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Relações Internacionais: teorias e agendas Antonio Jorge Ramalho da Rocha Antonio Jorge Ramalho da Rocha Antonio Jorge Ramalho da Rocha Antonio Jorge Ramalho da Rocha

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Relações Internacionais:

teorias e agendas

Antonio Jorge Ramalho da RochaAntonio Jorge Ramalho da RochaAntonio Jorge Ramalho da RochaAntonio Jorge Ramalho da Rocha

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Sumário

Introdução ..................................................................................................................................... 2 Testemunho do autor .................................................................................................................. 5 Debate .......................................................................................................................................... 21

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Introdução

“Si come il mangiare sanza voglia fia dannosa allá salute, cosi lo studio sanza desiderio guasta la memória

e non ritien cosa ch’ella pigli” Leonardo da Vinci1

A tese: “Relações Internacionais: teorias e agendas” expõe e discute as principais dimensões do debate teórico no campo das Relações Internacionais nas últimas décadas. Seu objetivo precípuo é encorajar o leitor a refletir sobre as relações internacionais contemporâneas e sobre o modo como os pensadores conferem sentido aos fatos, fenômenos e processos que as constituem. Mais do que informar acerca das teorias, quer-se, aqui, estimular os leitores a pensar teoricamente a respeito do campo de estudos das Relações Internacionais. Não se trata, pois, propriamente, de um manual de Teoria das Relações Internacionais, onde o leitor possa encontrar algo próximo a uma taxonomia de conceitos e teorias, “caixas” e rótulos que possa utilizar para simplificar o que dizem os especialistas a respeito da realidade internacional contemporânea. Trata-se, em verdade, de um esforço destinado a trazer ao debate acadêmico nacional as discussões epistemológicas, metodológicas e teóricas atualmente em curso na comunidade dos analistas das relações internacionais. O título do texto encerra uma espécie de síntese de seu principal argumento: Relações Internacionais constitui um campo de estudos em que prevalece uma pluralidade de teorias, as quais buscam organizar, em agendas de investigação, os temas que constam nas mais importantes agendas internacionais. Por isso, teorias e agendas, assim mesmo, no plural. São várias as teorias e é plural o sentido em que aparecem as agendas: agendas de investigação, para os intelectuais que refletem sobre as Relações Internacionais; e agendas de ação para os indivíduos e organizações, públicas e privadas, estatais e não-estatais, que movem as relações internacionais. Estruturas e agentes constroem-se, pois, em permanente interação, quer pela ótica racionalista, quer pela construtivista. Pelo primeiro prisma, parte-se da premissa da racionalidade instrumental dos agentes, que visam a, no âmbito internacional, conformar e utilizar estruturas institucionais e normativas destinadas a aumentar-lhes a capacidade de avançar suas preferências, nem sempre com sucesso para os agentes mais poderosos ou com resultados positivos para a coletividade, em função de problemas de ação coletiva. Aqui, discutem-se os diferentes – e complementares – níveis de análise, procurando explicar as decisões tomadas no contexto internacional a partir do ponto de vista dos indivíduos, dos estados e organizações, e do sistema internacional, para lembrar a lição de um dos expoentes desta agenda de investigação, Kenneth Waltz.

1 Da Vinci, Leonardo. 1991. Scritti letterari. Roma, Rizzoli Del Libri, S.p.A. 4ª Edição.

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Pelo segundo prisma, a ênfase recai nas normas e instituições internacionais, na extensão com que os valores condicionam não somente as expectativas, mas também a identidade e as diferentes construções que os agentes produzem da realidade internacional e, nela, de seu próprio lugar e significado. Nesse contexto, estruturas e agentes não existem de forma autônoma, ainda que influenciados uns pelos outros. Aqui, as estruturas, mais ou menos positivadas, e os agentes constituem-se mutuamente, evoluem dinamicamente, cabendo aos analistas compreender o modo como eles se transformam e, ao fazê-lo, giram a roda da fortuna, mudam o mundo, engendram a própria evolução das relações internacionais. Já não se trata, assim, de explicar fenômenos, mas de entender-lhes a essência, inclusive mantendo presente a extensão em que tal compreensão resulta do sistema conceitual utilizado para lhes conferir sentido. Ao mergulhar nessa discussão, isto é, ao produzir diálogos entre racionalistas e construtivistas, o texto ressalta, inicialmente, a condição discursiva do campo de estudo das Relações Internacionais. Apresentam-se as “teorias” como discursos teóricos, a saber, construções do pensamento humano que possuem características especificas, necessárias a que sejam consideradas válidas pelos analistas das Relações Internacionais. Enfatiza-se, portanto, a dimensão social deste processo, por meio do qual se produz um tipo específico de conhecimento – o científico – acerca das relações internacionais contemporâneas. Em seguida, tais diálogos convidam o leitor a atentar para o fato de que a realidade internacional, propriamente dita, não existe em categorias, mas na forma de um continuum de fatos e processos, inclusive interpretativos, cuja compreensão constitui a razão de ser deste campo de estudo. Trabalha-se, pois, com diferentes níveis de abstração, que são explicitados ao leitor, com vistas a facilitar-lhe o exercício de reflexão sobre tais fatos e processos e sobre o modo como eles são percebidos pelos analistas das Relações Internacionais. Salienta-se, assim, o fato, nem sempre evidente, de que os indivíduos não agem de acordo com a natureza dos fenômenos e processos em que estão imersos agem de acordo com sua percepção desses fenômenos e processos. Isso se aplica não apenas ao comportamento dos agentes tidos como “objeto de estudo” dos analistas, mas também ao próprio trabalho de reflexão dos analistas, que produzem interpretações divergentes da mesma realidade, a depender do sistema conceitual utilizado para torná-la compreensível. Embora à primeira vista essa discussão pareça algo abstrata, o leitor logo verá que não é difícil dela participar, e que a boa teoria, aqui estudada, é, no dizer de Olson, “intensamente prática”. Apresentados em linguagem simples, quase coloquial, os discursos teóricos mais relevantes no campo das Relações Internacionais são confrontados, com o fito de evitar a definição que, de forma bem-humorada, o poeta Mario Quintana atribuía a diálogos: “monólogos intercalados”. Com efeito, procurou-se, ao máximo, evitar aqui esta super-posição de argumentos, tão comum em discussões teóricas. Como resultado, analisa-se cada conceito, cada sistema conceitual e cada “grande debate” entre teorias em seu contexto histórico e discursivo, com vistas a

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facilitar ao leitor o trabalho de construir sua própria visão acerca deste campo de estudos e da utilidade de cada um dos discursos teóricos que o integram. Afinal, parte-se do pressuposto de que o estudo das Relações Internacionais requer o desenvolvimento de habilidades analíticas, o permanente exercício da crítica e da auto-crítica. Por isso, referimo-nos a essa atividade como inerente a um campo de estudos, e não a uma “disciplina” cujo paradigma é preciso aprender e aplicar. Organização do Texto O texto está organizado em sete capítulos, além desta apresentação. Inicia-se com uma breve introdução, em que se analisa o surgimento de Relações Internacionais como campo de estudos e se explicita o conteúdo dos capítulos seguintes. O capítulo 2 convida o leitor a refletir sobre o modo como os discursos científicos organizam, no plano intelectual, as complexidades inerentes à realidade a que se referem, aplicando essa discussão à realidade internacional. Em seguida, discutem-se as reflexões epistemológicas e meta-teóricas comuns entre os analistas das Relações Internacionais, que constituem o cerne do capítulo 3. No capítulo 4, a atenção recai sobre o surgimento do campo de estudos, seu lugar na história do pensamento político ocidental e suas características específicas. Enfatiza-se o surgimento do Estado nacional e o modo como, nas agendas de investigação racionalista e construtivista (base do atual debate teórico no campo das Relações Internacionais), fatos e idéias juntam-se, servindo a construir o que hoje se entende por relações internacionais. O capítulo 5 aprofunda os debates meta-teóricos presentes nos vários sistemas conceituais aceitos como válidos para interpretar as relações internacionais contemporâneas, com ênfase para processos tais como as várias formas de cooperação e conflito e a construção de relações de poder e de autoridade entre agentes na esfera internacional. O capítulo 6, mais descritivo que analítico, apresenta e questiona o alcance de conceitos-chave neste campo de estudo, com o objetivo de esclarecer, nos argumentos dos principais discursos teóricos das Relações Internacionais, os limites explicativos de conceitos tais como “anarquia” e “equilíbrio de poder”, de um lado, e, de outro lado, de sistemas conceituais, a exemplo do Realismo, da Economia Política Internacional ou da Interdependência Complexa. Por fim, uma breve conclusão resume o argumento do livro, encorajando o leitor, uma vez mais, a evitar leituras simplificadoras da realidade internacional. Afinal, meu objetivo, desde o início, era estimular o desenvolvimento do espírito crítico na formação dos jovens brasileiros que tencionam tornar-se analistas das relações internacionais. Cabe ao leitor avaliar a extensão em que consegui sucesso nesse empreendimento.

Antonio Jorge Ramalho da Rocha.

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Testemunho do Autor

É muita responsabilidade iniciar essa série de debates acadêmicos, naturalmente com o receio de decepcionar as pessoas com um tema tão árido: teoria. Mas a idéia é fazer deste debate algo informal, tranqüilo, uma discussão entre amigos, que podem criticar-se sem cerimônia. Na verdade, a tese foi escrita em uma linguagem que objetiva, em alguma medida, isso. Logo será transformada em livro, também com uma linguagem mais acessível, o mais acessível possível, para tentar “seduzir” as pessoas não propriamente por conhecer teorias das relações internacionais, mas por pensar teoricamente o campo de estudos das Relações Internacionais. Então, eu vou procurar ser bastante informal, na maior medida possível.

Qual que é a idéia da tese? Quais são seus objetivos centrais? Existem objetivos gerais e específicos na tese. Eu vou procurar expor a vocês, em grandes linhas, os objetivos principais. Vou iniciar com uma discussão sobre níveis de abstração em que ocorrem as reflexões teóricas, a produção de discursos científicos e a aplicação desses discursos científicos ao campo das Relações Internacionais. Essas duas primeiras sessões, em que se divide a primeira parte da nossa conversa de hoje, são um pouco mais áridas; vou procurar ser mais breve nelas. Então, comentarei o principal corpo do argumento da tese, o debate entre “racionalistas e construtivistas”, em cuja apresentação procurarei fazer uma espécie de provocação a vocês, com vistas a conhecermos melhor o diálogo real entre duas agendas de investigações em que se pode dividir, hoje, o campo de estudos das RI.

Há, portanto, uma agenda construtivista e uma agenda racionalista. Estas agendas baseiam-se em métodos diferentes, sempre métodos científicos, os quais, por uma série de critérios, são considerados capazes de produzir discursos validados por uma comunidade de analistas, em nosso caso, analistas das Relações Internacionais. Eu destaco muito, ao longo do texto, essa dimensão social da produção do conhecimento. A partir daí, procuro esclarecer um pouco melhor o atual estágio da agenda de debates no campo das RI. Essencialmente, o que a tese faz é isso. Na verdade, ela vai um pouco além, mas isso não vai sair na parte que será publicada: ela aplica algumas teorias de lingüística ao tratamento dos discursos científicos, que intitulo discursos teóricos, no campo das RI.

Essa é uma das primeiras inovações da tese. Mais do que fazer uma espécie de taxonomia, como as pessoas normalmente fazem quando vão estudar teoria das RI, o que eu procuro fazer é revelar o alcance explicativo, ou melhor, o alcance interpretativo de cada discurso teórico. Então, o meu objeto de estudo não são as relações internacionais propriamente ditas, ou seja, os eventos, os fenômenos, os processos, os agentes que movem interesses, que giram o mundo, que fazem acontecer aquilo que nós chamamos de relações internacionais, mas os discursos teóricos que explicam ou que procuram interpretar o papel dessas estruturas (estruturas institucionais, normativas ou ideacionais) e desses agentes, alguns agentes públicos, outros privados; alguns institucionalizados, outros não tanto. Portanto, em grandes linhas, isso é o que eu proponho fazer, aqui, com vocês. Na tese, o que eu faço é aplicar, no último capítulo,

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teorias de lingüística, para analisar a dimensão lógica do conteúdo semântico, sintático e pragmático de cada um desses discursos. Esta é uma parte mais abstrata, menos interessante para aqueles que não têm muito interesse por temas relacionados a Lingüística. Na verdade, como eu tinha que trabalhar com um objeto de estudo que não era um conjunto de eventos, mas de discursos, eu recorri a um ferramental de análise de discursos e não a um ferramental de análise de fenômenos, a saber, de temas, de agentes, de instituições e coisas do gênero.

Isto posto, começo a entrar na primeira parte da discussão. Existem três níveis de abstração com que eu trabalho na tese. O primeiro nível seria o nível meta-teórico, em que existe aquilo que se chama de meta-ciência, o que está além da ciência propriamente dita, de que se pode ter conta por meio ou da filosofia ou da lingüística. O que eu faço aqui é optar não pela filosofia da linguagem, mas por sistemas conceituais da lingüística que já produzem resultados naquilo que os lingüistas chamam de análises dialógicas, ou seja, análises de diálogos. Como isso funciona? Eu trato cada sistema conceitual como um discurso científico, e, ao tratar esse sistema conceitual não como uma revelação de verdades absolutas, mas como um sistema conceitual, como o que ele é, um conjunto de conceitos que são logicamente consistentes e que obedecem a determinados critérios segundo os quais nós reconhecemos como científico um tipo específico de conhecimento e como válida a sua produção.

Muito bem, eu trabalho, então, nesse nível meta-científico, a fim de analisar as teorias, que seriam um segundo nível de abstração, um segundo nível discursivo, em que se podem produzir interpretações acerca de fenômenos da realidade. O meu objeto de estudo está neste nível: são os sistemas conceituais, são os discursos teóricos. Esses discursos teóricos, por sua vez, referem-se à realidade propriamente dita. Aqueles que tiverem a paciência de ler o livro mais adiante verão que, às vezes, eu faço algum recurso à poesia. Afinal, neste mundo em que vivemos não há salvação sem senso de humor e sem poesia.

A propósito de poesia, o poeta Mário Quintana costumava definir diálogo como “dois monólogos intercalados”. Quer dizer, com muita freqüência nós vemos as pessoas afirmando e reafirmando as mesmas coisas, a sua própria visão de mundo, sem conseguir entender o que o outro está dizendo. O que eu consigo demonstrar, inclusive com uma análise da produção de conceitos no campo da ciência, de um modo geral, e no campo das Relações Internacionais, em particular, é a intersecção dos conteúdos semânticos dos conceitos utilizados neste campo do saber Em outras palavras, demonstro que é possível afirmar coisas distintas acerca da realidade utilizando os mesmos conceitos para conferir sentido àquilo que existe na realidade, a que se referem os conceitos, que os analistas utilizam em seus discursos, em seus sistemas conceituais.

O que vai diferenciar a produção de conhecimento científico da produção de outros tipos de conhecimento são os critérios de validação desse conhecimento científico. Neste ponto, eu recorro a um filósofo da ciência, matemático, chamado Alfred North Whitehead, que, num livrinho muito interessante, uma série de conferências, chamado ‘A Função da Razão’ (esse livro foi traduzido nos anos 80 pela Universidade de Brasília), coloca uma série de critérios bastante abrangentes e, eu diria, úteis, a definir

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o que vem a ser o conhecimento científico. Assim, eu digo que o meu conhecimento é científico quando: (1) a fim de ser testado, meu discurso, para ser científico, deve necessariamente ser produzido em um idioma conhecido, além de ser publicado; além disso, (2) ele é logicamente consistente, ou seja, os conceitos que ali estão não se contradizem: isso se chama a consistência lógica interna do discurso; (3) ele é externamente consistente do ponto de vista lógico, ou seja, ele não é negado por outros discursos, também científicos, acerca desta mesma realidade; (4) ele encontra ampla conformidade com a observação empírica, isto é, constantemente, repetidamente, ele se mostra capaz de afirmar coisas sobre a realidade que nos ajudam a lidar melhor com essa realidade; (5) esse sistema conceitual não é negado pela realidade, não encontra discordância com as observações empíricas desta realidade. Todos vocês já devem ter lido Popper, toda aquela discussão sobre os cisnes negros e os cisnes brancos, não é? Se eu tenho uma teoria que afirma que todos os cisnes são brancos e eu só vejo, mesmo em um milhão de observações, cisnes brancos, ou seja, minha teoria é amplamente referendada pela observação empírica, tudo o que tenho é a expectativa de que o próximo cisne a ser observado será branco. No dia em que eu encontrar um cisne negro, a minha teoria foi por água abaixo. A rigor, no campo da ciência, esse é o ideal de produção de conhecimento científico.

Nunca se chega, de fato, a esse ideal, porque sempre se vai ampliando o horizonte do conhecimento científico, até mesmo pela aplicação e pelo teste dos sistemas conceituais com que trabalhamos e, ao observarmos elementos discordantes na realidade, aquilo que, do ponto de vista da discussão de paradigmas, alguns chamariam de anomalias, se não tivermos outro melhor discurso científico para dar conta desta realidade, nós conviveremos com os discursos científicos que temos, mesmo sabendo que eles são insuficientes, incompletos, imperfeitos e assim por diante.

Porque que eu lhes chamo a atenção para isso? Em primeiro lugar, porque existem outras formas de produção de conhecimento que não devem ser negligenciadas. Eu posso produzir conhecimentos sobre a realidade por meio da arte, por meio de um discurso estético, um discurso literário, um discurso religioso. São formas racionais de se produzir conhecimentos sobre a realidade, que ajudam as pessoas a lidar melhor com o ambiente em que elas estão inseridas e, principalmente, a lidar melhor umas com as outras. São genuínas manifestações do espírito humano. Ocorre que o conhecimento religioso requer a fé, o conhecimento artístico as preferências estéticas das pessoas. Nenhum desses tipos de conhecimento requer a condição de esquema lógico, uma sistematização lógica interna, uma consistência lógica interna; nenhum desses discursos requer uma consistência lógica externa, nenhum desses discursos requer uma ampla conformidade com a realidade, nenhum desses discursos requer que ele não seja negado pela realidade propriamente dita. Ou seja, estou apenas querendo ressaltar a dimensão de humildade característica da produção do conhecimento científico.

Com isso, eu não estou dizendo que este tipo de conhecimento é melhor do que os outros; ao contrário, opto por me incluir entre aqueles analistas que reconhecem as limitações da capacidade de produção de conhecimento científico sobre a realidade. São limitações, mas são limitações que nos dão também um conhecimento muito mais

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rigoroso, mais sustentado, muito mais firme acerca daquilo que acontece na realidade. Novamente, se vocês quiserem um exemplo coloquial, algo que sempre me ocorre neste tipo de discussão, pensem na produção de conhecimento sobre a alma humana. Se vocês quiserem entender a alma humana, tão importante quanto entender os psicólogos, os psiquiatras, etc., é, em minha opinião, ler gente como Dostoievski, Edgar Poe, Fernando Pessoa; é ler gente como, ente nós, Machado de Assis, Paulo Bonfim e Manuel de Barros; são autores que, por outros meios, por meio de um discurso estético, produziram conhecimentos bastante relevantes sobre a alma humana; isso não pode ser negligenciado. Eles, apenas não assumem qualquer compromisso com a validação científica do seu discurso, porque eles não estão fazendo ciência; eles estão fazendo arte, estão fazendo literatura, eles estão fazendo qualquer outra coisa. Esta distinção é importante porque alguns dos analistas que se dizem parte da escola construtivista de análise das relações internacionais, na verdade, optam por essa escola, por assim dizer, pós-moderna, que confere total autonomia ao discurso. Não é isso que os construtivistas fazem.

Os construtivistas aceitos pela comunidade dos analistas das Relações Internacionais, cuja obra foi validada do ponto de vista desses critérios científicos, esses construtivistas não afirmam o que bem querem sobre a realidade. Eles precisam de um discurso logicamente consistente, eles precisam de um discurso que não seja negado por outros, eles precisam de um discurso que encontre respaldo na realidade, e assim por diante; ou seja, um discurso que atenda a todos aqueles critérios de validação da produção de conhecimento científico. Então, a tese mergulha muito nessa discussão mais abstrata a respeito da produção de conhecimento científico, do modo como se produzem conceitos. Há pelo menos dois modos de produção de conceitos a que recorro para produzir meu argumento. Recorro à teoria dos conjuntos de Cantor, na matemática, e recorro a um outro matemático, um filósofo da ciência, estudioso da linguagem e dos mitos, que produziu amplamente sobre a formação de mitos, o Dr. Ernst Cassirer. Mas essa é uma discussão mais árida, que talvez não interesse aos senhores.

Basta lembrar-lhes de que estou trabalhando com teorias como objeto de estudo. Por conseguinte, utilizo um ferramental meta-teórico, meta-científico, um conjunto de conceitos que, por assim dizer, está fora da ciência: um conjunto de conceitos de lingüística, no meu caso. Isso foi uma opção, já que eu poderia ter utilizado um outro conjunto de conceitos para analisar essas teorias, a partir da Filosofia da Ciência. Notem que me refiro apenas àquelas teorias que obedecem aos critérios de validação mencionados, critérios de validação que são aceitos pela comunidade de analistas das RI. Então não é qualquer discurso que entra nesse campo de estudo, mas apenas aquele tipo de discurso científico que obedece a determinados critérios de validação e que, portanto, são reconhecidos como válidos pelos integrantes dessa comunidade de analistas das relações internacionais. Novamente, observem a dimensão social da produção de conhecimento, já que é preciso produzir um consenso a respeito dos discursos aceitos para conferir sentido as relações internacionais contemporâneas.

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Chamo-lhes a atenção para isso por que? Uma das críticas que aparecem ao longo do texto diz respeito ao fato de que o principal corpo teórico, ou os principais sistemas conceituais com que nós trabalhamos no campo das RI são sistema conceituais produzidos nos Estados Unidos, produzidos na Europa, são sistemas conceituais cujo objetivo principal é responder aos anseios dos analistas americanos, dos analistas europeus, ou seja, o modo como eles percebem a organização da realidade internacional. A primeira grande lição que aprendi com meu trabalho, foi a necessidade de abstração para pensar não apenas as teorias, mas seus pressupostos. Por isso, insisto no que eu coloquei inicialmente, na idéia de que não cabe fazer uma taxonomia de sistemas conceituais, mas convidar o leitor a pensar teoricamente. O que eu quero dizer com isso? Os sistemas conceituais com que nós trabalhamos são sistemas conceituais desenvolvidos para resolver problemas que não são nossos; nós precisamos ter isso claro. Não vejam nisso, por favor, qualquer idéia conspiratória; não há nenhuma idéia de que se manipule a percepção da realidade em países emergentes, nada disso.

A única coisa que eu procuro salientar é o fato de que é preciso conhecer essa comunidade de analistas das RI, ou seja, os indivíduos que são respeitados no campo e de cuja aprovação esses sistemas conceituais necessitam para serem considerados parte do campo de estudos das Relações Internacionais. Essa aprovação dá-se por pessoas que não vivem os nossos problemas, que não se preocupam com o mundo da mesma forma que nós, que não organizam o continuum em que a realidade nos é dada da mesma maneira que nós. Ou seja, a primeira grande lição qual é?

Em minha opinião, é a de que a realidade não vem em categorias; as categorias são criações do nosso pensamento, criações que podem ser rigorosas do ponto de vista científico, como é o caso das que estudo aqui, ou criações literárias, religiosas, qualquer outra coisa. Mas esse continuum é organizado para nós, a agenda do que vêm a ser as relações internacionais, os fenômenos relevantes, as estruturas que devem ou não ser modificadas, os agentes cujo comportamento deve ou não ser tomado em consideração, essa organização da realidade se dá, em primeiro lugar, intelectualmente, e essa produção intelectual acontece alhures, em um fórum de que nós participamos muito pouco. A idéia é primeiro conhecermos esse fórum, conhecermos esse processo de produção e validação de conhecimento científico, para podermos dele participar de uma maneira mais efetiva, de uma maneira mais capaz de influenciar o modo como alguns problemas emergem na agenda internacional – ou deixam de emergir nesta agenda. Em outras palavras, há, também aqui, um conjunto de relações de autoridade, autoridades que se constituem não institucionalmente, mas que se constituem pela capacidade de manipular esses sistemas conceituais, de fazer bom uso deles, e de, com isso, produzir um conhecimento que passará a ser validado como conhecimento científico.

Então, resumindo o que eu coloquei até agora, qual é o cerne do debate? Primeiro, eu discuto, de uma maneira bastante específica e, quero crer, didática, como se produzem conceitos, por um lado, e como se produzem sistemas conceituais. Eu faço uma distinção entre o que são sistemas conceituais que nós consideramos como capazes de produzir conhecimento científico sobre a realidade internacional, daqueles sistemas, conceituais também, que não obedecem a esses critérios de validação e que, portanto,

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são alguma coisa diferente da produção de conhecimento científico. Não são melhores nem piores, mas apenas discursos que não obedecem a esses critérios de validação.

Hoje em dia, quando se observam confrontações, no cenário internacional, entre pessoas que pensam a realidade internacional a partir de categorias religiosas, a partir do que julgam ser a vontade de Deus, etc., confrontados com opiniões científicas ou pseudo-científicas da realidade internacional, esse tipo de debate ganha relevância. Cabe, pelo menos, ter consciência da necessidade de validação das análises feitas sobre uma guerra, por exemplo, entre Estados Unidos e... Nomeiem vocês, o leque de opções é bastante vasto. Em todo caso, é importante você saber como o seu adversário concebe a realidade, se isso se valida ou não por meio de um discurso científico. No Ocidente, e é só com o pensamento ocidental que eu trabalho, procura-se sempre aumentar a autoridade de argumentos e posições por meio de sua validação na forma de conhecimento científico.

Passo, então, ao segundo tema que gostaria de discutir com vocês. Imaginem vocês, e aí eu vou tentar tornar a coisa mais clara acerca de como acontece o diálogo entre duas agendas de investigação: a agenda construtivista e a agenda racionalista no campo das RI. Imaginem vocês que nós tivéssemos dois extra-terrestres, um marciano economista e um marciano antropólogo, vindo à Terra para estudar determinadas relações humanas. Imaginem que eles nos vissem aqui, que, de início, viesse o nosso marciano economista, olhasse para o que está acontecendo nessa sala e dissesse: “bom, há uma pessoa falando, há outras pessoas ouvindo; mais adiante, essas pessoas que estão ouvindo vão falar, a pessoa que está falando vai calar e ouvi-las, e assim por diante”. Nosso marciano economista vai tomar nota disso e vai passar a outras observações; digamos que vá a uma igreja aqui ao lado e, lá, observe um padre falando e um conjunto de pessoas ouvindo. Em seguida, aquelas pessoas que estão ouvindo vão falar e o padre vai calar-se; e vice-versa. Esse marciano economista vai tomar nota disso. Nosso marciano economista irá então a uma Corte, a um tribunal, onde verá, também, algumas pessoas sentadas, ouvindo, e outras pessoas falando, sentadas ou em pé. Ele irá anotar esses detalhes: se uns estão em pé, se outros estão sentados, como esses papéis se alternam e procurar imaginar as causas da alteração desses papéis. Ele vai construir um modelo que explique o comportamento dos seus objetos de estudo, e poderá afirmar, por exemplo: “esses indivíduos não agem aleatoriamente. Eu assumo que existe alguma racionalidade no comportamento desses seres humanos, por estranhos que pareçam, e que essa racionalidade maximiza os seus objetivos, e assim por diante”. Ele vai construir um modelo sobre o que está acontecendo aqui, sobre o que está acontecendo naquela igreja, sobre o que está acontecendo naquele tribunal, e assim por diante.

E ele pode chegar à conclusão, como resultado da aplicação de seu modelo, de que uma única experiência social está sendo vivenciada pelos seres humanos que observou. Vocês poderão olhar para mim e dizer: “bom, não faz muito sentido”. Nosso marciano economista dirá, em defesa de seu método: ”se eu fizer teste suficientes do meu modelo, eu vou conseguir, empiricamente, demonstrar é possível chegar, em algum momento, à conclusão de que o que acontece numa sala como estas é diferente do

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que acontece numa igreja, e daquilo que acontece num tribunal, e assim por diante”. Mas, afinal, qual é o método que ele vai utilizar?

Em primeiro lugar, irá assumir a racionalidade daqueles indivíduos, ou seja, todos os indivíduos são capazes de identificar seus objetivos, hierarquizar seus objetivos, fazer cálculos de custo e benefício em função destes objetivos, atribuir preferências aos outros e, só então, ao interagir, maximizar o seu benefício ou minimizar o seu custo; ou seja, maximizar a sua utilidade. Não é isso? Seja maximizando benefícios, seja minimizando custos, ou, dependendo da situação, as duas coisas simultaneamente, supõe-se que o analista irá atribuir preferências aos indivíduos cujo comportamento quer explicar, preferências que são exógenas a este indivíduo. Se ele quiser saber quais são as preferências daqueles indivíduos, terá que fazer uma consulta, terá que perguntar a essas pessoas quais são as suas preferências. É assim que um bom economista vai agir, ele pode até supor qual é a sua estrutura de preferências dos indivíduos cujo comportamento quer analisar, mas sabe que, ao atribuir-lhes preferências, pode equivocar-se na análise, na medida em que essas preferências não sejam exatamente as destes indivíduos. O que importa, para ele é que, uma vez definida a estrutura de preferências, há transitividade entre elas e o indivíduo prefere a primeira à segunda, a segunda à terceira, e assim por diante, em função de sua percepção dos custos e benefícios associados à consecução de cada objetivo. Assim, assume-se que o ator racional maximiza sua utilidade. Madre Tereza de Calcutá, por exemplo, tinha lá a sua estrutura de preferências e era tão “egoísta”, no sentido utilitário do termo, quanto os gestores dos fundos de derivativos no mercado financeiro, se nós aceitarmos esse discurso do nosso marciano economista – e também o dos economistas terráqueos...

É óbvio que há grande utilidade, assim como limitações, nesse método de produção de conhecimento. O que importa, para mim, é começar a instigá-los a refletir sobre este método de produção de conhecimento. O que faria o nosso marciano economista? Ele faria o máximo possível de observações e tentaria validar, dessa maneira, o seu modelo acerca de porque os seres humanos, estranhos como são, se comportam da maneira como ele observou.

Nosso marciano antropólogo, por outro lado, adotaria um método diferente de investigação. Ele procuraria misturar-se aos indivíduos dessas comunidades, ele procuraria desempenhar diferentes papéis sociais, ele procuraria interpretar comportamentos, ele procuraria compreender como essas pessoas apreendem a realidade em que elas estão inseridas e por que essas pessoas se comportam como se comportam. Há estruturas normativas, há estruturas institucionais, há estruturas de valores, que, juntas, produzem identidades específicas, e essas identidades específicas condicionam o modo como as pessoas se comportam em sociedade, de uma maneira a priori, ou seja, nem todos os indivíduos agem como agem porque estão maximizando a sua utilidade.

Um outro exemplo, recorrendo à literatura, que sempre me ocorre, é a história do nosso velho adágio popular. Diz-se que “a ocasião faz o ladrão”. A melhor resposta que eu já ouvi a isso foi a do Machado de Assis, que afirmava que “a ocasião faz o furto, o ladrão nasce feito”. Afinal, qualquer indivíduo, sabendo o que é certo e sabendo o que é

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errado, pode ter todas as ocasiões do mundo de furtar e não furtar, porque foi formado dessa maneira, porque a sua identidade, porque os seus valores, porque a sua constituição, porque o modo como ele se vê naquela sociedade não lhe permite fazer isso, ainda que saiba que poderia maximizar sua utilidade, do ponto de vista material, agindo de uma maneira distinta.

Em última instância, o que os construtivistas vão procurar colocar é a necessidade de se ter em conta, também, esse método de produção de conhecimento no campo das Relações Internacionais. Afinal, o que eles vão nos dizer? Dirão que não apenas as estruturas de poder no sistema internacional importam, mas também desempenham papel relevante as identidades dos países que detêm esses recursos de poder, o modo como eles percebem a si mesmos e uns aos outros; isso também vai condicionar o seu comportamento. Se eu quiser ter um bom conjunto de interpretações acerca da realidade internacional, ou seja, algo que me responda porque os Estados, porque os demais agentes no contexto internacional agem como agem, não basta apenas adotar o método racionalista de construção de modelos, mas eu preciso entender como as estruturas normativas, como as estruturas de valores, como as estruturas institucionais, no campo das Relações Internacionais, constroem identidades, as quais, por sua vez, condicionam o comportamento dos agentes.

Os americanos podem ter medo da Coréia do Norte produzir uma bomba nuclear, por menos que isso pareça provável, dadas as condições do país; no entanto, eles passam segredos nucleares para a Grã-Bretanha, eles passam segredos nucleares para o Canadá, sem medo de que esses segredos nucleares sejam usados, no futuro, contra eles. Se nós aceitássemos o argumento realista tradicional, isso não poderia acontecer, pois o amigo de hoje pode ser o inimigo de amanhã. No entanto, alguma coisa faz com que a relação que se criou entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, entre Estados Unidos e Canadá simplesmente coloque fora do horizonte de percepção dos indivíduos que tomam decisões em nome desses Estados, a expectativa de uma futura guerra de um país contra o outro. Porque isso? Para isso não se encontra explicação na dimensão material de distribuição de recursos de poder no contexto internacional.

A única explicação que eu posso encontrar para isso repousa na dimensão sociológica da construção de identidades, não apenas entre burocracias, mas entre sociedades, que, em última instância, se refletem no Estado, tanto nas burocracias do Executivo, como as do Legislativo, e assim por diante. Isso significa o quê?

Ao longo da tese, o que eu procuro fazer é colocar essas duas agendas de investigação, esses conjuntos de explicações e de interpretações da realidade. Explicações no sentido da agenda racionalista, isto é, discursos que partirão do pressuposto de que, não importa o nível de análise em que eu trabalho, o meu ator é racional. Isso significa o quê? Eu posso atribuir racionalidade ao Estado nacional, por mais que eu saiba que ele é feito de um conjunto de organizações, organizações essas que possuem suas próprias identidades, suas próprias rotinas, que maximizam sua própria utilidade. Alguns dirão: “a maximização da sua utilidade – os realistas dirão – implica a preocupação com segurança em primeiro lugar”. Neste caso, são os ganhos relativos, portanto, que importam. Outros dirão: “a maximização da utilidade desse ator

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não pressupõe a preocupação com a segurança em primeiro lugar”; aí você tem todo o argumento neoliberal, dizendo: “há situações em que os ganhos absolutos são mais relevantes”. Por quê? Porque não existe a percepção de uma ameaça contra a sua sobrevivência. Nesse sentido eu trabalho com o modelo do ator racional, como Allisson definiu há cerca de três décadas.

Mas o que eu estou dizendo? Eu estou trabalhando neste nível de análise, o nível do sistema internacional, e, via de regra, esses autores trabalham com o conceito de sistema, por oposição aos construtivistas, que trabalham com o conceito de sociedade internacional. Uns estão dizendo: “são sistemas de forças; é a interação destes agentes que importa e eu posso atribuir-lhes racionalidade; eu posso observar quais são as posições relativas e, ao observa-las, inferir quais são os prováveis comportamentos desses indivíduos; se eu errar na minha previsão, o meu modelo pode estar errado; isso significa que eu parti das premissas erradas, então eu tenho que rever as minhas premissas”. Dessa maneira é possível construir conhecimento sobre a realidade internacional, um conhecimento útil, um conhecimento aplicado, um conhecimento que nos ajuda a lidar melhor uns com os outros, mas um conhecimento apenas limitado das relações internacionais contemporâneas.

Posso descer para o segundo nível de análise, trabalhar no plano das organizações, tanto organizações públicas, como organizações privadas, ou semi-públicas, se vocês quiserem também. Neste caso, atribuo racionalidade aos ministérios, atribuo racionalidade às burocracias das organizações internacionais, atribuo racionalidade às empresas e procuro ver como elas tentam avançar seus interesses nos Estados, na esfera internacional, definindo regras, coisas dessa natureza. Mas eu ainda trabalho, aqui, com esse modelo do ator racional. Eu estou dizendo o quê? Cada um desses meus objetos de estudo pode ser considerado como um agente racional e, como tal, ele identifica suas preferências, hierarquiza-as, analisa as alternativas de ação, atribui-lhes pesos em função de seus objetivos, etc., etc.

Desço mais um nível de análise, se vocês quiserem, e trabalho com os tomadores de decisão como agentes racionais. Cada um de nós, se olhar para a sua própria vida, verá que, na maioria das vezes, ou pelo menos a maioria das vezes mais importantes, provavelmente não se comportou como um ator racional. A cada decisão que tomamos, nós não identificamos os nossos principais objetivos, nós não os hierarquizamos, nós não fazemos cálculos de custos e benefícios em função de todas as alternativas de ação possíveis... Entretanto, os economistas, assim como os cientistas políticos que trabalham com a escola da ação racional, conseguem construir modelos que nos ajudam a explicar, de uma maneira bastante satisfatória, porque as coisas ocorrem como ocorrem. Fazem-no ao assumir que, na maioria das vezes, a maioria das pessoas age como se fosse um ator racional, segundo este modelo. Novamente, o que eu estou fazendo? Descendo um nível de análise e aumentando a complexidade das explicações que eu produzo acerca da realidade internacional.

Há quem trabalhe até com um meio termo, isso está começando a voltar agora com o governo de George W. Bush, não é mesmo? No governo de George Bush, prevalecia a opinião de que um grupo de pessoas que trabalhava de uma maneira coesa;

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ou seja, não importava muito o cargo daquelas pessoas, importava que este era o núcleo de tomada de decisões do governo. A administração Kennedy também marcou-se por isso. Há toda uma parte da literatura que trabalha com essa noção de group think, ou seja, grupos pequenos em que se constrói uma certa solidariedade entre seus integrantes, de modo a fazer prevalecer a opinião daquele grupo. Às vezes, os indivíduos que os integram estão vendo claramente que a decisão tomada é equivocada, mas, porque elas querem se manter como parte daquele pequeno grupo, elas acedem, elas concordam com a opinião da maioria. Então, há quem coloque, aí, um meio termo entre o nível do indivíduo e o nível das organizações ao trabalhar com esses grupos, se vocês quiserem, interministeriais, interburocráticos; às vezes são pessoas que não têm nada que ver com a própria burocracia do Estado. Quem aqui se lembra do governo Itamar Franco sabe que havia um senhor chamado José de Castro, Presidente da Telerj, aqui no Rio de Janeiro, que participava de todas as principais decisões do governo federal.

Quem quisesse estudar o processo decisório da burocracia brasileira com base nos organogramas teria muita dificuldade de entender porque o presidente de uma estatal, integrante do então conhecido “grupo do pão de queijo” possuía tanta influência junto ao governo federal. Ou seja, baseando-me apenas nas estruturas institucionais não vou conseguir explicar o processo decisório, tanto de política externa como de política doméstica. Essencialmente, uma vez mais, assume-se que esse grupo responsável pelas decisões funciona como se fosse um agente racional; suas decisões são supostamente mais ou menos coerentes com sua visão de mundo, ainda que seja uma visão de mundo deturpada, mas pressupõe-se uma certa coerência.

Por outro lado, saindo da agenda racionalista, há construtivistas que vão procurar chamar mais atenção para a extensão em que as estruturas normativas definem a capacidade de atuação, de intervenção dos indivíduos; ou seja, esses analistas assumem, de antemão, que não há relações de causalidade direta, ou seja, as estruturas não causam os agentes dessa maneira, ou os agentes não constroem estruturas daquela maneira, mas estruturas e agentes constroem-se mutuamente e esta construção de identidades é influenciada por percepções da realidade. Dessa maneira, define-se um conjunto de regras de uma sociedade internacional, conjunto esse que vai condicionar a evolução do comportamento desses agentes, inclusive para transformar essas estruturas institucionais e normativas.

Nesse caso, o exercício intelectual empreendido é melhor exemplificado pelo nosso marciano antropólogo, isto é, o analista procura tomar o lugar de cada um daqueles indivíduos e entender como essas construções de valores, essas construções de normas, como esses indivíduos internalizam esses tipos de comportamento e passam a reproduzir, em alguma medida, esses tipos de comportamento; por outra parte, e em contraste, pode ser que, à medida em que eles começam a se desviar desse tipo de comportamento, permitam a consecução de mudanças, ainda que marginais, de início, mas ainda mudanças, nessas estruturas normativas; mudanças essas que podem levar também a transformações institucionais e assim por diante. Portanto, tem-se, aqui, uma preocupação muito maior com o uso de regras, não apenas aquelas regras positivadas,

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não apenas aquelas regras consagradas em tratados internacionais, mas aquilo que, por consenso da comunidade dos analistas das relações internacionais, se decidiu chamar de regimes internacionais.

A utilidade de um conceito tal como regime repousa justamente no fato de que, por um lado, ele se refere às expectativas dos agentes. Quem já leu, aqui, alguma coisa sobre regimes internacionais, sabe que nós estamos falando de conjuntos de normas, regras, procedimentos de processo decisório em torno dos quais convergem as expectativas dos agentes em uma área específica das relações internacionais. Isso quer dizer o quê? Eu não estou preocupado apenas com a existência, positiva ou apenas enunciada, dessas normas; estou preocupado com a medida em que o comportamento dos agentes converge para esse parâmetro de comportamento. Quando os agentes internacionais, em uma determinada área, começam a se comportar de uma maneira distinta daquela que preconiza o regime internacional nessa área, então aquele regime internacional perde eficácia e começa a se esvaziar. É esse, (vai aí um parênteses) o medo que muitos analistas têm em relação à política externa do atual governo Bush. O que se vê é uma modificação do comportamento dos Estados Unidos no que diz respeito a tomar em consideração as instituições e as normas internacionais que, até então, vinham sendo fortalecidas pelo governo americano.

O que isso significa? Durante um período muito longo, observou-se uma tentativa de projeção de interesses dos Estados Unidos no cenário internacional por meio da construção de normas e instituições. A referência aos Estados Unidos é freqüente porque é a que se encontra na literatura – novamente, lembrando o que eu disse aos senhores um pouco antes, trata-se de uma literatura produzida para pensar a inserção internacional dos Estados unidos, para pensar a inserção internacional da Europa e assim por diante. Nós, até hoje, fomos basicamente consumidores dessa literatura e utilizamos alguns desses conceitos para conferir sentido a essa realidade internacional complexa. Felizmente, alguns de nós começam a conhecer suficientemente esses sistemas conceituais a ponto de discordar de algumas das suas afirmações.

Mas o que eu ia colocando para os senhores, então, era que o conceito de regimes internacionais encerra essa percepção de que as expectativas de comportamento dos agentes confere relevância a essas estruturas normativas, concebidas num sentido mais amplo, não apenas as normas escritas, mas também as axiomáticas. Isso é parte da capacidade que essa aproximação conceitual nos dá de enxergar não apenas a existência ou não de parâmetros, mas a vigência e as condições para que se perpetuem tais parâmetros em algumas áreas específicas do campo das RI. Por aí, a maior parte da discussão teórica de regimes pôde evoluir, pôde consolidar-se a partir de um conceito fluido, um conceito frágil, mas um conceito que permitiu uma série de investigações que aprofundaram empiricamente a validade deste tipo de análise. Por isso, as análises dos regimes internacionais situam-se, eu diria, na fronteira entre racionalistas e construtivistas, ou seja, não se nega a racionalidade dos agentes, mas o principal, do ponto de vista dessa análise de regimes (e é isso que a torna ainda tão relevante nos dias que correm) não é se os agentes agem de uma maneira racional ou não, mas em que medida esses regimes internacionais constituem parâmetros que nos conferem alguma

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capacidade de prever o comportamento dos agentes internacionais em determinadas áreas.

Como ele está moldado para trabalhar com áreas específicas, é possível isolar estas áreas e investigar empiricamente o comportamento dos agentes nessas áreas específicas, áreas tais como Direitos Humanos, Meio-Ambiente, Finanças Internacionais... São áreas que ganharam muito, inclusive do ponto de vista de diálogo entre analistas das relações internacionais e economistas, ambientalistas, sociólogos, antropólogos, etc., com base nessa discussão que repousa, que parte dessa visão de regimes internacionais.

Em resumo, então, do que eu tinha para colocar para vocês, o principal argumento da tese dizia respeito a esse diálogo entre construtivistas e racionalistas. Então, o que eu faço em meu trabalho? Eu tomo alguns temas centrais, como cooperação e conflito no campo das RI, e demonstro como os sistemas conceituais racionalistas constroem, por assim dizer, o conceito e as relações de cooperação e de conflito no plano das RI. Por outro lado, em que medida, por uma abordagem construtivista, também esses problemas de cooperação e de conflito são analisados no campo da RI. Pouco a pouco, vou sublinhando o diálogo entre eles.

Parte desse diálogo se produz de uma maneira usual neste campo de estudos, ou seja, reproduzindo os principais argumentos de cada autor, as nuanças desses argumentos, fazendo uma avaliação daquilo que se sustenta, daquilo que não se sustenta. Parte dessa discussão acontece, e essa é uma das novidades da tese (mas aquela que não vai sair em livro), por meio da formalização desses discursos, via recurso a conceitos usuais na Lingüística. Nessa parte, eu deixo de lado toda a “carne” que existe no nosso discurso, no nosso sistema conceitual, e analiso apenas as estruturas sintáticas, ou seja, a parte formal, lógica, do discurso, e também a parte semântica desses discursos, ou seja, a correspondência entre cada termo utilizado no discurso e os elementos da realidade a que se refere esse termo. Também trato da dimensão pragmática desse diálogo, que é a dimensão de contexto em que ocorre esse debate, e aí é uma dimensão de contexto colocado, por assim dizer, no âmbito, da própria comunidade científica dos analistas das relações internacionais. Essa é uma discussão um pouco menos interessante, imagino, para o público presente, mas que serve a referendar a análise formal que é feita antes.

Na verdade, ocorreu o contrário. Procurei convencer o leitor da tese pelo modo tradicional de argumentação, mas a minha análise do diálogo entre racionalistas e construtivistas, que lhes ressalta as diferenças metodológicas e epistemológicas, resultou da aplicação de um discurso lingüístico às teorias das Relações Internacionais. Como resultado, produzi um debate em que temas como anarquia, equilíbrio de poder, etc., quer dizer, conceitos como estes, têm a sua circunscrição, ou seja, a sua carga semântica melhor explicitada não por meio da insistência em um tipo de afirmação sobre a realidade, mas por meio do diálogo entre construtivistas e racionalistas.

A contribuição principal da tese vai além de trazer isso ao debate acadêmico brasileiro, porque faz uma leitura da evolução desse debate teórico pelo prisma do diálogo, e não apenas pela exposição de uma ou mais entre as agendas de investigação.

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Esse diálogo se mostra mais antigo do que se pode imaginar. Os que acompanham as discussões sobre teorias das relações internacionais conhecem o que se diz sobre o primeiro grande debate, o segundo grande debate, etc. O primeiro seria entre realistas e idealistas; o segundo entre neorealistas e neoliberais. Agora teria lugar o debate entre construtivistas e racionalistas. O que eu consigo demonstrar, com esse diálogo é que, na verdade, esse tipo de preocupação se faz presente já nos textos fundadores de análise das relações internacionais.

No texto, eu procuro recuar ao momento de criação não ao campo de estudos de RI, mas principalmente da Ciência Política, iniciando a discussão com o período da Renascença, quando ganha vulto a proposta de análise cartesiana da realidade, que viria a ser o fundamento da agenda racionalista, ou seja, de toda a argumentação baseada na lógica dedutiva, em relações do tipo “Se ... Então”. Explicações exclusivamente baseadas na pressuposição de que os agentes cujo comportamento eu quero explicar são racionais, isto é, comportam-se de acordo com aquelas características que nós já vimos. Eu demonstro que houve uma momento em que, ainda no século XVI, deu-se uma reação humanista a esse tipo de debate. Gente como Erasmo, mais adiante Montaigne, produziu, também de uma forma sistemática, também de modo a atender aos nossos critérios de validação do conhecimento científico, (consistência lógica interna, consistência lógica externa e etc.) explicações bastante satisfatórias acerca da realidade internacional.

Assim, autores tais como Grocius – na verdade Vattel teria sido um precursor mais relevante do que Grocius – e Kant, cuja obra aponta mais para essa visão, ou pelo menos abre espaço maior para o diálogo, podem ser vistos como precursores dessa escola construtivista. O que se viu no pós-guerra, pós-II Guerra Mundial, no campo das RI, foi, praticamente, uma tentativa de se tirar da agenda de discussão argumentações que não obedecessem ao critério de validação estreitamente definido como racionalista. Houve sempre resistências, mas o que se vê na leitura dos principais periódicos é que a prevalência de artigos que adotavam a visão racionalista sempre se mostrou bastante relevante nesse período. Do início da década de 90 para cá, isso começa a se transformar, sobretudo, segundo alguns autores, pela falência da escola racionalista em explicar mudanças estruturais, a exemplo do fim da Guerra Fria e coisas dessa natureza.

O que eu procuro fazer, ao analisar o período em que surgiu o Estado nacional, é demonstrar a existência dessas diferentes visões de mundo desde o inicio da reflexão sistemática acerca do que hoje se entende por relações internacionais. Este é, na verdade, um outro tema polêmico na tese, visto que há quem defina Relações Internacionais como aquele campo de estudos que trata o que é interno vis-a-vis o que é externo. É o que está dentro do Estado vis-a-vis o que está fora do Estado. O que os construtivistas nos ensinam é que não existe nada escrito em pedra nessa direção, ou seja, conceitos como soberania nacional são construídos intelectualmente por pessoas que apreendiam a realidade segundo uma lógica que lhes permitia enxergar, e que lhes interessava construir, um sistema de interação entre Estados. Tratava-se de conceber um sistema em que houvesse essa separação, mas essa separação é construída socialmente, ela se constrói, de inicio, no plano intelectual, no plano discursivo, e é referendada no plano

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institucional, no plano legal, por meio de acordos; principalmente, ela é reproduzida socialmente pelos agentes relevantes nesse campo, os Estados, que só virão a reconhecer outros Estados na medida em que a sua própria soberania também seja reconhecida.

O que se observa agora, ou, pelo menos, o que se observava até o governo de George W. Bush, era uma capacidade de estruturas internacionais definirem ou redefinirem ou obrigarem os Estados a redefinirem aquilo que eles entendem por soberania nacional, pelo menos em algumas áreas específicas. Isso significa o quê? A partir do momento em que os Estados adotam, aceitam participar de estruturas internacionais, eles cedem a sua soberania, não é isso? Se eles aceitam um conjunto de normas internacionais, eles estão dizendo que: “daqui para frente eu abro mão da minha capacidade de gerir plenamente essa área específica da minha sociedade”. Isso começa lá atrás, com temas sem qualquer carga política, como padrões de pesos e medidas. Se eu tenho um Estado que diz: “adoto um padrão internacional de pesos e medidas”, eu tenho um Estado que está dizendo, com outras palavras, “eu abro mão da minha capacidade de regular como serão definidas as relações de pesos e medidas no meu território para a minha população”. Há ganhos óbvios com isso. Há, nisso, perdas negligenciáveis. É por esta razão que o Estado toma essa decisão. Quando eu começo a falar em termos de uma moeda única, por outro lado, os ganhos já não são tão óbvios para alguns; e os custos muito elevados, para outros. Então, começa a ficar mais difícil levar adiante acordos deste tipo.

Em outras palavras, o que eu quero salientar? Esse diálogo termina por evidenciar que parte daquilo que nós assumimos como um dado da realidade internacional, a exemplo do conceito de anarquia, ou seja, a inexistência de uma autoridade supranacional, isso, em si, é uma construção social, isso é fruto de uma percepção da realidade, de uma construção intelectual da realidade, positivada por meio de comportamentos de agentes relevantes no campo das RI e reproduzida socialmente. Em outras palavras, com o passar do tempo, dependendo do modo como esses agentes vão se comportar em relação a esse “regime internacional”, esse regime – e essa “natureza”, tida como um dado da sociedade internacional – pode se transformar. Esse vai ser o argumento dos construtivistas, enquanto os racionalistas encontram uma dificuldade muito grande para explicar esse tipo de transformação da realidade internacional. E, no entanto, esse diálogo sempre esteve, de alguma maneira, presente na literatura; era possível levá-lo adiante, o que nem sempre ocorre.

Três últimos pontos, então, para ressaltar as conclusões. A construção de explicações da realidade, pelo método racionalista, e a de interpretações ou entendimentos da realidade, pelo método construtivista, não são exclusivas; tais interpretações são complementares. Uma vez que nós estamos falando de uma atividade humana, de uma atividade social, é muito comum encontrar analistas dizendo que sua visão de mundo é a verdade, que aquilo que eles propõem é a forma correta de ver a realidade, que o seu discurso científico é o único discurso científico válido. O que se observa é, entretanto, e este é o meu segundo ponto final, uma complementaridade dessas interpretações, na medida em que prevalece a consistência lógica externa desses discursos. Em outras palavras, o que eu estou querendo dizer para vocês? Quando se

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analisa a evolução dos debates teóricos no campo de estudo das RI, observa-se a persistência de um pluralismo teórico. Por mais que, em determinados momentos, se tentado impor um determinado método de produção de conhecimento, sempre foi possível produzir conhecimento, também validado como científico pela comunidade, a partir de uma perspectiva diferente, neste campo de estudo.

Assim, jamais se observou, no campo das RI, a emergência daquilo que, nas ciências duras, se diz um paradigma, ou seja, um sistema conceitual consensualmente aceito por todos os analistas, pelo conjunto dos integrantes daquela comunidade científica. O que nós temos é uma pluralidade de – eu prefiro chamar de – discursos teóricos, ou sistemas conceituais; alguns vão dizer uma pluralidade de paradigmas ou uma pluralidade de escolas. Isso quer dizer o que? A nossa realidade, esse continuum de fenômenos a que nós nos referimos, é complexa o suficiente para aceitar diferentes visões dessa realidade, visões que, não obstante, obedecem aos critérios de validação do conhecimento científico.

Não há, pois, um único paradigma, e dificilmente se imagina que será possível construir um único paradigma de análise das relações internacionais. A precisão explicativa, a precisão interpretativa desses nossos discursos teóricos é certamente menor do que a precisão interpretativa dos discursos teóricos da física, da química, da matemática, e assim por diante, porque, na Física, na Química e na Matemática, o objeto de estudo dos físicos, químicos e matemáticos não se constrói socialmente, não muda de idéia, não pensa, então, quando ele formula a equação dele, aquilo tem que se observar de alguma maneira: ou aquilo se observa da maneira que foi prevista ou as premissas utilizadas para construir a explicação estavam erradas. Cabe ao analista rever as suas premissas, se preciso, exaustivamente, até que chegue a uma explicação satisfatória da realidade observada.

No campo das ciências sociais, de modo geral, isso não se dá. Pode-se produzir um discurso científico que seja rigoroso, isto é, que atenda aos critérios de validação aceitos na comunidade, mas cuja capacidade interpretativa da realidade seja menor do que a precisão da capacidade interpretativa de discursos científicos produzidos nas ciências naturais. E essa é uma diferença inerente ao nosso objeto de estudo, a sua ontologia, aos fenômenos da realidade a que nossos discursos se referem. O campo de estudo das RI é mais dinâmico, é mais variável, mais sujeito às interpretações humanas e coisas desta natureza. Mas isso não é exclusivo a este campo; é algo também vivido pelos antropólogos, pelos cientistas políticos, pelos sociólogos, pelos economistas e assim por diante. Eis porque, tantas e tão repetidas vezes, os cientistas políticos, economistas e sociólogos são criticados, já que seus modelos não prevêem com ideal precisão o que vai acontecer. Tais modelos não podem prever o que virá a acontecer em parte porque o seu objeto de estudo é algo que transforma continuamente, por influência de muitos fatores, inclusive a própria produção de conhecimento a seu respeito.

Por conseguinte, é bastante mais difícil produzir conhecimento, ou, pelo menos, prever o comportamento desses objetos de estudo, desses agentes, assim como é difícil prever a evolução de fenômenos tais como as enchentes, as tempestades e outros

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fenômenos da natureza. Essa é a razão pela qual, concluindo, observa-se uma complementaridade dos diferentes sistemas conceituais.

A inovação que esta tese traz, no fundo, é a de, em primeiro lugar, tratar como discursos teóricos as teorias das relações internacionais, ressaltando a dimensão de humildade necessária à produção do conhecimento científico. Com efeito, aquilo que nós podemos realmente afirmar com convicção acerca da realidade é pouco, mas este “pouco” se sustenta, porque ele é produzido de uma maneira rigorosa, embora não tão precisa como nós gostaríamos. Por meio do diálogo, esta é a segunda inovação, não apenas por meio de um diálogo regular, mas por meio de um diálogo em um nível de abstração mais elevado, é possível demonstrar a complementaridade desses sistemas conceituais. Essencialmente, esta é a mensagem, do começo ao fim, que eu procuro transmitir. Trata-se de convidar o leitor a criticar, ou seja, a enxergar, a reconstruir a realidade internacional a partir do prisma de cada um dos sistemas conceituais debatidos e analisados na tese. Ao reconstruir essa realidade internacional a partir desses sistemas conceituais é possível reconstruir, no plano intelectual, diferentes realidades internacionais. Isso abre espaço para recuperar uma dimensão inicial da Ciência Política, que terminou sendo negligenciada pela escola racionalista, a saber, uma dimensão normativa da produção de conhecimento científico na área de teoria política e na área de política internacional.

Originalmente, os cientistas políticos preocupavam-se não apenas com o mundo como ele é, mas com o mundo como ele deveria ser. E o mundo “como ele deve ser” pode ser melhor construído se nós tivermos consciência da influência que essas estruturas institucionais e normativas têm sobre a produção de identidades e sobre a reprodução de comportamentos que transformam a realidade internacional. Tudo isso se dá, em alguma medida, por meio da participação da produção científica de conhecimento sobre esse campo de estudos. E isso é uma responsabilidade da academia que também tem sido negligenciada em algumas partes do mundo. Nesse trabalho, procuro recolocar essa dimensão ética da produção do conhecimento nas ciências sociais. Pelo menos, ressalto a necessidade de se conferir maior atenção à dimensão normativa, implícita ou explícita, em cada um desses discursos, mesmo quando, a exemplo do que fazem os racionalistas, se afirma que tal dimensão normativa inexiste no discurso científico. Em contraste, os construtivistas tenderão a dizer que, “ao afirmar isso, você já está adotando um determinado tipo de comportamento”. Ao se confrontarem esses dois discursos, há que se trazer à tona o modo como esse fenômeno se processa, não apenas no plano do debate intelectual, mas também no plano da interação de agentes no campo das Relações Internacionais propriamente ditas.

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Debate

Pergunta: Eu queria colocar alguns pontos que eu colhi a esmo e eu pediria que você

escolhesse um deles para refletir, porque realmente a sua tese é de um pluralismo teórico e metateórico; você abarca várias correntes de pensamento na disciplina e ao mesmo tempo você trabalha com uma série de questões e teses bastante controvertidas.

A primeira coisa é que eu achei bastante interessante, quase uma obviedade, em algum aspecto, é a idéia da complementaridade do terceiro debate teórico de RI, da síntese que o racionalismo e o construtivismo estabelecem, mas que, na verdade, essa síntese – tem até um discurso do próprio John Rawls no Direito dos Povos, que ele fala que a tendência das relações internacionais contemporâneas é operar uma síntese entre o racional e o razoável, resgatando o conceito original de razão, no Kant mesmo, que é impossível se estabelecer, se pensar relações internacionais através de um instrumental racionalista, quero dizer, pensar a razão de maneira instrumental nas RI, que é o pressuposto básico dos realistas. Isto está sendo quebrado agora e a grande contribuição do construtivismo, você colocou isso, então eu acho que foi bastante interessante situar o terceiro debate nessa idéia de que há um espaço muito maior para a ética, um espaço muito maior para princípios, para valores, para um agir racional que não seja instrumental, mas um agir racional com base em princípios e valores, em regras, essa questão de regimes que você falou.

Apenas mencionando, achei interessante, recuperando alguns diálogos, alguns pontos que você colocou: o primeiro é a questão da linguagem, você está trabalhando com um ferramental de análise de discursos, por exemplo. Eu queria só saber se você, por acaso, pensou em aplicar a teoria da ação comunicativa e ação dialógica habermasiana às relações entre os Estados. Nós sabemos que a teoria da ação comunicativa do Habermas estabelece determinadas condições básicas de validade do discurso, entre agentes racionais, agentes que estão situados em categorias, digamos, de poder eqüidistante, onde não haja a idéia da instrumentalidade do discurso e se isso, nas RI, é uma tendência que você possa verificar, metodológica até, se os Estados podem operar de acordo com essa ação dialógica habermasiana.

A segunda questão: eu fiquei na dúvida se a sua tese tem, no fundo, um instrumental hermenêutico de análise ou um instrumental analítico, porque quando você fala, por exemplo, em filosofia da linguagem, o seu foco é claramente analítico, e eu estou pensando até no livro clássico do John Hospers, Introdução à Análise Filosófica; por outro lado, como você fala que existe uma pluralidade de discursos – você falou do discurso religioso, do discurso estético, comunidades de validades da argumentação – se essa pluralidade, que pressupõe também, por sua vez, uma ação dialógica, ela não situa o seu argumento mais no nível hermenêutico; então se é um nível analítico ou um nível hermenêutico. O Habermas fez muito bem. Aliás, o livro Introdução à Filosofia das Ciências Sociais consegue operar a síntese entre esses instrumentais de fundamentação filosófica do pensamento. Dá a impressão de que é analítico, mas eu não sei se você trabalha mais com a linha hermenêutica também.

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E uma questão mais substantiva agora, descendo do nível metateórico para o nível teórico, eu achei bastante interessante quando você falou da questão do discurso científico em RI e os prejuízos que essa importação acrítica de determinadas categorias analíticas do pensamento em RI dos Estados Unidos trouxeram para a própria América Latina. E aí eu me refiro ao conceito do realismo periférico do Carlos Escudé, ele vai direto na veia nesse ponto, dizendo que a importação acrítica do Realismo gerou determinados comportamentos e lideranças políticas na Argentina, por exemplo, que redundaram na Guerra das Malvinas. E essa idéia de se consumir uma literatura norte-americana em RI, se isso abre espaço, por sua vez – aí tem uma discussão de relativismo epistemológico nas RI – se nós podemos trabalhar com o critério de validade universal com as RI e aí isso equivale a tentar fazer das RI não uma ciência, porque eu não sei se tem o estatuto de ciência ainda, mas um discurso, como você diz, que tem alguma pretensão de universalidade – o Realismo tentou fazer isso, mas não conseguiu – ou se nós temos que trabalhar sempre com essa perspectiva relativista que descamba também em um relativismo cultural aplicado ao nível da análise teórica.

Prof. Antonio Jorge: Deixe-me começar pelo mais abstrato. Eu diria que sim, na verdade eu adoto a

linha habermasiana, via Austin e Searle, a teoria dos atos da fala, o modo como os atos da fala, como nós podemos construir problemas, construir fenômenos, construir identidades por meio de discursos. Há determinadas relações humanas que se definem, em parte, pelas regras do jogo em que as pessoas estão inseridas; na verdade, eu recupero Wittgenstein. Existe essa interpretação de jogos de linguagem e as relações humanas são reproduzidas dentro de contextos de jogos de linguagem, mas os jogos de linguagem que prevalecem, por exemplo, no nosso contexto, são diferentes dos jogos de linguagem que prevalecem – embora sejam seres humanos realizando aparentemente o mesmo tipo de interação – em um tribunal ou em uma igreja.

Nessa direção, o que eu quero salientar? Você pergunta se a aplicação desse tipo de aproximação dialógica no campo das RI seria uma tendência. Eu diria que não. Eu faço, na verdade, uma tentativa de uma análise dialógica de discursos teóricos que são relativamente consensuais, ou seja, é uma leitura, por assim dizer, pobre do construtivismo e uma leitura pobre do racionalismo. O que eu faço? Eu pego essas agendas de investigação e digo: - o que faz com que os racionalistas sejam, todos eles, colocados no conjunto dos racionalistas, o que faz com que eu possa olhar para a produção de Waltz, para a produção de Keohane, para a produção de Vertzberger, para falar de análise de processo decisório, e dizer que todos eles são racionalistas? Essencialmente é assumir que o seu objeto de estudo age como se fosse um ator racional, com todas aquelas características. Então o discurso racionalista que discute, que dialoga com os construtivistas a respeito de cooperação e conflito é um discurso relativamente pobre, porque cada um desses autores, por deixar de lado outras dimensões da realidade, aprofunda bastante a discussão, seguindo pela linha racionalista, sobre os temas com que estão preocupados, uns com a influência da estrutura do sistema sobre o comportamento das unidades e vice-versa, outros sobre a percepção, o aspecto cognitivo

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do tomador de decisão e o modo como isso condiciona a sua ação política e assim por diante. São agendas de investigação bastante diferentes, mas isso não impede que o seu discurso seja considerado racionalista. Então o que eu faço é uma reconstrução bastante superficial do racionalismo e do construtivismo, e não vi isso feito em grandes linhas na área de teoria das relações internacionais. Esse tipo de análise vem sendo feita na área de processo decisório.

Uma das maneiras com que eu procuro cativar a atenção do leitor é dizer que, na verdade, a segunda grande lição que nós temos, ao analisar relações internacionais, é entender que os indivíduos não agem de acordo com a realidade, os indivíduos agem de acordo com a sua percepção da realidade; às vezes essa percepção é acurada, às vezes não, mas todos nós agimos de acordo com as nossas percepções da realidade. No plano do objeto de estudo, nos sistemas conceituais, eu quero entender o que condiciona a percepção que o agente que vai tomar a decisão tem sobre a realidade. Essas análises cognitivas, via de regra, algumas por meio de programas de computador, outras por meio de análises mais qualitativas, que vão procurar entender qual é a formação do indivíduo, qual foi a sua experiência profissional e assim por diante, procuram identificar quais são os constrangimentos cognitivos do indivíduo que vai tomar a decisão: o grau de dissonância, cognitiva ou não; o que faz com que o indivíduo perceba a realidade daquela maneira. Por quê? Porque, em essência, os indivíduos não agem de acordo com a realidade e são muitos os exemplos, sobretudo no plano da política, em que os indivíduos tendem a simplesmente se fechar a perceber fatos que para outros são evidentes. Por que esses indivíduos fazem isso é uma outra questão, aí a gente abre mão da possibilidade de produzir um discurso teórico, que se aplique a um número grande de indivíduos, e tem que fazer um estudo de caso com os prós e contras associados a uma decisão como essas. Mas isso tem acontecido, esse tipo de análise dialógica tem acontecido. Por exemplo, há muita coisa interessante nas relações americano-soviéticas, sobretudo depois da ascensão de Gorbatchov: mostra como as percepções de mundo diferentes de Gorbatchov construíam discursos. Em política externa, um discurso é ação; por meio de discursos ele procurava colocar na agenda possibilidades que, no início, você tinha um presidente dizendo que era o império do mal; no final, você tinha o mesmo presidente americano dizendo que era possível conversar com os russos e era possível construir muita coisa assinando tratados de redução da produção de armamentos e coisas deste tipo. Como eu explico essa mudança? Alguns construtivistas explicam por meio de análises dialógicas em que eles pegam as interações do governo americano e do governo soviético durante a década de 80 e mostram como, por meio de discursos e por meio de ações e, aí sim, voltando para o ponto inicial.

Por isso eu trabalho com a teoria de atos da fala: se eu sou um tomador de decisão e digo que não vou atacar, mas movo as minhas tropas, e coloco as minhas tropas na sua fronteira, eu estou dando um sinal muito claro, como eu vou entender esse sinal é outra história. Os analistas vão procurar atribuir valores diferentes ao discurso e vice-versa, aí são várias, tanto na relação entre Egito e Israel, do Oriente Médio de um modo geral, como no caso do Iraque, houve várias manifestações de discurso em que os tomadores de decisão diziam que iam fazer alguma coisa e isso era interpretado, do

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outro lado, como um discurso voltado para o público interno, ou seja, essa dimensão pragmática, essa dimensão de contexto em que ocorre o discurso é relevante. Por outro lado, para pegar um exemplo recente também, a própria Guerra do Golfo; os americanos sabiam da movimentação de tropas, sabiam de tudo o que Sadam Russem estava fazendo, tinham essa informação da inteligência, mas eles não processavam essa informação, ou seja, alguém lá na ponta dizia: – ele vai atacar; e lá em cima, na cúpula, os caras diziam: – ele não é louco o suficiente para isso; embora todas as evidências apontassem nessa direção e, nesse caso, o discurso propriamente dito era compatível com as ações. Em última instância, o que eu quero ressaltar? Existe sim alguma coisa sendo feita na área de análise dialógica, mas a decisões de política externa não aplicadas à teoria das relações internacionais.

Agora, quando se aplica a decisões de política externa, as melhores análises são aquelas análises que não se atêm apenas ao conteúdo sintático e semântico dos discursos do Ministro de Estado e do Presidente da República, mas são aquelas que reproduzem o contexto e mostram em que momentos, ao agir de uma determinada maneira, ao se omitir, por exemplo, está sendo dado um sinal, isso é uma mensagem clara que está sendo enviada de um indivíduo para o outro e que pode ou não ser captada por esse indivíduo, gerando ou não, por conseguinte, reações. Aí você precisa reconstruir todo o contexto em que essa interação tem lugar, da mesma forma em que nossas comunicações usuais e é daí que parte essa visão da lingüística, nas nossas comunicações o contexto em que nós estamos inseridos faz toda a diferença no que diz respeito às implicações daquilo que nós dizemos. Se um homem e uma mulher estão diante de um padre que os considera marido e mulher, ele está proferindo uma sentença, ele está dizendo: – eu os considero marido e mulher; isso tem uma implicação naquele contexto social. Se duas pessoas aqui, um homem e uma mulher, chegarem nessa sala e eu disser: – eu os considero marido e mulher; vocês vão rir de mim, porque não faz o menor sentido. Eu posso ir à televisão e dizer que eu declaro guerra aos Estados Unidos, as pessoas vão rir de novo, mas se o Presidente da República disser isso, dependendo do contexto. Quem viu aquele filme do Exército de Brancaleone, era por aí, declaravam guerra, ninguém acreditava; os caras iam lá, invadiam, tomavam, um filme fantástico nessa direção.

Mas, enfim, do ponto de vista da sua primeira questão, em termos da aplicação dessa ação comunicativa, é o que eu faço e o que aparentemente é novo, pelo menos eu não conheço outras aplicações desse tipo é que eu faço isso aplicado não a processos políticos que são observáveis, mas eu faço isso aplicado ao meu contexto, que é o contexto do debate acadêmico sobre teorias das relações internacionais. Então eu procuro fazer uma análise dialógica dos discursos dos sistemas conceituais e dos teóricos do campo das RI. Neste sentido, eu apenas fiz referência à sua segunda questão, à dimensão hermenêutica e etc. Eu apenas fiz referência à possibilidade de outras construções que fazem sentido e que conferem sentido à nossa interação, à nossa vida em sociedade e assim por diante, como uma construção estética, literária, religiosa e assim por diante. Eu não trato disso, eu não tenho competência para tratar disso; adoraria, mas não dá para fazer, dá para tratar da parte científica e em relações

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internacionais. A única coisa que eu procuro ressaltar é uma coisa, aí sim, como desde o início eu pensei em trazer para o debate acadêmico nacional, a idéia de que isso sirva de base para discussões e para o ensinamento de novas gerações de analistas das relações internacionais, a única coisa que eu procuro fazer é deixar muito claro que é preciso ter essa noção de humildade.

Por muitos anos ensinando teoria das relações internacionais, o que sempre me chocou na universidade é que os alunos ficam querendo saber, então, qual é a verdade, porque eu apresento um discurso teórico que se sustenta, que é lógico, que encontra ampla correspondência com a realidade e as pessoas dizem: – bom, então fica fácil entender o mundo dessa maneira. Daqui a pouco você vem com um outro sistema conceitual que também é lógico, que também é consistente, que também se sustenta, que também encontra respaldo na realidade e as pessoas: – bom, mas aí também faz sentido. E aí normalmente lá pela metade do curso, o pessoal diz: – mas então o que é a verdade? E aí, novamente, eu tenho que recorrer à poesia, o Drumon tinha uma poesia que dizia isso, dizia que a verdade ficava num quarto fechado, escuro, que cada pessoa ia lá, abria aquela porta, olhava, saía e dizia o que tinha visto. E entrava o próximo, abria a porta, olhava, saía e dizia o que tinha visto. E, quando você pegava os relatos das pessoas, nunca eram iguais os relatos. Um dia foram lá, destruíram a porta, botaram abaixo a parede e viram que a verdade tinha diferentes faces e cada um enxergava a verdade em função da sua miopia, em função do seu interesse, em função da sua capacidade e assim por diante, ou seja, aí essa idéia de oferecer uma verdade é uma idéia presente no discurso religioso, por exemplo, que eu não condeno, não existe sociedade sem religião, não existe nenhum registro histórico, mas quem está na universidade está preocupado não com a verdade absoluta, está preocupado, talvez, com o ceticismo, está preocupado, talvez, com a capacidade de desconfiar daquilo que é apresentado como uma verdade absoluta.

Eu diria que hoje há mais espaço para pensar em termos de uma complementaridade, não só em termos desta agenda de investigação, mas isto começa a acontecer em outros campos da ciência também, a própria física hoje observa uma necessidade de flexibilizar discursos e entender que talvez a idéia de paradigma não se aplique, também, pelo menos desde a convivência da relatividade coma física quântica, as pessoas estão esperando alguém que produza uma síntese, não está claro, e muitos físicos não sabem se isso deve acontecer de fato, muita gente diz que talvez o que falte sejam outros discursos que lhes permitam conhecer melhor outras dimensões de uma realidade mais complexa do que se imaginava antes. Essa tolerância em termos de percepções da realidade talvez, pelo menos no nosso campo, isso é parte do meu argumento. Esse campo se marca por um pluralismo teórico e eu posso fazer uma opção e dizer: – eu vou apenas fazer pesquisas segundo essa linha de investigação, com isso eu vou produzir mais pesquisa, vou publicar mais, mas eu vou produzir por esse prisma. E eu posso fazer uma outra opção que é a de tentar entender o mesmo tema a partir de diferentes ângulos, reconstruindo ou construindo diferentes interpretações sistemáticas, rigorosas daquele mesmo fenômeno; esta é uma outra opção que eu tenho, então eu vou me tornar um especialista naquele tema específico e, infelizmente, eu terei que abrir mão

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de outras coisas porque a vida é uma só, a gente não pode estudar tudo. Mas aí são decisões pragmáticas das pessoas, são decisões muito práticas até, eu diria, dos investigadores, não é um dado da realidade. Na condição de acadêmico, o objetivo desta tese é muito mais expor estes diferentes discursos e mostrar que pode haver um diálogo entre eles e que este diálogo entre eles requer, sim, algum treinamento, porque, se eu não souber quais são os conceitos, o que eu quero comunicar a vocês com o conceito de anarquia, por exemplo, se a pessoa que está me lendo não souber o que significa aquele conceito, ela não entenderá a mensagem que eu estou colocando no papel; então, existe algum treinamento, mas não é nada inacessível, é algo que faz parte deste tipo de adesão a uma comunidade de produção de conhecimento científico em uma área específica do saber humano.

Pergunta: Eu vou me colocar numa posição de defesa do devil aqui e vou pegar três pontos

nos quais vejo alguma discordância, posso discordar de você. O primeiro é, e os três são na verdade interligados e todos fazem parte do que eu chamaria o dilema no qual você se coloca daquele Two Approaches do Keohane de 88, tanto assim que você trabalha com racionalistas, com construtivistas, ele trabalha racionalistas reflectivistas. Para não ficar aqui chato para a platéia, vou só falar dos três pontos diretamente. Conhecimento científico: por que você insiste nessa cientificidade, porque que você quer que o conhecimento que produzimos em relação aos internacionais seja um conhecimento necessariamente científico? Eu entendo o valor da pesquisa empírica e apóio totalmente, mas tem gente, aqueles que você chama de pós-modernos, que se identifica como pós-moderno, eu falo aqui do Campbell, eu falo aqui das feministas, que se colocam nitidamente como pós-modernos, ou pós-modernas, e se colocam na perspectiva da pesquisa empírica, isso sem entrar nesses critérios científicos nos quais, que você quer ver colocadas na teoria de RI. E isso me leva justamente então ao segundo ponto, que é o ponto, eh, ao você fazer essa, eh, essa dicotomia de construtivistas versus racionalistas você acaba fazendo a mesma coisa que o Keohane nos reflectivistas versus racionalistas, você faz uma reificação do que são os racionalistas, uma reificação do que são os construtivistas e aí fica, quer dizer, você não vai conseguir com isso perceber o quão ricos são os construtivistas, o quão ricos são os racionalistas, e os diálogos, essa é uma ponte para o meu terceiro ponto, e aquele diálogo que você queria estabelecer justamente se tornaria um pouco mais fácil ao você deixar essa reificação de lado e lidar com construtivistas precisamente e racionalistas precisamente, para poder estabelecer estas pontes. Então esse é o segundo ponto.

O terceiro ponto é justamente sobre essa coisa de estabelecer pontes. Estabelecer pontes é o que o Keohane queria fazer também no Two Approaches, no KKK de 99, então o problema com o bridge-making é que você acaba fazendo muitas concessões e normalmente reificando o que você quer falar exatamente. Então, não sei se bridge-making é realmente o caminho. Não sei se, como você falou na física, não é a elaboração de uma nova linha de pesquisa com assumptions diferentes, que seria a solução, e não

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um bridge-making entre racionalistas e construtivistas para criar mais uma amálgama, algo sem corpo nem alma.

Prof. Antonio Jorge: Eu diria que o primeiro ponto eu tenho como responder. O segundo, eu tenho

boas razões para fazê-lo. E do terceiro eu discordo. Por quê? Por que eu insisto no conhecimento científico? Alguma coisa tem que diferenciar

o que nós fazemos na Universidade daquilo que se faz em outros centros. Eu não estou dizendo que em outros ambientes, em outros contextos, eu não estou dizendo que o que se faz na Universidade é melhor, é apenas diferente. Há um processo de educação do pensamento acerca da realidade. Isso quer dizer o quê, eu não posso dizer o que me vem à cabeça, eu preciso de alguma maneira sustentar aquilo que eu estou dizendo, eu preciso, porque que faz parte do nosso exercício, por exemplo, a publicação? E isso tem que ver com o seu segundo ponto, e que tem que ver com a reificação. Eu publico porque eu preciso ser lido pelos meus pares, não porque eu tenha a vaidade de ser lido pelos meus pares, embora alguns façam por isso mesmo, a maioria talvez, mas porque aquilo que eu publico precisa ser submetido a um teste. Isso significa o quê? Eu preciso, é científico, e daí a relação empírica, a relação com essa dimensão empírica, aquele conhecimento que eu produzo, porque qualquer pessoa que fale o meu idioma, esse é o primeiro critério, na verdade, o lado do Whitehead, é preciso estar expresso em linguagem compreensível, porque tem gente que escreve umas coisas que ninguém entende, eu pelo menos não consigo entender, então se eu não consigo entender, eu não consigo aplicar aquilo, eu não consigo saber se aquilo é verdadeiro ou falso.

Quando eu publico, eu estou dizendo o quê? Eu fiz um experimento, entre aspas, eu produzi uma interpretação acerca de uma complexa relação social, no nosso caso, nós somos cientistas sociais, e eu entendo que qualquer indivíduo que saiba falar português seja capaz de ler o que eu escrevi, ele será capaz de se colocar no meu lugar e de me dar razão ou não. Ele pode me tirar a razão, ele pode dizer, bom, o senhor está enganado por isso, isso e por aquilo outro, o senhor não observou tais menções então eu vou, se eu realmente tenho esse espírito de produção de conhecimento, eu vou prestar atenção ao que ele está dizendo, vou repensar o que eu escrevi e vou procurar melhorar aquilo, vou deixar de lado aquilo que se mostrou frágil do ponto de vista argumentativo, ou seja, aquilo que não encontrou uma consistência lógica externa, não é isso, ele foi negado, meu discurso científico foi negado por outro discurso científico mais robusto, melhor amparado na observação da realidade e na observação que qualquer indivíduo pode fazer da realidade, não apenas aquela observação que eu fiz da realidade. Bom, isso é o que vai definir o conhecimento científico. Isso não faz melhor, nem faz pior do que o conhecimento religioso, do que o conhecimento literário etc. É interessante ler pós-modernismo? É interessante ler pós-modernismo, mas eu pelo menos, leio como um livro de literatura, ou seja, não existe um compromisso de se demonstrar a correspondência entre aquele discurso e a realidade, esse compromisso não está colocado. Pode até iluminar, alguns diriam, na linha de Popper muitos diriam, isso pode até me oferecer algumas hipóteses interessantes que depois eu vou submeter a essa

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lógica, essa lógica científica, que aí sim a razão pela qual eu discordo do terceiro ponto, é o que o Keohane faz ao tentar produzir pontes, construir pontes entre discursos diferentes o que ele procura fazer é, aceito qualquer discurso sobre relações internacionais desde que vocês assumam que os agentes são racionais, desde que se produza uma hipótese e a partir dessa hipótese se possa deduzir uma explicação acerca da realidade internacional. Ele não está construindo uma ponte, ele está dizendo, eu aceito conversar com quem for racionalista, e fala para os outros fazerem a mesma coisa, vocês são bem vindos, ele fala, mas muitos vão dizer ‘eu posso produzir de uma maneira sistemática conhecimento de forma indutiva’, eu posso usar a razão prática e por meio da razão prática eu posso utilizar o método interpretativo da realidade e produzir um conhecimento que, este sim, encontra correspondência com aqueles critérios de validação, ou seja, é um conhecimento expresso claramente no idioma que todos podem entender, é lógico do ponto de vista interno, encontra correspondência com a realidade e assim por diante. Ou seja, é possível produzir esse diálogo.

Por que a reificação, no seu segundo ponto? Porque, uma vez que eu publico faz parte dessa validação, o conhecimento que eu produzo só é válido quando ele é avaliado pelos demais integrantes dessa comunidade, e esses demais integrantes dessa comunidade dizem, muito bem, eu aceito a sua contribuição para o pensamento científico no campo das relações internacionais amplia os horizontes desse campo do conhecimento. Pode ser que não se aceite, mas por isso eu publico. E na hora que eu publico, o que eu disse está no papel, pertence ao papel. Eu posso mudar de idéia, aquilo pode ter sido importante em um momento e daqui a 20 anos não ter qualquer importância, mas aquilo está consolidado, aquilo está acabado, ou seja, o meu texto é um texto que tem o seu alcance interpretativo da realidade no que diz respeito à dimensão semântica, no que diz respeito à dimensão pragmática, o contexto em que ele foi colocado que se define na publicação do texto.

Quando o texto é bom, este texto será utilizado por gerações futuras para iluminar aspectos semelhantes da mesma realidade. Isso é algo que também está discutido aqui na tese, é isso que faz com que nós recorramos a categorias de pensamento, categorias conceituais criadas por Aristóteles, Maquiavel etc. Ou seja, aquilo que aqueles homens disseram naquele tempo sobre os problemas do seu tempo ainda é útil, para que nós possamos entender melhor o que, no nosso tempo, é relevante acerca de fenômenos próximos ou dos mesmos fenômenos. Porque alguns indivíduos aceitam submeter-se voluntariamente ao comando de outros é um tema fascinante, um tema que permanece, em parte porque essa obra científica é uma obra social, nós recorremos a Hobbes, Locke, Rousseau, Maquiavel, Aristóteles etc porque nós queremos dizer, veja, isso aqui é algo universal no sentido de que parte do que se disse lá permanece válido até hoje. Em parte se procura produzir diálogos entre textos que foram produzidos em momentos muito distintos da experiência humana, e esses diálogos acontecem. Isso significa o quê, significa que algumas dessas relações aparentemente são, de fato, duradouras, permanentes, como você quiser. Agora, por outro lado, novamente porque se trata de uma atividade social, muitos recorrem a isso como forma de legitimar o seu discurso da realidade. Nem sempre há tanta

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correspondência entre uma coisa e outra. De um modo ou de outro, uma vez que se publica, você reificou aquilo que você está dizendo sobre a realidade. Você pode mudar de idéia, aliás deve, eu acho que todos nós mudamos de idéia, mesmo porque nós vemos que estamos, na verdade, diminuindo nossa ignorância pouco a pouco. Nunca vai terminar, mas pelo menos a gente trabalha com esse objetivo. Agora, quando você define isso, você reifica o seu texto, está ali, está colocado, aquelas categorias estão criadas e elas podem produzir interpretações razoáveis da realidade apenas quando compreendidas naquele contexto, e elas podem até perder relevância, como vários dos discursos científicos criados, e por algum tempo válidos no campo da RI, perderam relevância. Você pega a versão extremada do racionalismo que coloca em fórmulas matemáticas toda aquela coisa do chamado behavioralismo do final dos anos 50, anos 60, etc, você tinha lá equações muito bonitas que explicavam muito bem alguns fenômenos muito pequenos da realidade. Aquilo pertence hoje aos livros de história do conhecimento das relações internacionais. Ninguém mais estuda aquilo. Porque ninguém mais estuda aquilo? Perdeu a validade? Alguns dirão que não, não perdeu a validade. Naquele contexto, é aquilo que, existe um lógico brasileiro, uma dessas cabeças extraordinárias chamado Newton da Costa, que desenvolveu a lógica paraconsistente, ele cunhou o conceito de quase-verdade. O que ele está dizendo: tome o pensamento de Newton.

Todos sabemos que o pensamento de Newton está ultrapassado, no entanto as crianças continuam aprendendo isso na escola. Por quê? Porque para a maioria dos fenômenos que ocorrem na realidade, aquilo é suficiente para permitir que nós possamos lidar com os movimentos dos corpos etc. Não há um físico formado que utilize isso, que leve a sério aquilo que está dito hoje em dia do ponto de vista da explicação dos problemas com que lidam os físicos. Mas quem não está nesse ambiente, quem não está nesse contexto, pode viver com as leis de Newton. Isso quer dizer o quê? Que naquele contexto de produção de conhecimento, aquilo que em um momento foi importante, permanece válido enquanto permanecerem válidas as condições a que se refere aquele conhecimento. Nesse sentido é um conhecimento reificado. É um conhecimento que pode ser mais ou menos útil, alguns foram abandonados. As leis de Newton não foram abandonadas, porque são didáticas, porque são suficientes para permitir que nós possamos organizar nossa vida em sociedade. Nenhum de nós precisa, felizmente, conhecer a fundo física quântica, teoria da relatividade, etc, para a maioria das nossas interações.

Então nós continuamos lidando de abstração acerca da interação de fenômenos físicos que é um nível muito baixo de abstração, porque nós não conhecemos os demais conceitos necessários para trabalhar no nível em que trabalham os doutores em física. Isso porque não é necessário para nós. Mas aquele debate ele está reificado ali. Nesse sentido, eu não diria, para voltar de maneira mais objetiva aos três pontos, há uma opção deliberada minha no sentido de dizer, eu trabalho com conhecimento científico, não necessariamente nós precisamos trabalhar apenas com conhecimento científico, recomendo que as pessoas não trabalhem apenas com conhecimento científico, mas o que vai distinguir o que se faz em uma Universidade do que se faz na Academia

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Brasileira de Letras é esse conjunto de regras. Na Academia de Letras há um outro conjunto de regras e infelizmente eu não posso escrever tão bem quanto alguns dos indivíduos que estão na Academia de Letras, outros nem tanto não é, na nossa pelo menos há uma certa dúvida. Mas novamente, isso é uma decisão coletiva, uma decisão desta comunidade de analistas que diz ‘eu considero científico aquilo que atende a esses critérios. Os critérios de Whitehead também, eu discuto algumas outras possibilidades, adoto essa possibilidade porque os critérios de Whitehead são abrangentes o suficiente para açambarcar tanto racionalistas quanto construtivistas. Nesse sentido, com base nesses critérios eu posso construir pontes. Aí, eu posso produzir diálogos.

O que o Keohane está fazendo no seu terceiro e último ponto é dizendo o quê? Monólogos intercalados, não é isso? Eu só falo com racionalistas, se você quiser participar da minha comunidade então aprenda como eu falo. Eu sei como ele fala, só que para mim não basta. Eu não acho que isso seja construir uma ponte. Ele está tentando convencer os demais de que aquela maneira de produzir conhecimento é mais eficaz, é mais eficiente etc, e eu prefiro enxergar várias maneiras de produzir conhecimento e deixar que cada um faça a sua opção. Se a pessoa quiser, aí sim, ser um racionalista, o Paul Krugman que dizia isso, economia é muito difícil, tem a ver com essa capacidade de previsibilidade à qual eu fazia referência. Ele diz que a economia é muito difícil porque a gente faz previsões que nunca dão certo e etc, mas felizmente a sociologia é muito mais. Então, você está num grau de formalização mais próximo para alguns, por isso mesmo seria uma ciência mais nova. Aí vem toda a dimensão social da interação humana inerente a essa atividade de produção de conhecimento científico que acontece na academia também. E algumas pessoas estão defendendo posições como esta não porque de fato acreditem nisso, às vezes sim, mas às vezes elas estão defendendo porque elas investiram suas vidas inteiras na produção de conhecimento segundo uma determinada linha e não querem se convencer de que aquela não é a única linha aceitável ou de que aquela não é a melhor linha. Seria melhor dizer ‘bom, eu prefiro adotar isso e como eu não posso dar conta de tudo, quem quiser dar conta de tudo que faça de outra maneira, que é o que faz o Waltz, com todos os problemas que ele tem ele diz o quê? Eu estou tratando de política internacional, é bem definido, o universo de fenômeno dos quais eu me ocupo é esse aqui, é bem pequeno, porque eu acho que é o mais importante. Agora, se vocês acham que há coisas mais importantes, mãos à obra, podem ir. Nesse sentido é uma opção, sim, a delimitação de critérios, a reificação eu diria, se dá não numa forma preconceituosa, até porque alguns desses autores mudam e eles deixam de ser, alguns são difíceis de classificar e colocar rótulos. Felizmente, porque eles têm um pensamento tão rico que está aberto a uma pluralidade de, inclusive, métodos na produção de conhecimento. Outros não, mas isso são resultados de opções profissionais que os indivíduos tem.

No caso dos Estados Unidos, mais do que aqui, vocês sabem melhor do que eu, isso tem que ver às vezes com o emprego que o sujeito vai conseguir numa determinada escola e conseguir ou não uma condição estável para produzir conhecimento e assim por diante. Fato da realidade, o que só ressalta essa dimensão também freqüentemente ignorada que é a dimensão social, humana, da produção de conhecimento. É limitado,

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mas é uma limitação que, pelo menos no campo da ciência vem se mostrando bastante produtiva no que diz respeito à capacidade de organizar a realidade segundo diferentes categorias, e aí sim, o que é novo e fascinante do ponto de vista da razão humana. Você é capaz não somente de reorganizar os seus discursos sobre a realidade, mas você é capaz de repensar suas premissas sobre a realidade. Você é capaz de ter consci6encia do modo como você produz conhecimento sobre a realidade e, ao fazê-lo, questionar o modo como você produz conhecimento sobre a realidade. Isso sim é fascinante. Agora, tudo isso, no nosso campo pelo menos, atento a uma necessidade de um mínimo de critérios que definam aquilo que faz parte de um discurso científico. E definir é isso, é colocar fim, limites, e dizer que isso faz parte do conhecimento científico e que aquilo outro não faz parte do conhecimento científico, o que não lhe tira o valor. É importante, é relevante, eu se um dia for ao psicólogo a primeira pergunta que eu faço é se ele lê Dostoievski, Machado de Assis. Se o cara não for leitor desses autores, eu prefiro não me consultar com ele.

Pergunta: Confesso que discussão é muito interessante porque você disse que para se poder

chegar a um nível de abstração que em princípio seria necessário para que certos problemas fossem resolvidos no mundo, que o mundo fosse melhor resolvido, você necessita de parâmetros, regimes, você precisa começar a organizar a forma como você vê as coisas. Eu acho essa premissa muito importante. Agora, o problema que eu tenho é, para ser sincero, é se racionalismo e construtivismo, se esses dois parâmetros, por mais vastos que eles sejam, por mais que eles tenham riqueza e tudo isso, se nesse momento atual do mundo esses parâmetros seriam suficientes de uma certa forma, se eles seriam os mais abrangentes possíveis. Porque, sobretudo, quando você leva em consideração a dicotomia que existe, você mesmo falou nos marcianos economistas, eu vejo que o mundo tem um grave problema de cacofonia ou total dicotomia entre discurso político e social que se aproximam, felizmente, e discurso econômico. Isso para não dizer que o discurso econômico é absolutamente dicotômico também.

Entre, por exemplo, as pessoas financeiras, as pessoas comerciais, a propagação do desenvolvimento, cepalinos, neoliberais, neo-bobos, neo-tudo. E é isso que eu vejo com uma certa preocupação, será que esse tipo de análise, estes parâmetros São vastos o suficiente para que possam incorporar esse tipo de problema, que eu considero também um problema quase cultural. Eu escutei o que você falou com muito cuidado sobre como nós importamos esses conceitos econômicos, políticos e sociais. Então, isso já é preocupante no sentido da importação, ou seja, que não é uma coisa gerada no próprio país, no próprio local onde o problema existe.

Além disso, que capacidade de síntese nós temos, inclusive não levando em consideração o tipo de governo que você tem no hegemon hoje em dia que claramente dificulta mais essa síntese. Mas digamos que fosse um governo razoável na sua visão de mundo, será que nós poderíamos ser otimistas sobre a capacidade de se chegar a uma síntese maior com base nesses parâmetros, ou será que teríamos que ter talvez um outro

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parâmetro, que eu já não sei te dizer o que seria, talvez uma espécie de parâmetro neoeconômico de como ver as relações humanas e a própria condição humana.

Prof. Antonio Jorge: Do ponto de vista do debate que eu faço aqui, a resposta que eu teria é mais

simples, eu acho. Eu diria que racionalismo e construtivismo podem não ser suficientes, mas que foi o melhor que se pôde fazer até agora. Na verdade o que vai definir isso como eu defendo, com duas agendas de investigação no campo das RI é de um lado a ontologia, ou seja, os fenômenos internacionais, e aí fenômenos internacionais concebidos de maneira mais ampla, não apenas como aquilo que acontece fora dos Estados ou entre Estados, mas as relações de poder, de autoridade, entre agentes que acontecem tanto fora quanto dentro das fronteiras. E aí, cada área do conhecimento, esse era um debate também muito interessante do final dos anos 60, início dos 70 e que foi relativamente negligenciado, mas cada área do conhecimento apresenta condições iniciadas pelo Keohane e ... no primeiro texto deles, apresenta graus mais profundos de interação, ou seja, de produção de normas comuns, de um arcabouço normativo, de um arcabouço de valores que oriente uma vida em comunidade global.

Mas essa produção de conhecimento se dá segundo métodos diferentes, ou seja, porque essas duas agendas de investigação são consideradas parte do campo e integrantes, constituintes do campo das RI. Quer dizer, de um lado eu tenho esses sistemas conceituais, que é aquilo que os analistas utilizam para conferir sentido à realidade, e de outro lado eu tenho uma realidade, um certo consenso entre esses analistas sobre a que nós nos referimos e como nós nos referimos a esses fenômenos, porque eu, por exemplo, do ponto de vista de economia internacional, eu me refiro a fluxos financeiros internacionais, mas o modo como os analistas das relações internacionais lidam com isso é diferente do modo como os economistas lidam com isso. É isso que faz com que uns sejam analistas das RI e outros sejam economistas. Isso quer dizer que o modo como nós nos aproximamos, as teorias, os sistemas conceituais que nós utilizamos para conferir sentido a esse fenômeno da realidade, esse modo é distinto do modo como os economistas, os cientistas políticos, os sociólogos, os antropólogos, etc fazem a mesma coisa, eles também estão se aproximando do mesmo continuum em que nos é dada a realidade. Ela não vem em categorias, novamente, ela vem no continuum, nós é que criamos essas categorias. E, na minha opinião, é uma opção pessoal dizer eu vou fazer isso de forma científica e eu vou fazer isso como um economista ou eu vou fazer isso como um cientista político, ou como um analista das RI.

O que me leva a fazer isso é outra história. O que importa, do ponto de vista da comunidade, são os modos como eu faço, aí não é o modo, mas são os modos, é a produção de conhecimento, é a capacidade de aprender esses conceitos e de produzir diálogos. No nosso caso, essas duas agendas se referem aos mesmos fenômenos, utilizando os mesmos conceitos, e significando, ou seja, atribuindo conteúdos semânticos a esses conceitos, que são os mesmos. Alguns deles inclusive, é o que eu vou fazer em alguns capítulos, podem ser vistos num plano também metateórico, ou seja, eu

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vejo racionalistas e construtivistas trabalhando com o problema da autoridade, com o problema de poder e assim por diante.

Mas as relações de poder na concepção de racionalistas possuem uma dinâmica diferente das relações de poder no âmbito internacional, percebidas e construídas pelos construtivistas. Isso porque alguns estão preocupados com os choques ou as interações materiais de poder ou as percepções de cada um acerca da capacidade do outro e da sua própria. Outros estão preocupados com a construção de normas e identidades que vão definir o conteúdo substantivo dessa relação. Porque dependendo do conteúdo substantivo dessa relação eu posso negligenciar a visão que eu tenho acerca da capacidade do outro, já que aquilo não vai ser usado contra mim. Não há um canadense pensando em ser invadido, em ter o seu território invadido pelos americanos. Invadido militarmente não é. Nós já fomos mais do que invadidos por eles. Por que isso? Há uma dimensão social nessa relação que a define e que muitos acreditam, essa dimensão vai se perpetuar num futuro previsível. Eu estou ainda me referindo a uma relação de poder, mas eu estou me referindo a uma relação de poder que possui características muito diferentes daquela relação de poder construída pelos racionalistas.

Quando eu confronto essas visões de mundo, eu tenho condições de olhar para a realidade não com um, mas com dois parâmetros, quer dizer, agora está melhor, eu tenho condições de fazer melhores análises, melhores previsões e de explicitar as razões pelas quais, inclusive do ponto de vista lógico, eu imagino que as coisas irão evoluir de uma determinada maneira e não de outra, e construir cenários razoavelmente amparados naquilo que se pode apreender da realidade atual. Isso significa que é frágil, que vai dar errado provavelmente, mas eu tenho uma alternativa a isso. Eu até brinco sempre com os meus alunos, eu posso telefonar para a fundação cobra coral e perguntar o que vai acontecer. Não sei se vocês se lembram disso, mas tinha uma fundação cobra coral que fazia previsões sobre o futuro, mandava por fax, os caras jogavam búzios. Essa é uma forma, racional, de você justificar a produção de conhecimento, eu vou ao pai de santo e ele me diz, houve um presidente da república que inclusive quis se perpetuar com uma outra geração, que alegadamente fazia isso com muita freqüência, toda decisão importante que ele tivesse que tomar ele consultava seu pai de santo no Maranhão. É uma forma que, naquele contexto, dependendo dos valores daquele indivíduo, faz sentido.

Para quem trabalha no campo da ciência, isso não faz sentido, mesmo porque você não tem como demonstrar que isso vai acontecer. No entanto, há quem creia que as coisas se dão dessa maneira, e aí você reclama a crença dos indivíduos, você não reclama o uso disciplinado da razão dos indivíduos. Novamente essa é a razão pela qual eu deixo de fora os pós-modernistas, pois eles dizem, veja que o meu discurso pode significar isso, e quando você vai esmiuçar esse discurso, quando você vai procurar a correspondência entre esses discursos e a realidade e o que o sustenta, o q sustenta essa correspondência, você não encontra respostas robustas o suficiente. Então, quem trabalha com ciência se atém a essa visão de ciência e lida com isso. Com relação aos economistas, ‘;e difícil você colocar o abismo que haveria entre o discurso econômico e o discurso político e social. Os economistas conseguem fazer bem o seu papel na minha

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opinião, eles produzem, eles demonstram, o problema são os economistas que terminam se tornando mais realistas que o rei, por assim dizer. Quer dizer, eles confiam tanto no seu método que o método se torna mais importante ou confiável que a realidade. Os melhores economistas são leitores ávidos de sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc. Eles sabem das limitações do seu método e normalmente eles assumem isso abertamente. Eles dizem, olha, esse é um método de produção de conhecimento. Nosso ministro Malan é um que diz isso repetidamente, inclusive citando a mesma fundação cobra coral. Eu fiquei feliz de ver outro dia uma entrevista dele nesse sentido, dizendo, olha, é um método, é falível, mas é o que nós temos. É insuficiente, agora, nós sabemos que algumas coisas repetidamente dão errado porque observa-se a experiência histórica recente e, qualquer pessoa que entenda de economia observa que determinados comportamentos levam a resultados que para alguns são ruins para outros nem tanto. Então é a questão de opções sociais. Você fala, inflação é um tema que vai voltar à tona no Brasil cada vez mais, é disso, alguns economistas dizem um pouco mais de inflação não faz mal, outros dizem, um pouco mais de inflação faz mal justamente para os mais pobres, e eles não tem um consenso a respeito disso e não vão ter tão cedo. Mas, do ponto de vista da sua comunidade acadêmica, o q importa é q eles estão produzindo conhecimento de uma sistemática, que é publicada que, uma vez publicada também é reificada, as pessoas se tornam responsáveis por aquilo, e às vezes inclusive negam, aquilo fazia sentido naquele momento, foi um papel que eu produzi que já não tem validade nos dias que correm porque a realidade se transformou. No fundo, o pb que você coloca não é um pb da ciência, mas da sociedade que deve tomar decisões inclusive no que diz respeito a como melhor utilizar os diferentes discursos científicos sobre suas interações econômicas, sociais, políticas e assim por diante.

O que eu acho que possa ser o início de uma contribuição nesse sentido é o fato de que quando você utiliza, por exemplo, um conceito como hegemon, esse conceito está claramente circunscrito numa visão específica da realidade internacional em que os racionalistas predominam e que ele pressupõe um conjunto de outras relações que estão por trás do papel desse ator no contexto internacional. Se a gente está fazendo referência aos EUA então muito bem, alguns vão dizer, veja, esse ator hegemônico teve a capacidade de, durante décadas construir um sistema institucional que permitiu a expansão das relações internacionais razoavelmente pacífica, houve conflitos, mas estes foram regulados. Quando se fala de OMC eu sempre me lembro das reformas Meiji. O Japão teve um outro tipo de comportamento, que a China adota agora, do ponto de vista da abertura do seu comércio. Ele foi colocado diante de outras opções, há um século e meio atrás eram essas as opções, eram os navios de guerra com os canhões apontados dizendo, ou vocês abrem o seu comércio ou é guerra.

Hoje você leva para uma organização internacional e contrata um exército de advogados, de diplomatas e etc... e os conflitos se dão daquela maneira. Isso é fruto de uma construção histórica, e que esse ator, durante um determinado período da história recente, julgou que era de seu interesse. Agora - e esse é o grande questionamento - é o que todos estão tentando entender. Aparentemente este ator está dizendo que isso já não é do seu interesse. O questionamento lá é saber se essas instituições, essas normas

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vão sobreviver à falência do ator hegemônico em concordar com a perpetuação dessas normas, ou será que os regimes internacionais, já que as expectativas deixarão de convergir nessa direção, será que esse regime internacional vai se enfraquecer? Tem muita gente olhando para Kyoto como um estudo de caso fascinante, por isso, surge de uma proposta americana, nos moldes americanos, compatível com a visão de mundo americana etc, ...agora, os americanos estão fora e, aparentemente, vai sobreviver este regime internacional. Isso significa que temos uma sociedade mais ou menos capaz de dizer não a uma percepção que ela considera equivocada desse ator hegemônico por mais que seja enorme a disparidade de forças.

Um diálogo entre racionalistas e construtivistas nos ajuda a iluminar esse tipo de fenômeno. A resposta, eu acho que não tenho, mas há, digamos, condições mais rigorosas para colocar as perguntas, e esse é o objetivo de um trabalho como esse, é difundir o modo como essas perguntas podem ser feitas, de forma sistemática, ou, pelo menos, o modo como elas foram feitas até agora de forma sistemática e cabe a cada um partir disso e construir a sua própria visão de mundo e adotar suas próprias decisões, e dizer não!... eu vou ser um partidário do pós-modernismo, eu vou ser um partidário do feminismo, etc... E essa é minha causa, assim como há outras causas. Eu não estou contra isso, mas isso não é participar dessa atividade de produção de conhecimento científico, pelo menos não da maneira como eu entendo. Eu posso estar equivocado... Aí é outra conversa.

Pergunta: Eu tenho muito pouca base nisso, exatamente por isso que eu não posso me

definir bem como um construtivista ou como um racionalista, ou nada disso. Então eu queria saber por que não pode haver uma fusão entre esses dois conhecimentos que são importantes para uma mesma área a partir do momento em que cada um pode ter seu intelecto de várias formações? E eu vejo certas questões em que essa união praticamente existe. Por exemplo, se eu vou analisar uma Franca que está abrindo suas portas para os estrangeiros, para eles trabalharem, porque está numa época sem emprego. Um tempo depois acontece o contrário, há uma explosão demográfica, não tem emprego, está todo mundo revoltado, começa uma coisa nacionalista, ou seja, eu estou usando o que? O meu pensamento construtivista.

Agora, se eu começo a analisar uma pesquisa política, partido nacionalista cada vez mais forte no poder dentro da França, eu estou usando o meu lado racional, não é uma forma de você ver as duas coisas. Então, toda pessoa racionalista não teria uma parte construtivista dentro de si, como todo construtivista tem um lado racional dentro de si também?

Prof. Antonio Jorge: Obrigado pela pergunta, eu diria que é bom ter cuidado com os rótulos, eu diria a

você que todos nós temos pouca base, todos estamos aprendendo, essa é a idéia. Quando você fala em termos dessas agendas de investigação, você está falando em termos da utilização de métodos de conhecimento, ou seja, um está pensando por meio

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da construção de modelos hipotético dedutivos, então, não importa como você construiu a sua hipótese, importa você estar estabelecendo uma hipótese, você estar atribuindo racionalidade. Você vai procurar entender o que orienta o comportamento daqueles agentes que você assume que são racionais.

De outro lado, o que os construtivistas vão procurar fazer é entender as estruturas valorativas desses indivíduos, é a construção de identidades, é a relação entre normas concebidas de forma ampla e identidades individuais desses agentes, é a transformação , uma evolução simultânea da realidade, em que a própria realidade se redefine em função do modo como os indivíduos se vêem dentro dessa realidade. E os indivíduos mudam a visão que têm de si mesmos a partir dos constrangimentos que são colocados por essas estruturas, às vezes institucionais mas, às vezes, apenas valorativas, e assim por diante. E não é que eles sejam incompatíveis, aliás, eu defendo que eles não são incompatíveis, são complementares, são apenas formas diferentes de uso da razão, não quer dizer que uma seja melhor que a outra, a única coisa que eu procuro ressaltar é o fato que nesse campo de estudo não apenas nós observamos uma pluralidade de discursos científicos, mas esses vários discursos científicos são produzidos segundo métodos da razão distintos, e isso é apenas uma evidência da riqueza da razão humana. A criatividade humana é grande, assim por diante. Agora é preciso ter cuidado quando você se utiliza... Por isso eu sou contra a preocupação excessiva com rótulos, com caixinhas, etc. Eu acho que é mais importante você tentar reconstruir na sua mente, reconstruir intelectualmente o discurso sobre um dado específico têm racionalistas e construtivistas do que propriamente relacionar a primeira coluna com a segunda, não é? O racionalista diz isso, o construtivista diz aquilo...ou seja, é mais importante pensar teoricamente do que identificar o que caracteriza cada um desses sistemas conceituais. Para retomar o seu ponto, é racional do ponto de vista do governo francês, por exemplo, a tomar a decisão a ou b....sim, mas o que você entende por racional? Veja aí é parte da nossa discussão aqui, que retoma o ponto relevante que o Nizar colocou antes. O que se entende por racional no nosso discurso comum, na nossa linguagem comum, não é diferente do que se entende por racionalidade instrumental no contexto desse debate acadêmico que nós estamos tendo. Por que? Porque, no senso comum, eu digo que racional é uma coisa que aparentemente faz sentido, eu vou ganhar com isso? Não necessariamente. Precisamente por agir racionalmente, os indivíduos às vezes produzem resultados piores, para si mesmos. Parte desse exercício de educação do intelecto para participar de um debate, aquilo a que, novamente, o Mário se referia aqui. Eu coloquei antes essa idéia, ou seja, quando eu produzo um discurso científico sobre relações internacionais, significa que eu entendo qual é o significado desse conceito nesse contexto.

Em um outro contexto, esse conceito será percebido de uma maneira distinta. O que um construtivista diria para você seria, se ele quisesse entender, vamos lá, por hipótese, uma decisão do governo francês de proibir a entrada de imigrantes, ele diria o quê? Ele tentaria se colocar no lugar dessas pessoas que estão tomando essas decisões, ele identificaria essas estruturas normativas, ele identificaria quais são os valores prevalecentes nos diferentes grupos da sociedade francesa, como essas pessoas em

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interação produzem tais ou quais comportamentos, coisas dessa natureza, e ele procuraria, a exemplo do que faz um antropólogo, que vai para uma tribo indígena e que conversa com um, conversa com outro, e procura entender como essas pessoas se sentem naquela comunidade e procura entender como esses indivíduos se comportam, entender por que os indivíduos se comportam assim, dadas essas normas, e assim por diante, é isso que um construtivista procuraria fazer. Um racionalista atribuiria preferências ao governo francês, atribuiria preferências aos grupos A, B e C e construiria o seu modelo acerca do comportamento desses indivíduos A, B e C, depois ele observaria, na realidade, se existe correspondência entre o seu modelo e aquilo que ele está observando na realidade. Você percebe que são métodos diferentes. É apenas isso, mas isso é muito. Por quê? Porque por muito tempo pessoas muito relevantes na comunidade, os analistas, como Keohane, de que nós falamos aqui, diziam: fazer isso que os construtivistas estão fazendo não é fazer ciência, e é fazer ciência, de acordo com os critérios de validação do conhecimento científico, é fazer ciência. E isso é algo que é aceito hoje na comunidade com muito menos , eu diria, reservas, do que era aceito, não precisa ir longe, há dez anos, percebe? Então não é dizer: ah, um pouco de construtivismo num e noutro. Há, sim, você está se referindo a um continuum dos elementos que estão na realidade e, nesse contexto que nós estamos debatendo, o racionalismo e o construtivismo são métodos de investigação, métodos de construção de discursos sobre a realidade, que, não obstante adequados a esses critérios de validação do conhecimento científico, são exercícios intelectuais distintos e o que eu defendo aqui é que nenhum é melhor do que o outro, ambos são necessários para que nós possamos conhecer melhor a realidade em que nós estamos inseridos.

Uma síntese desses métodos só poderia acontecer em um nível de abstração ainda maior, que eu não sei se é possível, pode ser que sim, mas eu não vejo por que não aceitar a coexistência desses métodos e a coexistência desses discursos, já que todos eles, novamente, por opção, atendem a esse critério de validação da produção de conhecimento científico, não que não se possa produzir conhecimento de outra maneira, mas aí voltamos àquele outro debate.

Pergunta: Eu queria mergulhar no seu debate entre os construtivistas e os racionalistas. Esse

debate é feito analisando como as instituições são capazes de construir identidades e, no meu entender, esse diálogo entre construtivistas e racionalistas é possível porque ambas as correntes teóricas trabalham a convergência, em que sentido? Os construtuvistas, eles interpretam o comportamento dos atores através dessa construção de identidades e os racionalitas, eles explicam a atuação dos atores através do processo de tomada de decisão racional. Então, no meu entender, essa convergência permite que você analise, você sempre vai ter uma convergência entre as atitudes dos atores, seja por uma abordagem ou por outra, sempre há essa convergência.

A minha pergunta é como seria possível você entender essa construção de identidade, quer dizer, como as instituições são capazes de construir identidades, se

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você percebe a relação entre os atores, sejam eles instituições ou os próprios indivíduos, através de um modelo de política burocrática, por exemplo, do Allison, e não um modelo como os que você utiliza, que seriam o construtivismo e o racionalismo, já que esse modelo, por exemplo, ele não trabalha a convergência, mas, pelo contrário, ele trabalha a disputa entre os atores.

Então, só para quem não tem familiaridade com este tipo de modelo, o modelo da política burocrática de Allison diz que os atores vão estar numa espécie de disputa, uma espécie de jogo, pela influência no comportamento, seja do Estado, ou de uma instituição, ou de um outro ator. Então esses indivíduos ou essas instituições estariam disputando pela atuação, pela influência que ela teria no comportamento do Estado, por exemplo. Então, já que não existe essa convergência, pelo contrário, existe uma disputa, como seria possível a análise da construção de identidades a partir do modelo de Allison da política burocrática?

Prof. Antonio Jorge: Em primeiro lugar, o Allison é claramente um racionalista. Ele está dizendo o

quê? Ele está trabalhando os três níveis de análise, está atribuindo racionalidade às organizações e está dizendo: as agências burocráticas disputam poder, como você bem colocou, ou seja, a estrutura de utilidade dessas agências é tal. Elas vão maximizar a utilização dos seus recursos em função das rotinas burocráticas que tenham, etc., o que ele está dizendo com isso? Há um conflito, sim, há um conflito das agências por influência, pela melhor utilização dos recursos, e assim por diante, mas veja, o método de produção – a gente volta para a mesma discussão anterior, e por isso eu digo que é a parte mais complexa de um argumento como esses – na verdade eu estou trabalhando o tempo inteiro, quando eu estou confrontando, ou melhor, forçando um diálogo entre racionalistas e construtivistas, eu não estou trabalhando nesse nível que você coloca a questão, eu estou trabalhando no nível metateórico.

Isso quer dizer o que? Você está colocando uma disputa que existe entre agentes e os agentes, neste caso, são os agentes que integram o Estado. Eles estão disputando, inclusive, o orçamento do Estado. Cada agência burocrática quer dizer que ela produz mais e melhor porque ela quer um orçamento maior no ano que vem, ela quer mais dinheiro no orçamento do ano que vem e assim por diante. Mas, ao explicar esse comportamento, o que o Allison está fazendo? Ele está atribuindo a racionalidade a esse agente e está dizendo: uma agência burocrática, uma ministério e etc., ele se comporta como se ele fosse um ator unitário e racional e a maximização dos seus benefícios se traduz na forma de acesso a um maior volume de recursos, por exemplo, ou maior influência no processo decisório, bom, aí você vai ter que estudar caso a caso para verificar como isso funciona.

Eu concordo com você que o debate é possível entre racionalistas e construtivistas, mas, do ponto de vista do Allison, ele claramente fez a opção de dizer: eu vou produzir conhecimento segundo o método racionalista, eu atribuo racionalidade a esses três níveis de análise e eu mostro como a complementaridade, a grande contribuição dele, entre explicações produzidas no nível do sistema, explicações

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produzidas no nível das unidades – essas agências burocráticas – e explicações produzidas no nível dos indivíduos, por quê? Tanto indivíduos como rotinas burocráticas e interação de agências burocráticas, como interação entre Estados produzem impactos diferenciados sobre a interação dos Estados, sobre o processo decisório de política externa. Se eu vou discutir, por exemplo, temas de saúde, ou temas de telecomunicações, ou etc., eu percebo que há um entendimento muito maior entre as áreas técnicas dos diferentes países, para trabalhar com essa visão de política burocrática, do que temas outros como segurança e assim por diante, em que há uma disputa muito maior entre as agências, há um compartilhamento de informações muito menor entre essas agências, porque, no caso deles, compartilhar informações significa perder poder.

Dependendo da área com que eu estou trabalhando, eu terei uma ou outra dinâmica da interação dessas agências. Por aí, um construtivista poderia procurar explicitar de que maneira alguns regimes internacionais são criados em áreas específicas à medida que normas internacionais são internalizadas por agências burocráticas de diferentes Estados, que, uma vez que venham a interagir, começarão a produzir visões de mundo que são mais próximas umas das outras do que em outras áreas. Alguma coisa na linha do que fizeram os teóricos que partiam da visão de comunidades epistêmicas. O que eles diziam? Comunidades epistêmicas seriam essas comunidades, por exemplo, essas comunidades acadêmicas, de indivíduos que compartilham as mesmas visões sobre as relações de causa e efeito entre fenômenos da realidade. Quando você pega a discussão toda sobre a camada de ozônio, você tem uma clara demonstração de que, mundo afora, os cientistas ocupados com esse tema convergiam em suas opiniões. O fato de eles convergirem nas suas opiniões significava que, no mundo inteiro, esses indivíduos davam conselhos semelhantes aos seus tomadores de decisão. Não que esses tomadores de decisão tenham agido segundo os conselhos de seus consultores, porque eles tinham que ver o que era o objetivo de longo prazo da comunidade internacional, ou seja, diminuir o buraco da camada de ozônio, ele tinham que confrontar esse interesse de longo prazo com interesses de curto prazo de empresas que perderiam recursos vultosos, investidos em plantas industriais baseadas na produção de gases que prejudicavam a camada de ozônio, ou seja, que aumentavam o buraco na camada de ozônio. O que significa, com isso? Construiu-se uma visão de mundo em que isso foi gradualmente fazendo convergir as identidades dos órgãos técnicos, das agências burocráticas de vários países do mundo e, aparentemente, eu não sou um especialista em política ambiental, mas, pelo que eu vi até agora, nos países em que isso se consolidou, em que isso se assentou e nos setores específicos, nos regimes específicos, nos regimes ambientais específicos em que houve uma “compra”, um convencimento, por parte dos principais grupos econômicos afetados por uma decisão desse tipo, onde isso aconteceu, se criou essa convergência, se criou uma identidade, por assim dizer, internacional, se criou um valor associado a essa transformação de um regime internacional.

Mas veja que eu posso construir tanto uma explicação racionalista, ou seja, diminuiu-se o custo, por meio do convencimento da indústria, diminuiu-se o custo, por

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meio da adesão dos técnicos, etc., etc., como eu posso construir uma explicação construtivista para esse fato: gradualmente, emergiram instituições, emergiram regimes em torno dos quais a identidade desses indivíduos e o comportamento desses indivíduos passaram a convergir e esses indivíduos se sentiram como responsáveis pela perpetuação de um regime que fosse menos danoso ao meio ambiente. Eu posso construir, inclusive, as duas explicações e colocá-las a teste, e submetê-las ao debate e ver qual dessas explicações sobrevive melhor, ou explica melhor, ou interpreta melhor esse fenômeno.

Mas é preciso tomar cuidado, novamente, com o nível de abstração com em que você está trabalhando. A sua pergunta se coloca em um nível de abstração que relaciona teorias e realidade e ela se reporta a uma preocupação de um nível de abstração superior, que é o que confronta teorias entre si. Essas coisas se complementam e, nesse sentido eu concordo com você, o debate é possível, o diálogo é possível, mas o diálogo só é possível na medida em que racionalistas se disponham a entender como os construtivistas vão produzir suas explicações e vice-versa. Enquanto eles disserem: se não for assim não é ciência, ou se não for assado não é ciência, eles não estão dialogando, são monólogos intercalados.

O CEBRI Tese é uma publicação baseada

na apresentação e no debate, no CEBRI, de teses ou dissertações acadêmicas em relações internacionais e política externa brasileira, elaboradas por brasileiros e defendidas e aprovadas em instituições de ensino superior no Brasil ou no exterior.

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