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Departamento de Letras QUEBRA-CABEÇA MULTITEMPORAL Aluna: Claudia Fay Orientadora: Marília Rothier Cardoso Invenção de Orfeu, no dizer de seu autor Jorge de Lima, é um poema que se pretende épico, daí sua divisão em cantos - dez ao todo - seguindo a forma clássica do gênero. No entanto, as semelhanças param por aí. Não é um resgate da épica o que o autor almeja através de seu livro-poema, mas sim a modernização da mesma, ressignificando-a e modernizando-a, construindo uma épica atual com características próprias. Cantos formados por vários poemas com diferentes métricas, em que há uma sobreposição de formas que podem variar de sonetos, alexandrinos clássicos e sextilhas a redondilha popular e versos livres, bem como a ausência de um fio histórico narrativo que conduza a desdobramentos que sigam um encadeamento marcado por início, meio e fim são marcas de Invenção de Orfeu que negam o gênero épico e criam uma atmosfera fragmentária em que cada canto poderia subsistir por si só, rompendo com uma ideia de unidade. É a partir desta perspectiva de um diálogo com a tradição que se pode ler o primeiro verso do poema: "Um barão assinalado". A segurança que ele insinua oferecer, re-apresentando uma figura já familiar através da epopéia de Virgílio, com seu varão Enéias, assim como com Os Lusíadas e seus " barões assinalados" , é colocada em xeque pela apresentação de um outro. Este, "sem brasão, sem gume e fama", diferente de rumar para fundar Roma ou navegar heroicamente para as Índias, busca uma ilha "que é de aquém e de além mar","[n]em achada e nem não vista", aventurando-se em "partidas/porém nunca acontecidas", nesta viagem limiana em um batel que "é tão ébrio, tão sem mapa/que meus mares não sei nem minhas bússolas"(Canto VII, poema III). Como argumenta Ramon Quintela Torreira em seu ensaio "Instrumentos para uma leitura de Invenção de Orfeu", este resgate de dois momentos da épica clássica não se consubstancia em um resgate também de valores heroicizados por tal gênero, não resultando assim nem em uma "fusão de motivos, nem sequer do ritmo". Aquilo que Camões heroicizou através do metro decassílabo, típico da épica clássica, Jorge de Lima popularizou através de seus versos em redondilha maior, oferecendo-nos através de seu poema uma apropriação que resulta em uma ressignificação de quem seja este barão/varão (Torreira IN Riedel,1977,p.23). "Barão ébrio, mas barão de manchas condecorado: entre o mar, o céu e o chão fala sem ser escutado a peixes, homens e aves, bocas e bicos, com chaves, E ele sem chaves na mão" (Canto I, poema I) É a partir do gozo desta liberdade atribuída ao poema, ao qual é permitido ao longo de sua navegação viajar por entre "símbolos e imagens" (Canto I,poema XXXVIII), proclamando que no "[m]osaico de memórias nele nado,/comendo peixes e recordações (Canto II, poema XIV), que o autor define Invenção de Orfeu como sendo "a ébria embarcação", em uma analogia com o "Bateau Ivre" de Rimbaud. Este, uma vez sentindo-se liberto dos seus

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Departamento de Letras

QUEBRA-CABEÇA MULTITEMPORAL

Aluna: Claudia Fay

Orientadora: Marília Rothier Cardoso Invenção de Orfeu, no dizer de seu autor Jorge de Lima, é um poema que se pretende

épico, daí sua divisão em cantos - dez ao todo - seguindo a forma clássica do gênero. No entanto, as semelhanças param por aí. Não é um resgate da épica o que o autor almeja através de seu livro-poema, mas sim a modernização da mesma, ressignificando-a e modernizando-a, construindo uma épica atual com características próprias. Cantos formados por vários poemas com diferentes métricas, em que há uma sobreposição de formas que podem variar de sonetos, alexandrinos clássicos e sextilhas a redondilha popular e versos livres, bem como a ausência de um fio histórico narrativo que conduza a desdobramentos que sigam um encadeamento marcado por início, meio e fim são marcas de Invenção de Orfeu que negam o gênero épico e criam uma atmosfera fragmentária em que cada canto poderia subsistir por si só, rompendo com uma ideia de unidade.

É a partir desta perspectiva de um diálogo com a tradição que se pode ler o primeiro verso do poema: "Um barão assinalado". A segurança que ele insinua oferecer, re-apresentando uma figura já familiar através da epopéia de Virgílio, com seu varão Enéias, assim como com Os Lusíadas e seus " barões assinalados" , é colocada em xeque pela apresentação de um outro. Este, "sem brasão, sem gume e fama", diferente de rumar para fundar Roma ou navegar heroicamente para as Índias, busca uma ilha "que é de aquém e de além mar","[ n]em achada e nem não vista", aventurando-se em "partidas/porém nunca acontecidas", nesta viagem limiana em um batel que "é tão ébrio, tão sem mapa/que meus mares não sei nem minhas bússolas"(Canto VII, poema III).

Como argumenta Ramon Quintela Torreira em seu ensaio "Instrumentos para uma leitura de Invenção de Orfeu", este resgate de dois momentos da épica clássica não se consubstancia em um resgate também de valores heroicizados por tal gênero, não resultando assim nem em uma "fusão de motivos, nem sequer do ritmo". Aquilo que Camões heroicizou através do metro decassílabo, típico da épica clássica, Jorge de Lima popularizou através de seus versos em redondilha maior, oferecendo-nos através de seu poema uma apropriação que resulta em uma ressignificação de quem seja este barão/varão (Torreira IN Riedel,1977,p.23).

"Barão ébrio, mas barão de manchas condecorado: entre o mar, o céu e o chão fala sem ser escutado a peixes, homens e aves, bocas e bicos, com chaves, E ele sem chaves na mão" (Canto I, poema I)

É a partir do gozo desta liberdade atribuída ao poema, ao qual é permitido ao longo de sua navegação viajar por entre "símbolos e imagens" (Canto I,poema XXXVIII), proclamando que no "[m]osaico de memórias nele nado,/comendo peixes e recordações (Canto II, poema XIV), que o autor define Invenção de Orfeu como sendo "a ébria embarcação", em uma analogia com o "Bateau Ivre" de Rimbaud. Este, uma vez sentindo-se liberto dos seus

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rebocadores, afirma: "[m]ais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis/Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,/Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!"E assim, com seu "casco ao léu", "livre de leme e arpéu", vai em uma intensa jornada de conhecimento, afirmando que "algumas vezes vi o que o homem quis ver!"(CAMPOS,1993,p15).

Invenção de Orfeu, marcado por um descentramento tanto temático, temporal, geográfico quanto cultural, com "um vento só banhando livre/o poema ivre" (Canto VII, poema II), apresenta-se também como uma nau ébria: "Pra unidade deste poema,/ele vai durante a febre,/ele se mescla e se amealha,/e por vezes se devassa (Canto I,XXIII). Sua jornada exploratória, assim, não se dá apenas através da tradição épica ocidental, revitalizando seus principais momentos, como também através de fragmentos poéticos recolhidos da arte de vanguarda -surrealismo- e pré vanguarda (Rimbaud e Mallarné), bem como com amostras significativas de culturas africanas e ameríndias, tensionando os textos selecionados através de uma inserção que os articula propositalmente sem levar em conta suas distâncias no espaço e no tempo.

No Canto I, poema XXIX, em uma atividade metalinguística, é o próprio eu lírico quem apresenta elementos pertinentes à técnica de composição deste poema ave, poema nave, "peixe veleiro" que voa sobre o mar, pois sua proa "é ave/peixe de velas"(Canto I, poemaVI).

"Esse imensíssimo poema Onde os outros se entrelaçaram, Datas, números, leis dantescas, Início, início, início, início, Poema unânime abrange os seres E quantas pátrias. Quantas vezes. Poema-Queda jamais finado Eu seu herói matei um Deus Genitum non factum Memento. Não sou a Luz mas fui mandado Para testemunhar a Luz Que flui deste poema alheio. Amen."

O processo de composição poética da obra de Jorge de Lima nos apresenta um espaço textual formado por uma pluralidade de espaços culturais, articulando um imaginário que engloba tanto o pagão arcaico como o judaico-cristão, revelando-se como uma obra que remete a outras obras, ou no dizer do próprio eu lírico, como um "imensíssimo poema/Onde os outros se entrelaçaram". O "poema alheio" a que o autor se refere, pode ser lido não com a ideia de plágio mas como um recorte de inúmeras obras, uma apropriação sem ordenação conforme origens e fontes, sem levar em conta qual foi a primeira a influenciar as outras, mas em uma circularidade em que a literatura se alimenta dela própria, sendo esse imenso emaranhado histórico o arquivo à disposição do poeta. Este fragmentarismo presente em Invenção de Orfeu pode ser visto, "em realidade, [como] uma composição em mosaico, ou, se preferirem, uma montagem de caleidoscópio"(Torreira IN Riedel,1977,p.16).

Ao apropriar-se, o autor desloca os fragmentos literários de seu contexto e os insere dentro de um novo espaço interpretativo, aproximando e conciliando cronologias as mais diversas, tal como valendo-se da técnica de palimpsesto, em que "um texto é raspado, parcial ou totalmente, para que sobre ele se produza outra escrita, mas de tal maneira que a segunda escrita deixe transparecer a primeira"(Teles IN Busatto,1978,p.XXVIII). Esta técnica de produzir um texto valendo-se de fragmentos verbais de outros textos e conjugando-os, permitindo que convivam dentro de um novo espaço autônomo tornando este, assim, multitemporal, "recebeu o nome de visão de palimpsesto por parte de Jorge de Lima" (Teles IN Busatto,1978,p.IX).

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Departamento de Letras Apresenta-se, aqui, exemplos deste trabalho poético de recorte e entrelaçamento de

fragmentos literários, colocando lado a lado, em uma mesma obra, uma heterogeneidade de tempos e culturas, convertendo Invenção de Orfeu nesta "[c]omposição desordenada" onde "tudo agora se encorpora" (Canto I, poema XXIX).

Invenção de Orfeu (Canto I, poema XXXVIII) A soberba Veneza está no meio das águas - que tão baixa começou! Mais baixa que a cidade o mundo alheio dos anjos que em seu bojo se abrigou, e que informa na terra o turvo seio do arcanjo renegado que inda sou. - Braço mago de gente revelada não menos nos engenhos que em mais nada.

Os Lusíadas (III,14) Logo os Dálmatas vivem; e no seio Onde Antenor já muros levantou, A soberba Veneza está no meio Das águas, que tão baixa começou. Da terra um braço vem ao mar,que,cheio De esforço, nações várias sujeitou Braço forte, de gente sublimada Não menos nos engenhos que na espada.

(Camões APUD Busatto,1978,p.29)

Invenção de Orfeu (Canto VI, poema VIII) Horrível Duende rubro, vede ali: no corpo tantos pinos tem, com tantos olhos e cílios, tantas uranosas línguas, membros de grifos, sóis de inferno

Eneida (201-210 Horrendo monstro ingente, que, oh!prodígio No corpo quantas plumas tem, com tantos Olhos por baixo vela, tantas línguas. Tantas vozes lhe soam, tende e alerta

(Virgílio APUD Busatto,1978,p.57)

Invenção de Orfeu (Canto IV, poema XIX) lua sem paz; recordo, era em jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada ..................................................... A verdade é que então à borda estamos do vale desse abismo doloroso, de onde brados de infindos troam o ar

A Divina Comédia (Inferno,I e IV) Da nossa vida em meio da jornada Achei-me numa selva tenebrosa Tendo perdido a verdadeira estrada. ...................................................... A verdade então é que na borda estava Do vale desse abismo doloroso Donde brado de infindos ais troava

(Dante APUD Busatto,1978,p.25) Quando o narrador fala em Poema-Queda, ao mesmo tempo que nos remete à obra de

Milton, Paraíso Perdido, cujos fragmentos estão presentes em Invenção de Orfeu:

Invenção de Orfeu (Canto VI, poema VIII) Os pares infernais no teor dos numes em réprobos enxames atormentam as cidades abertas e os rebanhos.

Paraíso Perdido (Livro II) Os pares infernais, subidos tronos Em número de mil, no teor de numes, Conservando dos vultos a grandeza, Alí se assentam em cadeiras de ouro.

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também nos permite estabelecer uma ponte com a Bíblia e o Livro do Gênese, lembrando

não só do pecado original que teria ocasionado a queda do homem do Paraíso, temática explorada por Milton, mas também, como argumenta Ruth Villela Cavaliéri, fazendo uma alusão a um tempo mítico, arcaico, em uma busca da verdade do início, da unidade primeira, busca essa que "constitui o princípio universal dos mitos"(Cavaliéri IN Riedel,1977,p.43). Traz, assim, para o espaço temporal do poema o não tempo, a eternidade.

Além dos fragmentos literários já apontados como presentes na colagem limiana, é importante ainda ressaltar Mallarmé, a carta de Pero Vaz de Caminha e Casimiro de Abreu.

No Canto I, poema III o verso " Bastam velas e dados de jogar"nos nos remete ao poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, de Mallarmé: "duvidando/brilhando e meditando/antes de se deter/em qualquer ponto derradeiro que o sagra/Todo Pensamento produz um lance de Dados".

No Canto I, poema XXXI, há uma clara referência à poesia de Casimiro de Abreu, Meus oito anos: "Sim, guardamos memórias que se adensam/lhes damos importâncias afetadas/para que elas nos assombrem com fantasmas/com boiúnas tiradas dos oito anos/dos casimiros nossos traduzidos/em primaveras quentes e soluços"

Também no Canto I, poema XXVIII, percebe-se uma referência à Carta de Caminha: "E depois escrevemos uma carta/contando tuas graças, nessas praias/sobre os giolhos das moças, nas vergonhas"

O poeta parece querer reforçar esta ideia da escrita de palimpsesto, característica da composição poética de Invenção de Orfeu: "Se me vires inúmero, através/desse poema, entre as coisas e as criaturas,/como se eu próprio fosse o que outrem é,/dissipado nas páginas impuras" (Canto I, poema IV). "Por que somado? Por que sou tantos/rastos sem corpo? Todos de novo/curioseando" (Canto I, poema X). Como coloca Silvia Regina Pinto em seu ensaio "Invenção de Orfeu: o poema em um jogo teórico especulativo com suas palavras oráculos", ao longo do poema vai-se gerando "uma sucessão de imagens recatalogadas, projetadas, refletidas, repensadas, remontadas, metamorfoseadas, através do tempo e do espaço recriados, numa multiplicidade" que faz com que "Camões, Dante, Virgílio, etc.," deixem de sê-los "para ser Invenção de Orfeu" (Pinto IN Riedel,1975,p.36). Ruth Cavaliéri enfatiza que, a partir deste resgate da tradição através de imagens literárias que retornam se processa um dilaceramento do pensamento ocidental calcado no tempo linear da história, em que houve apenas uma única criação e haverá um único fim. "Agora é a circularidade, recuperando-se periodicamente o princípio" (Cavaliéri IN Riedel,1977,p.43).

Nas últimas décadas, quando a revisão historiográfica, operada por Aby Warburg, volta a circular entre filósofos e críticos de arte, é interessante pensar a poesia limiana da maturidade em paralelo com os conceitos desenvolvidos por esse estudioso das imagens visuais. Pode-se pensar, assim, uma aproximação da ideia de montagem do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg com Invenção de Orfeu, entendendo a obra de arte como o produto estilístico desse emaranhado de material histórico, todo ele pensado em conjunto, intrincado, com todas as suas relações possíveis, configurando essa simultaneidade de tempos heterogêneos, como diz Didi-Hubermann em sua obra A imagem sobrevivente (Hubermann,p.398-399).

Aby Warburg foi um historiador da arte alemão que, através de seu Atlas Mnemosyne apresentou uma nova forma de compreender a arte a partir de uma nova maneira de pensar o passado, entendendo o tempo "como uma montagem de elementos heterogêneos"(Didi-Huberman,2010,p.406). O Atlas é formado por fotografias de obras de arte reunidas por ele,

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presas por alfinetes em pranchas, grandes telas de tecido preto, o que permite que elas melhor relacionem-se entre si, livres para rearticularem-se e produzirem novas significações em novos contextos - no caso, em outras pranchas. A maneira de organizar este "material imagético extraordinariamente diversificado, tanto em seus temas quanto em sua cronologia"(Didi-Huberman, 2010,p.383) não leva em conta a linearidade, uma sequência ordenada de eventos da história da arte, mas sim a possibilidade combinatória e todas as intricações possíveis que podem se estabelecer entre elas, em uma circularidade que ignora anacronismos - tal como o fato de colocar um renascentista ao lado de um impressionista. O que importa é descobrir relações ainda não percebidas, através de uma viagem "pela diversidade mais desnorteadora, mais contrastante: passa de uma cultura a outra, do conhecido ao estranho, de um museu a outro, de uma igreja a uma biblioteca, de uma miniatura a um ciclo de afrescos ou de um rosário a uma catedral"(Didi-Huberman,2010,p.383). Didi-Huberman afirma que "[q]uanto mais olhamos, mais densas e intricadas se afiguram as relações. Ao mesmo tempo, as imagens parecem partir em vários sentidos, fundir-se em toda parte como fogos de artifício"(Didi-Huberman,2010,p.392).

O quebra-cabeças multitemporal que Warburg construiu com imagens, Jorge de Lima construiu com fragmentos verbais. Enquanto o Atlas Mnemosyne é uma multiplicidade de imagens, com todas as suas relações possíveis, Invenção de Orfeu é uma multiplicidade de fragmentos poéticos, dialogando com as ideias de recorrências, continuidades, sobrevivências que constituem esta simultaneidade dos tempos heterogêneos.

A técnica da colagem, na medida em que possibilita uma justaposição de elementos díspares e até mesmo anacrônicos, agregando assim em um mesmo espaço autônomo tempos e espaços os mais distantes e múltiplos, pode ser pensada como um instrumento teórico do qual Jorge de Lima lançou mão para a construção de Invenção de Orfeu.

A técnica da colagem é associada à vanguarda modernista, através da qual ela se tornou conhecida, com artistas como George Braque , Pablo Picasso e Max Ernst. Com os surrealistas ela foi largamente praticada, tendo como inspiração poética a frase de Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont,autor d'Os Cantos de Maldorór e reclamado por eles como seu antecessor intelectual: "Belo como um guarda-chuva e uma máquina de costura deitados lado a lado sobre uma mesa de dissecação"(Fer,1998,p.57).

Tal frase expressa a ideia de que a beleza nasce de uma aproximação de elementos díspares, deslocados de seu ambiente familiar para um espaço inusitado e novo, em um contexto em que suas identidades perdem o caráter de absoluto, permitindo, assim, uma releitura e reinterpretação dos mesmos a partir das nova relações estabelecidas entre eles. Segundo Max Ernst a colagem, além de possuir "um caráter disruptivo", por meio desse ato de deslocamento ela "possibilita transcender esse reino da convenção"(Fer,1998,p.58) e perceber relações até então não pensadas. Breton vê nas suas produções apresentadas na exposição de 1922 em Paris "a marca do maravilhoso", na medida em que "provocam uma faísca em virtude da aproximação de realidades distantes"(Fabris IN Guinsburg,2008,p.489).

A ênfase dada pela estética surrealista na importância dessas relações inesperadas está presente também em uma passagem de Pierre Reverdy:

"A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as re- lações das duas realidades aproximadas forem distantes e justas, tanto mais a ima- gem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá"

(apud BRETON,1985,p.52)

Max Enst iniciou suas colagens engajado ao dadaímo, enquanto morava na Alemanha. Após mudar-se para Paris em 1922, convidado por amigos dentre eles André Breton, juntou-se ao grupo Littérature, que constituiriam os futuros surrealistas.

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Departamento de Letras A obra de Max Ernst conhecida como Une Semaine de Bonté ilustra seu trabalho de

colagens e é conhecida como uma das mais enigmáticas produções surrealistas no campo da colagem. Consta de 365 colagens compondo um romance sem palavras. Constitui-se em uma alusão à criação do mundo, à gênese, revista pelo olhar de Max Ernst, com imagens que remetem a estados oníricos, à violência, a metamorfoses demoníacas, ao erotismo, retratando momentos em que as leis da lógica estão suspensas. Para a composição de seus trabalhos utiliza ilustrações já clássicas de romances do século XIX, muitas delas de Gustave Doré, misturando-as com imagens de catálogos ou retiradas de jornais contemporâneos. Assim como em seu outro romance-colagem, A Mulher de 100 Cabeças (1929), concebido também através de um diálogo de elementos iconográficos clássicos com ilustrações de catálogos e de obras de divulgação científica, Max Ernst constrói um contexto em que temporaneidades heterogêneas convivem simultaneamente e cria "um espaço psicologicamente fragmentado, rompendo com o primeiro reconhecimento que as imagens poderiam sugerir"(Fabris IN Guinsburg,2008,p.490).

Figura 1: Max Ernst, colagem para Une Semaine de Bonté, 1934.

Figura 2: Max Ernst, colagem para Une Semaine de Bonté,1934.

Como coloca Fernando Braune "[a] colagem/montagem surrealista iniciou-se,

efetivamente, com Max Ernst, que, ao beber nas fontes cubistas de Braque e Picasso, deu um novo rumo à técnica por eles utilizada"(BRAUNE,2000,p.39). O próprio Max Ernst narra o momento do nascimento da colagem, em 1920:

"Num dia chuvoso, em Colônia, o catálogo de uma casa que vende material escolar desperta-me a atenção. Vejo ali exemplares de todos os gêneros, manuais de matemática, geometria, antropologia, zoologia,botânica, anatomia, mineralogia, paleontologia,etc., elementos de naturezas tão diversas que a absurdidade do seu reagrupamento me perturba a vista e os sentidos, desencadeando em mim alucinações econferindo aos sujeitos representados uma sucessão de significadosnovos e mutantes. A minha

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atividade visual ficou de repente tão agudi zada que consegui ver os objetos que se formavam imediatamente sobre um fundo novo. Para o fixar bastava um pouco de tinta, algu-mas linhas, um horizonte, um deserto, um céu, uma divisória ou coisas idênticas. Assim se fixou a minha alucinação"

(Ernst APUD Bischoff,1986,p.18-19)

Max Ernst realizou pinturas à óleo mas que também exploravam o efeito visual fragmentário de colagens, fazendo parecer ter havido um recorte de elementos de seu contexto original para a inserção em outro inusitado, como é o caso de Celebes e O Vestir da Noiva:

Figura 3: Max Ernst, Celebe, 1921.

Figura 4: Max Ernst, O Vestir da Noiva,1939

Nas obras de De Chirico também se percebe a junção de elementos díspares, obtendo-se

um efeito de colagens, as quais, segundo Annateresa Fabris, realça a habilidade do pintor em "estabelecer conexões entre as várias dimensões temporais", causando um "estranhamento da realidade pois as cadeias lógicas habituais se rompem"(Fabris IN Guinsburg,2008,p.409).

Na pintura A Incerteza do Poeta, figura 5, há a combinação de dois elementos incongruentes: um cacho de bananas ao lado de um busto grego clássico, ambos situados em uma cena citadina, a qual parece suspensa no tempo. Em O Canto de Amor "o efeito de estranhamento é ainda maior, em virtude do acúmulo de objetos que não apresentam qualquer relação lógica entre si: um molde do Apolo de Belvedere, uma luva de borracha vermelha e uma bola verde"(Fabris IN Guinsburg,2008,p.505). Novamente um signo clássico é buscado, mas não para reconstruir o tempo do qual foi um fruto histórico, mas sim para contrastar com elementos contemporâneos, principalmente o trem que passa ao fundo. A heterogeneidade dos tempos retratados constrói um ambiente insólito, próprio da realidade dos sonhos, que se passa em um tempo psicológico, "evidenciando a possibilidade de um jogo temporal contínuo entre presente e passado, entre memórias e memórias profundas" (Fabris IN Guinsburg,2008,p.509).

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Figura 5: De Chirico, A Incerteza do Poeta,1913.

Figura 6: De Chirico, O Canto de Amor, 1914.

Nas bonecas desmembradas de Hans Bellmer, justapostas de uma maneira não familiar

(FER,1998,p.197), também se percebe a ideia de articulação e desarticulação de diferentes fragmentos- no caso o próprio corpo humano. Como coloca Elaine Moraes em seu livro O corpo impossível, "às imagens ideais do homem veio contrapor-se um imaginário do dilaceramento", o qual, ao negar o ideal antropomórfico gera uma perda de unidade (MORAES,2002,p.19-21).

Figura 7: Hans Bellmer, Poupée,1935.

Figura 8: Hans Bellmer, La Poupée.1936.

Jorge de Lima também aventurou-se no mundo das artes visuais, produzindo em 1943

seu livro A Pintura em Pânico, o qual reúne suas fotocolagens. Aí explorou a fragmentação, a possibilidade de desarticulação e rearticulação, em que os elementos são "capazes de se coordenar num todo fantástico e sugestivo"(Anrade APUD Paulino,1987,p.9) estabelecendo relações diferentes daquelas já tão familiares e corriqueiras, percebidas no dia a dia, jogando, assim, com a ideia de identidade absoluta e relativa. Ana Maria Paulino, comentando as fotomontagens de Jorge de Lima afirma que ele buscou nesta nova linguagem a "tentativa de

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expressar o indizível e realizar a fantasia, buscando todas as maneiras de expor o lado oculto das coisas que poucos têm o dom de conhecer"(PAULINO,1987,p.42).

Figura 9: Fotomontagem de Jorge de Lima: A Poesia abandona a ciência à sua própria arte, publicada em A Poesia em Pânico, 1943.

Tanto a fotomontagem acima quanto a seguinte parecem ter seguido o mote surrealista

inspirado pelo Conde de Lautréamont: "Belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação". Justapõem fragmentos de realidades distintas que, combinados produzem o insólito, o inesperado, criando um espaço fantástico e ilógico, marcado por relações discrepantes entre os objetos. Assemelha-se ao contexto do sonho, o qual, produzido pelo inconsciente é totalmente descomprometido com a ordem racional e cronológica do mundo exterior quando estamos em estado de vigília.

Figura 10: Fotomontagem de Jorge de Lima publicada em A Poesia em Pânico, 1943.

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Departamento de Letras Nas colagens de A Poesia em Pânico pode-se perceber "uma forma enlouquecida do

familiar" (FER,1998,p.176) ao construir paisagens fragmentadas, na medida em que elementos díspares e anacrônicos são justapostos. Esse desejo de "confundir as expectativas convencionais", de "desafiar a lógica da mente racional e expressar um tipo de lógica profunda, a do inconsciente"(FER,1998,p.174), faz com que possamos entender suas fotomontagens como um encaminhamento para o jogo de recorte e articulação muito mais complexo no poema Invenção de Orfeu, além de ter grande interesse como experimento nas artes plásticas, mostrando a dimensão marcadamente visual da imaginação do poeta. O que ele experimentou através desta nova linguagem pictórica, levou às últimas consequências em seu poema através da linguagem verbal com uma colagem de fragmentos poéticos de contextos os mais variados. E a estética surrealista, com sua preocupação em desorientar expectativas habituais, ressignificar o familiar revisitando o conceito de identidade, apresenta-se como uma forma de composição concernente com seu trabalho de criação poética. Em afinidade com o projeto do surrealismo, a composição poética, operada em Invenção de Orfeu, revela o inconsciente na e através da arte, para quebrar uma visão estritamente racional do mundo, fixando-se, por isso, no tempo psicológico e não no lógico-linear.

Como coloca Claudio Willer, a riqueza imagética do surrealismo e sua valorização da produção do inconsciente já vinham perpassando a obra de Jorge de Lima: "O onírico-surreal está em Anunciação e Encontro de Mira-Celi, série de poemas em prosa, como se fossem paisagens de sonho, onde os contornos se dissolvem e as coisas se metamorfoseiam". E segue, complementando que "[s]ão palavras que anunciam a poesia hermética e cósmica de Invenção de Orfeu, onde reitera a ideia do poeta sonâmbulo, em transe febril, ao descer a um mundo arquetípico, pré-verbal, pré-civilizado"(Willer IN Guinsburg,2008,p.321). Uma maior ligação de Jorge de Lima com a estética surrealista se deu através da amizade deste com Murilo Mendes, com quem conviveu de 1931 a 1951. E a ponte entre Murilo Mendes e o surrealismo se deu através de sua amizade com Ismael Nery, que trouxe para o Brasil influências desta estética após conviver em Paris com alguns de seus expoentes.

Apesar de o surrealismo ter sido lançado oficialmente em 1924 com o Manifesto escrito por Breton, suas ideias já vinham sendo gestadas desde muito antes. O livro escrito a quatro mãos pelo autor do manifesto e por seu amigo Soupauld, Os campos magnéticos, tido como a primeira experiência surrealista na literatura é de 1919 e as revistas Littérature e Littérature: nouvelle series também são anteriores ao Manifesto.

Fruto de um contexto extremamente marcado pela Primeira Guerra Mundial, no qual juntaram-se em um mesmo cadinho questões e questionamentos políticos, sociais, éticos e estéticos do pós-guerra às ideias de Freud acerca do inconsciente, o surrealismo nasceu como uma nova atitude frente a uma civilização que muitos entendiam como apodrecida e com a qual não queriam "ter mais nada em comum", visto que perdera "suas razões de ser"(NADEAU,p16.). Como coloca Maurice Nadeau em sua História do Surrealismo, este momento de pós-guerra conheceu a "[f]alência universal de uma civilização que se volta contra si mesma e se devora"(NADEAU,2008,p.13). O projeto iluminista de emancipação do homem através da razão conduzindo-o a um mundo melhor mostrava-se a muitos intelectuais como uma falácia, entendendo eles que a tão celebrada lógica científica cartesiana, ao invés de libertar, aprisionara o homem em uma jaula que tolhia a imaginação e transformara-o em um "monstro cerebral com hipertrofia das faculdades racionais"(Nadeau,p.17). Ressaltando o espírito crítico contra uma hipocrisia reinante em uma sociedade que "prazeirosamente os enviou à morte" e agora "os espera de volta, se dela escaparem, com suas leis, sua moral, suas religiões"(Nadeau,p.15), Maurice Nadeau ressalta a impossibilidade de a arte seguir seus mesmos cânones:

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Departamento de Letras "E ter-se-ia permitido que, neste cataclismo, a poesia continuasse no seu

ronron e que certos homens que vivenciaram o pesadelo viessem nos falar da beleza das rosas e do 'vaso onde morre esta verbena?' "

(Nadeau,p.15) A descoberta de Freud da existência do inconsciente abre espaço para uma nova

perspectiva a partir da qual pensar o homem. Já não mais apenas aquele raciocinador fundado somente na lógica cartesiana, no determinismo, na causalidade, mas um ser que carrega dentro de si a existência de um outro domínio, o do irracional, do desejo, do desvairio, do sonho. Domínio este que, apesar de ser totalmente desconhecido, de não estar à mercê de nossos comandos e sobre ele termos pouco controle é o verdadeiro motor de nossos atos conscientes, de nosso estado de vigília (NADEAU,2008,p.18).

Tal inversão de hierarquias, em que a lógica absoluta cede lugar para o onírico, o inconsciente, o irracional, vem ao encontro de uma geração de poetas e intelectuais que "abominavam as gavetas do pensamento organizado, o controle da razão, as classificações fechadas" e que davam por falida a cultura e a civilização de então, "hostil a todo vôo intelectual e moral" (Mota IN Guinsburg,2008,p.268). Como o próprio Breton afirma em seu Manifesto, "[a]gora talvez a imaginação esteja no ponto de exigir seus direitos. Se as profundezas de nossa mente abrigam forças estranhas capazes de ampliar as que estão na superfície, ou de travar uma batalha vitoriosa contra elas, há motivos suficientes para capturá-las" (BRETON,1985,p.41).

Maurice Nadeau assim descreve os surrealistas: " São revoltados que querem mudar não somente as condições tradicionais da poesia, mas também e principalmente as condições de vida. Não possuem doutrina, mas alguns valores que brandem como bandeiras: a onipotência do inconsciente e de suas manifestações, o sonho, a escrita automática e portanto a destruição da lógica e de tudo o que nela se apoiava". Pretendiam destruir tudo aquilo que impedisse o homem de viver segundo seus desejos, segundo a primazia do inconsciente. (NADEAU,2008,p.63).

Para tanto, entendiam ser necessário permitir que a matéria do inconsciente, não corrompida pelo espírito castrador da lógica racional, dos cânones de beleza e das regras de estética, fluísse em seu estado mais bruto, mais cru, trazendo assim à tona a criatividade soterrada, os desejos recalcados durante o estado de vigília, liberando o que havia de mais espontâneo no homem. Ao deixar-se abandonar ao ditado do inconsciente, deixaria que se exprimisse "o hóspede desconhecido em sua profundeza, em sua totalidade", tendo como única preocupação a não intervenção neste processo (NADEAU,2008,p.20), e permitindo, assim, trazer à tona o mecanismo de funcionamento do inconsciente, o qual não segue um encadeamento lógico de causa e efeito mas expressa-se através da livre associação de ideias, justapondo elementos díspares e sequências insólitas para os padrõs da realidade empírica. Breton confessa ter estado tão familiarizado com Freud e com seus métodos de investigação do inconsciente na época da guerra, quando serviu como médico e praticou-os em doentes nas trincheiras, que:"decidi obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado"(BRETON,1985,p.54).

É em torno deste "automatismo psíquico puro" a que Bretom se refere em seu Manifesto, o qual expressaria o "funcionamento real do pensamento", sendo o equivalente ao "[d]itado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão" (BRETON, 1985,p.58) que gira a atividade surrealista, como coloca Jaqueline Chénieux-Gendron (CHÉNIEUX-GENDRON,1992,p.55)

Daí o fascínio dos surrealistas pelo sonho e sua narração, pelos estados oníricos e alucinatórios, pelo transe e pela histeria, pois eram situações em que, não estando a mente sob o domínio da razão, o conteúdo irracional e inconsciente poderia jorrar em toda a sua

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espontaneidade através de um pleno automatismo psíquico. O mesmo tipo de simpatia era dedicado aos acasos, coincidências, encontros fortuitos, os quais são regidos não pela causalidade mas sim pela casualidade.

Foram desenvolvidas técnicas visando driblar ao máximo a intervenção do julgamento e da crítica da razão a fim de produzirem obras que revelassem o mecanismo de funcionamento automático do inconsciente em sua plenitude, tais como frottage e grattage por Max Ernst, o desenho automático praticado por André Masson e o jogo do Cadavre Exquis. Este, consistia em construir frases ou gravuras através da participação coletiva, mas sem que um soubesse o que o outro havia acrescentado anteriormente, de forma a tornar o resultado puro fruto do acaso e não consequência de escolhas conscientes.

Figura 11: Man Ray, Yves Tanguy, Joan Miró e Max Morise, Le Cadavre exquis, 1926-1927.

Figura 12: André Masson, A Batalha dos peixes,1926.

A presença deste automatismo, entendido pelos surrealistas como o pensamento falado,

o ditado do inconsciente, que, renunciando à ordem objetiva e à racionalidade absoluta desarticula a linguagem que procura imitar o real e traz à tona não um encadeamento lógico de causa e efeito mas um fluxo de livre associações de ideias, tais quais os dos sonhos, agenciando elementos díspares e desconexos onde as fronteiras se metamorfoseiam, se diluem, marcam a composição poética de Jorge de Lima. Pode-se perceber um exemplo no poema XXIV, Canto I:

"Quando tudo evadido alcançamos a graça: a ação era dormida e o banquete sem luz, esgarçava-se a cor nos estilos fugados solidão majestosa, antecipação do poema, desse deserto frio embora surpreendente. Nessa paz quantas mãos estão tocando sinos?"

O poema XXIII, também pertencente ao Canto I, oferece outro exemplo de como Jorge

de Lima trabalhou com a ideia da desarticulação verbal para uma representação não mimética do mundo:

" boca rasgada nos aços, trombeta de carne e sangue,

arco de cordas, arco-íris,

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respiração ventaniada, gongo dos braços em cruz, centopéia do Senhor, amora plura sangrada, cacho de faces nascendo"

Segundo Ana Maria Fernandes, no "imagismo feérico de Invenção de Orfeu está a

inesgotável riqueza do poema (...) Como rastrear imagens que explodem em diferentes direções semânticas e que reagenciam seus significados a cada momento da leitura?"(Frnandes IN Riedel,1975,p.26).

Invenção de Orfeu transborda em plasticidade e riqueza imagética, com o poeta "pintando" imagens que se fazem e se desfazem, compõem-se e se decompõem, fragmentando-se e recompondo-se em um novo ser, insólito e transfigurado; assim também o autor compoem suas fotomontagens, produzindo jogos combinatórios que suscitam possibilidades múltiplas de permutações e superposições.

A fotomontagem abaixo mostra o corpo humano metamorfoseado, seja através de um duplo incompleto e/ou de um duplo com seus membros multiplicados, haja vista que não há como poder saber exatamente qual seria a "cópia" e qual o "original". Enquanto um dos corpos femininos exibe uma cabeça substituída por um animal marinho que lembra uma medusa, ou uma "não-cabeça", o outro corpo é completamente privado da mesma, ao mesmo tempo em que mostra uma multiplicação dos membros inferiores. Uma dilaceração transgressora da forma humana, permitindo que dela emerja uma realidade inanimada: a sugestão de uma cadeira com suas quatro pernas, bem como a de uma mulher-lustre.

Figura 13: Fotomontagem de Jorge de Lima publicada em A Poesia em pânico,1943. Esta fotomontagem dialoga com o poema VII do Canto I, em que o autor afirma:

"Tudo é lícito aqui nessa Sumatra. Lícito desmontar-te, Lys, teus seios e neles pôr teus olhos renegados, desacertando a glória que Deus fez;

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e depois desconstruir-te, Lys inata, carne subterfugida e doces veias, restituindo-te à noite desgarrada nos baixios submersos do teu leito."

O processo de criação imagética na obra de Jorge de Lima, bebendo no cerne da estética

surrealista, caracterizada pela sua poética das correspondências, analogias, acasos objetivos, relação entre o simbólico e o real (Willer IN Guinsburg,2008,p.281), caracteriza-se pela quebra dos nexos lógicos não só da linguagem mas também daqueles que constituem a realidade empírica, o mundo fenomenológico tal como apreendido pela nossa capacidade racional.

As relações passam a ser estabelecidas não mais a partir da lógica cartesiana, encadeada por causa e efeito, mas sim a partir de analogias. Como coloca Claudio Willer, citando o verso de um poema de Breton: "Minha mulher com sexo de alga e de bombons antigos", a relação estabelecida não é a de comparações, mas de algo que já se transubstanciou em outro algo, mergulhando em um mundo de constantes fusões "do humano e do natural, bem como do sujeito e dos objetos"(Wille IN Guinsburg,2008,p.290). "Vemos ao longe sombras/e são flâmulas/lábios sedentos, lírios com ventosas/ódios gerando flores amorosas". São processos contínuos de mutações, os quais estabelecem um diálogo estreito com o mecanismo de funcionamento do sonho, onde as sequencias oníricas apresentam-se como uma associação livre de ideias, uma justaposição de elementos díspares que, se pensados em sequência parecem irracionais, insólitas, carentes de um fio condutor e ordenador, mas que aí estão para "expressar um tipo de lógica profunda, a do inconsciente"(FER,1998,p.176). Coloca-se, asim, a cronologia do poema no tempo onírico, psicológico, que nada tem de linear mas sim expressa uma sensação de "simultaneísmo, ao buscar o registro de níveis de realidade diferentes, suprimindo ou alternando coordenadas do tempo e espaço"(Willer IN Guinsburg,2008,p.297).

No Canto I, poema XXIV, podemos perceber este processo de metamorfose através de um rompimento das fronteiras daquilo que ontologicamente definiria um determindo ente, suas características intrínsecas que o fazem ser o que é e não um outro, relativizando assim sua identidade e colocando-o em um constante processo de "vir a ser", com borboletas transmutando-se em flores, flores em sexos, centauros em lírios: "Logo após borboletas vespertinas/gordas e veludosas como urtigas/Sugar vieram o esterco fumegante/se as vísseis, vós diríeis que o composto/das asas e dos restos eram flores/Porque parecem sexos; nesse instante/os mais belos centauros do alto empíreo/pelas pétalas desceram atraídos/e agora debruçados formam círculos/depois as beijam lírios". Somando-se a essa desconstrução/construção de novas formas, encontra-se o elemento da fantasia, ou do maravilhoso tão proclamado pelos surrealistas, quando une-se o mitológico com a natureza, em um beijo que parece emanar um conteúdo sensual, movido pela atração que essa figura mutável despertou nos centauros agora lírios.

Através desta colagem puramente verbal mas com uma dimensão marcadamente visual, Jorge de Lima constrói um mundo em que "nada é estável, nada é constante", como se tudo estivesse num mesmo plano de existência, existindo potencialmente no outro"(Zanetti IN Riedel,1975,p.67). A existência desta "possibilidade de poder ver tudo, conhecer tudo, ser tudo, renascer de novo em novas formas, num deslocamento onde os contrários se distanciam, se buscam, se tangenciam, se trocam, se unem sucessivamente, num movimento que o próprio poema teoriza como um sem fim"(Zanetti IN Riedel,1975,p.65) atualiza a ideia da simultaneidade dos tempos heterogêneos, configurando a ideia de multitemporalidade expressa através do poema.

A plasticidade presente em Invenção de Orfeu, bem como sua inserção em um tempo psicológico que não funciona tal qual o da realidade empírica, nos permite a sua aproximação

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com Salvador Dali, tanto no campo da pintura quanto no da linguagem cinematográfica, nas quais ele buscava retratar associações delirantes produzidas pelo inconsciente, procurando obter de sua arte o efeito de alucinações e de narrativas oníricas.

Figura 14: Salvador Dali, A Metamorfose de Narciso, 1937. A pintura acima A metamorfose de Narciso, de Salvador Dali, retrata a ambiguidade da

identidade: ao mesmo tempo em que há um ser feito de rochas sobrepostas, configurando o contorno de uma figura humana, ao lado há um outro que, embora pareça reproduzir as mesma formas retratadas pelo primeiro, está transfigurado. Seus membros se convertem em dedos, com o joelho revelando-se como um polegar, o qual segura uma cabeça agora metamorfoseada em um ovo rachado, do qual brota uma flor. Tanto na pintura daliniana quanto na obra de Jorge de Lima os seres são, na verdade, um estar sendo momentêneo, "cada ser de cada coisa é uma metáfora que espera sua transformação. Cada metáfora é, assim, um vir-a-ser que não pode ser interpretado no seu 'estar sendo', isolado e relativo", o que mutilaria a sintaxe da obra (Zanetti IN Riedel,1975,p.62).

A composição de Invenção de Orfeu, marcada por uma riqueza imagética e descolada de uma linearidade que amarra causa e efeito, construindo, assim, uma noção de tempo psicológico, pode ser lida através de uma aproximação com o filme surrealista "Um Cão Andaluz"(1929), realizado por Buñuel e Dali. A livre associação de ideias apresentada no filme permite que se mergulhe na realidade do inconsciente, do onírico, em uma forma de livre acesso ao irracional, apresentando sequências insólitas que são como cenas de sonho, não possuindo nenhuma explicação racional: Inicia-se com uma cena bizarra, em que um homem corta ao meio com uma navalha o olho de uma moça enquanto no céu a lua, branca tal como um globo ocular, é cortada por nuvens. Seguem-se sequências não lineares e ilogicamente intercaladas, onde Dali, com roupas semelhantes a uma freira, anda de bicicleta por uma cidade praticamente vazia. Cai da bicicleta e após reaparece em um apartamento, de pé, com formigas saindo de sua mão. Em uma sobreposição de imagens, a mão se metamorfoseia em uma axila com pelos e logo a seguir em um ouriço, para então transformar-se em uma mão decepada no meio da rua, sendo cutucada por uma moça com um bastão que, após recolhê-la em uma caixa morre atropelada. Segue-se ainda o filme, em um total de dezessete minutos de duração, mas tais cenas foram destacadas a fim de realçar o intercalamento ilógico, baseado no acaso, no aleatório, tais quais as metamorfoses apresentadas no poema de Jorge de Lima.

Outra passagem importante em Invenção de Orfeu que ilustra a presença de uma imagética que reinforça a ideia surrealista de os objetos não se constituírem como uma realidade fechada, determinada, mas sim em um constante processo de ressignificação, " de vir a ser, em que quando o estar sendo prepondera nada mais é do que a revelação de que se seguirá uma nova etapa para que venha a ser outro algo" (Zanetti IN Riedel,1975,p.59) está no Canto I, poema XXVII: "digo-me contemplando as rochas nuas/que parecem agora caminhantes/Elas

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param por vezes e me escutam/eu as alcanço; chamam-me de filho" (...) "Quero as Índias! Ó mães onde os caminhos?/Elas se deixam confundir com a noite/Pergunto-lhes de novo, elas se entreolham/censuram-me a ambição, ficam perplexas/esgueiram-se na noite recriada/Finjo-me triste, busco direções/Elas estacam; ponho-me a chorar"

Como em uma narrativa de sonho, um elemento do reino mineral - a rocha - passa a se comportar como um se humano,"vossos gestos/rochas pelejadoras, rochas vivas", com capacidade não apenas de realizar atividades que envolvam o aparato sensório-motor, como caminhar, escutar e olhar, mas também de julgamento e de sentimento. Como obseva Zanetti, os elementos dos reinos "trocam de posição e se convertem em novos signos, em novas imagens que não podem ser explicadas a não ser no interior deste processar da linguagem poética" (Zanetti IN Riedel,1975,p.60). O narrador não é um desconhecido para essas rochas-mulheres que por ele são contempladas em toda a sua nudez e metamorfoseiam-se com a própria noite: elas o chamam de filho e ele as reconhece como mães: "Chamam-me as rochas. Mães, vós me chamastes?" Tanto mães quanto filho emudecem, elas voltam a ser "esfinges', "deusas mudas", não há como ele saber delas o que deseja, o caminho para as Índias. E como o barão/varão que não é nem o camoniano nem o virgiliano, ele não pode realizar façanhas heróicas pois sequer sabe qual caminho tomar; ele é aquele que "fala sem ser escutado"(...)"sem chaves na mão" e navega em seu barco ébrio (Canto I, I). No entanto, comete um ato que o iguala a tantos deuses gregos do Olimpo: "E as rochas se semi-abrem/e as incestuo de amores e de pazes/essas castas madonas não culpadas". A troca de lugares não se dá apenas dentro dos elementos minerais e animais, entre humanos e não humanos, mas também "entre os heróis humanos, entre os mitos literários, entre as musas, entre o abstrato e o concreto"(Zanetti IN Riedel,1975,p.62). Haveria o incesto lhe possibilitado metamorfosear-se em herói e penetrar até às Índias? "Contemplo as rochas puras que assistiram/passar por essas tardes caravelas"(...) descobrimos nas ondas essas algas/essas Índias tão nuas, esses ventos".

A partir dessa passagem das rochas mães pode-se estabelecer um diálogo com o Canto V de Os Lusíadas, em relação ao personagem do gigante Adamastor, ele também um imenso rochedo. Citado inúmeras vezes em Invenção de Orfeu, seja através de palavras sinônimas, como penedo: "encantados penedos" (Canto I, VIII), rochedo: "ó sombra tão compacta e tão rochedo" (Canto I, XVII), promontório: "minhas proas cortando os tenebrosos/mares de duendes lusos e outras nuvens/promontórios, gigantes e grandezas" (Canto I,XXXI), seja através do próprio nome, Adamastor (Canto I, poemas XXIII,XXIV, XXXI, aparecendo mais de uma vez nos poemas indicados) o personagem parece ocupar um papel importante no imaginário do poeta.

Adamastor fora um titã que se apaixonara por Tétis, deusa das águas e esposa de Peleu. Assim ele narra a Vasco da Gama, na obra Os Lusíadas, o momento em que por ela se apaixonou: "Um dia a vi, com as filhas de Nereu/Sair nua da praia: e logo presa/A vontade senti de tal maneira/Que ainda não sinto cousa que mais queira"(CAMÕES, V,52). Não amado por Tétis e enganado pela mãe da amada, que lhe prometera unir os dois, vê-se em uma cilada, na qual é punido por seu amor impossível, sendo transformado em um rochedo gigante, condenado a guardar o limite dos mares garantindo que ninguém o ultrapassaria: "Oh! Que não sei de nojo como o conte!/Que, crendo ter nos braços quem amava/abraçando me achei cum duro monte/De áspero mato e de espessura brava/estando cum penedo fronte a fronte/Que eu pelo rosto angélico apertava/não fiquei homem, não, mas mudo e quedo/E, junto dum penedo, outro penedo!"(CAMÕES,V,56). E na estrofe 59 Adamastor segue, narrando sua transformação de homem em pedra: "Converte-se-me a carne em terra dura/em penedos os ossos se fizeram/Estes membros, que vês, e esta figura/Por estas longas águas se estenderam/Enfim,minha grandíssima estatura/neste remoto Cabo converteram"

Estaria o interesse do narrador pelo gigante Adamastor, conscientemente ou inconscientemente, relacionado à origem do mesmo, fruto de uma metamorfose? Ele é

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homem/penedo/monstro/amante, assim como o poema limiano que se faz desencadeador de novas realidades, reinventando "o mar com seus colombos, (...) o mar para essa ilha"(Canto I, III), mostrando que há "climas por dentro de outros climas"(Canto I, VII), ressignificando e tensionando sentidos familiares, transmutando seres, construindo analogias insólitas, mostrando que "navegar sobre o mar de signos é, a cada instante, intuir que, sob a ondulação das frases feitas, vagueiam, em correntezas mais fundas, cardumes de outras palavras cuja irradiação poderá, às vezes, enturvar a enganosa transparência das superfícies" (CAÑIZAL,1986,p.3).

É justamente esta busca constante de novos nexos e significados que não apenas aqueles amarrados ao prosaico e à razão lógica de causa e efeito que fazem de Invenção de Orfeu um poema tão estimulante quanto hermético e desafiador, gerando no leitor um estranhamento e uma sensação de deparar-se com uma obra "fechad[a] em si mesm[a], como uma ilha" (Teles apud BUSATTO,1978,p.XXVI). Nas palavras de Gilberto Mendonça Teles este é o mais surpreendente e o mais difícil poema da literatura brasileira. No entanto, é também o mais belo e aquele que "atualiza a nossa lírica no plano universal das grandes obras do Ocidente" (Teles APUD Busatto,1977,p.XXVI). Talvez a melhor descrição acerca de um primeiro olhar para este poema seja a de Raduan Nassar: "Lia sem entender, porque ninguém, penso, pode entender aquele poemão no nível lógico; não entendia, mas ao mesmo tempo entendia demais aquele texto" (Nassar APUD Lima,2008,p.501).

Ao longo do poema Jorge de Lima cria, através da palavra poética, um mundo que vai ludicamente envolvendo nossa capacidade de percepção, desafiando conceitos cartesianos impregnados na nossa maneira de ler o mundo, propondo-nos que compactuemos com uma "linguagem dos livros ignorada" e, para isto, baixemos nossa guarda, abramos mão de uma decodificação pela via apenas da lógica racional, e permitamos que nosso aparato sensível entre em ação, talvez em um convite a uma reaprendizagem da fruição de um poema: "Vós sabeis onde estão as latitudes/longitudes, limites, tordesilhas/e as fronteiras fechadas para as ilhas/Mas além dessas firmes certitudes/há o túnel que Virgílio descobriu" (Canto I,poema XXII ).

Invenção de Orfeu oferece, assim, um forte apelo ao plano sensorial, dialogando com os cinco sentidos em conjunto, através de superposições que integram os planos da nossa percepção sensível: "os opacos sons de cor", os "retinidos ecos/temperados de cor", "O prazer desses bosques é escutado/ou bebido com os olhos ansiosos". Em um mesmo poema, XX do Canto I, o poeta reúne elementos que são como variações de tons de uma paleta de tintas de cores quentes: leão (marrom), sol (amarelo), coroa (ouro), fogo, girassóis, lavas, ruiva, o sol acre. Através da apresentação de associações paradoxais, como: "agarradas a si, de si expulsas", "ventanias/tão tristes, tão alegrias", "Esse canto sem lábios proferido/e escutado por outros sem ouvidos", "tumultuária placidez" o autor causa um estranhamento no leitor ao deformar a realidade empírica, apresentando um mundo que segue a lógica dos sonhos. Constrói, assim, no dizer de Ana Maria Sampaio Fernandes, um " poema-catavento maluco- que aponta em todas as direções" (Fernandes IN Riedel,1975,p.27), tirando o leitor de sua zona de conforto e levando-o para uma área movediça onde as significações estão em um constante construção e desconstrução de si próprias.

É com Orfeu, o primeiro poeta e símbolo da tradição, que Jorge de Lima se propõe a reinventar a poesia, redescobri-la, mergulhando na teoria e na história literarária não através de um arcabouço conceitual-teórico, mas a partir da própria linguagem poética. Invenção de Orfeu é "a poesia sobre a poesia, a linguagem sobre a linguagem: a metalinguagem" (Teles APUD Busatto,1978,p.XXVI). Orfeu já não é mais apenas um personagem mítico engessado no tempo, assim como a tradição literária não é apenas uma barreira a ser ultrapassada para que se construa a poesia moderna. Pelo contrário, o poeta moderno é exatamente aquele que, dispondo de todo um arquivo de séculos a sua disposição é capaz de levar a tradição até as últimas consequências,

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ressignificando-a, tensionando-a através de seu deslocamento o que faz com que ela estabeleça novos diálogos, tornando-a multitemporal. O próprio Orfeu passa por um processo de dépaysement ao longo do poema, pois ele, enquanto representante da tradição, foi o condutor de toda uma releitura do que seja o fazer poético, tornando-se ele próprio multitemporal, representando o passado, a tradição, o presente, o tempo mítico, o "não-tempo", a eternidade, liberto de um tempo cronológico específico. Como diz Murilo Mendes, o poeta estava armado de uma "tesoura de condão", através da qual, "fazendo cortes implacáveis no tempo, obtém uma dimensão nova"(Mendes APUD Lima,2013,p.516): "o tempo se faz reconstruído"(Mendes APUD Lima,2013,p.517).

Daí entende-se a busca de Jorge de Lima em ressignificar a epopéia, querer fazer de seu poema um instrumento através do qual o fazer poético fosse repensado, promovendo um tensionamento entre a tradição e sua ressignificação, assim como os surrealistas, dispostos a redescobrirem o mundo a partir de um novo olhar para as mesmas coisas, a partir de associações que exploravam sentidos latentes e ampliavam o mundo real.

Em Invenção de Orfeu a epopéia não está relacionada a uma missão heróica nem a uma viagem física, muito menos à descrição de façanhas. São "partidas, porém nunca acontecidas" (canto I, poema III), que se dão em um barco ébrio, ao sabor do acaso: "Filiei-me à eternidade sem querer/e agora vago como se vaga a esmo" (Canto I, XVII). E ainda na poema II, Canto I: "Empreendemos com a ajuda dos acasos/as travessias nunca projetadas/sem roteiros, sem mapas e astrolábios/e sem carta a El-Rei contando a viagem".

É uma viagem que se dá como processo de deslocamento através de referências literárias e fragmentos verbais, abarcando uma simultaneidade de tempos heterogêneos e estabelecendo uma circularidade que nega a existência de um centro ordenador e e de um fio linear condutor, navegando através de um emaranhado histórico que leva em conta todas as intricações possíveis, todas combinações/recombinações que possam estabelecer novos diálogos e construir novas relações: "Invenção de Orfeu se estabelece, portanto, como uma epopéia moderna - sem centro. A navegação - tema característico da epopéia clássica, desde a Odisséia - se estabelece agora como sem fim, na medida em que se trata de uma viagem para a transcendência (...), portanto de uma viagem para o imaginário e no imaginário" (Pereira APUD Riedel, 1975,p.80). Gilberto Mendonça Teles também realça a importância de Invenção de Orfeu no seu papel para a ressignificação da epopéia: "Todos os planos da nossa realidade cultural - européia e sul-americana - aparecem em Invenção de Orfeu numa simbiose altamente criadora, em que os mitos se entrelaçam com as impressões de leitura, com os traços da cultura luso brasileira, com a metafísica, com a Poética, enfim, um texto em que signos, símbolos e mitos, num jogo entre o real e o irreal, remetem para uma realidade maior, que é a do próprio texto" (Teles APUD Busatto, 1978,p.XXVI).

Orfeu mereceu de Jorge de Lima também uma fotomontagem, na qual ele é retratado exatamente neste diálogo entre tradição e modernidade. Representado como uma estátua grega clássica, tem atrás de si prédios altos, que indicam um tempo muito mais próximo da contemporaneidade. Deitado, ele segura sua lira, símbolo do fazer poétco.

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Departamento de Letras

Figura 15: Fotomontagem de Jorge de Lima, O Poeta trabalha, em A Poesia em Pânico,

1943. Assim como Orfeu encantava com sua lira, também o poeta moderno deve re-ensinar o

prazer da fruição de um poema, a importância do apelo aos sentidos, ideais estes já buscados pelos surrealistas no sentido de libertar a criatividade, trabalhando do ponto de vista do inconsciente, valorizando o automatismo e o acaso no processo de criação, libertando um mundo soterrado de pulsões e desejos, sondando "as profundezas do que é escondido e secreto" (FER,p.200). A palavra tem este poder de libertar desejos, de encantar, de criar, de dialogar diretamente com nossos sentidos, de instaurar realidades. Dentro deste contexto talvez possa ser entendido este verso de Invenção de Orfeu: "penetro-me do Verbo em seus silêncios claros, invisto-me de Vós" (Canto I, poema ). O poeta é fertilizado pela própria palavra, que ao mesmo tempo o diviniza. E, ainda que divinizado por um Deus católico, esta sacralidade pode fazer dele um deus pagão, Orfeu, afinal na colagem limiana multitemporal o domínio é o do onírico e o do desejo.

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