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RELAÇÃO CIDADE-CAMPO: UMA ANÁLISE DO ESPAÇO PERIURBANO NA CIDADE DE CAMPINA GRANDE Sonale Vasconcelos de Souza Programa de Pós-Graduação em Geografia/Universidade Federal da Paraíba [email protected] Resumo Este artigo baseia-se no projeto de pesquisa do mestrado que vem sendo desenvolvido no PPGG/UFPB; tal estudo tem como objetivo compreender a permanência e a reprodução das práticas rurais no espaço periurbano de Campina Grande na Paraíba. Para isso, temos procurado fundamentar nosso trabalho a partir de leituras que buscam entender: a divisão do trabalho entre cidade e campo, as transformações atuais verificadas na relação entre os dois espaços e a permanência do modo de vida rural na cidade. É necessário destacar com relação à metodologia, que temos nos esforçado para combinar dados quantitativos obtidos em instituições com dados qualitativos alcançados nos trabalhos de campo, contudo, são os dados qualitativos que vem sendo mais explorados em nossa análise. Palavras chave: práticas rurais, espaço periurbano, cidade, campo, modo de vida. Introdução A relação cidade-campo, bem como a divisão do trabalho que distingue essas duas espacialidades, ao longo do tempo tem se tornado complexa e contraditória. Desde a divisão do trabalho que se dá no modo de produção capitalista, cidade e campo se separam, já que o trabalho é compartido entre estes dois espaços. Assim, a cidade em si, caracteriza-se por concentrar as atividades dos setores secundário e terciário, além disso, comumente remete ao moderno e ao tempo rápido. Já o campo está associado às atividades primárias e ao tempo lento. Contudo, cada vez mais essa dicotomia tem se diluído, e é perceptível observar mesmo nas grandes cidades espaços imbricados, em que se verificam tanto aspectos característicos do urbano, quanto característicos do rural.

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RELAÇÃO CIDADE-CAMPO: UMA ANÁLISE DO ESPAÇO PERIURBANO

NA CIDADE DE CAMPINA GRANDE

Sonale Vasconcelos de Souza

Programa de Pós-Graduação em Geografia/Universidade Federal da Paraíba

[email protected]

Resumo

Este artigo baseia-se no projeto de pesquisa do mestrado que vem sendo desenvolvido

no PPGG/UFPB; tal estudo tem como objetivo compreender a permanência e a

reprodução das práticas rurais no espaço periurbano de Campina Grande na Paraíba.

Para isso, temos procurado fundamentar nosso trabalho a partir de leituras que buscam

entender: a divisão do trabalho entre cidade e campo, as transformações atuais

verificadas na relação entre os dois espaços e a permanência do modo de vida rural na

cidade. É necessário destacar com relação à metodologia, que temos nos esforçado para

combinar dados quantitativos obtidos em instituições com dados qualitativos alcançados

nos trabalhos de campo, contudo, são os dados qualitativos que vem sendo mais

explorados em nossa análise.

Palavras chave: práticas rurais, espaço periurbano, cidade, campo, modo de vida.

Introdução

A relação cidade-campo, bem como a divisão do trabalho que distingue essas

duas espacialidades, ao longo do tempo tem se tornado complexa e contraditória. Desde

a divisão do trabalho que se dá no modo de produção capitalista, cidade e campo se

separam, já que o trabalho é compartido entre estes dois espaços. Assim, a cidade em si,

caracteriza-se por concentrar as atividades dos setores secundário e terciário, além

disso, comumente remete ao moderno e ao tempo rápido. Já o campo está associado às

atividades primárias e ao tempo lento. Contudo, cada vez mais essa dicotomia tem se

diluído, e é perceptível observar mesmo nas grandes cidades espaços imbricados, em

que se verificam tanto aspectos característicos do urbano, quanto característicos do

rural.

Com o desenvolvimento da técnica e, por conseguinte com a modernização da

agricultura, áreas agrícolas vêm sendo dominadas por novos aparatos técnicos e por

novas lógicas de produção. No Brasil, sobretudo a partir da década de 1950, a

incorporação de tecnologias e a modernização no campo, redefiniram as relações

cidade-campo. Desde então, observa-se o que alguns autores denominam de

‘modernização agrícola conservadora’, a qual ocorreu tomando por base a manutenção e

ampliação da concentração e da especulação fundiária pelos grandes proprietários

rurais. Este fato expulsou muitos pequenos agricultores do campo, forçando-os a

migrarem para as cidades. Pois, sem terem condições de competir com os grandes

produtores e manterem sua produção, tiveram como saída procurar na cidade melhorias

de vida. Assim, alocados nas cidades, nas mais diversas condições, muitos mantiveram

práticas originarias do campo, por ‘necessidade’ ou por ‘desejo’ (MAIA, 1994).

Dessa maneira, faz-se necessário destacar que a relação cidade-campo, pode

ser entendida a partir de várias abordagens, dentre elas destaca-se: “a urbanização do

campo” em que os estudos compreendem essa relação levando em consideração a

expansão da cidade e da urbanização em direção ao campo, onde este passa a ter um

incremento de atividades industriais, de setores de fornecimento de insumos e de

atividades voltadas ao turismo; outros estudiosos fazem um percurso contrário buscando

entender essa relação refletindo a partir das atividades e práticas rurais presentes na

malha urbana das cidades, as quais se encontram principalmente na ‘franja rural-urbana’

ou no ‘espaço periurbano’. É de acordo com esta última postura que pretendemos

analisar os espaços rurais encontrados no perímetro urbano de Campina Grande,

tentando compreender como se dá a sua permanência e a sua (re) produção nessa

cidade.

O interesse por estudar os espaços rurais em Campina Grande surgiu a partir da

observação das margens da malha urbana desta cidade, onde frequentemente

começamos a nos deparar com currais, vacarias, pocilgas, “vazios urbanos” sendo

utilizados como área para pasto de gado na cidade e pequenas criações de caprinos e de

aves domésticas. Vale ressaltar que geralmente estas atividades se localizam em bairros

ou áreas afastadas do núcleo central com habitações das camadas populares, de modo

geral, as pessoas utilizam a pequena produção (leite, carne e derivados) para o consumo

próprio e/ou para a comercialização em locais próximos.

Esses fatos nos fizeram pensar sobre a relação cidade-campo, e começamos a

nos perguntar o porquê dessas práticas em espaços tão urbanizados, onde dificilmente é

possível mantê-las. Será que estas atividades sempre existiram no perímetro urbano da

cidade e com o tempo, com o adensamento populacional e com o crescimento urbano,

elas foram sendo empurradas para mais distante? Ou será que estas atividades

encontravam-se distantes da cidade, e devido à expansão da malha urbana, começaram a

ser envolvidas pela cidade? As pessoas que mantém as atividades rurais são os

migrantes expulsos do campo que não se inserem no mercado de trabalho urbano, ou

existem proprietários fundiários que as mantém por puro hobby? Estes são alguns

questionamentos que nos guiaram para a elaboração desta pesquisa.

Divisão do trabalho entre a Cidade e o Campo

Ao tentar compreender uma determinada cidade, geralmente adotam-se como

elementos de análise: as funções (industrial, comercial, os serviços), as formas

(edificações e planos de rua) e as estruturas que lhes são características. No entanto, faz-

se necessário evidenciar que as cidades nem sempre se caracterizaram da mesma forma

assumindo as mesmas funcionalidades em tempos-espaços diferenciados. Nesse sentido,

Lefebvre (2001, p. 66) aponta que assim como a cidade, a “relação cidade-campo

mudou profundamente no decorrer do tempo histórico, segundo as épocas e os modos

de produção: ora foi profundamente conflitante, ora mais pacífica e perto de uma

associação.”

A distinção entre cidade e campo, ou melhor, a divisão territorial do trabalho

entre esses dois espaços ocorre na Europa com a intensificação da urbanização

associada ao surgimento da industrialização. A partir daí tem-se uma clara separação e

oposição entre a cidade indústria e o comércio e o campo agricultura. Neste

período, baseando-se em Marx e Engels (2005), começa a se ter o entendimento de que

“A cidade é de fato o local da concentração da população, dos instrumentos de

produção, do capital, dos prazeres e das necessidades, enquanto o campo mostra

exatamente o fato oposto, isto é, o isolamento e a dispersão” (Marx & Engels, 2005, p.

83).

Entretanto, no Brasil e nos países onde a industrialização ocorreu tardiamente,

a divisão do trabalho entre cidade e campo e a intensificação da urbanização,

inicialmente, não vai ocorrer associado ao advento da industrialização, como na Europa.

Anteriormente à divisão do trabalho entre cidade e campo, ocorreu uma divisão social,

devido ao modelo de urbanização adotado, em que os grandes proprietários fundiários

que frequentavam a cidade, com o desejo de modernizar-se, buscaram reproduzir o

modelo de urbanização ocidental.

Conforme Queiroz (1979, p. 168), até meados do século XIX, esta urbanização

não estava diretamente ligada a uma industrialização, mas a uma difusão cultural de

uma maneira de viver eminentemente citadina. Pois, a produção agrícola voltada para a

exportação era bastante forte e mantinha tanto o campo como a cidade, a qual se

constituía apenas enquanto centro político-administrativo.

Complexidade na delimitação: a compreensão dos espaços de transição

Atualmente, a relação entre a cidade e o campo no Brasil têm-se modificado. A

cidade não compreende apenas um núcleo urbano único e denso com diferenciação bem

delimitada entre centro e periferia, local próprio para o comércio e a produção

industrial, ela apresenta cada vez mais uma estrutura dispersa e fragmentada, em que ao

caminhar deparamos, sobretudo nas margens da malha urbana, com resíduos rurais, os

quais revelam uma maneira de produzir e viver diferente da predominante imposta pela

modernidade.

No campo também não se encontram somente camponeses e seus hábitos

tradicionais, mas há grande incorporação de infraestrutura e hábitos urbanos, além

disso, observam-se algumas atividades próprias da cidade estabelecendo no campo,

como: indústrias e empresas de serviços voltadas para o lazer. Assim, alguns autores,

como José Graziano da Silva (2000) compreende que as diferenças entre o rural e o

urbano cada vez mais deixam de existir, e o rural se torna um ‘continuum’ do urbano,

ocorrendo assim a “urbanização do campo”.

Contudo, acreditamos que embora exista uma tendência à intensificação da

vida urbana no campo, este fato não implica na homogeneização dos espaços, pois esta

tendência não é única, há também o inverso ou o reverso. Pois, apesar da expansão

urbana dos centros não-metropolitanos, observa-se a presença de espaços rurais nas

cidades, como por exemplo, na cidade de Campina Grande onde encontramos

estábulos e plantações de capim localizados em bairros populares próximos a Alça-

Sudoestei, como nos bairros Malvinas e Três Irmãs.

Entendemos assim como Sposito (2006) que no período contemporâneo

observa-se uma grande dificuldade na distinção e na definição entre os espaços urbanos

e os espaços rurais, entre a cidade e o campo, contudo:

O reconhecimento de um contínuo cidade/campo não pressupõe o desaparecimento da cidade e do campo como unidades espaciais

distintas, mas a constituição de áreas de transição e contato entre esses

espaços que se caracterizam pelo compartilhamento, no mesmo

território ou em micro parcelas territoriais justapostas e sobrepostas, de usos do solo, de práticas socioespaciais e de interesses políticos e

econômicos associados ao mundo rural e ao urbano (SPOSITO, 2006,

p. 121). [grifo nosso]

Maia (1994), ao analisar a relação entre a cidade e o campo, expõe que estes

dois espaços sofreram alterações ao longo do tempo, bem como atualmente ambos vêm

passando por alterações contínuas. Desse modo, hoje já não se pode dizer que há apenas

a existência de dois modos distintos de organização espacial, nem tão pouco afirmar que

as atividades econômicas próprias da cidade também não podem ser encontradas no

campo e vice-versa. Sendo assim, Maia (1994) afirma que com a intensificação da

urbanização, a delimitação entre cidade e campo torna-se complexa e acrescenta:

Esta aparente tendência à urbanização da sociedade põe em xeque as

delimitações. Onde termina o campo e começa a cidade? A vida

urbana não diz respeito apenas à cidade, mas também ao campo.

Porém esta é uma tendência, não significando que o inverso tenha sido abolido. Caminha-se para uma homogeneização, sem contudo perder-

se as heterogeneidades já existentes e ainda criando outras novas.

(1994, p. 41)

Assim, a partir do exposto é perceptível a existência de uma lógica dominante

expressa na expansão da urbanização sobre o campo e da difusão de um modo de vida

urbano, contudo, fundamentando-se em Lefebvre (2008), Maia (1994, 1999, 2000),

Queiroz (1979) e Sposito (2006), reconhecemos que embora haja um inevitável

contínuo da cidade sobre o campo, tal fenômeno não implica numa total

homogeneização dos espaços, pois, a produção do urbano implica na sobreposição de

usos e de práticas espaciais diferenciadas e contraditórias. Assim, observa-se também

imbricadas na cidade a manutenção de atividades e práticas características dos espaços

rurais.

Lefebvre (2001, p. 69), ao discutir a indefinição sobre o que é urbano e rural ou

até que ponto eles podem ser delimitados, diante da ampliação da malha urbana

invadindo o campo, como também da dominação da sociedade urbana sobre este,

escreve que alguns geógrafos encontraram um neologismo para designar esta

indefinição: o ‘rurbano’. A concepção do ‘rurbano’ é utilizada pelos que acreditam na

superação neutra entre os dois espaços, onde se tem o desaparecimento tanto da vida

urbana quanto da vida rural, ou seja, uma fusão entre os dois espaços e os dois modos

de vida. Este termo é utilizado pelo Graziano da Silva (2000) ao mostrar que as

características que distingue cada espaço aos poucos estão sendo diluídas pelo avanço

da urbanização, assim, o autor considera uma questão de tempo para que o campo seja

totalmente transformado e dominado pela expansão do mundo urbano.

Souza (2007, p. 27) reconhece que não é tão simples definir a cidade, como

também mostra a existência de espaços caracterizados por uma lógica rural, onde se

desenvolvem atividades primárias dentro do espaço urbano. Desse modo, afirma que

tais atividades rurais “podem ser encontradas, como minúsculas ilhotas em meio a um

oceano de espaço construído” caracterizando-se enquanto ‘extravagâncias espaciais’.

Como também, segundo o mesmo autor, pode-se observar nas bordas das cidades uma

faixa de transição entre os usos urbano e rural, a qual é denominada por vários

geógrafos de ‘franja rural-urbana’ ou ‘espaço periurbano’.

Vale (2007) em seus estudos aborda o conceito de ‘espaço periurbano’,

segundo a autora este conceito sintetiza vários outros termos utilizados por outros

estudiosos para definir as áreas em que se encontram tanto aspectos característicos da

cidade como do campo, como: franja rural-urbana, franja urbana ou rururbana, rurbano,

etc.. Ainda acrescenta que estas terminologias surgiram antes da designação de espaço

periurbano, e aponta que este termo é recente e tem sido discutido mais intensamente a

partir da década de 1990 no Brasil.

Assim, Vale (2007, p. 237) explica que espaço periurbano refere-se as “zonas

de transição entre cidade e campo, onde se mesclam atividades rurais e urbanas na

disputa pelo uso do solo.”. Desse modo, baseando-se na autora, consideramos como

espaço periurbano, as áreas das cidades voltadas para a expansão urbana, em que se

verificam tanto aspectos e interesses urbanos como: a implantação de equipamentos de

infraestrutura e a presença de espaços loteados “vazios” à espera de valorização

imobiliária, como também, observam-se resquícios de estabelecimentos rurais que

apesar de muito próximos do núcleo da cidade e das atividades urbanas se mantêm com

base em atividades e hábitos rurais.

A apropriação da Cidade para a permanência do Campo

É importante ressaltar que pretendemos entender a (re) produção dos espaços

rurais encontrados no espaço periurbano da cidade de Campina Grande com base no

conceito de ‘espaço vivido’ elaborado por Henri Lefebvre e utilizado por alguns

geógrafos, dentre eles: Amélia Damiani (2008) e Doralice Maia (2000). Este conceito

elaborado por Lefebvre compõe a tríade: ‘espaço concebido’, ‘espaço vivido’ e ‘espaço

percebido’. É a partir de tais conceitos que o autor buscar explicar os momentos

contraditórios existentes na produção social do espaço, assim, entende-se por espaço

concebido aquele construído a partir de estratégias econômicas e políticas, em que

governantes e administradores elaboram modelos abstratos, distantes do real e

reguladores das práticas sociais; já o espaço percebido, consiste nas representações

elaboradas por meio da percepção da produção social do espaço; e por fim, o espaço

vivido, o qual conforme Damiani (2008) é entendido como “o espaço que os habitantes

produzem, apesar da redução das relações diretas, implicada nas formas modernas do

espaço concebido. Este é o plano das práticas espaciais.” (2008, p. 88).

A partir desta citação supomos que os espaços rurais não são produzidos a

partir de normas e nem são levados em consideração no planejamento da cidade; mas

são construídos pelas necessidades cotidianas e por uma maneira de fazer e pensar que

se contrapõem à lógica de produção existente na cidade. Deste modo, as práticas rurais

que se mantêm e se recriam na cidade constituem enquanto ‘espaço vivido’, pois

ocorrem devido à ‘apropriação’ da cidade, que é planejada e concebida como local não

apropriado para as atividades primárias, mas para a produção industrial, a concentração,

o mercado, etc.. Nesse sentido, as pessoas que se apropriam da cidade e se mantêm

basicamente da realização de atividades características do modo de vida rural, realizam

‘táticas’ frente ao ‘espaço concebido’ estrategicamente pelos governantes e

proprietários fundiários.

Michel de Certeau no livro “Invenção do cotidiano – artes de fazer” aborda que

cada prática possui um ‘lugar próprio’ de realização, ou seja, cada atividade possui

espaço apropriado e delimitado por fronteiras que classificam determinada área com

relação a um uso, assim, pode-se pensar na cidade e no campo, respectivamente,

enquanto áreas voltadas para a realização de práticas urbanas e de práticas rurais. No

entanto, o autor lembra que no estudo das práticas sociais não é tão simples classificá-

las ou delimitá-las, pois, existem as ‘modalidades da ação’, que em outros momentos

Certeau também chama de ‘maneiras de fazer ou estilos de ação’. “Esses estilos de ação

intervêm num campo que os regula num primeiro nível, mas introduzem aí uma maneira

de tirar partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um segundo nível

imbricado no primeiro.” (CERTEAU, 1994, p. 92).

A cidade, desse modo, pode ser analisada como espaço regulamentado para as

práticas urbanas, contudo, destacamos que é necessário verificar em determinadas áreas,

práticas que podem ser consideradas estilos de ação diferentes daqueles pensado para a

cidade; por exemplo, as práticas rurais, tais maneiras de fazer e de produzir na cidade

revelam outra forma de vivenciar o tempo e o espaço muito divergente da maneira

predominante de viver na cidade. Diante disso, Michel de Certeau apresenta os

conceitos: ‘estratégias e táticas’. Para o autor “A estratégia postula um lugar suscetível

de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações

com uma exterioridade de alvos ou ameaças.” (CERTEAU, 1994, p. 99). Em

contrapartida chama “de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um

próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A

tática não tem por lugar senão o outro.” (CERTAU, 1994, p. 100).

Tendo como base os conceitos acima, propomos pensar nas práticas rurais

encontradas na cidade enquanto ‘táticas’, pois apresentam hábitos e atividades que não

são próprios dos locais onde estão estabelecidos e também por que se mantêm diante de

adversidades encontradas na cidade. Tais práticas geralmente encontram-se enquanto

resíduos localizados no espaço periurbano das cidades, os quais são recriados em

“vazios urbanos” localizados nas margens da malha urbana das cidades; estes vazios

correspondem na maioria dos casos às áreas de proteção ambiental (margem de rios ou

riachos), às áreas com redes de alta tensão e aos “vazios urbanos” que estão à espera de

valorização.

Em Campina Grande verificamos por meio de trabalhos de campo exploratório,

a existência de muitas criações de gado na franja e no interior da malha urbana,

contudo, iremos priorizar as áreas que se encontram na franja urbana ou no espaço

periurbano. Sendo assim, ressaltamos que no espaço periurbano da cidade foram

verificadas muitas pequenas criações de gado e plantações de capim em áreas

impróprias para ocupação, como por exemplo, na área abaixo da rede de alta tensão que

corta a cidade na direção norte e sul.

Algumas considerações sobre o espaço periurbano de Campina Grande

Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico sobre trabalhos que

discutem a temática cidade-campo, buscando montar um arcabouço teórico para

responder aos questionamentos e objetivos formulados diante da existência de espaços

rurais na área urbanizada da cidade de Campina Grande. Intercalando as leituras foram

realizados trabalhos de campo em Campina Grande, com o objetivo de identificar as

áreas com práticas rurais na malha urbana.

Neste primeiro momento, utilizamos a observação exploratória/não

participante, já que a Prefeitura Municipal não tem o levantamento de atividades rurais

na cidade, contudo, estas primeiras observações e conversas com as pessoas se deu sem

a realização de entrevistas formais, visando obter informações gerais sobre a área, as

práticas rurais e o cotidiano das pessoas. Nos primeiros trabalhos de campo, houve uma

preocupação fundamental em construir uma relação de confiança com as pessoas que

vivenciam as áreas visitadas, por isso, foram necessárias várias idas a campo para

conversar e esclarecer aos poucos quais eram os objetivos das visitas.

Anteriormente aos trabalhos de campo, utilizamos como ferramenta para a

localização das áreas com aspectos rurais na cidade o levantamento de imagens de

satélite, como por exemplo, as imagens do programa Google Earth. Desse modo, é

necessário ressaltar que a análise das imagens foi fundamental para orientar os

percursos realizados nos trabalhos de campo pela cidade.

Foi a partir destes trabalhos de campo que delimitamos a área de investigação

desta pesquisa, embora seja um dos objetivos específicos localizar os espaços rurais no

espaço periurbano da cidade que se mantém a partir de atividades e costumes rurais,

iremos focalizar os trabalhos de campo, as entrevistas e os registros fotográficos na área

que fica localizada abaixo da rede de alta tensão na cidade.

É importante informar que as áreas localizadas abaixo da rede de alta tensão,

nas quais foram encontradas vários estábulos e pessoas praticando atividades rurais,

caracterizam-se como área pública, imprópria para ocupação e voltada para o uso

restrito da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF). Contudo, observa-se

que estas áreas são ocupadas por pessoas que detém posses e que a utilizam de modo

não autorizado para a prática de atividades rurais. De acordo com os trabalhos de campo

realizados até o momento em Campina Grande, verificamos a existência de muitas

criações de gado. Conforme observamos, na área da CHESF, escolhida como

amostragem, foram encontradas várias pequenas criaçõesii de gado, além disso,

verificamos plantações de capim e criações de equinos visando à participação em

vaquejadas e a utilização como tração em carroças.

Dentre os aspectos que ressaltamos para a escolha da área da cidade como

amostragem estão: a localização, pois se encontra no espaço periurbano da cidade e um

dos aspectos importantes da pesquisa é enfatizar a apropriação de espaços “vazios” na

área de expansão para a realização de práticas rurais; a característica específica da área,

pois as pessoas não são proprietárias dos terrenos e sim possuem pequenas posses, já

que o terreno é público e é proibida a ocupação na área; e a prática das atividades e o

cotidiano das pessoas, que consistem na maioria em pequenas criações de gado voltadas

para o próprio consumo e para a comercialização dos produtos na própria cidade, mas

precisamente nos bairros adjacentes.

A escolha de uma área como amostragem torna viável a realização da pesquisa

que se fundamenta na observação e descrição das áreas e dos hábitos rurais e na

realização de entrevistas com as pessoas que vivenciam e mantém atividades rurais. A

delimitação da área, assim, contribui para uma análise mais minuciosa e um

levantamento mais detalhado de dados e informações sobre esta área, pois seria

praticamente impossível diante do tempo, a realização de trabalhos de campo,

observações minuciosas e entrevistas em todas as pequenas unidades que mantém

atividades agropecuárias no interior do perímetro urbano de Campina Grande.

Até o presente momento vem sendo realizado o levantamento dos espaços que

têm a presença de atividades rurais, como também vem sendo realizadas as entrevistas

semi-estruturadas elaboradas com a intenção de levantar informações que possam

esclarecer os questionamentos e contribuir para a análise qualitativa. Desse modo, as

entrevistas estão sendo indispensáveis para a obtenção de informações importantes

como: o tipo de atividade realizada em determinado espaço (produção e/ou criação de

bovino, eqüino, caprino, suíno, etc.; plantação de hortifrutigranjeiros, como verduras,

frutas e capim para a forragem do gado); a finalidade da atividade (se comercializada,

utilizada para consumo próprio ou ambos); e a história de vida do entrevistado (se

sempre realizou tais atividades rurais? se desempenha outras atividades profissionais? se

sempre morou na cidade? se gosta da atividade que realiza?).

Buscando confrontar as informações obtidas pelas pessoas da área em estudo,

pretendemos entrevistar representantes da Prefeitura de Campina Grande e da

Companhia Hidro Elétrica do São Francisco visando obter maiores esclarecimentos

sobre a opinião dos mesmos com relação à ocupação da área para práticas de

determinadas atividades. Além disso, está sendo realizado no Cadastro Estadual de

Estabelecimentos Pecuários, que fica sob a responsabilidade da Secretaria de Estado do

Desenvolvimento da Agropecuária e da Pesca (SEDAP), como também no Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), um levantamento dos dados dos

proprietários residentes em Campina Grande, visando alcançar uma maior certificação

dos dados e informações levantados nos trabalhos de campo.

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i A Alça Sudoeste é uma via rodoviária criada com o intuito de agilizar o tráfego de veículos vindos do

Litoral Paraibano e do Agreste Pernambucano, ambos com destino ao Sertão, Curimataú, e Cariri

Paraibano. Esta estrada com cerca de 12 km de extensão, margeia a cidade de Campina Grande e une as

rodovias BR104 (sul) a BR230 (oeste).

ii Ainda não atribuímos uma classificação entre o que seria pequena criação e grande criação de gado,

contudo, a partir da observação em campo e das entrevistas informais verificamos pequenas criações com

cerca de 20 a 30 cabeças de gado e grandes criações com mais de 50 cabeças de gado.