigorado por Deus,num curto espaço de tempo.

Então, fica evidenciado que tudo teve início por volta do ano de 57, data da suaprimeira carta aos coríntios. De onde foi que Paulo tirou essa ideia é algo que ainda nãoconseguimos descobrir. Até mesmo porque a informação, que temos do professor de históriaFida Mohammad Khan Hassnain (1924- ), conflita com essa crença entre os judeus:

Os judeus da Palestina nunca acreditaram em sacrifício humano, nem

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na crucificação do messias pelos pecados do mundo. Os pagãosacreditam que seus deuses, Adonis, Attis, Osiris e Mitra morreram pelospecados da humanidade. Foi Paulo que adotou a ideia de bode expiatórioacentuando-a sobre o Cristo crucificado. A teoria do “pecado original” eredenção pela morte do Filho de Deus foi invenção de Paulo. Para maisesclarecimentos, veja Shamas, J. D., Where Did Jesus Die?, London Mosque,Londres, cap. 10, chamado “Redemption”. (HASSANAIN, 1999(?), p. 119) (grifonosso).

Mas algo é possível: como ele pregou aos gentios, ou seja, aos pagãos, acostumamos aesse tipo de crença, provavelmente Paulo tenha se utilizado de uma linguagem simbólica paraque pudesse sensibilizá-los para seguir a Cristo. Acreditamos que, em José de Souza Pinheiro(1938- ), encontramos apoio a essa nossa hipótese:

Como nos esclarece o teólogo Franz Griese (cf. GRIESE, p. 174-175), notempo de Paulo, os pagãos e os judeus costumavam sacrificar animaisaos respectivos deuses. A carne desses animais sacrificados era consumidanos mercados públicos, na qualidade de carne de Júpiter (o Senhor dos deuses),carne de Minerva (deusa da sabedoria) etc., segundo as divindades a quemhaviam sido sacrificados os animais. Os consumidores escolhiam a carneque mais lhes convinha, crendo que comendo essa carne recebiam umabênção especial da divindade respectiva, e até entrar em certa uniãocom ela, mediante aquela carne.

É da maior importância ter presente essas crenças da antiguidade, paracompreender o sentido das palavras nos escritos daqueles que viviam naquelaépoca e estavam imbuídos de suas ideias.

Pois bem, o apóstolo Paulo, para induzir os novos cristãos, oriundosdos povos pagãos, a não participarem dos sacrifícios pagãos e nãocomerem a carne dos animais sacrificados aos ídolos, proíbe essaprática, substituindo-a pela "Ceia do Senhor", dizendo que, como pelacarne dos ídolos, o homem participa dos "demônios", ou seja, dos "deusespagãos", do mesmo modo pelo consumo do pão e do vinho eucarísticos o cristãoparticipa do "Cristo da fé" (cf. GRIESE, p. 175).

Mas, como afirma Griese (ibid.), não há a menor dúvida de que Paulo nãoacreditava numa participação literal da própria pessoa dos deuses pagãos,mediante a carne dos ídolos e, portanto, tampouco na participação literal daverdadeira pessoa de Cristo, mediante o pão e o vinho eucarísticos.

Os coríntios (como Paulo) também tinham um conceito simbólico muitosimples da eucaristia e, certamente, não tinham a convicção de que o pão seriao verdadeiro corpo e o vinho o verdadeiro sangue de Cristo. Eles apenasacreditavam que, ao comerem o pão e ao beberem o vinho, participavam doCristo da fé, do mesmo modo como os pagãos acreditavam que participavamsimbolicamente dos seus deuses comendo a carne dos animais sacrificados emsua honra (cf. GRIESE, p. 179). (SOUZA, 2011, p. 134) (grifo nosso).

Para a hipótese de ser um simbolismo temos como base o que Paulo disse na suasegunda carta aos coríntios (ano 57), onde a sua fala foi completamente diferente:

2Cor 5,10: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, afim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a suavida no corpo, tanto para o bem, como para o mal”.

Essa afirmação de Paulo vem ao encontro do que consta nos Evangelhos de Mateus,Marcos e Lucas, quanto à questão do critério de julgamento; por isso, julgamos que esse era,verdadeiramente, o seu pensamento e, na pior das hipóteses, a crença daquela época; que,acreditamos, pode ser corroborado com o que se lê nestes passos:

Gl 6,10: “De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, afim de que cada um receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a suavida no corpo, tanto para o bem, como para o mal”.

1Cor 15,2: “É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem

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do modo como eu lhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão”.

Rm 1,16-17: “Não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para asalvação de todo aquele que acredita, do judeu em primeiro lugar, mas também dogrego. De fato, no Evangelho a justiça se revela única e exclusivamente através da fé,conforme diz a Escritura: 'o justo vive pela fé'”.

Rm 2,5-8: “Pela teimosia e dureza de coração, você está amontoando ira contra simesmo para o dia da ira, quando o justo julgamento de Deus vai se revelar,retribuindo a cada um conforme as suas próprias ações: a vida eterna paraaqueles que perseveram na prática do bem, buscando a glória, a honra e aimortalidade; pelo contrário, ira e indignação para aqueles que se revoltam e rejeitam averdade, para obedecerem à injustiça”.

As várias falas de Paulo, indiscutivelmente, causam muita confusão, pois uma hora elediz uma coisa, em outra hora diz algo diferente:

Rm 10,9: “Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acreditacom seu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo”.

Será que a nossa salvação e tão simples assim: basta crer que Jesus ressuscitou dosmortos?

Leiamos o que Fernando Travi (? - ), disse, ao que nos parece, referindo-se ao passoacima:

Outro petardo disparado pelos críticos diz respeito à doutrina da salvaçãodefendida por Paulo. “Paulo diz que os pecados são perdoados se a pessoaacreditar que Jesus morreu na cruz por ela. É a doutrina da salvação em queo herói derrama seu sangue e todos são perdoados por causa dele.Enquanto isso, Jesus diz: 'Eu sou o caminho, a verdade e a vida'. Para Jesus, asalvação será dada àqueles que seguirem seus ensinamentos”, afirmaFernando Travi. (p. 64) (VASCONCELOS, 2003, p. 56-64) (grifo nosso).

Por outro lado, a questão da remissão de pecados, nas suas cartas, acima mencionadas(1Cor 15,3-4; Rm 4,24-25; 5,8-9; Col 1,13-14; Ef 1,7), também pode ser entendida comometáfora, que, talvez, ele tenha utilizado visando a conversão dos pagãos, evitando chocá-loscom ensinamentos muito diferente daqueles que possuíam.

Sobre Paulo, temos as seguintes explicações do teólogo alemão Holger Kersten(1951- ):

O que conhecemos hoje como cristianismo não passa de uma vasta eartificial doutrina de regras e preceitos criados por Paulo, e que pode ser melhordesignado pelo nome de “Paulinismo”. O historiador eclesiástico Wilhelm Nestle,comentando a questão, diz que: “o cristianismo foi a religião fundada porPaulo, que substituiu o evangelho de Cristo por um evangelho sobreCristo” (21). Paulinismo, nesse sentido, significa desvirtuamento e mesmofalsificação dos verdadeiros ensinamentos de Jesus por Paulo. Há muito tempoos teólogos modernos e os estudiosos da história da Igreja vêmafirmando abertamente que o cristianismo da Igreja organizada, cujaquestão central é a compreensão da salvação como fruto da morte e dosofrimento de Jesus, se apoiou em fundamentos incorretos. “Tudo o quehá de bom no cristianismo provém de Jesus e tudo o que há de mau, de Paulo”,escreveu o teólogo Overbeck (22). Associando a morte do Unigênito deDeus à redenção de nossos pecados, Paulo retrocedeu às primitivasreligiões semíticas, em que os pais deviam imolar seus primogênitos.Paulo também é o responsável pelos dogmas do pecado original e da trindade,posteriormente incorporados pela Igreja.______21. Wilh. Nestle, Krisis des Christentums 1947, p. 89.22. F. Overbeck, Christentum und Kultur – aus dem Nachlas, 1919.(KERSTEN, 1988, p. 34-35) (grifo nosso).

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Foi Paulo quem centralizou a atividade de Jesus em sua morte,mostrando que é através dela que o homem de fé se liberta de seuspecados, das misérias do mundo e do poder de satanás.

Em suas cartas, Paulo não escreveu uma única palavra sobre oensinamento atual de Jesus, nem menciona qualquer de suas parábolas;o que ele faz é apresentar sua própria filosofia e suas próprias ideias. (KERSTEN,1988, p. 237) (grifo nosso).

Seguindo em frente. Veremos agora o que o autor de Hebreus, que não se sabe quemé, disse.

Hb 9,15-23: “Desse modo, ele é o mediador de uma nova aliança. Morrendo, nos livroudas faltas cometidas durante a primeira aliança, para que os chamados recebam aherança definitiva que foi prometida. Onde existe testamento, é preciso que sejaconstatada a morte de quem fez o testamento. Pois um testamento só tem valordepois da morte, e não tem efeito nenhum enquanto ainda vive aquele que fez otestamento. É por isso que nem mesmo a primeira aliança foi inaugurada sem sangue.Quando anunciou a todo o povo cada um dos mandamentos da Lei, Moisés pegousangue de novilhos e bodes junto com água, lã vermelha e hissopo. Em seguida,borrifou primeiro o próprio livro e todo o povo. E disse: "Este é o sangue da aliançaque Deus faz com vocês." Do mesmo modo, borrifou com sangue também a tenda etodos os objetos que serviam para fazer o culto. E, segundo a Lei, quase todas ascoisas são purificadas com sangue; e sem derramamento de sangue não existeperdão. Portanto, as cópias das realidades celestes são purificadas dessa maneira;mas as próprias realidades celestes devem ser purificadas com sacrifícios maiores doque esses”.

O desconhecido autor de Hebreus (anos 60 ou 70/80), admite que a morte de Jesustenha sido para selar a nova aliança, entretanto, avança um pouco mais e utiliza da Lei (AntigoTestamento) para justificar que “sem derramamento de sangue não existe perdão”, o que nãotem nada a ver com o assunto que desenvolvia, até mesmo porque ele considerava que aAntiga Aliança havia sido revogada, conforme pode-se comprovar por estas passagens:

Hb 7,18-19: “Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança, por causa desua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou cousa alguma) e, por outrolado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. E, visto que nãoé sem prestar juramento (porque aqueles, sem juramento, são feitos sacerdotes, maseste, com juramento, por aquele que lhe disse: O Senhor jurou e não se arrependerá;Tu és sacerdote para sempre); por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador desuperior aliança”.

Hb 8,6-8.13: “Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente,quanto é ele também mediador de superior aliança instituída com base emsuperiores promessas. Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido semdefeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para segunda. E, defato, repreendendo-os, diz: Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliançacom a casa de Israel e com a casa de Judá. Quando ele diz Nova, torna antiquada aprimeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido, está prestes adesaparecer”.

Se os ensinamentos de Jesus é que devem prevalecer, como então utilizar-se de algoque consta na legislação mosaica? E, não sem motivo, Jesus havia dito: “[...] 'Eu quero amisericórdia e não o sacrifício'. [...]” (Mt 9,13). Em razão disso, perguntamos: será quesacrifícios agradavam a Deus? A resposta encontra-se nestes passos:

Is 1,11: “Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? - diz Javé. Estou fartodos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto do sangue debois, carneiros e cabritos”.

Jr 6,20: “[...] Os holocaustos de vocês não me agradam, seus sacrifícios nãosão do meu gosto".

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Além disso, ainda são condenados os sacrifícios que faziam os povos pagãos,especialmente os cananeus, cujas terras os hebreus iram espoliar:

Dt 12,29-31: “Quando Javé seu Deus eliminar da sua frente as nações, na terra dasquais você vai entrar para as desapossar; quando você as desapossar e aí estivermorando, preste atenção a si mesmo! Não se deixe seduzir; não imite essas nações,depois que elas forem eliminadas de diante de você. Tome cuidado para não procuraros deuses delas, dizendo: 'Como é que essas nações serviam seus deuses? Vou fazer amesma coisa'! Não aja dessa maneira para com Javé seu Deus, porque elas faziam aosdeuses delas tudo o que é abominação para Javé, tudo o que ele detesta. Essas naçõeschegaram até a queimar seus próprios filhos e filhas para os deuses delas!”

Será que Deus é tão incoerente assim para condenar os sacrifícios praticados peloscananeus e aceitar algum outro, incluindo o que atribuem a Jesus? Bem já questionava oprofeta Samuel, que viveu por volta de 1095 a.C (WIKIPÉDIA): “O que é que Javé prefere?Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra? Obedecer valemais do que oferecer sacrifícios” (1Sm 15,22).

Mas o pior ainda não é isso, é o que vem agora:

Jr 7,21-23: “Assim diz Javé dos exércitos, o Deus de Israel: 'Ajuntem os holocaustosque vocês queimam, com seus sacrifícios, e comam essas carnes. Pois quando tirei doEgito os antepassados de vocês, eu não falei nada nem dei ordem alguma sobreholocaustos e sacrifícios. A única coisa que eu lhes falei e mandei, foi isto:Obedeçam-me, e eu serei o Deus de vocês, e vocês serão o meu povo. Andem sempreno caminho que eu lhes ordenar, para que sejam felizes'”.

Ora, o que aqui está é que, pela própria “voz” de Deus, Ele nunca ordenou fazerholocaustos e sacrifícios, derrubando toda a legislação mosaica a respeito. Diante disso fica aquestão: como acreditar que tenha aceito o (suposto) sacrifício de Jesus? Além disso, temosainda este outro passo que, supomos, fulmina de vez com essa macabra ideia, digna de filmesde terror:

Mc 12,28-34: “Um doutor da Lei estava aí, e ouviu a discussão. Vendo que Jesus tinharespondido bem, aproximou-se dele e perguntou: 'Qual é o primeiro de todos osmandamentos?' Jesus respondeu: 'O primeiro mandamento é este: Ouça, ó Israel! OSenhor nosso Deus é o único Senhor! E ame ao Senhor seu Deus com todo o seucoração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. Osegundo mandamento é este: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Não existe outromandamento mais importante do que esses dois”. O doutor da Lei disse a Jesus: 'Muitobem, Mestre! Como disseste, ele é, na verdade, o único Deus, e não existe outro alémdele. E amá-lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar opróximo como a si mesmo, é melhor do que todos os holocaustos e do quetodos os sacrifícios'. Jesus viu que o doutor da Lei tinha respondido com inteligência,e disse: 'Você não está longe do Reino de Deus'. E ninguém mais tinha coragem defazer perguntas a Jesus”.

Diante do que foi dito acima é preciso acrescentar mais alguma coisa?! Acreditamos quenão; porém, vamos seguir em frente, pois temos mais algumas coisas que precisam sermostradas.

Hb 10,11-18: “Cada sumo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto eoferecer muitas vezes os mesmos sacrifícios, que são incapazes de eliminar os pecados.Jesus, porém, ofereceu um só sacrifício pelos pecados e se assentou à direitade Deus. Doravante, ele espera apenas que seus inimigos sejam colocados debaixo deseus pés. De fato, com uma só oferta ele tornou perfeitos para sempre os que elesantifica. E é isso que o Espírito Santo atesta; de fato, após ter dito: 'Esta é a aliançaque vou concluir com eles, depois daqueles dias, - diz o Senhor: Eu colocarei minhasleis em seus corações e as imprimirei na sua mente, e não me lembrarei mais dos seuspecados e de suas faltas'. Ora, quando os pecados já foram perdoados, não émais preciso fazer ofertas pelos pecados”.

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Hb 13,11-13: “De fato, depois que o sumo sacerdote oferece o sangue no santuáriopelos pecados do povo, os corpos dos animais oferecidos em sacrifício são queimadosfora do recinto sagrado. Por esse motivo, também Jesus sofreu sua paixão forade Jerusalém, quando purificou o povo com o seu próprio sangue. Portanto,saiamos também do recinto sagrado para ir ao encontro de Jesus, carregando ahumilhação dele”.

O autor de Hebreus procura desenvolver aqui outra tese sobre a morte de Jesus,passando, agora, não mais para selar a Nova Aliança, mas para remissão dos pecados. Essacrença, ao que tudo indica, acabou também por contaminar Pedro - 1 Pedro (ano 64 ou anos70/80) – e João - 1 João (ano 90):

1Pe 1,1-2: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos que vivem dispersos comoestrangeiros no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia. Vocês foram escolhidos deacordo com a presciência de Deus Pai e através da santificação do Espírito, paraobedecerem a Jesus Cristo e serem purificados pelo seu sangue. Que a graça ea paz sejam abundantes para vocês”.

1Pe 1,17-19: “Vocês chamam Pai àquele que não faz distinção entre as pessoas, masque julga cada um segundo as próprias obras. Portanto, comportem-se com temordurante esse tempo em que se acham fora da pátria. Pois vocês sabem que não foi comcoisas perecíveis, isto é, com prata nem ouro, que vocês foram resgatados da vidainútil que herdaram dos seus antepassados. Vocês foram resgatados pelo preciososangue de Cristo, como o de um cordeiro sem defeito e sem mancha”.

1Jo 1,6-7: “Se dizemos que estamos em comunhão com Deus e no entanto andamosem trevas, somos mentirosos e não pomos em prática a Verdade. Mas, se caminhamosna luz, como Deus está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sanguede Jesus, o Filho de Deus, nos purifica de todo pecado”.

1Jo 2,1-2: “Meus filhinhos, eu lhes escrevo tais coisas para que vocês não pequem.Entretanto, se alguém pecou, temos um advogado junto do Pai: Jesus Cristo, o justo.Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados; e não só os nossos, mastambém os pecados do mundo inteiro”.

Estranhamos que, nessa primeira carta, João (ano 90) tenha dito isso, porquanto, emseu Evangelho (ano 90), escrito no mesmo período, ele, em momento algum, desenvolve algoparecido.

Antes de prosseguir, vejamos algumas considerações de renomados especialistas arespeito do episódio onde teria ocorrido a última ceia, do qual vimos aqui as narrativas dosvários autores bíblicos. Justificamos porque é desse fato que, geralmente, tomam parafundamentar que a morte de Jesus teria sido para remissão dos pecados. Por serempertinentes ao presente estudo, vamos transcrevê-las.

Geza Vermes (1924- ), no capítulo “As palavras de Jesus durante a Última Ceia” (Mc14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,15-20; 1Cor 11,23-26), diz:

Quatro relatos da Última Ceia sobreviveram no Novo Testamento. Elesconcordam entre si sobre vários pontos essenciais, mas também ostentamvariações substanciais. Também é notável que o Evangelho de João nãocontenha qualquer relato da ceia de Páscoa compartilhada por Jesus e seusdiscípulos. Isto se deve sem dúvida ao fato de a prisão e crucificação de Jesusterem acontecido, segundo o Quarto Evangelho, um dia antes da festa, nãopodendo consequentemente ser questão de qualquer participação de Jesusnuma ceia real de Páscoa. João especifica que os dignitários que entregaramJesus a Pilatos recusaram-se a entrar em seu palácio, no pretório, a fim depermanecerem ritualmente puros “e poder comer a Páscoa” (ver João 18,28).Há um consenso geral entre intérpretes do Novo Testamento de que anarrativa da Última Ceia, com a sua exiguidade de detalhes concretos,foi escrita acima de tudo para registrar o que desde o princípio a igrejaprimitiva compreendeu como a instituição de um ritual religiososignificativo, a Eucaristia. Queira ou não, essa visão eclesial afeta

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retrospectivamente o significado das palavras que presumidamente teriam vindodos lábios de Jesus. (VERMES, 2006, p. 344-345) (grifo nosso).

O teólogo John Dominic Crossan (1934- ), co-fundador do The Seminar Jesus, parece-nos ainda mais enfático, conforme podemos ver nessa citação do professor José Pinheiro deSouza (1938- ):

Por conseguinte, a Ceia Eucarística não pode ter sido instituída pelo JesusHistórico. O renomado teólogo e ex-padre católico John Dominic Crossan, emseu livro O Jesus Histórico, argumenta que a Ceia Eucarística, interpretadaliteralmente, não é originária de Jesus histórico (cf. CROSSAN, 1994, p. 398-399).

Mais precisamente, ele mostra que a Ceia Eucarística, como referida num doslivros mais antigos do cristianismo, o chamado Didaqué (ou “Instrução dos DozeApóstolos”), escrito por volta do final do Século I de nossa era (mas descobertosomente no ano de 1883), nada tem a ver com os acréscimos posteriorescatólicos a respeito da Ceia Eucarística, supostamente instituída por Jesus, esobre o suposto milagre da “transubstanciação”. Na Ceia Eucarística descrita nolivro Didaqué (capítulos 9 e 10), “não há qualquer menção de uma refeiçãofeita para comemorar a Páscoa, de uma última ceia, nem de algumaconexão com a morte de Jesus ou sua celebração”. (CROSSAN, 1994, p.400).(SOUZA, 2011, p. 139) (grifo do original).

Bart D. Ehrman (1955- ), considerado a maior autoridade sobre o Novo Testamento domundo, argumenta:

[...] Em um de nossos mais antigos manuscritos gregos, assim como emvários testemunhos latinos, temos:

E tomando o cálice, dando graças, ele disse: “Tomai-o, reparti-o entrevós, pois eu vos digo que não beberei do fruto da vinha a partir de agora,até que venha o reino de Deus”. E tomando o pão, dando graças, ele opartiu e o deu a eles, dizendo: “Isto é o meu corpo... Mas vede que a mãodaquele que me trai está comigo nesta mesa” (Lucas 22,17-19).

Contudo, na maioria de nossos manuscritos, há um acréscimo ao texto,que soará familiar a muitos leitores da Bíblia, visto que se assentou nastraduções modernas. Ali, depois que Jesus diz: “Isto é meu corpo”, elecontinua dizendo as palavras: “'Que foi dado por vós; fazei isto em memória demim', e fez o mesmo com o cálice após a refeição, dizendo: 'Este cálice é a novaaliança em meu sangue derramado por vós'”.

Estas são as palavras, muito familiares, da “instituição” da Ceia do Senhor,registradas também sob uma forma muito similar na primeira carta de Paulo aosCoríntios (1 Coríntios 11,23-25). A despeito do fato de serem tãofamiliares, há boas razões para pensar que esses versículos nãoestavam no original do Evangelho de Lucas, mas que foramacrescentados para ressaltar que foram o corpo partido e o sanguederramado de Jesus que trouxeram a salvação “para vós”. [...]

Além do mais, não se pode deixar de notar que os versículos, por maisfamiliares que sejam, não representam a própria compreensão queLucas demonstra ter da morte de Jesus. É uma característicasurpreendentemente do retrato que Lucas faz da morte de Jesus – por maisestranho que isso seja à primeira vista – que ele nunca, em nenhuma outrapassagem, indica que a morte em si seja o que traz a salvação dopecado. Em nenhum outro lugar de toda a obra em dois volumes de Lucas(Lucas e Atos dos Apóstolos), se diz que a morte de Jesus foi “por vós”. De fato,nas duas ocasiões em que a fonte de Lucas (Marcos) indica que foi por meio damorte de Jesus que veio a salvação (Marcos 10,45; 15,39), Lucas mudou adisposição do texto (ou o eliminou). Em outros termos, Lucas tem umacompreensão diferente da forma com que a morte de Jesus conduz à salvação,diferente da de Marcos (da de Paulo e da de outros escritores cristãos antigos).(EHRMAN, 2006, p. 175-176) (grifo nosso).

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David Flusser (1917-2000), trás importante contribuição:

Jesus seguia a ordem essênia em suas refeições de festa e, em especial, naúltima ceia, ou seguia a ordem não-sectária: vinho e pão? Segundo Mateus eMarcos, Jesus primeiro abençoava o cálice e depois o pão, mas a situação emLucas é diferente. “Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele osapóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco estapáscoa, antes de meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, atéque ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando um cálice, havendo dadograças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois vos digo que de agora em diantenão mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus. E,tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é meucorpo” (Lc 22:14-19). Aí termina o texto de Lucas, de acordo com o famosoCodex Bezae, a antiga tradução latina, e dois antigos manuscritos siríacos.Todos os leitores atentos reconhecerão com facilidade que o que sesegue em Lucas nos outros testemunhos é tirado de 1 Cor 11:23-26, demodo que temos aqui a estranha situação de que no texto aceitoaparecem dois cálices, um no começo e o outro no final. Tanto a VersãoPadrão Revista como a Nova Bíblia Inglesa adotaram o ponto de vista correto, deque Lc 22:19b-20 não fazia parte do texto original de Lucas. Depois queJesus disse do pão partido “Isto é meu corpo” fazendo alusão a sua iminentemorte violenta, ele continuou e tornou-se mais explícito, dizendo: “Todavia amão do traidor está comigo à mesa” (Lc 22:21). (FLUSSER, 2000, p. 227) (grifonosso).

James D. Tabor (1946- ), também apresenta explicações bem interessantes:

Ironicamente, os mais antigos relatos da última refeição na quarta-feira ànoite vêm de Paulo, e não de qualquer dos evangelhos. Em uma carta a seusseguidores na cidade grega de Corinto, escrita por volta de 54 d.C., Paulopassa adiante a tradição que dizia ter “recebido” de Jesus: “Jesus, nanoite em que foi traído, tomou um pão, e tendo dado graças, partiu-o e disse:'Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isso em memória de mim: Do mesmomodo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: 'Este cálice é a nova Aliança nomeu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim'” (1Coríntios 11:23-25).

Essas palavras, tão familiares aos cristãos como parte da Eucaristiada Missa, são repetidas com ligeiras variantes em Marcos, Mateus eLucas. Representam a síntese da fé cristã, o pilar do evangelho cristão: ahumanidade está salva dos pecados pelo sacrifício do corpo e do sangue deJesus. Qual é a probabilidade histórica de que essa tradição baseadanaquilo que Paulo disse ter “recebido” de Jesus represente o que Jesusdisse durante a última ceia? Tão surpreendente quanto possa parecer,existem alguns problemas autênticos a considerar.

Em cada refeição judaica, o pão é partido, o vinho partilhado, e abênção dada - mas a ideia de comermos carne humana e bebermossangue, mesmo que simbolicamente, é de todo alheia ao judaísmo. ATorá proíbe especificamente a ingestão de sangue, não só para osisraelitas, mas para todos. A Noé e a seus descendentes, comorepresentantes de toda a humanidade, já tinha sido proibido “ingerir sangue”(Gênesis 9:4). Moisés tinha prevenido, “se qualquer homem da Casa de Israelou gentio, residente no meio deles, ingerir qualquer espécie de sangue, eu mevoltarei contra esse que ingere sangue e eliminá-lo-ei de seu povo” (Levítico17:10). Em outra ocasião, Tiago, o irmão de Jesus, refere-se a isto como uma“exigência”, para que os não judeus pudessem juntar-se à comunidade nazarena- não ingerirão sangue (Atos 15:20). Essas restrições dizem respeito ao sanguede animais. Ingerir carne e sangue humanos não era proibido, erasimplesmente inconcebível. Essa sensibilidade generalizada em relação àmera ideia de “beber sangue” mostra a improbabilidade de Jesus terusado tais símbolos.

Como dissemos, a comunidade essênica, em Qumrã, descreveu, em um deseus manuscritos, um futuro “banquete messiânico”, no qual o MessiasSacerdotal e o Messias da linhagem de Davi sentar-se-iam com os membros da

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comunidade crente e abençoariam a sagrada refeição de pão e vinho como acelebração do Reino de Deus. Teriam certamente ficado espantados comqualquer simbolismo sugestivo de que o pão fosse a carne humana, e o vinho, osangue. (10) Tal ideia simplesmente não poderia ter partido de Jesuscomo judeu.

Portanto, qual a origem dessa linguagem? Se aparece primeiramente comPaulo, e ele não a recebeu de Jesus, então qual seria sua fonte? As maioressemelhanças encontram-se em alguns ritos mágicos greco-romanos.Existe um papiro grego que registra um encantamento amoroso, no qual ummacho pronuncia certos feitiços sobre um cálice de vinho, que representa osangue que o deus egípcio Osíris tinha dado à sua consorte Ísis para que ela oamasse. Quando sua amante bebe o vinho, ela simbolicamente se une a seuamado pelo seu sangue. (11) Em outro texto, o vinho é transformado na carnede Osíris. (12) Simbolicamente, comer a “carne” e beber o “vinho” eraparte de um rito mágico de união na cultura greco-romana.

Devemos considerar que Paulo cresceu imbuído da cultura greco-romana, na cidade de Tarso, na Ásia Menor, fora da terra de Israel. Ele nuncaconheceu ou falou com Jesus. A relação que ele pretendeu com Jesus é“visionária”, e não com um Jesus de carne e osso, caminhando na terra.

Quando os Doze se reuniram para substituir Judas, depois da morte de Jesus,colocaram como condição para fazer parte do grupo ter estado com Jesus desdeo tempo de João Batista até a crucificação (Atos 1:21-22). Ter visões e ouvirvozes não eram qualificações suficientes para um apóstolo.

Em segundo lugar, e de forma ainda mais reveladora, o evangelho de Joãonarra os acontecimentos daquela última refeição na noite de quarta-feira, mas nunca se refere às palavras de Jesus instituindo essa novacerimônia da Eucaristia. Se Jesus, na realidade, iniciou a prática de comer opão como sendo seu corpo, e beber o vinho como sendo seu sangue na sua“última ceia” como poderia João tê-la omitido? O que João escreve, segundotodas as indicações, é que Jesus sentou-se para participar de uma refeiçãojudaica comum. Após a ceia, ele se levantou, pegou uma bacia de água e umpano, e começou a lavar os pés de seus discípulos, mostrando como o professore mestre deveria agir como criado – mesmo para seus discípulos. Jesuscomeçou, então, a descrever como iria ser traído, e João nos diz que Judasabruptamente abandonou a ceia.

O evangelho de Marcos está muito próximo, em suas ideiasteológicas, àquele de Paulo. Parece possível que, em sua descrição da últimaceia, feita uma década depois da de Paulo, Marcos tenha inserido otradicional “coma o meu corpo” e “beba o meu sangue” em seuevangelho, influenciado pelo que Paulo afirma ter recebido. Tanto Mateuscomo Lucas baseiam inteiramente suas narrativas em Marcos, e Lucas é tambémum convicto defensor de Paulo. Tudo parece levar a Paulo. Como veremos, nãohá qualquer prova de que os primeiros seguidores judeus de Jesus,conduzidos ao quartel-general em Jerusalém por Tiago, o irmão deJesus, tenham alguma vez praticado qualquer rito dessa natureza. Comotodos os judeus, eles santificavam o vinho e o pão como parte de uma refeiçãosagrada, e provavelmente tinham presente a noite em que ele havia sido traído,lembrando-se da última refeição com Jesus.

Na realidade, para resolver essa questão, precisamos de uma fonteindependente, cristã, que não tenha sido influenciada por Paulo, que possaesclarecer a prática original dos seguidores de Jesus. Felizmente, em 1873, essetexto foi encontrado em uma biblioteca em Constantinopla. É intitulado Didache,e data do início do século II d.C. (13) Fora mencionado pelos primeiros autoresda igreja, mas desaparecera até ser descoberto acidentalmente por umsacerdote grego, o Padre Bryennios, em um arquivo de manuscritos antigos.Didache significa "Ensinamentos”, em grego, e seu título completo é "OsEnsinamentos dos Doze Apóstolos”. Trata-se de um antigo "manual deinstruções", provavelmente escrito para ser utilizado por aspirantes ao batismocristão. Contém muitas instruções e exortações éticas, mas também capítulossobre o batismo e a Eucaristia - a sagrada refeição do pão e vinho. É aí queentra a surpresa. Ele oferece as seguintes bênçãos para o pão e o vinho:

No que se refere à Eucaristia, darás graças da seguinte forma.Em primeiro lugar, quanto ao cálice: “Damos-vos graças, Pai nosso, pela

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santa vinha de Davi, vosso filho, que nos destes a conhecer através de Jesus,vosso filho. Para vós a glória eterna”. E quanto ao pão: “Damos-vos graças,Pai nosso, pela vida e sabedoria que nos comunicastes através de Jesus,vosso filho. Para vós, glória eterna”. (14)

Notem que não há menção ao vinho, representando o sangue, ou aopão, representando a carne. E, no entanto, é um registro da primeira refeiçãoda Eucaristia cristã! Este texto nos faz lembrar muito das descrições da sagradarefeição messiânica nos Manuscritos do Mar Morto. O que temos aqui é acelebração messiânica de Jesus como o Messias da linhagem de Davi, e a vida ea sabedoria que ele trouxe à comunidade. Evidentemente, essa comunidade deseguidores de Jesus nada sabia da cerimônia proposta por Paulo. Se a prática dePaulo viera realmente de Jesus, seguramente esse texto tê-la-ia incluído.

Existe mais um ponto importante a esse respeito. Na tradição judaica, é ocálice de vinho que, primeiramente, é abençoado, depois o pão. Essa é a ordemque encontramos na Didache. Mas no relato de Paulo da “Ceia do Senhor”, Jesusabençoa primeiro o pão, depois o cálice de vinho – justamente o oposto. Podeparecer um detalhe insignificante até examinarmos o relato de Lucas sobre aspalavras de Jesus, durante a refeição. Embora ele siga basicamente a tradiçãode Paulo, ao contrário deste, Lucas fala primeiro no cálice de vinho, depois nopão e, em seguida, em outro cálice de vinho! O pão e o segundo cálice de vinhoele interpreta como o “corpo” e o “sangue” de Jesus. Mas quanto ao primeirocálice – na ordem que se esperaria da tradição judaica – nada é dito querepresente “sangue”. Ao contrário, Jesus diz, “Eu vos digo, doravante nãobeberei da fruta da videira até a chegada do Reino de Deus” (Lucas 22:18). Essatradição do primeiro cálice, só encontrada em Lucas, é uma pista do que deveriater sido a tradição original antes de a versão Paulina ter sido inserida, agoraconfirmada pela Didache.

Vista sob essa luz, essa última refeição tem sentido histórico. Jesus disse aseus seguidores mais próximos, reunidos secretamente na Sala do AndarSuperior, que ele não partilharia com eles outra refeição até a chegada do Reinode Deus. Ele sabe que Judas iniciará, naquela noite, os procedimentos queculminarão com sua prisão. Suas esperança e prece são de que, da próxima vezem que estiverem sentados juntos para comer, dando a tradicional bênçãojudaica do vinho e do pão – o Reino de Deus já tenha chegado.

Uma vez que Jesus se reuniu só com seu Conselho dos Doze, nessa últimarefeição privada, Tiago e os três outros irmãos de Jesus teriam estadopresentes. Isso foi confirmado em um texto perdido chamado Evangelho dosHebreus, que era usado por judeus-cristãos que rejeitavam os ensinamentos e aautoridade de Paulo. Sobrevive apenas em algumas citações, preservadas porautores cristãos, como Jerônimo. Uma das passagens nos diz que Tiago, o irmãode Jesus, depois de ter bebido do cálice que Jesus fizera circular, afiançou quetambém ele não comeria ou beberia até ver o Reino chegar. Portanto, temosaqui a prova textual de uma tradição que recorda a presença de Tiago na últimarefeição.______(10) Manuscritos do Mar Morto, The Messianic Rule (1QSa) 2.11-25.(11) The Demotic Maginal Papyrus of London and Leiden 15.1-6, em The Greek MagicalPayri in Translation, incluing the Demotic Spells, ed. Hans Dieter Betz (Chicago: Universityof Chicago Press, 1968).(12) Papyri graecae magicae 7.643ff.(13) Didache é promunciado como did-a-quei.(14) Didache 9:1-3, em Bart Ehrman, trad. The Apostolic Fathers, Loeb Classical Library24, vol. 1 (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2003), p. 431.

(TABOR, 2006, p. 215-219) (grifo nosso).

Ao que tudo indica, essa questão de comer carne e beber sangue, com a qual sejustifica o sacramento da eucaristia, tenha vindo do culto persa a Mitra: “Aquele que nãocomer minha carne e não beber meu sangue para ser um comigo, e eu um com ele, aquelenão conhecerá a salvação”. (FREKE e GANDY, 2002, p. 11 e 52). Além desse, ainda temos:

O serviço religioso semanal era realizado aos domingos, dia dedicado aodeus. A cerimônia mais importante do culto era uma ceia que constava devinho e pão – oferecido na forma de hóstias consagradas que tinham o

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sinal da cruz. (KERSTEN e GRUBER, p. 316) (grifo nosso)

Bem clara a relação de Mitra com o que querem atribuir a Jesus.

A morte de Cristo foi para resgate?

A razão de colocarmos esse item está nisso que o prof. José Pinheiro explica:

[…] para a grande maioria dos cristãos, no contexto bíblico do NovoTestamento, o conceito mítico de “salvação” geralmente significa “redenção”(“resgate” ou “remissão”) do gênero humano, ou melhor, de seus “pecados”,pelo sangue de Cristo derramado na cruz, e também significa “felicidade eternaobtida após a morte”, em oposição ao conceito igualmente mítico de“condenação eterna” (SOUZA, 2007, p. 140).

Entendemos que a inclusão desse ponto é oportuna e pode evitar contra-argumentosbaseados nos passos que mencionam algo relacionado a isso.

Levando-se em conta o que consta dos Evangelhos, acreditamos, conforme já odissemos, que a morte de Jesus foi por motivos políticos, que os líderes religiosos de suaépoca fizeram questão de “colocar mais lenha na fogueira”.

Podemos afirmar isso, baseando-nos no pastor McLaren, que foi “recentementeapontado pelo Times como um dos 25 cristãos evangélicos mais influentes nos EUA”(MCLAREN, 2007, contracapa):

[…] Como vimos, a cruz era o equipamento de execução romana e erareservada especialmente para líderes de rebeliões. Qualquer um queproclamasse um reino rival ao reino de César seria forte candidato àcrucificação. Isso é exatamente o que Jesus proclamou, e é exatamentedisso que ele padeceu – em meio a outros dois que haviam feito o mesmo.(Os dois homens que são habitualmente chamados de ladrões e que foramcrucificados com Jesus estavam mais para líderes ou agentes de rebeliõespolíticas fracassadas). […] (MCLAREN, 2007, p. 190) (grifo nosso).

Confirma, portanto, o que dissemos ser a causa da morte de Jesus.

Paul Johnson (1928- ), escritor, jornalista e historiador britânico, católico conservador, éoutro estudioso que confirma a execução de Jesus como causa política:

No momento de seu julgamento e paixão, Jesus tinha conseguido unir umacoalizão improvável – na verdade, sem precedentes – contra si: as autoridadesromanas, os saduceus, os fariseus, até Herodes Antipas. E, ao destruí-lo, essacombinação antinatural parece ter agido com grande grau de aprovação popular.Que conclusões podemos tirar daí? A verdadeira execução foi consumadapor romanos, sob a lei romana. A crucificação era a mais degradante formade pena capital, reservada aos rebeldes, escravos amotinados e outrosinqualificáveis inimigos da sociedade; era também a mais prolongada e dolorosa,embora Jesus tenha escapado de seus horrores em sua totalidade graças a umamorte incomumente rápida. Pilatos, o procurador da Judeia, é apresentado nosevangelhos canônicos como um executor relutante, dando início a umaimaginativa tradição cristã primitiva que, mais tarde, iria transformá-lo emcrente e até santo. Essa ênfase caridosa, pode-se argumentar, foi introduzidaapós a ruptura final entre a antiga comunidade cristã e o sistema judaicoestabelecido, a fim de impor aos judeus toda a responsabilidade moral pelamorte de Jesus. Seguindo essa linha de raciocínio, estudiosos judeus eoutros instaram que o julgamento perante o Sinédrio jamais ocorreu; aspassagens que a ele se referem não são compatíveis com o que se sabe,com base em outras fontes, sobre os procedimentos e competênciadesse tribunal; que Jesus nada fizera que quebrasse a lei judaica, muitomenos invocasse a pena capital; e que o episódio é uma ficção – Jesussimplesmente tinha se tornado inimigo dos romanos, que oconsideravam um agitador. (JOHNSON, 2001, p. 42) (grifo nosso).

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Está aí, portanto, mais um que advoga a causa política para a crucificação de Jesus.

Vejamos, agora, alguns textos bíblicos, cuja análise se faz necessária.

Gl 4,4-5: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho. Elenasceu de uma mulher, submetido à Lei para resgatar aqueles que estavamsubmetidos à Lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos”.

1Cor 7,22-23: “Porque o escravo, que foi chamado no Senhor, é liberto no Senhor. Damesma forma, aquele que era livre quando foi chamado é escravo de Cristo. Alguémpagou alto preço pelo resgate de vocês: não se tornem escravos de homens”.

Mc 10,43-45: “Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser sergrande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro,deverá tornar-se o servo de todos. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido.Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos”.

Tt 2,14: “Ele se entregou a si mesmo por nós, para nos resgatar de todainiquidade e para purificar um povo que lhe pertence, e que seja zeloso nas boasobras”.

1Tm 2,5-6: “Pois há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens: JesusCristo, homem que se entregou para resgatar a todos. Esse é o testemunho dadonos tempos estabelecidos por Deus”.

Mt 20,26-28: “Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande,deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverátornar-se servo de vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veiopara servir, e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos'”.

A ordem cronológica dessas passagens é: Gálatas (anos 54-57), 1 Coríntios (ano 57),Marcos (anos 65-70), Tito (ano 65 ou anos 95-100), 1 Timóteo (ano 65 ou anos 95-100) eMateus (anos 70/80). Assim, mais uma vez, temos Paulo como o inventor da ideia de queJesus veio em resgate a favor de muitos. E, novamente, também vemos Mateus plagiandoMarcos.

Essa ideia de resgate em Paulo pode ser pelo fato dele ter Jesus à conta de primogênito(Rm 8,29; Col 1,15). É na legislação mosaica que veremos o que isso significava:

Ex 13,1-2.11-16: “Javé falou a Moisés: 'Consagre a mim todos os primogênitos,todo aquele que por primeiro sai do útero materno entre os filhos de Israel,tanto dos homens como dos animais: ele pertencerá a mim'". “Quando Javé tiverintroduzido você na terra dos cananeus e a tiver dado, como jurou a você e a seusantepassados, você reservará para Javé todos os primogênitos do útero materno; e aJavé pertencerá todo primogênito de sexo masculino, também dos animais quevocê possuir. O primogênito da jumenta, porém, você o resgatará, trocando por umcordeiro. Se você não o resgatar, deverá quebrar-lhe a nuca. Os primogênitoshumanos, porém, você os resgatará sempre”. Amanhã, quando seu filho lheperguntar: 'Que significa isso?' você lhe responderá: 'Com mão forte Javé nos tirou doEgito, da casa da servidão. O Faraó se obstinou e não queria deixar-nos partir; por isso,Javé matou todos os primogênitos do Egito, desde o primogênito do homem até oprimogênito dos animais. É por isso que eu sacrifico a Javé todo primogênitomacho dos animais e resgato todo primogênito de meus filhos'. Isso servirácomo sinal no braço e faixa na fronte, porque Javé nos tirou do Egito com mão forte'".

Pelo que se vê neste passo, todo primogênito era consagrado a Deus para sersacrificado. No caso dos homens, o primogênito deveria ser resgatado. “A palavra 'resgatar'significa 'comprar ou readquirir por um preço'” (Bíblia Anotada, p. 98).

Informam-nos os tradutores:

A oferta ou consagração de primogênitos se relaciona estreitamente com aoferta das primícias; é provável que os israelitas a tenham tomado de

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outros povos. Alguns comentadores pensam até que, na sua origem, setratava de sacrifício do primogênito, e aduzem o caso de Abraão (Gn 22).Sobre essa consagração legislam outros textos: Ex 22,29s; 34,19: Dt 13,14-16;15,19-23. Contra o sacrifício de crianças há muitas referências no AT: considera-se prática abominável. O texto presente serve para vincular o rito aoacontecimento do êxodo: o Senhor protegeu do “extermínio” os primogênitosisraelitas, agora os reclama para si; e permite resgatá-los. (Bíblia do Peregrino,p. 129) (grifo nosso).

Deus é o Senhor da vida. Por isso os primeiros frutos vegetais (as“primícias”) e as primeiras crias masculinas dos animais (primogênitos) e doshomens lhe são consagradas. Os primogênitos de animais puros sãosacrificados. Os primogênitos humanos, como também os do jumento,são resgatados por outro animal a ser sacrificado. [...] (Bíblia SagradaVozes, p. 95) (grifo nosso).

Ambrogio Donini (1903-1991), historiador italiano, em sua obra Breve história dasreligiões, assim aborda a questão:

2. Uma terminologia típica

No conceito de culpa e de redenção reflete-se, pois, a realidade daexploração e da servidão. A idéia de um “salvador”, destinado a libertar almas ecorpos da expiação e do sofrimento, articula-se lentamente a partir deste enredode exasperadas contradições de classe.

A verdade é que o próprio têrmo “redenção”, que melhor caracteriza estanova doutrina, é extraído dos costumes da vida dos escravos.

Em latim redemptio significa originalmente o ato de um escravo que adquirea sua liberdade: o preço do resgate pode ser pago diretamente ou por umterceiro, sob várias formas, em favor do escravo. A concepção total domito da salvação cristã já está contida nesta fórmula(1).

Sendo o homem um pecador, e incapaz de libertar-se pagando àdivindade o preço do seu resgate, intervém um “redentor”, o qual pagapor ele com a sua paixão e a sua morte: esta é a essência da doutrinasoteriológica entre os primeiros escritores cristãos gregos, latinos esírios (Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo, Afraatessírio, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho), os quais reelaboraram em têrmos deteologia a lenda cristã. Para alguns dêles, inclusive, o “preço do resgate” épago a Satanás, que tinha o homem em seu poder; mas posteriormente opreço foge às mãos do demônio, porque Jesus, com a ressurreição, subtraiu-o.

Sòmente numa sociedade em que a prática da emancipação dos escravos eraplausível podia nascer a expressão com a qual a função de Cristo é definida emalguns trechos do Novo Testamento: aquela de ser um "preço de resgate paramuitos” (2).

O elemento nôvo consiste em que não se trata mais sòmente de um resgatedos padecimentos físicos.

Também os deuses do Olimpo, como o deus de Israel, podiam libertaro homem dos inimigos e da violência, das calamidades e dos demônios;e em virtude disto freqüentemente eram definidos como “salvadores”.

Quase todos os soberanos do mundo oriental receberamalternadamente o mesmo título, como libertadores dos seus povos ouinstrumentos da ação benéfica da divindade. No código de Hamurábi, o rei édefinido “salvador do povo reduzido à miséria”; no código sumério deLipit-Istar o legislador apresenta-se como aquêle que “libertou daescravidão” os cidadãos de Nippur, Isin e Ur submetidos pelosconquistadores elamitas (3). A religião masdéia elaborou o mito do“salvador” zoroastriano, ou saoshyant, que surgirá no fim dos tempos àfrente das fôrças do bem para derrotar o reino do mal e restaurar opoder absoluto de Ahura Masda, libertador do mundo (4).

Mas a doutrina da redenção, no sentido acima indicado, penetra as suasraízes numa realidade completamente diversa.

Estamos diante da idéia da libertação do homem da servidão daculpa, através do sacrifício cruento de um personagem divino oudivinizado, que se constitui “mediador” entre o ser supremo e o gênero

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humano. Os teólogos dizem a verdade quando procuram destacar aoriginalidade desta concepção; mas não podem naturalmente compreender queo resgate espiritual substituiu lentamente, na consciência dos homens, aquelanecessidade de resgate econômico e social que se revelava sempre mais difícilno terreno das relações de fôrça ou dos costumes legais.

A alforria de um escravo não era originalmente um fenômeno excepcional;mas acabou tornando-se, à medida que se ampliava e consolidava o sistema dapropriedade e da acumulação de bens materiais em poucas mãos.

Na Índia, os casos de “resgate” e de emancipação eram bastante frequentes;a integração social do escravo liberto era imediata e completa. Entre oshebreus, o servo podia alforriar-se pagando ao patrão uma parte dopreço de compra original, proporcionalmente ao número de anos queainda deveria permanecer escravo; só se tem memória de um único caso deemancipação coletiva, num momento delicado da história de Israel, seguido,porém, logo depois de conjurado o perigo, da pretensão de reivindicar o direitode propriedade(5). Também na Grécia e em Roma, nos tempos mais antigos, oescravo podia, em teoria, “redimir-se” depois de alguns anos, graças às suaseconomias; mas raramente podia salvar-se consagrando-se a uma divindade ouem virtude de legado testamentário ou proclamação autônoma da parte doproprietário (6). Mas o seu estado de “liberto”, até o início do principado deAugusto, não bastava para torná-lo igual aos outros cidadãos; continuavaprivado do jus honorum e era mantido afastado dos negócios públicos.

Em geral, às vésperas do surgimento do cristianismo, as possibilidades de umescravo alcançar a emancipação total não eram muito superiores àquelas que,hoje, na sociedade burguesa, tem um operário de tornar-se proprietário.

O poeta latino Marcial vangloria-se de ter concedido a liberdade ao seuescravo Demétrio, que agonizava, com apenas 19 anos, para permitir-lheingressar em estado de liberdade no mundo subterrâneo (7); isto confirma queas relações de classe eram consideradas válidas tanto nesta como na outra vida.

Não é necessário acrescentar que o conceito da “redenção”, que entrou nahistória dos homens como produto do seu modo de viver na época daescravidão, separou-se dialeticamente das suas raízes econômicas e sociais paradesenvolver-se no caminho autônomo da ideologia – sempre porém nos limitesde uma sociedade baseada na exploração do homem pelo homem – mesmodepois de terem desaparecido as razões de ordem material que caracterizavamo regime escravista._______1 Veja-se J. TOUTAIN, “L'idée religieuse de la rédemption” nos Annales de l'École desHautes Etudes, Section des Sciences Religieuses, Paris, 1916-17.2 Mateus, XX, 28; Marcos, X, 45.3 “Eu sou Lipit-Istar, que trouxe a liberdade aos filhos e às filhas de Nippur, Ur e Isin; comos meus esforços libertei da escravidão os filhos e as filhas de Súmer e da Acádia” etc. (cf.Êxodo, XX, 2: “Eu sou o senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa daservidão”).4 É muito provável que se tenha estabelecido muito cedo entre o “salvador”masdeu e o “messias” judaico um processo de identificação. Num comentário latinoao evangelho de Mateus, os “reis magos”, vindos do país de Zoroastro, procuram osaoshyant (V. BOUQUET, Breve História das Religiões, cit., introdução).5 Jeremias, XXXIV, 8-22.6 W. L. WESTERMANN, The Slave system of Greek and Roman antiquity, Filadélfia, 1955.7 "Sensit deficiens sua praemia meque patronum Dixit ad internas liber iturus aquas(Morrendo, teve a prova dos seus méritos e da minha generosidade, certo enfim de ir livreàs águas infernais). Veja-se R. H. BARROW, Slavery in the Roman Empire (A escravidão noImpério Romano), Londres, 1928, pág. 175.

(DONINI, 1965, p. 203-206) (grifo nosso).

Tomando-se de Paulo, entendemos que se houve algum resgate foi o de estarem livresda lei Gl 4,4-5, ou seja, de toda a legislação mosaica. Ao afirmar que “vocês já não estãodebaixo da Lei, mas sob a graça” (Rm 6,14) e completando com “fomos libertos da Lei, a fimde servimos sob o regime novo do Espírito, e não mais sob o velho regime da letra” (Rm 7,6),ele colocava os ensinamentos de Jesus suplantando os anteriores, vindos por Moisés.

E, especificamente, sobre a questão de alguém ser o “salvador da humanidade”, EdwardCarpenter (1844-1929) e Joseph Campbell (1904-1987) abordam, respectivamente, esse temada seguinte forma:

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[…] em seus aspectos mais sensíveis e espirituais, como nos ritos Mitrhaicos,Egípcios, Hindus e Cristão, uma pessoa passava pelo véu do maya e de seumundo em constante mudança, e entrava na região da paz e poder divinos(17). Ou, novamente, a doutrina do Salvador. A essa eu também não precisoadicionar muito mais do que já foi dito. O número de divindades pagãs (emsua maioria nascida de virgens e mortas de uma maneira ou outra porseus esforços de salvar a humanidade) é tão grande (18) e, portanto, difícilde precisar. O deus Krishna na Índia, o deus Indra no Nepal e no Tibetmorreram para a salvação dos homens; Buddha disse, de acordo com MaxMuller (19), “Permita que todos os pecados existentes no mundo caiam sobremim e o mundo será salvo”; o chinês Tien, o Sagrado – “com deus e existindocom ele para toda a eternidade” – morreu para salvar o mundo; o egípcioOsíris era chamado de Salvador, assim como Horus; assim como Mithra, daPérsia; assim como o grego Hércules que venceu a morte apesar de seucorpo ser consumido pelas chamas da mortalidade, da qual ele subiu aos céus.O mesmo aconteceu com o frígio Attis, chamado de Salvador, e do sírioTammuz ou Adônis – os dois que foram pregados a uma árvore, e depoisrenasceram de seus túmulos. Prometheu, o maior e mais antigo benfeitor daraça humana, foi pregado pelas mãos e pelos pés, com os braços abertos, àspedras do monte Cáucaso. Baco ou Dionísio, nascido da virgem Semele paraser o libertador da humanidade (Dionísio Bleutherios, como era chamado), foicortado em pedaços, como Osíris. Mesmo em Quetzalcoatl, no México, oSalvador nasceu de uma virgem, foi tentado, jejuou por quarenta dias, morreu,e sua segunda vinda foi tão esperada que (como é bem conhecido), quandoCortes apareceu, os mexicanos, coitados, o receberam como o deus que voltara!(20) No Peru e entre os índios norte-americanos, no Norte e no Sul do Equador,lendas parecidas são, ou foram, encontradas. Apesar de falarmos pouco sobre oassunto, é o bastante para provar que a doutrina do Salvador é mundial emuito antiga, e que o Cristianismo meramente apropriou-se da mesma e(assim como os outros cultos) lhe deu algumas outras cores. Talvez essadoutrina original fosse muito melhor e muito mais conhecida, se a Igreja Cristãnão tivesse feito um esforço enorme para tomar as devidas precauçõese para extinguir todas as evidências dos atos pagãos relacionados aesse assunto. Há muita evidência de que a Igreja antiga tomou esse caminhocom salvadores pré-cristãos (21); e nos últimos tempos a mesma política temsido mostrada pelo tratamento no século XVI dos escritos de Sahagun, omissionário espanhol – cujo trabalho já mencionei. Sahagun era um homemeducado e muito inteligente que, apesar de não aceitar as barbaridades dareligião asteca, foi fiel o bastante para mostrar características nas maneiras edos costumes das pessoas, e algumas semelhanças com a doutrina e práticacristãs. Isso deixou enfurecidos os intolerantes católicos da recém-formadaIgreja Mexicana.

Eles roubaram os manuscritos de Sahagun, de seu História das coisas daNova Espanha (1560), e os esconderam, e foi depois de muita briga e a decisãoda Corte Espanhola que Sahagun os teve de volta. Finalmente, aos oitenta anosde idade, depois de traduzi-los para o espanhol (do original mexicano), elemandou seus manuscritos em dois grandes volumes para a Espanha, para queficassem em segurança; mas quase imediatamente desapareceram e não maisforam encontrados! Apenas dois séculos depois foram reaparecer (1790) em umconvento de Tolosa em Navarre. O lorde Kingsborough publicou-os na Inglaterraem 1830.

Eu já falei sobre várias das principais doutrinas do Cristianismo - ouseja, do pecado, do sacrifício, da Eucaristia, do Salvador, doRenascimento e da transfiguração - mostrando que eles não são únicosem nossa religião, mas sim comuns a quase todas as religiões do mundoantigo. A lista pode ser muito aumentada, mas não há necessidade de nosatermos a um assunto que, de modo geral, já foi compreendido. Dedicarei, noentanto, uma ou duas páginas para um exemplo, que eu julgo muitointeressante e cheio de sugestão profunda.

Não existe nenhuma outra doutrina no Cristianismo que seja maisapreciada e reverenciada por seus fiéis, do que aquela em que Deussacrificou seu único filho para salvar o mundo; também, uma vez que ofilho não era apenas parecido com o pai, mas da mesma natureza do Pai, e iguala ele, sendo a segunda pessoa da Santíssima Trindade, o sacrifício foi umaimolação de si mesmo para o bem do mundo. A doutrina é muito mística, muitoantiga e, de certa maneira, tão absurda e impossível, que tem sido um prato

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cheio para piadas por parte dos inimigos da Igreja; e aqui podemos pensar, éuma crença que – seja ela considerada gloriosa ou obsoleta – é única e peculiaràquela Igreja.

E, ainda, o fato extraordinário é que uma crença parecida existe em todas asreligiões antigas e pode nos remeter ao passado. A palavra hóstia, que éusada na missa católica para representar o pão e o vinho no altar, símbolos docorpo e do sangue de Cristo, vem do latim Hóstia, que no dicionáriosignifica “um animal morto em sacrifício, uma oferta para compensarum pecado”. Isso nos leva de volta ao estágio do totem, quando toda a tribo,como eu já expliquei, coroava um touro, um urso ou um outro animal com florese prestavam-lhe honras com comida e adoração, sacrificavam a vítima para oespírito do totem da tribo e o comiam em uma festa eucarística – e o curandeiroou sacerdote que dirigia o ritual vestia a pele desse animal como um sinal deque ele representava o totem –, divindade, participando do sacrifício de “simesmo para si mesmo”. Isso nos faz lembrar dos khonds em Bengal sacrificandoseus meriahs coroados e enfeitados como deuses e deusas; dos astecas fazendoo mesmo; dos quetzalcoatl furando seus cotovelos e dedos para tirar sangue,oferecido em seu próprio altar; ou de Odin sendo pendurado, por vontadeprópria, em uma árvore. “Sei que fui pendurado em uma árvore que foibalançada pelo vento por nove longas noites. Uma lança atravessou meu corpo,fui levado a Odin. eu para mim”. E assim por diante. Os exemplos são infinitos.“Sou a oblação”. diz Krishna no Bhagavad Gita (22). “Sou o sacrifício, a oferendaos ancestrais”. “No real conceito ortodoxo de sacrifício”, diz Elie Reclus (23). Aoferenda consagrada, seja ela um homem, uma mulher ou uma virgem, umcarneiro ou novilha, galo ou pombo, representa a divindade..._______(17) Baring Gould, em seu livro Orig. Relig. Beliej, I. 401, diz: "Entre os Hindus antigos,Soma era uma divindade; ele é chamado de Provedor da Vida e da Saúde... Encarnouentre os homens, foi pego por eles, morto e triturado em um almofariz(aparentemente um deus de cereal e vinho). Mas ele ressuscitou das chamas e subiuao céu para ser "Benfeitor do Mundo" e o “Mediador entre Deus e o homem. Pormeio da comunhão com ele em seu sacrifício, o homem (que partilhava desse deus) temuma confirmação de imortalidade, pois com esse sacramento obtém união com suadivindade”.(18) Ver uma considerável lista no livro de Doane, Bible Myths, cap. XX.(19) Hist. Sanskrit Literature, p. 80.(20) Ver o livro de Kingsborough, Mexican Antiquities, vol. VI.(21) Ver Apologia, de Tertúlio, c. 16; Ad aciones, c. XII.(22) Cap. IX, V. 16.(23) Primitive Folk, cap. VI.

(CARPENTER, 2008, p. 89-91) (grifo nosso).

III. A LENDA DO SALVADOR DO MUNDOE impossível reconstruir o caráter, a vida e a verdadeira doutrina do homem

que se tornou o Buda. Supõe-se que ele tenha vivido entre 563 e 483 a.C.Entretanto, sua mais antiga biografia, a do cânon páli, começou a ser escritaapenas por volta de 80 a.C. no Ceilão [atual Sri Lanka], a cinco séculos e 2.400km de distância do verdadeiro cenário histórico. E a vida, a essa altura, tinha-se tornado mitologia - segundo um padrão característico dos Salvadoresdo Mundo do período entre aproximadamente 500 a.C. e 500 d.C., sejana Índia, como nas lendas dos jainas, ou no Oriente Próximo, como navisão evangélica de Cristo.

Em resumo, essa biografia arquetípica do Salvador fala de:1. o descendente de uma família real2. nascido milagrosamente3. em meio a fenômenos sobrenaturais4. sobre quem um santo ancião (Simão = Asita), logo apos o nascimento,

profetizou uma mensagem de salvação do mundo, e5. cujas façanhas na infância proclamam seu caráter divino.Na sequência indiana, o herói do mundo:6. casa-se e gera um herdeiro7. desperta para sua missão8. parte, com o consentimento de seus progenitores (no jainismo), ou

secretamente (o Buda)

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9. para engajar-se em árduas disciplinas na floresta10. que o confrontam, finalmente, com um adversário sobrenatural, sobre o

qual11. a vitória é alcançada.O último citado, o Adversário, é uma figura que nos tempos védicos teria

aparecido como um dragão anti-social (Vritra) mas, em concordância com anova ênfase psicológica, representa agora aqueles equívocos da mente que omergulho do Salvador do Mundo nas suas próprias profundezas traz a luz, econtra os quais ele está lutando, tanto por sua própria vitória quanto para asalvação do mundo.

Na lenda cristã, não há registro dos anos de juventude representadosacima pelos estágios 6 a 8. Entretanto, os episódios culminantes (9 a 11)estão representados pelo jejum de quarenta dias no deserto onde sedeu o confronto com Satã. Ademais, pode-se argumentar que as cenasinfantis da matança dos inocentes pelo rei Herodes, o aviso do anjo a São José ea fuga da Sagrada Família correspondem simbolicamente ao 6, isto é, aosesforços do pai do futuro Buda para frustrá-lo em sua missão, confinando-o nopalácio e fazendo-o casar-se depois do que (7) ele foi despertado para suamissão pela visão de um ancião, um homem doente, um cadáver e um iogue,ante o que (8) planejou fugir. Em ambos os casos a narrativa é a de um inimigorégio do espírito, lutando com todos seus recursos – sejam eles maléficos (reiHerodes) ou benignos (rei Suddhodana) – que se mostram vãos para frustrar oinfante Salvador em sua predestinada missão.

Seguindo seu encontro cara a cara com o Antagonista e vencendo-o, oSalvador do Mundo:

12. realiza milagres (caminha sobre as águas etc.)13. torna-se um pregador errante14. prega a doutrina da salvação15. a um séquito de discípulos e16. a uma pequena elite de iniciados17. um dos quais, menos rápido para aprender do que o resto (Pedro =

Ananda), (340) recebe o comando e se torna o modelo da comunidade leiga,enquanto

18. outro, obscuro e traiçoeiro (Judas = Devadatta), esta empenhado namorte do Mestre.

Em várias versões da lenda são dadas diferentes interpretações aosternas comuns, coincidindo com as diferenças de doutrina. Por exemplo,2: enquanto a Virgem Maria concebeu do Espirito Santo, a rainha Maya, mãe doBuda, era uma verdadeira esposa de seu consorte; tampouco o Salvador doMundo que ela era a luz era uma encarnação de Deus, o Criador do Universo,mas um jīva reencarnado iniciando a ultima de suas inumeráveis vidas.Igualmente os itens 10-11: enquanto a vida do Buda atingiu o ápice na suavitória sobre Mara sob a árvore Bodhi, a lenda cristã transfere a Árvore daRedenção para o estágio 19, isto e, a morte do Salvador, que na vida do Budanão é mais do que uma passagem pacífica no final de uma longa carreira demestre. Pois o ponto principal do budismo não é – como no antigo sacrifícioSoma – a imolação física do Salvador, mas seu despertar (bodhi) para a Verdadedas verdades e, em consequência, a libertação (moksa) da ilusão (māyā). Porisso, o ponto principal para o indivíduo budista não é se a lenda do Budacorresponde ao que de fato e historicamente ocorreu entre 563 e 483 a.C., masse serve para inspirá-lo e guiá-lo para a iluminação.______340 Mateus 16:23; Mahāparinibbna-Sūtta 61.

(CAMPBELL, 1995, p. 203-205) (grifo nosso).

Esses dois autores, confirmam, portanto, que a história de Jesus é semelhante à deoutros personagens mitológicos, levando-nos a concluir que muitas coisas das ditas religiõescristãs, são fruto de aculturamento do que se acreditava nas religiões pagãs, por mais que issocause constrangimento a seus crentes.

Resta-nos ainda colocar Paul Johnson que, em Uma breve história do Cristianismo, nosinforma:

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[…] Mais importante, porém, era que Paulo achava que não podia explicar anatureza da doutrina de Jesus sem recorrer a conceitos e termos que fossemcompreensíveis para os que haviam sido criados no mundo greco-romano. Jesuspreviu sua paixão, mas não a explicara. Paulo tinha de explicá-la para umpúblico que falava e pensava em grego. O ato da salvação tinha de ser maisamplo que o mero messianismo dos judeus que parecia, aos gregos, umaquestão de política local, limitada em termos temporais e geográficos. O que eraa Judeia, para eles? Paulo achava difícil explicar como por que Jesus era judeu,e mais ainda por que tinha de ser judeu. Assim, as circunstâncias que levaram àsua crucificação eram irrelevantes e ele as omite. Simplesmente, identificouo Jesus histórico como o filho preexistente de Deus, e interpreta acrucificação como um ato divino com intenções salvacionistas deimportância cósmica. E, naturalmente, quanto mais Paulo pregava seguindoessa linha, mais claro ficava para ele que seu evangelho helenizado estava maispróximo da verdade, tal como ele a compreendia, que a restrição imposta pelavisão intolerante do cristianismo judaico – se é que, de fato, ele poderia serchamado de cristianismo. O mundo helênico podia aceitar Jesus como umadivindade, mas o judaísmo interpôs um abismo de diferenças entre Deus e ohomem. E não havia nada na literatura judaica que sugerisse a ideia deum salvador encarnado da humanidade que se redimisse em virtude desua própria morte sacrifical. (JOHNSON, 2001, p. 50-51) (grifo nosso).

Vê-se, portanto, que, no judaísmo, nada existia sobre um salvador que morreria pararedimir a humanidade. Eles, na verdade, acreditavam num salvador político:

Aqui os olhos se voltam para o passado. O homem se representou o tempofuturo de salvação, segundo o modelo idealizado do antigo reino de Davi e porisso esperou pelo Salvador vindouro, como um novo Davi: Ungido rei pelopróprio Deus e dotado de poderes estupendos, o Messias libertará o povojudeu do domínio estrangeiro romano, com a palavra de sua boca,esmagará todos os inimigos de Israel, reerguerá a casa de Davi, reunirá as dozetribos dispersas no mundo e deixará que ressuscitem Jerusalém em todo o seuesplendor. Assim é que Israel enfim se tornará o povo sagrado de Deus, vivendoem equidade, justiça e pureza. Os povos gentios, porém, não terão parte noreinado de Deus, a não ser sob submissão e tributação. A redenção, aqui, ésobretudo esperada como libertação do jugo romano e, emconsequência, apenas compreendida como uma protelação exageradada vida eterna. (ZAHRNT, 1992, p. 27) (grifo nosso).

Portanto, é algo bem diferente da crença surgida posteriormente de um salvador quefosse redimir pecados. Fato que se pode muito bem comprovar na fala profética de Zacarias,pai de João Batista:

Lucas 1,68-75: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seupovo. Fez aparecer uma força de salvação na casa de Davi, seu servo; conforme tinhaanunciado desde outrora pela boca de seus santos profetas. É a salvação que noslivra de nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam. Ele realizou amisericórdia que teve com nossos pais, recordando sua santa aliança, e o juramentoque fez ao nosso pai Abraão. Para conceder-nos que, livres do medo e arrancadosdas mãos dos inimigos, nós o sirvamos com santidade e justiça, em sua presença,todos os nossos dias”.

A salvação esperara, era, portanto, de conotação política e não espiritual.

Por outro lado, vê-se que essa crença em um salvador é algo comum em outrasculturas, como, por exemplo, entre os persas:

Mitra, um dos principais deuses da religião iraniana anterior a Zaratustra,era uma divindade do tipo solar – como se pode ver pela sua cabeça de leão –que expulsou do céu Ahriman (o mal). Formado a partir do antigo deusfuncional indo-ariano Vohu-Manah (24), tornou-se objeto de um cultoaparecido uns mil anos antes de Cristo e, após ter passado por diversastransformações, foi adoptado pela religião romana, de cujo panteão fez parte

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até ao século IV d.C. Enquanto divindade, tinha por função carregar comos pecados da humanidade e expiar as suas iniquidades. Funcionava,assim, como princípio mediador colocado entre o bem (Ormuzd) e o mal(Ahriman), como dispensador de luz e de bens, encarregue de manter aharmonia no mundo e de proteger todas as criaturas. Uma espécie de messiasque, segundo seus seguidores, devia voltar ao mundo como juiz doshomens. Sem ser propriamente o Sol, representava-o e era invocado como tal.Nas suas cerimônias, era apresentado num viril ou custódia, em tudo idêntica àque muitos séculos depois será utilizada pela Igreja cristã. O deus Mitra hindu,como o persa, é igualmente uma divindade solar, como se pode concluir pelofacto de ser um dos doze Adítias, filhos de Aditi, a personificação do Sol.

Todas as personificações dos deuses solares acabam por ser vítimapropiciatórias que expiam os pecados dos mortais, carregando com assuas culpas. Morrendo de morte violenta, são posteriormenteressuscitados. Assim, Osíris, que nasceu como um salvador ou libertador eveio ao mundo para pôr fim à tribulação dos humanos, teve que enfrentar nasua luta pelo bem o irmão Seth, ou Tifão, personificação do mal (posteriormenteidentificado como Satanás) que o vence temporariamente e o mata; depositadono seu túmulo, ressuscita e, ao fim de três dias (ou de quarenta, noutrasversões), ascende aos céus.______24. Vohu-Manah, a exemplo de Hórus e de outros deuses-filhos, entre os quais se devesituar Jesus Cristo, tinha um papel fundamental, no contexto “Juízo Final”, comointermediário entre os humanos e o deus-pai. Acreditava-se que, quando uma almachegava ao céu, Vohu-Manah se levantava do seu trono, a pegava pela mão e a conduziaaté à presença do grande deus Ahura-Mazda e da sua corte celestial.

(RODRÍGUEZ, 2007, p. 117-118) (grifo nosso).

Observamos que Pepe Rodríguez informa tal crença em outras culturas, não só entre ospersas; portanto, não se trata de novidade do cristianismo; ao contrário, mais parece ser umplágio.

A opção de que a salvação seja por meio das obras, quer dizer, pelas nossas ações, é,para nós, além de ser a única na qual a justiça e misericórdia de Deus se manifestamplenamente é a mais lógica. Também é a que não se depara com uma série de problemas, queaconteceria com qualquer uma outra opção. Vejamos alguns problemas, que certamente,poderão ser estendidos por qualquer estudioso ou interessado em temas bíblicos:

a) não contradiz o critério justo de avaliar “a cada um segundo suas obras” (Mt 16,27,ver também Jó 34,11; Sl 28,4; 62,12; Pr 12,14; 24,12; Eclo 16,13; Jr 17,10; Lm 3,64; Ez24,14; 33,20; Os 12,3, 2Tm 4,14; Ap 2,23);

b) da mesma forma, não contradiz a determinação de que “cada um será executado porcausa do seu próprio crime” (Dt 24,16) (ver também Jr 31,29-30; Ez 18,20).

c) as ações dos homens não atingem a Deus; porém, às suas leis:

“Se você pecar, que mal estará fazendo a Deus? Se você amontoa crimes, quedanos está causando para ele? E se você é justo, o que é que está dando a ele? O queé que ele recebe de sua mão? Sua maldade só pode afetar outro homem igual avocê. Sua justiça só atinge outro ser humano como você” (Jó 35,6-8).

Dessa forma, sendo Deus totalmente “imune”, ou seja, não se ofende com o quefazermos, não há que se falar em remissão ou mesmo perdão de pecados.

d) não se torna ilógico ao redimir pecados futuros, porquanto, os rituais de expiação depecados praticados pelos hebreus eram todos expressamente pela “violação cometida” (Lv 4,1-3; 13-15) e não para “violações a cometer”;

e) não ter seguido a ritualística de ofertas pelo sacrifício do povo, que era uma leiperpétua, quando pegavam dois bodes, um ofereciam a Deus, outro a Azazel, que supunham,viver no deserto (Lv 16,34);

f) outro ponto da ritualística não seguido é quanto ao sangue da vítima que eraespalhado pelo povo (Ex 24,4-8);

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g) em consequência do item b, teremos que arrumar um segundo Cristo para morrerpelos pecados cometidos pela humanidade depois da morte do primeiro Cristo; procedimentoque teria que ser feito, novamente, com um terceiro Cristo, quarto, quinto, etc.;

h) preferência divina pela misericórdia e não por sacrifícios (Mc 12,33, ver também Os6,6); que não eram do agrado de Deus (Sl 51,7; Jr 6,20) e que nem mesmo foi instituído porDeus (Jr 7,22). Um passo que vem corroborar isso é:

Is 1,11-17: “Que me interessa a quantidade dos seus sacrifícios? - diz Javé. Estoufarto dos holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos. Não gosto dosangue de bois, carneiros e cabritos. […] Parem de trazer ofertas inúteis. [...]Quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda quemultipliquem as orações, eu não escutarei. As mãos de vocês estão cheias desangue. Lavem-se, purifiquem-se, tirem da minha vista as maldades que vocêspraticam. Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem: busquem o direito,socorram o oprimido, façam justiça ao órfão, defendam a causa da viúva”.

i) que, para ser coerente com os próprios textos bíblicos, essa suposta remissão depecados poderia ser, no máximo, acontecido “[…] para o resgate das transgressõescometidas no regime da primeira aliança; […]” (Hb 9,15), o que nos remete ao item e;

j) contrapondo ao item anterior temos que “Ele é a vítima de expiação pelosnossos pecados; e não só os nossos, mas também os pecados do mundo inteiro” (1Jo2,2), o que abrigaria até mesmo as pessoas que não estavam nem aí para a mensagem deJesus;

k) temos como outras alternativas para a remissão dos pecados que não a morte deJesus: 1ª) o batismo: "Assim apareceu João, o Batista, no deserto, pregando o batismo dearrependimento para remissão dos pecados”. (Mc 1,4); 2ª) o arrependimento: “e que emseu nome se pregasse o arrependimento para remissão dos pecados, a todas as nações,começando por Jerusalém” (Lc 24,47); c) crer em Jesus: “A ele todos os profetas dãotestemunho de que todo o que nele crê receberá a remissão dos pecados pelo seunome”. (At 10,43).

l) se há predestinação não tem sentido em falar-se também em remissão de pecados,conforme outra proposta de Paulo:

Rm 8,28-30: “Sabemos que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam aDeus, daqueles que são chamados segundo o projeto dele. Aqueles que Deusantecipadamente conheceu, também os predestinou a serem conformes à imagem doseu Filho, para que este seja o primogênito entre muitos irmãos. E aqueles que Deuspredestinou, também os chamou. E aos que chamou, também os tornou justos. E aosque tornou justos, também os glorificou”.

Ef 1,5-¨6: “Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por meio de JesusCristo, conforme a benevolência de sua vontade, para o louvor da sua glória e da graçaque ele derramou abundantemente sobre nós por meio de seu Filho querido”.

Ef 1,11-12: “Em Cristo recebemos nossa parte na herança, conforme o projeto daqueleque tudo conduz segundo a sua vontade: fomos predestinados a ser o louvor da suaglória, nós, que já antes esperávamos em Cristo”.

m) se é para se apoiar em Paulo, então é preciso definir qual dessas opções deveprevalecer para a salvação:

1ª) pelas obras:

“De fato, todos deveremos comparecer diante do tribunal de Cristo, a fim de que cadaum receba a recompensa daquilo que tiver feito durante a sua vida no corpo, tanto parao bem, como para o mal” (Gl 6,10).

2ª) pela aplicação do Evangelho:

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“É pelo Evangelho que vocês serão salvos, contanto que o guardem do modo como eulhes anunciei; do contrário, vocês terão acreditado em vão” (1Cor 15,2).

3ª) pela morte de Jesus:

“[...] Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado,ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; [...]” (1Cor 15,3-4).

4ª) por crer na ressurreição de Jesus:

“Pois se você confessa com a sua boca que Jesus é o Senhor, e acredita com seucoração que Deus o ressuscitou dos mortos, você será salvo” (Rm 10,9).

5ª) pela fé em Jesus:

“Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da Lei, massomente pela fé em Jesus Cristo. Nós também acreditamos em Jesus Cristo, a fim denos tornarmos justos pela fé em Cristo e não pela observância da Lei, pois com aobservância da Lei ninguém se tornará justo”. Gl 2,16).

A mensagem central de Jesus está no amor ao próximo, fora disso, ter-se-á um fortecandidato a desilusão. O pastor Brain D. McLaren, que citamos mais no início, fala algo queprova a visão ampliada que devemos ter dos ensinamentos de Jesus: “Gandhi – nãoidentificado como cristão, mas alguém com maior clareza do que muitos cristãos” (MCLAREN,2007, p. 92), ou seja, ele reconhece um não-cristão mais cristão do que muitos que assim sedenominam. Além disso, também reconheceu como verdade o fato de que “alguns teólogos eestudiosos chegaram à conclusão de que – certa ou errada – a mensagem da Igreja cristã setornou uma mensagem completamente diferente da mensagem de Jesus” (MCLAREN, 2007, p.117).

E afinal, onde podemos encontrar a síntese dos ensinamentos de Jesus: “O modelomais condensado do ensino de Jesus se encontra em Mateus, capítulos 5 a 7, em umapassagem geralmente conhecida por Sermão do Monte”. (MCLAREN, 2007, p. 147). Apenasacrescentaria: Fora disso não há salvação!

Não podemos centrar nossa visão em Paulo; mas em Jesus que deixou bem claro que“Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no Reino do Céu. Só entrará aqueleque põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu”. (Mt 7,21) e, para que nãorestasse nenhuma dúvida completou:

"Portanto, quem ouve essas minhas palavras e as põe em prática, é como o homemprudente que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, osventos sopraram com força contra a casa, mas a casa não caiu, porque fora construídasobre a rocha. Por outro lado, quem ouve essas minhas palavras e não as põe emprática, é como o homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia. Caiu achuva, vieram as enxurradas, os ventos sopraram com força contra a casa, e a casacaiu, e a sua ruína foi completa!" (Mt 7,24-27).

Sem precisar levar em consideração outras passagens, inclusive, já citadas por nós,somente essa daria para concluir que a prática do amor ao próximo é a base de nossasalvação, portanto, é algo relacionado com a nossa disposição íntima de agir a favor dele e nãouma salvação de “graça”, pelo fato de alguém ter morrido na cruz, como querem muitos.

Finalizando, vamos ainda transcrever uma passagem bem interessante:

Lc 18,18-24: “Uma pessoa importante perguntou a Jesus: 'Bom Mestre, o que devofazer para receber em herança a vida eterna?' Jesus respondeu: 'Por que você mechama de bom? Só Deus é bom, e ninguém mais. Você conhece os mandamentos: nãocometa adultério; não mate; não roube; não levante falso testemunho; honre seu pai esua mãe'. O homem disse: 'Desde jovem tenho observado todas essas coisas'.Ouvindo isso, Jesus disse: 'Falta ainda uma coisa para você fazer: venda tudo oque você possui, distribua o dinheiro aos pobres, e terá um tesouro no céu.

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Depois venha, e siga-me'. Quando ouviu isso, o homem ficou triste, porque era muitorico. Vendo isso, Jesus disse: 'Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus! Defato, é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrarno Reino de Deus'”.

O interlocutor de Jesus afirma que cumpria todos os mandamentos, porém, Jesus disseque faltava mais uma coisa: vender tudo o que tinha para distribuir aos pobres, ou seja, quefosse desapegado dos seus bens, doando-os aos necessitados, pois assim teria um tesouro nocéu. Não temos como entender de outra forma que não a de ser a prática do amor a base paraa nossa salvação, como muitas outras passagens demonstram claramente isso.

Em nosso texto “O que efetivamente nos salva?”, disponível no sitewww.paulosnetos.net, além de desenvolver mais sobre esse tema, também tentamos, namedida do possível, ver Paulo com outros olhos; por considerar tal texto, de uma certa forma,como complemento do presente texto, nós o recomendamos a todos que leram o presentetexto.

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Conclusão Final

Não há muito o que acrescentar em relação à conclusão que colocamos no primeirovolume, apenas reforçaríamos que “o Senhor é o Espírito; e onde se acha o Espírito do Senhoraí existe a liberdade”. (2Cor 3,17), considerando que a grande maioria das igrejas ditastradicionais não permitem a seus fiéis lerem livros que não os de sua igreja. Isso tornaimpossível aos que lhes seguem sair do encabrestamento a que são sujeito por esse tipo decomportamento. Mas é exatamente isso que eles querem, pois daí a arrancar-lhes o dízimo écoisa fácil, mais ainda que tomar pirulito de criança.

Lembrando-nos de Jesus quando disse que “não se coloca remendo de pano novo epano velho, nem vinho novo em odres velhos” (Mt 9,16-17), não seria de todo impróprioconcluir que ele recomendava, aos de sua época, o desapego aos ensinamentos mosaicos, poisse não fizessem isso, não conseguiram receber aqueles que Ele, Jesus, estava passando.Entretanto, decorridos tanto tempo, ainda há muitas pessoas que bem serviriam essarecomendação, pois não se conseguem se desvencilhar de seguir a Moisés.

Esperamos, sinceramente, que esse estudo, possa incentivar outros autores a fazeremo mesmo, pois há muito joio misturado no trigo, e, certamente, que não conseguimos comesse modesto trabalho fazer muita coisa a respeito disso. Há necessidade de juntarmosesforços neste sentido, de forma a tornarem límpidos os ensinos do Mestre, o que os faráplenamente compreendidos na essência, levando a todos nós, seres humanos, a termoscondições de colocá-los em prática, já que os compreendemos bem.

Jesus abençoe a todos os que advogam a causa da justiça e da verdade!

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Paulo da Silva Neto Sobrinho, é natural de Guanhães, MG.

Formado em Ciências Contábeis e Administração de Empresas pela Universidade Católica(PUC-MG).

Aposentou-se como Fiscal de Tributos pela Secretaria de Estado da Fazenda de MinasGerais.

Ingressou no movimento Espírita em Julho/87, atualmente frequenta o Movimento Espíritaem Belo Horizonte.

Escreveu vários artigos que foram publicados em alguns sites Espíritas na Internet, entreeles:

Ø O Portal do Espírito: www.portalespirito.com/

Ø Grupo de Apologética Espírita: www.apologiaespirita.org

Ø Panorama Espírita: www.panoramaespirita.com.br

Autor dos livros:

- A Bíblia à Moda da Casa

- Alma dos Animais: estágio anterior da alma humana?, e

- Espiritismo, princípios, práticas e provas.

- Os espíritos se comunicam na Igreja Católica (no prelo)

Endereço: Rua Mar de Espanha, 633 – Aptº 401Santo Antônio – Belo Horizonte.

CEP 30.330-270.

Site: www.paulosnetos.nete-mail: [email protected]

Tel: (31) 3296-8716