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RELATÓRIO FINAL DE IC MEMÓRIA DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS NO BRASIL Professor: Roberto Elísio dos Santos Aluno: Lucas Hernandez

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RELATÓRIO FINAL DE IC

MEMÓRIA DA HISTÓRIA EM QUADRINHOS NO BRASIL

Professor: Roberto Elísio dos Santos Aluno: Lucas Hernandez

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INTRODUÇÃO

As narrativas gráficas seqüenciais, conhecidas no Brasil como histórias em quadrinhos, debutaram nos jornais impressos a partir do século XVIII, incorporando elementos do humor gráfico (caricaturas e charges). As tiras de quadrinhos, por sua vez, consolidaram-se na virada do século XIX para o XX, impulsionando a venda de jornais, especialmente nos centros urbanos dos Estados Unidos.

Embora as histórias em quadrinhos sejam criadas no Brasil desde a segunda metade do século XIX, essa área ainda carece de análises científicas e de trabalhos acadêmicos que abordem o desenvolvimento desse produto cultural no país. Para preencher esta lacuna, esta pesquisa, de caráter exploratório, tem por objetivo reunir depoimentos de profissionais da área de Histórias em Quadrinhos (roteiristas, desenhistas e editores) que atuam no Brasil, com o intuito de compor um dossiê sobre a produção editorial de histórias em quadrinhos no país e possibilitar o avanço da pesquisa nesta área.

Nesse sentido, a problematização desta pesquisa diz respeito à maneira como a produção editorial de histórias em quadrinhos no Brasil tem sido feita e procura compreender essa trajetória a partir de aspectos estéticos, temáticos e editoriais. Para tanto, foram realizadas entrevistas com artistas e pesquisadores e realizadas análises de diversas narrativas sequenciais impressas realizadas no Brasil. Esse trabalho se justifica porque a pesquisa sobre histórias em quadrinhos no âmbito acadêmico brasileiro é realizada há menos de 40 anos e ainda carece de sistematização no que se refere ao seu corpus.

Por este motivo, os resultados desta pesquisa, assim como a transcrição das entrevistas, foram encaminhados ao Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde podem ser consultados por pesquisadores de histórias em quadrinhos. Os depoimentos gravados em vídeo foram editados e, a partir deles, foram produzidos programas intitulados Sequência HQ, que serão veiculados no espaço televisivo Tela Universitária, da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e ficarão disponíveis on-line.

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REFERENCIAL TEÓRICO

Diversos autores evidenciam as características específicas dos quadrinhos. Para

Eisner (1989. p. 5) trata-se de um veículo de expressão criativa, o qual denomina de arte sequencial. Ramos (2009, p. 17) evidencia sua linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. Já McCloud (1995, p. 9) define a história em quadrinhos como imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador.

As histórias em quadrinhos, como produto cultural massivo, surgiram com o desenvolvimento das técnicas de impressão e da consolidação do jornal impresso, a partir do século XVIII (SANTOS, 2002, p. 20). Na Inglaterra, o artista William Hogarth começou a publicar “histórias ilustradas” (sequência de vinhetas com o texto disposto na sua parte inferior) a partir de 1730 em periódicos britânicos, conforme Alan e Laurel Clark (1991, p. 16). Durante muito tempo, a trajetória das narrativas gráficas sequenciais se relacionou ao jornal e outras mídias impressas.

Ilustração 1 – Vinheta de “história ilustrada” desenhada por William Hogarth Uma das primeiras formas de publicações de quadrinhos foi a revista ilustrada –

resultado do aperfeiçoamento das técnicas de impressão –, surgida na Europa, na segunda metade do século XIX, sendo exemplos os periódicos britânicos Comic Cuts e The Illustrated Chips. Logo, publicações impressas de quadrinhos começaram a ser lançadas em outros países: na França (La Semaine de Suzette, de 1905, L´Epatant, de 1908), na Espanha (TBO, de 1917), na Itália (Corrieri dei Piccoli, de 1908) e no Brasil (O Tico-Tico, criada em 1905).

Nos Estados Unidos, os suplementos encartados nas edições dominicais de jornais foram os principais veículos de difusão dos quadrinhos (comics) nas três primeiras décadas do século XX. Para comercializar as tiras de quadrinhos (comic-strips) foram criados os Syndicates, empresas que vendem os direitos de publicação dentro e fora do território estadunidense. O sucesso de determinados personagens gerou

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merchandising de produtos e a adaptação das histórias para o cinema e para o rádio (mais tarde, também para a TV). Inicialmente cômicas, as tiras de quadrinhos também passaram a contar aventuras serializadas (cada tira corresponde a uma parte de uma narrativa maior). As adventure-strips surgiram no final da década de 1920 com as histórias de Tarzan e de Buck Rogers no século XXV. Os principais personagens da Era de Ouro dos quadrinhos norte-americanos (Flash Gordon, Mandrake, Fantasma, Príncipe Valente, entre outros) seguiram esse formato.

Ilustração 2 – Tira de aventura do personagem Fantasma, criado em 1936 por Lee Falk e Ray Moore

O formato comic-book (revista de histórias em quadrinhos) popularizou-se nos Estados Unidos em 1933, com a revista Funnies on Parade, idealizada por Max Gaines. Inicialmente, essas revistas publicavam coletâneas de tiras de quadrinhos já editadas em jornais. Em 1935, a New Comics passou a oferecer aos leitores histórias inéditas. Com o título Action Comics, de 1938, teve início um novo gênero dos quadrinhos, o de super-heróis, no qual se inserem personagens como Batman, Mulher Maravilha, Flash, Namor, Tocha Humana, Capitão América, Lanterna Verde, Capitão Marvel etc.

Ilustração 3 – Capa do comic-book Action Comics, lançado em 1938, com

histórias do Super-Homem

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Durante a década de 1960, na Europa (especialmente na França) chegaram às livrarias os álbuns de quadrinhos – edições com capa dura e lombada. Impressas com qualidade superior às revistas de quadrinhos, essas publicações normalmente tinham periodicidade anual e traziam uma história completa de personagens como Asterix, Lucky Luke e Tintin.

Ilustração 4 – Álbum de Asterix, de Goscinny e Uderzo, vendido em livrarias

No bojo da Contracultura1, movimento artístico e político verificado nos anos

1960 no âmbito da música e do cinema, foram criados os comix underground. No contexto dos protestos contra a Guerra do Vietnã e a sociedade de consumo, esse tipo de quadrinho diferenciava-se do quadrinho mainstream (comercial), tanto pela estética adotada (desenhos hachurados e muitas vezes grotescos) e pela temática (abordam política, sexo, drogas etc.).

Os principais artistas foram Robert Crumb (criador dos personagens Fritz The Cat e Mister Natural) e Gilbert Shelton (autor das histórias protagonizadas pelos Freak Brothers). Produzida de forma artesanal e distribuída para lojas especializadas, a revista Zap Comix foi um dos principais títulos e reuniu em suas páginas os principais integrantes da cena underground.

1 Sobre a Contracultura, ver Pereira (2003) e a respeito do quadrinho underground, ver Rosenkranz (2002).

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Ilustração 5 – Edição brasileira da revista Zap Comix (com arte de Robert Crumb)

Já as graphic novels foram responsáveis pela venda de quadrinhos em livrarias a partir do final dos anos 1970. Essas publicações resgataram o público adulto para os quadrinhos, apresentando histórias que tratavam de temas relevantes para a época (guerra nuclear, violência urbana, crítica ao conservadorismo político) e ousadias artísticas (mistura de estilos) e narrativas (multiplicação dos focos narrativos). Tratam-se do que Douglas Wolk (2007, p. 30) chama de art comics, ou seja, de histórias em quadrinhos autorais e de cunho artístico.

Ilustração 6 – Página da graphic novel Um contrato com Deus, de Will Eisner, veterano dos quadrinhos e pioneiro neste novo formato

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A década de 1980 constituiu um período de amplas mudanças estéticas, narrativas e temáticas, observáveis principalmente em publicações “alternativas” (revistas produzidas por pequenas editoras). De acordo com Mostaço (1984, p. 4), as ideias de independente e alternativo recortam-se como conceitos que oferecem uma dada relação com o poder. É-se independente: dado o domínio de certo poder instituído, que impera sob a ação de hegemonia, postar-se como uma oposição a ele, como uma soberania própria e isenta de seu controle.

As histórias em quadrinhos elaboradas no Brasil sofreram influência de todos esses elementos, tendo momentos de grande produção e outros de crise, ora adaptando-se aos modelos e formatos estrangeiros, ora mostrando originalidade e relacionando-se com a cultura nacional. Sobre essa questão, Guimarães (2005, p. 66) reflete sobre o que é uma História em Quadrinhos Brasileira e propõe que seu autor, na sua elaboração use como base seus conhecimentos mais profundos, aqueles que foram construídos durante sua vida através da interação com todo tipo de ambiente a que esteve exposto. E conclui: Como a construção da mente e da personalidade de um brasileiro no Brasil é feita predominantemente através da interação com a Cultura Brasileira, quando esta pessoa faz uso desta base cultural para produzir uma obra, esta obra expressará a Cultura Brasileira. É dessa forma que se pode pensar a HQ nacional.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A pesquisa realizada foi de nível exploratório, qualitativa, e empregou os

seguintes procedimentos metodológicos: 1) Entrevistas em profundidade não estruturadas; 2) Técnicas de coleta de dados (levantamento documental) 3) Análise de conteúdo das histórias (a partir da semiologia francesa)

ANÁLISE DOS RESULTADOS PARCIAIS OBTIDOS

A partir dos depoimentos colhidos, do levantamento documental realizado e da

análise das publicações brasileiras e das histórias em quadrinhos nelas editadas, pode-se dividir o percurso da Nona Arte brasileira em cinco momentos:

1. A fase dos pioneiros 2. A era dos suplementos 3. A consolidação do formato revista 4. As publicações alternativas 5. Álbuns e mídia digital

A partir dessa divisão – como será apresentado a seguir –, é possível entender de

que forma a produção editorial de histórias em quadrinhos no Brasil tem se caracterizado e em que estágio se encontra. Tal categorização tem como finalidade facilitar os estudos sobre a criação e a difusão deste produto cultural midiático no país.

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1. A fase dos pioneiros No período colonial, o governo português impediu a implantação da imprensa no

Brasil. Somente com a transferência da corte de Portugal para o Rio de Janeiro, em 1808, jornais e outros veículos impressos começaram a ser produzidos. Segundo Sodré (1983, p. 19), “a imprensa surgiria, finalmente, no Brasil – e ainda desta vez, a definitiva, sob proteção oficial, mais do que isso: por iniciativa oficial –, com o advento da Corte de D. João”.

Contudo, o alto índice de analfabetismo da população e a predominância de áreas rurais limitaram os efeitos dos meios impressos em um país de dimensões continentais. De acordo com Melo (1985, p. 117-118), “o retardamento na implantação da imprensa [no Brasil] deveu-se menos aos fatores políticos conjunturais apontados pela História oficial do que à conjugação de uma série de fatores sócio-culturais que refletiriam a estrutura econômica do projeto colonial luso que aqui prosperou”.

Ao longo do século 19, o desenvolvimento do Rio de Janeiro facultou a disseminação de publicações impressas. As divergências políticas entre liberais, conservadores, republicanos, monarquistas, abolicionistas e latifundiários escravistas iam para os jornais como editoriais ou crônicas satíricas. Com o aprimoramento das técnicas de impressão, tornou-se possível a edição de ilustrações, caricaturas, charges e narrativas ilustradas, o embrião da nossa história em quadrinhos.

As histórias em quadrinhos tiveram seu início no Brasil com o trabalho desenvolvido pelo artista e jornalista ítalo-brasileiro Angelo Agostini2, a partir de 1867. Autor de ilustrações, charges políticas e caricaturas, ele também produziu as histórias serializadas com os personagens Nhô Quim (1869) e Zé Caipora (1883), além de ter criado o primeiro logotipo para a revista O Tico-Tico, lançada em 1905. Editor, jornalista e ilustrador de títulos como Diabo Coxo, Vida Fluminense, Revista Ilustrada e Dom Quixote, era crítico ferrenho da monarquia e defensor da abolição da escravatura, Agostini satirizava a situação política brasileira em suas charges publicadas em diversos órgãos de imprensa. Com a proclamação da República, esse artista continuou a criticar os desmandos do governo em textos e desenhos humorísticos. Nos quadrinhos, ele utilizava o formato consagrado na Europa, com o texto colocado abaixo das vinhetas.

Ilustração 7 - O início das peripécias de Nhô Quim, de Ângelo Agostini

2 Ver Maringoni (2011).

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Idealizado como um periódico voltado para a educação e o entretenimento de

leitores infantis, O Tico-Tico foi publicado até o início da década de 1960. Em suas páginas, artistas como J. Carlos, Luiz Gomes Loureiro, Augusto Rocha, Paulo Affonso, Max Yantok, Alfredo e Oswaldo Storni, Miguel Hochman, Luiz Sá, entre outros, apresentaram histórias protagonizadas pelos personagens Juquinha, Lamparina, Chiquinho, Kaximbown e Pipoca, Barão de Rapapé, Zé Macaco e Faustina, Réco-Réco, Bolão e Azeitona, que divertiram o público durante várias gerações. A partir de 1906 e até a década de 1950, o Almanaque de O Tico-Tico, publicação anual com capa dura e mais páginas, foi o presente de Natal dado às crianças.

Ilustração 8 – Capa da primeira edição da revista O Tico-Tico, lançada em

outubro de 1905 Segundo Vergueiro e Santos (2005), a revista O Tico-Tico foi um marco na

indústria editorial brasileira, a mais longeva publicação periódica dirigida à infância no país, editada por 56 anos. Ela foi também a primeira revista a trazer regularmente histórias em quadrinhos, em uma época em que a linguagem gráfica seqüencial começava a dar seus primeiros passos, enfrentando pressões de todos os tipos, principalmente quanto a seus méritos educacionais.

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A tudo a revista brasileira respondeu com uma postura firme em relação a seus objetivos didático-pedagógicos, mantendo-se arraigada à missão de entreter, informar e formar de maneira sadia a criança brasileira. Este artigo, realizando uma homenagem a tão importante publicação, busca também avaliar sua contribuição para o desenvolvimento da indústria quadrinhística brasileira. Mas, por não se adaptar às mudanças introduzidas pela concorrência, O Tico-Tico foi aos poucos perdendo leitores e deixou de ser editado no início da década de 1960.

2. A era dos suplementos

Pode-se considerar a Gazeta Infantil, do jornal paulista A Gazeta, como o ponto inicial deste tipo de publicação no Brasil. Inicialmente uma seção do periódico criado em 1928, tornou-se um suplemento semanal a partir de 12 de setembro do ano seguinte, com o título A Gazeta Edição Infantil, tendo passado, até 1950, por três fases. Na primeira, que durou até outubro de 1930 (a segunda foi de 1933 a 1940 e a terceira, de 1948 a 1950), além de quadrinhos norte-americanos – a exemplo de Gato Félix (chamado inicialmente de Gato Estopim), Little Nemo (cujas histórias eram intituladas O sonho de Carlinhos), Little Jimmy, Thimble Theater, Polly, entre outros –, este suplemento também publicou material elaborado por artistas brasileiros: a partir da quinta edição, de 3 de outubro de 1929, aparecia Piolim, personagem baseado no famoso palhaço brasileiro, desenhado por Gomez Dias e Nino Borges. Este último também foi autor de Bolinha e Bolonha, personagens surgidos em março de 1930 e depois publicados nas páginas de O Tico-Tico, a partir de 1938. Nesse período pode ser percebida a influência dos comics norte-americanos nos quadrinhos brasileiros, sendo um exemplo disso a substituição das legendas colocadas abaixo das vinhetas pelos balões da fala.

Também merecem destaque os trabalhos realizados por Belmonte (pseudônimo de Benedito Bastos Barreto) e Messias de Mello. O primeiro, criador do personagem Juca Pato publicado no jornal Folha da Manhã, fez para a Gazetinha as histórias protagonizadas por Paulino e Aubina e por Tutu, Titi e Totó, além de assumir a Carta Enigmática por um longo período. Já Messias de Mello criou o Pão-duro, um malandro que quase sempre se dava mal. Ao lado do escritor Armando Brussolo, realizou, de 1936 a 1939, diversas histórias em quadrinhos serializadas, como Capitão Blood, Sherlock Holmes, o Homem Elétrico, O Conde de Monte Cristo, Os Três Mosqueteiros e A conquista das esmeraldas, na qual narrou a saga do bandeirante Fernão Dias. Também ilustrou O Raio da Morte, Bascomb – o Terror de Ferney, À Roda da Lua (baseado no livro de Júlio Verne), O enigma do espectro de James Hull e Audaz, o Demolidor, entre outros trabalhos feitos para esse suplemento. Como ilustrador, criou para o jornal A Gazeta Esportiva diversos personagens-símbolo dos times de futebol, como o Santo do São Paulo F.C., o Periquito do Palmeiras, a Macaca (Ponte Preta), o Menino Travesso (Juventus), o Mosqueteiro (Corinthians) etc.

Em abril de 1939 foi lançada a Edição Majestosa da Gazetinha, que dava destaque para esses dois personagens, além de As aventuras de Marco Polo. Superman foi o astro da história completa Herói do Circo, editada no quinto número da Edição Majestosa. O cinema de Hollywood também se fazia presente na seção A Gazetinha em Hollywood, que trazia notícias sobre as estrelas e as produções cinematográficas, e nos quadrinhos de Rin-Tin-Tin e com a atriz infantil Shirley Temple. Outros atores de filmes americanos, como Harold Lloyd (o Caixa d’Óculos) e o Gordo e o Magro, apareciam em narrativas gráficas realizadas na Inglaterra.

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Ilustração 9 – Edição da Gazetinha com história desenhada por Messias de Mello

Outra narrativa gráfica seqüencial de grande relevância na história dos quadrinhos brasileiros foi A Garra Cinzenta, elaborada por Francisco Armond (roteiro) e Renato de Azevedo Silva (arte), lançada pela Gazetinha em julho de 1937. Uma mistura de policial, terror e ficção científica, o enredo era protagonizado pelo gênio criminoso Garra Cinzenta, vilão vestido com roupa e chapéu pretos e com uma máscara de caveira, que desafiava a polícia com seus delitos. Essa história, desenhada com estilo realista (como o dos principais artistas que realizaram as adventure-strips norte-americanas, a exemplo de Alex Raymond e Harold Foster), cujos personagens têm nomes americanos, chegou a ser publicada no México e na França.

Ilustração 10 – A Garra Cinzenta: influência dos comics norte-americanos no quadrinho brasileiro

A Gazetinha abriu espaço para os suplementos que traziam histórias em

quadrinhos. O mais famoso deles foi o Suplemento Juvenil, criado em 1934 pelo

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jornalista e editor Adolfo Aizen. Lançado com o título o Suplemento Infantil e encartado no jornal A Nação, do Rio de Janeiro, inaugurou uma nova fase das histórias em quadrinhos no Brasil, introduzindo no país o modelo norte-americano, em que se destacavam aventuras mirabolantes e personagens de intensa penetração social. A nova publicação, de acordo com Vergueiro (2004, p. 195-196), trazia um dos melhores momentos da história em quadrinhos norte-americana, com os autores como Alex Raymond, Al Capp, Hal Foster, Lee Falk, entre outros.

Se a referência cultural, na moda e no comportamento, durante as primeiras décadas do século XX, vinha da Europa, a partir da década de 1930, paulatinamente, a influência dos Estados Unidos passou a ser predominante na sociedade brasileira. Com o esgotamento da política café-com-leite da República Velha (amparada no modelo agrário-exportador e tendo à frente uma liderança conservadora das elites paulistas e mineiras, que perdeu seu poder a partir da crise econômica de 1929), o país vislumbrou na industrialização a principal alternativa de desenvolvimento. A vitória do grupo liderado por Getúlio Vargas (1882-1954) na Revolução de 1930 guiou a elite nacional, cada vez mais, para perto do capitalismo norte-americano. A força da indústria cultural americana (amparada no cinema de Hollywood, na música e nos quadrinhos) e as alianças forjadas durante a Segunda Guerra Mundial selaram essa aproximação dos dois países.

O tablóide oferecia em suas páginas jogos, contos, tiras norte-americanas (Flash Gordon, Jim das Selvas, Tarzan, Mandrake, Dick Tracy, Popeye, Terry e os Piratas etc.) e quadrinhos criados por artistas brasileiros, com destaque para o ilustrador Carlos Thiré, autor de O Gavião de Riff e As aventuras de Raffles. Esse suplemento chegou a ser publicado três vezes por semana (terças, quintas e sábados), atingindo o total de 300 mil exemplares por edição e gerando outras publicações, como a Edição Maravilhosa (editada quatro vezes por ano, em março, junho, setembro e dezembro) e livros encadernados com histórias estreladas pelos principais personagens dos quadrinhos.

Ilustração 11 – Capa do Suplemento Juvenil, que oferecia aos leitores brasileiros

quadrinhos americanos

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3. A consolidação do formato revista

O sucesso do Suplemento abriu caminho para outras publicações no mesmo estilo. Foi o caso do empresário Roberto Marinho, proprietário do jornal O Globo, criou um concorrente: O Globo Juvenil, publicação que oferecia aos leitores os principais personagens dos comics estadunidenses.

Para enfrentar a concorrência, Aizen lançou as revistas Mirim e O Lobinho e, em meados da década de 1940, fundou a Editora Brasil-América Ltda. (EBAL). Mas foi Marinho que colocou nas bancas a revista que virou sinônimo de quadrinhos no Brasil: Gibi, título que se manteve até o início do século XXI. Com esses títulos, o formato comic-book passou a ser predominante no mercado editorial brasileiro.

Ilustração 12 – A revista Gibi tornou-se tão popular que seu nome se tornou sinônimo para as publicações de quadrinhos brasileiras

Durante a década de 1950, pequenas editoras paulistas (Outubro, La Selva,

Continental, Edrel etc.) lançaram revista de quadrinhos de Terror, Humor e Infantil. Com a censura aos quadrinhos de Terror nos Estados Unidos, artistas brasileiros voltaram-se para a produção deste gênero, editado com regularidade até o final da década de 1980. Essas histórias adaptaram-se à cultura brasileira, tendo como argumentos as crendices populares. As revistas de quadrinhos de Humor, por sua vez, amparavam-se em personagens cômicos do cinema nacional, como Oscarito, Grande Otelo e Mazzaropi, do circo e da TV, como o palhaço Arrelia.

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Ilustração 13 – Os quadrinhos de Terror criados no Brasil abordavam temas da cultura brasileira (como candomblé), ambientavam-se no interior do Brasil e apresentavam personagens emblemáticos, como Zé do Caixão

Já no segmento infantil, destaca-se Mauricio de Sousa, cuja carreira teve início

com tiras do cachorro Bidu publicadas no jornal Folha de S. Paulo e histórias editadas nas revistas Zas-Tras e Bidu. Outro autor de quadrinhos infantis, Ziraldo Alves Pinto, elaborou para a revista O Cruzeiro cartuns com o saci Pererê. Esse personagem da mitologia brasileira teve revista própria no início dos anos 1960 pela Editora O Cruzeiro, que também produzia o título O Guri.

Ilustração 14 – A revista Pererê, criação de Ziraldo, protagonizada pelo personagem do folclore nacional, índios e animais da fauna brasileira 4. As publicações alternativas

No período de exceção política surgiram diversas publicações alternativas que davam espaço para trabalhos de cartunistas brasileiros, sendo o jornal O Pasquim o mais conhecido. Faziam parte do time de chargistas desse periódico Jaguar, Ziraldo e Henfil. O último também concebeu a revista Fradim, na qual publicava histórias com seus personagens Graúna, os Fradinhos, entre outros. Nesse período surgiram várias revistas de quadrinhos que apresentavam trabalhos de artistas de renome do comix underground dos Estados Unidos (Robert Crumb e Gilbert Shelton) e do quadrinho de vanguarda da Europa (Wolinski e Guido Crepax), além de abrigar a produção nacional;

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é o caso de Grilo e O Bicho. Até editoras comerciais, como a Abril, criaram títulos de quadrinhos brasileiros, sendo a revista Crás! um exemplo importante.

Ilustração 15 – Os personagens de Henfil satirizavam a situação política do país durante a ditadura militar

Outra publicação alternativa surgida no início da década de 1970 foi a revista

alternativa Balão, idealizada por alunos dos cursos de Arquitetura e Comunicação da Universidade de São Paulo, entre eles Luiz Gê e Laerte Coutinho, que tentavam fazer pesquisas formais sem perder o poder de comunicação com o leitor de histórias em quadrinhos. ‘Essa experiência representou, na visão de Cirne (1990: 71):

(...) de um lado, a necessidade da pesquisa gráfica e temática, capaz de transgredir com a ordem quadrinhística mais tradicional ou conservadora (leia-se: mais americanizada); do outro, a necessidade de luta contra a invasão econômica e ideológica dos comics enlatados, isto é, comics tradicionais e conservadores. Pela primeira vez no Brasil, os deenhistas do Balão (...) enfrentavam a questão do experimental. Marcada pelo processo de redemocratização da sociedade, a década de 1980 viu

florescer uma “cultura independente” produzida por artistas (músicos, cineastas, teatrólogos, quadrinhistas etc.) que propunham renovar os padrões estéticos vigentes sem fazer concessões ao mercado. Nesse contexto, surgiram editoras de histórias em quadrinhos alternativas (Circo Editorial, VHD-Diffusion, Press Editorial, Editora Vidente, Editora D-Arte etc.).

Do humor3 ao terror, passando pelo erotismo, as publicações dessas editoras apresentavam histórias em quadrinhos que renovaram a chamada Nona Arte e estavam em consonância com seu momento histórico. Entre as principais revistas alternativas de quadrinhos figuraram Animal, Abutre, Porrada! e Mil Perigos, além das publicações da Circo Editorial (Circo, Chiclete com Banana, Piratas do Tietê, Striptiras, Geraldão etc.). Quadrinhistas como Angeli, Laerte, Glauco, Luiz Gê, Marcatti, Lourenço Mutarelli, criaram histórias, normalmente de humor (sátira social), para leitores adultos de quadrinhos. A crise inflacionária verificada nos anos 1990 levou ao fechamento dessas editoras e ao cancelamento dos títulos.

3 Sobre a Circo Editorial e as histórias de humor publicadas por essa editora, ver SILVA, 2002 e SANTOS, 2007

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Ilustração 16 – A revista Chiclete com Banana, editada por Angeli e Toninho Mendes, chegou a vender cem mil exemplares por edição

5. Álbuns e mídia digital

No século XXI, assiste-se à segmentação do mercado editorial de histórias em

quadrinhos, voltado para revistas comerciais (infantis ou de super-heróis) e mangás (quadrinho produzido no Japão). Os artistas brasileiros, contudo, continuando produzindo quadrinhos até para editoras estrangeiras ou em publicações difundidas de maneira independente. Mas, à exceção de Mauricio de Sousa, não publicação periódica de quadrinhos brasileiros nas bancas de jornais.

Para enfrentar os problemas vividos pelo mercado editorial de quadrinhos brasileiros, os artistas produzem álbuns de luxo vendidos em livrarias ou em lojas especializadas. Outra possibilidade para divulgação dos trabalhos é a criação de narrativas sequenciais para a internet. Algumas acabam sendo impressas no formato de álbum. Existem experiências alternativas que reúnem artistas iniciantes, a exemplo do grupo Quarto Mundo. Mas diversos quadrinistas nacionais precisam desenvolver suas carreiras no exterior, principalmente nos Estados Unidos.

Ilustração 17 – Álbum de Fábio Moon e Gabriel Bá, autores brasileiros premiados no exterior, vendido em livrarias e lojas especializadas

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