reflexÕes sobre o farmacÊutico e sua atuaÇÃo na...
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UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
FARMÁCIA
FERNANDO CRAICE
REFLEXÕES SOBRE O FARMACÊUTICO E SUA ATUAÇÃO
NA TOXICOLOGIA FORENSE
Santos/SP
Novembro/2010
UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
FARMÁCIA
FERNANDO CRAICE
REFLEXÕES SOBRE O FARMACÊUTICO E SUA ATUAÇÃO
NA TOXICOLOGIA FORENSE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para obtenção do título de
Bacharel em Farmácia ao Curso de Farmácia da
Universidade Santa Cecília, sob a orientação do
Professor Doutor Camilo Dias Seabra Pereira .
Santos/SP
Novembro/2010
FERNANDO CRAICE
REFLEXÕES SOBRE O FARMACÊUTICO E SUA ATUAÇÃO NA TOXICOLOGIA
FORENSE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção do título
de Bacharel em Farmácia ao Curso de Farmácia da Universidade Santa Cecília.
Data da Aprovação 11 / 11 / 2010
Banca Examinadora
Professor Doutor Camilo Dias Seabra Pereira
Orientador
Professor Maria Fernanda B Penteado Pedroso
Professor Leonardo Gondo Watanabe
DEDICATÓRIA
Enéas Craice
AGRADECIMENTOS
Professor Doutor Camilo Dias Seabra Pereira
Doutor Dário Bonifácio
Engenheiro Ivan Eduardo Tucci
Professores da Universidade Santa Cecília
Universidade Santa Cecília - UNISANTA
RESUMO
A profissão de farmacêutico é tão antiga quanto a medicina. No entanto, a atividade
farmacêutica tem-se modificado ao longo dos séculos. A principal característica dessa
profissão sempre foi a técnica, ou seja, a habilidade para manipular medicamentos. Foi a
partir da década de sessenta, do século XX, que o farmacêutico buscou outros campos de
atuação como forma de ampliar o mercado de trabalho, redefinindo seu perfil profissional. O
presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a identidade do farmacêutico na atualidade
e a abertura para outros campos de atuação, como na toxicologia forense. A estratégia
metodológica foi a pesquisa histórica, para suscitar a reflexão em torno desses profissionais, e
a identificação, por meio de questionários elaborados, dos farmacêuticos que trabalham com
análises toxicológicas, num campo determinado – Baixada Santista. O resultado é que esses
profissionais atuantes em toxicologia forense são ainda em número muito restrito, inexistem
em algumas regiões, mas contribuem, sobremaneira, para as mudanças inevitáveis do
entendimento do papel do farmacêutico na comunidade.
PALAVRAS-CHAVE: práticas médico-farmacêuticas; boticário; farmacêutico;
toxicologia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1
1 Relações entre o Homem e o Medicamento.............................................................................3
1.1 O Homem primitivo.....................................................................................................3
1.2 Civilizações antigas......................................................................................................4
1.3 Grécia e Roma..............................................................................................................9
1.3.1 Cultura grega ...................................................................................................9
1.3.2 Doutrinas médicas romanas...........................................................................14
2 As práticas médicas na Idade Média e no Renascimento......................................................20
2.1 A farmácia árabe.......................................................................................................21
2.2 Medicina e farmácia monástica.................................................................................26
2.3 A farmácia medieval em Portugal.............................................................................29
2.4 A Farmácia no Renascimento...................................................................................31
2.5 Rica flora medicinal e as Pharmacopeias..................................................................38
2.6 Os boticários e as boticas brasílicas..........................................................................41
3 Do boticário ao Farmacêutico................................................................................................46
3.1 Perfil do profissional Farmacêutico de hoje.............................................................47
3.1.1 Campo das análises toxicológicas.................................................................54
3.1.2 Resultado dos questionários..........................................................................59
CONCLUSÃO..........................................................................................................................63
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................64
ANEXOS..................................................................................................................................66
1
INTRODUÇÃO
A profissão de farmacêutico é tão antiga quanto a medicina. Quer seja no Brasil, ou fora
daqui, a atividade farmacêutica tem-se modificado ao longo dos séculos. O ponto característico
dessa profissão sempre foi a técnica, ou seja, a habilidade e a habilitação para manipular
medicamentos. Foi a partir da década de sessenta, do século XX, que o farmacêutico buscou outros
campos de atuação como forma de ampliar o mercado de trabalho, redefinindo seu perfil
profissional.
Para atingir o objetivo geral desse trabalho, que é refletir sobre a identidade do
farmacêutico na atualidade e a abertura para outros campos de atuação, como na toxicologia
forense, procurou-se organizar o trabalho de maneira que um capítulo possa dar os subsídios
necessários para que o próximo seja compreendido. Mas note-se, a escolha da sequência
temática dos capítulos justifica-se na tentativa de favorecer a reflexão e a crítica sobre a
situação atual do profissional frente à farmácia e ao medicamento.
Todo conhecimento é uma realidade histórica, seu modo de existência real não é a
atemporalidade ideal, mas a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber. A
espessura temporal é um horizonte de retrospecção, assim como é um horizonte de projeção, a
fim de organizar a construção cognitiva contemporânea (AUROUX, 2001).
O primeiro capítulo apresenta um breve panorama das relações entre o Homem e o
Medicamento, buscando toda a dinâmica das práticas médico-farmacêuticas da antiiguidade.
Para isso, cortes no tempo cronológico são verificados: desde o homem primitivo, passando
pelas civilizações antigas, as práticas médico-farmaêuticas na Grécia e em Roma.
O segundo capítulo trata da criação da farmácia pelos árabes, foram eles que pela
primeira vez a separaram da medicina, aperfeiçoaram aparelhos e métodos, devendo-se-lhes
muitas inovações na técnica farmacêutica; trata da medicina, da farmácia monástica e da
separação desses dois campos, no Ocidente, no decurso do século XII, por ocasião da
incompatibilidade no exercício das duas profissões. Também busca nossas origens na
farmácia medieval em Portugal e no renascimento.
O terceiro capítulo aborda o boticário e o farmacêutico de nossos dias; a formação
generalista nos cursos de Farmácia e o desprestígio social do profissional em seu recinto de trabalho
que o tem empurrado a outras opções de atuação, não mais só nas farmácias; e busca identificar o
farmacêutico que atua no campo das análises toxicológicas para fins médico-legais.
2
A estratégia metodológica foi a pesquisa histórica, para suscitar a reflexão em torno desses
profissionais como resultado, e a identificação, por meio de questionários elaborados, dos
farmacêuticos que trabalham com análises toxicológicas, num campo determinado – Baixada
Santista. A pesquisa enfatizou o caráter humano do profissional da saúde em busca de respostas
nesse momento de crise, ou de retomada da discussão sobre mudanças que estão ocorrendo em
todos os setores.
Desde já, podemos concluir que esses profissionais farmacêuticos, atuantes em toxicologia
forense, são ainda em número muito restrito, inexistem em algumas regiões do próprio Estado de
São Paulo, mas contribuem, sobremaneira, para as mudanças inevitáveis do entendimento do papel
do farmacêutico na comunidade.
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1 AS RELAÇÕES ENTRE O HOMEM E O MEDICAMENTO
1.1 O homem primitivo
Sem procurar definir de uma maneira precisa as verdadeiras relações
entre o homem e o medicamento, julgamos não ser no entanto exagerado afirmar
que em nenhuma época da história humana o medicamento apresentou maior
importância para o homem civilizado do que na época em que vivemos. Surgindo
da profundidade da noite dos tempos como alguma coisa que as misteriosas forças
do instinto tivessem trazido à luz do conhecimento, tem vindo através dos séculos
a tomar importância cada vez maior na vida do homem. Envolto desde remotas
eras nos véus do mistério – dádiva dos deuses ou expressão das forças poderosas
da natureza, nos tempos longínquos em que a arte de curar balbucia as primeiras
palavras – o medicamento reflecte a pouco e pouco a experiência humana de viver
e exemplifica uma vez mais a maravilhosa intuição que guia os homens na
descoberta dos segredos da natureza (SILVA, 1968, p. 7).
O homem primitivo adoecia e eram diversas as patologias existentes. Por meio da
paleopatologia, ciência que demonstra as doenças em vestígios humanos procedentes de épocas
remotas, foi possível apurar: anomalias congênitas, problemas endócrinos, gota, lesões inflamatórias
diversas, neoplasias e afecções dentárias. Contudo, não existem vestígios de fármacos que
possibilitem concluir sobre a farmacoterapia de eras tão remotas.
O que se mostra como resultado dessas investigações é que a terapêutica utilizada tirava
partido de uma aplicação de drogas provenientes dos três reinos da natureza. Entre os produtos
utilizados encontravam-se, entre outros, peles, dentes, cornos, sangue de animais e barbatanas e
escamas de peixe; no que diz respeito aos produtos de origem mineral encontravam-se o ferro, a cal
e o chumbo. Mas os produtos de origem vegetal ocupavam a maior parte do arsenal terapêutico,
substâncias como as que utilizamos hoje, a emetina, a cocaína, a quinina, a reserpina, etc.
Convém salientar que, provavelmente, em toda a dinâmica das práticas médico-
farmacêuticas desses povos, um elemento mostrava-se do maior valor e significado: o bruxo ou
feiticeiro considerado como elemento vital das sociedades arcaicas. Ele era o detentor das fórmulas
secretas que veiculavam as substâncias medicamentosas. Escreve Pita (2000) que alguns estudiosos
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no assunto dão a seguinte interpretação: os tratamentos eram envolvidos em rituais que integravam
o canto, a dança, a palavra, muitas vezes na presença de objetos próprios como amuletos, talismãs e
feitiços, objetos diversos semelhantes a medalhas e que eram dotados de uma forte ação protetora.
Pode-se verificar, ainda hoje, plasmada em povos que se encontram distribuídos por quase em todos
os continentes, a propriedade mais típica da medicina primitiva e que é, muito sucintamente, a
existência de um sistema sustentado em representações mágico-religiosas.
1.2 Civilizações antigas
Na zona geográfica compreendida entre os rios Tigre e Eufrates, a Mesopotâmia, pano de
fundo de várias culturas históricas - depois extintas: a suméria, assíria e a babilônica -, já era
conhecida uma significativa variedade de drogas de origem vegetal, número apreciável de drogas de
origem mineral e, ainda, outras de origem animal. É de lá o mais antigo texto de medicina conhecido,
uma tabuinha suméria (Tábua de Nippur) do último quartel do 3º milénio a.C., que se constitui por
um certo número de receitas médicas, drogas, veículos para as preparações medicamentosas como o
vinho, a cerveja e óleos.
No que se diz respeito às operações farmacêuticas utilizadas pelos povos
da Mesopotâmia, estão descritas a secagem, a pulverização, a extração de sucos
por expressão, a filtração, a decantação, a maceração, a digestão, a ebulição, etc.
Estas operações farmacêuticas eram conducentes à obtenção de formas
farmacêuticas, sendo conhecidas nesses povos, como as mais relevantes, as
seguintes: soluções, fumigações, pomadas, unguentos, emplastos e pílulas.
Possuíam, também, técnicas próprias para a introdução de medicamentos nas
cavidades rectal e vaginal (PITA, 2000, p. 26).
Apesar de se referir que na Mesopotâmia já era conhecida uma significativa variedade de
drogas, e de habitantes dessa região recorrerem ao banho, ao calor e às massagens como práticas
terapêuticas, realizarem intervenções cirúrgicas a abscessos, às cataratas, extraírem dentes, de um
modo geral, todo o tratamento do doente ainda era resultado da articulação médico-religiosa. O
comportamento dos deuses era fundamental para o bem estar dos homens e a doença era
englobada nesta articulação entre o terreno e o divino e entre o bem e o mal. A utilização de
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medicamentos, por si só, não era suscetível de causar qualquer efeito terapêutico, era necessário
uma série de rituais mágicos apropriados.
Também havia o interesse pelo Código de Hammurabi (1700 a.C.), um texto que legislava
sobre matérias muito variadas, da alçada dos nossos códigos comercial, penal e civil, artigos que
pretendiam normalizar toda a vida social. Alguns são dedicados a estabelecer parâmetros para o
exercício da medicina por parte de médicos e sacerdotes.
São várias as fontes que informam sobre a medicina egípcia: desenhos, baixos relevos,
múmias e técnicas de embalsamamento, textos religiosos. Ao lado da prática dos sacrifícios, preces,
rituais mágicos e uma vasta galeria de deuses protetores havia receitas, fórmulas, matérias de
ginecologia, obstetrícia e veterinária, doenças dos olhos, problemas vasculares, formulário
medicamentoso, temas cirúrgicos, prescrições médicas, receituários que foram registrados em
papiros médicos.
De todos, o Papiro de Ebers (1550 a.C.) apresenta um vasto conteúdo médico, muito variado
no que diz respeito ao formulário medicamentosos e, ainda, às descrições clínicas e o Papiro de
Edwin Smith (remonta a 1550 a.C.) que inclui temas cirúrgicos e congrega, com rigor, prescrições
médicas. São considerados como os de maior interesse para o estudo da história da farmácia e da
medicina. Segundo Pita (2000, p. 29), “um dos aspectos que mais salienta dos papiros é,
precisamente, a íntima relação entre patologia e a terapêutica”.
Vem do antigo Egito a farmacoterapêutica, utilizada, claro, num contexto de práticas mágico-
religiosas, com setecentos nomes de medicamentos, tanto vegetais, como minerais e animais.
Quanto aos veículos utilizados encontram-se a água, o vinho, a cerveja, o vinagre, o mel, o leite de
diversos animais, diversas gorduras de animais, óleos vegetais como o azeite, o de amêndoas, o de
sésamo e o de rícino. Entre as práticas de cirurgia encontram-se citadas as reduções de fraturas e de
luxações, tratamentos de abcessos, tratamentos oftalmológicos, ações da obstetrícia, da
odontologia.
Conforme Silva (1938), a medicina era exercida pelos sacerdotes que praticavam operações
farmacêuticas como a pulverização, a infusão, a decocção, a filtração, etc., e teriam existido mesmo
locais destinados à preparação dos medicamentos com utensílios como o almofariz, a balança, o
moinho, o tamis e as drogas empregadas se encontravam em caixas de madeira ou em recipientes
de barro, alabastro ou cristal.
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Os egípcios conheciam as formas farmacêuticas como as pastilhas, pílulas, supositórios,
clisteres, inalações, pomadas, unguentos e colírios. Desenvolveram, também, técnicas de fabrico de
vidro e esmaltes. Destaque-se a atenção dada aos cosméticos e práticas higiênicas. Cultivaram a
lavagem das mãos, a utilização das purgas e de eméticos, as depilações, a utilização de perfumes, o
recurso dos banhos. Contudo, uma das técnicas que desenvolveram com grande apuro foi a
mumificação. Para isso é provável que dominassem bem a anatomia.
Apesar das muitas notícias que das civilizações antigas nos chegam e nos
permitem conhecer de maneira bastante precisa as espécies vegetais, os órgãos e
produtos animais e as substâncias minerais que foram utilizadas na sua elaboração,
pouco se sabe de quem se encarregava da sua preparação, dos métodos e
instrumentos empregados ou dos locais onde o medicamento era manipulado.
Talvez as primeiras notícias precisas sejam as que nos chegaram da resplandecente
civilização egípcia, através das descobertas arqueológicas e da leitura reveladora
dos papiros milenários que nos desvendam um conhecimento muito mais profundo
do que até pouco se suspeitava dos vários aspectos da arte de curar (SILVA, 1938,
p. 8).
Na Pérsia, o período de brilho situou-se entre o nascimento de Zaratustra (VII a.C.) e a
invasão de Alexandre Magno (330 a.C.). A medicina daqueles povos era de acentuada carga religiosa
e foram desenvolvidas muitas práticas e regras de higiene, quer da higiene do espírito, quer da
higiene do corpo. No que diz respeito às drogas utilizadas, utilizaram-se das de origem vegetal como
a aloés, assafétida, benjoim, mirra, gálgano, óleos diversos. Os de origem animal, os persas
concediam um significado muito especial, alguns dos quais eram elementos fundamentais nos rituais
mágico-religiosos. Desenvolveram, também, muito os perfumes como unguentos, considerados hoje
como fundadores da cosmética.
Da antiga Índia vêm os textos religiosos, os livros Veda, que começaram a ser redigidos antes
do ano de 1500 a.C. e que influenciaram outros povos, entre os quais os persas, os gregos e os
árabes. Preconizavam que o corpo era constituído por ar, água, terra, fogo e éter e para dar vida ao
corpo era necessária a intervenção dos elementos ar da natureza, fogo do Sol e a Lua, responsável
pela alimentação. A tradição médica indiana se utilizava de drogas do reino vegetal, animal e mineral
para a preparação de medicamentos: açafrão, maná, gengibre, cardamomo, canafístula (vegetais);
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borax, carbonato de amônio, mercúrio, sulfato de ferroso (minerais); cantáridas, víboras, leite, mel,
bílis, gorduras diversas (animais).
O povo hebreu considerava que a doença encontrava-se diretamente relacionada com o
conceito de impureza, em contrapartida, o conceito de saúde relacionava-se com o de pureza. O
tratamento das doenças consistia em práticas religiosoas, suscitando a intervenção de Deus e, ainda,
em práticas higiênicas. A pureza ou impureza não se circunscrevia só ao plano moral, mas também
ao domínio do físico: a menstruação da mulher exigia cuidados higiênicos tendentes a purificá-la, o
contato com cadáveres exigia um banho reparador, a gonorréia podia ser tratada com preceitos
higiênicos, os leprosos também. É o caso da circuncisão, práticas de embalsameamento e
recomendações sobre o comportamento sexual e a vida familiar inscritas na Bíblia, a principal fonte
dos cuidados médico-farmacêuticos do antigo Israel.
A América pré-colombiana estava livre de certo número de doenças infecciosas que afligiam
outras partes do mundo graças ao isolamento geográfico do continente. Alguns transmissores de
doenças eram impedidos de alcançar a América e, por conseguinte, de introduzir e disseminar
infecções virais. Escavações recentes forneceram indícios dos parasitas externos sarna, ácaro e
piolho, e de tipos de vermes como helmintos, nematóides e ancilóstomos, que viviam como parasitas
internos nesses povos. Não se sabe se a malária ocorria – não se encontrou nenhum fóssil de seu
transmissor, o mosquito “Anopheles” -, mas as formas clínicas de treponematose – pururu, bouba e
sífilis – ocorriam em grande extensão, ainda se discute se a sífilis é originária da América. Foram
encontrados esqueletos com vestígios de tuberculose e câncer, e a lepra não era conhecida antes da
chegada dos europeus. A anomalia congênita parecia ser rara, mas a carência de iodina na dieta fazia
com que o bócio fose endêmico.
Guerra (1996, p. 35) esclarece que “o conhecimento da farmácia pré-colombiana provém de
observações antropológicas e relatos de primeira mão feitos por conquistadores e missionários”,
dado que a maioria dos códices maias e mixtecas foram destruídos. Os primeiros comentários se
encontram na carta em que Cristóvão Colombo anunciava a descoberta do Novo Mundo em 1493 e o
interesse por esses medicamentos foi despertado principalmente pelos escritos de Nícolás Bautista
Monardes (1493-1588), médico sevilhano.
Graças à sua paixão por coletar remédios que os conquistadores tinham trazido consigo de
volta a Sevilha como curiosodades, Monardes pôde escrever dois livros, um em 1565, outro em 1571,
com detalhes farmacológicos e descobertas experimentais precisas sobre a eficácia das plantas
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medicinais usadas por esses povos: a raiz de Michoacán e seu uso como lachante, a pedra de benzoar
no tratamentos de envenenamentos, o bálsamo-da-Guatemala ou bálsamo-do-Peru, o bálsamo-de-
Tolu, a salsaparrilha, o guáiaco e o tabaco.
Contudo, “os primeiros relatos escritos da farmácia pré-colombiana provieram do México”,
como por exemplo o chamado “Codex Badianus” de Martin de la Cruz (ibid., p. 39), um médico
natural de Xochimilco, um lugarejo próximo da capital. E a análise mais abrangente e sistemática da
medicina pré-colombiana foi conduzida por Francisco Hernández (1537-1587), médico particular de
Felipe II da Espanha, que nasceu em La Puebla de Montalbán, graduou-se em medicina e foi
encarregado de escrever uma história natural do vice-reino da Nova Espanha. Em 1570 viajou através
dessas vastas áreas, acompanhado por médicos e artistas nativos, recolhendo toda informação que
podia encontrar sobre o uso das plantas medicinais mexicanas.
No Brasil, a medicina tupi foi tornada conhecida por Willem Pies (1611-1678) que, junto com
o naturalista Georg Markgraf, publicou a “Historia Naturalis Brasilae” em 1648 e o “De Indiae
utriusque re naturali et medica” em 1658. Os estudos vieram após Pies acompanhar o príncipe João
Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), governador do Brasil ocupado pelos holandeses, à Bahia em
1638. Esse estudo traz a descrição minuciosa das mais importantes doenças brasileiras: doenças de
Chagas, sífilis, disenteria amébica e várias infecções parasitais; e os remédios mais conhecidos, cujos
efeitos testou por meio de observação clínica e estudos: ipecacuanha, (Cephaelis ipecacuanha), e a
ipecacuanha-preta, (Psychotrioa emetica), para tratar a disenteria amébica. Descreveu quatro tipos
de jaborandi, incluindo uma ilustração do “Pilocarpus pinnatus” e relatou a eficácia desse arbusto no
tratamento de envenenamento por fungo. Também, de acordo com Pies, os tupis comiam fígado de
tubarão para tratar cegueira diurna e noturna e os curandeiros guaranis usavam drogas alucinóginas
da árvore mágica “yuyra pajé” (Myrocarpus frondosus) e do “kurupay” (Piptadenia macrocarpa).
Os chibchas da região da Terra Firme do noroeste da América do Sul foram
os primeiros nativos a serem vistos pelos europeus mascando as folhas de coca ou
hayo (Erythroxylum coca), sendo informados de que aquilo estimulava o cérebro e
aliviava o cansaço e a fome. Os europeus também descobriram o efeito paralisante
do curare (Chondrodendrum tomentosum), e as flechas úmidas de curare eram
muito temidas pelos conquistadores (GUERRA, 1996, p. 40).
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Guerra (1996) escreve que os médicos dos arauaques e caraíbas da região costeira e nos
Andes – já território inca – costumavam colocar-se em transe cheirando pó feito das sementes da
“vilca”, como era chamado o paricá, “Anadenanthera peregrina” na língua quíchua. Também
conheciam os efeitos alucinógenos do caapi, chamado de “ayahuasca” ou “yagé” (Banisteriopsis
caapi), e do chamico (Datura tutula).
A concluir refira-se que das medicinas americanas pré-colombianas, a azteca é considerada
como a mais evoluída, quer do ponto de vista de diagnóstico, quer do ponto de vista terapêutico,
devendo, portanto, ser considerada a mais complexa. Utilizavam a cirurgia – não muito avançada – e
utilizavam outras técnicas terapêuticas que tiravam partido de drogas vegetais, as mais abundantes,
e, ainda, de drogas animais e minerais. Foram encontrados testemunhos da utilização de drogas
como o guáiaco, a jalapa, o óleo de rícino, a salsaparrilha, o peiote, excrementos de animais, urina de
animais, etc., e interesse dado ao emprego de banhos sulfurosos e de vapor tendo em vista quer a
purificação do corpo, quer a purificação da alma. Ressalta-se que todas essas técnicas terapêuticas
tinham sempre associadas um ritual mágico-religioso considerado fundamental em doenças mais
graves.
1.3 Grécia e Roma
1.3.1 Cultura grega
A farmácia gradualmente mudou durante a Antiguidade, e a gama de matéria médica usada
aumentou. O comércio entre a Grécia e o Egito remonta aos tempos homéricos, e inúmeros produtos
que vinham do Egito foram altamente valorizados por muito tempo. Carregamentos inteiros de
estranhas substâncias animais também eram importados: bile de hiena, sangue de crocodilo e
tartaruga, urina de camelo, cabeças de lagartos-pintados e assim por diante.
As práticas médico-farmaêuticas na Grécia antiga ainda apresentavam o que se pode
apelidar de período pré-técnico, isto é, as práticas eram fortemente impregnadas de concepções
mágico-religiosas e predomínio da doença enquanto castigo dos deuses e da ação dos demônios ou
dos espíritos do mal. Entre os deuses da mitologia grega podem ser referidos vários com particular
interesse no campo médico-farmacêutico. “Hecate” era a deusa da magia e detentora do saber
terapêutico das plantas medicinais; também foi conhecida com o nome de “Pharmakis” e nos
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templos que lhe estavam consagrados as sacerdotisas eram apelidadas de “pharmakides”. “Apolo”
era considerado como o fundador da medicina e o médico dos deuses. Era o responsável pela ação
de inúmeras drogas. Sua irmã, “Artemis”, representava poder para reprimir ou curar,
fundamentalmente, sobre as mulheres. “Centauro Chirón”, metade homem, metade cavalo, possuía
o poder de conhecer as virtudes terapêuticas das plantas medicinais. Teve como um dos principais
discípulos “Asclépio” ou “Esculápio”, de existência duvidosa embora se saliente que surge inúmeras
vezes em ilustrações de revistas, livros, panfletos, textos científicos, divulgativos e publicitários,
como uma figura emblemática da medicina e da farmácia.
Em homenagem a Asclépio e em seu culto foram elevados santuários onde eram praticados
os atos médicos mágico-religiosos. Há quem compare estes templos, pelo que lá se exercia e pela sua
localização, a autênticos sanatórios.
Pouco se sabe em contrapartida sobre a preparação dos medicamentos na Grécia antiga, tanto no período pré-hipocrático, nos templos de Esculápio, onde as curas, como nos revela Aristófanes na sua comédia Pluto, se deviam sobretudo aos cuidados dietéticos e a uma verdadeira psicoterapia, como no período hipocrático e post-hipocrático, dominada pelo génio desse homem extraordinário cujas qualidades de observação e cujo raciocínio clínico ainda hoje nos maravilham, mas de cuja terapêutica, sóbria e não muito variada, pouco sabemos, especialmente no aspecto de preparação do medicamento (SILVA, 1968, p. 9).
O período da cultura grega que marca o primeiro despertar real da humanidade para escalar
os muros do entendimento foi o período criativo dos séculos V e IV a. C. que, não só durou pouco por
causa da guerra do Peloponeso de 431-404 a.C. (conflito armado entre Atenas – centro político e
civilizacional por excelência do mundo do século V a.C -, e Esparta – cidade de tradição militarista e
costumes austeros), como abrangeu apenas uma pequena parte da sociedade: somente os homens e
só aqueles que gozavam de direitos políticos e de certa influência econômica. Mas foi sem paralelo
na história ocidental, em campos tão diversos quanto política e ciência, literatura e arte, filosofia e
medicina. Foi em consequência da guerra com a Pérsia (490-449 a.C.) e da exaltação da unidade
nacional que esse conflito fez surgir (com as brilhantes vitórias dos atenienses na terra e no mar),
este período testemunhou o florescimento da democracia ateniense sob Péricles (495-429 a.C.); o
debate filosófico entre sofistas e seu adversário Sócrates (469-399 a.C.); os primeiros grandes
sistemas filosóficos esboçados por Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.); a criação da
História por Heródoto (484-425 a.C. pelo menos) e a análise do passado e do presente por Tucídides
(460-400 a.C.); o nascimento da tragédia e o questionamento do significado da vida e do destino com
Ésquilo (525-456 a.C.), Sófocles (496-406 a.C.) e Eurípedes (485-406 a.C.); e o crescimento das
cidades de Atenas.
Os precursores do período de glória foram os chamados pré-socráticos e ficaram conhecidos
como “filósofos da natureza” por causa de seus esforços para compreender a natureza e o mundo:
Tales (século VI a. C.), Anaximandro (610-540 a. C.) e Aximenes (século VI a. C.), que viveram na Àsia Menor, o matemático Pitágoras (século VI a.C.) e o médico Alcmeão, que viveram na Magna Grécia (ou seja, sul da Itália) (TOUWAIDE, 1996, p. 11).
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No século VI a.C., o médico grego Alcméon de Crotona marcou a diferença e a passagem da
medicina grega pré-técnica para a chamada medicina técnica. Para ele a saúde correspondia a um
equilíbrio das forças interiores do organismo e para restabelecer o estado de saúde normal havia que
restaurar o equilíbrio orgânico tirando partido de forças antagônicas às que haviam provocado o
desequilíbrio no organismo. Para este médico, o cérebro, o coração, o umbigo e os órgãos genitais
eram os quatro órgãos responsáveis pela vida, dando especial relevância ao cérebro que indicava ser
um órgão coordenador do organismo.
“O regime que adoto será o benefício de meus pacientes...” Este voto de juramento escrito por Hipócrates (460-370 a.C.) aplicava-se a todas as pessoas doentes na Antiguidade. Sem dúvida, não foi escrito em nome da igualdade social, um conceito que não existia numa sociedade baseada na escravidão. Na medicina estabelecida por Hipócrates, no entanto, o paciente é um dos três elementos num triângulo formado pelo médico, pelo paciente e pela doença, e a batalha para superar o mal é a mesma para todos (DEBRU, 1996, p. 23).
Hipócrates, o “pai da medicina”, foi membro mais relevante da escola de Cos, uma das
escolas destinadas à formação de médicos na Grécia antiga, juntamente com as de Crotona, de
Cirene, de Cnido e de Eleia. A escola de Cos articulava a observação com a experiência e consequente
reflexão em torno dos problemas do doente. Um dos atributos mais significativos da medicina
hipocrática foi o de humor que se caracterizava pela fluidez, miscibilidade e, ainda, por ser o suporte
das quatro qualidades elementares: o calor, o frio, a secura e a humidade. A escola de Cos
desenvolveu, então, uma teoria segundo a qual existiam no organismo quatro humores: sangue,
pituíta ou fleuma, bílis amarela e bílis negra, sendo seus fundamentos articulados com os quatro
elementos da natureza (Terra, Água, Ar e Fogo) e, ainda, com suas qualidades (secura, calor, frio e
umidade). Os humores ocasionavam os temperamentos. Estes eram o resultado das combinações
existentes entre os humores existindo para os partidários daquela escola quatro temperamentos:
sanguíneo, fleumático ou pituitoso, bilioso e melancólico.
A saúde era o resultado do equilíbrio dos humores (eucrasia); a doença resultava de um
desequilíbrio entre os humores (discrasia) ou de alguma combinação incorreta entre eles. Para a
medicina hipocrática as causas das doenças podiam ser externas ou internas. As causas externas
podiam dividir-se em inanimadas, animadas e psíquicas. As inanimadas tinham como origem a
temperatura, o clima, a alimentação e os venenos. Para as causas animadas apontavam-se os
parasitas de origem animal. Como causas psíquicas, as emoções. As causas internas também tinham
diferentes origens, entre elas, citem-se a raça, o sexo, a idade, o meio, as doenças congênitas,
hábitos e estilo de vida, etc. A medicina era praticada segundo o princípio de que a medicação devia
ser adequada à constituição e à natureza do indivíduo.
A doença comportava diferentes etapas, uma fase do começo, uma fase do incremento, o
clímax e a resolução. Cada momento na marcha da doença era propício a um diagnóstico e aplicação
do respectivo tratamento. Para isso era fundamental a observação clínica que deveria ser
pormenorizada, rigorosa e eficiente. Para os hipocráticos, a natureza contém em si a força suficiente
para curar as doenças e ao médico compete seguir a vontade da natureza. O médico é apenas seu
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servidor e intérprete. Deste modo, a medicina privilegiava as dietas alimentares e a higiene para o
restabelecimento da saúde uma vez que estes meios eram veículos da própria natureza.
Hipócrates considerava o excesso de humores como um dos principais responsáveis pelo
aparecimento de doenças. Logo, uma das principais terapias era a expulsão desses humores do
interior do organismo por quatro vias utilizáveis: pela boca, pelo nariz, pelo reto, pelas vias urinárias
e, ainda, através das sangrias. Contudo, toda esta terapia exigia um trabalho preliminar, era
necessário sujeitar o doente a uma recuperação das suas forças conseguida à custa de uma dieta
apropriada. Depois havia de escolher a via mais adequada à expulsão e proceder à terapêutica
medicamentosa mais adequada.
Entre as substâncias medicamentosas utilizadas por Hipócrates contam-se: a escamónea e
heléboro (utilizados como purgantes); o alho, a cebola, o melão, a melancia, pepino e funcho
(diuréticos); bebidas quentes, bolbos de narciso, farinha cozida (sudoríficos); heléboro branco,
hissopo (eméticos); dormideira, mandrágora, meimendro e beladona (soníferos). Indicou, ainda, para
diferentes fins terapêuticos, diversas bebidas como o vinho, o hidromel, o oximel, o cozimento de
cevada, leites variados (de mulher e de burra), etc.
Com Hipócrates as doenças deixam de ser interpretadas como um mal dos deuses, como um
produto da ira divina ao propor uma nova abordagem da doença e consequente tratamento. O
mundo da medicina, então, afastou-se da tradição ancestral e desenvolveu uma teoria e prática
racional que tentou entender os fenômenos da vida e da morte, da doença e da saúde, sem recorrer
a forças misteriosas e incompreensíveis. Dando as costas aos métodos de tratamento usados até
então, os médicos se esforçaram por explicar a natureza e a atividade das drogas, por controlá-la e
regular seu uso, em suma, por trazer a terapia com drogas e as próprias drogas para o âmbito do
mundo da ciência, do pensamento racional.
Importante acrescentar que, na Grécia antiga, a distinção entre médicos e farmacêuticos não
era uma realidade. Como veremos, só muitos séculos mais tarde viria a ser feita esta divisão de
tarefas. Contudo, refira-se que entre os diversos profissionais, encontram-se os seguintes:
Rizótomos – tinham por função colher e conservar as drogas, fundamentalmente as de origem vegetal, não tendo por objectivo a sua transformação em medicamentos; pharmacopolas – a sua função era comercializar as drogas e, ainda, cosméticos, venenos e produtos abortivos; pharmacopeos – dedicavam-se à preparação e à administração de venenos; a venda de venenos, drogas e medicamentos mágicos estava a cargo dos migmatópolas; a obtenção de perfumes estava reservada aos miropolas e ripopolas; os pharmakeis e agirtai eram os curandeiros e charlatães que andavam de mercado em mercado a vender seus produtos (PITA, 2000, p. 50).
Uma inovação farmacêutica introduzida pelos gregos foi a indicação das matérias primas
através do seu peso e não do seu volume. Como excipientes, utilizaram o vinho, misturas de vinho e
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água, de vinho e mel, de vinho com leite e, ainda, cervejas, tisanas de cereais e legumes, melitos e
oximelitos. Na preparação de medicamentos utilizavam produtos de origem vegetal (mandrágora, o
meimendro, a beladona, a cicuta, a cila, a dormideira, a genciana, a pimenta, o açafrão, a ruda, o
aniz, a couve, a mostarda, alhos, centáurea, eufórbio, cinoglosa, artemísia, etc; de origem animal (a
gordura, o soro e o leite de diversos animais e, ainda, animais inteiros como as cantáridas e
minhocas); e do reino mineral (sais de cobre – sulfato de cobre em colírio , anidrido arsenioso,
sulforeto de arsénio – como depilatório -, enxofre - em fumegações -, óxido de zinco, carbonato de
sódio, carbonato de potássio, sal, etc. No que diz respeito às formas farmacêuticas, citem-se as
pílulas, bolos, electuários, pastilhas, unguentos, pomadas, ceratos, pomadas oftálmicas, colírios,
supositórios e clisteres.
O valor que os gregos deram aos perfumes quer à produção, quer à utilização, foi pioneira.
Chegavam a estimular a vinda de muita mão de obra especializada neste domínio. Utilizavam vários
tipos de perfumes resultantes da mistura de diferentes essências e obtidos por diferentes técnicas
operatórias. São conhecidas várias fórmulas, entre eles o megalium (constituído por uma fórmula
contendo cálamo, junco, cássia, bálsamo e resina de coníferas); narcisium (formado por uma mistura
de flores de narciso em azeite, com gomas resinas e aromas diversos); crocinum (composto por óleo
de açafrão); e, ainda, muitos outros como o amaracus; Iris; ciprino; telinum; pandalium;
panathrnaicon, etc. O óleo de murta, obtido por meio da maceração dos seus frutos em azeite,
adicionado de frutos de cipreste, casca de romãs, cálano e lentisco, era o perfume com maior
popularidade, provavelmente, pela sua eficiência e pelo seu baixo custo.
No que diz respeito aos cosméticos, utilizavam o rizoma de açucena para combater as rugas,
as manchas de pele e a caspa. As argilas eram um recurso no combate às rugas. A resina de lentisco
era utilizada como dentrífico.
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1.3.2 Doutrinas médicas romanas
Inicialmente foram os escravos os que aprenderam a medicina com os gregos uma vez que o
exercício da profissão médica era considerado como inadequado para qualquer cidadão romano. O
saber grego influenciou as doutrinas médicas romanas e novas escolas foram fundadas: foi o caso da
escola Metódica – fundada por Temisón de Laodicea na segunda metade do século I a.C., que teve
como principal médico Sorano de Éfeso, considerado como o principal médico da Antiguidade de
doenças de senhoras -; da escola Pneumática – fundada em meados do século I d.C. e impulsionada
por Ateneo de Attalia -; e da escola Eclética – fundada por Agatino de Esparta, dicípulo de Ateneo de
Attalia. Os médicos, progressivamente, ganharam prestígio e a atividade médica passou a ser vista de
uma forma diferente, sem desconfiança quando o imperador Júlio César decretou, no ano de 46, a
cidadania a todos os médicos gregos.
Em Roma, o “archiatro” tinha por função prestar dentro das cidades a assistência médica e
farmacêutica a quem necessitasse e, à semelhança do que havia acontecido na Grécia, não existia
separação entre atividade médica e a arte farmacêutica. Era no estabelecimento denominado
“medicatrina” ou “yatreion” que prestavam cuidados médicos à população e onde tinha lugar,
também, a preparação e cedência de medicamentos ao público.
O lugar de destaque na medicatrina era, precisamente, o da preparação de medicamentos –
espaço reservado à parte técnica, com diversos utensílios utilizados na transformação das matérias-
primas em medicamentos, recipientes destinados à sua conservação e armazenamento.
Também durante o Império Romano, os farmacopolistas supriam os indivíduos e os médicos
com “matéria médica” e remédios prontos para usar. O influxo dos materiais farmacêuticos vindo de
muito longe estimulou um comércio varejista muito próspero.
Na cidade, comerciantes que se especializaram nesta área forneciam toda sorte de drogas a
preços variados. Estes farmacopolistas exibiam suas mercadorias ao lado dos vendedores de
perfumes e especiarias nos mercados públicos ou em bairros mais pobres. Havia pregão das vendas
acompanhado com demonstrações. Muitos médicos não preparavam mais seus medicamentos,
preferiam obtê-los dos fornecedores, alguns dos quais estavam longe de ser meros comerciantes e
haviam adquirido uma tremenda reputação por seu conhecimento farmacêutico. Evidentemente, os
melhores médicos, e os mais ricos, preferiam obter diretamente os ingredientes para seus remédios.
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Galeno armazenava grandes estoques de matéria-prima e viajava para obter pessoalmente as
substâncias nos lugares em que eram produzidas. Essas viagens não eram fruto do acaso, mas
baseavam-se nas grandes obras de Dioscórides, cujos pormenores geográficos, botânicos e
geológicos Galeno estava ansioso por conferir. Galeno empreendeu longas expedições científicas a
Lemnos, Chipre, Lícia e Palestina.
Os utensílios utilizados em Roma eram os almofarizes, piluladores, tamises, cápsulas, bancas
de mármore para a preparação de pomadas, copos, vasilhas, balanças de braços iguais, balanças
romanas – esse sistema de pesos manteve-se em vigor na farmácia até o século XIX. As caixas de
madeira e de metal eram para o acondicionamento de matérias-primas vegetais e para os
medicamentos líquidos, pastosos e perfumes, eram utilizados recipientes de vidro, de barro cozido,
de osso, de prata, de bronze e de estanho.
Nas operações farmacêuticas, assinala-se a introdução dos sinapismos e dos esparadrapos.
Merecem referência especial os colírios produzidos em grau de perfeição considerável: os secos
tinham como princípios ativos o óxido de zinco, podendo apresentar a forma de um pó seco; colírios
líquidos, sob a forma de um líquido espesso que era conseguido à custa de adição de goma; e colírios
sólidos, com um modo de preparação ao adicionar-lhe água, vinho ou outros líquidos e vinham
gravados seu nome e o nome do médico que os havia produzido.
Uma palavra especial para as normas de higiene: os romanos davam atenção às canalizações
de água de consumo, ao combate às epidemias por meio de medidas relativas à secagem de
pântanos, ao impedimento e à atribuição de sanções a todos os comerciantes que vendessem
alimentos impróprios para consumo, à utilização frequente de fumegações como meio de
desinfecção de locais onde tivessem permanecido doentes e, os romanos, deram especial valor às
termas e aos banhos. Os membros das classes mais abastadas tomavam até dois banhos
diariamente.
No que diz respeito à cosmética, utilizavam diversas matérias-primas provenientes dos três
reinos da natureza e com aplicações diversas, sendo muito vulgar a aplicação da lanolina. Eram
difusos os limites entre o que tinha finalidade cosmética e o que era terapêutico: os dropax eram
emplastos depilatórios de óleo e pez e aos quais se adicionavam pós de diversa natureza,
nomeadamente pimenta, sal e enxofre. Os ceropissus eram depilatórios constituídos por ceras,
resina de lentisco, pez e terebentina. Os unguentarium eram os estabelecimentos destinados à
preparação e comercialização de perfumes, muitos deles provenientes de diversos países árabes.
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Pelo impacto de suas obras e, ainda, pela projeção que assumiram na história das ciências da saúde,
alguns vultos mais significativos: Aurélio Cornélio Celso que viveu no século I d.C.; Pedacio
Dioscórides, nascido na Sicília e viveu no século I da era cristã; e Galeno (130-200 d.C.), nascido em
Pérgamo, na Ásia Menor - hoje território da Turquia.
Celso escreveu, entre os anos 25 e 45 da era cristã, uma obra complexa que compreendia
diversas áreas do saber médico-farmacêutico: História da medicina e das escolas. Generalidades;
Sintomas; Doenças de todo o corpo; Doenças de cada uma das partes do corpo; medicamentos;
doenças exteriores próprias de cada parte do corpo; cirurgia; ossos, fraturas e luxações, incluindo
uma parte relativa aos medicamentos. Considerava que as doenças deveriam ser classificadas de
acordo com o tratamento e tratadas, algumas delas, com dietas, outras com medicamentos e,
finalmente, um terceiro grupo de doenças, as que necessitavam de intervenção cirúrgica. Celso deu
especial valor à alimentação, ao exercício físico. À vida sexual, ao trabalho e aos banhos. Preconizou
uma divisão dos medicamentos em simples – os diuréticos, purgantes, sudoríferos, narcóticos, etc. -,
e compostos – os trociscos, pílulas, gargarejos, emplastos, unguentos, colírios, antídotos, etc.
Dioscórides era médico do exército romano e mostrou conhecer diversas técnicas
operatórias conducentes à obtenção de determinadas preparações químicas, referindo pela primeira
vez diversos produtos que até então não haviam sido mencionados por outros autores. Deu especial
destaque às drogas de origem vegetal e sua conservação, embora tenha realizado e publicado
estudos dos produtos provenientes dos três reinos da natureza. Achava que a qualidade do terreno
podia ter influência nas propriedades dos vegetais e as condições de conservação podiam afetar as
qualidades medicinais da planta. Aconselhava, por isso, materiais diferentes para drogas diferentes:
para as sementes, o papel; para as flores, recipientes de madeira; para as substâncias úmidas,
materiais metálicos, de cristal, de osso, de louça ou de barro.
Galeno é um marco fundamental na história da farmácia e das ciências. A farmácia galênica,
tal qual como nós hoje a entendemos, é a área das ciências farmacêuticas que diz respeito ao estudo
dos medicamentos, desde sua concepção até à transformação em forma farmacêutica: foi o primeiro
a olhar o medicamento e a estudá-lo de forma racional. “Mais ou menos atacada e mais ou menos
adaptada de região para região ou de acordo com as perspectivas de diversos autores, o certo é que
no essencial ela se conservou por mais de milênio e meio!” (PITA, 2000, p. 67).
Galeno aumentou o arsenal terapêutico até então conhecido e preconizou uma farmacologia
própria à luz da qual pretendia explicar a ação dos medicamentos. Organizou e classificou
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racionalmente os fármacos em três classes: medicamentos que atuam sobre uma qualidade
elementar; medicamentos que atuam sobre várias qualidades elementares, sendo, por isso, dotados
de uma ação principal e de outra ação secundária; e medicamentos dotados de uma ação específica
(purgantes, antídotos, etc.). Entendia que, para se compreender a problemática medicamentosa, era
fundamental abordar diversos pontos como a qualidade dos medicamentos, a quantidade necessária
ao organismo para exercer a ação, o modo de preparação, a via de administração e o tempo de
aplicação do medicamento. E os medicamentos não atuavam só pelas suas características, era
necessário atender a um contexto próprio e condições de aplicação: correta prescrição e adequado
modo de administração. Para isso o médico deveria conhecer com pormenor o organismo humano.
Para Galeno, o conceito de medicamento é, de facto, o que nós temos
hoje. Para ele, no medicamento coexistem três constituintes fundamentais: as
substâncias que conferem as propriedades terapêuticas ao medicamento e seus
auxiliares; os produtos que exercem uma acção correctiva de determinadas
características organolépticas; e, finalmente. Os excipientes onde as substâncias
activas eram incorporadas e, que, por isso, facilitavam a administração dessas
substâncias activas (PITA, 2000, p. 65).
Nos seus tratados inscreveu 473 fármacos de origem vegetal, alguns produtos de origem
mineral e, ainda, um número reduzido de substâncias de origem animal. As propriedades
terapêuticas destes fármacos encontravam-se distribuídas por um vasto leque. Assim, encontram-se
purgantes, eméticos, adstringentes, diuréticos, emenagogos, etc. De resto, esta atenção dada aos
produtos vegetais reflete a tradição vigente onde os produtos vegetais eram dotados de ações
terapêuticas mais eficazes do que os dos outros grupos. Entre os produtos de origem mineral
utilizados apenas em medicamentos de uso externo, citem-se o sal, pirite, jaspe, malaquite, gesso,
etc. As substâncias de origem animal, indiquem-se o queijo, o leite, o soro, a manteiga, a bílis, a
gordura, os ovos e a carne de víboras. Inscreveu em sua obra, quanto a formas farmacêuticas,
cozimentos, infuzões, pastilhas, electuários, pós, supositórios, enemas, cataplasmas, clisteres anais,
clisteres vaginais, linimentos, cosméticos, colutórios, etc. Seguiu a tradição vigente.
Urina e excremento de animal eram dois dos remédios mais amplamente usados na
Antiguidade e Galeno aconselhava os que não tinham outra opção a usar sua própria urina para
cuidar de feridas nos pés (DEBRU, 1996). O sucesso desse método se devia às poderosas
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propriedades detergentes da urina, as mesmas propriedades que eram exploradas para alvejar
tecidos. A urina era certamente eficaz, mas era limitada a pessoas cujo corpo, e decerto também a
mente, era rijo, ou seja, escravos e camponeses. A abordagem para tratar almas delicadas era
bastante diferente.
O uso da farmácia excrementícia não se limitava às pessoas do campo, era usado em citadinos
e até em pacientes muito distintos, embora a repugnância o fizesse camuflar seu produto com
excipientes como o mel. Cataplasma de esterco de bode era usada para curar tumor renitente de
joelho e excremento de pombo aplicado no couro cabeludo como tratamento ressecante a evitar a
ulceração do pulmão para tratar uma dama da alta sociedade que tossia e cuspia sangue.
Apesar de zombar de um de seus colegas por querer aliviar uma criança
constipada usando supositórios feitos de excremento de rato, Galeno
tranquilamente admitia ter usado o mesmo tipo de medicamento para enorme
benefício de seus pacientes – “Tratado sobre misturas e propriedades dos simples,
X, 19” (DEBRU, 1996, p. 26).
Para Galeno, as doenças desenvolviam-se no organismo desde que este se mostrasse
predisposto à sua propagação. E, nesta sequencia, indicava que havia três causas possíveis para o
desenvolvimento de patologias: externas – os ventos, o Sol, os alimentos impróprios, os venenos,
etc.; internas – a constituição interna do organismo; e conjuntas – apontava aquelas que resultavam
de uma articulação entre causas internas e externas – um cálculo que se produzia na urina era um
exemplo de uma doença provocada por uma causa conjunta.
Para restabelecer a saúde no organismo, colocava à disposição dos médicos um rol variado de
opções; preconizava o recurso à cirurgia; estabeleceu uma adequada dietética, muito suportada nas
doutrinas hipocráticas; organizou uma farmácia e estabeleceu parâmetros farmacêuticos até então
nunca vistos. A doutrina humoral foi o pano de fundo de sua terapêutica e era, também, defensor
dos regimes dietéticos e de um adequado exercício físico que considerava fundamentais para
assegurar a saúde do corpo.
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Galeno desenvolveu, ainda, técnicas e ações destinadas a evacuar fluidos do interior do organismo
pois, em alguns casos, pensava-se que era fundamental essa evacuação, podendo ser pertinente
sempre que se estivesse na presença de humores pecantes. Assim, desenvolveu e preconizou a
aplicação de purgantes, eméticos, sangrias, clisteres, ventosas, diuréticos, etc. Entre os purgantes
mais recomendados encontramos coloquíntidas, cila, óleo e sal, aloés e óleo de rícino; como
eméticos recomendava o heléboro, o mel e diversas misturas nauseosas; como diuréticos sugeria o
aipo e a salsa.
A obra de Galeno fez-se sentir com grande e incontestável intensidade e deve ser considerada
como o último capítulo da medicina clássica, onde eram evidentes as influências do aristotelismo e,
também, a inspiração hipocrática.
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2 As práticas-médicas na Idade Média
Considera-se a Idade Média, como o período que medeia entre a queda do Império Romano
no Ocidente, em 476, e a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Mas, como mesmo cita
Le Goff (2006, p. 54), “o homem de 1492 sabia, ao deitar-se para dormir no dia 31 de dezembro na
noite da Idade Média, que acordaria no dia seguinte, 1º de janeiro de 1493, na manhã do
Renascimento?”, ou então, o homem do século V saiu repentinamente de um período para entrar
noutro após a queda do Império Romano? O pensamento antigo perdura, como bem veremos no
campo médico-farmacêutico desse período.
Recortando, a expressão e a noção de “Idade Média”, (LE GOFF, 2006, p. 74), surgiu no
século XVI, baseada no trabalho de Petrarca (*1304 +1374), “pai do humanismo”, e nos humanistas
italianos que julgavam que estavam saindo de um período sem nome, de um intermédio. Como
muitos humanistas, ele pretendeu reencontrar a Antigüidade em toda a pureza, uma vez que a
Antigüidade era a idade “alta”, da qual os homens não deixaram de se afastar. Petrarca tinha a
impressão de que um verdadeiro Renascimento estava surgindo, livre do peso do passado, livre das
críticas acumuladas ao longo do tempo. Era a reforma por meio de um retorno às fontes não
corrompidas das escrituras. Era a relação da Antigüidade, por um lado, e o futuro, por outro lado.
Continuando, desde o século VII, ao cair Alexandria nas mãos do poder Islâmico, Bizâncio
constituiu-se no centro mais importante da língua grega. Aponta-se para a cultura bizantina a
existência de dois períodos: o primeiro, anterior a 642, e que culmina com a conquista de Alexandria
pelos árabes; o segundo que corresponde ao período posterior a essa conquista e que culmina com a
tomada de Constantinopla. Durante o segundo período, as práticas médicas bizantinas (642-1453)
mostram-se menos pujantes, e a literatura médica passou à sinopse didática, a um enciclopedismo
por extensão e acumulação por Psellos (1018-1078), Seth e Actuario (séc. XIV). Do ponto de vista
farmacêutico, Psellos deixou-nos vários textos sobre propriedades das pedras preciosas, dos
alimentos, bem como pequenos receituários. De Actuário herdou-se a publicação, na Europa em
1539, de matéria médica, farmacêutica e terapêutica. Myrepsos (séc. XII-XIII) legou-nos algumas
extensas listas de receitas médicas, matérias-primas e formas farmacêuticas.
Importa falar do primeiro período cuja obra de Galeno ainda se fazia sentir com muita
intensidade, embora se tenha perdido rapidamente suas propriedades criadoras. Alguns médicos
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fizeram-se salientar: Oribásio (325-403) estudou medicina em Chipre, foi apontado como a figura
com que se cumpre a transição entre medicina helenística e a medicina bizantina; Célio Aureliano
(350-400), seus trabalhos foram escritos em latim e funcionou como uma obra divulgativa durante a
Idade Média; Aecio (520-560), sua obra resulta de uma compilação de autores anteriores,
fundamentalmente, Galeno, e versam temas diversos da medicina como a pneumonia, epilepsia,
raiva, bócio, lepra, doenças dos olhos, afecções dos ouvidos, nariz e garganta, etc.; Alexandro de
Tralles (525-605) desenvolveu uma intensa atividade médica após sua formação científica e sua obra
mais significativa foi impressa pela primeira vez em Lyon, em 1504; Paulo de Egina (625-690) estudou
medicina em Alexandria e escreveu vários textos médicos, incluindo capítulos de toxicologia.
Saliente-se a obstetrícia e a cirurgia que foram suas áreas de maior intervenção e que com este autor
a cirurgia antiga teve seu principal elemento de transição à medicina árabe e cristã dos séculos
seguintes.
2.1 A farmácia árabe
Sabe-se que a criação da Farmácia se deve aos árabes e que foram eles
que pela primeira vez a separaram da medicina. (...) os árabes aperfeiçoaram
aparelhos e métodos, devendo-se-lhe muitas inovações na técnica farmacêutica.
Foram além disso os introdutores dos célebres potes de farmácia que, utilizados
durante séculos, haviam de vir a ser das peças de faiança mais estimadas em todos
os museus do mundo. (...) Não conhecemos o caráter que as farmácias árabes
dessa época apresentariam, mas é natural que não diferissem muito daquelas que,
alguns séculos mais tarde, existiam no mundo árabe e de que podemos encontrar
um aspecto na miniatura de um códice do século XIV(...). A farmácia abria para a
rua, da qual se encontrava separada apenas por um balcão, ficando os clientes no
exterior. Dentro da farmácia, alinhados em prateleiras, viam-se potes de faiança,
de formas diversas e apresentando todos eles motivos decorativos que fazem
lembrar aqueles que são característicos dos exemplares de faiança hispano-árabe
que nos séculos XIV e XV se encontravam na península (SILVA, 1968, p. 11-12).
Os árabes dedicaram especial atenção à ação dos medicamentos, bem como à relação entre
ação terapêutica dos medicamentos e os graus de qualidade. Utilizaram como matérias primas para a
preparação medicamentosa substâncias de origem vegetal, animal e mineral. No que diz respeito às
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primeiras, houve notória influência das drogas provenientes do extremo oriente e persas: o sene, a
cânfora, o sândalo, o ruibarbo, a cássia, os tamarindos, a noz moscada; quer ainda de drogas
recomendadas pelo Corão: os alhos, as cebolas, o cedro, o maná, etc. Muitos dos produtos referidos
e utilizados pelos árabes não eram conhecidos na Europa.
Os medicamentos de origem animal podem-se citar, entre outras, o âmbar, almíscar, leites
de diversos animais, etc. Os minerais, o ácido sulfúrico, o ácido acético, o sublimato corrosivo, o
carbonato de potássio, o nitrato de prata fundido, o ouro, a prata, o mercúrio, pedras preciosas
diversas, etc. A destilação era valorizada pelos árabes, dado o tipo de das matérias-primas utilizadas.
No que diz respeito às formas farmacêuticas, introduziram inovações ou formas antigas produzidas
com técnicas e com matérias-primas até então desconhecidas na Europa: o açúcar na preparação de
formas farmacêuticas – conservas e confeições-, pratearam e douraram as pílulas. Era vulgar entre os
árabes a utilização de pomadas, unguentos, ceratos, emplastos, colírios, sabões, méis, oximéis,
supusitórios, etc.
Para a farmácia árabe os medicamentos só deveriam ser utilizados quando as dietas e a
alimentação não cumprissem sua função de restabelecimento do organismo. Mesmo quando se
empregassem medicamentos, estes deveriam ter a maior semelhança com os alimentos, ocupando
aqueles uma zona intermediária entre os alimentos e os venenosos.
Outro aspecto que importa salientar é o desenvolvimento da farmácia hospitalar. A ela foi
atribuído especial valor, pois só assim se compreende que nos hospitais os árabes tenham criado
enormes farmácias hospitalares para onde eram enviadas as receitas prescritas pelos médicos e nas
quais se produziam os medicamentos. Muitos medicamentos eram produzidos de acordo com os
“grabadines”, textos que se devem considerar como precursores das farmacopeias ocidentais e que
eram códigos farmacêuticos pelos quais os farmacêuticos eram obrigados a produzir os
medicamentos, pois, caso não o fizessem, ficavam sujeitos a sanções impostas pelas autoridades.
Alguns dos nomes mais significativos das práticas médico-farmacêuticas árabes: Rhazes (854-
925), natural da Pérsia, estudou medicina em Bagdad, na sua obra destaca-se o fato de ter colocado
a alquimia (química) ao serviço da medicina; Mesué (924-1015) estudou medicina em Bagdad, foi
médico do califa, no Cairo e deu particular destaque às matérias-primas necessárias à preparação
dos medicamentos, impressa pela primeira vez em Veneza em 1471, sua obra é suportada nas
doutrinas galênicas; Al-Buruni (973-1051), pai da farmácia árabe, estudou matemática e astronomia,
escreveu em sua obra 1197 drogas de origem animal, vegetal e mineral, servindo-se bastante de
23
observações e da própria experiência pessoal; Avicena (980-1073) era natural de Afshana, teve sua
obra traduzida em latim e ditado em Milão em 1473 e foi uma das que maior impacto teve na
medicina ocidental e uma das que se mostrou mais influente no ensino e na prática médica da
medicina europeia; Abenguefit (1008-1075) era natural de Toledo, estudou medicina e foi
influenciado pelos textos de Aristóteles, Dioscórides e Galeno, teve sua notável obra farmacológica
traduzida em 1531 e impressa em Estraburgo; Avenzoar (1092-1162) era natural de Sevilha e foi um
dos autores mais seguidos na Península Ibérica, designadamente em Espanha, foi bastante
influenciado pelas ideias galênicas e valorizou para algumas patologias a observação clínica; Averroes
(1126-1198), médico árabe nascido em Córdoba, estudou medicina em Sevilha e foi alvo de críticas e
condenações tanto por parte do islamismo como por parte do cristianismo pelas ideias que divulgava
parecerem opostas ao problema da criação, bem como a imortalidade da alma; Maimónides (1135-
1204) natural de Códoba, foi discípulo de Averroes e deixou obra escrita no campo da medicina e da
farmácia; Ibn Al-Baytar (1190-1248) estudou medicina em Sevilha e deixou grande compilação sobre
as virtudes dos remédios e alimentos simples conhecidos; Abulcasis era natural de Córdoba, viveu no
século XI, abordou em sua obra a química farmacêutica, com pormenor e rigor, bem como a
bromatologia e a dietética; Ibn Al-Nafis (1210-1288) era natural de Damasco onde estudou medicina,
deixou obra onde descreve a circulação pulmonar antes de Servet, que o fez em 1546.
A literatura farmacêutica em árabe é extraordinariamente vasta. Pode dividida em duas
partes principais, cada uma delas representando um campo estritamente demarcado. Uma parte, a
farmacogsia, lida com os simples – os de origem vegetal, animal e mineral -, a outra parte consiste de
dispensatórios e formulários médicos – escritos sobre compósitos ou agentes compostos.
A maioria dos simples é de origem vegetal, mas também cereais, legumes e frutas: quase
tudo o que era ingerido como alimento à época. Por exemplo, acerca do arroz escreveram que o
branco fortificava o estômago sem causar excessiva constipação; cozido no leite era útil para tratar
abrasões e úlceras do revestimento estomacal; moído, embebido em suco de melão e aplicado à
face, eliminava manchas vermelhas e pretas. A alface tinha um efeito benéfico sobre o sangue,
satisfazia a sede, reduzia o calor do estômago e o desejo de intercurso sexual (particularmente as
sementes), e era útil até mesmo para tratar picadas de escorpião, abelha e cobra. Acreditava-se que
o suco leitoso amaciava úlceras corneais e restaurava a elasticidade de pálpebras enrijecidas.
O limão também era usado como planta medicinal. A casca e os caroços, tanto quanto a
polpa e o suco, eram considerados como tendo efeitos específicos sobre o corpo. O limão era
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transformado em unguento e aplicado à pele para refrescar a cútis e limpar manchas. Acreditava-se
que também curava febre e diarreia biliosa, embora fosse prejudicial aos seios, nervos e
particularmente para o estômago, pois causava cólica. A melhor maneira de comer o limão era com
casca e com mel, e inteiramente mastigado (num estômago vazio) porque tinha de ser
completamente digerido antes que qualquer outra coisa pudesse ser comida.
O aloés era apreciado por seu odor forte e usavam-no como perfume e fumegante (contra
piolhos, por exemplo). Era considerado eficaz contra diversos males, com sua ação moderadamente
adstringente e fortemente purgativa, limpava a fleuma do estômago, da cabeça e das articulações,
eliminava a congestão sanguínea no fígado e curava fístulas e úlceras malignas do reto e do pênis.
Também promovia a excreção da bile amarela e, ao purificar a cabeça e o cérebro de sucos e vapores
prejudiciais, fortalecia os nervos ópticos e aguçava a vista.
A madrágora (ou “maçã de satã” como os árabes a chamavam) era objeto de diversas
superstições porque se achava que suas raízes tinham semelhança com a forma humana. Seu efeito
analgésico era particularmente apreciado, e era por isso aplicada a ferimentos e usada como
analgésico até em operações demoradas e dolorosas.
Os medicamentos de origem animal dependiam da qualidade e do preparo. Com os peixes, o
habitat tinha de ser levado em conta porque ele afetava as qualidades da carne e, portanto, também
suas propriedades nutritivas e terapêuticas. Os peixes frescos promoviam a formação de fleuma e
ímpeto sexual. Preparado com vinagre era bom contra icterícia. Peixe colorido era bom para ciática e
úlceras crônicas do reto quando ministrado como enema.
Os árabes também usavam as sanguessugas para extrair sangue de órgãos onde o sangue
ficou podre e, também, para tratar eczemas de sarna, exsudantes ou de icterícia, erisipela e uma
sensação de ardor no nariz.
Partes isoladas e órgãos de animais também eram considerados de efeito terapêutico: para
dores, emersão dos membros em água salgada na qual se cozinhou sangue de raposa; para tratar
tosse, o pulmão da raposa tomado seco e pulverizado; cérebro de lobo misturado com água e azeite
e esfregado na pele para todas as enfermidades internas e externas; fígado de lobo para reduzir
dores de fígado, e o excremento do animal, misturado com gordura pimenta do reino e mel para
tratar cólicas; cérebro de avestruz, misturado com gordura de bezerro, potassa e mel, para aliviar
dores uretrais e facilitar a micção; ovo de avestruz, misturado com gordura de bezerro, potassa e
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mel, para tratar doentes mentais se ingerido ou colocado sobre a cabeça; carne de cobra, além como
antídoto, servia para ferimentos malignos e lepra; sua gordura era tomada para tratar hemorroidas,
etc.
A maioria dos minerais era pulverizada ou incinerada e suas cinzas então trabalhadas, ao
passo que os metais eram reduzidos a limalhas e misturados com água. O ouro fortalecia a vista
quando u sado para fazer o estilete com que eram aplicados os colírios, a limalha do mesmo
metal ingerida com água era considerada boa para males cardíacos, melancolia e epilepsia. A pedra-
pomes era utilizada em pós-dentifrícios para limpar a boca e os dentes, e por seus efeitos
adstringentes sobre a gengiva, mas também para acelerar o tratamento de feridas, remover cabelos
e raspar pele eczematosa. Pedras vermelhas como o coral, a cornalina, o rubi e, sobretudo, a
hematita eram ministradas no tratamento de úlceras supuradas, hemorroidas e dores menstruais.
Acreditava-se que o coral evitava o crescimento do baço. A pérola dissolvida em limão ou vinagre e
aplicada às partes leprosas do corpo ou, em solução com óleo de violeta, inalada através do nariz
aliviava enxaqueca e dor de cabeça crônica. Fora aquelas que eram usadas em amuletos como o
diamante, a safira e a esmeralda.
Quanto aos fluídos, acreditava-se que o leite era útil em diversas doenças. Até o leite
materno era muito popular como remédio, sendo prescrito em diversas doenças sob condições
muito precisas dependendo se a mulher que o fornecia tinha dado à luz um menino ou uma menina
e se essa criança era primogênita. Os óleos, tanto isolados quanto combinados, eram usados em
vários medicamentos. Incluíam-se aí os azeite, o óleo de amêndoas, de gergelim e de nozes, o
famoso bálsamo e extratos oleosos de ovos, mostarda, diversos tipos de frutas e legumes, ervas e
flores. Usava-se também o mineral e de cobra. Vários medicamentos continham mel para melhorar o
sabor e, acreditavam, tinha propriedades preservativas. Até diferentes solos foram descritos por
diversos autores como trapêuticos: terra selada de Chipre e da Armênia para úlceras ardidas e gota;
quando misturadas com vinagre e usado como colutório, inibia a menstruação e purificava úlceras
bucais malcheirosas. Era, também, usado para tratar definhamento porque secava a produção da
doença nos pulmões.
Resinas de borracha e vários tipos de piche, particularmente a “mumia”, que era uma forma
de betume que ocorria na Pérsia e na Ásia Central, quando ingerida em pequenas quantidades, era
boa para curar fraturas ósseas. Ainda no século XVIII, escreviam acerca da “munia” de maneira muito
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semelhante aos árabes, como era preciosa e eficiente para tratar fratura óssea. No século XIX, essa
substância ainda estava sendo usada na Europa para tratar fraturas e como um antídoto.
A literatura farmacêutica dava particular importância aos antidotários e livros sobre venenos,
que listavam incontáveis substâncias tóxicas e seus antídotos. Além desses livros, que eram, de fato,
farmacopeias, grande número de obras gerais ou especializadas também continham capítulos sobre
prescrições de drogas e glossários de remédios.
2.2 Medicina e farmácia monástica
A medicina desenvolvida na Europa medieval entre os séculos V e XI situa-se num meio
termo entre o que a medicina havia sido e o que estava implantado noutros cantos geográficos,
nomeadamente entre os árabes e na Grécia antiga. A medicina medieval praticada entre esses
séculos foi chamada por medicina monástica devido à influência que se fez sentir pelos conventos,
mosteiros e ordens religiosas, em virtude da emergência do cristianismo – em 529, São Bento fundou
o convento de Monte Cassino e protagonizaram, a partir daí, um papel relevante no domínio das
ciências médicas e farmacêuticas.
Assim foi, em primeiro lugar, porque os mosteiros preservaram textos antigos, manuscritos,
muito deles com particular interesse no campo médico-farmacêutico; em segundo lugar, porque
aquelas unidades religiosas, pela sua vocação assistencial, começaram a desenvolver locais
agregados de prestação de serviços médicos e farmacêuticos; finalmente, porque, nesses locais,
criaram-se jardins botânicos cuidadosamente cultivados pelos monges, esses jardins deram lugar à
elaboração de verdadeiros herbários e catálogos nos quais se compilavam, além dos dados
botânicos, as indicações terapêuticas das plantas e o modo de preparação das formas farmacêuticas
que delas obtinham.
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Sabe-se de que forma as comunidades religiosas as idade média se
dedicaram à arte de curar e como que, numa Europa martirizada pelas invasões e
pelas epidemias, exerceram profunda e benéfica influência. Mas, impedidos de
exercer a Medicina pelas resoluções tomadas ou pelas recomendações feitas em
diversos Concílios, no século XII (Clemont, 1130; Reims, 1131; Latrão, 1139), os
monges dedicaram-se à Farmácia e foram célebres durante muitos séculos as
boticas dos conventos (SILVA, 1968, p. 13).
Por isso, não é de se estranhar que muitos dos vultos mais relevantes do saber médico-
farmacêutico da Alta Idade Média (séc. V-X) sejam provenientes das estruturas religiosas. Dos
mosteiros, gradualmente, foram-se formando as valiosas bibliotecas e promoveram o
desenvolvimento de diversas escolas que desempenharam uma função cultural do maior significado
na história do ocidente.
Diversos pensadores determinaram a modelação do saber médico medieval: Boecio (480-
524) pioneiro na transmissão do pensamento filosófico grego ao mundo cristão medieval; São Bento
(480-543); São Isidoro (556-636); São Beda (637-735) monge e historiador inglês; Alcuino (735-804)
foi um dos mais relevantes vultos da valorização cultural dada por Carlos Magno; Rabano Mauro
(780-856) abade do mosteiro de Fulda; Walahfrid Strabo (falecido em 849) que conciliou suas
atividades monásticas com a medicina; Heribrando (falecido em 1028); Gerbert de Aurillac (938-
1003), papa de 999 a 1003, sob o nome de Silvestre II, dedicou-se aos estudos matemáticos e à
divulgação do saber científico árabe.
Com a especialização das diversas áreas das ciências sanitárias, o que veio acontecer no
decurso do século XII, surgiram diferentes profissionais: os ajudantes para as sangrias e flebotomias,
o rasorius, profissional que deu lugar ao barbeiro-cicurgião, o herbarius, que bem como o
pigmentarius, especializou-se na preparação de medicamentos e os médicos que passam a ser
realmente denominados por físicos.
A escola de Salermo, situada ao Sul de Nápoles, é um marco decisivo na história das ciências
médicas e farmacêuticas. Com a fundação desta escola, a medicina medieval inicia uma caminhada
laica e adquire uma formação clínica mais científica. Seus fundadores: Salernus ensinava em latim,
Ponto ensinava em grego, Adlea ensinava em árabe e Helinus, judeu, ministrava suas lições em
hebreu. Mas foi com Constantino, o Africano (1020-1087), que a Escola atingiu seu ponto mais alto.
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Além de servir de intermediário no comércio de drogas orientais para a Escola, suas traduções e
compilações da medicina árabe revestiram-se do maior interesse uma vez que com elas entram em
Salermo (em 1065) novas vertentes do saber médico e foram uma porta de entrada para textos
árabes na Europa Ocidental.
Com o nascimento da ação cultural da Igreja nas zonas da Europa, a partir do século XII, são
fundadas, por toda a Europa Ocidental, diversas Universidades a destacar a função das Ordens dos
Franciscanos e dos Dominicanos que, rapidamente, passaram a assumir um papel preponderante
uma vez que lideraram e conduziram o saber deste final da Idade Média.
No que diz respeito à medicina, a Universidade de Montpellier assumiu particular destaque.
As Universidades mais antigas da Europa são: século XI, Bolonha (1088); século XII, Oxford
(1167) e Palência (1178); século XIII Paris (1200), Cambrige (1209), Salamanca (1218), Nápoles
(1224), Pádua (1222), Tolouse (1229), Montpellier (1289), Coimbra (1290, fundada em Lisboa); século
XIV, Orléans (1306), Angers (1334), Valladolid (1346), Praga (Checoslováquia, 1347), Cracóvia
(Polônia, 1334), Viena (Áustria, 1365), Pécs (Hungria, 1367), Heidelberg (Alemanha, 1385) e Colônia
(Alemanha, 1388). A partir do século XV foram fundadas outras Universidades na Europa como a de
St. Andrews (Escócia, 1410), Poitiers (França, 1431), Caen (França, 1432), Bordéus (França, 1441),
Lovaina (Bélgica, 1425), Würzburg (Alemanha, 1402), Leipzig (Alemanha, 1409), Rostock (Alemanha,
1419), Alcalá (Espanha, 1499), Uppsala (Suécia, 1477).
No que concerne ao ensino médico, os cursos variavam de três a cinco anos, depois de terem
feitos os estudos preliminares nas Faculdades de Artes. As aulas consistiam na leitura de textos
adequados, após havia os consequentes comentários, discussões e posterior avaliação de
conhecimentos. O método de ensino era, fundamentalmente, de memorização e de discussão dos
textos das aulas, tendo sido a prática da anatomia, com as correspondentes dissecações o estímulo
mais importante para um ensino mais criterioso e mais rigoroso dos cirurgiões. O domínio da língua
latina era fundamental.
Durante este período medieval merecem referência alguns nomes que contribuíram para as
ciências médicas e farmacêuticas: Alberto Magno, Roger Bacon, Ramón Lull, Arnau de Villanova e
Nicolás de Cusa.
A farmácia medieval articulava-se, muito necessariamente, com a medicina de seu tempo.
Era indiscutivelmente filosófica, excessivamente teorizante e significamente matemática. Para a
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farmácia medieval, os medicamentos deviam ser classificados de acordo com os graus da doença e
qualidades dos medicamentos, bem como graus de ação terapêutica desses medicamentos.
No Ocidente, a separação entre Farmácia e a Medicina deu-se por volta do século XII, por
ocasião da incompatibilidade no exercício das duas profissões, decretada por Frederico II, rei da
Sicília e imperador germânico, pelo édito da Carta Magna da Farmácia, em 1240, uma legislação
verdadeiramente precursora daquela que dentro de algum tempo haveria de reger o exercício da
Farmácia no Mundo Ocidental. Essa medida oficial antecipou uma tendência geral, mas não
representou uma medida universal a que outros países europeus deveriam estar subordinados: o
médico examinava, diagnosticava, prescrevia em função da patologia e em função do conhecimento
teórico que tinha das propriedades medicinais das drogas. O boticário, por sua vez, limitava-se a
preparar os medicamentos de acordo com as orientações médicas e de acordo com o conhecimento
que tinha das drogas, nomeadamente em tudo o que dizia respeito à colheita, armazenamento e sua
transformação em medicamentos.
Num período marcado por significativas mudanças socioeconômicas, alterações
demográficas, proliferação de uma série de epidemias que dizimaram partes significativas da
população, a farmácia, que seguiu o modelo árabe, começou a desenvolver-se, primeiro nos
claustros das comunidades ricas e depois nas cortes dos príncipes até que, finalmente, surgem as
primeiras farmácias particulares. As influências da alquimia fazem-se sentir mais do que nunca e a
elas vem juntar-se o conhecimento de novas drogas, que a descoberta do mundo trouxe às ciências
farmacêuticas, e talvez as primeiras doutrinas de Paracelso e sua influência na farmácia.
2.3 A farmácia medieval em Portugal
Em Portugal, a medicina refletia as preocupações médicas da época nessa região:
cruzamento de práticas médicas obedientes à vertente galênica mais ou menos arabaizada, cruzada
com um tipo de práticas mágico-religiosas ou supersticiosas que atingiram o período medieval. Os
produtos de origem vegetal eram os mais utilizados nas práticas médico-farmacêuticas. Gil Rodrigues
Valadares, conhecido como Frei Gil de Santarém (1185-1265), realizou seus estudos médicos e
filosóficos no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra e, posteriormente, em Paris. Recorreu a drogas
como o heléboro, a arruda, a celidônia e, ainda, as malvas, a losna, o funcho, etc. No que diz respeito
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às drogas de origem animal recomendava o leite de cabra, o mel, o fel de cabra, o leite de mulher,
etc. Para a névoa dos olhos prescrevia o leite de cabras e heléboro; para a lepra, um cozimento de
rebentos de malvas em água. Era famosa, também, sua medicina com influências ritualísticas: para
evitar o crescimento dos seios, lavá-los com sangue da castração do porco, dizendo ao mesmo tempo
“destrom, destrom, sinistrom, sinistrom (...)”, escreve Pita (2000, p. 92). Aconselhava rezas e
benzeduras, de mistura com algumas plantas indígenas, e sangria, como remédio e como preventivo,
cinco vezes por ano, para lume dos olhos, para limpar a reima da cabeça, para combater a febre e
para os maus humores e postema.
Outro vulto do período com evidente influência de Galeno, Avicena, Dioscórides, Pedro
Hispano ou Pedro Julião. Foi eleito papa, sob o nome de João XXI em 1276. Estudou medicina em
Paris, matemática e filosofia e em sua obra encontram-se fórmulas farmacêuticas, também, com
influência árabe.
No que diz respeito, concretamente, à história da farmácia portuguesa, há notícias de
habilitações para o exercício da profissão farmacêutica em Portugal desde o século XIV e o
aparecimento dos primeiros boticários remontam ao século XII, ao que parece, esta movimentação
parece estar ligada à presença árabe no território. Como se sabe, os árabes foram detentores de
instituições farmacêuticas desde o século VIII.
Durante o período medieval, desde o século XII, assistimos em Portugal ao desenvolvimento
de um comércio de especiarias por um grupo significativo, os judeus e, além destes comerciantes de
drogas e especiarias, os boticários, isto é, os que se destinavam a transformá-la em medicamentos,
tinham também, a concorrência de outros profissionais – os médicos – que estavam igualmente
habilitados a preparar e vender medicamentos aos doentes. Só em 1461, D. Afonso V fez
regulamentar o exercício das profissões médica e farmacêutica: aos médicos ficou vedada a
preparação de medicamentos, aos boticários, o exercício das práticas médicas.
Observa-se que, durante este período não existia qualquer ensino específico conducente à
formação de boticários. São conhecidas desde os finais do século XIV apenas autorizações, licenças
não obrigatórias, para quem quisesse ser boticário.
31
2.4 A Farmácia no Renascimento
À época do Renascimento, como visão de mundo, a Idade Média persiste, “só se desfaz com
o impulso do espírito científico, a partir de Copérnico (*1473 +1543) até Newton (*1642 +1727). Se
se considerar, por fim, a tecnologia e a vida social, a Idade Média dura até o século XVIII” (LE GOFF,
2006, p. 78). Só no século XVIII, encontra-se a tomada de consciência de fenômenos especificamente
econômicos que anunciam uma reviravolta. Chaunu (1987, p. 37) também lembra que, não se
verifica qualquer reação imediata em relação à revolução coperniciana, pelo menos na Europa
católica, “por uma verdadeira aberração, o cosmo herético de Aristóteles seria considerado pelo
teólogo da Inquisição romana como necessário à Revelação”.
O movimento humanista, que difundiu a cultura renascentista, por volta da metade do
século XVI, estendeu-se até pelo norte da Europa. Pode ser definido como
O estudo assíduo dos clássicos greco-latinos (mais latinos que gregos),
com o objetivo de aprender deles, junto com a elegância do estilo, a sabedoria
antiga no que ela tem de racional e de humano e, por isso, de assimilável por todos
os cristãos (ZAGHENI, 1999, p. 47).
Sua característica específica foi a compreensão da pessoa humana, bela e educável, tal como
ela se encontrou na história e na literatura clássica greco-latina. Foi um movimento de cultura,
formação, erudição, centrado na literatura (filologia, gramática, retórica, lógica) e na moral.
Para essa difusão da cultura renascentista, contribuiu o fato de que, na segunda metade do
século XV, a época viu nascer o livro impresso. A invenção chegara da Alemanha e o primeiro prelo a
funcionar na França foi instalado no subsolo da Sorbonne, em 1470.
É certo que as doutrinas e os expositores dos “studia humanitatis” começaram a se infiltrar
por vários canais, e que grande número de estudantes da França, Inglaterra e Alemanha se dirigiu à
Itália, no curso da Idade Média, especialmente para alcançar um título em direito ou medicina, dois
cursos de reputação. Eram os indícios de um novo espírito, vindo de Veneza e Florença, e a maior
32
parte desses estudiosos retornou para lecionar em universidades de origem, assim contribuindo para
o desencadeamento de uma revolução intelectual.
Então, desde as origens do Renascimento, a ideia do renascer, do nascer para uma vida nova,
acompanhou, como um programa e um mito, vários aspectos do próprio movimento, considerado
por Le Goff (2006) como um dos renascimentos medievais.
O despertar cultural, que caracterizou o Renascimento, desde o início, foi, sobretudo, uma
afirmação renovada do homem, dos valores humanos nos vários domínios: desde as artes à vida
diária. A atenção se centrou no homem com uma intensidade sem igual, para descrever, exaltar,
colocar no centro do universo. Foi o desenvolvimento de uma filosofia do homem, que implicou uma
teoria da sua formação, da sua educação. Outra coisa, porém, foi a manifestação, num momento de
crise e de transformação de uma sociedade, de uma riqueza singular de tipos relacionados com
novas formas e especificações de atividades.
Então, a partir do século XVI, uma mudança teve lugar no domínio da investigação científica.
A anatomia conheceu com Versálio (1514-1564) uma nova etapa. Versálio demonstrou a
inviabilidade de algumas partes da tradicional anatomia galênica, publicou obras sustentadas na
observação realizada por ele próprio e não se limitou a ser um comentarista aos tratados dos autores
clássicos, como vulgarmente acontecia. Propôs um novo modelo de ensino da anatomia e da cirurgia
porque, para ele, o próprio professor deveria executar a cirurgia e, ele próprio, realizar os estudos
anatômicos, contrariamente ao que se encontrava convencionado, onde a parte prática,
experimental da cirurgia e da dissecação anatômica estava a cargo de um auxiliar. Assumiu, ainda,
particular interesse no domínio da anatomia sua preocupação no sentido de construir uma adequada
nomenclatura anatômica, que introduz em latim, recorrendo Versálio a autores clássicos gregos,
latinos e árabes.
Rapidamente a obra versaliana, sobretudo a partir da Itália, se divulgou por toda a Europa.
Entre ao anatomistas posvesalianos, encontramos diversas atitudes, dede as mais radicais de repúdio
pela obra do médico flamengo Versálio, passando por outras de aceitação passiva da obra e até
outras de tentativa de aperfeiçoamento. Primeiro na Itália, posteriormente em toda a Europa, foi
quase uma legião e dos exploradores do cadáver humano movidos pelo espírito da época e pelo
poderoso incitamento provocado pela obra versaliana; e assim chegou ao termo das suas
possibilidades de exploração macroscópia do corpo humano e surgiu um novo ponto de vista para
vê-lo e descrevê-lo cientificamente.
33
No decurso, outros anatomistas mostraram suas virtudes médicas: os italianos Gabriele
Zerbi; Alessandro Benedetti (1460-1522); Alessandro Achillini (1463-1512); Berengario da Carpi
(1469-1530); Giambattista Cannano (1515-1579). Saliente-se, ainda, o nome de André Laguna (1494-
1560) e, de certo modo, o próprio Leonardo da Vinci (1452-1519). Entre os mais notáveis e também
italianos: Gionanni Filipo Ingrassia (1510-1580); Realdo Colombo (1516-1559); Bartolomeo Eustáquio
(1520-1574); Gabrielle Falópio (1523-1562); Giulio Cesare Aranzio (1530-1589); Fabrizi
d’Acquapendente (1533-1619); e Constanzo Varólio (1543-1575). Refiram-se, ainda, os nomes dos
espanhóis: Valverde de Amusco, autor do melhor tratado anatômico renascentista posversaliano, em
1556, Pedro Jimeno e Luis Collado. Citem-se os nomes do holandês Volcher Koyter (1534-1600), do
suíço Felix Platter (1536-1614), do francês Caspar Bauhin (1560-1624) e do belga Adrian van den
Spieghel (1578-1625).
A anatomia versaliana proporcionou a Ambroise Paré (1510-1590) lançar as bases de uma
nova orientação para a cirurgia, fundamentalmente no que diz respeito à sua vertente prática. É
considerado o pai da cirurgia moderna por ter colocado para trás a prática universalmente
consagrada de tratamento de feridas com armas de fogo que introduziu acidentalmente. As feridas
eram tratadas com óleo fervente, mas no campo de batalha, o óleo não foi suficiente para tratar
todos os doentes, então tratou de remediar a situação aplicando sobre as feridas dos soldados uma
preparação constituída por gema de ovo, óleo de rosas e terebentina. No dia seguinte os resultados
foram surpreendentes. Em 1454, nove anos depois de ter descoberto casualmente o novo
tratamento, publicou os resultados de suas observações.
Outra inovação cirúrgica introduzida por Paré foi a técnica destinada a conter hemorragias
que surgiam na sequência de amputações que consistia na laqueação dos vasos sanguíneos, tirando
partido das sugestões de Hipócrates, Galeno, Avicena, Celso e outros autores clássicos. Até então se
utilizava a queimadura em ferro em brasa ou com óleo fervente.
Entre outros cirurgiões renascentistas, destacaram-se Bartolomeo Maggi (1516-1552), que
demonstrou e corroborou o que Paré havia dito sobre a pólvora, isto é, demonstrou que a pólvora
não possuía toxidade para os tecidos e que, por isso, as feridas provocadas pelas armas de fogo não
deveriam ser tratadas como lesões tóxicas; o espanhol Bartolomé Hidalgo de Agüero (1530-1597)
que se dedicou ao tratamento das feridas provocadas por armas brancas e, ainda, o suíço Felix Würtz
(1518-1574). O espanhol Miguel Servet (1509-1553) descreveu a circulação pulmonar do sangue,
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tratando-se de uma inovação médica entre autores europeus. Assinou, assim, uma página do maior
interesse na história da medicina: a cirurgia pulmonar.
Para Girolamo Fracastoro (1483-1553) o contágio era uma doença que apresentava a
capacidade de passar de um ser vivo a outro ser vivo. Ainda estava longe o tempo de se constatar
que algumas doenças se propagavam através de micro-organismos e que, de fato, há determinadas
condições sanitárias, orgânicas, etc., que facilitavam essa propagação. Fracastoro não conhecia
microorganismos, mas isto não o impediu de lançar a ideia de que dadas doenças se propagavam de
ser vivo a ser vivo. Denominou de “seminaria morbi” os gérmenes que provocavam a doença, ao
introduzirem-se no organismo de um indivíduo saudável por contato direto (roupas) ou à distância
(ar). E nem todos os organismos estariam dispostos a contrair a doença, para o contágio seria
necessário que ele estivesse receptivo a contraí-la. Fracastoro caracterizou a sífilis e a forma de
contágio: relações sexuais como principal fonte de transmissão. A sífilis foi, na verdade, um dos mais
significativos marcos médicos das ciências medico-farmacêuticas renascentistas.
Paracelso – Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim (1493-1541) – é
considerado uma das figuras mais controversas da história da medicina e da farmácia. Sua obra é
considerada, simultaneamente, pessoal e genial, sendo apontadas como características
fundamentais, logo à partida, seu antigalenismo sistemático; depois seu espírito revolucionário que o
levou a combater visceralmente qualquer doutrina médica; uma valorização dos conhecimentos
populares; uma inspiração em teorias arcaicas, animistas e neoplatônicas, destruindo o galenismo
com ideais arcaicos e nem sempre coerentes e racionais, que provavelmente estão na base da sua
escolha como autor preferido dos ocultistas; emprego por via interna da terapêutica metálica,
contrariamente ao que era proposto pela tradição galênica que propunha sais metálicos aplicados
externamente; propunha uma farmácia vocacionada para a obtenção de princípios ativos isolados
dos componentes da fórmula, sendo partidário da medicação específica adequada a cada doença em
contraposição à polifarmácia; ao explicar o organismo em função de reações químicas; valorizava o
trabalho manual; tinha uma concepção unitária das ciências da saúde, julgando da maior pertinência
não dividir profissionalmente medicina, cirurgia e farmácia; desenvolvimento do laboratório de
farmácia a partir do laboratório alquímico, referindo que o médico devia saber preparar os
medicamentos e que o alquimista devia saber preparar os medicamentos químicos.
No campo da farmácia, até então, as matérias primas de que os médicos e os boticários
dispunham para prescrever e para produzir os medicamentos resultavam de uma adaptação das
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doutrinas galênicas. Os medicamentos eram produzidos de acordo com a perspectiva galênica de
doença e as matérias primas de que os médicos dispunham eram as tradicionais. Era notória a
influência exercida por Galeno e por Dioscórides.
No que diz respeito, especificamente à matéria-médica tradicional, foi Dioscórides o autor
cuja obra maior influência exerceu no Renascimento. Seu texto foi traduzido em diversas línguas e
assim circulou.
Sobre o pano de fundo de saber farmacológico tradicional, vão aparecendo as seguintes
inovações: em primeiro lugar a obra de Paracelso; em segundo lugar a introdução na terapêutica de
novas drogas que vieram enriquecer o arsenal terapêutico; finalmente, a gradual racionalização da
matéria médica.
A matéria médica sofreu significativa renovação com a introdução de drogas provenientes
das descobertas marítimas nas quais portugueses e espanhóis tiveram, como se sabe, um papel
relevante. Relembre-se que a matéria médica medieval e do Renascimento era constituída por
especiarias, substâncias aromáticas e drogas orientais resultantes do comércio então existente com o
Oriente. Estes produtos representavam um bem do maior interesse para as localidades próximas das
rotas comerciais e mostravam-se, também, na maior relevância para os negociantes que
trabalhavam nesse domínio. Assim, portugueses e espanhóis, ao descobrirem novas rotas para as
terras distantes, passaram a dominar o comércio das drogas, ao qual não estiveram alheias a bulas
papais que permitiram aos portugueses explorar as Índias Orientais e Brasil e aos espanhóis explorar
as Índias Ocidentais.
Gradualmente esta hegemonia luso-espanhola suscitou uma reação por parte de
comerciantes de Veneza, árabes e, ainda, alemães, flamengos e ingleses que se intrometeram
naquele comércio marítimo. O estudo das matérias primas úteis à produção medicamentosa levou a
que diversos estudiosos europeus rumassem até as novas paragens geográficas para estudar no seu
próprio meio, fundamentalmente, a flora indígena. Foram diversas as matérias primas provenientes
do continente americano e que gradualmente conquistaram a simpatia dos médicos e boticários.
Nicolás Monardes (1512-1588) é considerado um dos fundadores da farmacognosia, na
medida em que identificou e caracterizou diferentes drogas e testou suas ações farmacológicas e
tóxicas. No começo opunha-se à entrada de drogas americanas no arsenal terapêutico europeu, mas
mudou de ideia e refere e analisa inúmeras drogas vindas do continente como: a cevadilha, a jalapa,
36
o sassafrás, a canela e o tabaco, guaiaco. Concedeu destaque a determinadas drogas que podiam ter
aproveitamento dietético, nomeadamente a batata, a salsaparrilha, o rícino, o milho etc. Dedicou
especial às drogas destinadas ao combate à sífilis, bem como a técnica farmacêutica. Este médico
não se limitou a ser um clinico ou investigador no domínio da matéria médica, dedicou-se ao
problema da comercialização daquelas drogas e, por isso, transformou-se num reputado
comerciante de drogas, tendo conseguido enormes quantidades de matérias primas a dados
boticários, sendo uma contrapartida dessa venda a garantia da prescrição médica por parte de
Monardes.
O estudo da matéria médica americana foi, ainda, sujeito a tratamento especial por Francisco
Hernandez (1514-1587). Nomeado por Filipe II a protomédico das Índias Ocidentais em 1570, foi
incumbido de estudar a matéria médica no México e no Peru. Durante vários anos dedicou-se com
especial interesse ao estudo das drogas tendo deixado alguma obra em manuscritos, nem todos
publicados.
Outros nomes relevantes no domínio da matéria médica renascentista, pelos estudos e pela
difusão que fizeram das drogas americanas e orientais: Fernandez de Oviedo (1478-1557), autor da
“Historia general e natural de las Indias” (1535-1537); Bernardo Vargas, autor de “La Milicia y
descripción de las Indias” (1599); Barnabé Cobo, que publicou por essa mesma época “História Del
Nuevo Mundo” e, ainda, Georg Markgraf (1610-1644), autor da “História rerum naturalium Brasiliae”
(1648); Willem Pies (1611-1678), autor da “História naturalis Brasiliae” (1648); J. H. Helvetius (1661-
1727); Charles de l’Escluse ouy Clusius (1526-1609), etc.
Durante o Renascimento, foram vários os portugueses que se notabilizaram no estudo da
matéria médica, fundamentalmente no estudo das matérias-primas orientais e, ainda, no
desempenho de algumas funções políticas. Entre eles citam-se os nomes de Garcia da Orta (1501-
1568), estudou em Salamanca e em Alcalá, embarcou para Índia em 1534 como médico de Martin
Afonso de Sousa em 1534 e mais tarde se estabeleceu por conta própria em Goa. Deixou-nos
“Colóquios dos Simples e drogas e cousas medicinais da India”, obra fundamental na história das
ciências da saúde e do domínio da história natural; Tomé Pires (?- 1524 ou 1540) foi um dos
boticários portugueses que viveu no Oriente e que conseguiu maior notoriedade, deixou-nos no
domínio da história das ciências-farmacêuticas a “suma Oriental” escrita por volta de 1515; Cristóvão
da Costa (1525-1593) e escreveu “Tractado de lãs drogas y medicinas de las Índias Orientales”; Simão
Álvares partiu para as Índias em 1509 tendo sido boticário em Cochim de 1514 a 1530, atingiu cargo
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de boticário-mor por nomeação do governador D. João de Castro; João Rodrigues, conhecido como
Amato Lusitano (1511-1568) foi uns dos primeiros a comentar a obra de Dioscórides no século XVI,
questionando, por observação própria, os autores clássicos e até alguns contemporâneos.
Vários outros médicos, também, são dignos de menção como figuras de interesse para a
história da medicina do Renascimento em Portugal: Tomás Rodrigues da Veiga (1513-1579),
Henrique de Cuellar (1483(?)-1544), Rodrigo de Castro (1541-?).
Sobre a farmácia portuguesa no Renascimento, é importante considerar que o Regimento do
Físico-mor do Reino de 1521 determinou a obrigatoriedade de um exame para todos os que
quisessem exercer a profissão de boticários. Porém, documentos anteriores comprovam a existência
de exames para o exercício da profissão desde o século XIV.
Contudo, um dos aspectos mais relevantes do ensino farmacêutico no Renascimento prende-
se com a organização de estudos farmacêuticos na Universidade – a Universidade de Coimbra. Na
verdade, foi no reinado de D. Sebastião que a Universidade de Coimbra acolheu o ensino de
farmácia. O curso não conduzia a qualquer grau acadêmico, contrariamente ao que acontecia com a
medicina, onde os alunos frequentavam a respectiva Faculdade. O boticário era um profissional
mecânico, isto é, que executava uma arte mecânica (manual), em contraposição com a medicina que
era considerada uma arte doutrinal.
O curso era organizado do seguinte modo: durante dois anos os alunos boticários aprendiam
latim na cidade de Coimbra ou noutra instituição de ensino que compreendesse cursos regulares de
latim; após dois anos os alunos eram colocados numa botica da cidade de Coimbra ou de fora da
cidade onde praticavam a “arte farmacêutica” durante quatro anos. Após esses quatro anos
regressavam à Universidade onde eram sujeitos a um exame, sendo júri desse exame de avaliação
médicos professores da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e boticários de
reconhecida competência. O curso era exclusivamente prático não existindo, por conseguinte,
qualquer componente teórico, ficando o candidato a boticário sujeito aos conhecimentos e à
disponibilidade dos mestres-boticários.
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2.5 Rica flora medicinal e as Pharmacopeias
A rica flora medicinal existente no imenso império colonial português foi gradativamente
descoberta por viajantes, homens de administração, físicos, boticários, naturalistas e comerciantes
ou simples aventureiros. E, já no século XVI, havia um razoável número de descritores de nossas
plantas, usualmente denominadas “exóticas”. Embora não fossem botânicos ou médicos e nunca
tivessem atingido a importância e o brilho de um Garcia da Orta, revelaram o que viram tentando
descrever seus achados. Foi assim com Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim, Gabriel Soares de Sousa,
Magalhães Gândavo, dentre outros.
Também Frei Cristóvão de Lisboa, qualificador do Santo Ofício e fundador da Custódia do
Maranhão, escreveu a “História dos animais e árvores do Maranhão”, durante sua estada na América
portuguesa, presumivelmente entre 1624 e 1632. O manuscrito permaneceu inédito até 1934. João
de Moura, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, em manuscrito intitulado “Colônia portuguesa que
contém três tratados”, ocupou-se, no ano de 1684, em dar notícias ao rei Dom Pedro II do estado do
Maranhão e da cultura de algumas plantas e frutos da zona tórrida. Além da descrição histórica e das
relações políticas do estado, Moura, ao mesmo tempo em que assinalou a importância, custos e
formas de semear pimentas, cravos, canelas, baunilhas, cardomomos, gengibres, nozes-moscadas,
cochonilha, anil, achiote ou urucum, manifestou viva atenção à agricultura.
Além das não poucas dificuldades, esses observadores sem formação em história natural,
mas com sensível grau de atenção à natureza, fizeram o que puderam para tratar das plantas da
parte americana do Império colonial português. E, como se só as limitações não bastassem, muitos
de seus trabalhos permaneceram manuscritos perdidos e ignorados por séculos. Assim, aos trancos e
barrancos, foi sendo escrita a história das plantas que curavam no Brasil, até fins de Setecentos, à
margem da Coroa portuguesa e à custa dos saberes dos ameríndios.
Importante ressaltar que as questões utilitárias atreladas à exploração comercial
sobrepujaram as aspirações científicas dos portugueses de então que viajavam com intuito de
vislumbrar o teatro da natureza americana, condicionada a ganhos econômicos.
Então, vários esforços oficiais foram feitos para aclimatação de plantas de valor comercial do
oriente no Brasil e vice-versa, no transcorrer dos séculos XVII e XVIII, atendendo aos desígnios do
império português e em consonância com seus interesses mercantis, embora, no transcorrer do
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século XVI, os produtos do Brasil que pudessem competir com similares produzidos nas terras
orientais da Coroa houvessem sido literalmente arrasados nos campos de plantio.
A fitoterapia dos índios das terras do Brasil pode não ter tido a importância e o
reconhecimento científico atribuído àquela desenvolvida pelos astecas. Mas, sem sombra de dúvida,
seus saberes acerca das plantas medicinais da América portuguesa baseavam-se em intuições e
práticas que, despertando a curiosidade dos colonizadores e viajantes, constituíram-se nas primeiras
observações empíricas acerca das plantas medicinais das terras dos brasis. Assim, os hábitos
medicinais indígenas induziram os primeiros dados sobre o assunto, tornando-os importantes
precursores na construção das ciências da natureza do Brasil.
A primeira farmacopeia oficial portuguesa seria editada somente em 1794. Até então,
publicaram-se um sem número de compêndios acerca da arte de formular medicamentos. Embora
não fossem reconhecidos por direito, eram-no de fato e por eles guiavam boticários e outros
preparadores dos remédios, em Portugal e suas colônias, até fins do século XVIII. Já que os
professores da arte farmacêutica não tratavam de escrever uma farmacopeia em língua nacional,
ocupava-se o boticário em “traduzir fielmente da língua latina, as receitas que se achavam nos
textos”.
D. Caetano de Santo Antônio foi bem sucedido ao inaugurar a prática de escrever uma
farmacopeia em português: “Farmacopéia lusitana” em 1704, reeditada mais três vezes em 1711,
1725 e 1754. João Viger (1662-1723) não era boticário, mas droguista – “vendia ingredientes de
botica” – e sua farmacopeia é considerada o primeiro manual de química farmacêutica em
português, tendo sido editada em 1716 na cidade de Lisboa, na Oficina de Pascoal da Silva. Também
na “Farmacopeia tubalense químico-galênica”, do boticário Manuel Rodrigues Coelho (1687-?), há
vários espécimes brasílicos contidos nos três reinos da natureza. Igualmente preocupado com os
práticos de farmácia, Coelho divide a obra em duas partes: na primeira, trata da teoria e ensina as
preparações mais usuais dos medicamentos, elabora um dicionário dos termos empregados,
menciona a origem dos simples e formas para reconhecê-los. Na segunda, trata de seletas
composições antigas, modernas e ocultas com os cálculos dos medicamentos purgantes, narcóticos e
mercuriais. Dentre aqueles do reino vegetal provenientes do Brasil, enumera: abutua, ananás, andá,
Angelim ou andira, goma anime, cana-de-açúcar, bálsamo de copaíba, inhames, cacau, caju,
canafístula, goiaba, jaborandi, genipapo, manga, manacá, mangaba, mechoacão, orelha de onça, raiz
de cipó, raiz de mil homens, raiz de tambuape, salsaparrilha e tantas outras. Jacob de Castro
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Sarmento, médico português radicado em Londres também menciona plantas da América
portuguesa em sua “Pharmacopoeia contracta”, editada em latim, no ano de 1749. Antônio
Rodrigues Portugal (1738-1788), cirurgião do Porto, publicou em 1766, a “Farmacopia portuense”. O
frei-boticário João de Jesus Maria (1716-1795) monge da Congregação de São bento e administrador
da botica do Mosteiro de São Tirso, elaborou a “Farmacopeia dogmática, médico-química e teórico-
prática”, editada na cidade do Porto em 1772. Manoel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1828)
publicou em 1785 a “Farmacopeia lisboense ou coleção dos símplices, preparações e composições
mais eficazes, e de maior uso”.
Muitas dessas farmacopeias vieram para o Brasil. Na década de 1790, quando a
“Farmacopeia geral do reino” foi finalmente promulgada, tornando-se, por alvará de D. Maria I,
instrumento obrigatório de trabalho de boticários e seus auxiliares, as Farmacopeias lusitana e
tubalense disputaram com ela a preferência dos donos do ofício, na arte de preparar medicamentos.
A determinação real pretendia, portanto, extinguir a utilização de outras famacopeias. Não
conseguiu.
É preciso mencionar que só excepcionalmente se encontravam livros nas boticas, senão
depois de 1794, quando do edital de D. Maria I que estabeleceu a obrigatoriedade a todos os
boticários de possuírem um exemplar da Pharmacopeia Geral, o qual deveriam apresentar tanto nas
Visitas Gerais como particulares, debaixo de penas. Mais tarde surgiriam livros como a Pharmacopeé
Universelle, de Jourdan; o Codex Medicamentarius Gallicus; L’Officine, de Dourvault (1844); o Traité
de Pharmacie de Soubeiran-Regnauls (1855) e o mais popular Formulário e Guia Médico, de Pedro
Luiz Napoleão Chernoviz (1843). Elucidando, a farmacopeia estabelece os requisitos mínimos para a
fabricação e o controle da qualidade de insumos e especialidades farmacêuticas utilizados no país. O
documento serve como parâmetro para as ações da vigilância sanitária, como registro, fiscalização e
análise fiscal.
Já o Governo Imperial, pelo decreto de 7 de outubro de 1852, estabeleceu para as farmácias
uma tabela de medicamentos indispensáveis, a relação de utensílios e vasilhames necessários, os
livros destinados ao registro das receitas médicas e para a dispensação de substâncias venenosas,
com a especificação das qualidades, quantidades, nome dos compradores e data de vendas. Leis
acessórias foram surgindo em seguida, com a exigência da responsabilidade por profissionais
diplomados, a adoção de livros de texto, etc.
41
Vigorava como código farmacêutico oficial, a “Pharmacopeia Geral para o Reino e Domínios
de Portugal”. Após 1837 também a “Farmacopeia Francesa” (Codex Medicamentarius Gallicus),
tornada legalmente obrigatória pelo Dec. 828 de 29 de setembro de 1851. Esse diploma legal, bem
como o de n° 8 387, de 19 de janeiro de 1882, permitia o livre uso de outras farmacopeias e
formulários. Os livros permitidos, além dos já referidos, eram o Código Pharmaceutico e
Pharmacographia, de Agostinho Albano da Silveira Pinto; e os formulários de Bouchardat, Langaard,
Fonsagrives e Chernoviz.
Uma farmacopeia nacional apareceria, como pioneira, em 1917 – a Pharmacopeia Paulista,
oficializada pelo Governo e passando a vigorar imediatamente no Estado de São Paulo. Em 1926
surgiria, um código farmacêutico obrigatório escrito por Rodolpho Albino Dias da Silva, a
Farmacopeia Brasileira ou Pharmacopeia dos Estados Unidos do Brasil, com a declaração de uso
obrigatório a partir de 15 de agosto de 1929, ano da primeira edição. A segunda edição e a terceira
edições são de 1959 e 1976, respectivamente. A última teve início em 1988 e foi publicada em seis
fascículos, nos anos de 1996, 2000, 2001, 2002, 2003 2005. Todas estão em vigor. Hoje existe uma
Comissão Permanente de Revisão da Farmacopeia Brasileira (CPRFB) preocupada com a revisão das
monografias da Farmacopeia Brasileira.
2.6 Os boticários e as boticas brasílicas
Caixa de botica se chamava aquela arca de madeira em cujo interior era encontrado certo
número de medicamentos. Fora trazida para o Brasil pelos cirurgiões-barbeiros e pelos aprendizes de
boticário, nos tempos dos primeiros povoadores, em substituição à loja de drogas. Também aqui
chegou conduzida por jesuítas, visitantes ou invasores, sendo cuidadosamente carregada por
bandeirantes e por todo tipo de expedição. Eram boticários no Brasil do século XVI os jesuítas em
seus colégios e integrantes de ordens religiosas por meio de suas enfermarias.
Escreve Marques (1999, p. 173) que o encarregado da caixa de remédios “Diogo de Castro foi
o primeiro boticário a chegar ao Brasil” contratado por Tomé de Souza. O exercício da atividade
farmacêutica encontrava-se assim nas mãos daqueles que portavam as caixas de botica. Eles
constituíram os primeiros “donos” do ofício. Por incrível que pareça, não possuía a armada de Tomé
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de Souza nenhum físico, que era como se denominava o médico de então. O Físico-mor Jorge
Fernandes só aportaria aqui com Duarte da Costa, 2° Governador Geral, em julho de 1553.
No decorrer dos séculos XVI e XVII, a maioria dos boticários que chegava
era de cristãos-novos, assim, como em Portugal, não pareciam muito bem vistos
pelas autoridades. Filhos de portugueses ou de castelhanos, quase todos eram
judeus de origem, sendo seus pais também boticários, ou pedreiros, carpinteiros e
alfaiates. Em 1591, o cristão-novo Luís Antunes, nascido em Évora, tinha botica em
frente ao Hospital da Misericórdia em Olinda. Já Gaspar Rodrigues Tojo,
castelhano, meio cristão-novo, estabelecia em Filipeia, capitania da Paraíba, no ano
de 1595 (MARQUES, 1999, p. 174).
As boticas conventuais foram as primeiras a se instalar no Brasil. Ligadas a colégios ou
mosteiros, atendiam às ordens religiosas, vendiam medicamentos para os abastados e distribuíam-
nos gratuitamente aos pobres. As dos jesuítas tornaram-se famosas tanto por suas formulações, nas
quais se usavam da flora medicinal brasílica, quanto pelo número expressivo delas, espalhadas ao
longo da Colônia. As mais importantes localizavam-se na Bahia, Rio de Janeiro e Recife. Mas também
existiam em Olinda, São Paulo e Santos. O colégio do Maranhão possuía uma botica flutuante.
Os boticários não se restringiam a preparar medicamentos nos primeiros séculos coloniais.
Atendiam, prescreviam, aviavam e vendiam medicamentos além de praticarem pequenas cirurgias e
curativos. Vinham licenciados de Portugal ou recebiam sua carta de exame no Brasil após serem
examinados. Muitos, no entanto, encontravam-se irregulares. Cirurgiões também atuavam como
boticários como Luís Gomes Ferreira, cirurgião aprovado, estabelecido em Minas que, além de
revelar suas invenções medicamentosas, fazia advertências a respeito das medidas e pesos dos
remédios de botica, não se restringindo aos de uso externo, medicamentos esses que poderiam ser
preparados por cirurgiões.
Deveriam ser poucos, no Brasil, os droguistas ou comerciantes exclusivos de drogas.
Certamente, os boticários brasílicos encontravam dificuldades no preparo de remédios químicos.
Simão Gomes de Souza, o primeiro a exercer o cargo de boticário do Conselho Ultramarino, recebeu
mercê para preparar medicamentos para as Conquistas. Foi, portanto, um dos abastecedores das
naus que partiam para o Brasil. Em 1748 foi substituído por Manuel Esteves da Silva, que continuou
43
sua incumbência. E, em1775, quando da nomeação de Antônio Esteves da Silva, não se fez referência
ao preparo de medicamentos para o além-mar, embora tudo leve a crer que essa prática se
mantivesse. No início do século XIX, as naus ainda eram abastecidas de medicamentos de Lisboa,
deixando de fazê-los em 1818.
Boticários brasílicos, principalmente da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, abasteciam
outras capitanias fornecendo boticas portáteis para tropas e para socorros de epidemias. As boticas
dos colégios da Companhia de Jesus foram importantes abastecedoras de boticas laicas. A do Rio de
Janeiro funcionava como laboratório central provendo boticas da cidade. Boticários de Portugal
também abasteciam as boticas do Brasil.
A botica do Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Serrat do Rio de Janeiro,
entre os anos de 1720 e 1750, adquiria medicamentos do boticário Antonio Gomes
de Paiva, morador de Lisboa. Já o Mosteiro de São Bento da Bahia comprava do
droguista Manoel G. da Fonseca estabelecido no Porto. Esses mosteiros
compravam ainda medicinas de boticários brasílicos (MARQUES, 1999, p. 193).
Dificilmente encontrava-se naqueles tempos uma equipe completa de peritos na arte de
curar, ou seja, médico, cirurgião, boticário e barbeiro. Ocorria, então, que o profissional existente
executava qualquer tarefa. Os remédios da terra eram amplamente utilizados no Brasil e, embora
muitos deles fossem considerados perniciosos pelas autoridades, acabavam sendo usados pelos
forasteiros quando as medicinas dos professores faltavam.
Somente a partir de 1640 as boticas teriam começado a perder uma espécie de caráter
clandestino que as envolvia, tendo sido autorizadas, dentre outras práticas, a da sangria, extrações
dentárias, pequenos curativos e intervenções de emergência, além do comércio e manipulação dos
medicamentos.
Com o fluir do tempo, embora Portugal restringisse nossas relações comerciais com os países
do velho mundo e só permitisse, livre de direitos, a importação de seus produtos e não admitisse a
industrialização de qualquer tipo de artefato que concorresse com os de fabricação portuguesa, as
boticas se multiplicaram, de norte a sul.
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Os boticários obtinham com a máxima facilidade sua “carta de aprovação” em Coimbra pelo
Físico-mor do Reino, ou ainda por seu delegado-comissário no Brasil. Eram profissionais empíricos, às
vezes quase analfabetos, possuindo apenas o adestramento na manipulação de medicamentos
corriqueiros. Raras as boticas legalmente estabelecidas e em todas as cidades do Brasil, desde os
primeiros tempos da colonização, foi hábito os comerciantes de fazenda negociar com drogas e
medicamentos, não só para uso humano como para o tratamento dos animais. Também por
concorrentes dos boticários, havia os cirurgiões-barbeiros, que além das sangrias faziam seu
comércio de remédios.
Recortando, é interessante mencionar sobre as primeiras legislações médicas-farmacêuticas
e o que aconteceu no mês de maio de 1744 no Brasil: o comércio das drogas e medicamentos,
mediante ou não receita dos físicos, era privativo dos boticários, segundo dispositivos das
Ordenações, reformadas por D. Manuel e em vigor desde princípios do século XVI, bem como por leis
e decretos complementares. De modo que, os boticários representaram junto às autoridades
competentes contra a intromissão dos negociantes no gênero de comércio que lhes pertencia com
exclusividade, no que foram atendidos, como não podia deixar de ser. Assim, o Físico-mor do Reino,
por intermédio de seu Comissário em São Paulo, ordenou o cumprimento integral do Regimento
baixado em 1774 que proibia terminantemente o comércio ilegal das drogas e medicamentos,
estabelecendo pesadas multas e sequestro dos respectivos estoques. Os comerciantes que exerciam
o negócio de drogas e medicamentos sob outro Decreto, o de 1738 por autorização de D. João V,
revoltaram-se e arguiram contra os boticários na Câmara no Rio de Janeiro. Mas as multas se
concretizaram.
Falando das boticas do Rio Janeiro, Votta (1965, p. 22) transcreve as impressões deixadas por
John Luccock, cidadão inglês que viveu cerca de dez anos no Brasil, 1808-1818, exercendo comércio:
Em vez de balcão , como se costumava ter, tinham bem no meio uma
espécie de altar, com a frente tôda ornamentada com pinturas e dourados; o
motivo mais comumente escolhido para o pincel constava de alguma paisagem, um
naufrágio ou um simples ramalhete de flôres. Viam-se colocados em cima balanças
e pesos e dois ou três livros velhos, oráculos, sem dúvida, da arte de curar. As
partes de cima das paredes eram enfeitadas com longos renques de boiões
holandeses, portadores de rótulos sábios, que nada indicavam senão aos iniciados
na arte de arrancar da natureza relutante os segredos capazes de aliviar e alegrar o
coração dos homens.
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Conforme relatos de Luccock, em Pernambuco – Recife e Olinda -, assim como no Maranhão,
o aspecto das boticas seria idêntico, com fileiras de boiões holandeses. Na Bahia, Rio de Janeiro e São
Paulo, predominariam os boiões de cerâmica vidrada, de origem portuguesa.
Na cidade de São Paulo de Piratininga localizavam-se as boticas de Francisco Coelho Aires,
estabelecido na rua Direita, em 1765; José Antonio de Lacerda, nas proximidades da Praça da Sé, em
1767 e a Botica Real, anexa ao Hospital Militar, num velho casarão de esquina, no Acu
(Anhamgabau), em 1795, e onde hoje se acham os Correios e Telégrafos e bem em frente ao qual
existia o Mercadinho São João. A Botica Real atendia também ao público, e era dirigida pelo boticário
José Manuel de Mendonça. Em 1829, a Santa Casa de Misericórdia instalava numa botica no Hospital
da rua da Glória, onde hoje se acha o Colégio São José. Os utensílios, as drogas e medicamentos para
a instalação e funcionamento da botica, a partir de 1° de janeiro de 1830, foram adquiridos no Rio de
Janeiro.
Após a independência, a fisionomia da Paulicéia transformava-se e eram quatro os boticários
que se encontravam na cidade, cinco médicos, dois cirurgiões-mores, um cirurgião (todos alopatas) e
quatro médicos homeopatas. Ainda existiam seis barbeiro-sangradores.
Já em 1865 eram seis as farmácias: Botica ao Veado d’Ouro de Gustavo Schaumann, na rua
de São Bento; a de Antonio José de Oliveira, na rua Direita; a de Joaquim Pires de Albuquerque; a de
Manuel Rodrigues Fonseca Rosa, na rua do Ouvidor; a de Júlio Lehmann, no Pátio do Colégio, e a de
Luiz Maria Paixão.
Pouco mais de duas décadas após, havia desaparecido a maioria dos boticários citados.
Também as boticas tinham se transformado em farmácias, estabelecimentos bem montados,
iluminados a gás, algumas delas ostentando tabuletas: “Ao Veado d’Ouro”; “Santa Cruz”; “Castor”;
“Paulistana”; “Rosário”; “Ypiranga”; “Popular”; “Normal” e tantas outras, pelos quais se tornariam
conhecidas ao longo do tempo. Trinta e sete médicos e cirurgiões clinicavam na Capital (quatro
homeopatas). “Os barbeiros-sangradores estavam ultrapassados...” (Votta, 1965, p. 25).
A botica estava com seu futuro comprometido, por mais que procurasse adaptar-se ao novo
ritmo de progresso da ciência e da técnica, e melhorasse o conjunto de recursos para a prática
profissional, tais como: aparelhagem, instrumental, material, medicamentos, livros, etc., de que
dispunha. O boticário empírico, licenciado ou aprovado também estava prestes a abandonar a cena.
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3 Do boticário ao Farmacêutico
Com a transferência da sede da Monarquia para o Brasil, os panoramas da medicina e da
farmácia melhoraram notavelmente. Pela carta-régia de 18 de fevereiro de 1808, o Príncipe Regente
D. João, estando na Bahia, por sugestão do cirurgião-mor do Reino, José Correia Picanço, criou uma
“Escola de Cirurgia” no Hospital Real Militar, que funcionava no antigo Colégio dos Jesuítas.
As cadeiras de “Cirurgia especulativa e prática” e “Anatomia e operações cirúrgicas”
organizadas por Picanço, que nomeou o brasileiro Manoel José Estrela e o português José Soares de
Castro para elas, foram os núcleos das Academias médico-cirúrgicas da Bahia e do Rio de Janeiro e
deram origem, em 1832, às Faculdades de Medicina. Neste ano foram criados os cursos de Farmácia,
ainda ligados às Escolas de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, com duração de três anos,
recebendo os diplomados o título de Farmacêutico.
Em 1839 é Fundada a Escola de Farmácia de Ouro Preto, a primeira a se tornar autônoma em
relação ao curso de Medicina. Decorrido pouco mais da metade do século, surgiram mais duas
escolas para o ensino autônomo de farmácia: a Escola de Porto Alegre, em 1896 e, logo a seguir, a
Escola de Farmácia de São Paulo, em 1898.
O primeiro corpo docente da escola de São Paulo ficou constituído dos seguintes
profissionais médicos: Edmundo Xavier, Odilon Goulart, Victor Godinho, Arthur Mendonça, Amancio
Pereira de Carvalho; e farmacêuticos: Pedro Baptista de Andrade, João Florentino Meira de
Vasconcellos, J. Frederico de Borba, Luiz Manuel Pinto de Queiroz; e Alberto Loefgren. A escola
começou a funcionar em fevereiro de 1899, precariamente instalada no velho solar do Brigadeiro
Tobias e transferida, em 1905, para o Bairro da Luz.
A quarta escola autônoma para o ensino de Farmácia surgiu ainda em São Paulo, em 1912,
como instituto da Universidade de São Paulo, a primeira Universidade a funcionar efetivamente no
Brasil, destinada a ministrar o ensino científico integral.
A primeira turma de farmacêuticos diplomou-se em 1913, com um currículo de dois anos, em
conformidade com os preceitos legais em vigor – Lei Epitácio Pessoa, 1901. Desde então, com o
advento dos farmacêuticos, os boticários aprovados foram paulatinamente desaparecendo, já que,
46
sob a égide da legislação sanitária, só os diplomados pelas escolas oficiais poderiam exercer a
profissão.
O século XX chega com a fundação, em 1916, da Associação Brasileira de Farmacêuticos
(ABF). Em seu Estatuto, entre outras finalidades, era priorizada a tarefa de promover como supremo
escopo a fundação da Escola Superior de Farmácia. Em 1924, é elaborada por Rodolpho Albino Dias
da Silva a Primeira Farmacopeia Brasileira e em 1947 dá-se a instalação da Faculdade de Farmácia da
Universidade do Brasil (hoje UFRJ).
A década de 30 representou um marco para a profissão de farmacêutico no Brasil, não
apenas pela regulamentação do exercício da farmácia, em 1931 – nesse ano foi publicado o Decreto
n° 19 606, que regulamentou o exercício da profissão farmacêutica no Brasil -, mas também por ser
um período de incertezas, dúvidas e anseios por parte dos próprios profissionais. Saía de cena a
imagem idealizada do boticário e entrava, para desgosto de um número crescente de farmacêuticos,
a moda americanizada dos medicamentos previamente preparados em série. Era o desenvolvimento
da farmácia industrial.
A criação dos Conselhos de Farmácia, em 1960, é marcada por uma conjuntura onde já está
estabelecido um processo de afastamento do farmacêutico do contato direto com a população, fruto
da industrialização da produção e do domínio do capital estrangeiro.
O final do século XX se caracteriza, dos anos 80 em diante, por um acelerado processo de
globalização econômica, que agrava o quadro de dependência tecnológica e econômica do País. Por
outro lado, renasce a manipulação farmacêutica alopática e homeopática.
A Farmácia Brasileira chega ao século XXI tendo à frente o enorme desafio de incorporar a
seu dia-a-dia o processo de permanente inovação tecnológica estando, ao mesmo tempo, obrigada a
contemplar os compromissos éticos inerentes ao exercício profissional farmacêutico.
Para ilustrar, a prova legal do hábito de apelidar de Boticário ao profissional farmacêutico
está no Regimento da Junta de Higiene Pública, aprovado pelo Decreto Imperial n° 829, de 29 de
setembro de 1851, documento de suma importância na evolução da nossa legislação profissional, em
cujo texto só existe referida a palavra boticário, nos itens que fazem menção ao técnico da
preparação dos medicamentos. E não pense que a expressão dissesse respeito a profissionais sem
diploma, escreve Votta (1965, p. 29): o artigo 28 reza textualmente que “os Médicos Cirurgiões,
Boticários, Dentistas e Parteiras apresentarão seus diplomas...”.
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O hábito continuou até surgir o Decreto 2 055, de 18 de dezembro de 1857, estabelecendo
as “condições com que aos farmacêuticos não habilitados se há de conceder licença para continuar a
ter abertas as boticas”.
“Verdadeira ironia”, continua Votta, “ao tratar dos farmacêuticos a lei os chamava de
boticários; ao conferir direitos a profissionais não diplomados, denominava-os farmacêuticos.
Ignorância de legisladores!” Somente depois de 1886, o “boticário quedará definitivamente
substituído por farmacêutico, e passará ao poucos a ter significado humorístico ou pejorativo”.
3.1 Perfil do profissional Farmacêutico de hoje
Até meados da década de 40, era incipiente no país a indústria de especialidades
farmacêuticas. Grande parte dos medicamentos era, com isso, importada da França, Alemanha e
Estados Unidos.
Eram, portanto, as farmácias as principais responsáveis pela produção interna de
medicamentos, exercendo o papel de fabricante, produzindo remédios como pomadas, pílulas e
xaropes a partir de elementos da flora, em laboratórios situados no interior de suas lojas. Os
medicamentos eram preparados na ocasião do pedido conforme a prescrição médica.
O mobiliário entalhado em madeira nobre e duas ânforas de cristal na entrada, contendo
líquidos vermelhos e azuis, caracterizavam as farmácias do início do século. Além disso, nos
laboratórios, localizados no interior das lojas, eram guardados frascos contendo uma grande
diversidade de tinturas, extratos fluidos e extratos moles, que representavam praticamente a base
do arsenal terapêutico da época.
Nesse período, em virtude da importância das farmácias na fabricação de medicamentos e na
ausência de uma indústria farmacêutica nacional, a área do laboratório era maior que a reservada ao
atendimento, revelando o papel predominante da manipulação de fórmulas nesses
estabelecimentos.
Outra característica do comércio farmacêutico brasileiro nas primeiras décadas do século XX
era a venda livre de entorpecentes nas farmácias. Medicamentos como tintura de ópio canforada,
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supositórios de ópio e morfina – essa última usada apenas em casos mais graves – ficavam entre
remédios comuns, não havendo nenhuma fiscalização no que tange à utilização.
Atualmente, porém, essa situação é muito diferente no interior das farmácias/drogarias,
visto que medicamentos sujeitos a controle especial, como os que causam dependência física e
psíquica devem permanecer segregados, ou até mesmo trancados a chave, de acordo com a Portaria
n° 344/98, do Ministério da Saúde.
Mais tarde, foi criada uma fiscalização sanitária que realizava visita às farmácias a cada seis
meses. Passou a existir com isso certo controle sobre a utilização de entorpecentes, que passaram a
ser armazenados em um armário especial, inspecionado pelo fiscal em suas visitas às farmácias.
Os medicamentos importados eram vendidos no atacado tanto para as farmácias como para
os hospitais. Grandes redes de varejo na atualidade, a exemplo da Drogasil e Drogaria São Paulo,
iniciaram suas atividades no atacado farmacêutico.
No entanto, a consolidação da indústria farmacêutica nacional promoveu transformações
profundas nas farmácias e no atacado, modificando a função de cada um desses agentes. A
constituição da indústria farmacêutica implementou uma série de mudanças no mercado
farmacêutico nacional.
Em primeiro lugar, diminuiu a relevância das farmácias na produção de remédios e a
atividade farmacêutica foi perdendo importância nas lojas. O farmacêutico, responsável pela
manipulação de medicamentos no interior das boticas, foi deixando as farmácias, passando a atuar
na indústria. Este afastamento do farmacêutico, do seu campo profissional, ocorreu sem grandes
resistências e temos como consequência o fato de ele ter perdido seu “status” ocupacional.
Referindo-se ao Ensino de Farmácia, havia até, segundo Lorandi (1997), a proposta da
extinção da estrutura curricular da formação do farmacêutico que atuaria em farmácias, restando,
dessa maneira, o profissional capacitado tecnicamente para atuar no fabrico industrial do
medicamento e na área de análises clínicas. Portanto, a classe farmacêutica não se reconhecia como
importante no balcão de farmácia.
Para entendermos melhor o que aconteceu no Brasil, não é preciso voltar muito na história.
Em 15 de março de 1967, o marechal Costa e Silva, representante da “linha-dura” dos militares
golpistas, assumia a presidência da República com o segundo presidente da Revolução (golpe) de 64.
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À parte das diferenças pessoais da equipe administrativa, todos os governos militares se
caracterizaram, nos objetivos gerais, pela preocupação em atender aos interesses do grande capital,
mormente o multinacional, modelo econômico implantado desde 1955.
Continua Lorandi (1997), a acumulação privada do capital foi favorecida pelo fortalecimento
do Poder Executivo, que se justificava pelo discurso do planejamento técnico, neutro e apolítico,
pragmático e racionalizador. Esse planejamento estava escorado em dois grandes temas políticos dos
governos militares, a saber: segurança e desenvolvimento. O item desenvolvimento pressupunha o
florescimento das forças do mercado, porém monopolista e imperialista. Já o conceito de segurança
foi usado para garantir a segurança interna. Os militares responsáveis pelo golpe de 64, articulados
com a burguesia nacional ligada ao capital estrangeiro, passaram para uma atitude de violenta
repressão, que desestruturou a organização das classes populares, dificultando a luta desses setores
por melhorias salariais e sociais. Governado a partir da lógica da acumulação, garantido pelo regime
de exceção, o país passou a ter privatizadas as políticas sociais, como a da saúde e da educação.
Essa política, conclui Lorandi (1997), a partir do capital estrangeiro, refletiu-se na indústria
farmacêutica, como não poderia deixar de ser. Em um contexto de intensa desnacionalização, a
indústria multinacional assumiu o mercado nas décadas de 50 e 60. Ela era detentora de 30% do
mercado em 1940, passando a se responsabilizar por 70% em 1960 e por cerca de 80% em 1980. Essa
indústria multinacional foi instalada para desenvolver, como até hoje, apenas as últimas fases do
processo de fabricação dos medicamentos. Tais fases são realizadas em uma situação de extrema
dependência das pesquisas das sedes das multinacionais. Dependência e adestramento de mão de
obra qualificada para o parque industrial instalado.
Portanto, o ensino de farmácia, sob essa ótica, deveria atender às necessidades das
multinacionais, transformando o farmacêutico num profissional executor de funções técnicas, sem
habilidades humanísticas para a necessária discussão dos temas de saúde pública e muito menos
competência científica para o desenvolvimento dos fármacos. Isso resultou numa política
educacional subserviente às necessidades da produção.
Esse aspecto é importante para analisarmos o ensino farmacêutico no Brasil. Diferentemente
de outros países de mesma situação de desenvolvimento, a legislação a partir de 1931, tem
permitido que o leigo assuma a propriedade da farmácia em nosso país. Fato extremamente danoso
para o futuro da profissão, uma vez que definiu o farmacêutico numa posição subalterna ao
proprietário da farmácia, criando a desprezível situação da assunção técnica, por parte do
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farmacêutico, sem a devida prestação efetiva do serviço. Desse modo, passa a se tornar difícil
justificar o porquê de se investir em uma profissão que está ausente de seu âmbito de atuação,
assevera Lorandi (1997).
A partir de junho de 1964, com o acordo MEC-USAID e culminando com a reforma
universitária (Lei 5.548/68), foi eliminada no nascedouro a tentativa de se formar no país uma massa
crítica de profissionais farmacêuticos capaz de gerar novos conhecimentos.
Nesse contexto, pode justificar, em parte, a proposta do currículo mínimo de farmácia em
1969, a saber:
Art. 1º - O currículo mínimo do curso de Farmácia compreenderá:
a) ciclo pré-profissional, único (comum às diversas modalidades de
farmacêutico);
b) ciclo profissional comum, ainda único, levando à formação de
farmacêutico e habilitando acesso ao ciclo seguinte;
c) segundo ciclo profissional diversificado, conduzindo pela seleção
oportuna de disciplinas próprias à formação do Farmacêutico Industrial e
do Farmacêutico Bioquímico, a partir do Farmacêutico (...) (RESOLUÇÃO Nº
4, DE 11 ABRIL DE 1969 que fixa os mínimos de conteúdo e duração do
curso de Farmácia)
Também o Parecer 287/69 que considerou a Farmácia Pública como um artesanato técnico
em involução, relegando seu papel a um estabelecimento puramente comercial e onde o ato de
dispensar medicamentos passou a ser considerado apenas como um dos elos do repasse de
medicamentos industrializados, contrariando os critérios básicos de atenção à saúde e os interesses
da população, escreve Lorandi (1997).
Essa argumentação também pode apontar algumas pistas para o entendimento da situação
profissional farmacêutica de hoje, derivada da proposta curricular. O pensamento curricular não
surgiu do vácuo, a proposta curricular para o curso de farmácia responde às exigências de uma
realidade social.
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Veio a febre industrial, levando os laboratórios das farmácias, arrastando o
prestígio do farmacêutico. A imagem clássica do profissional da saúde, do
conselheiro, do confidente, do sanitarista por excelência desapareceu de uma hora
para outra, como se atormentado por uma maldição. E veio o pior: o farmacêutico,
perplexo dentro do vácuo a que fora lançado, não conseguia reagir, não tinha forças
para criar seu novo espaço. Ficou perdido diante da rápida substituição dos potes de
porcelana adornados pelos medicamentos elaborados pela indústria e abrigados em
caixas. Outros acontecimentos empurraram o farmacêutico que atuava na farmácia
para o ostracismo e para o descrédito. Até mesmo uma nova legislação, em 1963,
passou a privilegiar no ensino de Farmácia as análises clínicas, em prejuízo do
fármaco e da atenção farmacêutica. Foi um momento tão negro que até autoridades
federais brasileiras da área da saúde chegaram a afirmar que a farmácia não
precisava de farmacêuticos (SANTOS, 2003, p. 157).
Então, a formação generalista nos cursos de Farmácia e o desprestígio social do profissional
em seu recinto de trabalho, tem empurrado o futuro profissional a encontrar outras opções no
mercado de trabalho como, atualmente, o farmacêutico exercendo atividades na área de alimentos e
na área criminalista.
No momento, a defesa é de que o farmacêutico necessita de uma boa formação técnica e
que a produção de medicamentos deve ser atendida com muita atenção nos seus aspectos de
qualidade, visando à autonomia nacional, porém de nada valem bons medicamentos se não houver
uma distribuição, entendida em seu sentido mais amplo, condizente com as necessidades reais da
população e, nesse ponto, o farmacêutico é um profissional indispensável e insubstituível.
Desapareceu, assim, da Farmácia, a atividade artesanal da manipulação extemporânea de
medicamentos (farmácia de dispensação), tornando-se estabelecimento quase exclusivamente
comercial.
O medicamento torna-se um produto cada vez mais complexo e essa
complexidade envolve um crescente grau de articulação de diversos cientistas e
técnicos provenientes de ramos diferentes de saber. Essa complexidade situa-se
não só sob o ponto de vista técnico, mas também, do ponto de vista científico. Por
isso, não é de estranhar que, do ponto de vista profissional, quer nos hospitais,
quer nas farmácias de oficina, o farmacêutico tenha, muito justamente, o
monopólio do exercício profissional, mas no que concerne à investigação científica
partilhe seus trabalhos com médicos, bioquímicos, químicos, biólogos, etc.
(PITA,2000, p. 243).
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Essa análise da história teve como eixo central de discussão a atuação, ou sua falta, do
farmacêutico na farmácia e a consequente abertura de novos campos de trabalho. Obviamente, não
se defende, aqui, que o mesmo profissional seja o responsável por todas as etapas do medicamento,
mas em sua formação todas as etapas devem ser valorizadas de forma equânime e todos os âmbitos
profissionais de atuação do farmacêutico voltado para o medicamento devem ser estimulados a
serem exercidos.
Não podemos seguir apenas a lógica do mercado, ou seja, a atividade melhor remunerada é a
melhor atividade. A ausência do farmacêutico na farmácia pública, bem como na pesquisa de
medicamentos, na elaboração de políticas de saúde e outras, é resultado de políticas públicas,
omissão profissional e interesses econômicos. É na Universidade que devemos tentar reverter esse
quadro.
Apesar dessa aparente indefinição, há uma linha de pensamento sobre quem é ou quem
deveria ser o farmacêutico. A Organização Mundial de Saúde, desde a década de 80, já propõe um
farmacêutico voltado para o medicamento e ainda mais voltado para a saúde coletiva. Todos esses
fatores estão presentes na discussão que define as diretrizes curriculares, desde a decretação da Lei
de Diretrizes e Bases, de 1996. A proposta que está no Mec tem sofrido críticas, mas ainda não está
delineada e, enquanto isso, o currículo mínimo para o curso de farmácia vigente até o momento é o
determinado pela resolução de 1968.
Ao tratarmos da formação do farmacêutico, devemos considerar a
formação acadêmica como um item de peso a ser observado em nossa profissão.
Via de regra, está centrada em duas vertentes importantes que deveriam ter a
mesma força, mas não têm: a formação tecnológica – necessária para o preparo do
medicamento – e a de caráter social – necessária para o atendimento à saúde da
coletividade. O profissional farmacêutico, exigido hoje pela sociedade, necessita
tanto da visão tecnicista quanto da visão humanista, a fim de que seja capaz de
apresentar alternativas e soluções para a sociedade em que atua. Torna-se
imperioso, portanto, conciliar esses dois aspectos para se alcançar uma ação
equilibrada (LORANDI, 2002, p. 8).
Contudo, há o que se considerar pelo lado otimista. O movimento farmacêutico, nas duas
últimas décadas, tem procurado reagir a essa situação de isenção quanto aos elementos axiológicos
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do medicamento. Tais questões são de fundamental importância, uma vez que o farmacêutico é o
profissional do medicamento. Sua presença é exigida em todas as fases da atenção à saúde em que o
medicamento está envolvido. Em tese, o farmacêutico tem competência para a pesquisa de novos
fármacos, para a distribuição logística, para a formulação de políticas de medicamentos, para o
atendimento das necessidades de uma comunidade, seja dispensando o medicamento, seja atuando
como educador em saúde promovendo o uso racional de medicamentos.
As Universidades já estão pretendendo formar um profissional que possa inovar e construir
novos conhecimentos referentes à profissão e que possa atuar com o objetivo de atender às
necessidades da sociedade, mesmo com o ensino ainda voltado para a realidade comercial e
industrial.
Note-se, como já dissemos, novas mudanças atingiram o curso de farmácia dotando-o de um
uma grade curricular mínima. Certas disciplinas como a Bromatologia, na área de alimentos, já eram
ministradas em alguns cursos desde os anos 30. Outras, como Análises Clínicas, Parasitologia e
Microbiologia também, o que possibilitava ao farmacêutico atuar não só na farmácia como em
atividades paralelas, na área de saúde pública. As mudanças curriculares, embora tenham
contribuído para unificar, de certa forma, os cursos no país, também contribuíram para dotar os
recém-formados do poder de reivindicação à posse de um espaço até então considerado livre.
Em linhas gerais, o farmacêutico, hoje, atua em três modalidades básicas: Fármacos e
Medicamentos, Análises Clínicas e Toxicológicas e Alimentos. Na primeira, pode trabalhar
na indústria farmacêutica, dedicando-se à pesquisa de novas drogas e cosméticos ou atuando
na produção e no controle de qualidade de medicamentos. As farmácias de manipulação,
fitoterápicas ou homeopáticas, além daquelas instaladas em hospitais e unidades de saúde,
formam também um mercado de trabalho em expansão.
Se preferir a área de Análises Clínicas e Toxicológicas, o farmacêutico, absorvido por
laboratórios de análise, públicos e particulares, será responsável pela execução de exames
clínico-laboratoriais, que auxiliam no diagnóstico das doenças. Pode também controlar e
identificar a presença de produtos que, atuando como tóxicos, afetam as pessoas, o ambiente,
os alimentos e os próprios medicamentos. Outra possibilidade é a toxicologia ocupacional,
que trata da adequação dos ambientes de trabalho às funções do trabalhador.
Já na área de Alimentos, o profissional pode atuar na indústria de produtos
alimentícios e de bebidas, principalmente no controle da qualidade microbiológica, físico-
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química e sensorial. Merecem destaque as indústrias de água mineral, de óleos vegetais
comestíveis, de leite e derivados e de produtos que podem promover a saúde, todas em franca
expansão. O farmacêutico trabalha também no desenvolvimento de novos produtos e
ingredientes alimentícios.
Qualquer que seja a modalidade escolhida, o estudante ainda poderá, depois de
formado, seguir a carreira acadêmica em universidades e centros de pesquisa públicos ou
particulares, dentro dos vários campos que a profissão oferece.
O que trataremos agora: do farmacêutico que atua no campo das análises toxicológicas para
fins médico-legais. É preciso ressaltar que não nos deteremos em questões de Direito, na legislação
penal, nem abordaremos o assunto da medicina-legal. Será assunto, talvez, para um próximo
trabalho.
O objetivo, desse capítulo, é restringir e tratar, de maneira suscinta, dessa ciência
multidisciplinar que investiga os toxicantes, sob vários aspectos, e identificar quais os farmacêuticos
que atuam nessa área na Baixada-Santista.
Ajudar a desvendar crimes analisando evidências também é tarefa de farmacêuticos, mas a
demanda por profissionais nesse segmento quase não existe. Isso é o que evidenciamos por meio de
pesquisa de campo.
3.1.1 Campo das análises toxicológicas
Segundo Oga (1996) a Toxicologia é uma ciência multidisciplinar, desde sua natureza,
métodos de detecção, até os efeitos que causam em seres vivos. Portanto, é indiscutível sua
importância no contexto atual da Saúde Pública. Embora, continua o autor, a história da Toxicologia
acompanhe a própria história da civilização:
Um dos documentos mais antigos, o Papiro de Ebers (1500 a. C.), registra
uma lista de cerca de 800 ingredientes ativos, incluindo metais do tipo chumbo e
cobre, venenos de animais e diversos vegetais tóxicos. Hippócrates (460-364 a.C.),
Theophrastus (370-287 a.C.), Dioscories (40-90), entre outros, contribuíram muito
para a identificação de novos agentes tóxicos e terapêuticos (OGA, 1996, p.3).
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“A Toxicologia surgiu no instante em que o homem passou a se servir de compostos vegetais,
minerais ou animais, como alimento, medicamento ou veneno” (ALCÂNTARA, 1985, p. 18) Em cada
época, a Toxicologia teve uma razão para ser considerada importante e, hoje, pode ser estudada com
o objetivo de identificar as substâncias nocivas; promover a profilaxia e a despoluição ambiental;
produzir venenos com toda segurança para operários e a comunidade; fazer diagnóstico clínico e
introduzir o tratamento nos casos de intoxicações; e instruir a polícia e a justiça, nos casos suspeitos
de dependência, suicídio, acidente, homicídio, doenças profissionais, etc.
Dessa feita, a Toxicologia pode ser dividida, de acordo com os diferentes campos de trabalho,
em Toxicologia Analítica, Toxicologia Clínica e Toxicologia Experimental.
A Toxicologia analítica trata da detecção do agente químico ou de algum parâmetro
relacionado à exposição ao toxicante, em substratos tais como fluidos orgânicos, alimentos,
água, ar, solo etc., com o objetivo precípuo de prevenir ou diagnosticar as intoxicações. A
toxicologia analítica busca métodos exatos, precisos, de sensibilidade adequada para a
identificação inequívoca do toxicante, ou para observar alterações bioquímicas funcionais do
organismo.
O atendimento do paciente exposto ao toxicante ou do intoxicado, para diagnosticar e
aplicar-lhe uma terapêutica específica, é da competência dos profissionais que se dedicam à
Toxicologia Médica ou Clínica. Os farmacêuticos, juntamente com o corpo clínico,
desempenham importante papel no diagnóstico das intoxicações e na identificação dos
agentes toxicantes, através de análises laboratoriais, clínicas e toxicológicas.
A Toxicologia Experimental desenvolve estudos para a elucidação dos mecanismos de
ação dos agentes tóxicos sobre o sistema biológico e para avaliação dos efeitos decorrentes
dessa ação.
Já a Toxicologia Forense está no âmbito das análises toxicológicas que são usadas na
detecção e identificação de agentes tóxicos para fins médico-legais. É a manifestação clara de como
a ciência e a legislação podem se sobrepor. O termo forense remete imediatamente ao sistema
judicial, a forças policiais e a tribunais, fornecendo uma visão e aplicação nova e diferente para a
ciência toxicológica. Assim, pode ser definida como a aplicação da ciência toxicológica com
propósitos legais. Ainda que esta definição envolva uma ampla faixa de aplicações, a principal
característica da Toxicologia Forense é a identificação de substâncias químicas que possam estar
relacionadas a um óbito ou dano à propriedade.
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Segundo Alcântara (1985, p. 105)
os diagnósticos clínico, analítico, anatomopatológicos levam ao
diagnóstico etiológico que interessa à Toxicologia Clínica e à Toxicologia Forense,
para, respectivamente, orientar a terapêutica e a apuração da responsabilidade
penal, civil e trabalhista.
O toxicologista forense tem sempre de escolher, entre as varias técnicas analíticas
disponíveis, aquela que é mais conveniente numa determinada análise toxicológica. Esta escolha
deve ser embasada em critérios técnicos como a aplicabilidade, sensibilidade, seletividade, precisão
e exatidão da técnica, alem da disponibilidade e do custo da análise.
A comprovação de uma intoxicação, acidental ou intencional, requer do toxicologista forense
além do conhecimento profundo de química analítica, bom domínio em fisiologia, farmacologia e
principalmente toxicologia básica, para que os achados laboratoriais sejam interpretados de modo
adequado e o laudo pericial seja conclusivo, pois só dessa maneira todo procedimento analítico-
pericial será útil para a execução da justiça. E o farmacêutico, como profissional da saúde habilitado,
com formação especial no uso de fármacos e medicamentos e suas consequências ao organismo
humano e animal, pode trabalhar nessa área, porque possui conhecimentos para a investigação de
overdoses, mortes por decorrência de produtos químicos, além de diversas outras análises.
até ao século XX, a toxicologia forense limitava-se a estabelecer a origem
tóxica de um determinado crime; o toxicologista atuava diretamente no cadáver
com a mera intenção da pesquisa e identificação do tóxico. (...) Atualmente o
campo de ação desta ciência é mais vasto, estendendo-se desde as perícias no vivo
e no cadáver até circunstâncias de saúde pública, tais como aspectos da
investigação no nível da atividade laboral ou do meio ambiente. (...) O exame
toxicológico deve ser capaz de detectar qualquer substância química exógena
(xenobiótico) presente no material objeto da perícia. (...) O resultado destas
perícias apresenta-se na forma de relatório onde devem constar, para além de uma
eventual interpretação dos resultados, os seguintes dados: identificação do
processo e da entidade requisitante, método analítico utilizado e referências à
técnica de isolamento utilizada, datas de recepção de amostras e de conclusão dos
exames, amostras analisadas, especialista responsável pela execução das análises,
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níveis de detecção e de quantificação, estado das amostras analisadas, e outros
que possam ser considerados relevantes para elaboração de conclusões. (...)
Geralmente, o relatório de perícia toxicológica é enviado ao perito médico que
requisitou a perícia, sendo posteriormente remetido à entidade requisitante
isoladamente ou em conjunto com o relatório de autópsia ou de clínica médico-
legal (RANGEL, 2003/2004, p. 1-2).
“A base de um diagnóstico confiável é a realização de uma análise toxicológica eficiente”
(MOREAUX, 2008, p. 7). Os métodos de análise podem ser amplamente classificados em três tipos de
procedimentos. O primeiro é a triagem – métodos gerais, quando não se conhece o agente tóxico a
pesquisar. São empregados para verificar a presença ou ausência de uma determinada classe ou
grupo de compostos. São principalmente usados nas análises toxicológicas de urgência e forense,
mas também são aplicados nas análises de controle de dopagem e farmacodependência. Na
dopagem é realizada, inicialmente, uma triagem para os grupos de substâncias proibidas, como
estimulantes, narcoanalgésicos, esteroides anabólicos, etc., e na farmacodependência, uma triagem
para drogas de abuso.
Em casos de intoxicação aguda e “post-mortem”, espera-se que as concentrações dos
fármacos estejam relativamente altas; nesse sentido, a urina é a amostra de escolha para uma
triagem abrangente de fármacos desconhecidos e/ou seus metabólicos. Quando disponível, é
recomendável usar a bile como amostra complementar para a triagem de fármacos, em adição a
outros fluidos, pois representa um sítio de armazenamento para muitos xenobióticos e
correspondentes metabólicos que estão sujeitos a uma circulação entero-hepática. Muitas vezes, as
concentrações de fármacos na bile são significativamente maiores do que as concentrações
sanguíneas, como, por exemplo, a cocaína e seus metabólicos, benzodiazepínicos, morfina e
colchicina. Além do mais, na bile podem ser detectáveis fármacos que não o foram no plasma.
O sangue (seja total, plasma ou soro) é a amostra de escolha para quantificação. No entanto,
se a concentração sanguínea for suficientemente alta, também é possível ser realizada uma triagem
desse material. Pode ser vantajoso, pois às vezes somente amostras de sangue são disponíveis, como
em casos “post-mortem”, e alguns procedimentos permitem triagem e quantificação simultâneas.
Em casos “post-mortem”, o sangue periférico é o espécime preferido para triagem, uma vez que
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fornece uma melhor evidência direta da ação farmacológica de substâncias, quando comparado com
a urina.
A importância da escolha de um método de triagem é fundamental, pois define a gama de
analitos que serão procurados e detectados.
Confirmação é o outro procedimento - resultados obtidos de técnicas de triagem nunca
podem ser considerados definitivos. Geralmente, a confirmação é realizada por espectrometria de
massas. Nas análises forenses, recomenda-se que, se o resultado analítico tiver uma importância na
investigação criminal, o toxicante seja detectado em outro espécime.
O terceiro procedimento, métodos específicos - são realizados quando o toxicante é
conhecido ou existe forte suspeita de sua identidade, como nos casos em que o exame clínico indica
a ação de um xenobiótico específico. São descritos numerosos procedimentos na literatura utilizando
as mais variadas técnicas para a quantificação dos analitos. No entanto, deve-se ressaltar que a
sensibilidade requerida da técnica selecionada depende da finalidade da análise.
Considerando a amostra, a seleção a ser pesquisada depende da finalidade da análise, da
natureza química, forma e concentração do analito, ou do indicador que se pretende reconhecer ou
qualificar.
Nas análises toxicológicas “post-mortem”, os espécimes biológicos disponíveis são
numerosos e variáveis, e se selecionados de acordo com o histórico do caso. Sempre que possível, o
sangue (periférico e cardíaco) é a amostra de eleição, seguida do fígado e da urina.
Outras amostras também podem ser empregadas para análises mais dirigidas. Por exemplo,
explica Moreaux (2008), para confirmar a exposição ao etanol no cadáver, o humor vítreo é uma
amostra apropriada, pois é menos propenso à contaminação e/ou decomposição, como é o caso do
sangue. No caso de suspeita de mortes por substâncias voláteis ou gases (abuso de inalantes, por
exemplo), tecidos como o cérebro e pulmões são indicados para análise toxicológica. Também em
casos de intoxicação por via intravenosa, concentrações elevadas do fármaco em questão podem ser
encontradas no tecido pulmonar, às vezes, até maiores que as do fígado. Conteúdo gástrico é
especialmente útil se as drogas de abuso ou sais de cianeto foram administrados por via oral; cabelo
e unhas são indicados quando se suspeita de exposição em longo prazo a metais pesados; larvas
encontradas em corpos putrefatos podem ser usadas para obter a confirmação da presença do
fármaco no corpo; evidências encontradas no local podem fornecer informações adicionais para
59
orientar a análise, como resíduos em objetos relevantes tais como copos, xícaras, colheres, frascos,
seringas e garrafas; ou medicamentos encontrados junto ou próximo ao paciente.
Quando a finalidade é urgência, a urina é a principal matriz. Como também no controle da
dopagem (em algumas situações o sangue); no monitoramento da farmacodependência (em alguns
casos, o ar exalado para etanol, ou mesmo a saliva para verificação da exposição às drogas de abuso);
na monitorizarão biológica ocupacional (também sangue e ar exalado).
Enfim, em nossa sociedade, estamos rodeados de um grande número de agentes químicos,
como praguicidas, produtos de uso doméstico e industrial, princípios ativos de medicamentos,
fármacos de abuso, agentes de dopagem, resíduos em alimentos etc., que podem ser tóxicos ao
homem, aos animais e ao macroambiente. O toxicologista analítico precisa ser capaz de identificar
tais compostos, diferenciá-los de outros similares a elas e quantificá-los em um tempo
razoavelmente pequeno.
3.1.2 Resultado dos questionários
Os profissionais que consentiram livremente em participar desse estudo na Baixada-Santista,
foram entrevistados pessoalmente, em seus locais de trabalho – no Palácio da Polícia, Núcleo de
Perícias Criminalísticas de Santos – Instituto de Criminalística -, e responderam a um questionário de
21 perguntas pertinentes ao cargo (Perito-criminal toxicologista) e à atividade que desempenham
(Análises de drogas psicoativas de medicamentos controlados e substâncias controladas, drogas
venenosas em sangue, urina e vísceras). Os questionários se encontram em anexo.
Foi interessante verificar que, desde Registro até o fim do Litoral Norte do Estado de São
Paulo, atuam apenas dois profissionais na área, e só um deles é Farmacêutico. O outro é Engenheiro
Químico. O cargo é por concurso público.
Segundo informações dos próprios entrevistados, havia quatro profissionais ao todo que
trabalhavam junto ao IML, antigo local de trabalho. Dois morreram, um pediu demissão, o outro é o
Farmacêutico entrevistado. O Engenheiro Químico veio depois da transferência do laboratório para o
Palácio da Polícia, Núcleo de Perícias Criminalísticas de Santos/SP.
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O grande problema, disseram em entrevista, é que para atender toda a demanda dessa
região – Baixada-Santista -, e realizar todas as análises requisitadas, seria necessário um laboratório
melhor estruturado e mais dez profissionais trabalhando nele. Ou que cada município tivesse seu
centro de análises toxicológicas, para não sobrecarregar o Núcleo.
Raramente são abertas vagas para concurso público de Perito-criminal toxicologista e não há
interesse do poder público em equipar laboratórios existentes, como de Santos/SP, por exemplo.
Então, uma análise dos espécimes biológicos que levaria dois dias para ser concluída, demora, hoje,
em média, dois meses. A maioria das matrizes para análise precisa ser enviada a São Paulo/Capital.
Os dois peritos só trabalham com identificação química e cromatográfica de drogas, medicamentos e
solventes.
O Farmacêutico entrevistado é Dr. Dário Bonifácio, nascido em 1950. Ingressou no serviço
público por concurso em 1976 e ficou sabendo da profissão na área de toxicologia forense por meio
da disciplina de Toxicologia na Faculdade. É Farmacêutico-bioquímico, modalidade Análises Clínicas e
Toxicológicas pela Universidade de São Paulo. Possui pós-graduação – Mestrado – em Saúde Coletiva
e não se especializou na área forense, mas considera, conforme sua resposta no questionário, que “o
currículo e a vivência na área definiram sua experiência”. Trabalha no Instituto de Criminalística
desempenhando a atividade de Análise de drogas psicoativas, de medicamentos controlados e
substâncias controladas. Antes, no IML, também análises de drogas e venenos em sangue, urina e
vísceras. Foi, também, professor universitário em Santos/SP.
Como foi mencionado, as matrizes biológicas que utiliza são: drogas e medicamentos; os
tipos de análises que executa: identificação química e cromatográfica de drogas, medicamentos e
solventes.
As disciplinas de formação universitária, necessárias e importantes, que o ajudaram a
desempenhar sua atividade foram a Toxicologia, Farmacologia, Botânica, Química Analítica e
Orgânica, Bioquímica e Patologia. Mas, em sua opinião, as faculdades deveriam abordar Toxicologia
em todas as suas áreas, de modo bastante completo. Quando perguntado, como a formação
acadêmica o ajudou a desempenhar as atividades periciais, respondeu textualmente: “De todas as
formas, todo o currículo é útil para as várias situações”.
Acredita em ótimas perspectivas, melhoria salarial para os de sua área profissional e
melhores recursos para a realização das análises. È a favor de apenas Peritos Criminais atuarem nos
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laboratórios da policia, com troca de informações em cada área pericial (perito oficial). Ressaltou
novamente que as principais dificuldades são os recursos escassos, o instrumental precário e a maior
demanda, atualmente, são as drogas de abuso e anabolizantes. No antigo local de trabalho, o IML,
era para overdose de drogas e venenos (principalmente “chumbinho”).
Dr. Dário Bonifácio fez a seguinte observação para encerrar a entrevista: “O melhor
profissional para nossa área continua sendo o farmacêutico-bioquímico com ênfase em análises
clínicas e toxicológicas. Ressalta-se que o Dr. Bonifácio é um profissional muito solicitado para dar
palestras sobre esta área em outros locais.
O Engenheiro Químico entrevistado é Ivan Eduardo Tucci, de 47 anos, que exerce o cargo
Perito Criminal também no Palácio da Polícia, Núcleo de Perícias Criminalísticas de Santos/SP, na Rua
São Francisco, 136, 3° andar, Setor de Toxicologia do Núcleo. Ingressou no serviço por concurso
público; ficou sabendo da área de Toxicologia forense nas aulas da Universidade. Possui formação
em Engenharia Química, atuou 17 anos na parte de perícia de laboratório, sete desses anos foram
dedicados à área de química forense. Ressalta que o concurso e o curso de Perito criminal não são
direcionados à área forense.
Desempenha atividade de análise de substâncias de drogas ilícitas nos termos da Lei Federal
Nº 11.343/2006, de emissão do correspondente relatório (laudo) fazendo considerações sobre a
análise. Atua na Química Forense parcialmente relacionada à física forense. Não possui outro
emprego.
Trabalha com os seguintes métodos analíticos: análise química visando à identificação de
cocaína e canabinoides (maconha) e análises com cromatografia em camada delgada, reveladores
para confirmar essas substâncias. Não utiliza matrizes biológicas. Os tipos de análise que executa são:
cromatografia de camada delgada, análise química de teste scot para cocaína, reativos para
inalantes, essencialmente, clorofórmio e derivados. Os tipos de análises são duquenois para
canabioides e marquis para outras substâncias.
A disciplina de formação universitária que considera importante e necessária para
desempenhar sua atividade é Toxicologia forense, além do curso de perito criminal da academia de
polícia. A formação acadêmica deu-lhe conhecimento para fazer as análises químicas e entendê-las
mais profundamente, mas não teve disciplinas na faculdade enfocando essa área.
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Quando perguntado sobre as faculdades e o que elas deveriam abordar a fim de criar um
bom profissional, respondeu: “A importância do conhecimento técnico nos processos judiciais e
inquéritos judiciários, visando a fornecer provas técnicas”.
Sobre as perspectivas em sua profissão, acredita que no futuro haja mais investimentos na
área, na pesquisa forense. Não é necessariamente a favor de só os Peritos Criminais atuarem nos
laboratórios da polícia e que a principal dificuldade de se atuar na área forense é laboratórios mal
equipados e más ações administrativas. Sua maior demanda é de análise de cocaína e seus derivados
e maconha. No final da entrevista, observou que em cada local de perícia que trabalhou encontrou
dificuldades em alguma coisa, como local apropriado, espaço necessário com técnicos e materiais
para realizar as análises.
Dessa maneira, esses são os dados obtidos e que se fizeram necessários para dar-nos noção
dos profissionais que atuam na área Forense, em cargos de Perito-criminal Toxicologista, na Baixada-
Santista. São esses transcritos conforme a entrevista. As cópias dos questionários estão em anexo,
com as devidas assinaturas de consentimento livre e esclarecido.
O que se pode concluir, diante dos resultados obtidos, é que a contribuição desses
profissionais é ímpar para a compreensão desse campo de atuação, por isso o autor desse trabalho
agradece muito ao Dr. Dário Bonifácio e ao Eng. Ivan Eduardo Tucci.
Nossa intenção era somente a de identificar e entrevistar Farmacêuticos que atuam na área
forense, e assim foi, encontramos apenas um em toda a Baixada-Santista. Não porque outros
farmacêuticos não pudessem atuar nessa área, mas por falta de concursos públicos que o
colocassem nesses cargos. Resolvemos, então, incluir nesse trabalho, a entrevista que realizamos
com o Engenheiro Químico, pois a consideramos oportuna e de extrema relevância para quem deseja
compreender melhor as atividades que desempenham esses profissionais. A contribuição dos
profissionais entrevistados foi muito esclarecedora, porque inédita.
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CONCLUSÃO
Apesar das forças das determinações econômicas sobre nossas vidas, procuramos mostrar a
nossa crença no farmacêutico de hoje, que procura em outras áreas, atuação legítima. É evidente
que a profissão de farmacêutico se modificou, como bem descrevemos nos capítulos anteriores,
desapareceu o prático médico-farmaêutico das civilizações antigas, influenciado por Alcméon de
Crotona, por Hipócrates e, depois Galeno e Dioscórides; desapareceram os ajudantes para as
sangrias e flebotomias, o barbeiro-cicurgião, o herbarius, que bem como o pigmentarius,
especializou-se na preparação de medicamentos no século XII.
Deu-se a separação entre o farmacêutico e o médico, denominados após de boticário e
físico-mor. As sangrias perderam seu uso, bem como a simplicidade das caixas de botica. As
Pharmacopeias se aperfeiçoaram. Também desapareceram, com a industrialização maciça dos
medicamentos, os enormes laboratórios, por vezes inacessíveis, atrás das boticas com paredes
enfeitadas de longos renques de boiões holandeses e portugueses, portadores de rótulos sábios.
A imagem do profissional apoiado sobre o balcão de sua farmácia, pronto para receber os
fregueses-amigos, talvez não exista mais. Nem aquele cenário da velha farmácia dos dias de outrora,
com pesados móveis escuros de madeira de lei. Imaginem, as modificações foram tantas nas últimas
décadas, que até corremos o risco de ver os medicamentos serem vendidos em supermercados,
como bem desejava um Ministro da Saúde. Para o bem não aconteceu.
Embora as mudanças ocorridas tenham surpreendido os farmacêuticos e provocado
inúmeros questionamentos, é interessante perceber que ele ainda continua ligado ao medicamento,
mesmo trilhando outras áreas de atuação. Esse foi o objetivo desse trabalho, refletir sobre esse
profissional, por meio da história dele, e identificá-lo com a roupagem atual. Que não é mais só o
profissional da farmácia, mas o Profissional de Farmácia – mesmo que escrevam que ele se tornou
mais um profissional da saúde da coletividade.
Como já mencionado, a presença desse profissional é exigida em todas as fases da atenção à
saúde em que o medicamento está envolvido. Então, citando Silva (1968) novamente, julgamos não
ser, no entanto, exagerado afirmar que se em nenhuma época da história humana o medicamento
apresentou maior importância para o homem civilizado do que na época em que vivemos, o
Farmacêutico não perdeu, portanto, sua identidade.
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ANEXOS