relações entre tjue e tedh no contexto de adesão … · em causa a harmonia jurisdicional...

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62 DEBATER A EUROPA Periódico do CIEDA e do CIEJD, em parceria com GPE, RCE e o CEIS20. N.4 Janeiro/Junho 2011 – Semestral ISSN 1647-6336 Disponível em: http://www.europe-direct-aveiro.aeva.eu/debatereuropa/ Relações entre TJUE e TEDH no contexto de adesão da UE à CEDH Carla Sofia Abreu Prino Mestranda FD-FCSHUNL Resumo Uma adesão por parte da União Europeia a uma convenção de direito internacional põe em causa a harmonia jurisdicional europeia há tanto reivindicada e conquistada. Com o Tratado de Lisboa ultrapassa-se o limite formal – artigo 6º nº 2 TUE - que tornaria a União Europeia apta a aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, questão há muito debatida, mas ficam as dúvidas quanto ao modo de articulação entre o TJUE, tribunal da UE, e o TEDH, tribunal regional europeu, neste contexto de adesão. Teme- se uma “invasão” do direito internacional no direito comunitário que possa interferir e prejudicar a autonomia da ordem jurídica comunitária, contudo um modelo eficaz de cooperação entre o TJUE e o TEDH com base nos princípios da harmonização das decisões internacionais e do reconhecimento mútuo pode ser a regra-chave para estabelecer a harmonia do Direito no Espaço Europeu. Palavras-chave: Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Tribunal de Justiça da União Europeia, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, autonomia, harmonia Abstract Membership of the European Union of a Convention under international law undermines European judicial harmony both claimed and conquered. The Treaty of Lisbon extends beyond the formal limit – article 6 paragraph 2 TEU - which would make the EU fit to join the European Convention on human rights, a much debated issue, but there are doubts as to the manner of articulation between the EU Court and the ECHR, the European regional court, in the context of accession. It is feared an "invasion" of international law into Community law that can interfere and adversely affect the autonomy of the community legal order, but a model of effective cooperation

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DEBATER A EUROPA Periódico do CIEDA e do CIEJD, em parceria com GPE, RCE e o CEIS20. N.4 Janeiro/Junho 2011 – Semestral ISSN 1647-6336 Disponível em: http://www.europe-direct-aveiro.aeva.eu/debatereuropa/

Relações entre TJUE e TEDH no contexto de

adesão da UE à CEDH

Carla Sofia Abreu Prino Mestranda FD-FCSHUNL

Resumo

Uma adesão por parte da União Europeia a uma convenção de direito internacional põe

em causa a harmonia jurisdicional europeia há tanto reivindicada e conquistada. Com o

Tratado de Lisboa ultrapassa-se o limite formal – artigo 6º nº 2 TUE - que tornaria a

União Europeia apta a aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, questão há

muito debatida, mas ficam as dúvidas quanto ao modo de articulação entre o TJUE,

tribunal da UE, e o TEDH, tribunal regional europeu, neste contexto de adesão. Teme-

se uma “invasão” do direito internacional no direito comunitário que possa interferir e

prejudicar a autonomia da ordem jurídica comunitária, contudo um modelo eficaz de

cooperação entre o TJUE e o TEDH com base nos princípios da harmonização das

decisões internacionais e do reconhecimento mútuo pode ser a regra-chave para

estabelecer a harmonia do Direito no Espaço Europeu.

Palavras-chave: Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Tribunal de Justiça da

União Europeia, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, autonomia, harmonia

Abstract

Membership of the European Union of a Convention under international law

undermines European judicial harmony both claimed and conquered. The Treaty of

Lisbon extends beyond the formal limit – article 6 paragraph 2 TEU - which would

make the EU fit to join the European Convention on human rights, a much debated

issue, but there are doubts as to the manner of articulation between the EU Court and

the ECHR, the European regional court, in the context of accession. It is feared an

"invasion" of international law into Community law that can interfere and adversely

affect the autonomy of the community legal order, but a model of effective cooperation

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between the EU Court and the ECHR on the basis of the principles of harmonization of

international decisions and mutual recognition can be the key rule to establish the

harmony of the Law in the European area.

Keywords: The European Convention of Human Rights, the Court of Justice of the

European Union, the European Court of Human Rights, autonomy, harmony.

Com a adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, surgem dúvidas

quanto ao modo de articulação entre o TJUE, tribunal da UE, e o TEDH, tribunal

regional europeu, pois teme-se a “invasão” por parte do direito internacional no direito

comunitário, uma invasão que ponha em causa a autonomia da ordem jurídica

comunitária. O presente trabalho1 procura analisar a questão da adesão à Convenção,

começando pela evolução da questão da necessidade da existência de um catálogo de

direitos que, por sua vez, vai dar origem à necessidade da adesão à CEDH como forma

de fortalecer a protecção constitucional europeia. Esta adesão está prevista no Tratado

de Lisboa. De seguida, procede-se ao estudo das ordens jurídicas existentes - nacional, e

da União Europeia - para averiguar de que modo a adesão influenciará nas relações

entre essas mesmas ordens, passando-se para uma análise da autonomia da ordem

jurídica comunitária, essencial para se compreender de que modo esta autonomia não é

posta em causa pela intervenção do TEDH, pois este não pode decidir sobre a

interpretação de normas europeias ou sobre a validade de actos emanados de

instituições, órgãos e organismos europeus.

De interesse pode ser a revelação na Ordem internacional de um princípio geral

da harmonia de decisões judiciais.

O presente trabalho culmina com o reconhecimento do poderoso contributo da

actividade judicial europeia para a harmonização do Direito, tarefa a que hoje, no plano

do Direito constituído, se prefere o simples reconhecimento mútuo. Esta questão,

evocada apenas, não é, contudo, abordada.

I. Porque se coloca a questão das relações entre TJUE e TEDH?

1. Perspectiva histórica da evolução dos direitos fundamentais no ordenamento

comunitário: o catálogo de Direitos.

1 Trabalho realizado no decurso do estágio no Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria Geral da República, em Junho de 2011

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É com o Tratado de Maastricht que se desencadeia toda uma revolução no

âmbito dos direitos fundamentais, numa tentativa de humanizar a Comunidade

Económica Europeia e trazer o cidadão – não só o trabalhador – para o núcleo da

construção europeia. No entanto, é a partir da jurisprudência do Tribunal de Justiça dos

anos 60 (caso Stauder) que se constrói o caminho para uma nova fase no legado do

direito europeu de reconhecimento diligente dos direitos fundamentais, relativizando-se

a imposição do primado2 que, até então, constituía principal entrave ao recurso dos

Direitos Fundamentais como método/mecanismo de apreciação da validade dos atos

comunitários.

O denominado método jurisdicional de defesa dos direitos fundamentais surge

com o Acórdão de 12 de Novembro de 1969 relativo ao caso Stauder, o qual demarca a

importância da existência de um catálogo de direitos que se encontrem compreendidos

no núcleo do direito comunitário. É o próprio TJ que vem defender, numa perspectiva

diferente do que até então se tinha proposto, a necessidade de protecção dos direitos

fundamentais por parte dos tribunais, invocando os princípios gerais do direito

comunitário. Nesta mesma linha de pensamento é resolvido o caso Internationale

Handelsgesellsschaft de 12 de Dezembro de 1970, invocando-se as tradições

constitucionais comuns como principal arma de protecção dos direitos fundamentais e

como esteio a ser tido em conta para a descoberta dos princípios gerais de direito; apela-

se ao direito interno como exemplo a seguir no âmbito da estrutura e dos objectivos da

Comunidade. Esta decisão de 1970 vem responder à reivindicação por parte dos Estados

membros do seu direito a declararem inaplicáveis no seu ordenamento, quaisquer actos

de direito comunitário que afrontem direitos protegidos constitucionalmente, perante a

falta de um catálogo europeu de direitos fundamentais que constitua um núcleo comum

de protecção desses mesmo direitos. Em especial, é com a decisão Solange I , do

BverfG, que se atenta na inexistência de um tal catálogo, afirmando o tribunal a sua

competência para formular juízos de conformidade entre as normas comunitárias face

ao regime de protecção dos direitos fundamentais concedido no seu ordenamento, por

considerar que tal se encontra melhor estruturado relativamente aos parâmetros - que

julga serem frágeis - adoptados a nível comunitário. Caminha-se para a consolidação de

um critério material de Direitos Fundamentais que verá a sua melhor construção com o

famoso caso Nold II, no qual o TJCE vem fixar um terceiro elemento que, juntamente

2 A ideia de primado parte da própria jurisprudência, no acórdão COSTA/ENEL de 1964.

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com a referência às tradições constitucionais comuns e às Constituições dos Estados-

membros, determinam o núcleo que serve a salvaguarda dos direitos fundamentais: os

instrumentos internacionais relativos à protecção dos direitos humanos aos quais os

Estados-membros estejam vinculados.

Ao recorrer pela primeira vez à CEDH no acórdão Rutili de 1975, o TJ

demonstra o seu interesse em fazer vigorar este essencial instrumento internacional de

modo a contribuir para a construção de um sistema de protecção que tutele

autonomamente o núcleo comum de direitos fundamentais que, tão bem, os tribunais

alemães e italianos reivindicaram.

Toda a revolta jurisprudencial vivida a partir dos anos 60 tornou o TJ consciente

dos efeitos nocivos que o alargamento do campo de aplicação do direito comunitário e a

consequente actividade da Comunidade Europeia poderiam provocar nas esferas de

protecção pessoais dos particulares.

2. Parecer 2/94 de 28 de Março de 1996

É no contexto de todo este debate jurisprudencial que o Conselho da União

Europeia pede parecer ao Tribunal de Justiça sobre a “Adesão da Comunidade à

Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”,

no intuito de ver esclarecida a questão da vinculação à CEDH e das respectivas relações

entre aquele tribunal e o TEDH. Trata-se da primeira oportunidade de discussão pública

sobre o problema que, desde o aparecimento da Convenção, atormenta o TJCE: é a

adesão à Convenção compatível com o direito comunitário, em especial, com as

competências implícitas no Tratado que institui a União Europeia?

Ao consagrar a protecção dos direitos fundamentais através dos princípios gerais

de direito comunitário, aludindo às tradições constitucionais comuns e aos instrumentos

internacionais – em especial, a Convenção- tornou-se evidente o interesse do Tribunal

em contribuir na evolução da Comunidade em matéria de respeito pelos direitos do

homem. Deste modo, se foi traçando o caminho para atingir o objectivo de adesão à

Convenção que vinculasse formalmente a Comunidade. Objectivo este desde há muito

reclamado como essencial para um desenvolvimento do direito comunitário enquanto

regulador de um espaço de liberdade, segurança e justiça; um espaço que deixasse de

ver o cidadão europeu como mero trabalhador – no âmbito de uma Europa/Comunidade

de cariz essencialmente económico – para passar a encará-lo como sujeito de direitos e

garantias fundamentais. Por tudo isto se considera o Parecer 2/94 de 28 de Março de

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1996 um importante marco que vem frisar o problema da falta de adesão à CEDH de

forma oficial, lançando a discussão para a “ágora” da Comunidade.

Muito embora fosse unânime a posição que defendia a protecção dos direitos do

Homem como um dos objectivos do direito comunitário, inerente à própria consagração

da cidadania da União, o TJ - admitindo a falta de um catálogo de direitos que

legitimasse tal protecção - entendeu que a Comunidade não teria competência para

aderir à Convenção devido à condição em que se encontrava o direito comunitário à

altura do parecer em estudo: “a adesão à Convenção implicaria uma alteração

substancial do regime comunitário actual de protecção dos direitos do homem, na

medida em que implicaria a inserção da Comunidade num sistema institucional

internacional distinto, bem como a integração do conjunto das disposições da

convenção na ordem jurídica comunitária”3. Ou seja, uma alteração do regime

comunitário ultrapassaria os limites do artigo 235º TCE (relativo às competências

implícitas da comunidade, actual artigo 268º do TUE), o que só poderia suceder

mediante a realização de uma modificação do Tratado que consentisse/previsse a adesão

à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

3. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Ao instituir-se a cidadania da União, coloca-se o ser humano no cerne da acção

europeia, cerne esse que se viu ampliado com a constitucionalização da Carta dos

Direitos Fundamentais da União Europeia no Tratado de Lisboa, onde lhe é atribuído

efeito jurídico vinculativo, a qual vem suplantar, em certo modo, um dos problemas

debatidos no âmbito tanto da jurisprudência como do parecer 2/94, embora ficasse

dispensada a necessidade da consequente adesão à Convenção por nos encontrarmos no

domínio de dois tipos de tutela distintos: a Carta tem por fim garantir a devida protecção

do indivíduo perante o modo de proceder das instituições europeias; por sua vez, a

Convenção visa asseverar essa mesma protecção face ao comportamento dos Estados.

No seu essencial, a Carta - para além da jurisprudência constante - veio complementar a

Convenção, colmatando as omissões em matéria de direitos sociais, de igualdade e de

direitos associados ao progresso económico. Afasta-se o tradicional método pretoriano

de protecção dos direitos fundamentais em prol de um campo de protecção mais seguro

e previsível e reforça-se a segurança jurídica europeia.

3 Memorando 34, Parecer 2/94 de 28 de Março de 1996

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A luta dos Altos Tribunais nacionais e todos os debates jurisprudenciais a favor

de um catálogo de direitos fundamentais que regesse o direito comunitário terminam

vencedores com a conquista4 do nascimento do Povo Europeu, unido por valores

comuns.

4. Tratado de Lisboa: a adesão à CEDH

É com o Tratado de Lisboa que se consegue suprir uma outra lacuna apontada

pela jurisprudência ao longo das últimas décadas e referida como principal obstáculo no

Parecer 2/94: a necessidade de dotar a União de capacidade constitucional para aderir à

Convenção Europeia dos Direitos dos Homens. Esta adesão é encarada como o vínculo

de obrigatoriedade necessário para tornar mais sério e eficaz o âmbito de salvaguarda

dos Direitos Fundamentais, aproximando o direito da união europeia do direito europeu

dos direitos do homem.

O artigo 6º nº2 do Tratado de Lisboa5 vem superar a inexistência de uma tal

habilitação constitucional, concedendo a formalidade exigida para a adesão,

corroborando o quadro jurídico de protecção dos Direitos Fundamentais ao nível da

União.

A adesão formal à Convenção resulta num meio de garantir a coerência entre a

própria União e a Europa, ao mesmo tempo que fortalece a protecção do cidadão face

aos actos da União e promove o desenvolvimento harmonioso da jurisprudência do TJ e

do TEDH.

Cabe, agora, questionarmo-nos sobre o impacto desta adesão sobre o princípio

da autonomia do direito da União: pode a adesão vir pôr em causa a posição e a

autoridade do Tribunal de Justiça? De que modo se articularão o TJ e o TEDH?

II Tribunal de Justiça e Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: como se

articulam? Que tipo de relação?

1. Princípio da autonomia do direito comunitário.

4 Conquista esta que se materializa com a Carta dos Direitos Fundamentais, há tanto proclamada. 5 “A União adere à Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.”

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A ordem jurídica comunitária é autónoma. Por autónoma entende-se dotada de

mecanismos específicos independentes, que a caracterizam com um regime próprio que

se distingue da ordem jurídica internacional por força dos seus princípios criadores e

finalidades distintas. Os tratados europeus reflectem este intuito de criação de uma

Comunidade autónoma, incumbida de determinados poderes que lhe garantem uma

autoridade institucional face aos interesses nacionais e internacionais; um sistema em

que prevalece o interesse comunitário.

A existência de um quadro normativo específico, cuja criação está a cargo de

instituições determinadas para tal competência juntamente com um regime de protecção

jurisdicional próprio encarregue da regulação, interpretação e aplicação do direito

comunitário fundamentam a autonomia e a prevalência das normas comunitárias. É com

base neste contexto que se questiona o Tribunal de Justiça sobre as suas verdadeiras

razões para a não adesão à Convenção: uma questão de salvaguarda da autonomia do

direito comunitário, como fundamento da ordem jurídica comunitária, associada à

preservação do seu estatuto jurisdicional supremo e exclusivo?

1.1 Estanqueidade da ordem judicial interna face à ordem judicial internacional

comunitária?

Ao falarmos de estanqueidade6 das ordens referimo-nos aos “muros

tradicionais” que impedem a harmonização da lei e a respectiva aplicação do direito que

não lhes seja originalmente intrínseco.

Esta questão revela-se de extrema importância pois, tal estanqueidade, se

realmente se verifica, constitui um potencial entrave à aplicação do direito

internacional, mesmo que este beneficie de primazia.

O artigos 19º do TUE e 267º do TFUE regulam o instrumento de cooperação do

reenvio pré-judicial, o qual se encontra a cargo do TJ e lhe determina a competência em

questões de interpretação do direito comunitário, a pedido prévio do juiz nacional que

entenda necessária a sua intervenção. O TJ, no uso desta sua faculdade legal, limita-se a

apreciar a questão que lhe é colocada, não procedendo a uma análise concreta de

resolução do caso; o seu domínio de actuação confina-se, sim, a interpretar o direito

6 O conceito de estanqueidade tem vindo a ser abordado, embora de forma não directa, na jurisprudência do TEDH, nomeadamente: Acórdão proferido na queixa nº31122/05 Chigo contra Malta; Acórdão proferido na queixa nº12849/87 Vermeire contra a Bélgica; Acórdão proferido na queixa nº14556/89 Papamichalopoulos e outros contra a Grécia; Acórdão proferido na queixa nº21188/09 Gluhakovic contra a Croácia; Acórdão proferido na queixa nº 62540/00 The Association for European Integration and Human Rights and Ekimdzhiev contra Bulgária.

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comunitário de modo a orientar o juiz nacional na sua decisão. Mesmo não se tratando

de uma decisão, isto é, de um acto executivo de sentença, o certo é que o parecer

emitido pelo Tribunal de Justiça vai vincular a actuação do juiz nacional que recorreu ao

reenvio; o qual, por via do disposto nos artigos 8º e 16º da CRP, se encontra sujeito ao

pleno respeito pelo direito comunitário. Assim, muito embora ainda nos encontremos no

perímetro restrito da ordem interna, as muralhas formais são já penetradas pelo direito

comunitário, que se lhe impõe e garante a autonomia e a harmonização da ordem

internacional comunitária. O princípio da autonomia do direito comunitário vê, deste

modo, a sua força asseverada face a uma maior permeabilidade da ordem interna, que

lhe permite intervir durante o desenrolar do processo da relação controvertida,

influenciar na decisão, proporcionando uma harmonização prévia das decisões à luz do

direito comunitário.

O princípio do caso julgado7 surge, por sua vez, como um forte argumento a

favor da estanqueidade da ordem interna, pois, tal princípio, decorrente do princípio da

segurança jurídica, consiste na insusceptibilidade de alteração de uma sentença quando

esta tenha transitado em julgado. A consolidação do caso, com vista à concretização do

ideal da paz jurídica, concretiza-se com a sua resolução definitiva, isto é, quando já não

seja susceptível de qualquer recurso; quando já estejam esgotadas todas as fontes

internas. Esta inalterabilidade surge como uma característica inerente à ordem interna

portuguesa que lhe garante a coesão e firmeza necessárias para manter a ordem e a

segurança judiciais. Torna a ordem nacional impermeável à ordem internacional

Esta estanqueidade destaca-se como princípio do método jurídico, criando-se

uma fortaleza aparentemente impenetrável por via de uma decisão cimentada. Deste

modo, o que fazer perante uma decisão emitida pela ordem internacional, a que o

interessado tenha recorrido no pleno uso dos seus direitos presentes na CEDH, após ter

esgotado todas as fontes de resolução a nível interno? A solução passa pelo mecanismo

do recurso de revisão8 que transponha a decisão efectuada a nível internacional para a

ordem interna, para assegurar o respeito devido ao primado do Direito Internacional. Tal

7 Contrapõe-se com o conceito de decisão definitiva promovido pelo TEDH: quando - em recursos internos – o problema material já está resolvido e só muito excepcionalmente será a decisão modificada; enquanto para haver caso julgado é necessário não haver mais recursos judiciais. Esta distinção não é despicienda na medida em que o TEDH vem considerando, nos casos portugueses, que foi ultrapassado o prazo de seis meses para apresentar a queixa, quando a queixa é apresentada poucos dias depois da notificação da decisão do Tribunal Constitucional, por exemplo. Pelo que se sugere a queixa ao TEDH nos seis meses a seguir à notificação de decisão da secção do STJ sobre o assunto. 8 Recurso de amparo, em países como Espanha e Alemanha; recurso de revisão em ordens como a Portuguesa e Holandesa.

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instrumento de recurso é, desde logo, permitido pela própria Constituição, no seu artigo

29º nº6 que prevê, exactamente, o direito à revisão de sentença, de modo que todo o

regime esteja mais ajustado quer à CEDH quer às decisões e normas emanadas dos

órgãos competentes das organizações internacionais que Portugal integra.

No âmbito do processo civil, o recurso de revisão está previsto no artigo 771º,

alínea f) do CPC e no âmbito do processo penal no artigo 449º nº1 alínea d) do CPP;

ambas as disposições referem a admissão de recurso de sentenças transitadas em julgado

nos caso em que tal “seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância

internacional de recurso vinculativa para o Estado Português”, como o seja o TEDH.

Diferentemente do que se verifica com o mecanismo do reenvio pré-judicial, neste

contexto deparamo-nos com uma verdadeira decisão vinculativa que modificará a

decisão tomada dentro da robustez nacional. No entanto, esta modificação carece da

devida transposição para a ordem interna, apenas possível se o interessado nessa mesma

transposição activar o mecanismo do recurso de revisão. Ora, este recurso surge-nos

como o único mecanismo interno viável e praticável para combater a estanqueidade

evidente, único capaz de derrubar as barreiras internas de protecção à paz jurídica

alcançada com a efectivação do caso julgado. A ordem interna prima, assim, pela

coesão e estanqueidade no domínio judicial, ao colocar o trânsito em julgado como

entrave à suposta recepção automática das decisões internacionais.

1.2 Estanqueidade da ordem comunitária face à ordem internacional?

É com base numa política de defesa de auto-suficiência do sistema comunitário

que se fundamenta a autonomia da ordem jurídica comunitária; reivindica-se uma

independência administrativa europeia face à ordem internacional, praticada de forma

equivalente a nível nacional.

As instâncias comunitárias, inseridas num quadro institucional único da União

(artigo 13º nº1 TUE), assumem a posição dos tribunais nacionais no contexto de

interacção da ordem interna comunitária com a ordem Internacional, assumindo-se o

direito europeu como aparentemente estanque face ao direito internacional. Mas de que

modo se concretiza esta impermeabilidade9 do Direito da União Europeia?

Primeiramente, no âmbito do Direito da Concorrência deparamo-nos com uma

competência jurídica exclusiva da U.E., não existindo legislação nacional nesse sentido;

9 Primado relativamente às ordens nacionais, as verdadeiramente internas; autonomia relativamente ao Direito Internacional, também assim manifestada.

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o próprio artigo 3º nº1 alínea b) do Tratado da U.E. constitui uma garantia da

uniformidade da aplicação do direito da concorrência, vista como objectivo fundamental

do mercado interno que fortalece a ideia de autonomia defendida pela jurisdição

europeia. O controlo jurisdicional neste ramo jurídico é, também, exclusivo da União

Europeia, mais concretamente, do Tribunal de Primeira Instância (TG) em sede de

impugnação das decisões da Comissão – principal responsável pela actividade

concorrencial - por parte de pessoas singulares ou colectivas e, em sede de recurso, do

Tribunal de Justiça. As sentenças do TJ vinculam os tribunais nacionais, reforçando a

ideia de harmonização e autonomia que caracteriza a estanqueidade da ordem

comunitária.

O Direito da Concorrência representa uma forma de autonomização específica,

dotando a Comunidade de uma jurisdição consolidada e construída de forma a

salvaguardar a actividade judicial europeia a que se junta a existência de um Tribunal da

Função Pública, uma jurisdição especializada no domínio do contencioso da função

pública da U.E., regulada no artigo 270º TFUE, reflexo do funcionamento

administrativo nacional. Tal instância trata dos litígios existentes entre a Comunidade e

os seus agentes no âmbito das relações laborais e do regime de segurança social,

proporcionando todo um regime de protecção em prol dos trabalhadores da União

Europeia, garantindo um sistema uniforme característico de uma união que se

ambiciona em todos os níveis dos objectivos inerentes à ordem comunitária.

Assim, tal como sucede no âmbito nacional, a União está provida de um

Tribunal de Primeira Instância (artigo 256ºTFUE), o já referido Tribunal Geral, que é

competente para as acções e recursos interpostos pelas pessoas singulares ou colectivas

contra os actos das instituições, dos órgãos e organismos da União Europeia e actos

regulamentares ou contra uma abstenção destas instituições, órgãos e organismos, bem

como dos recursos interpostos pelos Estados-Membros contra a Comissão e dos

recursos interpostos pelos Estados-Membros contra o Conselho, das acções destinadas a

obter o ressarcimento dos danos causados pelas instituições da União Europeia ou pelos

seus agentes, das acções emergentes de contratos celebrados pela União Europeia, em

que o mesmo seja competente. Por último, há que referir os recursos, limitados às

questões de direito, contra as decisões do Tribunal da Função Pública da União

Europeia, como uma competência que garante um segundo nível de protecção aos

trabalhadores da União Europeia, daqui resultando um método eficaz e auto-suficiente

da administração europeia.

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Quanto ao Tribunal de Justiça, o Tribunal da ordem comunitária, este beneficia

de mecanismos próprios e autónomos de controlo jurisdicional sobre toda a actividade

tanto dos Estados Membros como de todas as instituições, órgãos ou organismos da

União: a acção por incumprimento com vista a fiscalizar o cumprimento pelos E.M. das

obrigações que lhes incubem por força do Direito da União; a acção por omissão com o

intuito de fiscalizar a legalidade da inacção das instituições, dos órgãos ou dos

organismos europeus e o recurso de anulação cuja decisão resulta na anulação de um

acto proveniente de uma instituição, órgão organismo. Destaco o recurso de decisão,

limitado às questões de direito, e o mecanismo de reapreciação das decisões do TG

sobre os recursos interpostos das decisões do TFP como reflexo de uma articulação

proveitosa em prol da uniformização e primado do Direito da União Europeia que lhe

permite a independência administrativa, reforçada por uma competência exclusiva de

controlo judicial dos tribunais comunitários e dos próprios tribunais nacionais, nos quais

os juizes surgem como principais intérpretes e aplicadores do direito europeu; uma

competência que parece não se coadunar com a ordem internacional e que constrói toda

uma fortaleza incompatível com o Direito Internacional.

2. Primado do Direito Internacional.

Diante de uma aparente autonomia por parte da ordem interna face á ordem

comunitária e, por sua vez, desta face à ordem internacional, cabe questionar se não

estaremos perante uma estanqueidade meramente formal que é superada pelo primado

da norma fundamental como o é o Direito Internacional. Um primado verdadeiramente

alcançado por via da adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que vem

impor a cooperação e comunicação entre todas as ordens prevenindo a implementação

de primados de “poder judicial”.

No contexto português, os artigos 8º e 16º da Constituição da República

Portuguesa clarificam o primado do Direito Internacional, pois temos a própria norma

fundamental interna a autorizar uma recepção automática das normas internacionais,

muito embora tais tenham de recuar se forem contra os princípios basilares do Estado

Democrático. No entanto, tal recuo não será passível de acontecer, tendo em conta que o

próprio Direito Internacional é um reflexo das tradições constitucionais e, como tal, terá

na sua base os mesmos valores remanescentes da ordem interna, permitindo uma

harmonização judicial necessária para o bem estar entre a ordem interna, comunitária e

internacional.

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3. As relações entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem.

A adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem suscita dúvidas quanto

ao modo de articulação possível entre o Tribunal de Justiça, o supremo no sistema

eurocomunitário, e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o supremo, por sua

vez, no sistema da “grande europa” - internacional. Tais dúvidas reflectem-se no receio

de ameaça ao princípio da autonomia do direito da União e respectivo estatuto de

jurisdição suprema e exclusiva do Tribunal de Justiça face ao direito internacional e sua

fiscalização por parte do TEDH, muito embora o TJ se mantenha como órgão

jurisdicional supremo e único relativamente às questões de interpretação do direito da

União e validade dos seus actos e o TEDH, por sua vez, como órgão jurisdicional

supremo no respeito à CEDH. Tratar-se-á de uma relação de especialização e não de

natureza hierárquica entre os dois tribunais europeus com fim a garantir uma maior

protecção aos cidadãos no âmbito de actuação da União.

Pretende-se, deste modo, a criação de um regime integral que permita aos dois

tribunais um funcionamento equilibrado e articulado com recurso a uma relação de

diálogo e cooperação que apenas será concretizável através da adesão à Convenção, a

qual proporcionará uma harmonização legislativa e jurisprudencial dos ordenamentos

jurídicos e o consequente desenvolvimento harmonioso dos dois tribunais em matéria de

direitos humanos.

Resta saber de que modo se verificará esta harmonia, recorrendo-se à análise das

formas de processo pertencentes a cada jurisdição.

3.1 Formas de Processo

3.1.1 Mecanismo de queixa para o TEDH

De acordo com o disposto no artigo 35º da CEDH, o Tribunal Europeu só pode

ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso

internas; trata-se do mecanismo de queixa, com carácter subsidiário, que coloca no

Estado o poder de resolução do conflito que esteja em causa, devendo aquele

harmonizar a sua decisão conforme a CEDH e respectiva jurisprudência.

O TEDH constitui a melhor arma contra a actuação do Estado no que toca aos

direitos presentes na Convenção que são, no fundo, os mesmo direitos consagrados a

nível constitucional, no exemplo português: o direito internacional destaca-se como

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principal meio, a favor do particular, de levantar uma queixa contra um Estado que

tenha violado algum dos direitos. Trata-se de um poderoso instrumento de oposição à

soberania estatal.

Falamos do mecanismo do direito de queixa, devidamente consagrado no artigo

34º CEDH, de acordo com o qual o TEDH pode receber petições com base numa

violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção

ou nos seus protocolos, dentro de um período de seis meses após a decisão definitiva.

3.1.2 Mecanismo de reenvio prejudicial para o TJ

Ao funcionarem como órgãos de aplicação do direito comunitário, os tribunais

nacionais têm a seu cargo a grande tarefa de interpretação e aplicação o mais próxima

possível do Direito da UE que os obriga a afastarem-se dos conceitos e das regras

interpretativas específicas do direito nacional. Só este afastamento permite a construção

de um regime jurisdicional coeso e harmonioso fulcral para a existência do direito da

União Europeia, capaz de satisfazer os objectos da Comunidade e de possibilitar a

comunicação firme e eficaz entre todas as Altas Partes Contrantes. Cabe questionarmo-

nos sobre o modo de proporcionar este ideal de regime e a resposta parece ir de

encontro com o mecanismo de reenvio prejudicial, o qual permite a intervenção directa

do direito da UE durante o desenrolar do processo, ou seja, antes da decisão definitiva,

fomentando a colaboração entre os órgãos jurisidicionais nacionais e o TJ de modo a

que haja uma correcta interpretação e aplicação do direito europeu.

O reenvio prejudical vem previsto no artigo 267º do Tratado sobre o

Funcionamento da União Europeia, o qual é completado pelo artigo 23º do Protocolo

nº3 relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Um importante

mecanismo, que o juiz nacional acciona face a uma objecção sobre a interpretação de

normas europeias ou sobre a validade dos actos adoptados pelas instituições. É ao juiz

nacional que cabe o poder de decisão final, ou seja, é a este que compete a aplicação do

direito aos factos e só no caso de considerar que a intervenção do TJ será necessária

para a resolução da relação controvertida ele poderá ou deverá, dependendo se a decisão

seja ou não passível de recurso na ordem interna, sujeitar a questão suspeita ao juiz

europeu (TJ), ao qual competirá responder mas somente no âmbito da pergunta

levantada, isto é, só quanto à interpretação da disposição que esteja em causa ou quanto

à validade do acto comunitário, não podendo reportar-se ao caso concreto, resolvendo a

questão de forma autónoma. Este parecer orientará o juiz nacional na decisão do litígio,

proporcionando-se, ao mesmo tempo que se garante a devida harmonia no âmbito da

75

jurisdição europeia. Uma verdadeira relação de colaboração em detrimento de um

vínculo que seria encarado como de hierarquia.

3.1.3 Contencioso Comunitário

A União Europeia encontra-se provida de um sistema judicial baseado em dois

níveis de jurisdição, em que todos os casos resolvidos em primeira instância pelo

Tribunal Geral podem ser objecto de recurso relativo, a questões de direito, para o

Tribunal de Justiça.

O Tribunal Geral da União Europeia (art.256º TFUE) surge como órgão

independente apenso ao Tribunal de Justiça da União Europeia e é competente para

resolver, em primeira instância, as ações instauradas por particulares, empresas e

algumas organizações ou relacionadas com a legislação em matéria de concorrência10.

Primeiramente, é ao TG que cabe conhecer os recursos de anulação (art.263ºTFUE) e

de omissão (art.265ºTFUE). Estes dois tipos de acção caracterizam-se pela repartição de

competências existente entre este tribunal e o TJ, competência essa que tem de ser

averiguada no âmbito do disposto nos artigos 256ºTFUE em contraposição com o artigo

51º ETJUE, dependendo do tipo de litígio e da condição do demandante ou do

demandado; há que verificar a que tribunal se circunscreve a relação controvertida em

causa. A acção por anulação tem como obejcto a impugnação de actos praticados pelas

instituições, órgãos ou organismos da U.E., com base no princípio da

constitucionalidade dos actos europeus, enquanto que a acção por omissão visa

constituir um meio de fiscalização da legalidade da inacção das instituições, dos órgãos

ou dos organismos da União.

Ainda no círculo de competências do TG, este está apto a conhecer dos recursos

sobre litígios entre a União e os seus agentes, isto é, conflitos derivados do

funcionalismo público europeu. Trata-se de um recurso de uma decisão originária do

Tribunal da Função Pública, uma jurisdição especializada no domínio do contencioso

da função pública europeia quanto aos litígios entre as comunidades e os seu agentes, no

âmbito das relações laborais e do regime da segurança social. Por sua vez, das decisões

do TG sobre os recursos interpostos das decisões do TFP pode haver uma reapreciação,

a título excepcional, por parte do TJ (artigo 270ºTFUE).

10 Tema que foi abordado no ponto 1.2

76

Acrescenta-se a acção de responsabilidade civil extra-contratual, prevista no

artigo 272º TFUE, referente à responsabilidade da União na celebração de contratos

tanto de direito público como de direito privado, da competência do TG em primeira

instância com recurso para o TJ, limitado às questões de direito.

Por fim, na área do contencioso comunitário, temos o reenvio prejudicial, já

mencionado, e o processo por incumprimento. A acção por incumprimento tem como

fim fiscalizar o cumprimento pelos Estados Membros das obrigações que lhes

incumbem por força do direito da União, tutelando os interesses daqueles mesmos e da

própria União Europeia. Cabe à Comissão (art.258º TFUE) ou a qualquer E.M.

(art.259ºTFUE) a legitimidade processual para a interporem, caracterizando-se tal

mecanismo por conter duas fases: uma fase administrativa com natureza pré-litigiosa

que funciona como filtro, isto é, dá a Comissão uma oportunidade ao Estado infractor

de cumprir a obrigação que lhe foi imputada antes de se recorrer à via judicial (art.260º

nº1 TFUE), a qual só terá lugar em caso de inércia por parte daquele e levará a uma

decisão de incumprimento que imponha aos Estados a tomada das devidas medidas de

execução do acórdão do TJ.

4. Princípio da Harmonia das Decisões Judiciais Internacionais

É consensual o requisito de esgotamento das fontes internas para se poder

accionar o mecanismo de queixa, incluir tanto as fontes internas nacionais como as

comunitárias, demonstrando-se, deste modo, o empenho em aproximar, desde logo, o

direito da lei internacional, no que toca à Convenção Europeia dos Direitos do Homem,

dando-se a devida oportunidade à jurisdição comunitária de resolver os litígios a nível

interno, constituindo o TEDH o último recurso possível. Portanto, não se coloca a

questão de receio por parte do TJ de se subjugar ao controlo e fiscalização do Tribunal

Europeu, até porque este só pode reportar-se aos direitos implícitos na Convenção, o

que significa que o TEDH nunca poderá intervir na interpretação das normas europeias

nem na validade dos actos emanados das instituições, órgãos ou organismos europeus,

ficando o seu campo de actuação restrito à conformidade das decisões europeias com a

Convenção e dependente do devido impulsionar do mecanismo de queixa (artigo 35º

CEDH).

Quanto à estanqueidade entre as ordens, aquela parece ter menor impacto entre a

ordem interna e a comunitária relativamente ao que se verifica entre a ordem

comunitária e internacional, pois apesar do TJUE ser concebido como tribunal

77

interno/nacional da União Europeia, usufrui das características de um verdadeiro

tribunal internacional, o que permite uma relação próxima entre o TJUE e o TEDH. A

natureza internacional do TJUE só é posta em causa no âmbito do mecanismo de

queixa, quando adquire uma natureza “interna” para efeitos de interpretação do direito

europeu, reflexo da cooperação entre os dois tribunais que contraria o receio de uma

invasão do direito internacional na jurisdição única europeia.

Por sua vez, o reenvio prejudicial constitui um instrumento que a nível prático

tem superado muitas das expectativas sobre ele criadas, ao conseguir criar e manter as

condições necessárias para uma efectiva unidade de interpretação e aplicação do direito

comunitário, cumprindo devidamente o seu objectivo de conciliação jurídica entre a

ordem interna nacional e a ordem comunitária. Assim, no reenvio existe plena harmonia

legislativa e jurisprudencial, resultante da eficaz relação de cooperação entre a

jurisdição nacional e europeia que assenta num diálogo praticado durante a construção

do que virá a ser a decisão final do litígio em causa, fruto de um autêntico trabalho de

equipa. Neste sentido, a opinião de alguma doutrina é que tal mecanismo podia também

ocorrer entre o próprio TJ e TEDH no caso de dúvidas quanto à interpretação da

CEDH, no entanto, torna-se dispensável tal formalização das relações entre os dois

tribunais europeus perante o que se constata ser um diálogo, já desde há muito, regular11

entre o TJUE e o TEDH, o qual só beneficiou com a adesão formal à CEDH. O

importante é que se verifique um diálogo jurisprudencial contínuo entre os dois

tribunais, cabendo ao TJ procurar harmonizar as suas decisões de acordo com o

defendido pelo TEDH, independentemente de o fazer modo formal ou não, bastando o

contacto necessário para que as duas jurisdições trabalhem em função da mesma tarefa:

fazer jus aos direitos consagrados na Convenção12.

O artigo 35º nº2 alínea b surge-nos como instrumento de combate à fragmentação da

jurisdição europeia - internacional, quando tem implícito o respeitado princípio geral de

direito ne bis in idem, ou seja, o TEDH não conhecerá de qualquer petição individual

(artigo 34º CEDH) que seja idêntica a uma petição anteriormente examinada pelo

Tribunal ou já submetida a outra instância internacional de inquérito ou de decisão e não

11 Entendimento defendido pelo Parlamento Europeu no Relatório de 6 de Maio de 2010 sobre “Os aspectos institucionais da adesão da União Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais” , com fundamento na Declaração nº2 ad nº2 do artigo 6º do TUE; 12 Entendimento retirado das Reuniões de Trabalho do Grupo de Trabalho Informal do CEDH sobre a adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem com a Comissão Europeia (CEDH-UE). Agradecimentos são devidos à Sra. Dra. Maria de Fátima Carvalho, Agente do Governo Protuguês junto do TEDH pela disponibilização destes importantes elementos de estudo.

78

contiver factos novos, evitando-se, deste modo, o choque de decisões entre as várias

jurisdições ou dentro da mesma jurisdição13, como forma de fomentar a harmonia e criar

condições para que as ordens jurisdicionais estejam lado a lado no propósito que as une

e que passa por uma melhor protecção ao nível dos direitos humanos, uma protecção

que consiga ser transfronteiriça, eficaz num plano universal.

Em suma, temos que o princípio da harmonia das decisões dos tribunais

nacionais, europeus e internacionais constitui um princípio basilar de uma boa mecânica

jurisdicional europeia, ao mesmo nível que o são os princípios da proporcionalidade e

igualdade, os quais são tidos como verdadeiros princípios gerais de direito14. Assim,

urge considerar-se o princípio da harmonia como um autêntico princípio geral de

direito, que possa condicionar e orientar a compreensão do ordenamento jurídico,

estabelecendo-se como um alicerce que permite a implementação de um sistema

jurisdicional coeso e eficaz.

III Conclusão: adesão à CEDH como elo de harmonia entre a “Pequena” e a

“Grande Europa”

Analisando a mecânica geral das relações entre o TJ e o TEDH, prevalece um

modelo de cooperação entre os dois tribunais europeu-internacional, em que o TJUE

surge como juíz final na interpretação da lei comunitária e o TEDH como entidade

externa especialista destinada a avaliar se a U.E. cumpre as obrigações resultantes da

sua adesão à CEDH; uma cooperação assente na ficção de que o TJ funciona no âmbito

13 Ver, O’Boyle, Michael, “Ne bis in idem” for the benefit of states?”, in Liber Amicorum Luzius

Wildhaber, Human Rights – Strasbourg Views, 2007 14 Os Princípios Gerais de Direito, oriundos do costume internacional e delineadores da Ordem Jurídica Mundial, têm na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 a sua primeira aparição, reflexo da importância acrescida que lhes foi sendo atribuída; mas é com a sua codificação na Carta Internacional dos Direitos do Homem que são devidamente positivados, existindo o sentimento generalizado da sua obrigatoriedade (opinio juris) e o sentimento generalizado de que são obrigatórios (vel necessitatis). Deste modo, são princípios intrínsecos às NU, ao PIDCP e aos seu Protocolos, ao PIDESC, à CEDAW, CERD, CAT, CRC, assim como à própria CEDH, à Carta Europeia dos DH e à Convenção Interamericana dos DH. São princípios que se extraiem das diversas normas ou proposições jurídicas, diferindo consoante o contexto em que estejam incorporados, mas que servem o mesmo propósito de justiça e partilham a mesma mecânica material (exemplo do artigo 235º do antigo TCE). Dentro destes princípios gerais, distinguem-se os que se reportam aos direitos humanos dos que se limitam ao modo de afirmação dos direitos em geral: o princípio da proporcionalidade opera numa decisão para medir a correspondência entre um comportamento e a sua consequência; a equidade serve a decisão justa, assim como a imparcialidade ou o direito a ver a sua decisão proferida num prazo razoável. Deste modo, nos atrevemos a considerar o princípio (geral) da harmonia de decisões das instâncias internacionais de controlo, sabendo-se que não são de recurso mas sim de queixa, não existindo nenhuma hierarquia entre elas e que, sob pena de quebra do direito internacional público, as decisões não podem ser contraditórias. Mais se acrescenta que este princípio terá um correspondente interno que justifica a fixação interna de jurisprudência, tema que não poderá merecer, neste trabalho, maior atenção.

79

do Direito interno Comunitário e o TEDH no âmbito do Direito Internacional. Os dois

tribunais surgem como dois órgãos autónomos e complementares: o Tribunal de Justiça

mantém competência exclusiva para interpretar a Lei Europeia, enquanto o Tribunal de

Estrasburgo se mantém como o tribunal no mecanismo da CEDH. Uma relação assente

numa harmonia jurisprudencial, a qual começa por se implementar, desde logo, a nível

nacional, onde o próprio juíz nacional de primeira instância surge como primeiro juíz da

Convenção, quando se guia pelas suas disposições.

Em suma, verifica-se que a “intervenção correctora” dos ordenamentos

nacionais efectuada pelo TEDH proporciona a harmonização do Direito no Espaço

Europeu. Por sua vez, neste mesmo espaço, o princípio da harmonia das decisões

encara-se de modo diferente, pois os dois tribunais europeus “caminham de mãos

dadas”, contribuindo, decisivamente, para a harmonização dos ordenamentos nacionais,

formando um verdadeiro Direito europeu.

Deixar-se-á o reconhecimento mútuo para as questões de funcionamento da

União, em especial na área da justiça. A tarefa mais nobre da harmonização do direito

deslocar-se-á do direito legislado para o direito dito e praticado, da pena do

administrador, do técnico e, também, do legislador para o jurisprudente, para o pretor e

este objectivo de harmonização será tanto melhor conseguido quanto mais convincente

uma boa decisão de direitos humanos for.

Fontes e Bibliografia

Fontes

Relatórios da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 6ª Reuniões de Trabalho do Grupo de Trabalho Informal

do CEDH sobre a adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos do

Homem com a Comissão Europeia (CEDH-UE) de Setembro de 2010 a Março de 2011

Relatório Final do Grupo II do Presidente do Grupo de Trabalho sobre a Integração da

Carta/Adesão à CEDH, Convenção Europeia, Bruxelas 22 de Outubro de 2002

Documento de Reflexão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre determinados

aspectos da adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Protecção dos

Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, 5 de Maio 2010

80

Joint communication from Presidents Costa and Skouris, 24 January 2011

Relatório de 6 de Maio de 2010 sobre os aspectos institucionais da adesão da União

Europeia à Convenção Europeia para a protecção dos Direitos do Homem e das

Liberdades Fundamentais, Parlamento Europeu

Jurisprudência:

Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo 26/69 de 12 de Novembro

de 1969, Erich Stauder contra cidade de Ulm

Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo 11/70 de 17 de Dezembro

de 1970, Internationale Handelsgesellschaft contra Einfuhr- Vorratsstelle fur Getreide

und Futtermittel

Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, processo 4/73 de 14 de Maio de

1974, J. Nold Kohlen – und Baustoffgrobhandlung contra Comissão das Comunidades

Europeias

Acórdão do Tribunal Constitucional Alemão, BverfGE 37, 271 2 BvL 52/71 Solange I –

BeschluB, de 29 de Maio de 1974

Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, processo 24833/94 de 18 de

Fevereiro 1999 Matthews contra Reino Unido

Acórdão Supremo Tribunal de Justiça nº 104/02.5TACTB- ªS1 de 23 de Abril de 2009

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