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1 Relato do trabalho: Fazer (se) psicólogo: diálogos sobre uma experiência de estágio em Recife – PE RESUMO O presente trabalho relata de modo reflexivo a experiência de estágio em psicologia clínica, a partir do enfoque psicossocial, realizado de novembro de 2006 a agosto de 2007, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em Recife/PE. Neste texto encontram-se narrativas de experiências com articulações teóricas, questionamentos, sugestões. Traço a contextualização do tema da loucura e a construção histórica de um outro modo de lidar com ela, proposto pela reforma do modelo asilar. Do mesmo modo, procuro localizar o fazer clínico no campo da Saúde Mental, a partir da clínica psicossocial de base analítica, suas práticas, intervenções possíveis, leitura dos fenômenos, modo de ser terapeuta, e como é possível acontecer o trabalho psicoterapêutico em grupo. Descrevo e analiso as atividades realizadas a partir do suporte teórico apresentado na fundamentação. Na conclusão, teço considerações sobre quais foram às contribuições do estágio para minha formação profissional, fazendo uma avaliação do serviço e de minha formação acadêmica com base na vivência do estágio. PALAVRAS-CHAVE: clínica, saúde mental

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Relato do trabalho:

Fazer (se) psicólogo: diálogos sobre uma

experiência de estágio em Recife – PE

RESUMO

O presente trabalho relata de modo reflexivo a experiência de estágio em psicologia

clínica, a partir do enfoque psicossocial, realizado de novembro de 2006 a agosto de

2007, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em Recife/PE. Neste texto

encontram-se narrativas de experiências com articulações teóricas, questionamentos,

sugestões. Traço a contextualização do tema da loucura e a construção histórica de um

outro modo de lidar com ela, proposto pela reforma do modelo asilar. Do mesmo modo,

procuro localizar o fazer clínico no campo da Saúde Mental, a partir da clínica

psicossocial de base analítica, suas práticas, intervenções possíveis, leitura dos

fenômenos, modo de ser terapeuta, e como é possível acontecer o trabalho

psicoterapêutico em grupo. Descrevo e analiso as atividades realizadas a partir do

suporte teórico apresentado na fundamentação. Na conclusão, teço considerações sobre

quais foram às contribuições do estágio para minha formação profissional, fazendo uma

avaliação do serviço e de minha formação acadêmica com base na vivência do estágio.

PALAVRAS-CHAVE: clínica, saúde mental

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Fazer (se) psicólogo: diálogos sobre uma

experiência de estágio em Recife – PE

Autora: Daniela Torres Barros

Banca examinadora: No departamento de Psicologia em que este relatório foi

produzido, a banca examinadora é composta pelo orientador (Prof. Dr. Benedito

Medrado), a supervisora (Anna Carvalheira) e um membro anônimo do Colegiado

do curso que emite parecer.

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1- INTRODUÇÃO

O presente relatório é uma narrativa/elaboração da experiência de estágio em

clínica, mais especificamente a partir da clínica psicossocial de base analítica. O serviço

do CAPS, instituição na qual realizei o estágio, surgiu como parte de uma Política

Nacional de Assistência a Saúde Mental no Brasil. Não por acaso, um longo percurso

foi traçado para chegarmos a este ponto. Para compreender este caminho explanarei a

respeito da história da loucura, de sua institucionalização, de como ocorreu este

processo no país.

A primeira parte deste trabalho será dedicada ao contexto histórico, nele

discorrerei a respeito da loucura, para situar a construção da loucura com um problema

de saúde pública, e como o serviço do CAPS se insere nas Políticas Públicas Nacionais.

Descreverei a construção da Psicologia como um saber científico referendado, fazendo

conexões com a história da loucura.

Em seguida posiciono a fundamentação teórica, a partir da qual apresento o fazer

psicológico no contexto da saúde mental e através de que eixos e bases foram investidas

as minhas intervenções clínicas.

Posteriormente, relatarei as atividades realizadas ao longo do estágio, fazendo

uma ponte com conceitos e argumentos referidos na fundamentação teórica e outros que

contribuíram mais pontualmente.

Na conclusão, teço considerações a respeito das práticas do CAPS, da

interdisciplinaridade, do papel do psicólogo e da psicologia e das instituições

formadoras. Assim como o papel do estágio em minha formação, tendo por base

reflexões realizadas a partir da vivência no estágio.

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1.1. Contexto Histórico

1.1.1. O cenário da loucura

Para situar a loucura historicamente, utilizo em especial as contribuições de

Tundi & Costa (1997) e Amarante (1996). A loucura é descrita por Tundis & Costa

(1997) como um fenômeno presente em toda a história da humanidade. Relatam que no

período da Antiguidade e Idade Média o louco gozava de certo grau de liberdade. Ele

circulava, fazia parte do cenário de linguagens comuns, havendo interferência do

Estado, apenas em casos jurídicos de separação e proteção à propriedade privada. Na

Grécia Antiga e em Roma, os ricos mantinham-nos em casa com a companhia de

assistente contratado e nas classes populares, praticavam tratamentos através de rituais

mágicos e religiosos. O Velho Testamento descreveu uma situação do louco nas ruas

sendo caçoado, marcando desde essa época traços da exclusão e violência

De acordo com esses autores, a relativa liberdade dos insanos nos períodos

anteriores poderia ser explicada pelo baixo número de “loucos”, pois a incidência do

enlouquecimento era maior em adultos e na velhice (idades pouco alcançadas em épocas

remotas). Essa liberdade também pode ser explicada por um certo “afrouxamento” da

nossa sociedade capitalista em relação às exigências do tempo. Pois o campesinato

obedecia temporalmente à natureza, e os artesãos eram valorizados quanto à

originalidade. Havia um espaço maior para a diferença, mas com o fim da classe

campesina como principal mão-de-obra explorada, no fim do século XV, aos artesões

coube a divisão do trabalho. A produção em série e a necessidade de mão-de-obra fez os

desocupados, mendigos e vagabundos serem punidos e exilados. Os desviantes da

norma saíram das ruas e foram para as Santas Casas e hospitais sendo

institucionalizados.

O tratamento à loucura era situado no corpo, através de encarceramento e

liberação dos “maus humores” com sangramentos e purgantes. Ao final do século

XVIII, os loucos foram separados dos demais desviantes, e receberam atenção

especializada da psiquiatria com o “tratamento moral”. O regime moral, sob influência

de Pinel, abandonou a busca de causalidades e tratamentos físicos e dirigiu-se a mente

humana, traçando a psiquiatria da higiene moral (TUNDIS & COSTA, 1997).

Do século XIX em diante, a ciência se apropriou da loucura construindo um

saber a respeito da doença mental (AMARANTE, 1995). Com o objetivo romântico de

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cura que culminou na prática médica psiquiátrica instituiu dispositivos de descrição,

categorização, medicalização e terapeutização, típicos do regime disciplinar

Para Amarante (1995), a loucura atualmente diz respeito fundamentalmente à

psiquiatria. O processo de crítica e de ruptura com o padrão de cura e de reclusão

ocorreu a partir de pensamentos fenomenológicos; da epistemologia; da construção das

Comunidades Terapêuticas nos EUA e Inglaterra; da Psicoterapia Institucional na

França; a Terapia Familiar; da antipsiquiatria. Todos estes movimentos contribuíram

para a des-contrução do modelo asilar na saúde mental. E fizeram com que a psiquiatria

fosse passando para o espaço público, da intervenção com tratamento para a prevenção

e promoção de saúde, as idéias e práticas democráticas foram diluindo o saber médico

hegemônico e autoritário.

Conforme Tundis & Costa (1997), no pós-guerra, a instituição total psiquiátrica

tornou-se inviável economicamente. Neste período a psiquiatria preventiva surgiu nos

EUA, seu principal representante foi Caplan e tinha o objetivo de assegurar um

tratamento antes e após a “cura”. Propôs a demarcação de um novo território, o de

Saúde Mental, sugeriu a intervenção em situações de crise, a prevenção primária como

promoção de saúde, a prevenção secundária com o diagnóstico e tratamento e a terciária

de reabilitação social. As crises eram olhadas como momentos acidentais ou evolutivos,

em que o sujeito enfrentava uma descontração e um possível rearranjo em sua vida

(CAPLAN, 1980). Houve então, um deslocamento da doença mental de um

acontecimento extraordinário para a normalidade do padecer, apesar da ênfase na

prevenção ainda possuir fortes indícios da Higiene Mental.

Iniciou-se o processo de des-hospitalização, e outros dispositivos (como os

ambulatórios) cresceram juntamente com o aumento das demandas de atendimento

(AMARANTE, 1995). O aumento da demanda de atendimentos ambulatoriais é

compreendido em Tundis & Costa (1997) como produto da individualização dos

problemas sociais. O fato de fazer a leitura de que a demanda de atendimento é

construída socialmente, não invalida o sofrimento do usuário. A questão é a abertura

para possibilidade de identificar essas marcações sociais. No Brasil a evolução da

loucura não foi diferente, no tópico a seguir discorrei a respeito.

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1.1.2. A loucura situada no Brasil

No Brasil colônia, a loucura pouco se diferia da dos tempos bíblicos no qual o

louco, quando manso, errava pelas ruas com a ajuda de caridade ou de trabalhos

esporádicos. Quando violento, o “louco” ficava detido em prisões por curto tempo,

podendo receber maus tratos. O número de insanos era reduzido, mesmo nas Santas

Casas de Misericórdia e outras instituições de caridade do século XVI e XVII. Em

famílias ricas eram escondidos em quartos próprios ou construções anexas, se violentos

eram amarrados e contidos. Semelhante à Europa, os passos dados em direção à

institucionalização da loucura foram à remoção dos perturbadores da ordem do âmbito

público, e em seguida a educação para o trabalho (TUNDIS & COSTA, 1997).

Esses autores afirmam que um discurso científico respaldava as ações de

trabalho forçado como imposição terapêutica. E havia a presença maciça de uma dada

classe era justificada por herança hereditária. O trabalho era ao mesmo tempo:

indicativo de doença, quando não exercido corretamente; modo de tratamento em

colônias terapêuticas; e quando era capacitado para, sinalizador de cura. À medida que

se constatou a ineficiência do aprendizado do trabalho rural, foi lentamente extinguido

como prática terapêutica. Os hospícios foram ganhando uma nova roupagem com a

sociedade modernizada, com preocupação na alimentação e as vestes.

Em 1950, a Organização Mundial de Saúde (OMS) atentava para os prejuízos

causados pelas doenças mentais na produção das indústrias, apontando para a

necessidade de repensar o tratamento ao louco. Naquela época, o estado brasileiro

tendia ao laissez-faire, sem políticas consistentes de educação e saúde. Começou a se

ocupar com a preservação e adestramento da força de trabalho, a população de

trabalhadores. Houve a privatização dos serviços com os hospitais previdenciários,

gerando uma indústria da loucura (TUNDIS & COSTA, 1997).

Amarante (1995) resgata o papel dos atores envolvidos na reforma psiquiátrica.

Em resultado às pressões do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM)

houve o surgimento do primeiro CAPS – Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz

Serqueira em 1987; São Paulo, um grande passo na transformação dos serviços mentais.

A instituição funcionava como filtro no atendimento do hospital, acolhendo usuários

com graves dificuldades de inserção social. Semelhante ao regime de “hospital-dia” na

França nos anos 40, dos Centros de Saúde Mental nos anos 60 dos EUA. O serviço

adquiriu sua nomenclatura inspirada no modelo da Manágua de 1986, que dispunha de

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líderes comunitários, profissionais de saúde e fazia uso de materiais reciclados na

reabilitação ou habilitação dos excluídos.

Um marco na história da saúde coletiva, destacado por Dimenstein (2001), foi a

VIII Conferência em Saúde, em 1986, que definiu os princípios do Sistema Único de

Saúde. A partir dessa discussão a saúde foi garantida enquanto direito e dever do Estado

na Constituição Brasileira de 1988. E surgiram os princípios: da universalidade, garantia

de acesso a todos e todas; da eqüidade considera as especificidades da demanda e

estabelece prioridades; a integralidade com a visão e atenção do sujeito em sua

totalidade, e ampliação do olhar por intermédio do trabalho interdisciplinar (LEI

8.080/1990) que nortearam a implantação e a lógica do Sistema Único de Saúde.

A adesão ao SUS e seus conceitos e princípios, o conceito ampliado de saúde, a

importância do controle social, da transdiciplinaridade para cuidar do indivíduo

integralmente, universalmente e eqüitativamente é evidente. O SUS bebeu do

movimento da Reforma Psiquiátrica, no tocante à descentralização do modelo médico-

psiquiátrico, e comunga com a psicologia comunitária quando se focaliza na prevenção

de acordo com Pereira (2001). Ele afirma que a ideologia da libertação é a de que os

indivíduos sujeitos e, portanto, com responsabilidades sob suas escolhas, seus direitos e

deveres.

Posteriormente surgiram os NAPS (Núcleos de Apoio Psicossocial), que

funcionavam por vinte quatro (24) horas nos sete (7) dias da semana, acolhendo as

demandas de abrigo, com caráter substitutivo dos manicômios. Os CAPS e NAPS foram

incorporados nas políticas nacionais e em 1989 foi promulgada uma Lei 3.657/89 que

dizia respeito aos direitos dos doentes mentais e ao uso de recursos não-manicomiais.

Em 2001, se consolidou os direitos para pessoas acometidas de transtorno mental (LEI

10.216/2001). A passagem do tratamento psiquiátrico orgânico para o tratamento moral

e preventivo solicitou um espaço para a psicologia (AMARANTE, 1995).

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1.2. A construção da psicologia como saber científico

Em meio à transformação do espaço da loucura no mundo, há a psicologia como

ciência que se transforma e influencia no modo de ver e tratar o louco. Diante dessa

temática, é importante compreender as origens do saber da psicologia. Entendendo sua

ciência como uma construção social, um empreendimento humano que se encontra

condicionado socialmente, resultante de experiências variadas e da interação de variadas

teorias (JAPIASSU, 1977). Deste modo, farei um passeio pela invenção da ciência e da

psicologia como um saber referendado, considerando contribuições teóricas de

Figueiredo, de Santi e Japiassu.

Inicialmente, a ciência surgiu, de acordo com Figueiredo & Santi (2004), a partir

de necessidades criadas após o declínio do Renascimento em que caíram por terra as

referências cristãs, as quais constituíam o código de moralidade que norteava as ações

do ser humano. Esse último passou a ser reconhecido em seu livre-arbítrio, um passo

adiante para o surgimento da subjetividade privatizada.

Ainda de acordo com os autores citados acima, Descartes foi representante do

momento da verdade a partir de si mesmo, individualmente. A dúvida, método adotado

por ele, soou como uma saída conciliadora para o ceticismo vigente, se por um lado

permanecia a dúvida, esta era justificada pela procura da verdade. Foram elaborados

métodos de investigação calcados na razão, pois o sentimento era considerado volátil e

os sentidos passíveis de engano.

O processo de individuação foi favorecido pelo sistema mercantil. Na relação de

troca o interesse era sempre de vantagem individual, contrapondo-se aos interesses

coletivos e modos de produção feudal que favoreciam o bem comum. Após a queda do

sistema feudal, o trabalhador perdeu o referencial das terras e da família como

instituição produtora, lançando-se sozinho ao mercado de trabalho (FIGUEIREDO &

SANTI, 2004).

Como crítica ao Iluminismo e à racionalidade, estruturou-se o Romantismo,

defendendo o ser humano como ser passional e sensível. O Romantismo provocou uma

fratura na crença do ser humano como dono de si. Sustentava a igualdade calcada na

diferença e acreditava que os intensos sentimentos poderiam unir os homens, apesar das

diferenças. Enquanto o pensamento liberal e iluminista apostavam na fraternidade, essa

contradição gerou uma crise. O desamparo e a solidão decorrentes desta crise

acarretaram numa atitude de submissão de acordo com Figueiredo & Santi (2004). Em

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decorrência disso, um sistema de “docilização” foi instalado, o regime disciplinar,

composto de técnicas científicas de controle e registro dos indivíduos construindo um

saber-poder (FOUCAULT, 1979).

As ciências naturais basearam-se na premissa de que o ser humano como ser

individualizado é capaz de dominar e controlar a natureza de acordo com sua vontade.

Porém, a busca pela objetividade acentuou a existência de fatores subjetivos. Para a

ciência ter legitimidade precisou dar conta desta área não racional e objetiva, a

subjetividade. Desta forma, o ser humano saiu da posição de mero pesquisador para a de

objeto de seu próprio estudo.

Com a divisão de todos os fenômenos em duas categorias, a dos fenômenos

físicos e a dos fenômenos psíquicos, divisão mente/corpo, o método científico deveria

operar uma cisão, expurgar a subjetividade que comprometesse o sujeito epistêmico.

Esse território expurgado, do excluído deu lugar às psicologias (FIGUEIREDO, 1995).

Para Figueiredo & Santi (2004) a psicologia veio da contradição, da valorização

das diferenças do mundo moderno com a eliminação das diferenças pelo método

científico objetivo, abarcando uma enormidade de propósitos, modelos, métodos e

teorias. Emergiu do pensamento Liberal de autonomia, auto-controle, do pensamento

Romântico de espontaneidade, autenticidade, singularidade e do regime disciplinar com

a necessidade de controle através de técnicas.

A Psicologia no século XIX era dualista. Havia uma psicologia fisiologista e

uma psicologia descritiva ou subjetiva. A psicologia naturalista científica deu origem a

uma psicologia fisiologista ao comportamentalismo, a psicologia comparativa, a

neuropsicologia (LURIA, 1979).

O comportamentalismo, no início do século XX, deslocou o objeto da mente

para o comportamento humano em suas interações com o ambiente. Deixando de lado

os pensamentos, sentimentos, desejos do romantismo. O sujeito foi reduzido a um

organismo e comparado no discurso científico aos demais organismos (FIGUEIREDO

& SANTI, 2004).

Para os autores, a psicologia da Gestalt comprovou o que Wundt, criador do

primeiro laboratório de psicologia, já desconfiava por meio de experimentos voltados

para a descrição ingênua dos fenômenos: da conexão entre a experiência e os aspectos

culturais do sujeito, e observou uma busca do sujeito pela integração da percepção.

Paralelo a isso, Piaget pesquisou por meio do método clínico o desenvolvimento da

moral e das funções cognitivas. E Freud definiu como objeto de estudo o inconsciente,

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contrapondo-se à visão positivista com um objeto não observável e do sujeito racional

(FIGUEIREDO & SANTI, 2004).

Em síntese, a Psicologia como ciência ocupou o lugar expurgado da

subjetividade. Interessou-se inicialmente pela experiência imediata, observando sua

íntima conexão com o contexto cultural. Colocou em questão o sujeito da razão

proposto pelo Iluminismo e pensamento liberal. Aventurou-se em estudar aspectos não

mensuráveis ou observáveis do sujeito, como o desenvolvimento moral proposto por

Piaget e o estudo do inconsciente realizado por Freud.

Esses movimentos não fazem um continuum, não remetem a uma evolução

teórica ou mesmo cronológica na psicologia, eles estão presentes ainda hoje, e juntos

formam o escopo da ciência psicológica. Por ser bastante ramificada, seria impossível

estabelecer seu elenco completo, difícil inclusive, segundo Japiassu (1977), falar de uma

Psicologia.

1.3.1. O fazer psicológico

Uma função social que a psicologia tem assumido é a de explicação a respeito

do homem, seus comportamentos e atitudes, lembrando o papel da Igreja na Idade

Média. O refluxo da religião, das filosofias deixou um espaço ocupado atualmente pela

psicologia, um lugar de explicação, de guardiã da subjetividade, do humano no ser

humano, como ciência do subjetivo (JAPIASSU, 1977).

O profissional tem servido muitas vezes aos interesses das instituições e do

regime disciplinar, enquadrando, adaptando, selecionando, detectando erros. Ela viria a

preencher o vazio que liga o ser humano ao meio, substituindo a moral clássica

(FIGUEIREDO & SANTI, 2004). Os autores elencam o clínico com um ator que parece

fugir um pouco a essa regra ou tem possibilidade para tanto, por ter como clientes

indivíduos ou agrupamentos de indivíduos. Mostram-nos funções de integrar e adaptar o

homem a sociedade assumidas pela psicologia: adaptação ao trabalho; adaptação e

integração psíquica, espiritual e física. Ao invés de ser uma ciência que possibilita ao

homem encontrar o sentido de sua palavra, põe-se no objetivo de reajustar os desviados

da norma, vem formulando receitas de adaptação deste a sociedade, exercendo a

regulação a serviço da norma social.

A psicologia deve tentar dar conta do ser humano como subjetividade, como um

existente cujo sentido precisa ser manifestado segundo Japiassu (1977). Diante das

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variadas psicologias, convoca para a questão do sentido para o qual o homem se evoca e

o mundo em seu projeto. Os diversos pontos de vista poderão assim se comunicar para

compreender melhor a presença do homem no mundo e desvelar o seu existir.

Para Figueiredo (1995), ao psicólogo clínico cabe ouvir o não dito, o excluído,

as possibilidades de sentidos da experiência imediata. O autor denuncia que a psicologia

clínica: estaria interessada no tratamento curativo, no pólo disciplinar, e atua como

redução de sintomas; no romantismo quanto à expressividade; e no pólo liberal, com

meios de propiciar autodomínio.

De uma forma ou de outra a psicologia aceita o ser humano como um ser

descritível, talvez os psicólogos jamais devessem renunciar a uma dose de filosofia na

busca de desvelar os sentidos da existência, colaborando na concepção de uma ciência

inserida num projeto libertário. Um projeto de encontro do homem para consigo em

suas possíveis significações (JAPIASSU, 1977).

Nietzsche (apud Figueiredo & Santi, 2004) des-construiu a necessidade de

crença em algo fixo, afirmando esta tentativa como uma necessidade apenas de

controlar o devir. Ele deslocou a “verdade” para o âmbito da ética, da utilidade de cada

crença para todo o fazer humano. Um imperativo ético urge à Psicologia, afinal o

psicólogo tem o dever de refletir a respeito das possíveis conseqüências da tomada de

uma ação, de uma verdade, ou como diria Nietzche, de cada uma ilusão. A respeito da

ética profissional, Goldin comenta:

“A prática profissional tem estreitas relações com a ética. Muitas vezes os

profissionais ficam com a impressão de que basta as regras estabelecidas no Código

de Ética Profissional. Assim fazendo, estariam contempladas todas as exigências

éticas. Vale lembrar que os Códigos de Ética são, na verdade, Códigos de Conduta,

pois estabelecem as regras para o exercício profissional considerado adequado. (...)

A Ética Profissional vai muito além do simples estabelecimento e cumprimento de

regras, busca, isto sim, as justificativas para estes deveres e comportamentos.”

(GOLDIN: 123; 1988).

Para tornar-se possível pensar no fazer psicológico em meu estágio situando-o

no âmbito da ética é necessário, primeiramente, conhecer um pouco a respeito da

história da loucura. Mais especificamente, conhecer o surgimento de políticas públicas

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em saúde mental, decorrentes dos movimentos da Reforma Psiquiátrica e Sanitária e as

conseqüências deste modo de lidar com a loucura para a clínica psicológica.

1.3. Abordagem Teórico-metodológica Primeiramente, apresentarei a clínica psicossocial como um modo de

intervenção possível e utilizada no serviço do CAPS. Para a leitura dos fenômenos

lancei mão da contribuição psicanalítica na valorização da palavra, história de vida e

compreensão do sujeito, lugar estarei olhando para fazer minhas intervenções.

Posteriormente, farei a junção destes aspectos, a terapia de base analítica com enfoque

na clínica psicossocial, e o trabalho psicoterapêutico em grupos.

1.3.1. A Clínica Psicossocial

A clínica psicológica no serviço do CAPS prescinde de outro modo de

intervenção. Os movimentos da Reforma do Modelo Asilar e da criação do Sistema

Único de Saúde (SUS) demarcaram uma transformação no fazer clínico demarcando a

construção da clínica psicossocial (VIEIRA, 1997), na contemporeneidade.

Na Contemporaneidade, a angústia do ser humano tem sido ampliada pela

fragmentação do eu, perda de referências, pela indefinição de papéis, pela sensação de

“liberdade” e responsabilidade que esta traz (MORATTO, 1999). Nossa cultura

narcísica tende a pulverizar os vínculos afetivos e a valorizar a imagem, a “liberdade”

acarreta nas sensações de angústia e des-territoriarização. Ocorre uma ruptura de

sentido que dá origem ao sofrimento.

A mesma autora admite o clinicar como inclinar-se sobre, que deve levar em

conta este momento no qual o ser humano, se insere e trazer uma nova ética, a do

cuidado, contrapondo-se a ética da eficácia, e da excelência. Boff nos diz que “cuidar é

mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção,

de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de

responsabilização e de envolvimento afetivo pelo outro” (BOFF; 33, 1999). Assim, o

cuidar faz parte do fazer-saber psicológico, como sendo um debruçar-se, inclinar-se em

direção ao outro numa atitude clínica. Lembrando o conceito de “estar-aí” em

Heidegger (apud VATTIMO, 1996), um modo de ser-no-mundo que pode ser como

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cuidado, que é equivalente à responsabilidade, é um cuidado de si e do outro, é estar no

mundo enquanto ser-junto.

O clínico enfrenta em sua prática, demandas diversas, situações de violência, de

transtornos mentais, abuso de drogas, situações de crise que requerem procedimentos

distintos da demanda de atendimento individual mais voltada para conflitos psíquicos e

existenciais. O termo “crise” é entendido normalmente como algo ruim, difícil,

negativo. Associado ao termo psicose que é vista como uma doença crônico-

degenerativa leva a uma visão excludente e hospitalocêntrica, caminhando para o

internamento. De acordo Vieira (1997), o termo crise de Krisis, do grego, significa

decisão. Esse olhar implica numa mudança radical da idéia de crise e doença e em

alternativas para a contenção e a procedimentos de violência por parte dos familiares ou

mesmo dos profissionais.

A crise acontece quando um evento encontra ressonância no sujeito, em um

momento específico de sua história, situações de violência têm sido freqüentemente

desencadeadoras de traumas, a experiência negativa tende a ser revivida em sonhos,

pensamentos insistentes, provocar a repetição do evento (STERIAN, 2001). Um trauma,

segundo a autora, é um acontecimento da vida do sujeito em que este reagiu sem uma

resposta adequada.

A crise é para Moffatt (1984) uma vivência de paralizia e descontinuidade da

vida seja por um acontecimento traumático, seja por uma fase esperada. Erickson (1976)

e Caplan (1980), no entanto, desenvolveram suas teorias situando a crise como parte do

existir humano. Segundo a teoria das crises, ao longo da vida ocorrem períodos críticos

em que aumenta o estado de tensão, nos quais ocorre com maior facilidade mudanças.

Essas mudanças para VIEIRA (1997) podem ser em direção ao retorno de a um

equilíbrio, ou em direção a formação de lacunas, que dificultarão ou facilitarão o

enfrentamento de outras crises.

Sterian (2001) afirma que as intervenções em crise para situações emergenciais

acontecem em geral onde há risco a vida do paciente ou de outras pessoas, ou de uma

grande desorganização do sujeito. Nestes casos o terapeuta assume pela postura ativa e

utiliza as técnicas da psicoterapia de apoio, porém a intervenção acaba assim que o

sujeito saia da crise. Esse procedimento é utilizado em consultórios, hospitais, CAPS e

NAPS. (CORDIOLI, 1998).

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A clínica psicossocial é uma clínica adaptada para intervenção em situação de

crise, amplia o cuidado com o sofrimento subjetivo para potencialidades de direitos e

des-construção da tradicional clínica psicoterápica. O clínico atua:

“Preocupando-se com o cliente e a sua condição social e emocional estamos atentos a sua

historicidade, as situações de opressão que lhe provocam sofrimento, as pressões sociais

de normalização, a carga semântica de determinados significantes lingüísticos, as

condições sócio-biológicas nas quais se encontra, seus desejos, aspirações, a sua

potencialidade em melhorar a inserção social, a sua vitalidade para enfrentar novas

situações, etc.” (VIEIRA; 47: 1997)

As estratégias de trabalho são de brevidade, ou seja, de curta duração, por isso

sua natureza exploratória. A intervenção ocorre numa perspectiva interdisciplinar e em

rede, ocorre com a troca entre os profissionais de diferentes instituições e pessoas

significativas à problematização do cliente. Para cada caso deve-se organizar um

sistema terapêutico singular, em construção realizada mediante o trabalho

interdisciplinar e dialógico, no qual o clínico co-participa com outros profissionais da

saúde. Para Vieira (1997), o seu papel se desdobra em atividades, que implicam em

uma decodificação da demando do cliente, nas quais as ações em grupo, visitas

domiciliares, atendimento da família, individual devem estar coordenadas e em

sintonia.

O autor enfatiza a importância de o profissional perceber o quadro de referência

sócio-cultural do paciente e suas necessidades. A diferença de classe social e de cultura

pode interferir no diálogo gerando distorções que podem transformar a comunicação em

comunicandos de acordo com Freire (1988, apud em VIEIRA, 1997). Essas distorções

interferem na relação, o terapeuta pode estar sobrepondo sua visão de mundo a do

cliente e provocar desconfiança e até abandono do tratamento.

Todas as questões e observações levantadas nesse tópico concernem a um

sistema articulado de intervenções terapeutizantes, que podem ser embasadas por

variadas formas de olhar o mundo e os sujeitos.

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1.3.2. A leitura dos fenômenos

A teoria psicanalítica deslocou o sujeito da loucura e da adequação, para o da

produção de sentido (BIRMAN, 2003). Ela contribuiu para a valorização do sujeito, e

de seu discurso. Retirando o profissional de saúde do lugar de detentor de saber para

aquele que pode vir a estar-com, que tem a obrigação de buscar compreender, no

mínimo, o sentido que tem a doença para o sujeito. O discurso da psicanálise é o

discurso da singularidade. Esse discurso favoreceu uma escuta mais aguçada em direção

a pontos que serão trabalhos ao longo deste subtexto tendo como referência principal o

autor Ricardo Rodulfo (1990). A psicanálise contribuiu para a leitura dos fenômenos em meu estágio na medida

em que valorizava o discurso, a singularidade dos sujeitos, atentava para o sujeito

construído pela linguagem, material e meio de trabalho da clínica psicológica.

Émile Benveniste (apud GARCIA-ROZA, 1997) diz que a linguagem reproduz a

realidade, e a palavra “reproduzir” ganha o sentido de produzir novamente. Para o

lingüista não há pensamento sem linguagem, sem a linguagem o indivíduo se perde, não

há diferenciação, não há mundo). O ser humano é ao mesmo tempo seu criador e sua

criatura, pois ele é ao simbolizar, cria ao mesmo tempo a linguagem e a si mesmo.

Garcia-Roza (2001) faz um diálogo entre a filosofia e a psicanálise no qual

remete à Heiddegger, que faz da palavra logos, falar, estender adiante, recolher. O autor

define a atitude de escuta como parte deste recolher e pousar do Logos, a verdadeira

escuta para ele é seletiva, se deixa de ouvir algo para ouvir melhor outra coisa, ou

mesmo o silêncio: “Se a palavra é logos, o Logos não é apenas palavra, lê o excede,

desdobra-se como palavra e as coisas, nomeia o devir e o ser do devir.” (GARCIA-

ROZA: 45; 2001).

A linguagem é considerada o modo como o significado das coisas pode ser

trazido à tona. A linguagem é a casa do ser, uma espécie de custódia da presença, é ao

mesmo tempo ao de que dispomos e de que dispõe de nós. E proporciona o ser à coisa,

está circunscrita previamente e o circunscreve: “Se é na linguagem que se abre a

abertura do mundo, se é o ser às coisas, o verdadeiro modo de ir <<às próprias coisas>>

será ir à palavra” (VATTIMO: 137; 1996).

A verdade funda-se na liberdade, que é a abertura para a coisa. A verdade diz

respeito ao desvelamento do ente graças a sua abertura, e é a abertura que funda o

homem. O velamento é pensado a partir do desvelar entendido como verdade. Ele é

16

mais antigo do que a revelação, a verdade é, portanto, mistério. O homem cai em

errância da não-verdade e é dentro dela que se move. O campo psicanalítico há de supor

em Freud que o discurso do sujeito se desenvolve na ordem do erro, do

desconhecimento e da denegação, no erro ocorre à erupção da verdade, não a

contradição. Para Lacan (apud GARCIA-ROZA, 2001) os atos falhos são na verdade

atos bem sucedidos.

O revelado, no entanto, tem de ser visto e ouvido por outro homem ganhando

assim o testemunho de sua existência. O que é revelado modifica imediatamente o

testemunho, o que é compreendido prescinde de alguém que o compreenda, é pelo

testemunho que se dá através do desvelamento. Através desse que que se constitui o eu

(o olhar o do eu é sempre construído pelo olhar do outro), que se abrem os modos de ser

e conserva-se a pluraridade do ser (CRITELLI, 1996). Daí, a importância da escuta para

propiciar o testemunho do des-velamento, a arte do escutar dizer, contribuindo para a

construção de um outro modo de ser, na construção e des-contrução do que se chama

“eu”.

Freud constatou que o trauma era uma experiência que conectava aspectos

conscientes de não conscientes, comparou a organização do inconsciente a uma

“memória/arquivo”, em 1980 concebeu o psiquismo com um aparelho de linguagem

(GARCIA-ROZA, 1997). Em Heidegger (apud VATTIMO, 1996) o ser-no-mundo

requer a descoberta e uma familiaridade com os signos. Enquanto Lacan (apud

BIRMAN, 2003) encontrou os fundamentos para a criação de uma psicanálise ancorada

no campo da fala e linguagem, com o psiquismo organizado por significantes. Ao

simbolizar o ser humano estabelece uma relação entre o real e o signo (representante do

real) e nesta relação se dá à significação.

A palavra símbolo tem origem grega, era utilizada para representar duas metades

de um mesmo objeto partido que se aproximavam, expressando a palavra símbolo como

“em relação” (GARCIA-ROZA, 1997). O simbólico adquire, para Lacan (apud

GARCIA-ROZA, 1997), seu sentido pleno quando aplicado ao ser humano, pois a

função simbólica o engloba em sua totalidade. O universo simbólico não é constituído

aos poucos, a partir da existência de uma palavra todo o universo torna-se significativo.

Ou seja, ao simbolizar uma “coisa” todo o restante se torna relativo a esta palavra. Cria-

se um mundo simbólico, cria-se com ele o próprio ser humano.

A psicanálise busca conhecer o imaginário do paciente e possibilitar a

reconstrução do significante. O significante seria aquilo que se repete sob

17

transformações ao longo de gerações é visto “como fenômeno que não se reduz ao

terreno das palavras” (RODULFO; 20: 1990). O autor estabelece baseado em Lacan

critérios para designar o significante. O primeiro é o da repetição, considerando que o

significante não é próprio de alguém ou do privado. Um segundo critério, é o de

modificação, cujo significante ao se repetir sempre introduz algo de novo e distintivo.

Não apenas frases ou palavras podem adquirir o status de significante, um gesto, uma

roupa, pode assumir este lugar mantendo como princípio a repetição insistente. O

significante está no cotidiano e sempre conduz para alguma parte, a partir deste, a

história do sujeito se encaminha para um lado. O terceiro critério é o de nortear, dar

direção.

Tomar a pré-história como fator causal e único é um erro, pois limita o sujeito

aos seus mitos familiares. O mito familiar não é de modo algum organizado, ele pode

ser compreendido como um feixe de vários mitos com incoerências, buracos, pode ser

considerado um punhado de significantes. A distinção entre significante e signo decorre

que o signo remete a uma idéia fixa, enquanto uma cadeia de significantes, esta cadeia

nos interessa enquanto dimensão inconsciente. (RODULFO, 1990).

O mito contém uma dimensão histórica, a da fala, e uma dimensão a-histórica, a

da língua, sem reduzir-se a nenhuma. Diz respeito sempre a acontecimentos passados,

porém é uma estrutura que é a-temporal, pois remete ao presente-passado-futuro.

(GARCIA-ROZA, 1997). Para Rodulfo (1990) as fantasias são relevantes elementos,

mas não podem ser vistas sem a atenção a pré-história, pois não foram produzidas a

partir do nada. As fantasias, o mundo do sujeito e as funções em que se fundamenta:

função paterna, materna, fraterna, de membros de outra geração, funções que o

nomeiam são levadas em consideração.

Segundo o mesmo autor, a tarefa do ser humano ao nascer é primordialmente

encontrar significantes que o represente, um lugar para existir. É uma atividade na qual

precisa da ajuda do outro, da qual todo ser humano prescinde. Um lugar só é possível

quando há um desejo com relação ao sujeito. O amor neste momento é um lugar, lugar

em que se habita no desejo do Outro. O desejo é o que circula em toda a cadeia de

significantes. É essencial encontrar significantes através das funções exercidas em

relação a ele, não doar significantes ou impô-los, se não lhe for permitido achá-los

ocorrerá uma falha essencial no processo ativo (RODULFO, 1990).

Ainda segundo o autor a diferença da neurose para a psicose é que na psicose o

sujeito não encontrou condições para produzir significantes que o representem e o

18

Superego apareceu com significantes de maneira esmagadora. O Superego tem nesse

contexto função destrutiva. No regime do significante do Superego o sujeito do gozo, se

dilui e o gozo, se dá como gozo do Outro. Ou seja, na psicose o sujeito está “colado” ao

Outro, o seu desejo é o desejo de um outro. Enquanto na neurose, o ser humano

encontra significantes que o representem, nas psicoses o sujeito os procura e tem de

lutar contra os que tendem a destruí-lo. Essa tarefa originária é extrativa, arrancar os

significantes e conseguir um lugar para viver, lugar em que possa apresentar seus

desejos.

A busca de significantes, no entanto, não se dá solitariamente. A psicanálise

pode ser concebida por excelência como doadora de lugar, lugar de poder ser, não como

doadora de significantes que determinam o sujeito. O mito atravessa gerações e pode

minar a possibilidade de vida simbólica (vida no sentido de potencialidade para o

sujeito se achar, se diferir). Então, o papel do analista é o de permitir que o indivíduo

perdido em seus fantasmas familiares se encontre com suas ilusões (MANNONI, 1995).

Tomando como perspectiva a leitura psicanalítica dos fenômenos, adentraremos nas

práticas psicoterapêuticas da clínica psicossocial.

1.3.3. Psicoterapias

Apesar da psicoterapia não fazer parte do modelo preconizado no CAPS percebo

que é possível e positivo realizar atendimentos psicoterápicos dentro da instituição.

Tendo em vista, entretanto, uma psicoterapia mais ampla, que ultrapassa as paredes do

consultório. E se torna mais flexível quanto ao tempo, espaço, procurando adequar-se

aos limites e necessidades do momento e atenta aos aspectos culturais, históricos

políticos, econômicos que perpassam a situação psicoterapêutica.

Para Vieira (1997), o papel do terapeuta na clínica psicossocial é

necessariamente mais ativo, é exigida uma gama de intervenções incluindo não apenas

entrevistas clínicas, mas também tarefas terapêuticas. A ênfase é nos conflitos mais

emergentes, com o intuito de ajudar a lidar com suas dificuldades possibilitando

alcançar um certo equilíbrio. Essas demandas levam o clínico a flexibilizar o enquadre

terapêutico, no que se refere ao horário, local e tempo devido às necessidades, por

exemplo, de visita domiciliar, ou em situações de crise aguda.

19

A relação terapêutica na crise requer do terapeuta algumas posturas e

características. O principal na emergência1 é propiciar condições para que o paciente

exponha sua problemática, perguntar a respeito de sua vida pode fazê-lo sentir bem no

ato de falar evitar a atuação. A atuação é um ato cometido de maneira impulsiva,

geralmente auto ou heterogressivo (STERIAN, 2003).

A autora destaca que nas terapias de emergência é muito importante que o

indivíduo tenha o paciente em vista para evitar sentimentos de perseguição e facilitar o

estabelecimento de uma boa relação. A aceitação incondicional, o continente para Bion

(apud STERIAN, 2003) é ingrediente do tratamento para portadores de transtornos

psíquicos graves ou com o ego enfraquecido, que tem como única maneira de suportar

estar uma relação terapêutica, o apoio. Trata-se de uma postura receptiva e acolhedora

do terapeuta com intervenções que reforçam o ego e estimulam uma transferência

positiva. O paciente precisa de apoio para adquirir a capacidade criativa, para o

pensamento novo sobre si, e sobre o mundo (CORDIOLI, 1998).

A escuta psicanalítica não é uma tarefa fácil, pois ela exige uma suspensão de

valores. É uma escuta atenta ao sentido pleno da palavra. A simples escuta abre espaço

para a fala e surge como um apelo ao sentido, à verdade do sujeito. É comum encontras

pessoas adoecidas, presas nas malhas do discurso familiar, social, incapazes de

criatividade. Deve-se evitar colocar-se no lugar de detentor do saber, sem infantilizar ou

diminuir o outro e impedi-lo de fazer escolhas (STERIAN, 2003).

A autora desconstrói a sessão com um tempo pré-definido, podendo se estender

por minutos ou mesmo horas. O setting terapêutico ou enquadre, não se limita às

demarcações tempo-espaciais. É um lugar, em que se exerce o papel de terapeuta e

paciente ou pacientes, em relação. É através da demanda, introdutora do sujeito a ordem

simbólica, que o terapeuta se vinculará ao paciente.

Na terapia rápida, não há tempo para esperar que o insight2 aconteça, o terapeuta

deve estimular a elaboração, oferecendo possibilidades, palavras que ajudem a

simbolizar a vivência do sujeito (STERIAN, 2003). O terapeuta com a atitude

terapêutica será um “ego corporal” conforme proposto por Winnicott. Nesta relação “o

cliente é o enigma e a chave para sua decifração” (WINNICOTT; 141: 1975). O

planejamento do tratamento é dado com o estreitamento do vínculo e é o cliente quem

1 Vinda do latim emergere, traduzido como emergir, mostrar-se, sair debaixo, situação crítica (STERIAN, 2003). 2 É um instante de conhecimento sobre, do inglês “in” interno, “sight” é visão (CORDIOLI, 1998).

20

dará a medida das coisas, cabe ao terapeuta aceitação e respeito por este outro que

demanda cuidado (MASSIH, 2000).

A psicoterapia de apoio, de base analítica, contribui com o atendimento do

paciente em crise (CORDIOLI, 1998). Ele indica tal procedimento para pacientes sem

grandes condições de insight, para psicoses, pessoas em situação de transtornos severos

de personalidade, com retardo mental, ou problemas físicos debilitantes. O seu objetivo

é de prevenir uma situação agravante, e desenvolver capacidade de enfrentar outras

crises. Tenta manter ou restabelecer o reforço do ego, reforço dos mecanismos

adaptativos, a capacidade de lidar com déficits provocados por uma doença, visando à

diminuição das tensões. A transferência3 não é interpretada, apenas quando cria

barreiras no processo terapêutico.

Conforme o autor, o suporte familiar é importante em casos de paciente com

transtornos mentais graves e pessoas com idéias suicidas. Nas intervenções em crise

busca-se por meio de técnicas proporcionar o alívio e retorno ao equilíbrio. Podendo

ocorrer à remoção do ambiente, o afastamento do fator estressante ou situação

conflitiva, associar a psicofármacos, e a técnicas de respiração e relaxamento.

O terapeuta é ativo, apoiador, elogia, utiliza técnicas de catarse, informação,

orientação, confrontação, busca de alternativas, role-playing4. Tem função de suporte,

fazendo o holding nos termos de Winnicott (1975), como um modelo de identificação.

Ocorre o estabelecimento de uma relação de dependência para posteriormente acontece

o processo de individuação e a aprendizagem pode ocorrer por imitação ou por

identificação com a assimilação de um atributo do outro.

Ainda com relação a psicoterapia de apoio, podem ser utilizadas as técnicas de

ventilação, catarse, sugestão, esclarecimento, aconselhamento, confrontação. Neste

método, a catarse se dá na narrativa detalhada do passado, com descarga de afetos e

emoções, proporcionando experiência de alívio e possível re-elaboração. O foco é no

“aqui agora”, na vida atual. E as sessões podem ser quinzenais, mensais, semanais ou

diárias, dependendo do caso. Tarefas para casa podem ser passadas, envolvendo,

quando necessário, membros da família. (CORDIOLI, 1998).

3 A transferência esta presente em toda relação, seria uma atualização de vínculos anteriores e de desejos inconscientes, uma resistência ao novo (GAYOTTO, 2003). 4 É uma técnica criada por Moreno (1975) em que os papéis sociais são “vivenciados” e elaborados.

21

O trabalho em grupo também é bastante utilizado na clínica psicossocial, não

apenas por proporcionar atendimento a um maior número de indivíduos em menor

tempo, mas por ter especificidades que o grupo oferece enquanto efeitos terapêuticos.

Afinal, as diferenças culturais e de classe podem interferir bastante na

intimidade, o compartilhar de códigos, vestes favorece ou dificulta a identificação e

proximidade. (TUNDIS & COSTA, 1997). No grupo a relação de igual para igual

permite que essa identificação ocorra além de permitir ao cliente que este desempenhe

também um papel de cuidador. É importante que o terapeuta trabalhe o que foi

manifestado confrontando com os demais membros do grupo favorecendo uma

implicação deste com a temática (MORENO,1997).

A percepção de outras pessoas com os mesmos ou diferentes problemas, faz com

tenham esperança de superar as dificuldades e permite uma visão mais realista delas. O

grupo possibilita ser útil ao outro, a catarse, a ventilação das emoções. Permite lembrar

e elaborar as vivências do grupo primário, e os sentimentos de pertença melhoram a

auto-estima. É possível perceber com maior facilidade no grupo os fenômenos de

disputa, de controle de impulsos, sendo indicado para pacientes agudos (CORDIOLI,

1998).

Pichon-Rivière (2005) considera as neurose e psicoses como uma perturbação na

apreensão da realidade, através de papéis, funções sociais. A aprendizagem ocorre

mediante identificação com o objeto do conhecimento e a penetração nele. Ele aponta

para lacunas no saber psicanalítico, a questão da aprendizagem e a psicoterapia grupal,

levando em consideração tais aspectos desenvolve os grupos operativos, como um

modo de intervenção.

O grupo operativo oferece a oportunidade de co-participação do objeto mental e

conseqüentemente de alterações no esquema referencial. O esquema referencial é o

conjunto de conhecimentos e atitudes, a sua relação consigo e com o mundo,

semelhante ao campo conceitual definido por Kurt Lewin (1970). A finalidade do grupo

é de criar situações de “espelho” em que os participantes se reconheçam como parte do

grupo e ao mesmo tempo separados deste (PICHON-RIVIÈRE, 2005).

O grupo operativo pressupõe a existência dos esquemas referenciais individuais

que adquirem uma unidade grupal sustentada pelos esquemas referenciais individuais. A

didática, a função de educar, de despertar interesse, e de estimular se faz presente para o

coordenador e membros do grupo. Assim ocorre no grupo uma unidade entre ensino e

aprendizagem, instaurado um processo dialético. No processo de ensino-aprendizagem

22

surge também resistência a mudança, e cabe ao coordenador manejá-la. A finalidade do

grupo operativo é de troca e de reflexão. Para Pichon (2005) o esclarecimento das

ansiedades implícitas e a resolução de tarefas coincidem com a “cura”, com o

aprendizado e a construção de um novo esquema referencial.

A investigação social vem adquirindo importância, contribuindo para a

resolução de problemáticas sociais agudas. A análise das ideologias é uma tarefa

implícita do coordenador. O termo ideologia neste caso é entendido como um sistema

de pensamentos que orientam a ação, que ao funcionar de maneira mais ou menos

consciente pode atuar como uma barreira e impedir novas soluções. O coordenador atua

como um orientador, favorecendo a comunicação intragrupal e tentando evitar

discussões frontais e diminuir ansiedades. A sua função é obter uma comunicação que

se mantenha ativa e criadora (PICHON-RIVIÈRE, 2005).

Para ele as transferências acontecem na formação de vínculos e no “aqui agora”

podendo se desfazer e ressurgir de outro modo e em outro lugar. O grupo sempre se

propõe a uma tarefa seja ela implícita ou explícita. Neste meandro aparecem fantasias e

ansiedades inconscientes que o coordenador deve ser capaz de ser continente. O papel

do coordenador é o de facilitar a comunicação e dar continente ao grupo, revelando as

tarefas implícitas e explícitas do grupo (ZIMMERMAN & OSÓRIO, 1997).

Com esse arcabouço teórico construí minhas intervenções individuais e em

grupo. Atividades as quais descreverei mais detalhadamente no decorrer deste trabalho.

A seguir farei uma tentativa de situar o meu estágio em termos institucionais e

temporais.

23

2- APRESENTAÇÃO DO LOCAL E

CONDIÇÕES DO ESTÁGIO

O estágio foi realizado de novembro de 2006 a agosto de 2007, em um Centro de

Atenção Psicossocial, em convênio com a Universidade Federal de Pernambuco

(UFPE). Ele aconteceu em dois momentos. No primeiro momento, as atividades

realizadas corresponderam a quatorze (14) horas semanais totalizando duzento e treze

(213) horas. No segundo momento, atingi um total de trezentas (300) horas com carga

horária semanal de aproximadamente dezenove (19) horas.

O CAPS em questão era uma instituição pública, sob a responsabilidade da

Prefeitura do Recife - PE. Um serviço de saúde mental de caráter substitutivo ao

internamento psiquiátrico, cujo público-alvo é o de pessoas com idade maior ou igual a

quinze (15) anos, portadoras de transtorno mental grave, e em situação de

desorganização psíquica. De acordo com seu projeto terapêutico institucional em 2002,

o seu objetivo é acolher essas pessoas e contribuir para a sua reabilitação. Os pilares do

projeto institucional são os princípios do SUS e da reforma psiquiátrica tendo a

psicanálise como uma referência para uma escuta clínica atenta à palavra do sujeito.

Acredito ter alcançado meus objetivos iniciais de conhecer o funcionamento do

serviço inserido no contexto do Sistema Único de Saúde e da reforma psiquiátrica e

pensar em possibilidades interventivas coerentes com a proposta da instituição;

identificar e refletir sobre o lugar que ocupa o psicólogo nela; e exercitar a

atitude/escuta clínica do psicólogo.

Escolhi estagiar nessa instituição pelas possibilidades em lidar com variadas

formas de atendimentos: em grupo, individuais, familiares, domiciliares e pelo interesse

em trabalhar com uma equipe multiprofissional realizando um trabalho interdisciplinar.

Também por ter participado em minha vida acadêmica de atividades extra-curriculares

no diretório acadêmico, movimento estudantil, e me aproximou de estudantes de outras

áreas e da discussão da saúde pública e da reforma psiquiátrica.

A equipe técnica do CAPS é composta por profissionais de terapia ocupacional

(3), assistentes sociais (2), médicos psiquiatras (2), enfermagem (2), psicólogos (4),

residentes e estagiários de psicologia, medicina, enfermagem e terapia ocupacional.

Conta ainda com uma equipe de apoio com administradoras (2), auxiliar de enfermagem

24

(2), vigilantes (2), recepcionista (1), auxiliar de serviços gerais (1), e (1) auxiliar de

limpeza.

Este CAPS se organiza em três gerências: clínica, administrativa e operativa,

sendo a minha atuação como estagiária não limitada, mas situada na clínica. A

assembléia e a reunião da equipe técnica são espaços no qual são discutidas e tomadas

decisões a respeito do funcionamento da instituição, além do conselho gestor. O serviço

no qual estagiei é ainda responsável por duas residências uma feminina e a outra

masculina e é sede da equipe avançada do distrito5.

Durante o estágio participei de todas as atividades do serviço, desde organização

de eventos ajudando os auxiliares de serviços gerais, aos grupos organizados por

profissionais diversos que aconteciam sistematicamente conforme descreverei adiante.

Tais vivências proporcionaram uma visão mais global da instituição, sem perder de

vista o meu lugar enquanto estagiária de psicologia.

5 A equipe avançada era composta por uma terapeuta ocupacional, três psicólogas e uma médica psiquiatra e tem como meta das suporte e acompanhamento ao atendimento aos usuários do distrito.

25

3. DESCRIÇÃO DO TRABALHO

As atividades sistemáticas que existiam neste CAPS eram de triagem, grupo

Bom dia/Boa tarde, grupo Movimento, grupo Cidadania, grupo Operativo, de

Familiares, de Educação em saúde, de Terapia ocupacional, atendimento

individual/família; assembléia, oficinas, reunião técnica e de supervisão institucional e

comemorações festivas. Cada uma dessas atividades possuía uma especificidade:

� A triagem era uma atividade exercida por um técnico que poderia ser acompanhada

de outro profissional ou estagiário. Tinha o objetivo de acolher o usuário e sua família e

avaliar se a demanda é pertinente ao serviço do CAPS ou se poderia ser dado um outro

tipo de encaminhamento a partir da demanda apresentada;

� O grupo Bom dia / Boa tarde acontecia no início de cada turno com o objetivo de

acolher os usuários favorecendo sua integração e de informar a respeito das atividades a

serem realizadas;

� O grupo Movimento objetivava diminuir os efeitos da medicação e proporcionar

momentos de cooperação e aumento da consciência corporal;

� O grupo Cidadania visava estimular a formação de uma consciência crítica e de

direitos.

� As assembléias seguiam a mesma linha de objetivo do grupo cidadania, com a

diferença de ter um caráter mais prático e deliberativo, funcionavam como espaços de

escuta para sugestões e queixas dos usuários;

� O grupo de Educação em Saúde tinha como a meta ampliar a noção de saúde e

doença, favorecer a compreensão da doença, a importância e possíveis efeitos colaterais

dos medicamentos no tratamento desta, bem como discutir assuntos relacionados à

prevenção e promoção da saúde;

26

� O grupo Terapia ocupacional era um espaço de interação e criatividade no qual os

usuários eram estimulados a construir objetos e a realizar atividades que poderiam

intermediar e facilitar a realização de laços sociais6;

� O grupo Operativo acontecia para contribuir com o entendimento da saúde/doença

bem como das relações interpessoais familiares, institucionais e sociais;

� Atendimento individual/família era um espaço de escuta terapeuta que favorecia a

compreensão e acompanhamento do usuário, valorizava a subjetividade do atendido e

podia trabalhar as relações intrafamiliares possibilitava mudanças de papéis podendo

flexibilizar o lugar enrijecido de doente;

� O grupo de família oferecia um espaço de troca de experiências com relação ao

acompanhamento do usuário e possibilitava a equipe conhecer a respeito da intensidade

dos vínculos estabelecidos.

� As comemorações festivas serviam para integrar e inserir o usuário nos contextos

familiares e da comunidade interna e externa ao CAPS possibilitava romper barreiras de

preconceito e de invisibilidade;

� Reunião de supervisão institucional funcionava para proporcionar apoio e

discussões dos casos e das atividades do CAPS, das relações interpessoais,

� Reunião técnica era semelhante à supervisão institucional, porém sem o

acompanhamento da supervisão com profissional externo e um caráter mais prático e

deliberativo;

Durante o meu estágio percorri todas essas atividades, com maior ênfase na triagem,

ao grupo operativo, no atendimento individual/familiar, na reunião com a equipe técnica

e a supervisão institucional.

6 Utilizo esta palavra no sentido empregado por Ana Maria Vasconcelos em 23/11/2006 durante a supervisão da equipe técnica, se refere a capacidade de perceber e responder ao outro.

27

Cronograma de atividades realizadas:

*As atividades internas correspondem a atividades (descritas como o grupo

Movimento e a assembléia, por exemplo) que não são responsabilidade do profissional

de psicologia, mas que eu poderia estar me inserindo dependendo da demanda e da

disposição da instituição em um dado momento.

* As atividades externas eram atividades como as comemorações, eventos,

palestras, passeios, reuniões, visitas domiciliares ou a residência terapêutica promovidas

pelo CAPS ou em que estava representando a entidade.

Essas atividades supracitadas estarão mais descritas e comentadas no capítulo a

baixo, no qual farei compartilharei situações, indagações, pensamentos que me deparei

ao longo do estágio, do fazer-me psicóloga.

4. DESCRIÇÃO RFLEXIVA DAS TAREFAS

Atividade nov. dez. jan. fev. mar. abril maio jun. jul. ag. Hora

Participação ativ. interna * 12h 12h 6h 2h 5h 2h 3h 2h 2h 1h 40

Participação ativ. externa * 6h 6h _ 3h 13h 4h 4h 6h 4h _ 46

Reunião técnica 6h 8h 8h 4h 6h 6h 5h 6h 6h 4h 59

Supervisão Institucional 8h 8h 8h 8h 6h 6h 6h 4h 4h _ 58

Supervisão clínica 5h 5h 6h 3h 6h 8h 8h 6h 8h _ 55

Grupo Ressocializar _ _ 4h 4h _ _ _ _ _ _ 8

Triagem 1h 2h 2h 3h 6h 5h 7h 5h 9h _ 40

Grupo Operativo * _ _ 2h 1h 8h 8h 2h 2h _ _ 23

Atendimento individual _ _ 4h 4h 8h 6h 8h 6h 6h 1h 32

Escuta de apoio 2h 2h 1h 3h 4h 2h 4h 7h 7h 2h 34

Atendimento familiar 2h 2h 2h 5h 3h 2h 4h 4h 3h 1h 27

Supervisão UFPE 12h 9h 9h 6h 12h 15h 12h 12h 12h 9h 86

Total 54h 54h 43h 35h 64h 64h 63h 60h 61h 18h 513

28

E DESAFIOS ENCONTRADOS

É difícil caracterizar um Serviço de Psicologia dentro do CAPS, pelo fazer do

psicólogo encontrar-se diluído em atividades que são comuns aos demais técnicos.

Dentro das atividades realizadas estão: a reunião técnica, a supervisão institucional, a

realização de triagens, de atendimentos individuais e familiares, visitas domiciliares,

participação em eventos culturais e educacionais, grupo Ressocializar e os grupos

Operativos.

Inicialmente, caminhei por outros grupos com o objetivo de conhecer melhor o

serviço e o trabalho dos demais profissionais como observadora participante7. Mais

adiante passei focalizar minhas energias em atividades como triagens, nos grupos

Operativos, Ressocializar, atendimentos individuais e familiares e escutas de apoio.

Para desempenhar tais responsabilidades me foi dado um suporte técnico, com

orientações tanto do ponto de vista do fazer como do elaborar esse fazer que serão

descritas a seguir.

4.1. Atividades de orientação e estudo:

4.1.1. Reunião técnica

A reunião técnica era quando se compartilhavam os novos casos e se decidia o

técnico de referencia responsável, discutia-se casos em que havia dificuldades e

possíveis ações, eram dados informes de alta, entre outros. Funcionava como

interdisciplinarmente, com troca de informações, discussão e tomada de decisões tanto

no âmbito técnico como administrativo.

4.1.2. Supervisão institucional

Um espaço de discussão e reflexão sobre nossas práticas, que acontecia

quinzenalmente acompanhado por uma supervisora externa de orientação psicanalista.

Nele discutimos qual o lugar de cada profissional no trabalho interdisciplinar e ficou

7 A observação participante, de acordo com a visão sócio-histórica em Freitas (2003), se aproxima da corrente interpretativa, com o diferencial de atribuir significados com os sujeitos e não sobre os indivíduos. A pesquisa, neste sentido, é tida como um encontro entre sujeitos e nesse jogo dialógico o pesquisador constrói uma compreensão da realidade transformando-a.

29

clara a peculiaridade das profissões na prática se dá na formação do olhar de cada um,

além das distintas responsabilidades nos grupos e particularidades como a

administração de medicamentos e prescrição privativa do farmacêutico e médico.

A supervisão favoreceu a construção de um saber a respeito de como se

organizam as atividades, a função de cada um/uma neste processo. O papel do CAPS

como uma instituição que dá continente ao indivíduo em intenso sofrimento psíquico,

este indivíduo que não esta sendo capaz de simbolizar seu sofrimento de modo a torná-

lo menos intenso e bizarro. Observei como a psicanálise pode contribuir para uma

escuta mais cuidadosa do profissional de saúde mental, uma escuta voltada para a

história do sujeito compreendendo os possíveis sentidos e significantes marcados por

esta.

Ao discutirmos os casos, a equipe se dava conta da importância de dar lugar à

fala do usuário, de olhar qual o lugar que ocupa em sua família e em suas relações, o

lugar que é dado pela sua família, da importância de conhecer a pré-história do sujeito, a

origem do nome. Era recomendado ficarmos atentos ao significante (palavras ou atos)

que se repetem impulsionando mudanças de comportamento.

Questões relativas ao papel do CAPS na rede de cuidado eram levantadas: diante

da falta de absorção dos usuários do CAPS pelos ambulatórios, o que fazer? Esbarrando

em seus limites institucionais, no papel de cada um dentro do serviço, e no que vem

sendo feito para a reformulação do projeto terapêutico institucional. Participei do início

da reformulação do Projeto Político Pedagógico da instituição, uma excelente

oportunidade de questionar práticas já naturalizadas.

Em conversas informais, pude perceber a dificuldade dos profissionais que não

tiveram uma leitura mais aprofundada em psicanálise de acompanhar a supervisão pela

linguagem própria que é do saber da psicanálise. Vieira (1997) comenta a respeito da

relação com os colegas profissionais de outras áreas de saúde, ou mesmo os que

utilizam outros suportes teóricos. Há de se comunicar numa linguagem comum e

simplificada de modo a promover o diálogo, imprescindível para o trabalho em conjunto

em prol do cliente. Havia uma predisposição da supervisora em relação a um

conhecimento minimamente compartilhado, com a leitura de textos sobre a psicose

lacaniana, contribuições da psicanálise a atenção à saúde mental, porém os textos não

eram de fácil entendimento nem para a equipe nem para mim.

A imposição da supervisão institucional pela gerência do distrito era motivo de

resistência para a equipe, apesar de reconhecerem as contribuições dela. Parece que o

30

fato de ter sido uma imposição remete a supervisora a uma autoridade autoritária e

silencia os incômodos. Questiona-se a necessidade do profissional que não é psicólogo

ou psicanalista ter uma escuta analítica, afinal esses profissionais não escolheram por

um lado trabalhar a subjetividade8 na escolha de suas profissões, entretanto, escolheram

de algum modo quando vieram para o campo da saúde mental.

Posto isso, acredito que é preciso avançar assumindo essa escolha em direção à

noção de saúde postulada pelo SUS, saúde como bem estar psicossocial, enxergando o

sujeito como um ser de múltiplos aspectos a serem levados em consideração.

4.1.3. Supervisão Clínica

A supervisão clínica acontecia via de regra semanalmente, havendo momentos

em que por demandas institucionais não ocorriam. Foi lugar de questionamentos, de

discussões de casos acompanhados sob um olhar psicanalítico, fizemos também

planejamento de atividades como o desenvolvimento e implementação do grupo

Ressocializar. Nele lemos os textos “O brincar e o significante” de Rodolfo Rodulfo,

“Emergência psiquiátrica” de Sterian, “A instituição estourada” de Maud Mannoni.

Houve alguns intempéries durante o estágio, pois minha primeira supervisora

entrou de licença temporária, de férias e ao final do estágio em Julho tirou licença por

tempo indeterminado. Apesar desta minha falta de sorte, percebi por parte desta

supervisora grande disponibilidade, mesmo durante as férias pude incomodá-la com

questionamentos a respeito deste relatório. Ademais a atual supervisora sempre esteve

comigo nos momentos de ausência da supervisora anterior, o que facilitou a mudança,

pois já havíamos criado um vínculo de confiança e troca.

4.1.4. Orientação da UFPE

Eram realizados esclarecimentos de como construir e monitorar o plano de

estágio e, além disso, problematizava como me projetar neste lugar de aprendiz em

direção ao de uma profissional. Ao estagiário, segundo Vieira (1997), cabe certa

independência do supervisor para tomar decisões, planejar ações em conjunto com este,

e fazer articulações teórico metodológicas saindo do lugar passivo de aluno para o lugar

8 Ao trabalhar a subjetividade o foco seria a percepção, os valores, os sentidos que o sujeito dá

ao mundo. O trabalho com a subjetividade é um trabalho que leva em consideração os aspectos subjetivos.

31

construtor de aprendiz. Essas atitudes exigem a quebra das relações de poder

normalmente estabelecidas e da tendência ao “aplicativismo” de uma teoria a diversas

situações em variados contextos sem uma adequação a realidade (VIERA, 1997).

A respeito da psicologia, discutimos esta inserida na proposta do SUS de

interdisciplinariedade, integralidade, do cuidado em rede. Foi observada a necessidade

do profissional de psicologia de dialogar com os demais cuidadores do seu cliente para

proporcional um trabalho mais eficaz. Olhar para aspectos que não são privativos do

psicólogo, mas que fazem parte do cotidiano e das demandas do sujeito, como trabalhos

de prevenção, como a situação física, sócio-econômica. Conversamos a respeito de uma

nova clínica, a clínica psicossocial e do trabalho interdisciplinar.

Os seminários apresentados por colegas e por mim narrando nossas experiências

e inquietações contribuíram para a reflexão a respeito da psicologia, qual o lugar que

vem ocupando. Como nós estudantes estamos nos apropriando deste saber e para o quê.

A construção e apresentação do meu seminário em conjunto com uma colega, estagiária

do local, também foi um processo de amadurecimento no qual repensei o meu estágio e

me mostrei enquanto uma praticamente-profissional.

4.2. Atividades de campo

4.2.1. Participação atividades internas não-específicas

Incluiu festividades de comemoração do Natal, da Páscoa, do São João, a

observação participante no grupo de Família, de Cidadania, Educação em Saúde e de

Terapia Ocupacional, na Assembléia, e no grupo Boa tarde. Inicialmente, com maior

intensidade dos grupos citados para que pudesse compreender a respeito do

funcionamento da instituição. Os estudos, discussão com a equipe e evolução de

prontuários, elaboração de laudos foram importantes para pensar na evolução dos casos

e possíveis intervenções. Todos esses processos facilitaram o entrosamento com os

técnicos, funcionários de apoio para um trabalho interdisciplinar e a aproximação dos

usuários e familiares.

4.2.2. Participação atividades externas

Houve passeios no shopping com moradores e moradoras das residências

terapêutica masculina e feminina, caminhadas na jaqueira e ao redor do quarteirão com

32

os usuários, além de visitas domiciliares. Tive necessidade de ir ao hospital psiquiátrico

Ulysses Pernambucano (HUP) em busca de mais informações a respeito de uma usuária

com sucessivos internamentos na instituição, de acompanhar uma usuária ao hospital

maternidade Barros Lima para marcação de parto cesária e conversa com o médico

responsável.

Participei ainda de uma capacitação em “Intervenções em crise” pela prefeitura

do Recife, de reuniões com outros CAPS e coordenação de Saúde Mental da prefeitura a

respeito da ressocialização, reuniões do Núcleo da Luta Antimanicomial e da

participação de um seminário organizado pelo núcleo.

4.2.3. Triagem

Foi um momento de acolhimento, de escuta, também um momento de enquadre

“este caso é para o CAPS Esperança?” (sic) era sempre a pergunta final, levando em

consideração as repercussões que pode ter um tratamento neste tipo de instituição na

história do sujeito, que o CAPS atende a pessoas com transtorno mental grave e em

situação de crise.

O trabalho num contexto de crise, segundo Vieira (1997), visa à ativação do

núcleo familiar, geralmente os pacientes chegam aos serviços acompanhados por

familiares, pessoas significativas ou pessoas da rede social extensa (população em

geral, polícia).

O autor aponta como é importante observar se é uma demanda espontânea do

cliente, da família, ou um encaminhamento médico, se é uma solicitação terapêutica ou

uma “encomenda” de cura e custódia. A demanda que chega geralmente é médico-

custodial, são queixas da família relativas a desvio de comportamento e necessidade de

medicalização, com uma noção de psicose ligada à doença e degeneração, demanda que

vai de encontro aos objetivos terapêuticos. Essa urgência e pressão dos familiares para

com os profissionais de saúde quando esses são “colocados na parede” deve ser

acolhida e sendo programada ao menos com uma hipótese de trabalho.

O contrato terapêutico é realizado após a triagem e negociado com o cliente

levando em conta a relação de poder e contra-poder. A diferenciação de adesão e

aderência é feita pelo modo como o contrato é realizado, na adesão ocorre o diálogo, na

aderência a relação é anti-dialógica. E as intervenções devem ser realizadas com o

33

cliente e sua família, mostrando horários de atendimento e profissionais em caso de

urgência e esclarecer as etapas do tratamento previstas. (VIEIRA, 1997)

Chamou minha atenção um rapaz, ele veio ao serviço acompanhado de sua

esposa grávida. Já havia sido usuário do CAPS, portanto, demoramos um pouco (eu e

minha supervisora) para ler seu prontuário, nele havia uma hipótese de esquizofrenia

paranóide, porém poucos dados que o comprovasse.

Durante a triagem, pudemos perceber que apesar do discurso desorganizado

apresentado, sua demanda não era de tratamento: “a minha mulher está com um pedaço

de mim...” (sic), a mulher dele esta grávida. Ele afirma: “Eu tenho que vir aqui... pra

quê? Eu tenho que me esforçar... eu tenho cuidar dos dois” (sic) a entrevista foi

interrompida, pois ele pediu para arrumarmos comida para os dois.

Depois de alimentado, contou das condições precárias em que vivia e que tinha

uma perícia marcada. Eles precisavam de dinheiro e a sua ansiedade girava em torno

disso, era uma necessidade econômica e nesse ponto a psicologia esbarrava em seu

limite. Foi acolhido na instituição para um acompanhamento semanal e

encaminhamento para o uma instituição de assistência social com o objetivo de

conseguir algum auxílio como cesta básica, por conta da sua situação de extrema

pobreza.

Impressionante ver pessoas que se colocam (ou são colocadas?) no lugar de

loucas para obter aposentadoria por invalidez. Pessoas exagerando sua situação, ou

sintomas, para convencer aos outros (e talvez a si própria) de estar em crise. Ter um

lugar mesmo que esse lugar seja de pouco valor, de louco. A miséria não só é fonte de

sofrimento e adoecedora, como influencia na tentativa de “enlouquecer” para obter

alguma fonte de renda.

4.2.4. Escuta de apoio / acompanhamento:

Era uma atividade realizada no cotidiano do CAPS, em que me dispunha a

ouvir as queixas, medos, dúvidas dos usuários que procuravam espontaneamente por

apoio. Nesta função, lembrei-me da descrição dada por Moratto (1999) do plantão

psicológico, de ser um “plantão”, uma planta grande, que acolhe e dá sombra aos

viajantes, passageiros.

34

Uma ilustração foi o caso de Maura9. Ela era diagnosticada como portadora de

transtorno bipolar, ao engravidar, deixou por conta própria de tomar os medicamentos,

atribuiu a perda do “lítio” a sua crise e conseqüentemente: “tudo por causa desse

menino” (sic).

Maura ficava irritada facilmente, principalmente quando lhe diziam: “tenha

calma!” (sic) ameaçava agressão física com palavras, queixava-se de muitas faltas, do

marido, dos pais, dos irmãos, de dinheiro, de força, de vontade, de saúde. Ela em sua

família tinha a obrigação de estar calma, de cuidar de todos sem ser cuidada. Sua

madrasta, entes de morrer deixou a obrigação de cuidar da família nas mãos de Maura

que tentou obedecer sem sucesso, sua família a rejeitava inclusive, com maus tratos

físicos de suas meia-irmãs. “Tenha calma!” (sic) parece ter sido um significante para

Maura, representando sua submissão em relação aos outros, ela se afetava ao ouvir isso

e ao mesmo tempo, provocava esse tipo de intervenção.

Solicitava muita atenção da equipe, falava muito e acelerado. Disponibilizei-me

a ouvi-la algumas vezes, fazendo esclarecimentos, por exemplo: “parece esta se

sentindo só nesse momento” (sic), questionando: “Como é isso para você?” (sic) . Ela

dizia aos demais usuários: “essa moça é muito boa, ela é muito tranqüila, a pessoa fala

com ela chega fica mais calma” (sic), sinalizando o estabelecimento de uma

transferência positiva, a função de continente proposta por Bion estava sendo realizada.

Aos poucos, esse menino deixou de ser causa de desprazer e passou a ser “meu

lítio” (sic), fonte de prazer e segurança. Posteriormente, passou a chamá-lo de “meu

bebê” (sic) doando um nome para cada possibilidade de sexo da criança. Este trabalho

da equipe foi inclusive, um trabalho prevenção, pois a criança que inicialmente era

excluída foi se transformando para Maura até ter se tornado objeto de desejo.

A escuta de apoio oferecida por mim parece ter sido importante para Maura,

pois na sua readmissão ainda durante a gestação escolheu-me como sua T.R., logo em

seguida explico o significado e sentido desta sigla.

4.2.5. T.R.

A tradução da sigla T.R. no projeto terapêutico e no meu plano de estágio é de

técnico referência. Porém não sou considerada uma técnica, sou estagiária, portanto para

9 Os nomes próprios citados para exemplificar casos e situações neste trabalho são fictícios. Escolhi usar nomes próprios para tornar menos impessoal a narrativa do que a utilização meras de siglas, e são fictícios para preservar o sigilo e integridade dos clientes.

35

evitar crises existenciais do tipo: “quem sou eu?” sendo técnica referência sem ser

técnica. Decidi tomar “T.R.” pela tradução de terapeuta referência. Essa escolha pode

ser polêmica para alguns: “todos são terapeutas?”. É inclusive estranho para mim, que

ouvi durante toda minha formação de psicologia “a escuta clínica” e a psicoterapia

como sendo uma prática quase privativa do psicólogo.

A palavra “terapeuta” veio do grego therappeutes que significa assistente,

criado. Foi primeiramente utilizada para designar aquele que auxiliava a expulsão de

demônios dos corpos possuídos (MORENO, 1975). A semelhança que preserva esta

palavra não esta no fato de extrair o mal no outro, mas no sentido de contar com o outro

para realizar essa expurgação. Penso que no CAPS, todos os funcionários, incluindo a

copeira, a atendente, o vigilante, o de serviços gerais, os do setor administrativo são

cuidadores, são terapeutas. Terapeuta no sentido descrito por Moreno (1975), Massih

(2000) e Winnicott (1975) de cuidadores e facilitadores da “cura” do outro por ele

mesmo. O trabalho do terapeuta ao que me consta seria basicamente o de escutar-

acolher a fala do outro situando-o em um lugar no mundo, testemunhando sua

existência. A linguagem é considerada o modo como o significado das coisas pode ser

trazidas à tona (CRITELLI, 1996). Possibilitar neste escuta a expressão do vivido era a

possibilidade de modificações desse.

A relação terapêutica é abrigada numa instituição e em seu circuito de poder,

poder do terapeuta e contra-poder do cliente, a instituição permite a existência de uma

lei que regulamenta e possibilita a relação (VIEIRA, 1997).

O CAPS possui algumas regras que nortearam a minha atuação enquanto

terapeuta referência, um controle de freqüência e de intervenções como visita

domiciliar, atendimento familiar. Ocorrendo a falta do usuário, o qual sou responsável

por acompanhar, é minha obrigação fazer contato telefônico. Tenho obrigação de

manter o prontuário atualizado, decido sobre a continuidade ou não do tratamento,

elaboro o laudo justificando a mudança de modalidade terapêutica e a alta, realizo

atendimentos individuais e familiares.

Ser T.R. proporcionou uma maior aproximação do usuário, com a qual escutava

e intervia. Os atendimentos individuais quebraram as barreiras do modelo consultorial

de um setting entre quatro paredes. Primeiro, que o atendimento individual não é

psicoterapia processual, são momentos de escuta, acolhimento e intervenção que surte

efeitos terapêuticos. Segundo, porque acaba com a noção de privado, a conversa

acontece e por vezes é complementada por algum outro usuário ou funcionário que se

36

aproxima, naturalmente, tornando o atendimento individual não pelo número de

participantes, mas pelo foco e conteúdo discutido que gira em torno de um sujeito assim

como na psicoterapia de apoio proposta por Cordioli (1998).

Nestas escutas, era preciso estar atenta ao mito familiar. Ele se caracteriza pelo

ambiente em que a pessoa está colocada, o que absorve neste ambiente, os atos, ditos,

normas, as práticas cotidianas. O mito não é facilmente visualizado, em regra geral é

conhecido em partes, o conceito de mito familiar altera a entrevista inicial, pois altera o

seu objetivo, que não é mais saber apenas dados (RODULFO, 1990). O autor considera

imprencidível para decidir se há ou não a necessidade de um tratamento, observar como

está posicionado o sujeito em relação à família. As informações obtidas em uma

entrevista se tornam importantes apenas se alojadas no mito familiar, do contrário serão

amontoados de idéias, histórias, sem um critério organizador.

4.2.5.1. Atendimento individual

O atendimento individual é uma atividade realizada pelo T.R. com o usuário que

acompanha, caracteriza-se por certa periodicidade de escutas, com um objetivo

relacionado ao projeto terapêutico particular. Comigo aconteceu de maneira situacional

e espontânea, através da busca do usuário, como também com meu movimento de

aproximação e às vezes até com hora marcada.

Ocorria tanto em locais onde havia a circulação de pessoas, como de maneira

mais reservada em uma sala de atendimento, a depender da demanda e necessidade de

acompanhamento de cada caso. O tempo de atendimento também foi flexível, não havia

um limite mínimo ou máximo variando normalmente de quinze (15) minutos a uma (1)

hora.

Meu primeiro atendimento enquanto T.R. foi com Margarida, uma mulher de 48

anos, com um histórico de internamentos psiquiátricos sucessivos. Em meu contato

inicial, colocou-me numa posição investigativa, o que lembrava as anamneses das aulas

de introdução a psiquiatria, dizia: “quer saber o nome de meu marido? Anote aí...” (sic).

Referiu sobre sua sexualidade na infância, seu nascimento, casamento, filhos. Eu assumi

a postura investigativa porque achei que seria interessante saber todos aqueles dados e

era o que ela me pedia naquele momento.

Este acontecimento é comentado por Tundis & Costa (1997), quando referem

que muitas vezes o paciente é treinado a agir de certa forma para satisfazer o desejo do

37

terapeuta e se enquadrar na teoria. Nesses casos, o paciente exibe um repertório

minucioso de sua história sem significado ou eficácia. Numa relação entre terapeuta e

usuário, este último pode falar de seus sintomas físicos por acreditar que é o esperado,

para não frustrar adota comportamentos que são de alguma forma mais aceitos do que

outros.

Vieira (1997) acrescenta que com relação ao cliente é preciso haver cuidado por

parte do terapeuta de não sufocá-lo, reduzi-lo e enquadrá-lo em sua teoria, ao contrário

deve levar em consideração o saber deste, sua noção de saúde, de doença, de mundo, de

si. Uma intervenção precipitada pode atrapalhar a relação com o mecanismo da

transferência No entanto, existem certas intervenções que podem ser significantes, pois

geram mudanças. A restituição da busca do significante impulsiona o sujeito a rever a

sua história, essa busca não ocorre como proposta é essencial que o sujeito dê o

primeiro passo (RODULFO, 1990).

Resta saber: o que leva uma pessoa a escolher o hospital psiquiátrico à sua casa?

Tive dificuldades em conhecer a respeito de sua história, pois não estava clara para ela:

“tenho amnésia do passado” (sic), nem para o seu sobrinho ou irmã dela. Estive no

hospital psiquiátrico o qual Margarida “freqüentava” (sic) para conhecer um pouco de

sua história, o que se tornou, no primeiro momento, o projeto terapêutico. Projeto que

falhou, pois Margarida recusava-se a falar de sua história ou ouvi-la por parte de

familiares.

Ela ensinou-me ao se dar alta que a mim cabia oferecer um lugar de escuta e de

atenção, mas no fim cabe ao usuário/cliente escolher se entra ou não em um processo

psicoterapêutico. Mesmo essa pessoa sendo considerada “louca”, ou uma pessoa que

por hora precise de cuidados mais intensificados (como prefiro ver).

4.2.5.2. Atendimento familiar

Espaço de ouvir mais a respeito do usuário e de suas relações familiares. Eram

dadas orientações medicamentosas, do que é ser portador de um transtorno mental,

pensadas estratégias de como conviver com este outro que é diferente e igual ao mesmo

tempo (diferente por não estar fora do padrão de normalidade, igual por ser um ser

humano), fazia-se o acolhimento do sofrimento do familiar em lidar com o usuário.

O atendimento familiar podia ou não ocorrer com a presença do usuário,

dependendo da situação específica sendo preferível a sua presença de acordo com a

38

instituição. Este procedimento pode evitar a perpetuação do segredo familiar através do

vínculo terapeuta-família, além disso, no atendimento em que o usuário esta presente é

possível trabalhar a relação com o familiar.

No tratamento de pessoas com transtornos mentais, o terapeuta é levado a fazer

alguma intervenção sobre a família, no discurso familiar, a menos que acredite que os

familiares irão atrapalhar no tratamento. Senão levarmos em conta o discurso dos

familiares, seus sentimentos e transferências o tratamento é prejudicado, é importante,

entretanto, investir numa distinção de si e do paciente (RODULFO, 1990). Muitas são

às vezes em casos que atravessam as fronteiras da neurose de a história e pré-história ser

de destrutividade, de desejos de loucura, morte e fracasso. O trabalho com família

aposta na mudança do discurso familiar investido no sujeito.

Em muitos casos Vieira (1997) relaciona a “crise psicótica” com relações

familiares de interações patógenas. Essas interações geralmente possuem uma

tendência simbiótica entre o paciente e um membro da família, frequentemente a mãe.

Ele descreve como fatores produtores da loucura: a homeostase familiar patógena,

caracterizada por comunicações paradoxais e duplo vínculo; relações de poder

arbitrárias e ambíguas, como a tendência de eleger um membro familiar como bode

expiatório; a presença de não-ditos segredos, valores, atitudes que se repetem ao longo

de gerações; a contaminação dos significantes com esteriótipos de loucura, e de

periculosidade.

A dinâmica interna familiar tende a se repetir num ciclo vicioso em que o

cliente geralmente se localiza num lugar fragilizado e hostilizado, os familiares

projetam as tensões grupais e o estigma da loucura, de maneira sutil e com o desejo de

contê-lo e retirar seus direitos enquanto cidadãos.

A família muitas vezes se coloca de modo ao terapeuta entrar em conflito com

ela, nessas situações a família tende a se des-responsabilizar, deixando o terapeuta com

um poder arbitrário sobre seu cliente (VIEIRA, 1997). Um exemplo, disso foi quando

liguei para a irmã de Margarida à procura desta e a resposta da sua irmã: “não sei não...

eu não tenho nada a ver com ela mais não!” (sic). O responsável oficialmente por

Marlene era seu sobrinho, apesar dela possuir irmãs e filhos, sua relação com o

sobrinho era uma relação desigual, na qual o sobrinho se impunha por meio de ameaças

e agressões físicas e verbais para obter dela inclusive a adesão medicamentosa e ida ao

serviço.

39

O reforço do circuito patogênico de relações pode acarretar em um aumento das

relações de dependência e simbiose do cliente com um familiar, o reforço do estigma da

loucura e construção de uma “carreira” enquanto doente mental (VIEIRA, 1997).

O grupo familiar pode sanar as ansiedades através do adoecimento de um de

seus membros que assume o papel de bode expiatório, aquele que manifesta as fantasias

e angústias do grupo. (PICHON-RIVIÉRE, 2005). A tentativa de ruptura do circuito

patogênico é uma atitude centralizadora e autoritária do terapeuta que pode levar ao

aumento de tensão grupal, ansiedade, resistência, e deslocamento do bode expiatório10.

A desconstrução desse lugar ocorre por meio da problematização da situação,

propondo ações para a modificação da estrutura relacional estabelecida. O terapeuta

aceita a “crise” em que se encontra o paciente, resultante de estresse vivenciado por

todos familiares. Inicialmente compartilha com a família seu sofrimento, mas

permanecer nesta postura pode culpabilizar ainda mais o cliente, o importante é que a

família se sinta acolhida e co-participe do tratamento. E para isto é necessário explicitar

um acordo de colaborações durante o tratamento (VIERA, 1997).

O cuidado e atenção ao usuário junto a sua família é inerente ao tratamento de

usuários de transtorno mental, segundo Pichon-Rivière (2005) o usuário pode estar no

papel de bode expiatório, resultante das tensões nas relações familiares, expurgado

como louco e doente, sem solução. Trago como exemplo o discurso de um familiar

sobre Margarida: “ela sempre foi meia doidinha... foi de fazer sempre o queria!” (sic) e

o comportamento da usuária de busca por internamentos, deixando de tomar a

medicação ou misturando com bebidas alcoólicas: “não quero ficar aqui não... quero ir

pra Tamarineira... não quero de comida xingada não!” (sic), fala de Margarida

referindo-se ao desejo de ser internada no hospital psiquiátrico Ulysses Pernambucano

e a dificuldade de relacionamento familiar, pois relata que a sua comida era dada com

injúrias, denunciando um lugar de exclusão, um não-lugar adoecedor.

Em visita domiciliar, vi a exclusão estampada na edificação e distribuição dos

cômodos da casa. Margarida ocupava certamente o espaço físico mais desagradável,

praticamente a despensa da casa, morando no vão debaixo da escada sem janelas, as

paredes nuas sem acabamento, com o colchão da cama quebrada mofado (por vezes ela

tinha diurese noturna). Destoava do resto da casa pintada, com eletrodomésticos,

televisão, geladeira, fogão não muito gastos. A justificativa dada pelo sobrinho diante

10 É o eleito de um grupo para representar os desejos, fantasias, sentimentos negativos inconscientes (PICHON, 2005)

40

da diferença berrante foi de que Marlene ameaçou certa vez uma de suas filhas, por isso

improvisaram seu quarto que será melhor organizado, pontuei na ocasião a importância

de uma janela para que o quarto não ficasse tão quente e mofado.

Observei casos em que a família sofria junto com o paciente, outros em que o

benefício do usuário era única fonte de renda familiar, ou a família exagerava nos

sintomas e adoecia o usuário com o objetivo de obter o benefício financeiro oferecido

pelo Estado. Se por um lado o recurso financeiro oferece certa segurança em meio a um

mundo do trabalho opressor e competitivo, por outro reforça o próprio estigma que

combate criando famílias dependentes da doença mental.

Paradoxo difícil de ser resolvido, pois muito do peso atribuído a loucura passa

pelo fato dela não ser produtiva para o sistema capitalista, o louco é um estorvo para a

família, mais uma boca e menos dois braços para trabalhar. Penso que associada à

concessão de benefícios, medidas relativas a atividades que ocorrem já no CAPS como

a inserção em cursos profissionalizantes, as oficinas de arte e artesanato possam

colaborar com a dissociação da loucura/exclusão em direção à autonomia dos sujeitos.

4.2.6. Grupo Ressocializar

Na instituição é possibilitada a influência e contra-influência com objetivos de

reintegração psicossocial e de encontro a processos de marginalização. A teoria da ação

dialógica de Paulo Freire (apud in VIEIRA, 1997) aponta para a superação da tendência

ao autoritarismo e manipulação, e em cooperação o clínico e o cliente buscam entender

e modificar a situação de sofrimento psíquico, no qual é necessário um encontro

terapêutico de conscientização de sua problemática através do pensar/agir de seu estado

de saúde e sua condição sócio-histórica incluindo por parte do terapeuta via instituição o

auxílio transporte, alimentação, acesso a cursos especializantes.

O grupo Ressocializar teve como função facilitar a construção de projetos de

vida viáveis dos usuários para sua posterior alta, o contato com os desejos, as

possibilidades de ação e limites foram constantes. Por ter sido um projeto piloto,

houveram algumas falhas e alterações, o grupo não funcionou como tal, o que aconteceu

na prática foram trabalhos individuais com o compartilhamento ocasional em grupo.

Houve a dissolução do “grupo” Ressocializar tendo sido iniciada pela ação formalmente

mais individualizada, com reuniões mensais em grupo.

41

Semelhante a psicoterapia breve dinâmica, em que há um problema principal a

ser resolvido de acordo com o paciente, ocorreu à delimitação de um foco em acordo

com o paciente (delimitação do tempo em geral 12 a 40 sessões individuais). Neste

processo o terapeuta adota uma postura ativa emprega os conceitos de reforço do ego,

crise, aprendizagem, algumas técnicas cognitivo comportamental como a colocação de

tarefas de casa. São utilizadas técnicas de apoio como sugestão, clarificação, e

aconselhamento e atitudes que visam à obtenção de insight (CORDIOLI, 1998).

Moffat (1984) a respeito da terapia em crise, fala de um esquema de trabalho

com a contenção que não seria uma contenção física, seria um suporte emocional;

exploração do imaginário do sujeito; elaboração de um projeto contendo a história do

sujeito, o discurso familiar, sua situação atual e possível; e a última etapa a da atividade

quando é pensada a re-inserção a atividades sociais e cotidianas.

Porém as idéias e sentimentos do terapeuta e do paciente podem divergir no que

tange as noções de doença e saúde. Determinado comportamento em um olhar desatento

pode estar disforme e ser carimbado como patológico, quando este pode fazer parte de

um contexto cultural desconhecido ou não reconhecido pelo terapeuta. A noção de cura

do profissional pode estar fixada na capacidade de trabalho, realização sexual,

expressão de afetos e efetuação de escolhas (TUNDIS & COSTA, 1997).

Portanto, é preciso estar atenta para não imprimirmos desejos neste sujeito, por

mais esvaziado de sentido que ele esteja. Nem correr o risco de nos abstermos com

relação à atenção a cuidados mínimos, como o caso de Laura. Ela não conseguia dar

continuidade a nada em sua vida, incluindo o tratamento dentário, ela estava prestes a

perder os dentes e nós pensamos em estratégias para realizá-lo, mesmo este não sendo

prioridade para Laura.

O grupo Ressocializar não funcionou conforme o previsto, ele não aconteceu

como grupo, mas sim como projetos individuais sendo pensados e realizados

separadamente. Talvez a dificuldade esteja em trabalhar individualidades coletivamente,

dificuldade esta que se transpassa desta experiência para a própria sociedade moderna

em que o individualismo sobressai ao coletivo. O grupo operativo me parece uma

tentativa de lidar com esse paradoxo, abaixo descrevo como enxergo tal proposta de

trabalho.

4.2.7. Grupos operativos

42

Os grupos geralmente começam com a apresentação das pessoas e da proposta

do grupo operativo pelos usuários para os novatos. Eles costumam definir o espaço

como um lugar para falar dos sentimentos e problemas pessoais. Após essa etapa, o

grupo é convidado a escolher um tema sobre o qual deseja falar, tarefa explícita de

acordo com Pichon (2005). O coordenador geralmente estimula a fala de todos e

procura “costurá-las” buscando encontrar pontos de encontro e desencontro e a tarefa

implícita.

Um exemplo foi um grupo em que o tema escolhido era o tema relacionado “dia

da mulher”, iniciando com relações de gênero, porém ao desenvolverem-se as falas

surgiram questões ligadas à posição que ocupavam na família, no trabalho e observei

que o tema transversal aquelas falas era o de opressão, preconceito de gênero e com a

loucura. Como investigadora social, perguntei: “como é ser mulher para você?” (sic), ia

pontuando as falas, buscando encontrar sentidos, “a respeito do que Antônio disse o que

você tem a dizer?” (sic), “como é ver em Rosângela, a sua esposa?” (sic) essas

colocações iam dando ritmo ao grupo e a noção de grupalidade.

Tive a oportunidade de coordenar de alguns grupos operativos, foi interessante

perceber a diferença nos papéis de observadora participante para coordenadora. Minhas

atenções se deslocavam da simples leitura dos fenômenos grupais sendo compartilhadas

para como eu era afetada pelo grupo e qual intervenção seria importante no momento.

Era interessante perceber que frases aparentemente desconexas do contexto

grupal se inseriam de algum modo a temática e davam forma a ela. Ao devolver como

as falas individuais se ligavam umas às outras, o grupo se sentia menos ansioso e mais

participava. Acontecia nesses momentos processos de inclusão e identificação bastante

terapêuticos.

5. CONSIDERAÇÕES

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Estas considerações não são (nem tem pretensão de ser) considerações finais.

São apenas um começo, de um exercício de reflexão crítica e articulação teórica que

tenho estado comprometida a fazer ao longo de minha vida como psicóloga. É

fundamental para o aprendizado: as dúvidas, os erros, dificuldades, as críticas e auto-

críticas para construção de um novo saber. Sei, porém que não é fácil falar dessas

coisas.

Pois bem, inicialmente estive um tanto perdida e muito interessada no estágio.

Minha supervisora entrou de férias bem após minha chegada. Esse movimento não me

deixou assustada. Pude observar o funcionamento do CAPS com os olhos de uma

estudante curiosa e chata e, sem me importar muito inicialmente com a teoria vivenciar

o contato com os usuários e com os trabalhadores do serviço. Foi importante para que

eu tivesse um olhar ampliado, conhecendo o trabalho do terapeuta ocupacional, do

assistente social de perto. Aos poucos fui sentindo falta de algo que me ajudasse a

organizar os pensamentos, e a teoria foi muito bem vinda para auxiliar minha

caminhada.

A psicanálise que eu conheci na academia, freudiana ortodoxa, não gostava, pois

tendia do meu ponto de vista a interpretar o sujeito tornando-o mero objeto de estudo,

sem levar em conta o sentido que tinha aquela palavra para ele. Essa impressão foi

desfeita pelo contato com outras psicanálises, com base lacaniana, mais especificamente

o autor Ricardo Rodulfo, o qual possui uma visão mais voltada para compreender o

sujeito a partir dele mesmo e em suas relações e menos em realizar interpretações

sufocando-o em uma teoria. Assim como o autor não se ocupa por demais das estruturas

psicanalíticas, tenho minhas restrições com relação à necessidade de categorizar o

sujeito em categorias fixas e imutáveis e o tempo gasto nesta tentativa por vezes difícil

de se enquadrar.

O serviço de psicologia dentro do CAPS estava diluído nas atividades de

terapeuta referência, de coordenador dos grupos operativos, nas triagens, nos

atendimentos individuais e de família. Uma perguntava ecoava: o que difere o psicólogo

dos demais profissionais de saúde na instituição? Vira e mexe retornava, afinal de

contas durante as supervisões institucionais todos os profissionais eram estimulados a

resgatar a história do sujeito, olhar para o sentido que ele dá as suas palavras, buscar o

significante, estarem atentos à subjetividade. Fui observando que o lugar da

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subjetividade permanece o lugar que a psicologia ocupa de acordo com Figueiredo

(1995), apesar de não ser única a olhar para este fenômeno.

Conforme Wundt protagonizou, a psicologia é uma ciência intermediária, uma

ciência interdisciplinar, com bases biológicas e sociais (FIGUEIREDO, 1995). Seria

certamente melhor se não que houvesse a necessidade de uma ciência “do entre”,

conforme Figueiredo (1995) classificou a psicologia. Talvez se essa não ocupasse o

lugar de ponte o abismo entre as ciências naturais e sociais seria ainda maior.

No CAPS, pensei algumas vezes que talvez não fosse necessária a nossa

existência, pois não observei nenhum outro profissional que não o médico medicando,

ou fazendo tarefas manuais sem ser o T.O. (terapeuta ocupacional), aplicando uma

injeção que não o enfermeiro e todos os profissionais técnicos tem obrigação de fazer

escutas individuais e em família.

A psicologia representava neste espaço a valorização da subjetividade,

disputando com o modelo centrado nos sintomas e na medicação presente na instituição.

A segunda tendência, visualizei em prontuários mais centrados na aderência

medicamentosa, aparência física bem ou mal cuidada, humor, hipótese diagnóstica, sem

um projeto terapêutico particular. Apresentava-se também na resistência de alguns

profissionais em ter uma escuta mais atenta aos aspectos emocionais e levar em conta a

visão de mundo do sujeito para um entendimento particular. A psicologia relacionada ao

discurso psicanalítico questionava os lugares que o sujeito ocupa e ocupou em sua

história.

Desse modo, o lugar da psicologia conforme Japiassu (1975) que é o lugar do

subjetivo não foi diferente no CAPS. Lugar de escuta, de acolhimento, de valoração do

sujeito em sua especificidade, valoração de sua história, seus desejos, suas escolhas.

Abarca o lugar da fala sobre si e sobre os sentimentos.

Senti falta, ao longo de minha formação acadêmica, de não ter tido acesso

aprofundado a conhecimentos farmacológicos, para compreender melhor os tratamentos

medicamentosos e poder dialogar a respeito com os demais profissionais da saúde.

O trabalho e o funcionamento do serviço infelizmente foram prejudicados por

falhas no sistema de saúde. Havia dificuldade em ter disponível veículo com motorista

para visitas domiciliares, passeios e demais atividades externas, faltava auxílio para

transporte do usuário, foi cortada a conta telefônica da rede de saúde. Esses fatores

praticamente inviabilizavam a continuidade dos tratamentos, visto que a maioria dos

usuários era de nível econômico muito baixo e não tinham condições de se locomover

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para a instituição com exceção dos usuários com carteira de deficiência, pois nem

mesmo o acompanhamento via telefone era possível e os projetos terapêuticos ficavam

afetados pela indisponibilidade de veículo.

Inicialmente, percebi certa passividade dos profissionais diante das discussões

em supervisão, nas quais esbarrávamos com tais falhas no sistema de saúde e outras: “a

tendência é mesmo de retirada dos passes para enxugamento de despesas” ou “todos

nós sabemos que os CAPS vêm sofrendo um processo de sucateamento” (sic), em

seguida, davam continuidade aos outros pontos da reunião, afinal não havia mais o que

discutir, todos entraram em acordo. Campos (1994) sobre a introdução de profissionais

de psicologia, assistência social e outros profissionais comenta que estes trouxeram um

novo sopro ao Sistema de Saúde com trabalhos em grupo, de prevenção entre outros

procedimentos. No entanto, a entrada destes atores tem sido pouco combativa na

militância pela implementação do SUS, assumindo muitas vezes uma postura um tanto

inerte diante do sistema e seus entraves.

Por outro lado, notei uma mudança no discurso de membros da instituição

fazendo uma reflexão a respeito de um acontecimento em que o CAPS submeteu-se a

uma instância superior sem questionar: “acho que não deveríamos engolir tudo o que

vier de cima para baixo... sem se posicionar...” (sic) frase que ecoou no grupo

sinalizando um amadurecimento da instituição inclusive para fazer essa auto-crítica.

Quanto ao funcionamento integrado no Sistema de Saúde, outro buraco da rede

encontrado foi da capacitação e orientação adequada dos profissionais de psicologia nos

ambulatórios. Este despreparo pode ser considerado em parte responsabilidade das

instituições formadoras que não preparam o psicólogo para os serviços públicos. De

acordo com Dimenstein (2001), a psicologia e as instituições formadoras estiveram, por

muito tempo, comprometidas com o modelo assistencialista curativo, voltado para o

setor privado. O que dificulta a adaptação às exigências de responsabilidade social,

cidadania e ética do setor de saúde.

Os psicólogos nesses espaços têm realizado trabalhos de atendimento individual,

psicoterapias de longa duração. Não que este trabalho não seja útil ou eficaz, no entanto,

as filas para o atendimento psicoterapêutico engordam, os usuários encaminhados pelo

serviço do CAPS sem o devido apoio e assistência em sua comunidade, entram em crise

e novamente retornam ao serviço.

Muitas vezes o usuário já não deveria estar no serviço, porém por uma falta de

continuidade no tratamento encaminhado aos ambulatórios, permanecem mais do que o

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tempo adequado, inchando o número de usuários atendidos e diminuindo a qualidade do

serviço prestado. Pois os usuários em crise solicitam um cuidado intensivo, sem este

cuidado tendem a piorar e serem internados em hospitais psiquiátricos.

A prática do psicólogo desconectada do contexto social e institucional, têm

andado na contramão da reforma psiquiátrica, ferindo o princípio do SUS de eqüidade e

universalidade quando não é dada a prioridade de atendimento ao mais necessitado de

cuidado e não é garantida a atenção à saúde de todos e todas.

Esse procedimento identificado no estágio curricular I foi modificado e

atualmente os usuários que saem do CAPS têm prioridade nos atendimentos

ambulatoriais de psiquiatria e psicologia melhorando um tanto a qualidade do serviço da

rede em Saúde Mental. A assembléia foi uma atividade rediscutida e retomada, assim

como a modalidade não-intensiva, afinal uma das maiores dificuldades encontradas

pelos técnicos na realização dos tratamentos é a tal da “reinserção”, que para alguns

chega a ser inserção de tão excluídos que se encontram.

Tive a oportunidade de trabalhar numa equipe acolhedora, de trocar com

profissionais de outras áreas de conhecimento, com os estudantes de psicologia da

universidade, com estagiários, residentes. Estive ainda amparada por dois orientadores e

dois supervisores o que foi enriquecedor, pois pude conhecer em minha formação vários

modos de pensar o fazer psicológico na clínica psicossocial. A todos esses atores e ao

leitor, ou leitora agradeço pela paciência de acompanhar minhas inquietações, dúvidas,

idéias e incômodos.

6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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