refúgio e primavera Árabe: análise crítica sobre...

30
Refúgio e Primavera Árabe: Análise crítica sobre desestabilizações do país acolhedor e as responsabilidades do Estado Fernanda de Medeiros Marina Pontes Sofia Fernandes Yasmin Góes “(...) E não expulsem um ao outro de suas casas”. Corão, 2:84-6. #16

Upload: doanbao

Post on 30-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Refúgio e Primavera Árabe: Análise crítica sobre desestabilizações do país acolhedor e as responsabilidades do Estado

Fernanda de MedeirosMarina PontesSofia FernandesYasmin Góes

“(...) E não expulsem um ao outro de suas casas”. Corão, 2:84-6.

#16

515

Justiça Enquanto Responsabilidade

1. Introdução

Apesar de o problema do refúgio sempre ter existido, a res-ponsabilidade sobre aqueles que necessitavam de refúgio envolveu diferentes atores ao longo do tempo. Antes, a responsabilidade de acolher aqueles que precisavam de asilo recaía sobre indivíduos e o abrigo ocorria principalmente em locais religiosos (SMYSER, 1985). Com a consolidação dos Estados-nacionais, da forma como estes são atualmente conhecidos, processo que aconteceu de ma-neira gradativa, especialmente a partir do fim do século XIX, a res-ponsabilidade sobre o problema passou ao Estado (SMYSER, 1985).

Se o problema do refúgio já é essencialmente complexo, as mudanças profundas ocorridas durante o século XX o agravaram. Contribuíram para isso, principalmente, o novo cenário político – fruto da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e que se des-dobraria na Guerra Fria –, aliado ao processo de descolonização africana, à eclosão de conflitos no Oriente Médio e à aproximação entre os países decorrente do desenvolvimento dos transportes e das telecomunicações. Isso acabou por provocar a necessidade de criação de um regime internacional1 para lidar com o problema (SMYSER, 1985).

Este artigo propõe duas visões principais sobre como lidar com a situação dos refugiados: a primeira trata a questão como um problema ético que implica na análise de princípios e normas e no compartilhamento de responsabilidades entre os mais diver-sos atores internacionais acerca do assunto. Nessa vertente, a cla-reza desses princípios e normas obriga o ajuste entre sociedade receptora e refugiados (SMYSER, 1985). Por outro lado, como o

1 Regimes internacionais são instituições que possuem normas, processos de deci-sion-making e procedimentos que facilitam a convergência de expectativas, facilitando a aproximação entre países (KRASNER, 1982).

516

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

problema se tornou muito mais complexo, refugiados deixaram de se tornar um problema regional e se tornaram um problema potencial para qualquer país que mantenha relações com outros países, o que torna a questão internacional (SMYSER, 1985).

Para melhor compreender o problema é necessário entender exatamente o que são refugiados. De acordo com o Protocolo so-bre o Estatuto dos Refugiados de 1967, que atualiza a Convenção de 1951 sobre o tema, refugiado é aquele que:

Temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalida-de, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionali-dade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ORGANIZAÇÃO DAS NA-ÇÕES UNIDAS [ONU], 1967).

Refugiados se diferenciam de migrantes comuns, isto é, que escolhem mudar de localidade, e também de deslocados internos. Enquanto a situação dos refugiados é matéria de uma convenção específica, os deslocados internos não possuem ainda status legal (TOOLE e WALDMAN, 1993). Eles deixam suas casas pelos mes-mos motivos que os refugiados, mas não ultrapassam as fronteiras de seus países (TOOLE e WALDMAN, 1993).

Assim, serão analisados dois casos problemáticos que tiveram origem na Primavera Árabe, buscando facilitar a compreensão do problema do refúgio dentro deste contexto específico. A situação na ilha de Lampedusa, no sul da Itália, e a situação da porção cur-da do Iraque, que vêm recebendo um fluxo intenso de refugiados decorrentes dos conflitos no Norte da África e na Síria, respecti-vamente, serão colocadas à luz do problema do refúgio e dos dois principais pontos de vista abordados: o da ética e o da soberania.

Este trabalho divide-se em seis seções. A primeira fará um panorama das revoltas populares e conflitos conhecidos como Primavera Árabe. A segunda apresentará a visão dos refugiados como um problema muito mais humanitário que político, e como diferentes países podem compartilhar a responsabilidade sobre esta questão. A terceira seção apresentará o fluxo massivo de re-fugiados como um problema político e econômico para o Estado receptor, apresentando também o debate acerca da soberania des-te e da responsabilidade precedente de proteger seus próprios ci-dadãos. A seguir, o conflito entre a sociedade civil e os refugiados

517

Justiça Enquanto Responsabilidade

será discutido, expondo problemas colaterais como xenofobia. Por fim, serão apresentados os estudos de caso – a ilha de Lampedusa e os refugiados norte-africanos e o Iraque curdo e os refugiados sírios, seguindo-se a conclusão, com um apanhado geral de tudo que foi apresentado ao longo deste artigo.

2. A Primavera Árabe

Em dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas tunisiano, ateou fogo a si mesmo, em protesto contra a apre-ensão de seus produtos por policiais que exigiam propina, a qual Bouazizi se recusou a pagar. Sua morte iniciou revoltas populares que desestabilizaram o regime tunisiano e inflamaram levantes em outros países da região, como o Egito. Em ambos os países, os governos responderam com violência, o que intensificou ainda mais os protestos (CNN, 2011; DALACOURA, 2012,). A cobertu-ra intensa feita pela mídia local e internacional ajudou a divulgar a insatisfação das populações locais e a criar uma espécie de contá-gio na região. Em 2012, caiu o regime de Hosni Mubarak, ditadura egípcia apoiada pelos Estados Unidos e persistente desde a década de 1970 (CNN, 2011). Mais revoltas populares e violência estatal também atingiram, entre 2011 e 2013, o Bahrein, a Líbia, o Iêmen e a Síria (BBC, 2012; THE HUFFINGTON POST, 2013).

Com os protestos e a cobertura da intensa violência poli-cial feita nas mídias sociais, o Ocidente acompanhou de perto o mundo árabe, atento aos problemas e peculiaridades da região. O papel da internet e, mais especificamente, das mídias sociais foi fundamental (BREUER, 2011; DALACOURA, 2012). Incapazes de conter todas as informações divulgadas através da internet, os regimes árabes em vigor assistiram à proliferação das imagens da repressão interna, assim como a organização dos protestos, lide-rada, sobretudo, pelos jovens. A repressão violenta aos protestos ainda foi fundamental para a intensificação destes, segundo Kate-rina Dalacoura (2012).

As revoltas ocorridas foram vistas pelo Ocidente como a en-trada da democracia naquela região, que sempre foi considerada como imune à liberalização democrática (DALACOURA, 2012). Três anos depois do início do fenômeno, ainda não é possível afir-mar que os regimes derrubados darão lugar a democracias: nos dois países com maior movimentação popular (Tunísia e Egito), os regimes ditatoriais caíram, mas a lenta transição rumo a uma democracia já enfrentou um golpe militar, no caso do Egito. Além disso, a ideia de que existe um mundo árabe relativamente homo-

518

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

gêneo é um dos principais erros ao observar com cuidado este episódio histórico. Apesar de existirem conexões entre as revoltas, é importante compreender que as motivações variam, assim como variam as populações envolvidas (DALACOURA, 2012).

Por fim, ainda há que se considerar o fator islâmico, isto é, a relação da Primavera Árabe com a religião islâmica presente nos países envolvidos. Para Dalacoura (2012), os grupos islâmicos se-rão os maiores beneficiados pelos movimentos populares, apesar de não terem participado ativamente das movimentações a princípio. Acompanhando a opinião pública, os grupos islâmicos em ascensão apresentam características de radicalismo religioso, isto é, interpre-tações muito enfáticas sobre determinados aspectos de uma reli-gião, e antiocidentalismo, piorado pela captura e morte de Osama Bin Laden em 2011 (DALACOURA, 2012). Os interesses ocidentais na região saíram prejudicados pelas revoltas, cristalizados nas per-das geopolíticas de Israel e na diminuição intensa das influências norte-americana e europeia na região (DALACOURA, 2012).

Ainda longe de estarem estabilizados, os países afetados pelas revoluções populares acabaram por gerar fuga em massa de seus cidadãos, prioritariamente para países vizinhos. Milhares de tuni-sianos e líbios chegaram ao Mediterrâneo desde 2011, em busca de refúgio, assim como milhares de sírios se refugiaram no Líba-no, na Jordânia e no Iraque (MAINWARING, 2011).

3. O dever de proteger os semelhantes

3.1. Ética, princípios e normas: acolher refugiados como um princípio ético

Essencialmente, as relações internacionais se dão no âmbito da política interestatal. Cada Estado fala por seus habitantes e defende seus interesses perante outros Estados. Mas enxergar as relações internacionais dessa maneira significa limitar a discussão de questões que falam muito mais de humanidade do que, sim-plesmente, de divergências entre os Estados. Para Mervyn Frost (2008), por exemplo, não é apenas a política que cria uma efetiva sociedade internacional. A sociedade internacional2 é, acima de tudo, baseada na ética3; e essa ética leva os Estados a adotarem

2 Sociedade internacional é definida como o grupo de Estados que compartilha nor-mas, princípios e que leva em consideração a ação dos demais atores no cálculo de suas próprias ações (BULL, 1979).

3 Ética, nas relações internacionais, diz respeito à ação guiada por leis estabelecidas de comum acordo e ao respeito a tratados e princípios acordados em uma sociedade inter-

519

Justiça Enquanto Responsabilidade

posturas igualmente éticas, de acordo com Frost (2008). Essa pos-tura ética assumida pela sociedade internacional se traduz, princi-palmente, no relacionamento entre os Estados, que deve ser guia-do por convenções, acordos e tratados comumente respeitados.

A importância de uma sociedade internacional ética para os processos de acolhimento de refugiados é clara, especialmente dada a complexidade do problema na contemporaneidade. Atu-almente, os refugiados surgem em quantidades suficientemente elevadas para desestabilizar os possíveis países acolhedores (SMY-SER, 1985). É apenas a existência de uma ética compartilhada, dentro de uma sociedade internacional e traduzida em acordos e convenções respeitadas por todos, que torna as tradições huma-nitárias globais, como o asilo, protegidas dos riscos surgidos com o novo cenário político – o fim da Guerra Fria – aliado ao fim das descolonizações africanas e aos conflitos no Oriente Médio e à aproximação entre os países decorrente do desenvolvimento dos transportes e das telecomunicações (SMYSER, 1985).

Fora do âmbito internacional, o acolhimento de refugiados também implica em problemas éticos entre indivíduos, em uma relação interpessoal e humanitária. A responsabilidade ultrapassa os limites governamentais e recai sobre os cidadãos, diante da si-tuação de emergência. Para Smyser (1985), os cidadãos locais não podem sentir que suas necessidades estão sendo preteridas, uma vez que os recursos deslocados para o acolhimento dos refugiados vêm de uma parte separada do orçamento estatal. Além disso, é necessário compreender que assistência a refugiados é diferente da assistência comum, dadas àqueles no interior do país que pre-cisam de ajuda para garantir o sustento mínimo.

3.2. Compartilhando responsabilidades no acolhimento de refu-giados: como diferentes países podem oferecer asilo?

Em uma sociedade internacional em que os Estados são guiados pela ética, de acordo com Mervyn Frost (2008), a responsabilidade sobre a vida de seres humanos constrange os atores a agirem para resolver o problema, impedindo-os de se omitirem. Por mais que um grande fluxo de refugiados desestabilize o país receptor, este país tam-bém tem o direito de acionar os mecanismos internacionais para que, pautados pela lógica da ação coletiva, encontrem uma solução para o problema (THIELEMANN, 2005). De acordo com este ponto de vis-ta, existem soluções para o problema do refúgio, mas essas soluções exigem que a sociedade internacional aja conjuntamente.

nacional (FRANKE, 2009).

520

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

Burden-sharing4 é uma expressão utilizada para explicar o porquê de um grande número de atores aceitar certo prejuízo em nome de alguma causa ou em nome do convívio com outros (THIELEMANN, 2005). As razões para que um ator aceite com-partilhar as consequências de um problema coletivo são princi-palmente as seguintes: a) sistemas de burden-sharing podem ser vistos como um “seguro”: eventualmente, qualquer ator pode pre-cisar do sistema, e por isso se vê compelido a contribuir; b) senso de solidariedade, justiça e igualdade e c) quando o compartilha-mento é cláusula de um contrato, ou condição para o alcance de um objetivo (THIELEMANN, 2005).

No caso dos refugiados, o “fardo”, como explicado pela no-menclatura, representa principalmente a quantidade numérica de refugiados com que um país precisa lidar e os custos envolvidos no processo de instalação desses refugiados. Esta é uma ideia in-teressante, na medida em que é melhor dividir a responsabilidade multilateralmente do que apenas resolver a questão do asilo com medidas unilaterais (SUHRKE, 1998). O burden-sharing aplicado à questão dos refugiados implica principalmente na criação de um sistema legal comum para que seja possível discriminar quem de fato se encaixa no que se entende por refugiado (THIELEMANN, 2005). Peter H. Shuck (1997) ressalta que a participação no bur-den-sharing de refugiados só pode acontecer por consentimento expresso do Estado: todos só devem participar do processo se consentirem, mas cabe aos Estados participantes garantirem que outros também participem através de negociações diplomáticas e barganhas políticas (SHUCK, 1997).

Ainda para Shuck (1997), o burden-sharing deve atender si-multaneamente a alguns objetivos. O primeiro é a maximização dos recursos de proteção, seguido pela garantia dos princípios de direitos humanos, e em terceiro lugar, respeito aos constran-gimentos políticos e à simplicidade administrativa. Uma divisão justa da responsabilidade diminui as chances de qualquer país se tornar um país primeira opção de asilo - aquele país provavelmente mais próximo do problema de refúgio em questão, que acabaria sendo muito prejudicado pelo fluxo desestabilizador de refugia-dos (SHUCK, 1997). Uma divisão mais justa da responsabilidade sobre refugiados também envolve compreender como diferentes países podem lidar com o recebimento destes.

Países emergentes e países considerados desenvolvidos pos-suem problemas diferentes ao lidar com refugiados. No caso dos países com baixa capacidade de produção de bens e produtos, o

4 Termo em inglês para “divisão do fardo”, em tradução nossa.

521

Justiça Enquanto Responsabilidade

custo de manutenção de refugiados é alto, já que nesses países boa parte dos suprimentos vem de fora. São necessários altíssi-mos investimentos em infraestrutura para superar o impacto da presença de tantas pessoas. É preciso muito planejamento e o uso extensivo de recursos para permitir que os refugiados se adaptem e assim consigam, eventualmente, produzir e sustentar a si pró-prios, o que lhes permite deixar de ser um fardo para o país aco-lhedor (SMYSER, 1985). Para nações com mais capital econômico e melhor índice de desenvolvimento humano, o problema recai na própria burocracia para concessão de asilo: é preciso discrimi-nar refugiados em categorias, analisando se suas motivações são ameaça de morte, perseguição, situação de emergência humanitá-ria ou simplesmente problemas de ordem econômicos (SMYSER, 1985). Smyser (1985) ressalta que um refugiado é alguém que está impedido de voltar para casa e que não está à procura de melhores oportunidades ou que migrou por vontade própria. Essa é a dife-rença que, segundo o autor, os países devem observar na conces-são de asilo (SMYSER, 1985).

Compartilhar a responsabilidade sobre refugiados não é, ne-cessariamente, a assimilação de um prejuízo. Existem maneiras de se receber um grande fluxo de refugiados e acomodá-los de modo a propiciar a integração destes à sociedade e à economia locais (STEIN, 1979). Barry Stein (1979), ao analisar a presença de refu-giados vietnamitas nos Estados Unidos, constatou que o processo de ajuste à nova sociedade é longo e difícil para aquele que precisa de asilo, mas que, eventualmente, ele ocorre graças à integração do refugiado no mercado de trabalho. A dificuldade, ressalta Stein (1979), está na adaptação de valores, que são diferentes para a so-ciedade receptora e para o refugiado, mas uma política de inclusão correta é capaz de diminuir os danos àqueles que foram forçados a deixar sua terra-natal e ainda assim manter a sociedade receptora equilibrada (STEIN, 1979).

4. O direito de proteger os cidadãos

4.1.Discussão sobre a soberania dos Estados mesmo em questões humanitárias

Para que se possa conhecer e analisar propriamente a questão do acolhimento de refugiados e a suas consequências a nível inter-nacional, faz-se necessário o estudo do histórico do conflito entre a soberania dos Estados e questões humanitárias. Além disso, é importante o estudo das implicações sociais, políticas e financei-

522

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

ras que o acolhimento desses indivíduos pode gerar a nível nacio-nal (MENEZES, 2009).

O conflito de interesses entre a necessidade de proteção dos indivíduos refugiados e a preocupação dos Estados soberanos com a segurança de seus nacionais é uma discussão recorrente e bastante delicada (MENEZES, 2009). Dado o entendimento pré-vio sobre os refugiados e o tipo de migração na qual esses indiví-duos se inserem, entende-se que esse fenômeno não surge na con-temporaneidade, bem como as tentativas de acordos e medidas que institucionalizem o processo de proteção a esses indivíduos (MENEZES, 2009).

O principal marco reconhecido pela história para a formação do sistema de Estados soberanos é o Tratado de Vestfália5 (1648). A par-tir desse momento histórico, relações de poder entre nações sofrem alterações sistêmicas, uma vez que surgem novos Estados e uma nova configuração do sistema internacional, e essas unidades territoriais imbuídas de autonomia e autoridade começam a buscar autoafirma-ção e a legitimidade das suas fronteiras (CUSIMANO, 2000).

É importante ressaltar que a soberania, segundo Krasner (1999), é elemento fundamental para definir as relações internas de cada país e, também, a interação deles com seus semelhantes no sistema internacional. Assim, o autor estabelece quatro caracte-rísticas fundamentais do Estado Moderno que iriam, entre outras funções, delimitar quais os fatores que influenciam na afirmação da soberania dos Estados. As características se referem à:

Soberania doméstica, que se refere à organização da autoridade pública interna dotada do monopólio legal do uso da violência; so-berania interdependente, que se refere à habilidade dos governos em monitorar as fronteiras transnacionais, quanto aos movimentos das chamadas quatro liberdades de movimento (mercadorias, bens, capitais e serviços); soberania internacional legal, que se refere ao reconhecimento mútuo entre os Estados, e outras organizações go-vernamentais internacionais; a soberania Vestfaliana, que se refere à exclusão da autoridade de atores externos nas questões internas (REGIS, 2006, p. 9).

Por muito tempo, a soberania e consolidação do Estado Moder-

5 O Tratado de Vestfália levou à paz da Guerra dos 30 anos, conflito histórico que é con-siderado marco para a formação do Estado Nacional. Esse tratado aboliu a existência de uma autoridade ou organização acima dos Estados soberanos, além de legitimar os direitos absolutos do soberano sobre territórios mutuamente excludentes (MACHADO, s.d.).

523

Justiça Enquanto Responsabilidade

no e as consequentes mudanças que essa conjuntura trouxe para o sis-tema internacional como o estabelecimento de fronteiras geográficas, os nacionalismos e a configuração das forças no sistema internacio-nal, mantiveram-se como tema central da agenda internacional. No entanto, na década de 1990, questões humanitárias e suas implicações para a proteção dos indivíduos passaram a intervir no conceito de soberania já estabelecido no passado (MENEZES, 2009).

A interdependência econômica foi responsável, entre outros fatores, por reduzir o campo de atuação independente dos Esta-dos, influenciando sua política externa. Com o aprofundamento das discussões e recorrentes análises, uma das ideias que vem sendo defendida afirma que, quando em situações de crises extre-mas, a sociedade internacional adquire o direito de intervir para ajudar populações desprotegidas pelos Estados (NASCIMENTO, 2011). Estas análises acreditam que apesar da Convenção de 1951 entender como fundamental o respeito à soberania dos Estados, no momento em que um país não é mais capaz de prover proteção para seus nacionais, sua soberania se torna porosa. Essa perda de consistência se dá quando os outros países não mais reconhecem a capacidade de um outro país de evitar riscos à segurança de seus habitantes e, portanto, não legitimam a autoridade que este deve-ria ter dentro de suas fronteiras (NASCIMENTO, 2011).

A contrapartida desses argumentos é que ainda que se faça ne-cessária a mobilização da sociedade internacional para mitigar essas situações de risco, ela não pode interferir na soberania dos países (NASCIMENTO, 2011). É preciso que haja uma legitimação da so-berania dos Estados para que estes sejam capazes de conduzir as de-cisões levando em conta aspectos humanitários e prezando pela éti-ca e pelo equilíbrio (NASCIMENTO, 2011). Um Estado que preza pela ética é capaz de tomar decisões pautadas por uma conciliação dos casos de emergência humanitária e de seus próprios interesses, buscando proteger o ser humano e prezando por condições econô-micas e sociais dignas (NASCIMENTO, 2011).

Entendendo o conceito de soberania e a importância da prote-ção internacional dos indivíduos, a relação de conflito entre esses aspetos se torna cada vez mais clara. Entende-se que, de um modo geral, a preservação da soberania é uma prática bastante aceita en-tre os países e fortemente desejada por grande parte deles (REGIS, 2006). Apesar de desde a década de 1990 haver um movimento relativamente forte para o afrouxamento das delimitações desse conceito, ainda é possível observar no comportamento dos Estados soberanos atos galgados em seus próprios interesses (REGIS, 2006).

De acordo com a análise de Régis sobre os fatos recentes na

524

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

área de Direitos Humanos, os acontecimentos denotam que o comportamento dos Estados têm se mantido, em grande parte, pautado por interesses individuais (RÉGIS, 2006). Ainda que a questão tenha sido cada vez mais discutida e tenha ganhado es-paço na agenda internacional, é notável que os Estados nacionais ainda buscam privilegiar seus próprios interesses na hora da to-mada de decisão (RÉGIS, 2006).

O posicionamento dos defensores dos direitos humanos ra-tifica um esvaziamento da soberania no momento em que há uma intervenção no país (NASCIMENTO, 2011). No entanto, Regis (2006) entende que o princípio de soberania não pode-ria ser abalado uma vez que, nessas circunstâncias, a sociedade internacional deve ser acionada. A intervenção humanitária ou uma pressão da própria comunidade para que as fronteiras dos Estados se tornem porosas à entrada de refugiados são formas de atuação externa. Régis (2006) defende que se essa atuação for promovida por Organizações Internacionais ou regionais, ela significará uma contribuição aos Estados afetados e não uma imposição ou disputa de interesses. Isso se deve ao fato de a so-berania nacional estar atrelada à responsabilidade de proteger os indivíduos6 e, caso os países não consigam agir por conta própria e estejam em situação de prejudicar seus nacionais, a comunida-de internacional poderá assumir esta responsabilidade de prote-ção aos indivíduos (NASCIMENTO, 2011).

Entende-se, portanto, que a responsabilidade de proteger está implícita na tomada de decisão dos Estados. Ao analisar o que é aceito e reproduzido pelos Estados, percebe-se que esse comportamento está associado à maneira como os Estados cos-tumam agir diante de situações que colocam em risco a prote-ção de seus cidadãos (WELSH; THIELKING; MACFARLANE, 2002). Os autores Jennifer Welsh, Carolin Thielking and S. Neil MacFarlane (2002), escrevem que o ato de intervir e a sobera-nia, analisados pela comunidade internacional como conceitos contraditórios, são na verdade complementares. Isso ocorre porque a noção de soberania está diretamente associada à res-ponsabilidade que os Estados possuem para com seus cidadãos (WELSH; THIELKING; MACFARLANE, 2002). A soberania implica, portanto, uma dupla responsabilidade. Ao mesmo tempo em que externamente ela trata do respeito dos limites 6 A Responsabilidade de Proteger é uma doutrina criada pela ICISS – Comissão Inter-nacional sobre Intervenção e Soberania Estatal – com o objetivo de estabelecer diretrizes para que seja feito o uso da força com intuito de proteger vidas e os direitos dos seres humanos. As intervenções humanitárias são o principal meio pelo qual essa doutrina se propõe a ser implementada (JUBILUT, s.d.).

525

Justiça Enquanto Responsabilidade

dos outros Estados; internamente, está relacionada ao respeito à dignidade e aos direitos básicos de todas as pessoas residen-tes no Estado nacional (WELSH; THIELKING; MACFARLA-NE, 2002). Assim, é possível utilizar esses argumentos como insumo para discutir também a relação entre o acolhimento de refugiados e a soberania dos Estados. Isso ocorre porque, de forma semelhante ao processo de intervenção, o ato de aco-lhimento faz o Estado refletir sobre a sua responsabilidade de proteger os cidadãos que habitam seu território e os riscos a que sua decisão poderá submeter esses indivíduos (WELSH; THIELKING; MACFARLANE, 2002).

Diante dos argumentos explicitados, cabe retomar o argu-mento central da obra de Krasner (1999) que está atrelado à sua definição de soberania. A partir das características da sobera-nia que ele estabelece, o autor confronta a ideia de que o Estado soberano está em processo de esfacelamento (COSTA, s.d.). Ele afirma que, apesar do impacto da crescente interdependência econômica global na relação entre os Estados, a soberania per-manece muito atraente aos Estados e a seus tomadores de deci-são. Ele explicita ainda benefícios trazidos pela soberania como: “bem-estar, sensação de segurança interna e externa, certeza ju-rídica, direitos humanos ou accountability7 de seus agentes, por exemplo” (COSTA, s.d., p. 8). Essa concepção arremata o argu-mento de que, ainda hoje, a defesa dos próprios interesses por parte dos Estados atrelada à proteção de seus cidadãos é o com-portamento mais aceito ou exercido pelas nações (COSTA, s.d.).

A hipocrisia organizada, assim como a lógica de consequências, bem se coaduna com a corrente realista das relações internacionais. Krasner pensa o sistema internacional como sendo anárquico. Nes-se ambiente prevalece a política do poder, ou ainda, a distribuição assimétrica de poder entre os Estados (GRIFFITHS, 2005). Pode-mos entender porque Krasner coloca tanta ênfase na assertiva de que os atores dizem uma coisa e fazem outra: o interesse nacional está acima de quaisquer outras considerações, inclusive de acordos livremente acertados. Também entendemos porque tais acordos são, via de regra, normas abertas, permitindo amplo poder de dis-cricionariedade aos acordantes (COSTA, s.d., p. 7).

7 Accountability é um termo definido por Ana Rita Sacramento como a obrigação a que estão submetidos os ocupantes de cargos situados na estrutura de Estados democráticos de prestar contas dos seus atos para que a própria sociedade, por meio de suas insti-tuições, possa lhes aplicar, em função das circunstâncias, as sanções ou recompensas cabíveis (SACRAMENTO, 2011).

526

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

4.2. Problemas existentes no acolhimento de refugiados: alocação de recursos, segurança nacional, acesso a políticas públicas, entre outros.

A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 19518 e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 19679 conseguiram colocar em destaque questão desse tipo de migração forçada no âmbito geográfico e conceitual. No entanto, há ainda lacunas em vários aspectos que tangenciam as circunstâncias as quais esses indivíduos são submetidos e, principalmente, no que se refere à questão do acolhimento deles. Esses tratados deram origem a um regime “quase efetivo”, institucionalizado e legítimo (ROCHA; MOREIRA, 2010).

Ao acompanhar o processo histórico e o desenvolvimento de legislações e acordos que facilitam a questão dos refugiados e de-limitam de forma mais específica a responsabilidade do Estado, pode-se levantar como grande problema a inexistência de deli-mitações claras entre o momento de atuação da sociedade inter-nacional e do Estado (ROCHA; MOREIRA, 2010). Os tratados não explicitam de forma clara até que ponto os Estados deverão tornar suas fronteiras porosas e se submeter a situações de vul-nerabilidade, a depender das condições que se encontrem, e qual o momento no qual seria muito mais prudente que a sociedade internacional assumisse a responsabilidade sobre os indivíduos. Essa problemática possui implicações políticas, sociais e econô-micas para os países que se dispõem a acolher refugiados e não possuem condições básicas para tal. Ademais, muitas vezes, esses são pressionados a tomar essa decisão.

Atendo-se à questão dos problemas que são gerados pela pre-sença desses indivíduos no território nacional, destacam-se dois âmbitos principais que podem ser afetados: âmbito econômico e cultural. Apesar de esses aspectos se relacionarem de forma bas-tante intrínseca, buscou-se nesse artigo a separação dos temas para facilitar a compreensão dos problemas mencionados. Assim, a complexidade das questões relacionadas ao acolhimento de re-

8 Essa Convenção também foi conhecida como Convenção de Genebra de 1951, dado o local onde ocorreu. Ela teve como principal resultado a definição do conceito de re-fugiado e os seus direitos e as responsabilidades da Comunidade Internacional sobre a questão.

9 Esse Protocolo buscou ampliar o alcance da Convenção e resolver duas limitações es-pecíficas atreladas à questão temporal e geográfica que a definição de refugiados de 1951 trazia. “Colocava-se fim à reserva temporal, ao mesmo tempo em que se exigia que os Estados que se comprometessem com as obrigações da Convenção ao aderir ao Protocolo não adotassem mais a reserva geográfica” (ROCHA; MOREIRA, 2010, p. 20).

527

Justiça Enquanto Responsabilidade

fugiados não foi perdida e será destrinchada na próxima sessão. Ademais, é importante ressaltar que ao centralizar a discussão nessas duas esferas globais não foram desconsiderados os efeitos gerados, por exemplo, nos espaços políticos ou sociais. Esses últi-mos estão diluídos ao longo do texto e se fazem presente dada a forte interseção que todos esses aspectos apresentam.

5. Acolher refugiados: um problema para a sociedade?

5.1.Questões econômicas

Primeiramente, dois lados devem ser levados em consideração na análise dos impactos que os refugiados produzem no Estado anfitrião: refugiado como um fardo ou como benefício para a so-ciedade (ONGPIN, 2009).

Desde o final dos anos 1970, a sociedade internacional tem se conscientizado sobre o impacto que a entrada de refugiados - em larga escala - provoca no meio social, econômico e político do Estado hospedeiro principalmente se esse for um país em desen-volvimento (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS [ACNUR], 2007). Assim, é preciso realçar as consequências econômicas e o que essas acarretam para os ou-tros setores da sociedade.

No momento da chegada no Estado de asilo, os refugiados competem com a população local por recursos limitados como terra, água, acomodação, alimentos e serviços médicos. Com o tempo, a presença deles conduz a um aumento substancial na de-manda por recursos naturais, educação, energia, transporte, ser-viços sociais e empregos. Os refugiados alteram, então, o fluxo de bens, mercadorias e serviços na sociedade. Ademais, a presença desses pode provocar implicações na balança de pagamentos10 e enfraquecer as iniciativas de ajustes estruturais naquela região (ACNUR, 2007) – como foi o caso do nordeste da Tanzânia, onde a presença de refugiados comprometeu a realocação dos fundos do governo de programas que objetivavam o bem-estar nacio-nal ou a redução da pobreza do país para projetos que visavam à assistência aos refugiados (ONGPIN, 2009). Não obstante, os refugiados podem contribuir para o aumento do desmatamento pela necessidade de se obter madeira e lenha para preparação dos alimentos (SHEPHERD, 1995).

10 O balanço de pagamentos é um levantamento estatístico que resume de forma sistemática, em um determinado período, as transações econômicas de uma economia com o resto do mundo (FMI, 1993).

528

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

Sob o ponto de vista econômico, o aumento da demanda por recursos, seja por alimentos ou outras commodities – petróleo, soja e minério de ferro, por exemplo – contribui para o aumento dos preços do bem em questão, o que não beneficia a população me-nos favorecida economicamente (MANKIW, MONTEIRO, 2001). Ora, se mais pessoas estão consumindo, o ofertante buscará mais lucro, aumentando, por conseguinte, o preço dos produtos. Logo, o aumento generalizado dos preços ocasiona uma inflação. Esta pôde ser percebida, sobretudo, na Jordânia, já que uma das razões para tal aumento dos preços foi o aumento do número de refugia-dos sírios que entraram no país, desde o início dos conflitos na região da Síria (CNN, 2012).

Por outro lado, os refugiados também possuem efeito positi-vo no Estado receptor. A sua presença contribui para a criação e manutenção de empregos, direta ou indiretamente. Além de ser gerado um estímulo econômico, tal situação conduz à abertura e ao desenvolvimento social por meio de agências, complementan-do o acesso aos recursos básicos, como educação (ACNUR, 2007). A exemplo disto, pode-se citar o “The World University Service of Canada”, que possui um programa de ajuda aos estudantes que são refugiados, motivando-os desde pequenos, fazendo parte da estratégia de educação promovida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) entre 2012 e 2015. É estimulada, assim, a efetividade do direito à educação, gerando soluções de desenvolvimento das comunidades de origem e de acolhimento (GUARDIAN UK, 2013).

5.2. Questões culturais: conflito entre a população local e os refugiados- xenofobia e preconceito.

Os efeitos da divergência entre culturas podem gerar impactos psicológicos e físicos que são notáveis no bem-estar do refugia-do e na dinâmica social destas populações (DUDLEY, 1999). Por exemplo, um refugiado que possui idioma, cultura e etnia similar à preponderante no Estado anfitrião, tenderá a desencadear um sentimento de assimilação e afinidade por parte da população lo-cal. Contudo, diferentes aspectos culturais, linguísticos e étnicos poderão gerar problemas entre as partes, como conflitos e barrei-ras à comunicação e reconhecimento (ACNUR, 2007). Por isso, é necessário atenção ao entender a diferença das realidades entre ambos os objetos de estudo: os refugiados e os nativos.

Segundo um estudo publicado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) em parceria com a

529

Justiça Enquanto Responsabilidade

Naif Arab University e a Organização da Conferência Islâmica (OIC) em 2009, a hospitalidade para com os necessitados idóla-tras de Alá, incluindo os refugiados, está presente nos princípios do Islã. Assim, o asilo e a proteção de refugiados entre os países do Oriente Médio – maiores adeptos do Alcorão – tornam-se um de-ver moral e ético (GUTERRES, 2013) de base cultural do naciona-lismo11 árabe (DAWISHA,2003). Este nacionalismo característico dos árabes destaca a identidade e o transnacionalismo, ao invés do fundamentalismo12 (SHAMI, 1996) e se refere aos inúmeros laços e interações entre instituições ou indivíduos através das relações transfronteriças (VERTOVEC, 1999).

Por outro lado, a hospitalidade dos países do Oriente Médio em relação aos refugiados da região tem diversas consequências. Na medida em que quase todos estes países que acolhem os refu-giados dos territórios vizinhos estão sujeitos a diferentes graus de instabilidade política, tensões sociais, dificuldades econômicas e preocupações com a segurança, eles precisam de apoio para tentar manter o equilíbrio entre as necessidades da própria sociedade e dos milhares de refugiados (GUTERRES, 2013). E, caso não haja tal equilíbrio, essa disparidade dos governos em gerir e adminis-trar tais demandas pode ocasionar uma tensão entre as partes, desencadeando o preconceito e a xenofobia13 (GELLNER, 1995).

Tendo em mente que a xenofobia e o preconceito podem ser realçados pelo nacionalismo exacerbado, é bem verdade que este sentimento pode, de fato, ser inerente à xenofobia, mas é preciso atentar-se ao fato de que nem toda xenofobia provém do naciona-lismo (GELLNER, 1995). Deste modo, o conceito de xenofobia, no seu sentido mais amplo, se estende ao preconceito sofrido pe-los não-cidadãos ou grupos marginalizados. E, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a xenofobia está associada aos seguintes fatores: a) diferentes gru-pos de imigrantes podem sofrer xenofobia em graus variados, co-mumente associados à cultura, à raça, à etnia e ao tipo de migran-te; b) nacionalismo em sua forma agressiva; c) outros processos de

11 O nacionalismo pode ser entendido como uma autodefinição da nação, engloban-do sentimentos primordiais, como laços de semelhança e união comumente associado às tradições e costumes que possuem historicidade naquele território (NASCMINEN-TO, 2003).

12 O fundamentalismo pode ser entendido como um nacionalismo supremacista, que remete à ideia de superioridade um grupo de indivíduos sobre outro, seja no aspecto cultural, social ou político (ERIKSEN, 2001).

13 Xenofobia deriva do termo grego ‘xenos’ e ‘phobos, que correspondem, respectiva-mente, a estranho ou estrangeiro e medo (HDRP, 2009). Deste modo, seria uma aversão aos estrangeiros.

530

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

segregação, como o racismo (PNUD, 2009).Tendo em mente tais fatores, percebe-se que a xenofobia é um

clássico exemplo de problema social que influencia diretamente o meio social e as supracitadas questões econômicas e políticas na discussão sobre os refugiados (FELLER, 2001). Além disso, muitos autores consideram que a xenofobia surge, no final da década de 1970 e meados da década de 1090, associada às crises do petróleo. Isso ocorreu porque, na época, a maioria dos países desenvolvidos e em desenvolvimento esteve em recessão por conta da alta no preço dos barris e os estrangeiros que se instalaram nesses países passa-ram a ter grande peso social e econômico para o Estado (FELLER, 2001). Atrelado a isso, o choque cultural entre ambas as realidades também produziu certa influência, já que os migrantes eram, em sua grande maioria, asiáticos, latinos ou africanos. Não obstante, enquanto esses indivíduos fossem culturalmente similares e supris-sem a carência de mão de obra, contribuindo para que benefícios superassem os custos, a entrada de estrangeiros no país não era pro-blemática (FELLER, 2001). Assim, um dos principais fatores ava-liados por Feller (2001) para a xenofobia ser decorrente da entrada destes refugiados está atrelado a tal conjuntura. (FELLER, 2001).

Há, ainda, que ressaltar que o choque cultural entre os refu-giados e a população nativa do Estado receptor, e as suas possíveis consequências, acontece não somente no Oriente Médio, mas de forma mais visível, em países de culturas diferentes da árabe. Por exemplo, preconceito e discriminação contra este tipo de migran-te árabe é frequente na Europa, em diferentes níveis. Na Áustria, baixos status sociais ou econômicos submetem os refugiados ára-bes à xenofobia, por serem subjugados e determinados como “un-der-class”, sendo objeto da ação xenofóbica em geral. Deste modo, o governo austríaco tem suas atitudes fundamentadas por precei-tos fortemente dependentes das condições sociais e econômicas, que podem não fazer parte da realidade de um refugiado naque-le momento (WAKOLBINGER, 1995). Não obstante, percebe-se também a existência da aplicação de políticas públicas que podem não convergir com o consenso entre povos orientais e ocidentais, aumentando o preconceito e a xenofobia entre eles, como foi per-cebido na República Francesa. Esta prevê, conforme a lei, a proi-bição do uso dos véus islâmicos em lugares públicos (BBC, 2010). Deste modo, mesmo que diferenças culturais e sociais estejam presentes no cotidiano, é possível observar a hostilidade vigente em tais divergências propagando-se em forma de diferentes níveis de preconceitos (GELLNER, 1995).

O conjunto de fatos apresentados reflete na questão de que o

531

Justiça Enquanto Responsabilidade

nacionalismo árabe, por possuir uma característica que preza por relações transfronteiriças, promove uma união cultural que expli-ca a generosidade em acolher refugiados das diversas partes do Oriente Médio que possuem igual religião (VERTOVEC, 1999). Os padrões, contudo, divergem ao mudar de Estado receptor ou até mesmo de governo, já que foi visto que precisa haver equilíbrio entre as necessidades dos nativos e dos refugiados para ameni-zar as tensões e instabilidade social (GUTERRES, 2013). De outro modo, consequências que concretizam a xenofobia e o preconcei-to podem ser evidentes na sociedade (GELLNER, 1995), sendo uma barreira ao bem-estar, à comunicação e ao reconhecimento do refugiado naquela nação (ACNUR, 2007).

6. Lampedusa e Iraque: como diferentes países reagem a um grande fluxo de refugiados?

6.1. Lampedusa (2011-2013/1).

O tradicional fluxo migratório do norte da África para o sul da Europa se intensificou exponencialmente devido às ondas de violência dos levantes populares na Tunísia e na Líbia, iniciados no começo de 2011 (CAMPESI, 2011). A pequena ilha de Lam-pedusa, na região da Sicília, já recorrente porta de entrada de mi-grantes, recebeu um fluxo intenso de fugitivos, principalmente tu-nisianos e líbios, a procura de asilo como refugiados (BBC REINO UNIDO, 2011).

A ilha, com uma população de aproximadamente 5.000 habi-tantes, já abrigava, em março de 2011, por volta de 6.000 refu-giados em campos improvisados (BBC REINO UNIDO, 2011). Ciente de suas responsabilidades quanto ao acolhimento, o go-verno local deslocou prontamente recursos que pudessem suprir a demandas dos que chegavam. Entretanto, devido à intensidade com que as embarcações aportavam, estes recursos acabaram por se mostrar insuficientes (BBC REINO UNIDO, 2011). As acomo-dações estavam além de sua capacidade e os processos legais rela-cionados aos documentos que classificariam os deslocados como refugiados, atrasados. A situação daquelas populações, sob tais condições, chegava a configurar um desrespeito aos direitos de migrantes14 (CAMPESI, 2011).14 Apesar de o artigo tratar da situação de refúgio, Campesi explica que, dentro da leg-islação italiana, o refúgio é tratado como uma forma específica de imigração. Ao afirmar que as condições adversas pelas quais os refugiados que chegavam à ilha caracterizavam um desrespeito ao direito dos imigrantes, o autor faz referência direta à legislação itali-ana (CAMPESI, 2011).

532

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

O governo nacional, também ciente da responsabilidade de proteger os que chegavam, deslocou mais recursos a fim de aten-der o surplus humanity15 da ilha. Entretanto, a insatisfação por parte da população local, por causa da instabilidade que tal fluxo estava causando à ilha, criou um movimento de resistência con-tra o acolhimento, a circulação e o recebimento de recursos des-tinados a atender a população migrante (BBC REINO UNIDO, 2011). As queixas compreendiam principalmente o comprome-timento do comércio e turismo - componentes preponderantes da economia lampedusana- e a ameaça à segurança pública que a população majoritariamente masculina poderia representar (BBC REINO UNIDO, 2011). Inclusive o próprio status de refugiados chegava a ser questionado tanto pelas autoridades italianas quanto pelo ACNUR: se inicialmente as embarcações que aportavam na ilha eram constituídas de pessoas de faixas etárias distintas com predominância de mulheres, crianças e idosos, o fluxo de homens jovens e sem família se intensificou, caracterizando-os como pos-síveis migrantes econômicos, procurando escapar de conjunturas político-econômicas ruins (CAMPESI, 2011).

A crise regional se tornou insustentável a ponto do então pri-meiro-ministro italiano Silvio Berlusconi visitar a ilha com discur-sos que prometiam a resolução do problema e mais engajamento do governo italiano na situação (BBC REINO UNIDO, 2011). O governo italiano elevou o status da situação em nível de debate político interior na União Europeia (UE), alegando que a situa-ção se caracterizava como uma responsabilidade de todo o bloco e não apenas da Itália (CAMPESI, 2011). De modo geral, a Itália acabava por ser apenas a porta de entrada para os outros países europeus, que eram verdadeiramente o destino dos refugiados. O país reclamava a questão no Conselho Europeu a fim de conseguir recursos tecnológicos e financeiros que auxiliariam a lidar com a emergência em seu território. Entretanto, em sessão no Parlamen-to Europeu, foi exposta a recusa da Comissão em tratar Lampedu-sa como uma ‘emergência humanitária’, aconselhando o governo italiano a fortalecer o controle de fronteiras e repatriar os migran-tes vindos do Norte da África (CAMPESI, 2011). Os membros da UE, na questão de imigração16, estariam dispostos a auxiliar em

15 Surplus humanity: Processo de objetificação do refugiado. O indivíduo perde suas características como ser humano e é visto apenas como um ‘excedente humanitário’ que desloca recursos do país receptor (Franke, 2009).

16 Em meio à crise financeira e ao aumento do fluxo de imigrações para o continente eu-ropeu, a UE discutiu o caso dos refugiados em uma perspectiva interna à grande questão de imigração (CAMPESI, 2011).

533

Justiça Enquanto Responsabilidade

recursos tecnológicos e financeiros, mas recusavam qualquer tipo de mecanismo de burden-sharing, deixando ao governo italiano a responsabilidade da questão (CAMPESI, 2011).

6.2. Iraque (verão 2012- 2013).

Em março de 2011, o governo de Bashar al-Assad, presidente da Síria desde 2000, presenciou os primeiros protestos a favor da democratização do país. A família Assad, no poder desde 1970, administra o país em regime ditatorial, concentrando as posições estratégicas de poder nas mãos dos alauítas, minoria religiosa da qual a família faz parte (FREEDOM HOUSE, 2010). Mesmo com a promessa de uma nova constituição e reformas políticas, as manifestações continuaram a se espalhar no país, sendo vio-lentamente reprimidas pelas forças armadas (REUTERS, 2011). Dois polos de oposição podem ser delineados: a) contra-Assad – grupo heterogêneo formado principalmente pela maioria sunita do país e apoiado pelos países ocidentais favoráveis ao discurso de democratização e b) pró-Assad – formado pela minoria reli-giosa alauíta (e grupos xiitas de países aliados ao governo) que controla o país e que alega que a luta interna na Síria é, na verda-de, uma guerra contra grupos extremistas islâmicos (REUTERS, 2011). Desde 2012, mas principalmente em 2013, a questão síria conquistou proeminência na agenda internacional, após dois anos e meio de conflito. A problematização do conflito abarca temas de segurança, direito humanitário, direitos humanos, armas quími-cas e, sobretudo, os 100 mil mortos e aproximadamente 2 milhões de deslocados (UN NEWS, 2013).

O Iraque é o quarto principal destino dos que saem da Síria e procuram refúgio. Mesmo com a instabilidade política desde a guerra de 2003 e a intensificação de conflitos sectários internos, o fluxo para este país é intenso (ACNUR, 2013). Segundo o Re-gional Response Plan Januray-December 2013 (RRP), aproximada-mente 147.000 sírios foram registrados no Iraque até o período de maio de 2013, com previsões de que o número chegue próximo a 350.000 no final de 2013 (ACNUR, 2013). A população majo-ritariamente de nacionalidade síria e etnia curda se fixa, princi-palmente, ao nordeste do país, área correspondente ao Curdistão iraquiano (ACNUR, 2013).

Assim como os demais países fronteiriços da Síria, o governo iraquiano se mostrou comprometido no acolhimento e assistên-cia dos refugiados. Entretanto, desde o final de 2012 a fronteira curda de Al Qa’im tem apresentado algumas restrições de acesso.

534

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

Ficou estabelecido pelo governo regional que em março de 2013 esta fronteira só estaria aberta para casos de cuidados médicos, refugiadas mulheres e menores de 15 anos (ACNUR, 2013). A me-dida foi tomada devido a questões de violência entre os refugiados e operações relacionadas ao terrorismo, dentro do território ira-quiano (ACNUR, 2013).

Em 2003, com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e a queda do ditador Saddam Husseim, a estabilidade sectária manti-da opressivamente pelo regime é desarticulada (FAWCETT, 2013). O regime ditatorial sunita de Hussein exercia políticas de opressão dos xiitas e das minorias curdas. Notadamente violento, o regime conseguia manter, em termos relativos, a estabilidade política e so-cial do Iraque (FAWCETT, 2013). Desde então o conflito sectário tem aumentado e a violência tem se intensificado. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) só em setembro de 2013 o número de mortos já chegava a quase mil (UN NEWS, 2013).

As condições de trabalho do ACNUR, neste caso, são com-plicadas pelas externalidades negativas17 do sectarismo. Ou seja, o desequilíbrio político e social que este fenômeno cria, dificulta um aumento qualitativo da contribuição do Estado na questão do refúgio sírio (ACNUR, 2013). O apoio até agora fornecido pelo governo, como o acesso relativamente fácil às fronteiras e os re-cursos alocados, é comprometido quando os fatores de desequi-líbrio interno e de desequilíbrio pelo fluxo intenso de refugiados agem simultaneamente. O ACNUR fica então responsável por alocar mais recursos a fim de suprir as necessidades básicas dos refugiados. A estimativa para atender estas populações até o final de 2013 é de US$ 310.042.526,00, sendo que aproximadamente 40% destes refugiados estão alocados em campos de refugiados, e os outros 60% vivem em comunidades locais, frequentemente em casas e apartamentos inacabados (ACNUR, 2013).

As dificuldades das condições de vida no Iraque e a falta de liberdade de circulação fora dos campos já fez com que aproxi-madamente 4.600 refugiados sírios optassem por retornar ao seu país de origem, mesmo que o ACNUR não tenha incentivado em nenhuma instância este movimento de retorno (ACNUR, 2013). Por isso a organização continua a promover programas de respos-ta humanitária junto ao governo local e organizações parceiras, auxiliando a situação desse cenário político desafiador (ACNUR, 2013). As principais necessidades humanitárias demandadas da

17 Externalidades negativas são “o impacto de uma pessoa sobre o bem estar de outras que não participam daquelas ações (...). Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é de-nominado externalidade negativa” (MANKIW, 2013, p. 184).

535

Justiça Enquanto Responsabilidade

região, as quais o ACNUR e organizações parceiras abordaram em planos de ação são: a) cuidado com os refugiados mais vul-neráveis, em principal com as crianças, que apresentam reações negativas mais em longo prazo devido aos traumas do conflito que presenciaram; b) construção de mais campos a fim de aumentar o suporte aos refugiados que chegarão em um futuro próximo; c) cuidado para com aqueles que vivem em comunidades locais, pre-zando para que sejam autossustentáveis; d) programas eficientes de saúde; e) programas de educação inclusivos para refugiados em idade escolar e adultos (ACNUR, 2013).

6.3. Comparação: Lampedusa vs. Iraque.

Itália e Iraque demostram singularidades nos contextos polí-tico, econômico e cultural que criam situações diferentes quanto ao acolhimento de refugiados. Sobre a situação política do Estado acolhedor é relevante considerar a legitimidade do governo e o sucesso das instituições, antes e durante o fluxo em massa. Em relação à esfera econômica, leva-se em consideração a estabilida-de financeira e a capacidade de alocação de recursos. E quanto às questões sociais, considera-se a receptividade da população nativa e os possíveis choques culturais e religiosos. Estes foram os fatores de avaliação escolhidos para desenvolver deste artigo.

Lampedusa é, tradicionalmente, uma das principais regiões fronteiriças da Europa que recebe grandes fluxos de imigran-tes. Sendo assim, o governo local está ciente das responsabilida-des sobre o acolhimento das populações deslocadas (CAMPESI, 2011). Tanto em um contexto anterior à Primavera Árabe quan-to em outro durante o fenômeno, a Itália se caracteriza por ser um país estável com instituições democráticas consolidadas, ca-paz de cumprir com suas obrigações no âmbito interno e externo (PORTA; VANNUCCI, 2011). Contrariamente a esta situação, o Iraque, também destino frequente de refugiados já dentro do Oriente Médio, enfrenta uma ocupação militar estrangeira desde 2003. A queda do regime ditatorial de Saddam Hussein acabou por intensificar as ondas de violência do sectarismo no país e agra-var a crise política. Desdobrando a esfera econômica a partir da política é observável que a estabilidade financeira e a capacidade de alocação de recursos são muito mais efetivas no primeiro país do que no segundo. Mesmo afetada pela crise financeira europeia (2008) a Itália dispunha de recursos capazes de abarcar o fluxo de refugiados (BBC UK, 2011). Muito diferentemente do Iraque, que arrasado por conflitos internos, não poderia prover tão eficiente-

536

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

mente recursos aos refugiados, dependendo assim de uma ação mais enérgica por parte do ACNUR (ACNUR, 2013).

Em contraposição aos fatores anteriores, a esfera social se mostra mais complicada no caso italiano: a população nativa de Lampedusa enxergou no refugiado, além de um fardo econômi-co, um estranho cultural que desafiava seu modo de vida. O re-conhecimento do cidadão ‘lampedusano’, ‘italiano’ e ‘europeu’ se acentuou com a chegada daquele que é definido como o outro: ‘árabe’ e/ou ‘muçulmano’ (ACNUR, 2007). Os refugiados sírios no Iraque, por fazerem parte da mesma etnia da região acolhedora (etnia curda) não sofreram um estranhamento cultural e/ou reli-gioso, sendo mais bem integrados neste aspecto (ACNUR, 2013).

Lampedusa e Iraque, como já exposto, apresentavam condi-ções de acolhimento muito diversas. O fluxo em direção à Europa gerou perturbações internas e embates políticos dentro da UE co-locando em pauta questões de segurança nacional devido à deses-tabilização gerado por causa do fluxo intenso, enquanto as fron-teiras iraquianas permaneceram abertas e o governo local, mais receptivo. A aparente contradição de condições de acolhimento e políticas efetivas também reflete um paradoxo entre a função do Estado como ator ético nacionalmente e internacionalmente: onde está o limiar da ação ética do Estado e como isso se relaciona com suas obrigações frente a seus nacionais?

Partindo do pressuposto de que, segundo Frost (2008), em questões humanitárias os Estados sempre agem eticamente, então o acolhimento de refugiados se torna uma obrigação. Esta obriga-ção, no entanto, esbarra em questões delicadas quanto à respon-sabilidade do Estado para com seus cidadãos. A pergunta acima expõe claramente a tênue situação: a implicação ética do Estado no âmbito internacional não separa ou exclui esta sua mesma im-plicação no âmbito doméstico.

A partir das especificidades contextuais de cada um dos ca-sos práticos, percebem-se as limitações de ambos os Estados: a segurança nacional, baseada na estabilidade política, econômica e social, entra em choque direto com o dever de proteger do Es-tado. A questão portando se desdobra na dualidade da autono-mia estatal, soberana e favorável aos interesses nacionais e como essa condição pode ser conciliada com questões humanitárias. Até onde seria legítimo um Estado optar por se preservar e faltar com sua obrigação de proteger é trabalhado em comparação em ambos os casos: as singularidades de cada país levam a, necessariamente, conclusões e soluções diferentes, as quais não obrigatoriamente incorreriam em problemas éticos nos âmbitos internacional e do-

537

Justiça Enquanto Responsabilidade

méstico. Isto devido à lógica mista de segurança nacional exercida pela soberania e autonomia do Estado e por sua obrigação moral, em uma esfera de ação mais humanitária do que seria entendido dos direitos humanos no âmbito internacional.

7. Considerações finais.

Este artigo, portanto, teve como sua principal meta explanar os dilemas do acolhimento de refugiados. Utilizando-se dos con-ceitos de ética e soberania foram expostas as perspectivas internas dos países acolhedores, possibilitando conclusões sobre a efetivi-dade da política de recebimento de refugiados e suas implicações. Por meio de análise da intensidade do fluxo de refugiados causado pela Primavera Árabe e das consequências disto para Itália e para o Iraque, buscou-se propor soluções para as possíveis desestabili-zações político, sociais e econômicas.

A lógica instrumentalista da ética abarca as responsabilida-des morais do Estado perante a sociedade internacional, os valo-res partilhados por ela e a ação dos Estados perante estes fatores (FROST, 2008). Mesmo que em questões humanitárias a conduta dos Estados seja eticamente enviesada, este comportamento típi-co percebe barreiras quando a estabilidade nacional está em jogo. Segundo Nascimento (2011), um Estado que preza por esta lógica conseguirá conciliar seus interesses em uma perspectiva ética.

A partir desta lógica é importante considerar também os ele-mentos da soberania e autonomia do Estado como norteadores de políticas mais restritivas ao acolhimento de refugiados. A desesta-bilização que o país receptor pode enfrentar ao receber fluxos tão grandes quanto os oriundos da Primavera Árabe gera preocupa-ções além dos aspectos econômicos. Os aspectos políticos e sociais do refúgio também contribuem para a explicação de uma crise grave no país acolhedor. Isto acontece principalmente porque, como desenvolvido na quinta seção, o refugiado é um indivíduo dotado de cultura própria que além de deslocar recursos materiais também interage com a sociedade que o acolhe.

Em casos de instabilidade interna que pode ser intensificada por fluxos intensos de refugiados ou pela incapacidade do país acolhedor em receber este surplus humanity por motivos políti-cos, econômicos ou sociais, seria aconselhável que mecanismos multilaterais de cooperação – como o burden-sharing - pudessem ser aplicados: as fronteiras de países nestas situações eventual-mente poderiam ser fechadas aos fluxos migratórios. Entretanto, priorizando por soluções mais comprometidas com a ética, seria

538

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

viável que outras soluções pudessem ser aplicadas, em consonân-cia com a perspectiva de ação entre interesse nacional e conduta ética apresentada por Nascimento (2011). O ACNUR, órgão da ONU responsável pelo assunto poderia, inspirando-se em pro-gramas similares, criar projetos de reassentamento em razão da incapacidade de acolhimento do país destino. O problema ético do não acolhimento seria então contornado pela mobilização da sociedade internacional para resolver o problema.

Este programa de reassentamento poderia ser utilizado como resolução dos casos práticos. Primeiramente o Estado italiano, po-lítico e economicamente capaz de atender às necessidades dos que chegavam a Lampedusa, signatário da Convenção de 1951 e do Pro-tocolo de 1967 e ator internacional ético, deveria continuar a políti-ca de acolhimento. O trabalho com melhor alocação de recursos e debate no âmbito do bloco europeu sobre migração e refúgio resul-taria em políticas mais efetivas voltadas para os refugiados, sem que as populações nacionais pudessem ser prejudicadas. Quanto o caso iraquiano, que também se configura enquanto um ator internacio-nal ético, não haveria condições de prosseguimento da política de acolhimento. A dependência de recursos alocados pelo ACNUR é demasiadamente grande, o que acaba por intensificar os desequilí-brios do próprio país e neste caso, sobretudo, o desequilíbrio finan-ceiro (poucos recursos materiais disponíveis) e político (população refugiada faz parte da etnia curda, a qual mantém planos de inde-pendência). Este caso retrata especialmente uma espécie de síntese da tese deste artigo, apresentando claramente as ações dúbias de um Estado frente a problemas éticos.

8 - Referências bibliográficas

BAUMGARTL, B; FAVELL, A. New Xenophobia in Europe. Kluwer Law International, 1995.

BBC EUROPE. Berlusconi: Migrants to leave Lampedusa in 48 hours. Março, 2011. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/news/world-europe-12903771 >. Acesso em 13 de outubro de 2013._______. Italy’s Lampedusa island hit by migrant crisis. Março, 2011. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/news/world-europe-12816340>. Acesso em 30 de novem-bro de 2013.

BBC REINO UNIDO. Italy boat sinking: hundreds feared off death in Lampedusa. 03 de outubro de 2013. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/world-euro-pe-24380247>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

BREUER, A. The role of social media in mobilizing political protest: evidence from the Tunisian revolution. Berlim: Instituto de Desenvolvimento Alemão, 2011.

539

Justiça Enquanto Responsabilidade

BULL, H. The Anarchical Society. London: Macmillan, 1979.

CAMPESI, G. The Arab Spring and the Crisis of European Border Regime: Manu-facturing Emergency in the Lampedusa Crisis. Robert Schuman Centre for Advanced Studies, EUI Working Paper RSCAS 2011/ 59, 2011. Disponível em: < http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/19375/RSCAS_2011_59.pdf?sequence=1>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS. _______. Countries hosting Syrian refugees – Solidarity and Burden- Sharing. Septem-ber 2013 (provisional release). Disponível em: < http://www.unhcr.org/cgi-bin/texis/vtx/home/opendocPDFViewer.html?docid=524936369&query=unhcr%20iraq%20war%20syrian%20refugees >. Acesso em 11 de janeiro de 2014._______. Syria Regional Response Plan January – December 2013. pp. 254-258. Dis-ponível em: < http://unhcr.org/51b04c9c9.html>. Acesso em 15 de novembro de 2013._______. The UN Refugee Agency document (Jan., 1997). University Press, 1999, 264p. Disponível em: <http://www.unhcr.org/3ae68d0e10.html>. Acesso em 1 de outubro de 2013.

COSTA, F. C. S. Estudos estratégicos no século xxi: soberania e intervenção. [2013]. Disponível em: < https://www.academia.edu/2496955/Soberania_e_intervencao>. Acesso em: 26 jan. 2014

CRUSH, J.; RAMACHANDRAN, S. Xenophobia, International Migration and Human Development. United Nations Development Programme Human Development Re-ports Research Paper (Sep, 2009). Disponível em: < http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/19375/RSCAS_2011_59.pdf?http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr2009/papers/HDRP_2009_47.pdf=1>. Acesso em 6 de outubro de 2013.

CUSIMANO, M. K. Beyond Sovereignty. Issues for a global agenda. New York: Bed-ford/St. Martin’s, 2000, pp.1-43.

DALACOURA, K. The 2011 uprisings in the Arab Middle East: political change and ge-opolitical implications. International Affairs: Moscou, 20 de janeiro de 2012, p. 63-79.

DUDLEY, S. ‘Traditional’ culture and refugee welfare in north-west Thailand. Forced Mi-gration Review article, edition no. 6 (Dez., 1999), pp. 5-8. Publicado por Refugee Studies Centre of the Department of International Development, University of Oxford, 1999.

EIKO R. THIELEMANN. Symbolic Politics or Effective Burden-Sharing? European Re-fugee Fund. JCMS, 2005, Volume 43. Number 4. pp. 807–24. Faculty Scholarship Series.

FAWCETT, L. The Iraq War tem years on: assessing the fallout. International Affairs (Royal Institute of International Affairs 1944-), Vol. 89, N.2, (Março, 2013), pp. 325-343. Disponível em: < http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-2346.12020/pdf>. Acesso em 6 de outubro de 2013.

FELLER, E. The Convention at 50: the Way Ahead for Refugee Protection. Forced Mi-gration Review, Oxford, v.10, p. 6-9, 2001.

FRANKE, M. F. N. (2009). ‘Political Exclusion of Refugees in the ethics of international relations.’ In: Patrick Hayden (Ed.). The Ashgate Research Companion to Ethics and International Relations. Aldershot: Ashgate, pp.309-327.

FREEDOM HOUSE. Syria, 2010. Disponível em: <http://www.freedomhouse.org/re-

540

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

port/freedom-world/2010/syria>. Acesso em 18 de novembro de 2013.

FROST, M. Global Ethics: Anarchy, Freedom and International Relations (Critical Is-sues in Global Politics). Routledge: Nova York, 2008.

GUTERRES, A. “Struggle of the Middle East Refugees.” The Cairo Review of Global Affairs, The American University in Cairo, 2013. Disponível em: <http://www.aucegypt.edu/gapp/cairoreview/Pages/articleDetails.aspx?aid=330>. Acesso em 02 de janeiro de 2013.

UN NEWS CENTRE. Iraq: UN envoy calls for collective action to end bloodshed. (Outubro, 2013). Disponível em: < http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsI-D=46200&Cr=&Cr1=&Kw1=iraq&Kw2=&Kw3=#.UmQJWtKUSYV >. Acesso em 13 de outubro de 2013.

JACOBSEN, K. International Migration Review. v. 30, N. 3 (Autumn, 1996), p. 655-678. Nova Iorque: The Center for Migration Studies of New York, Inc, 1996

JUBILUT, L. L. “A responsabilidade de proteger é uma mudança real para as interven-ções humanitárias?”, s.d.

KAROUNY, M. & BAYOUMY, I. Assad blames unrest on saboteurs, pledges reforms. Reuters (Junho, 2011). Disponível em: < http://www.reuters.com/article/2011/06/20/us-syria-idUSTRE75J0AV20110620 >. Acesso em 30 de novembro de 2013.

KHALIFA, R. Bahrain unrest: 2nd anniversary of Arab Spring as shiite protesters clash with security forces. The Huffington Post, Reino Unido, 14 de fevereiro de 2013. Dispo-nível em: < http://edition.cnn.com/2011/12/17/world/meast/arab-spring-one-year-la-ter/index.html?iref=allsearch>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

KRASNER, S. D. Sovereignty. Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999.

KUTSCH, T. Syrian refugees top 2 million as thousands flee daily. Al-Jazeera Ameri-ca, Estados Unidos, 03 de setembro de 2013. Disponível em: < http://america.aljazeera.com/articles/2013/9/3/syrian-refugee-numbersswellto2million.html>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

MACHADO, L. O. Sistemas, Fronteiras e Territórios. [2013] Rio de Janeiro: Depar-tamento de Geografia da UFRJ, [2013]. Disponível em: < http://acd.ufrj.br/gruporetis/pdf/LIAconceitos.pdf>. Acesso em: 03 out. 2013.

MANKIW, G. N. Introdução à Economia: princípios de micro e macroeconomia, 2ª edição. São Paulo: Editora Campus, 2001._______. Introdução à economia, 6ª Edição. São Paulo: Editora Cengage Learning, 2013.

NASCIMENTO, A. Pessoas deslocadas internamente: da actuação do Estado soberano à intervenção da comunidade internacional. N. 66. Oeiras. Maio 2011. Publicado em: Sociologia, Problemas e Práticas.

NASCIMENTO, Paulo César, Dilemas do Nacionalismo. Publicado por BIB, 2003, pp.39.

ONGPIN, P. A. Refugees: asset or burden? Forced Migration Review article (2009). pp. 37-38. Refugee Studies Centre of the Department of International Development, University of Oxford, 2009. Disponível em: < http://www.fmreview.org/FMRpdfs/

541

Justiça Enquanto Responsabilidade

FMR33/37-38.pdf >. Acesso em 1 de outubro de 2013.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Relativo ao Estatuto de Refugia-do 1967. Disponível em < http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/documentos/> Acesso em 08 out. 2013.

PORTA, D. D.; VANNUCCI, A. Countries at the Crossroads 2011: Italy, 2011. Freedom House. Disponível em: < http://www.freedomhouse.org/sites/default/files/inline_ima-ges/ITALYfinal.pdf>. Acesso em 6 de janeiro de 2014. Resolution adopted by the General Assembly [on the report of the Third Commit-tee (A/65/450)], 28 de Fevereiro de 2011. Disponível em: < http://www.unhcr.org/4d80e3869.html >. Acesso em 13 de outubro de 2013.

ROCHA, R.; MOREIRA, J. Regime internacional para refugiados: mudanças e desa-fios. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, N. 37, p. 17-30, out. 2010.

SACRAMENTO, A. R. S. Accountability no Brasil: um estudo sobre o papel de organi-zações da sociedade civil para combater e controlar a corrupção, 2011.

SCOTT, A. Investing in refugees: new solutions for old problems. The Guardian UK, 15 de julho de 2013. Disponível em: <http://www.theguardian.com/global-development-professionals-network/2013/jul/15/world-refugee-day-refugees>. Acesso em 2 de janeiro de 2013.

SHAMI, S. Transnationalism and Refugee Studies: Rethinking Forced Migration and Identi-ty in The Middle East. Jornal of Refugee Studies. Acesso em 13 de outubro de 2013.

SHEPHERD, G. The Impact of Refugees on the Environment and Appropriate Respon-ses. Humanitarian Exchange Magazine article (Sep., 1995). Acesso em 1 de outubro de 2013.

SHUCK, P. H., Refugee Burden-Sharing: A Modest Proposal (1997).

SMYSER, W. R. Refugees: A Never-Ending Story. Foreign Affairs: Nova York, Vol. 64, No. 1, 1985, pp. 154-168.

SNELL, K. D. M. Social and economic impact of large refugee populations on host deve-loping countries. Social History, Vol. 28, No. 1 (Jan., 2003), pp. 1-30. Taylor & Francis, Ltd.

STERLING, Joe. A year later, Bouazizi’s legacy still burns. CNN News, Estados Uni-dos, 17 de dezembro de 2011. Disponível em: < http://edition.cnn.com/2011/12/17/world/meast/arab-spring-one-year-later/index.html?iref=allsearch>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

SUHRKE, Astri. Burden-sharing during Refugee Emergencies: The Logic of Collective versus National Action. Journal of Refugee Studies. Volume 11, Issue 4, pp. 396-415. Oxford University Press, 2008.

Syrian refugees flee into Iraq. CNN News, Estados Unidos, 20 de agosto de 2013. Dispo-nível em: < http://edition.cnn.com/2013/08/20/world/meast/syria-iraq-refugees/index.html>. Acesso em 13 de outubro de 2013.

TOOLE, Michael J. e WALDMAN, Ronald J. Refugees and displaced persons: war, hun-ger and public health. JAMA, 04 de Agosto de 1993, Vol. 270, no. 5. versus National

542

Simulação das Nações Unidas para Secundaristas – 2014

Action. Journal of Refugee Studies Vol. 11. No. 4, 1998, p. 396-415.

VERTOVEC, Steven. Ethnic and Racial Studies, vol. 22, No. 2 (1999). Universidade de Oxford.

WELSH, Jennifer; THIELKING, Carolin; MACFARLANE, S. Neil, 2002. The Respon-sibility to Protect: Assessing the Report of the International Commission on Inter-vention and State Sovereignty. International Journal, v. 57, N. 4 (Autumn, 2002), p. 489-512. Published by: Canadian International Council. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/40203689 >. Acesso em 1 de outubro de 2013.