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Relações entre a experiência visionária da ayahuasca e a arte eletrônica imersiva Daniella Villalta 1 Resumo Este artigo faz parte do estudo que venho desenvolvendo no doutorado em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde procuro compreender o que uma geração de artistas eletrônicos tenta fazer com a experiência que vem dos indígenas e da cultura ayahuasqueira. A cultura da ayahuasca e o xamanismo amazônico estão em diálogo com o mundo, e meu interesse geral é conhecer esses diálogos nas artes eletrônicas interativas e que relações essa geração de artistas estabelece com a cultura ameríndia da ayahuasca no campo da percepção, das subjetividades e da estética. Para esse estudo gostaria apenas de relacionar a experiência visionária e a performance de transformação das formas do xamanismo com a arte eletrônica imersiva a partir de dois exemplos: The Treachery of Sanctuary, do artista americano Chris Milk, de 2012 e Submergence, do coletivo europeu SQUIDSOUP, de 2013. Na investigação inicial desses projetos artísticos aparecem vestígios de daquelas experiências visionárias que colocam o sujeito em outras ordens de percepção, não-ordinárias, envolventes e imersivas. São esses indícios ou sobrevivências que interessam no estudo dessa relação. Palavras-chave: arte imersiva, experiência visionária, ayahuasca. Computadores fazem arte 2 No decorrer dos últimos 30 anos, a computadorização, o neoliberalismo e o pós- modernismo marcaram a sociedade, dando início a uma onda de inovações relacionadas ao desenvolvimento de vários campos da ciência e imprimindo uma nova forma à base tecnológica dessa sociedade. A popularização do computador, o advento da internet, os avanços em circuitos integrados, microchips e redes de telecomunicações dinamizaram a cultura contemporânea, a economia e os processos de produção com a integração da eletrônica com a manufatura e também o incremento das experimentações computacionais na arte. 1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais EBA/UFRJ, desde 2014.2 2 Manguebeat Chico Science & Nação Zumbi - Computadores fazem arte. Álbum Da Lama Ao Caos. Gravadora Chaos, 1994.

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Relações entre a experiência visionária da ayahuasca e a arte eletrônica imersiva

Daniella Villalta1

Resumo

Este artigo faz parte do estudo que venho desenvolvendo no doutorado em Artes Visuais

da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde procuro compreender o que uma geração de

artistas eletrônicos tenta fazer com a experiência que vem dos indígenas e da cultura

ayahuasqueira. A cultura da ayahuasca e o xamanismo amazônico estão em diálogo com

o mundo, e meu interesse geral é conhecer esses diálogos nas artes eletrônicas interativas

e que relações essa geração de artistas estabelece com a cultura ameríndia da ayahuasca

no campo da percepção, das subjetividades e da estética. Para esse estudo gostaria apenas

de relacionar a experiência visionária e a performance de transformação das formas do

xamanismo com a arte eletrônica imersiva a partir de dois exemplos: The Treachery of

Sanctuary, do artista americano Chris Milk, de 2012 e Submergence, do coletivo europeu

SQUIDSOUP, de 2013. Na investigação inicial desses projetos artísticos aparecem

vestígios de daquelas experiências visionárias que colocam o sujeito em outras ordens de

percepção, não-ordinárias, envolventes e imersivas. São esses indícios ou sobrevivências

que interessam no estudo dessa relação.

Palavras-chave: arte imersiva, experiência visionária, ayahuasca.

Computadores fazem arte2

No decorrer dos últimos 30 anos, a computadorização, o neoliberalismo e o pós-

modernismo marcaram a sociedade, dando início a uma onda de inovações relacionadas

ao desenvolvimento de vários campos da ciência e imprimindo uma nova forma à base

tecnológica dessa sociedade. A popularização do computador, o advento da internet, os

avanços em circuitos integrados, microchips e redes de telecomunicações dinamizaram a

cultura contemporânea, a economia e os processos de produção com a integração da

eletrônica com a manufatura e também o incremento das experimentações

computacionais na arte.

1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – EBA/UFRJ, desde 2014.2 2 Manguebeat Chico Science & Nação Zumbi - Computadores fazem arte. Álbum Da Lama Ao Caos.

Gravadora Chaos, 1994.

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As interfaces criadas a partir das inovações tecnológicas, incluem cada vez mais o corpo

nos experimentos, não se tratando apenas de criar possibilidades imagéticas. Segundo

Arantes (2005), os cenários da arte na era digital são múltiplos e se compõem de

Ciberinstalações, cibercenários, ambientes imersivos, sistemas

multiusuários, telepresença, instalações e performances digitais, net-art,

robótica, vida artificial, arte transgênica, propostas estéticas que

utilizam comunicação sem fio, trabalhos on-line e off-line são algumas

das formas pelas quais os artistas contemporâneos vêm trabalhando

com as mídias digitais (ARANTES, 2005, p. 68).

Apesar da diversidade de modelos de experimentação, a interatividade e a imersividade

parecem ser pontos promissores da arte tecnológica contemporânea. As interfaces

interativas possibilitam campos de experimentação que vão além do habitual. Domingues

(2003) explica que

As interfaces nos dão poder de gerar e provocar mutações em

ambientes virtuais manipulando forças do cosmos. É o caso do calor,

ondas de luz e som, entre outros sinais que entram para os computadores

e se transformam em paradigmas computacionais. Por rede, perfuramos

camadas quânticas, exercitamos o dom da ubiquidade, solicitamos a

agentes virtuais que nos representem e usem seu poder cognitivo,

aumento nossa capacidade de processar informações (DOMINGUES,

2003. p.99).

As possibilidades dessas interfaces vão além do mouse e do teclado e exploram também

as ações do corpo humano. Através do gesto, do toque, da voz e da respiração, esses

trabalhos colocam em evidência novas relações do corpo humano com a arte e a

tecnologia, explorando novas e intensas sensorialidades. O foco desse artigo é discutir a

arte de envolvimento total, imersiva, em cujas performances, conforme suponho, há

rastros das experiências visionárias com a ayahuasca.

A cultura da ayahuasca na arte eletrônica imersiva contemporânea – um objeto em

construção

As experiências visuais e sensoriais das culturas xamânicas, a partir do uso ritual de

plantas psicoativas, têm despertado o interesse de artistas e pesquisadores em diversas

áreas do conhecimento e suas problemáticas vêm sendo discutidas também fora dos

domínios da pesquisa formal. São diversos grupos de pesquisas que se propõem a pensar

aspectos variados que recobrem essa cultura e alimentam redes de troca de experiências

e resultados de investigações acadêmicas.

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O que pude observar acompanhando algumas listas e pesquisando sobre temas

relacionados é que a cultura da ayahuasca e o xamanismo amazônico estão em diálogo

com o mundo. Em minha análise procuro compreender como a antiguidade ameríndia

volta residualmente nas experiências da arte eletrônica imersiva na contemporaneidade.

Duas instalações serão observadas na perspectiva de uma relação entre a experiência

visionária e a performance de transformação das formas do xamanismo com a arte

eletrônica imersiva: The Treachery of Sanctuary, do artista americano Chris Milk, de

2012 e Submergence, do coletivo europeu SQUIDSOUP, de 2013.

Para estabelecer essa relação, apresento inicialmente um quadro geral da experiência

visionária ameríndia com o uso da bebida ritual ayahuasca. Aqui o quadro teórico de

referências vem fundamentalmente da Antropologia, a partir de etnografias relevantes

que tenham tratado da produção de imagens dos chamados povos com desenho.

O uso ameríndio da ayahuasca

A bebida ritual Ayahuasca é amplamente utilizada pelos grupos Pano, Aruák e Tukano

contabilizando, segundo Luna (1986), 72 povos indígenas que fazem uso dela na

Amazônia Ocidental, mas não se restringe ao universo do xamanismo ameríndio.

Conhecida por populações ribeirinhas, seringueiros, por mestiços e caboclos da região

amazônica, além de ser usada em diversos rituais vegetalistas, tem ocorrido também em

cultos urbanos espalhados pelo Brasil e pelo mundo, especialmente a partir duas últimas

décadas.

A ayahuasca pode ser pensada como uma tecnologia vegetal, uma potente interface capaz

de favorecer a expansão da consciência e o acesso ao saber. Existem inúmeras definições

acadêmicas para o termo, podendo significar uma bebida, uma medicina ancestral, além

de também definir uma das plantas de sua composição (cipó ou liana) ou ainda um ritual.

Mais recentemente, vem sendo cogitada como patrimônio cultural. Em Labate, Goulart e

Araújo (2004),

Ayahuasca é uma palavra de origem quíchua e significa liana dos

espíritos ou ainda cipó da alma, dos mortos. O termo é um dos mais

utilizados para designar uma bebida psicoativa preparada geralmente

com duas plantas (pode haver algumas variações): a liana ou cipó

propriamente dito, cujo nome científico é Banisteriopsis caapi, e as

folhas do arbusto Psychotria viridis (LABATE, GOULART e

ARAUJO, 2004. p. 21).

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Cozimento do cipó com a folha e a bebida pronta para a ingestão3.

A bebida psicoativa permite experiências visuais e sensoriais muito complexas, incluindo

a capacidade de metamorfose do xamã em animal, o que pode ser pensado como um caso

privilegiado de emprego da tecnologia para que haja uma ligação eficaz entre os

diferentes níveis da realidade. Pedro Peixoto Ferreira (2005) coloca a metamorfose do

corpo no xamanismo como sendo

O híbrido resultante (animal em corpo humano/humano em corpo

animal), a própria hierofania antropomórfica de que falam os estudiosos

(...) axis mundi capaz de conduzir à experiência primordial do ‘tempo

mítico’ (FERREIRA, 2005. p. 9)”.

No entanto, Eduardo Viveiros de Castro (2004) amplia a compreensão desse fenômeno

quando explica que no xamanismo ameríndio conhecer implica em personificar, ou ainda,

em tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido, ressaltando a intencionalidade

que move essa ação. Esse aspecto do pensamento ameríndio, cuja qualidade perspectiva

ou ainda relatividade perspectiva propõe uma apreensão do mundo a partir de pontos de

vista distinto, é por ele chamado de perspectivismo. Conforme explica,

O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade

manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras

corporais e adotar a perspectiva de subjetividades alo-específicas, de

modo a administrar as relações entre estas e os humanos (VIVEIROS

de CASTRO, 2004, p.231).

Mircea Eliade (1951) aponta esse complexo fenômeno como sendo “la tecnica del

extasis”(ELIADE, 1996. 6ª reimpressão, p. 22). Em uma obra posterior, em coautoria

com Ioan Couliano, os autores definem xamanismo explicando que esse conjunto de

técnicas arcaicas de êxtase,

Não é propriamente uma religião, mas um conjunto de métodos

extáticos e terapêuticos, cujo objetivo é obter o contato com o universo

paralelo, mas invisível, dos espíritos e o apoio destes últimos na gestão

de assuntos humanos (ELIADE&COULIANO, 1995 p. 267).

No caso xamanismo sul-americano, os mesmos autores apontam ainda o uso de

3 Compilação de imagens disponíveis na rede.

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substâncias alucinógenas, como a ayahuasca, que aparece na diversidade do xamanismo

amazônico sob outras nomenclaturas como caapi, yagé, mariri, cipó.

O xamanismo sul-americano apresenta os mesmos motivos de outras

regiões culturais: doença iniciática, visualização do esqueleto,

casamento com um espírito, cura por sucção, etc. Além disso, o

xamanismo sul-americano caracteriza-se pelo emprego de substâncias

alucinógenas (banisteriopsis caapi ou iajé são as mais conhecidas) ou

tóxicas (como o tabaco) e pela presença de cerimônias coletivas de

iniciação. A utilização do chocalho para invocar os espíritos é mais

generalizada que a do tambor. Os espíritos muitas vezes são

ornitomorfos. O xamã pode frequentemente transformar-se em jaguar

(ELIADE&COULIANO, 1995 p. 268).

O uso ameríndio da bebida é notadamente presente na cosmologia e mitologia dos grupos

que fazem uso dela, implicando em suas concepções sobre a criação e desenvolvimento

do mundo e orientando as explicações que são dadas a respeito destes. Apesar da

diversidade de materiais etnográficos produzidos sobre os “povos com desenho” e sobre

o papel da ayahuasca na criação de desenhos imaginários, para esse estudo exploratório

utilizo apenas aqueles mais significativos para a minha própria compreensão genérica do

fenômeno das visões provocadas pelo yagé e do modo fluído como o xamã ultrapassa os

limites de seu corpo, adotando a perspectiva de outras subjetividades.

Ayahuasca e experiência visionária – luz, cores, movimento e ambiente

No domínio da produção de imagens visionárias no contexto ritual da ayahuasca,

chamadas também de mirações, Luis Eduardo Luna - antropólogo colombiano que

realizou um importante estudo sobre o xamanismo dos ayahuasqueiros mestiços da

Amazônia e produziu em coautoria com o artista peruano Pablo Amaringo uma valiosa

obra sobre a iconografia da ayahuasca - esclarece que as plantas visionárias têm sido

fundamentais na concepção do mundo de diversas culturas há milênios.

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Yana Yacumana - Pablo Amaringo, 19914

Para o pesquisador, em muitos casos, as plantas visionárias possuem inteligência e são

consideradas fontes de beleza e inspiração, bem como de profundos e misteriosos

conhecimentos, instrumentos do divino, além de um meio (ritual e simbólico) para manter

a integridade cultural. Conforme explica no memorial de uma exposição de artistas

ayahuasqueiros realizada em 1999, na St. Lawrence University,

muitas vezes, é por meio do uso ritual de plantas visionárias que os

xamãs se submetem a sua formação e adquirem suas habilidades.

Plantas visionárias também podem gerar mitos e canções de poder que

permitem a comunicação com o que é normalmente invisível e são

instrumentos utilizados para navegar no reino visionário. Entre algumas

culturas ameríndias, plantas visionárias são a fonte de inspiração dos

ricos motivos iconográficos encontrados em pintura corporal e na

decoração de objetos materiais. Canções e visões, assim como visões e

sonhos, são reinos intimamente ligados, sendo a manifestação de

experiências sintéticas simultaneamente percebidas em muitos níveis

(LUNA, 1999. Disponível em

https://www.stlavu.edu/gallery/pamaringo.htm Acesso em 07/12/14).

Os desenhos visionários da ayahuasca, segundo Angelika Gebhart-Sayer (1986), têm sido

explicitamente referidos a padrões específicos em diversos estudos5. Os Desana, segundo

REICHEL-DOLMATOFF, 1978, apud SAYER, 1986. p.208), percebem suas visões

como padrões luminosos simétricos que se sobrepõem como superfícies, múltiplas

imagens luminosas, agrupadas ou não, fazendo ziguezagues ou ainda formando desenhos

4 http://pixels.com/featured/yana-yacumama-pablo-amaringo.html 5 A autora cita Dobkin de Ríos, Harner, Langdon, Reichel-Dolmatoff e Torres Laborde.

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de redes hexagonais e quadriculados, articulados aos estímulos sonoros que podem torná-

las ainda mais brilhantes. Assim também são as visões descritas pelos xamãs Shipibo-

Conibo: luminosas, melódicas (levando a estados de consciência sinestésica), com

projeções que resplandecem em formas geométricas. A autora ressalta que isso exclui a

afirmação de que padrões geométricos ou reticulados presentes nas visões de diversos

grupos sejam de ordem subjetiva ou cultural, estando ligados a um estado fosfênico que

se apresenta em outros estimulantes narcóticos.

Tecelagem Shipibo-Conibo6.

Já para os kaxinawá, por exemplo, as imagens surgidas no estado alterado da consciência,

especialmente aquele induzido pelo nixi pae são equiparadas aos sonhos e a capacidade

de perceber a espiritualidade do mundo, sendo ambas “visões verdadeiras da realidade

não ordinária, onde é possível travar contato com os yuxin (LUZ, 2004. p.39)”.

Lagrou (2012) explica que ao relacionar o estilo formal da arte gráfica kaxinawá com os

contextos rituais de seu uso, observou a relação entre um estilo de pensar, um estilo de

perceber e um estilo particular de mostrar que implica em ocultar a maior parte do que

poderia ser visto. Uma arte de sugerir.

No caso específico do ritual de ingestão da ayahuasca pelos homens caçadores, a autora

observa que o desenho é evocado no canto e assim visualizado pelo participante,

produzindo uma mediação entre o espaço perceptível da vida cotidiana e o espaço

visionário da ayahuasca. Nesse contexto então, “o desenho não é materializado, mas

ativamente visualizado. O desenho possui um papel crucial na experiência porque opera

a passagem de uma percepção visual para uma percepção visionária (LAGROU, 2012.

p.102)". Assim se dá a transformação visual que leva do grafismo à figuração virtual, a

quimera abstrata7 que marca a fluidez das imagens visionárias que nunca se deixam

6 https://br.pinterest.com/pin/491314640575890918/

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capturar.

Para os Ashaninka, do grupo Aruák, o kamarampi, termo advindo do verbo kamarank,

vomitar, designa a bebida, ao lado da expressão hananeroca, que vem de Hananerite, o

rio celestial, mais ca, o cipó. Luz (2004) afirma que entre os Ashaninka, “Banisteriopsis

caapi proporciona àquele que a usa a capacidade de ver os espíritos como eles realmente

são, ou seja, em sua forma humana (...) sob o efeito da bebida, as qualidades perceptíveis

do mundo aparecem como uma ilusão criada pelos ‘seres poderosos’, sua forma

intencionalmente ilusória (LUZ, 2004. p.47)”.

Langdon (2004) explora as experiências dos Siona da Colômbia com o yagé e suas

narrativas, e ensina que as visões advindas do uso do cipó estão intimamente ligadas à

aquisição de conhecimento. O mestre xamã lidera os ritos, sendo os poderes de ver e saber

essenciais para acompanhar os outros nos caminhos xamânicos. Conforme cita, “Os Siona

dizem que o xamã ‘dá as dicas com seus cânticos, e a gente vai vendo’ o ‘outro lado’:

suas cenas, sua beleza, suas cores, seus cheiros, seus ritmos e seus sons se tornam

realidade (LANGDON, 2004. p.72)”, com uma forte tradição oral, poética e performativa

que embelezam a experiência de contar e ouvir.

Jacques Mabit (2004) amplia a lista de característica da produção visionária, ao mesmo

tempo em que reforça os padrões já indicados por outros pesquisadores. Sua pesquisa está

situada no contexto dos curandeiros da Alta Amazônia peruana e apesar de sua amplitude

e, ao mesmo tempo especificidade, ressalto aqui apenas alguns elementos que aparecem

como constantes na experiência visionária.

O pesquisador elenca a imprevisibilidade da experiência com a ayahuasca,

independentemente do grau de preparação daquele que ingere; a singularidade e

pluralidade que marcam a experiência coletiva, onde o curandeiro interfere no jogo ao

mesmo tempo em que o processo é íntimo e pessoal; o sentimento de realidade que se

expressa nas visões, mesmo naquelas experiências marcadas por visões fantásticas ou de

natureza cósmica; a modificação da noção de tempo que sobrepõe a sensação de

encurtamento do tempo e a sua aceleração, além da supressão do tempo ou seu

desdobramento, o tempo cronológico e o tempo mítico; a ausência de progressão linear

que indica que apesar de uma progressão nas experiências visionárias com o passar do

tempo, não se pode assegurar que isso se dá em termos de uma lógica linear; não-

ocorrência da perda da consciência já que a experiência corrente da ayahuasca não é

acompanhada de dissolução da consciência, mas de uma modificação da mesma. Além

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desses dados que categorizam recorrências na experiência visionária, o autor elenca

conteúdos e classifica esquematicamente as imagens8.

Dada a extensão de suas considerações, selecionei apenas algumas características sobre

o tipo de imagens que as visões podem produzir. Mabit (2004) cita as imagens abstratas

com formas e cores muito elaboradas, natureza animada onde objetos minerais, vegetais

ou animais dentro ou fora do campo visual são capazes de animar-se mentalmente, visões

cosmológicas, visões simples e rápidas ou visões elaboradas, intensas que podem invadir

o sujeito, rompendo limites materiais normais e o espaço-tempo convencionais.

O autor considera ainda que a visão não se restringe ao domínio visual, mas se integra

aos outros sentidos gerando percepções auditivas (vozes, música, explosões), estéticas

(percepção do contato sobre o corpo), olfativas (odores intensos, que enjoam ou

agradam), percepções cruzadas (onde sons são vistos com cores, odores percebidos como

formas, um sabor de modo tátil), além de percepções “gerais” que incluem presenças boas

ou más, ambientes, atmosferas, etc.

Nas tradições xamânicas há uma concepção invariável de que as imagens, metáforas e as

histórias constituem o melhor modo de transmissão de saber. O antropólogo Jeremy

Narby, fala sobre a “verdadeira fonte insuspeitada de saber biomolecular (NARBY, 2004.

p.139)” que dinamiza o conhecimento através de plantas que comunicam e das imagens

que produzem. Por suas características recorrentes, isto é, tridimensionais e sonoras,

hiper-realistas, com luminosidade intensa e envolvendo todo o organismo, não se

restringindo apenas a uma dimensão mental, podem ser pensadas nessa perspectiva

biomolecular.

Em suma, as substâncias psicoativas como a ayahuasca, aliadas aos cantos, às danças, aos

sonhos e a outras técnicas extáticas, atuam como modificadores do corpo e da mente,

amplificando a experiência sensível, abrindo caminho para viagens no tempo e no espaço

e permitindo a percepção de seres que habitam o mundo invisível, espiritual e verdadeiro.

8 Para ampliar esse tópico, ver SHANON, Benny. A ayahuasca e o estudo da mente. In

LABATE&ARAUJO (Org.) O uso ritual da ayahuasca. São Paulo: FAPESP-Mercado de Letras, 2004,

onde o autor expõe sob o ponto de vista da psicologia cognitiva, complexos quadros com os conteúdos mais

frequentes nas visões da ayahuasca, além de oferecer subsídios teóricos acerca da consciência e das teorias

da mente no contexto da experiência visionária.

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As reaparições das formas – percepção digital, arte eletrônica e experiência

visionária

Sérgio Roclaw Basbaum (2011) explica que a percepção é o berço do sentido da

experiência e é culturalmente constituída como um empreendimento coletivo que irá

operacionalizar a maneira como uma dada cultura acessa e dá sentido ao vivido. Para ele,

a experiência perceptiva contemporânea retoma a sinestesia e supera a separação dos

sentidos presente no modelo de conhecimento que se realiza no ocidente durante toda a

Modernidade.

Para pensar a atual modulação cultural da percepção, na qual se relacionam a arte e a

tecnologia, cabe o conceito de percepção digital a partir do qual o autor propõe ser

possível pensar a sensibilidade nas sociedades contemporâneas, pautadas então, pelas

experiências sinestésicas. Conforme explica,

A inundação de imagens e ambientes digitais nas últimas décadas

marca, também, o retorno do espaço tridimensional, do espaço acústico,

num vasto número de trabalhos que envolvem realidade virtual e

ambientes imersivos tridimensionais – frequentemente preenchidos por

sons que reiteram a ilusão espacial. Entretanto, as ligações entre a

sinestesia e a cultura digital vão ainda além. A cultura digital imprimiu

notável aceleração ao mundo. Estes ambientes que chamamos

imersivos são apenas espaços distintos dentro do ambiente maior de

uma cultura planetária em que estamos mais e mais imersos no instante:

a noção de historicidade dissolve-se na circularidade do instante

sinestésico; as experiências do tempo narrativo e do espaço

contemplativo visual se dissolvem em sensação. Estamos, novamente,

num mundo mágico, onde emergem todo o tipo de metáforas e

discursos espirituais e míticos de nossa experiência (...). A estes

aspectos, largamente sinestésicos, de nossa experiência contemporânea,

chamo percepção digital (BASBAUN, 2011. p.10).

Com o conceito de percepção digital é possível reiterar a ideia de que as experiências

contemporâneas ritualizam as sensorialidades pré-modernas, pré-capitalistas, onde todo

o corpo é envolvido pela poética em questão e onde esse corpo, na sua integralidade, é

investido de um poder que o leva a transcender suas limitações físicas e interpretativas,

pois aqui a linguagem verbal e a racionalidade analítica não figuram como protagonistas

no acesso ao conhecimento. Arrisco dizer, uma sobrevida do êxtase xamânico.

Estamos assim, associando certas propriedades à experiência

sinestésica: ela nos aparece como uma experiência direta, pré-verbal

do mundo; uma imersão na sensação, oposta àquela analítica, racional;

uma experiência específica do tempo, um tempo agórico, uma presença

aqui-agora - quase como uma dilação, um tempo deslocado do tempo

linear, diacrônico, da experiência ordinária. Assim, opondo-se a

aspectos determinantes de nossa consciência analítica, a sinestesia se

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oferece como um tipo consciência particular, uma gestalt, uma

estruturação do mundo que provê uma cognição distinta - que o

sinesteta experimenta, aprecia, mas não consegue exprimir. Tais

características levam Cytowic - num salto surpreendente - a comparar

a experiência sinestésica ao êxtase espiritual, tal qual descrito por

William James em Varieties of religious experience. (BASBAUN,

2011. p.14).

Patrícia Arantes (2005) descreve uma série de instalações onde o corpo e convidado a

experimentar interagindo e transformando a obra de arte9. A pesquisadora elenca ainda

outras categorias ou desdobramentos da arte tecnológica, destacando os trabalhos onde a

experiência com a realidade virtual acontece por meio de interfaces imersivas em um

espaço tridimensional.

Diana Domingues (2003) aponta a experiência tecnológica como uma forma ritual de

atualizar os mitos explorando seus limites, “nos quais o mágico, o sensível, o inesperado,

o imprevisível, o efêmero, a autorregeneração alimentam o imaginário e o desejo humano

de sonhar (DOMIGUES, 2003. p.63) ” e afirma também uma aproximação possível entre

as formas de percepção de espaços virtuais em culturas arcaicas e a arte digital.

No memorial da instalação multimídia I N S N (H) A K (R) E S, a autora relaciona alguns

pontos dessas culturas e explica que

Poeticamente, os rituais mediados por tecnologias nos dão o poder de

manipular forças invisíveis o que na história da humanidade suas

crenças e valores podem ser relacionados a poderes xamânicos. Em

todas as situações, buscam-se diálogos com forças invisíveis através do

diálogo com o ‘além’ das memórias e circuitos eletrônicos e seus dados

processados por matemática, cálculo, em ambientes abstratos e de

silício, adquirindo poderes de viver em mundos atípicos e não

acessíveis sem as tecnologias. Estas circunstâncias estimulam a

imaginação dos artistas e propulsionam as descobertas de cientistas que

projetam mundos além dos existentes10.

Na perspectiva do pesquisador e artista inglês Roy Ascott, a arte contemporânea abraça a

moistmidia e daí surge uma convergência entre realidade validada ou consensual, aquela

das experiências do dia-a-dia, a realidade virtual, que para ele é a ontologia da

telepresença e a realidade vegetal, um terceiro eixo da realidade onde reside a tecnoética

- techné + gnosis - onde a consciência se transforma pela tecnologia vegetal – presente

nas chamadas plantas que comunicam e que são capazes de expandir a mente e gerar os

9 Ver Patrícia Arantes. Arte e Mídia. Perspectivas da estética digital. São Paulo: SENAC, 2005. p.p.68 e

seguintes. 10 Disponível em www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/diana.htm Acesso em 10/12/2014.

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estados alterados da consciência (ASCOTT, 2003, p.247). É nos estados alterados da

consciência (também chamados de estados não ordinários de consciência), que operam

os indícios, os rastros de uma modalidade de experiência onde o presente se tece de

múltiplos passados.

Para um exercício analítico dos vestígios das experiências visionárias da ayahuasca nas

instalações já referidas, recorro a Aby Warburg, historiador da arte que se interessava

pelas práticas festivas do Renascimento e pelos rastros da Antiguidade que nelas

persistiam. Assim, partia do ponto de vista daquilo que dessa era sobrevivia nos atos, nos

gestos, nos objetos em movimento, nas formas, nos estilos e nos comportamentos. Suas

observações se orientavam para os deslocamentos no tempo que tais reaparições

realizavam, não em busca de sua “essência”, mas antes, de seus traços de exceção. Um

modelo cultural onde as sobrevivências, esses rastros fantasmais se “exprimiam por

extratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente

inesperados e objetivos sempre frustrados (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.25) ”.

No memorial da obra The Treachery of Sanctuary, disponível no site do coletivo The

Creators Project, Chris Milk apresenta sua intenção de oferecer uma imersão profunda e

abrangente, carregada de vestígios e traços de uma experiência espiritual antiga, que

reaparecem atuando como manifestações fantasmais, revelando persistências da cultura.

The Treachery of Sanctuary é um tríptico interativo que compartilha

uma intenção espiritual com as pinturas pré-históricas nas paredes de

Lascaux (...) A peça pega de onde dançávamos em cavernas há 40.000

anos, cultivando experiências humanas primitivas com a nova

tecnologia. Não há paredes de pedra, tintas de origem vegetal, ou

chamas bruxuleantes. Em vez disso, o nosso anseio de se mover, de

dançar, de nos expressar fisicamente, de ter nossos espíritos a partir

daquilo que é visto, sentido e entendido - é respondido com a inovação

tecnológica. Nossos corpos são a mais potente e universal das

linguagens humanas, e nesta parte, os participantes criam algo estranho,

um auto empoderamento, algo ao mesmo tempo humano e aviário, com

suas próprias formas. Cada painel da peça representa um passo em uma

jornada. A interpretação narrativa é da experiência humana universal:

nascimento, morte e regeneração. Mas também é a minha intenção de

refletir a experiência paralela do artista e de como ele viaja através do

processo criativo. Esta jornada paralela depende de um conceito

religioso. Para criar a arte requer uma abertura, uma vulnerabilidade de

espírito, como a vulnerabilidade que nos aproxima de Deus. O

participante é um personagem ativo no conteúdo e conceito da peça, e

ao mesmo tempo a tecnologia permite que a interatividade, a ênfase é

sobre a experiência, sobre transcender passado a inovação permitindo à

imersão espiritual. É um universal, mas pessoal, jornada de auto

expressão, exaltação, transfiguração e transcendência. E isso muda o

tempo todo. Assim, cada participação é uma nova experiência

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espiritual, uma nova dança. Assim como os seres humanos sempre

responderam ao viver, à música improvisada por encontrar uma

liberdade em sua própria expressão, de modo que a peça será definida

por e para cada um deles, de cada vez: a viagem que se rompe e celebra

a existência emocional com uma nova linguagem física (MILK, Chris.

2012)11.

The Treachery of Sanctuary

Nesse caso, a metamorfose do corpo é retomada na proposta da percepção digital, onde

sob certo perspectivismo do homem de há 40 mil anos, os interagentes vivem

experiências espirituais a partir dos ambientes imersivos e sinestésicos da arte. A segunda

instalação imersiva observada é a do SQUIDSOUP, coletivo de artistas, cientistas e

designers da Grã-Bretanha, Noruega e Nova Zelândia. Conforme memorial disponível na

rede, o grupo explora no projeto Submergence12, “os mecanismos e os efeitos da

interatividade, procurando fazer experiências digitalmente mediadas caracterizado pela

interação significativa e criativa13”.

11 http://thecreatorsproject.vice.com/chris-milk/chris-milk Acesso em 10/01/15. 12 Submergence é uma matriz imersiva de 8064 LEDs suspensos por um campo de luz com sensores de

movimento que responde às ações e ilumina conforme as pessoas se movem através dele. A peça foi criada

por Anthony Rowe, Gaz Bushell, Chris Bennewith, Liam Birtles e Ollie Bown. Disponível em

http://www.thisiscolossal.com - Acesso em 12/fev/15. 13 http://www.squidsoup.org/blog Acesso em 20/jan/15.

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Submergence. Instalação na galeria ROM, Oslo, 2013.

O trabalho combina música, o espaço físico e os mundos virtuais, criando espaços que

propõem envolvimento e interação na exploração do ambiente imersivo. Submergence foi

exibido pela primeira vez na Galeria ROM em Oslo, Noruega, em 2013, e sua proposta

Transforma o espaço físico em um ambiente de realidade mista, onde

os mundos virtual e real coincidem. O resultado é uma experiência

imersiva que usa a luz para alterar nossas percepções de espaço e

presença. A experiência é semelhante a caminhar através de um

ambiente virtual abstrato, onde pixels em uma tela são substituídos por

milhares de pontos de luz flutuando no espaço. Estes pontos de luz criar

evocações e atmosferas, presença14.

A luminosidade atua sobre a percepção dos sujeitos interagentes, permitindo então

experiências de cor e sinestesia, além da alteração da percepção do espaço-tempo

convencional, trazendo um inconsciente de tempo daqueles experimentados sob o efeito

da ayahuasca.

O conceito de sobrevivência de Warburg e suas análises das influências antigas aplicados

às imagens da vida em movimento oferecem um caminho de investigação de como a

antiguidade ameríndia volta residualmente nas experiências da arte eletrônica imersiva

na contemporaneidade.

14 Disponível em http://vimeo.com/60665655 Acesso 20/jan/ 2015. Ver também:

http://photographyplayground.olympus.de/en/2014/09/01/squidsoupsubmergence.html?tag=artists

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Considerações finais prévias

Meu objetivo ao produzir esse artigo foi o de explorar uma parte da bibliografia

disponível nos eixos do xamanismo, da experiência visionária da ayahuasca e dos regimes

de percepção da arte imersiva e assim tentar colocá-los em relação na construção de um

objeto de estudo viável na perspectiva da relação entre arte contemporânea e a cultura da

ayahuasca.

Relacionar a experiência visionária e a performance de transformação das formas do

xamanismo com a arte eletrônica imersiva requer um modelo cultural de história da arte

onde persistem sobrevivências e reaparições que retornam de tempos em tempos e a partir

do que sejam construídas teorias estéticas fora dos termos da beleza ideal.

Partindo dos projetos artísticos The Treachery of Sanctuary, de 2012 e Submergence, de

2013, parece claro que há por parte de uma geração de artistas contemporâneos uma

predisposição em aproximar o sujeito de outras ordens de percepção, não ordinárias,

envolventes e imersivas, conforme enunciado nos memoriais das obras.

Com o uso de múltiplos dispositivos luminosos, dispostos de modo a agenciar alterações

na percepção dos sujeitos interagentes, uma vez que parecem flutuar no espaço e

distorcendo as relações convencionais de espaço e tempo, ou ainda, pondo em perspectiva

a subjetividade de homens distanciados pelo tempo histórico, mas reaproximados a partir

do tempo mítico, onde o corpo é colocado em ação para se metamorfosear em pássaro.

Enfim, experiências nas quais reaparece uma atmosfera carregada de transcendência,

exaltando a transformação e convidando à imersão espiritual através da experiência

sinestésica.

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