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    Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianpolis, v.11, n.98, p. 525-560, jan/jun. 2010

    Lies da ayahuasca na AEUDV1 pernambucana

    Lessons of ayahuasca in the AEUDV from Pernambuco

    Wagner Lins Lira2

    RESUMO

    O objetivo deste ensaio analisar os fenmenos espirituais emergentes nassesses com ayahuasca da Associao Espiritualista Unio do Vegetal, dissidnciaudevista pernambucana situada no municpio de Riacho das Almas. Procuraremosentender como se d a ligao dos adeptos com o assim denominado Astral

    Superior a partir da relao direta entre esprito e matria num dualismocomplementar e no redutor, baseado no referencial doutrinrio e nos princpios dofundador da Unio do Vegetal, mestre Jos Gabriel da Costa. As entrevistasrealizadas com alguns adeptos nos permitem entender a manifestao do xtasereligioso, assim como os caminhos a serem trilhados diante das informaesrecebidas nos ritos com ayahuasca, considerada uma bebida professora, quecostuma testar progressivamente seus alunos mediante o contato com essarealidade espiritual.Palavras-chave: Antropologia. Bebidas. Ayahuasca. Rituais. xtase religioso.

    ABSTRACT

    The aim of this essay is to analyze the emergent spiritual phenomena in theayahuasca sessions in theAssociao Espiritualista Unio do Vegetal, a schismaticudevista sect from Pernambuco state located in the city ofRiacho das Almas. We willseek to understand how the participants are connected with the so-called SuperiorAstral, considering the direct correlation between spirit and matter in acomplementary and not reduced dualism, based on the doctrinaire referential andprinciples of the founder of the Unio do Vegetal, master Jos Gabriel da Costa. Theinterviews conducted with some followers allow us to grasp the manifestation of

    religious ecstasy, as well as the routes to be followed before the received information1 Grupo pernambucano dissidente do Centro Esprita Beneficente Unio do Vegetal, religioayahuasqueira brasileira, mais conhecida por Unio do Vegetal ou UDV. Durante minha dissertao,abordei os fenmenos institucionais e espirituais emergentes em dois grupos nordestinos dissidentes;a Sociedade Espiritualista Unio do Vegetal (SEUDV), no estado de Pernambuco, e o Centro deHarmonizao Interior Essncia Divina (CHIED), em Alagoas. Meses depois fui informado de que aSEUDV pernambucana havia mudado de nome, passando-se a se chamar Associao EspiritualistaUnio do Vegetal (AEUDV). Portanto o que mudou foi apenas a nomenclatura, pois a instituio notem fins lucrativos, sendo conveniente aos mestres e adeptos denomin-la por Associao, tanto nombito institucional e administrativo, quanto espiritual. Mesmo afastada institucionalmente da religiooficial udevista, a AEUDV procura continuar com a tradio, seguindo os princpios doutrinrios dofundador, o mestre Jos Gabriel.2

    dedica-se ao estudo do fenmeno xamanstico no estado de Pernambuco junto ao NcleoInterdisciplinar de Pesquisas Sobre o Imaginrio, pelo Programa de Ps Graduao em Antropologiada UFPE e pesquisador correspondente do Ncleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos(NEIP). [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    in ayahuasca rites, known as a drink teacher that often test his pupils through thecontact with that spiritual reality.Key-words: Anthropology. Drinks. Ayahuasca. Rituals. Religious Ecstasy.

    1 A BURRACHEIRA3

    Quando o Hoasqueiro4 comunga o Vegetal ele tomado por uma fora

    estranha. Fora mgica da natureza, inspirada nos efeitos da unio do marir com a

    chacrona5. Fora que todo discpulo precisa conhecer para saber agir

    produtivamente sob seus efeitos, pois preciso trabalhar dentro dos estados da

    conscincia ampliada, para ento, poder tirar proveito desses ensinamentos.Trabalhar nos estados incomuns da conscincia significa ter controle durante o

    xtase para ser capaz de assimilar algumas informaes emergentes nesses

    momentos singulares. O controle e a profundidade das experincias surgem com o

    tempo e a partir do uso prolongado da ayahuasca, que passa a ser ministrada num

    mbito doutrinrio especfico. Em nosso caso particular, trata-se da esfera udevista

    estabelecida pelo mestre Jos Gabriel da Costa e que norteia os trabalhos

    espirituais da AEUDV.

    Norman Zinberg (1984, p. 37), ao analisar o uso dos psicoativos, afirma que

    as sociedades humanas constroem culturalmente alguns meios relativos ao controle,

    uso e precauo das situaes adversas que possam vir a acontecer antes, durante

    e depois do efeito de determinadas substncias. Para tal, segundo este autor, so

    elaborados sanes e rituais sociais que minimizam as reaes danosas

    provocadas por certos entorpecentes. A pesquisa de Zinberg foi direcionada aos

    psicoativos ilcitos usados pelos norte americanos na dcada de 70. Para o nosso

    caso especfico, sua teoria nos ajuda a compreender como possvel administrar e

    3 Segundo os interlocutores, o mestre Gabriel foi quem trouxe essa palavra no intuito de denominaros efeitos do ch. Acredita-se que seja derivada da palavra espanhola borrachera, que denomina osestados da embriagus alcolica. Provavelmente, nos seringais, as pessoas deviam se referir spropriedades visionrias da infuso chamando tudo aquilo de borrachera. Ento o mestre teriasubstitudo o o pelo u, criando uma nova denominao para diferenciar o estado mstico dabebida, daquele entorpecimento profano remetido pela palavra borrachera.4 Os Hoasqueiros so todos udevistas guiados pela sabedoria de Oaska, importante personagem da

    cosmologia dessa tradio. Maiores detalhes sobre o mito fundante d a doutrina; a Histria da Oaskaconsultar: Goulart (2004), Andrade (2005) e Lira (2009).5 O Vegetal produzido a partir da decoco de duas plantas amaznicas; o cip Marir(Banisteriopsis caapi) e as folhas da Chacrona (Psychotria viridis).

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    controlar os diversos efeitos das experincias com o ch e, conseqentemente,

    domesticar a fora estranha.

    Segundo Zinberg (1984), as sanes sociais estariam relacionadas

    regularidade com a qual a substncia administrada. Elas so informais e se

    estabelecem pela lei ou por grupos sociais que ditam os valores e as regras em

    relao ao consumo. Os rituais sociais servem de reforo s sanes. As regras e

    interditos comuns s sanes passam a ser revisitados nesses momentos onde

    acontece o uso controlado da substncia. O ritual social est intimamente

    relacionado forma de obteno do psicoativo, escolha do setting fsico e social,

    s atividades aps o consumo e forma de lidar com as reaes adversas durante a

    experincia.

    A partir dos estudos de Norman Zinberg, Howard Becker e Jean-Paul Grund,

    Edward MacRae (2004, p. 2) afirma que tais autores levam em considerao que os

    grupos usurios de substncias psicoativas compartilham de um conjunto de

    saberes construdo e mantido a partir da vivncia dos indivduos nessas redes de

    relaes. Dessa forma, valores, normas, regras de conduta e rituais sociais passam

    a conduzir as modalidades de uso, que incluem a vida dos sujeitos usurios e a

    disponibilidade das substncias.Ainda de acordo com MacRae (2004), notvel a permanncia desses

    padres de controle mantidos e construdos pelos diversos grupos que fazem o uso

    da ayahuasca ou de outros entegenos ministrados ritualmente. O saber xamnico

    mantido e readaptado realidade de seus usurios. Apesar das distintas esferas

    que comungam esse ch, seu uso permanece controlado e direcionado s prticas

    espirituais de cunho divino cujas propriedades vo alm da qumica e da fsica dos

    seus compostos.Entegenos so quaisquer elementos da natureza que possuam poderes

    visionrios. Quando ministrados, normalmente em ritos especficos, so capazes de

    promover estados de realidade incomuns, que normalmente so interpretados como

    manifestaes divinas oriundas do contato com o sagrado. Mediante rituais, tais

    elementos naturais agem como mediadores entre o mundo da experincia imediata

    e as infinitas dimenses espirituais que permeiam a existncia humana. Esses religiosos acreditam que a bebida um ser divino e como tal merece

    respeito ao ser ministrada e produzida, pois possui vida, sacralidade e vontade

    prpria. Esse respeito se faz presente a partir do momento em que seus adeptos

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    elaboram formas rituais padronizadas, nas quais se cria uma atmosfera favorvel ao

    desenvolvimento da experincia. necessrio, portanto, estruturar os eventos da

    sesso para que o participante sinta-se vontade durante o ritual. preciso

    domesticar o xtase.

    Mircea Eliade (1992, p. 87), acredita que em toda esfera religiosa existem

    formas de alcance divinal caracterizadas pelo contato direto ou indireto com o

    sagrado. O xtase uma das constantes universais da experincia religiosa. O meio

    para atingi-lo varia de acordo com o sistema de crenas que os promove. Quando

    alcanado, o xtase mstico tem o poder de atuar no modo de vida das pessoas,

    operando uma mutao ontolgica, domesticando os fieis. Para se atingir o

    xtase se faz necessria uma preparao que, segundo Eliade (1992), favorece uma

    srie de mudanas ao homem religioso tanto em relao s posies que cada um

    ocupa num grupo social especfico, como em relao reformulao individual e

    coletiva de pensamentos, atitudes, conceitos e idias.

    No caso Hoasqueiro o xtase, ou burracheira, se apresenta a partir do

    consumo do sacramento Vegetal, uma beberagem psicoativa amaznica, aderido s

    prticas doutrinrias estabelecidas pelo mestre Jos Gabriel da Costa. As plantas

    que compem essa infuso tambm podem ser enquadradas na categoria plantasprofessoras. Como tais, elas ensinam, agora cabe aos seus discpulos seguir

    algumas regras impostas pela bebida. No s a bebida e o xtase impem regras

    aos seus usurios, de acordo com Zinberg (1984) e MacRae (2004), os sistemas

    sociais que deles compartilham tambm elaboram formas de uso, que devem ser

    seguidas para a transmisso desses aprendizados.

    Os sistemas udevistas tambm compartilham dessa dinmica, visto que, por

    meio de sanes e rituais, eles domesticam a fora estranha, mas tambm sedeixam domesticar por ela durante as sesses e, conseqentemente, no seu dia-a-

    dia. Podemos verificar que aqueles adeptos mais experientes mantm-se firmes

    durante os encantos da burracheira. Com o tempo, o indivduo passa a exercer um

    controle maior do seu corpo nesses estados incomuns, que passam a ser cada vez

    mais comuns de acordo com a continuidade das experincias.

    Isso porque sua participao nas sesses lhe permite um contato maior com

    os smbolos e sensaes promovidos pelos rituais, que reforam as sanes sociais

    pensadas por Zinberg (1984) e MacRae (2004). Os iniciantes, normalmente, ficam

    confusos e no sabem administrar bem essa experincia, tendo que superar

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    algumas fases primordiais para saber trabalhar nos estados da conscincia

    ampliada. Os Hoasqueiros afirmam que o aluno experiente e disciplinado vai

    aprendendo as lies, com o tempo, at que a fora deixa de ser estranha e ele

    passa a vislumbrar uma fluncia cognitiva, para alm dos seus limites fsicos e

    psquicos.

    Assim ele pode alcanar o grau maior do conhecimento favorecido pela

    ingesto do Vegetal, chamado burracheira, que interpretada como uma mensagem

    esclarecedora emergente nos momentos do transe. So as idias, vises e

    resolues de problemas pessoais na vida do Hoasqueiro. o que faz a diferena

    em relao experincia mais rudimentar, conhecida por mirao 6. Na AEUDV, a

    mirao interpretada como uma simples miragem que se apresenta, durante a

    experincia, coberta de iluso e criaes.

    Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert, ao analisarem o Livro

    Tibetano dos Mortos nos anos 60, estabeleceram algumas fases comuns s

    experincias psicodlicas, comparando-as aos estados alm-corpo interpretados

    pelo sistema de crena lamasta7, do qual o livro derivado. A partir dessa

    comparao, surgiu em 1964 o livro intitulado; A Experincia Psicodlica- Um

    Manual Baseado no Livro Tibetano dos Mortos. O Bardo Thodol, como o livrooriginal conhecido na lngua tibetana, descreve as experincias esperadas nos

    momentos do falecimento at a reencarnao do esprito.

    Os trs pesquisadores afirmam que determinadas vises e sensaes

    constadas nestes escritos sagrados so similares ao transe promovido pelas

    principais substncias psicoativas, entre elas o LSD, a mescalina, a

    dimetiltriptamina8 e a psilocibina (LEARY; METZNER; ALPERT, 1964). As vises e

    sensaes so descritas, nesse guia bsico do xtase psicodlico a partir dacomparao com o Bardo Thodol, de acordo com a profundidade da experincia. Os

    nveis mais elementares e comuns parecem variar desde simples projees

    interiores de luzes, mandalas, figuras, raios e brilhos, at reflexes mais profundas

    de cunho pessoal e relativas aos aspectos emocionais do sujeito. So os chamados

    jogos visionrios que ampliam os sentimentos de amor, unidade e afeio.

    6 Para os daimistas, a mirao o mais perfeito estgio da experincia. quando se entra emcontato com a realidade divina. A mirao para os daimistas seria a burracheira para os udevistas.

    Em ambos os casos objetiva-se a ateno para o aprendizado favorecido pela ayahuasca. Daimistasso os seguidores de outra doutrina ayahuasqueira brasileira, mais conhecida por Santo Daime.7 Termo referente ao budismo tibetano.8 Princpio ativo presente na ayahuasca.

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    Os estados mais superficiais da experincia com o Vegetal, nos quais o

    adepto iniciante lanado ao comungar a bebida, na AEUDV encarado como

    mirao. As luzes, mandalas e vises internas que aparecem nesses momentos so

    interpretadas como simples criaes espontneas do ego. Eles costumam dizer que

    quando o Hoasqueiro comea a criar. O aluno disciplinado no d voz sua

    imaginao. Ele sabe canalizar o fluxo dessas informaes, durante o ritual, e vai

    procurando distinguir a burracheira da mirao.

    A mirao seriam esses filmes com luzes coloridas, tneis coloridos quevoc v e que a princpio no esto dizendo nada, a no ser para os olhos.A burracheira se apresenta quando tem algo para dizer. como se fosse opensamento da gente (...) como se fosse o nosso eu, no caso o espritonos falando abertamente e na hora da burracheira vem uma resposta muito

    inteligente. Ensinamento aquilo que voc v, ouve, sente e jamaisesquece, mas isso se voc for merecedor. A diferena da burracheira paramirao que voc v uma histria com comeo, meio e fim. Voc notauma inteligncia muito grande por trs explicando as coisas e na miraono. Tudo depende do seu merecimento (Mestre J Medeiros: 52 anos:pertence ao Quadro de Mestres da AEUDV).

    O merecimento um tema recorrente neste sistema de crenas. A doutrina

    udevista considerada crist e reencarnacionista. Acredita que nenhuma ao,

    gesto ou palavra possam existir sem uma reao. Seja ela positiva ou negativa,

    segundo os princpios da Unio do Vegetal, os problemas, infortnios, sade,doenas, tristezas e alegrias ocorrem pelo merecimento do sujeito. O que vivemos

    no presente reflexo daquilo que praticamos no passado. Os interlocutores

    acreditam que o caminho para a iluminao espiritual passa pela reduo dos erros

    a partir do acmulo das experincias vividas.

    O Vegetal atua ampliando as informaes necessrias ao esprito num curto

    espao de tempo. Seguindo este princpio, o nvel de informao obtido numa

    sesso com o Vegetal, tambm varia de acordo com o merecimento do adepto. Para

    ser merecedor desses ensinos, o aluno passa por algumas provas impostas

    naturalmente pelo ch professor. Ao longo da pesquisa9, os entrevistados da

    AEUDV evidenciaram alguns testes que o Hoasqueiro precisa superar para poder

    entrar nos encantos com mais lucidez.

    Para tal, antes de tudo, ele age com simplicidade, que est intimamente

    relacionada ao seu autocontrole sob o efeito da bebida. Eles afirmam que preciso

    9 Durante a pesquisa de campo foram dedicados, Associao Espiritualista Unio do Vegetal, napoca Sociedade Espiritualista Unio do Vegetal, os meses de novembro do ano de 2007 e janeiro,fevereiro e maro de 2008.

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    manter o p no cho e a cabea nas estrelas. Portanto o aluno no pode deixar-se

    engrandecer pelas vises e informaes obtidas durante o transe, pois essas falsas

    sensaes ou miraes interferem na comunicao com o Astral. O xtase maior ou

    burracheira, nesse caso, surge a partir das mensagens esclarecedoras de cunho

    pessoal e que passam a conduzir a vida do Hoasqueiro. Tais mensagens

    elucidativas so acessadas, a partir de um envolvimento maior do adepto nas

    sesses e na doutrina.

    Em comum acordo, eles afirmam que o discpulo tambm deve procurar ser

    solidrio e auxiliar os mais prximos a partir das instrues recebidas no Astral.

    Tudo isso representa uma espcie de preparao para que o Hoasqueiro entre nos

    encantos do Vegetal mais lcido e firme. Podemos entender essas provas como

    uma ao direta do xtase a partir do seu poder de mutao ontolgica, como

    pensado por Eliade (1992, p. 87) e que permite ao Hoasqueiro uma reformulao

    contnua de suas relaes com o corpo, com os outros e com mundo, de forma que

    a vida passa a adquirir outro sentido.

    Os testes da vaidade e do autocontrole apresentam-se, na verdade, como

    caminhos e fases que devem ser superados e que vo permitir um discernimento

    maior diante da forma peculiar com a qual o ch se comunica. As provas noseguem uma ordem pr-estabelecida, mas a superao dessas fases permite um

    maior grau de concentrao, que faz aumentar o grau de memria e recordao dos

    alunos. O discpulo doutrinado no se deixa levar pelas vises e mltiplas

    sensaes aparentemente provocadas pela ingesto do ch. Ele sabe o que quer e

    canaliza esse fluxo cognitivo a seu favor, porque com o tempo ele conseguiu

    domesticar aquela fora estranha fazendo-a sua fiel aliada10.

    Eliade (1992, p. 13) explica que o termo hierofania pode ser entendido comoa manifestao de uma realidade sacra. Representa a existncia de eventos

    incomuns realidade profana do homem e se manifesta de maneira variada em

    todas as religies. Nesse caso, correto afirmar que existe uma enorme variedade

    de hierofanias devido pluralidade de crenas inerentes ao comportamento

    humano. No caso Hoasqueiro, essa realidade sagrada se apresenta quando o

    indivduo bebe o Vegetal e, conseqentemente, tem acesso ao Astral Superior,

    considerado como a morada espiritual, morada do criador e de todos os seres

    10 Veremos que a fora estranha ou burracheira tambm domestica os indivduos atravs de castigospurificantes conhecidos como pias.

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    celestiais. Ele passa a freqentar tal realidade devido ao contato direto com as

    hierofanias fornecidas pela burracheira. Com o tempo, o aluno desenvolve um maior

    nvel de concentrao e discernimento tanto nas sesses como na sua vida

    cotidiana.

    Lembrando que para os Hoasqueiros essa funo oracular do Vegetal s

    atingida a partir do envolvimento maior do adepto com as doutrinas do mestre

    Gabriel. Nelas esto implcitos os padres de consumo da substncia entegena e

    as sanes pensadas por Zinberg (1984) e MacRae (2004). Os ensinamentos foram

    deixados para que seus discpulos estudem, avaliem e sigam os preceitos do

    mestre. Antes de tudo, preciso saber que o contato com o Astral est ligado,

    principalmente, ao interesse e autocontrole do aluno durante as experincias. A

    partir da possvel, com o tempo, canalizar o fluxo de informaes e distinguir a

    burracheira da mirao. Assim o adepto vai adquirindo uma conduta que est ligada

    ao seu merecimento. Ele passa a entrar nos encantos do ch com mais lucidez,

    meditando e adquirindo solues para problemas mais diversos.

    Todo aprendizado precisa ser posto em prtica; sendo assim, o Hoasqueiro

    procura auxiliar outros irmos a partir dessas informaes, para continuar sendo

    merecedor, seno o aluno ser cobrado diante de suas omisses e escolhaserradas. Eles costumam afirmar que a burracheira do tanto e do jeito que o mestre

    Gabriel quer e, sendo assim, a guarnio est garantida, porm preciso fazer por

    merecer. Segundo os interlocutores; o Vegetal tenta mostrar suas verdades pelo

    amor, mas quando o aluno rebelde, discorda ou esquece dos conselhos e quer

    seguir do seu jeito, o professor ensina pela dor.

    1.1 Domesticados pelo xtase. Quando desce a pia

    Para conseguir domesticar a fora estranha o Hoasqueiro deve,

    primeiramente, ser domesticado por ela. Em outras palavras, os alunos costumam

    ser submetidos a alguns castigos, decorrentes da desateno em relao aos

    interditos, ditos no Astral, e que envolvem mudanas de hbitos alimentares,

    abandono de vcios, cuidados com o corpo e com aqueles que lhes so mais

    prximos. Alguns atravessam passagens difceis durante as sesses, sendo

    acometidos por nuseas, vmitos, diarrias, sentimentos negativos, momentos de

    depresso ou ansiedade. Essas passagens so encaradas como momentos-chave

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    no processo de aprendizado. Muitas vezes surgem quando o aluno se mostra

    esquecido, desrespeitoso ou irresponsvel com os ensinos. Ento o Vegetal lhe

    aplica uma lio.

    A pia11 encarada pelos grupos ayahuasqueiros como um momento no qual

    o adepto expulsa do corpo as energias ruins seja vomitando, suando e ou chorando.

    Ela se apresenta como uma punio imposta pelo Vegetal aos seus discpulos, que

    devem seguir alguns preceitos bsicos, reforados nos rituais, na tentativa de evitar

    tais situaes adversas durante a sesso. quando vemos o xtase domesticando

    o homem (ELIADE, 1992) e o homem domesticando o xtase (ZINBERG, 1984 e

    MACRAE, 2004).

    A pia do Vegetal justamente quando as pessoas esto com aquelaconscincia intranqila, porque s vezes fazem coisas indevidas que atento eram devidas, mas eles percebem que aquelas devidas, soindevidas. Tudo comea com um drama de conscincia, uma reflexo dosseus atos, de suas atitudes, vem tona tudo quanto voc fez e voc temconscincia do porque est passando por tudo aquilo. Vem logo na menteisso: foi por tal coisa. Foi tal coisa que eu fiz. Voc comea a sentir e terconscincia de que est pagando por alguma coisa feita indevidamente.Isso a pia. Sempre vem muito vmito e mal-estar. Sempre vem pra purificar e ensinar(Mestre Patrcio: 66 anos: Mestre Representante daAEUDV).

    A pia aparece como um fenmeno universal em toda esfera ayahuasqueira,apresentando-se como componente estrutural e norteador dos ritos com a bebida.

    Seja entre as tribos indgenas e vegetalistas andinos onde o ch tambm

    conhecido por La purga (LUNA, 1986; MACRAE, 1992), seja entre os

    ayahuasqueiros brasileiros (Alto Santo, CEFLURIS, Barquinha e UDV). Refere-se s

    propriedades purgativas do ch que vm acompanhadas por sensaes de enjo,

    confuso mental, angstia e ansiedade que podem ser sentidas antes, durante e

    depois dos trabalhos com a infuso. O Vegetal parece exigir de seus discpulos um

    cuidado especial, um carinho com o mundo e uma espcie de mudana de atitude

    individual e coletiva. Segundo os interlocutores, isso permite ao adepto atingir a

    conduta necessria para a entrada nos encantos.

    Tal conduta surge acompanhada pela capacidade do aluno ao absorver e pr

    em prtica os ensinos favorecidos no Astral, pela ingesto da bebida. Aqueles

    discpulos mais teimosos recebem uma punio, um castigo carinhoso chamado

    pia. Isso porque determinadas atitudes cotidianas no condizem com o uso do

    11 Maiores detalhes sobre a pia consultar, Silva (2002), para os daimistas e Ricciardi (2008), para osudevistas.

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    Vegetal. A pia passa a ser um bom momento para a purificao e reflexo, no qual

    o adepto pode pensar sobre a sua condio no mundo a partir dos erros cometidos

    durante a vida.

    De acordo com Ricciardi (2008, p. 52), as sensaes ruins que acometem o

    sujeito durante estes momentos de purgao so evidncias de alguns elementos

    rituais, que surgem nos momentos da burracheira e que acompanham o adepto para

    alm das sesses, em seu cotidiano. O gosto amargo do ch, a sensao de pia e

    o enjo que ela produz parecem ser os elementos mais marcantes nesse

    processo12. Pode acontecer tambm do sujeito tomar o Vegetal e nada sentir. Para

    os Hoasqueiros essa a pior pia. Conhecido por castigo consciente, esse

    fenmeno pode causar constrangimento, pois o adepto que por ele acometido,

    muitas vezes sente-se no-merecedor quando no tem a oportunidade de entrar nos

    encantos.

    A lio do Vegetal parece ser maior de acordo com o grau de informao do

    discpulo. O castigo mais forte para queles que sabem mais. O ch parece

    mostrar um erro na vida da pessoa por vrias vezes, a partir de vrias pias

    distintas, sendo uma mais forte do que a outra. Nesse caso, as pias s acabam

    quando o indivduo aprende a lio e no volta a persistir no erro. Silva (2002, p. 94),ao investigar a pia nos sistemas daimistas, afirma que o castigo simblico possui

    mltiplos significados. A pia pode atingir qualquer pessoa numa sesso com

    ayahuasca. Ela se apresenta em quase todos os rituais e funciona como um tipo de

    disciplina que costuma ser aplicada aos discpulos pelas plantas professoras. Sua

    principal causa seria a desobedincia em relao aos ensinamentos e informaes

    recebidos no Astral.

    Porm a pia sempre vista como benfica e de ao purificadora. Apsesses momentos turbulentos, o indivduo sente-se renovado e mais aliviado, pois a

    pia, aparentemente, esclarece a origem dos infortnios e demais dificuldades

    vivenciados pelo sujeito no seu dia-a-dia. O Hoasqueiro sabe que a pia sempre

    vem para o bem. Ela vem para apurar e purificar. O castigo existe reforando a

    memria do aluno quando o mesmo esquece ou ignora os fundamentos

    Hoasqueiros na conduo das suas vidas cotidianas.

    12 De acordo com Ricciardi (2008, p. 52), alguns de seus interlocutores afirmaram ter sentido o gostoamargo do ch quando, por exemplo, consumiram bebida alcolica numa ocasio fora da atmosferaritual.

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    Ento quando chega ao salo e bebe o Vegetal, ele cobrado diante da sua

    omisso e displicncia. A pia tambm pode expor publicamente o castigado

    causando-lhe certo constrangimento perante a irmandade durante a dinmica ritual.

    Para evitar esses momentos turbulentos, os discpulos costumam modificar sua vida,

    reformulando hbitos, aes e conceitos no seu dia-a-dia quando domestica o

    xtase e se deixa domesticar por ele.

    1.1.2 As ms vises e o medo da morte

    No s o vmito, o enjo e a diarria so caractersticas da pia. Alm das

    confuses fisiolgicas e psquicas, nesse momento de purgao podem apareceralgumas vises ruins acompanhadas pelo medo da morte. Uma lio fundamental

    conhecida por todo Hoasqueiro consiste em perder o medo dessa experincia 13.

    Ele confia na guarnio do mestre Gabriel e para tal deve-se manter equilibrado

    durante a sesso para poder afastar os maus pensamentos e ms vises, seguindo

    firme durante a vida material e espiritual.

    Os efeitos do ch so comparados ao estado de falecimento, da o seu nome

    significar, na lngua quchua, liana dos espritos ou vinho das almas e at mesmo

    cip dos mortos (LUNA, 1986). Tal etimologia nos remete peculiaridade dessa

    bebida que induz seus adeptos nos vrios planos da conscincia no acessveis

    realidade comum. Na verdade, esses mltiplos nveis da conscincia ampliada

    passaram a ser combatidos culturalmente quando o ocidente tentou privilegiar a

    razo em detrimento emoo, aos desejos, sonhos e devaneios.

    O paradigma ocidental guiado pela ao do reducionismo que funciona

    mantendo o dualismo opositor entre razo e emoo; corpo e esprito; mente e

    crebro; cincia e arte; fantasia e realidade; vida e morte (LUTZ; WHITE, 1986;

    MORIN, 1999; MAFFESOLI, 2001; CARVALHO, 2003 e BACHELARD, 2004). Um

    paradigma pode ser compreendido como uma viso de mundo compartilhada por

    uma sociedade especfica, numa determinada poca e de acordo com determinada

    condio histrica. Tal constructo social norteador dita comportamentos,

    13 Quando passa mal numa sesso o Hoasqueiro chama por Tiuaco, que age no auxlio dos

    necessitados. Alguns castigos so intensos, ento os mestres dirigentes costumam fazer a chamadade Tiuaco que o grande rei no Salo do Vegetal. A histria de Tiuaco tambm est presente naHistria da Oaska. Maiores detalhes consultarBrissac (1999), Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira(2009).

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    Existe uma grande dificuldade em encarar a morte como um processo natural

    dos seres. Muitos acham o tema desesperador porque todo falecimento pe um

    ponto final no apego do ser vivo matria. Segundo o historiador Philippe Aris

    (1989, p. 56), a morte um forte tabu para os sistemas culturais ocidentais. No

    sabemos explic-la porque dela nos afastamos, mas ela nos incomoda e nos

    encontra, quando menos esperamos. Aris afirma que o medo e a repulsa impem

    interdies cotidianas ao tema e experincia da morte. A verdadeira morbidez,

    para este autor, seria nada falar a seu respeito e fingir que ela no existe.

    Portanto, tomando ayahuasca, os seres revisitam o tema da morte e se

    preparam para esse momento crucial. Sim, porque quando o falecimento lhes

    chegar, eles no contaro com a ajuda de ningum. Partiro sozinhos nessa

    jornada, ento eles precisam aprender como no se desesperar diante dos

    momentos da eventual desencarnao. E j que a morte o destino certo, ento

    cabe aos humanos viver melhor enquanto vivos. Os Hoasqueiros afirmam que o

    Vegetal mostra a casa dos espritos, ento cada ritual um retorno ao lar espiritual

    ou Astral Superior. Ele d uma idia de como a passagem. Para tal, preciso

    transcender o material e esse desprendimento doloroso para muitos iniciantes.

    Perder o medo da morte sem dvida uma grande prova para o alunoHoasqueiro, at porque, o enfrentamento desse medo pode ser considerado um

    rito de passagem que antecede a entrada nos encantos. Autores como Victor

    Turner (1974) e Arnold Van Gennep (1978) consideram como rito de passagem

    todo evento ritualstico que promova a superao de determinados limites

    temporais e espaciais. Sendo assim, o rito de passagem apresenta trs fases

    primordiais. Para Van Gennep; separao, margem e agregao, enquanto que

    para Turner; separao, liminaridade e reintegrao .Os dois autores afirmam que a fase intermediria do rito, mostra-se

    turbulenta, pois o indivduo separado do estado inicial e deixado em transio.

    Durante a margem, para Van Gennep (1978), ou liminaridade, para Turner (1974),

    emerge o medo e o perigo decorrente de tal condio ambgua. Nesses instantes

    inconstantes comum o surgimento de um forte sentimento de perda e at mesmo

    de uma morte momentnea.

    Podemos notar no caso Hoasqueiro que, durante as sesses, esses

    momentos de passagem so freqentes. Neles os participantes, aps tomar o

    Vegetal, so lanados aos distintos planos da conscincia, incomuns realidade

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    cotidiana. Aqueles discpulos mais antigos sabem o que os espera durante essa

    jornada, porm os mais inexperientes podem sentir-se desnorteados ao serem

    desconectados de suas realidades comuns e lanados ao plano espiritual. A

    turbulncia dessa passagem pode muito bem ser comparada aos estados de

    falecimento, desprendimento, perda ou vazio. preciso domesticar a fora

    estranha para poder ser domesticado por ela e perder o medo da morte faz parte

    desse processo de aprendizado.

    Segundo os alunos da AEUDV, o conhecimento maior propiciado pelo Vegetal

    s possvel quando a pessoa realmente entra nos encantos da burracheira. Para

    entrar preciso ser humilde e simples, mas ao mesmo tempo o discpulo deve ter

    firmeza para saber se controlar durante a experincia e perder o medo da morte,

    decorrente da dificuldade do desapego material. Para entrar no Astral, o aluno sabe

    que precisa adquirir uma conduta que no condiz com certos atos e

    comportamentos que so reformulados em prol do desenvolvimento espiritual do

    Hoasqueiro.

    Dessa forma, o discpulo encontra-se controlado e preparado para receber as

    mensagens da burracheira no Astral Superior, passando a encarar vida e morte em

    conjunto diante de sua caminhada espiritual, da qual emerge um constante fluxo deaprendizado e de contato entre as duas pores humanas, culturalmente opostas,

    mas que mantm uma ntima relao comensal entre si. Quando a matria

    conecta-se ao esprito e o esprito conecta-se matria, o xtase promove

    cenrios inesperados. O sujeito sente-se tomado por uma forte sensao de

    contato e unio com uma amplaconscincia universal, que existe por si e para si a

    partir da juno de todas as coisas numa constante dana csmica que mobiliza o

    macrocosmo, o microcosmo, o finito e o infinito sendo a morte apenas uma dasfases dessa dana.

    1.1.3 Pia coletiva

    O Hoasqueiro est ciente da importncia do seu papel durante a sesso. Ele

    sabe que um pequeno desvio em seu comportamento influencia negativamente, a

    corrente de pensamentos que circula entre as pessoas, durante as sesses no

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    Salo do Vegetal15. Muitas vezes, devido ao descontrole de alguns mais

    esquecidos ou desavisados, o distrbio individual provoca uma repercusso

    coletiva que interfere no desenvolvimento da ao ritual. Esses fenmenos

    turbulentos so vistos como interferncias na corrente de pensamentos devido ao

    distrbio e confuso de determinadas pessoas despreparadas dentro do salo.

    Cabe ao mestre dirigente receber e sentir a situao para poder corrigir essa

    interferncia, por meio das chaves contidas nas chamadas16 da Unio do Vegetal.

    A desarmonia de poucos influi na harmonia de muitos. Os focos de

    desarmonia representam centros de atrao para sentimentos e/ou pensamentos

    em igual sintonia, e tendem a se espalhar pela corrente (SILVA, 2002, p. 31). s

    vezes tambm acontece de um adepto passar sua angstia individual para outro

    membro, durante a sesso, atravs de um simples toque. Os Hoasqueiros

    costumam ter um cuidado muito especial com o contato corporal, pois a situao

    de uma pessoa pode ser direcionada a outra, que muitas vezes no est preparada

    para receber tamanha carga de informao e acaba desviando a ateno devida,

    exigida pelo ritual. Nesse caso, se j havia um pequeno distrbio, agora teriam dois

    ou mais, pois a situao pode chegar a atingir todos que estiverem no salo.

    Quando chega dentro do salo, encontra aquelas pessoas mais antigasnos ensinamentos e eles captam as energias dos que chegam. Ao invsdaquele que chega passar mal, muitas vezes aquela situao vem para a pessoa mais antiga. Isso so coisas que a burracheira mostra. s vezesvoc escuta muitas vozes. Aquela coisa no seu ouvido fica murmurando eno d para voc entender nada no! Sempre surge dessa maneira. Muitasvezes no d para voc entender nada do que chega at voc (Jair: 35anos: pertence ao Corpo Instrutivo da AEUDV).

    Sheldrake (1995, p. 330) ao analisar a transmisso de tendncias, formas e

    comportamentos na natureza, apresentou a hiptese da causalidade formativa na

    tentativa de compreender melhor alguns fenmenos naturais e culturais. correto

    afirmar, a partir dessa hiptese, que tanto a natureza quanto os sistemas sociais

    humanos dependem daquilo que aconteceu no passado. As tendncias, nesse caso,

    repetem-se, pois seriam transmitidas a partir de campos mrficos organizadores

    15 O templo onde acontecem as sesses com ayahuasca nos sistemas udevistas denominadoSalo do Vegetal.16 Essas chaves so capazes de abrir ou fechar determinadas portas nos distintos estados da

    percepo. Sempre vm junto das chamadas que so aprendidas nas sesses instrutivas assimcomo as histrias da Unio do Vegetal. Cada chamada contm uma chave e cada chave contm umahistria. Lembrando que toda a doutrina udevista oral e transmitida aos poucos de acordo com oenvolvimento do discpulo que condiz com o respectivo grau hierrquico que ocupa na Unio.

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    que estabelecem padres habituais especficos e particulares. Segundo Sheldrake

    (1995, p. 15), quando um hbito abandonado seu respectivo campo mrfico no

    desaparece, permanecendo, dessa forma, em estado latente, at que uma nova

    tendncia possa acion-lo.

    Campos mrficos no podem ser considerados objetos materiais e suas

    transmisses informacionais no so energticas. Eles devem ser encarados como

    meras regies de influncia. Os campos mrficos so mantidos e estabilizados pela

    ressonncia mrfica de sistemas semelhantes e anteriores. A ressonncia seria

    justamente a transmisso das influncias causais formativas atravs do tempo e do

    espao. Existe, dentro dos campos mrficos que so estabilizados e mantidos pela

    ressonncia mrfica, uma memria cumulativa que, para Sheldrake (1995, p. 15),

    explicaria o motivo que induz os fenmenos a se tornarem cada vez mais habituais

    por repetio. Os campos no so rgidos. Apresentam-se como zonas de

    probabilidade que possuem uma flexibilidade inerente sua transmisso. Podem

    facilmente deslocar as regies de atuao diante de uma reorganizao incomum s

    estruturas fsicas e materiais.

    Hbitos que se repetem so vistos tambm nas culturas e tradies que

    compartilham, segundo Sheldrake, de mltiplos campos mrficos que ditam o jeitode ser dos humanos. A influncia da ressonncia mrfica entre indivduos prximos

    tamanha, que os mesmos compartilham imagens, pensamentos, idias e

    sentimentos de acordo com o sistema cultural especfico que, como em todo o

    universo, segue regido pela hiptese da causalidade formativa na qual a

    ressonncia mrfica transmitida a partir da existncia desses campos mrficos.

    Para o nosso caso especfico no seria diferente, visto que a partir da

    hiptese da casualidade formativa, os sistemas ayahuasqueiros tambmcompartilhariam de campos mrficos que os conectariam ao passado a partir daquilo

    que pode ser entendido como tradio ayahuasqueira. Uma das provas concretas da

    atuao dos campos mrficos nesses sistemas de crenas pode ser observada, por

    exemplo, ao detectarmos a presena do fenmeno quase que universal da pia,

    emergente nas sesses com ayahuasca.

    Tambm podemos verificar, na prtica, a transferncia de certas tendncias

    quando analisamos o modo de ao de uma pia coletiva. Neste caso a tendncia

    ou situao, transmitida a todos no Salo do Vegetal, seja pelo simples toque

    corporal ou por desateno de alguns discpulos despreparados. Logo, as vises

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    ruins, sensaes de enjo, nuseas e vozes murmurantes passam a circular dentro

    da corrente de pensamentos. Segundo a hiptese da casualidade formativa, isso

    acontece devido atuao de campos mrficos j existentes, mas que durante a

    sesso so ativados pela ressonncia mrfica daqueles indivduos desatentos, que

    permitiram a generalizao e a transmisso da situao entre os demais.

    O mestre dirigente e os adeptos revertem essa atuao danosa por meio das

    chaves contidas nas chamadas da Unio do Vegetal. As chamadas tambm

    acionam outros campos mrficos que anulam a atuao das situaes adversas

    fazendo com que os Hoasqueiros domestiquem a fora estranha ao seu favor. A

    tenso equilibrada durante a sesso de modo que a tranqilidade volte ao salo e

    o ritual possa acontecer sem maiores transtornos, transformando a pia coletiva

    numa burracheira de luz. Isso quando o mestre dirigente equilibra a tenso da

    corrente e contorna a situao por meio das chamadas que trazem de volta a paz e

    a tranqilidade para dentro do Salo do Vegetal. Lembrando que o descontrole

    serve para a reflexo, purificao e para o bem dos alunos. So momentos

    turbulentos nos quais toda a irmandade aprende com seus erros e acertos,

    trabalhando a cada dia e a cada sesso para se aprimorar domesticando a fora

    estranha e sendo modificado por ela.

    1.2 Domesticando a fora estranha. Histrias e chamadas

    A crena udevista sustentada pela narrativa oral. Nenhum texto doutrinrio

    foi escrito ou arquivado que possa ser acessado nos parmetros materiais, salvo

    alguns artigos, dissertaes e teses cientficas17. Os ensinamentos so guardados

    na memria daqueles mais empenhados que por saberem mais, so mais cobradosporque tm mais a doar diante daqueles que desconhecem tal verdade. Os

    conceitos de memria e recordao so importantes bases udevistas. So, por

    assim dizer, os fios condutores dessa religio que se sustenta a partir da ao dos

    seus mestres e discpulos contadores de histrias.

    O grau de memria do adepto est relacionado ao seu grau de informao

    obtido na doutrina, que condiz com sua caminhada espiritual. No est

    17 Como exemplos, podemos citar as dissertaes de Brissac (1999), Andrade (2005) e Ricciardi(2008); a tese de Goulart (2004), alm do site oficial da instituio udevista: http://www.udv.org.br/

    http://www.udv.org.br/http://www.udv.org.br/http://www.udv.org.br/
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    necessariamente relacionado s acuidades intelectuais, porm est ligado

    capacidade do discpulo em saber ouvir, analisar, compreender, memorizar e

    recordar os ensinos do mestre Gabriel. O conhecimento transmitido aos poucos e

    de acordo com os graus hierrquicos18 constituintes dos sistemas guiados pela linha

    da Unio. O grau de memria e recordao do discpulo avaliado rotineiramente e

    est relacionado sua participao nos estudos da doutrina e ao seu

    comportamento dentro e fora do Salo do Vegetal. Durante as sesses instrutivas e

    aquelas direcionadas ao corpo do conselho19, o Hoasqueiro se aprofunda nos

    ensinos desse sistema de crenas. quando ele entra em contato com as histrias

    e chamadas da UDV.

    As histrias foram deixadas pelo mestre Gabriel para que seus seguidores

    possam revisitar, avaliar e compreender as mensagens implcitas nesses

    importantes mitos. Nenhuma delas possui registro escrito. Ficam guardadas na

    memria dos adeptos mais antigos que as transmitem aos demais durante as

    sesses de instruo. Eliade (1998) afirma que todos os mitos compartilhados pela

    humanidade representam as histrias das origens. Eles so, ao mesmo tempo,

    explicaes e exemplos, no sentido em que devem ser repetidos porque servem de

    modelos e justificao para todas as aes e crenas humanas.Segundo este autor, os mitos podem ser identificados como cosmognicos

    ou de origem. A narrativa dos dois tipos de mito nos remete a situaes iniciais,

    porm a explicao dos eventos ocorre em tempos distintos. O surgimento do

    cosmo e do universo relatado nos mitos cosmognicos, enquanto os de origem

    comumente explicam uma nova condio, quase sempre relacionada origem da

    vida. As duas categorias de mitos, pensadas pelo historiador, no se opem, sendo

    suas narrativas complementares e auto-explicativas.Tanto o mito cosmognico quanto o de passagem precisam ser reatualizados

    durante os rituais. O momento inicial, o auge da criao, enfim o gnesis absoluto

    faz com que o homem religioso identifique no mito cosmognico um tempo original e

    sagrado. A cosmogonia favorece o cenrio ideal para a explicao do mito de

    origem, pois a origem da vida dos personagens mticos s possvel depois que

    formado o mundo e o universo. Durante os ritos as narraes so revisitadas e o

    18

    So eles; discpulos do corpo instrutivo, discpulos do corpo do conselho e quadro de mestres.Maiores detalhes consultar Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).19 As sesses dos udevistas esto divididas entre sesses de escala, sesses extras, instrutivas ecomemorativas. Maiores detalhes consultar Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).

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    que acontece agora repete o que aconteceu antes e a repetio sempre remete

    primeira vez que aconteceu, no tempo mtico das origens.

    Nos sistemas udevistas, algumas histrias, que representam os mitos

    cosmognicos e de origem da doutrina, podem ser narradas pelos mestres

    dirigentes nas sesses de escala, enquanto outras ficam reservadas s sesses

    extras e instrutivas.

    A histria da Hoasca ouvida por todos. Mas tem a histria do carnaval,histria de So Cosme & So Damio, tem a histria de Santa Clara, tem ahistria da Samama, tem histria do doutor Camalango, tem a histria dacriao... Essa da criao s para o corpo instrutivo mesmo. Tem ahistria de Ado e Eva, entendeu? Ento tm vrias histrias que socontadas. A maioria das chamadas est conectada aos sentidos dessashistrias. Toda chamada tem uma chave (Mestre J Medeiros: 52 anos:

    pertence ao Quadro de Mestres da AEUDV).

    Elementos fornecidos pelo Astral, as chamadas narram, repetem e

    reatualizam os mitos Hoasqueiros. Os seres espirituais e mticos so relembrados

    nesses cnticos que trazem consigo muitas chaves que abrem e fecham as devidas

    portas dos distintos planos da conscincia. Muitas delas foram recebidas pelo

    mestre Gabriel. Seus discpulos, os Caianinhos20 ouvem, praticam, estudam e

    entoam as chamadas nos rituais. Elas so consideradas sagradas, pois foram

    recebidas diretamente dos seres que habitam o Astral. No podem ser alteradas enem apresentar mensagens vagas ou versos sem sentido.

    Existem critrios para aceitao desses cantos e utilizao dos mesmos entre

    os demais. Na UDV esse trabalho realizado pelo Conselho da Recordao. Tal

    conselho composto pelos mestres mais antigos na tradio, que se encarregam de

    selecionar as chamadas, estudar suas mensagens e saber o histrico de quem as

    recebeu. A AEUDV ainda no apresenta um quadro definido e direcionado seleo

    das novas chamadas que seus adeptos recebem, durante as sesses com oVegetal. Alguns afirmam t-las recebido21, mas as mesmas ainda no so entoadas

    nos trabalhos. Por enquanto, todas as chamadas feitas nos rituais dessa sociedade

    20 Os Caianinhos so os Hoasqueiros. Eles tambm so guarnecidos pelo personagem mtico Caianoo primeiro mestre da doutrina do Vegetal. Caiano tambm est presente na Histria da Oaska. Elerepresentada uma das vrias encarnaes do mestre Gabriel. Maiores detalhes consultar Andrade(2005), Goulart (2004), Ricciardi (2008) e Lira (2009).21 Na AEUDV, dois dos cinco entrevistados disseram ter recebido chamadas inditas durante a

    burracheira. Um mestre e o outro faz parte do corpo instrutivo. Ambos fizeram as chamadas fora docontexto ritual na presena do mestre Patrcio (mestre representante) que ainda est avaliando apossibilidade de inserir as chamadas desses irmos nas sesses. O mestre representante aqueleque representa um ncleo Hoasqueiro.

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    so udevistas e aprovadas pelo Conselho da Recordao. Mensagens recebidas

    pelos mais antigos mestres Hoasqueiros, sendo o mestre Gabriel o principal deles.

    MacRae (1992, p. 42) analisa os caros entoados pelos vegetalistas peruanos

    conhecedores da ayahuasca. Segundo este autor, tais cnticos xamnicos possuem

    um papel fundamental diante da conduo do ritual, pois norteiam as experincias

    msticas dos participantes. Ainda de acordo com MacRae (1992) os hinos entoados

    pelos daimistas, tambm possuem uma forte caracterstica de guiar a experincia

    dos fieis ao mesmo tempo em que so capazes de projetar imagens vivas na mente

    dos freqentadores dos rituais.

    No caso das chamadas udevistas, a capacidade norteadora destes cantos,

    que so entoados nas sesses com o Vegetal, tambm inerente. As palavras so

    simples, porm invocam e proporcionam uma miscelnea imagtica fenomenal.

    Para os ayahuasqueiros, inconcebvel entrar no mundo dos espritos em silncio

    (...) Os cantos (...) provocam uma ampliao do campo visual, bem como vises de

    figuras geomtricas. O som um catalisador de vises (DROUOT, 1999, p. 42).

    As chamadas tambm criam imagens nas mentes dos participantes da

    sesso e a vibrao, emitida pelas vozes daqueles que as cantam, funciona como

    um veculo primordial, que conduz a experincia do Hoasqueiro. Os cantos e osrituais trabalham em harmonia para criar um campo morfogentico que sustenta e

    amplifica a experincia exttica (idem). Sem dvida, como vimos em Zinberg (1984)

    e MacRae (2004), nas histrias e chamadas da UDV esto implcitas as sanes

    sociais com as quais o Hoasqueiro domestica a experincia. Elas tm uma

    importncia fundamental porque estimulam e desencadeiam os eventos durante as

    sesses, alm de reatualizarem os mitos udevistas22. Cantar para o divino tambm

    parece constituir um fenmeno universal dentre aqueles que comungam essa bebidaxamnica23.

    Na AEUDV os adeptos so encorajados a entoar chamadas e realizar

    perguntas durante os rituais. Nos sistemas udevistas, essa participao ativa do

    22 Optei por no divulgar os contedos das chamadas, pois alm desses cnticos seremconsiderados sagrados, os seus registros escritos vo de encontro aos princpios dessa doutrina.Nossa anlise no direcionada aos elementos que constituem as chamadas e sim s suasfuncionalidades a partir da interpretao dos adeptos.23

    A existncia dessa tendncia tambm pode ser entendida a partir da hiptese da casualidadeformativa pensada por Sheldrake (1995) na medida em que observamos que os cantos e as msicasso bastante comuns entre queles que utilizam ritualmente essa bebida. Talvez os campos mrficose a ressonncia mrfica tambm influenciem na recorrncia do fenmeno de cantar para o divino.

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    aluno garante o seu grau de instruo, firmeza, memria, recordao e interesse

    para com as doutrinas do mestre Gabriel. Portanto necessrio que ele saiba o

    que est fazendo e atenha-se s necessidades do trabalho. Obrigatoriamente em

    toda sesso de escala, devem ser feitas as chamadas de abertura e fechamento da

    sesso24.

    Durante o ritual, outras chamadas surgem de acordo com a necessidade do

    trabalho. De acordo com o que est circulando dentro da corrente de pensamentos.

    Cabe ao mestre dirigente, e aos alunos, saber o que fazer durante as possveis

    eventualidades. As chamadas de fora so feitas no salo no intuito de ampliar a

    fora do Vegetal e aumentar a burracheira. Existem chamadas de luz, que trazem

    clareza e esclarecimento para que todos tenham discernimento e possam se

    concentrar nos ensinos da sesso. Tambm tm as chamadas de socorro, caso

    algum participante precise de auxlio ou esteja passando por maus momentos

    durante os trabalhos.

    Tambm algumas chamadas trazem cura, pois agem no intuito de aliviar ou

    curar determinados infortnios, a depender do merecimento do enfermo. O papel

    das chamadas parece ir alm da funcionalidade ritual. Elas tambm acompanham

    o dia-a-dia dos adeptos. Elas ficam, por assim dizer, na cabea do aluno. Vez ououtra podem surgir no meio da semana e isso faz o adepto recordar do seu lugar

    de poder. Os adeptos indicam que muitas vezes esse consolo pode aparecer em

    momentos de crise, quando o Hoasqueiro se encontra perdido, no seu cotidiano,

    em problemas dos mais diversos. Involuntariamente, o subconsciente libera esses

    smbolos rituais que vm tona, de forma que um pouco da paz de esprito

    inerente s letras e vibraes das chamadas possa auxiliar, reforar e discernir os

    caminhos certos a serem trilhados.

    1.2.1 Simbologia Hoasqueira no caminhar cotidiano

    Da literatura antropolgica sobre ayahuasca emerge um padro

    surpreendente, que o da recorrncia de certos elementos comuns s vises

    provocadas pela infuso. Harner (1973, p. 155-175) concluiu que os itens mais

    comuns nas vises relatadas por indgenas so cobras, jaguares, demnios,

    24 Alguns personagens da cosmologia udevista so evocados nas chamadas de abertura efechamento. Maiores detalhes consultar, Goulart (2004, p. 22).

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    informaes contidas nos depoimentos das anlises antropolgicas de Koch-

    Grunberg (1921), Rouhier (1924), Taussig (1987), Harner (1973), Reichel-Dolmatof

    (1975) e nas pinturas artsticas do xam andino Pablo Amaringo (LUNA;

    AMARINGO, 1993).

    Os contedos dos quadros de Amaringo (49 pinturas) so direcionados s

    vises emergentes nas experincias com o ch (Figura 1.a & Figura 1.b). Para

    Shanon (2003) tais imagens so comuns entre queles que comungam essa mstica

    bebida.

    Figura 1: Vision of the snakes, dcima stima pintura de Amaringo (LUNA; AMARINGO, 1993, p.49). Contedos que, para Shanon (2003), so compartilhados entre os usurios da ayahuasca.

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    Figura 2:Types of Sorcery, vigsima nona viso de Pablo Amaringo (LUNA; AMARINGO, 1993, p.179). Notvel presena de contedos compartilhados entre distintos usurios desse ch, de acordocom a pesquisa de Shanon (2003).

    A partir da anlise de Shanon (1993), os corpora, ou conjunto de dados

    obtidos mediante o contedo das obras de Amaringo, foram bastante semelhantes

    queles levantados pelos relatos dos informantes pr-selecionados para sua

    pesquisa, ou seja, usurios dessa bebida imersos em culturas distintas e que a

    utilizam nos contextos mais diversos. Foi possvel, durante a pesquisa de Shanon

    (2003), a construo de uma espcie de mapeamento geral e sistematizado de

    alguns contedos visuais comuns mstica experincia.Os elementos de contedo predominantes nos relatos parecem definir um

    quadro nico e coerente, ligado, ao mundo do fantstico, do maravilhoso e do

    encantado. Assim sendo, o autor separou os elementos visuais em quatro domnios

    principais: da natureza, da cultura, da fantasia e espiritual/sobrenatural. O que

    parece ser mais intrigante nessa pesquisa o fato de que:

    (...) alguns dos elementos mais comuns que aparecem nos dados nopertencem natureza, mas cultura: em especial os objetos de arte emagia (geralmente preciosos) e vrios complexos arquitetnicos. Asprincipais manifestaes do domnio da cultura so cidades majestosas, amagnificncia da realeza, os vrios produtos da criao artstica, religio emagia (SHANON, 2003, p. 136).

    Usualmente, de acordo com Shanon (2003), o que aparece nas vises no

    so contedos relativos ao meio sociocultural do prprio bebedor, mas sim aqueles

    associados, principalmente s civilizaes antigas e demais elaboraes culturais

    distantes, porm freqentes no inconsciente coletivo daqueles que comungam essa

    bebida sagrada. Isso no quer dizer que todos vejam e sintam as mesmas coisas,

    sendo tais percepes bastante variveis de acordo com a poca, o lugar, o estado

    de esprito do bebedor e demais acontecimentos emergentes numa sesso

    especfica, como msicas, conversas e demais explanaes.

    Shanon (2003) procurou levantar e explicar as recorrncias visuais de

    maneira global, mesmo considerando-as um mistrio. Em nenhuma hiptese

    procurou oferecer uma explicao definitiva para o fenmeno. Em vez disso, ele

    considerou esses achados intrigantes e passveis ao dilogo entre antropologia e

    psicologia. Ele concluiu que os elementos mais comuns nas vises seriam as

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    serpentes e os jaguares, que habitam os mitos e o imaginrio dos povos

    amaznicos.

    (...) numa dessas ltimas sesses, houve aqui uma situao onde eu vi

    uma pessoa e na mesma hora a pessoa era uma cobra. Eu nunca tinhavisto uma cobra daquela! Uma cobra verde, brilhosa. Uma coisa bemdiferente. Tambm s vi assim, ela andando bem longe e brilhosa. Umacoisa muito diferente (Dona Yonny: 58 anos: pertence ao Corpo doConselho da AEUDV).

    Alm disso, o pesquisador afirma que os elementos visuais emergentes nas

    sesses com ayahuasca, divergem daqueles comuns aos sonhos. Em geral, os

    sonhos tm a ver com os acontecimentos e interesses da vida corrente do sujeito,

    enquanto as vises tm a ver com mundos que parecem bastante estranhos s

    experincias da vida ordinria (SHANON, 2003, p. 135). Aquilo que aparece nasvises, segundo Shanon (2003), reflete tanto as contingncias ligadas pessoa que

    bebe a infuso, quanto aos padres cuja universalidade transcende a individuao

    pessoal.

    Entretanto, devemos lembrar que a experincia com ayahuasca no se

    resume apenas s vises proporcionadas aos sujeitos que ingerem essa infuso. A

    hiptese da casualidade formativa, pensada por Sheldrake (1995), tambm nos

    ajuda a entender, por exemplo, como possvel a existncia de um padro visualcomum entre os distintos usurios da ayahuasca. A atuao da ressonncia mrfica,

    devido manifestao de campos mrficos especficos promove a padronizao e a

    repetio dos fenmenos visuais, entre eles a recorrncia de imagens arquetpicas

    como serpentes, jaguares, palcios, templos, deidades, demnios, rvores,

    mandalas, flores e borboletas.

    No de nosso interesse padronizar as vises dos informantes, mesmo

    porque acreditamos que tais contedos no teriam sentido isolados de seu contextoritual que, no caso das sistematizaes, desconsideraria outras sensaes

    individuais que tambm interferem na experincia, como por exemplo, reflexes

    pessoais, reformulao de conceitos, alegria, tristeza ou agonia emergentes a partir

    da projeo inconsciente de determinadas imagens.

    As vises podem at no estar diretamente relacionadas ao ambiente scio-

    cultural dos usurios, como pensado por Shanon (2003), portanto as condies com

    as quais elas se apresentam, as motivaes que influenciam, assim como a msica

    e as explanaes subseqentes s mesmas so fatores primordiais, que permitem

    ao adepto avaliar sua vida a partir desses ensinamentos, que tambm incluem essas

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    imagens projetadas inconscientemente. Seria esse o processo da burracheira,

    unindo tais elementos em prol da reflexo e do aprendizado do Hoasqueiro. A

    doutrina, na qual a beberagem administrada, influencia diretamente nos eventos

    da experincia.

    possvel afirmar, diante da anlise dos princpios cosmolgicos udevistas,

    que a vida espiritual do Hoasqueiro no se dissocia da vida material. Entretanto, os

    informantes da AEUDV, em comum acordo, afirmam que as coisas da vida no se

    resolvem apenas no plano astral. Eles precisam de corpo e esprito para cumprir sua

    misso maior nesse plano terrestre. Essa misso maior, ao que tudo indica, a

    eterna busca do conhecimento para si e para os outros. As aulas astrais se

    estendem para alm dos limites rituais. A conduta do Hoasqueiro est ligada s

    mudanas de atitude rotineiras que muitas vezes so capazes de promover a

    reduo dos danos causados por doenas e vcios, que podem estar interligados no

    processo da enfermidade, de acordo com a lei do merecimento. Dessa forma,

    inegvel a informao de que tais rituais ofertam indicadores simblicos de como

    reorientar a vida na direo do melhor.

    Eu deixei de beber. Eu parei de beber. No foi o Vegetal que me fez pararde beber, na verdade foram outros determinantes, foram outras foras que

    me fizeram parar de beber. Eu tambm fumava muito e o que me fez pararde fumar mesmo foi Deus e o Vegetal. Se voc tivesse idia das coisas quea burracheira me mostrou sobre o cigarro, nem queira saber! Cada coisafeia e as peias que eu levei porque fumava e bebia... Voc no tem idia. OVegetal me auxiliou muito em relao ansiedade, em relao angstia...Eu sinto que como se eu tivesse retomado um caminho certo pra mim,entendeu? Um caminho difcil porque tm obstculos, tm muitas coisasque voc tem que vencer, merecer, conhecer e firmar, mas um caminhode luz, um caminho bom (Jair: 35 anos: pertence ao Corpo Instrutivo daAEUDV).

    O aluno Hoasqueiro tambm sabe que o ch um simples veculo que amplia

    os sentidos da doutrina do mestre Gabriel. O Vegetal apenas a ponte que conduza ida e a volta do astral. Ele facilita a abertura dos portais, mas para tal tem que

    existir disciplina, ordem e discernimento daqueles que vo atravessar essa

    passagem. quando podemos ver a interao das duas metades do homem que se

    constroem e se mantm mutuamente, numa eterna jornada rumo ao aprimoramento.

    Matria e esprito. O dualismo, nesse caso, no redutor e essa relao

    passa a ser retroalimentada pela ao de ambas as partes que unidas, do

    continuidade ao homem renovado que repensa seus objetivos, atos, palavras,gestos e emoes num eterno ciclo complexo entre o material e o metafsico, sem

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    que ambas as partes se anulem ou disputem entre si, durante a caminhada

    espiritual.

    O Vegetal atua acelerando o aprendizado do esprito nessa jornada evolutiva.

    Porm, essa potencialidade cognitiva tem um preo. Os Hoasqueiros afirmam que

    quanto mais informao se obtm, mais responsabilidade se tem e mais se

    cobrado devido ao nvel de informao de cada um. Por isso, as pias so bem mais

    intensas para aqueles que tm mais conhecimento. Informao, responsabilidade e

    cobrana aparecem, nessa dinmica cognitiva, como trs parcelas diretamente

    proporcionais. Os conceitos de certo e errado, nesse caso, passam pelo nvel de

    conhecimento individual. Essa matemtica do aprendizado Hoasqueiro repercute na

    vida social, na medida em que o indivduo passa por densos perodos de reflexo

    (durante a burracheira) que o fazem se posicionar no cosmo, no mundo, na vida, no

    corpo e na sociedade. A experincia do transe exttico faz do adepto um ser

    pensante:

    (...) que no o reflexo da imagem de Deus algum, mas que permite quetodos os deuses o atravessem como uma ampla e inesgotvel manifestaoda natureza, para que assim possa enxergar que todos os deusesatravessam todos os homens (SILVA, 2002, p. 313).

    A reformulao de certos atos e conceitos inerente a tal processo. Amudana do adepto chama a ateno de alguns da sociedade, principalmente

    amigos e familiares do Hoasqueiro, que muitas vezes passam a procurar o ch,

    depois de observar como o mesmo conseguiu modificar sua vida, para melhor. O

    Vegetal parece atrair aqueles indivduos mais indisciplinados, arredios e

    estigmatizados. justamente o estranhamento provocado pela benfica mudana

    de comportamento do hoasqueiro, que faz com que muitas pessoas cheguem aos

    centros, na busca dos conhecimentos do ch. Os novos grupos ayahuasqueirosfornecem este tipo de auxlio social, ampliando as chances das pessoas se

    reencontrarem na vida a partir de um posterior reencantamento do mundo.

    1.2.2 Visitando a noosfera

    O conceito de noosfera foi inicialmente proposto no ano de 1885 por Vladimir

    Ivanovich Vernadsky, um mineralogista e geoqumico russo-ucraniano. Segundo

    Edgard Morin (1998), a palavra noosfera de origem grega e representa crculo

    psquico; do grego noos = mente (alma, esprito, pensamento, conscincia) e

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralogiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Geoqu%C3%ADmicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%BAssiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ucr%C3%A2niahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ucr%C3%A2niahttp://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%BAssiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Geoqu%C3%ADmicahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralogia
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    sphera (corpo limitado por uma superfcie redonda) . Ela representa justamente a

    camada do pensamento, idias e crenas humanas, construda a partir dos milnios

    da existncia do Homo sapiens e que se estabeleceu em conjunto com a geosfera e

    a biosfera.

    Na dcada de 1920, o filsofo jesuta e paleontlogo francs Pierre Theilard

    de Chardin reformulou esse conceito, ampliando alguns detalhes dessa perspectiva.

    Segundo ele, alm da atmosfera, geosfera e biosfera, existe tambm a noosfera, ou

    seja, a morada dos deuses, mitos e idias, formada a partir de produtos culturais,

    pelo esprito, linguagens, teorias, doutrinas e conhecimentos elaborados pela raa

    humana (THEILARD DE CHARDIN, 1955).

    Diante dessa perspectiva podemos considerar que as culturas esto nos

    espritos, assim como os espritos esto nas culturas. As sociedades s existem e

    as culturas s se formam, conservam, transmitem e desenvolvem atravs das

    interaes cerebrais-espirituais entre os indivduos(MORIN, 1998, p. 23).

    Alimentamos a noosfera quando pensamos e nos comunicamos. Mas no

    podemos esquecer que a noosfera tambm nos alimenta, a partir dos mitos, idias e

    pensamentos promovidos pelos diversos sistemas simblicos e culturais. Esses

    elementos, na verdade, podem ser considerados extenses do Homo sapiens, queretroagem conosco, porm muitas vezes no so percebidos como tais, pois o

    homem atual encontra-se fragmentado e alheio sua situao no mundo e no

    cosmo. Apesar da aparente distino feita entre o material e o espiritual, as duas

    pores so, ao mesmo tempo, co-produtoras recprocas uma da outra. No podem

    ser reduzidas uma a outra por serem distintas e no podem ser separadas por

    serem co-produtoras, estabelecendo-se uma relao complexa e criativa (MORIN,

    1998, p. 145-146).Alguns autores, entre eles, Karl Popper (1977) e Edgard Morin (1998)

    referem-se noosfera como o terceiro mundo. As coisas (mitos, espritos e

    smbolos) que habitam essa esfera do pensamento, tm vida e vontade prpria. Elas

    ajudam a construir os humanos que as constroem, pois so dotadas por um

    magnfico dinamismo co-produtor.

    possvel aceitar a realidade (caso possa cham-la assim) a autonomia doterceiro mundo e, ao mesmo tempo, admitir que o terceiro mundo nascecomo um produto da atividade humana (POPPER, 1977 apud MORIN,1998, p. 159).

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    O homem completo, consciente do seu devir, age e se deixa interagir por

    essas estruturas do pensamento que emergem naturalmente ao longo de sua vida.

    Um dos exemplos desse homem, no fragmentado na contemporaneidade, seria o

    Hoasqueiro, que mesmo vivendo o momento atual das fragmentaes, consegue

    unir as partes dispersas no mundo, a partir do contato direto com essa dinmica

    camada do pensamento. Seus mitos e ritos mantm, ampliam e alimentam o astral

    (noosfera) assim como o astral conduz as suas vidas cotidianas fazendo-os

    repensar atos, gestos e antigos conceitos. Os dois nveis da existncia encontram-

    se interligados e reorganizados numa lgica para alm das bases reducionistas.

    Essa esfera como um meio, no sentido mediador do termo, interpostoentre ns e o mundo exterior para fazer-nos comunicar com este. o meiocondutor do conhecimento humano (...) As culturas humanas produziramsmbolos, idias, mitos, que se tornaram indispensveis s nossas vidassociais. Os smbolos, idias e mitos, criaram um universo onde os nossosespritos habitam (MORIN, 1998, p. 146).

    Mas como essas extenses humanas, que ficam nos mbitos restritos da

    noosfera, podem extrapolar tais domnios astrais e atuar no cotidiano do Hoasqueiro,

    quando o mesmo se encontra longe do Salo do Vegetal? plausvel o argumento

    de que tal fenmeno pode ser influenciado pela ao direta de alguns smbolos

    emergentes durante a experincia religiosa. No caso dos sistemas udevistas taissmbolos esto presentes nas chamadas, histrias e situaes de pia, alm das

    mensagens e vises do mundo espiritual, presenciadas durante os rituais.

    A atividade inconsciente do homem moderno no cessa de lhe apresentarinmeros smbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, umacerta misso a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilbrio dapsique ou restabelec-lo (...) O smbolo no somente torna o Mundoaberto, mas tambm ajuda o homem religioso a alcanar o universal. Pois graas aos smbolos que o homem sai de sua situao particular e seabre para o geral e o universal. Os smbolos despertam a experinciaindividual e transmudam-na em ato espiritual, em compreenso metafsicado Mundo (ELIADE, 1992, p. 111-112).

    O antroplogo lingista Edward Sapir (1934) analisa os smbolos criados

    pelos seres humanos, acoplando-os em duas grandes categorias; smbolos

    referenciais e smbolos de condensao. A primeira categoria composta por

    aqueles smbolos que j possuem um significado comum sociedade, de forma que

    sua atuao direciona a funcionalidade da mesma. Os smbolos de condensao

    estariam ligados emoo e aos demais aspectos desconhecidos do inconsciente.

    Assim sendo, esses smbolos manifestam-se sob a forma de metforas, durante a

    dinmica ritual.

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    necessidade de mudana interior porque sabe que para reformular o mundo em que

    vive, precisa mudar a si mesmo.

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    Recebido em: 29/04/2010

    Aceito em: 02/05/2010