recursos hídricos e ferramentas públicas no brasil

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RECURSOS HIDRICOS E FERRAMENTAS PÚBLICAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL. Amalia Maria Goldberg Godoy Universidade Estadual de Maringá [email protected] RESUMO: Este artigo explora uma das facetas da gestão integrada dos recursos hídricos, pois , pois, o acesso em qualidade e quantidade necessárias é fundamental. A água é um recurso de uso comum e de múltiplos usos e fundamental para o desenvolvimento econômico. A implementação de normas e leis com a Política Nacional de Recursos hídricos têm como pressuposto criar instâncias formais para a resolução de conflitos com a participação dos usuários, de maneira a garantir os objetivos do desenvolvimento regional/territorial. As perguntas que se fazem são: quais os conflitos que existem e como ocorre a implementação dos instrumentos de resolução nos estados?. Através da abordagem histórica apresentam-se a distribuição dos recursos e os conflitos bem como o ambiente institucional jurídico instalado, após a Constituição de 1988. A conclusão é que os instrumentos são passos importantes e necessários, mas estão longe de serem suficientes para a gestão integrada. Palavras-chaves: recursos hídricos, plano nacional de recursos hídricos, conflitos ABSTRACT: This article explores the integrated administration of the water resources because the protection of this resource is fundamental. The water is a common resource pool and multiples uses and fundamental for the economic development. The application of norms and laws with the National Politics of Water Resources have as presupposition to create formal instances for the resolution of conflicts with the users' participation to guarantee the objectives of the regional and territorial development. The questions that make is: which the conflict that exist and as it happens the application of the resolution instruments in the states?. Using the historical approach it show the distribution of the resources and the conflicts as well as juridical instruments and institutional atmosphere after the Constitution of 1988. The conclusion is that the instruments are important and necessary steps but they are far away from they be enough for the integrated administration. Word-keys: water resources, national plan of water resources, conflicts ÁREA TEMÁTICA: RECURSOS HÍDRICOS, RECURSOS NATURAIS E MEIO AMBIENTE. 1. Introdução e conceitos A água tem um papel fundamental para o ser humano. Além de manter e exercer funções vitais como regulação térmica e a renovação dos tecidos, o homem não sobrevive sem beber água por mais de uma semana.

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Este artigo explora uma das facetas da gestão integrada dos recursos hídricos, pois , pois, o acessoem qualidade e quantidade necessárias é fundamental. A água é um recurso de uso comum e de múltiplos usos e fundamental para o desenvolvimento econômico. A implementação de normas e leis com a Política Nacional de Recursos ídricos têm como pressuposto criar instâncias formais para a resolução de conflitos com a participação dos usuários, de maneira a garantir os objetivos do desenvolvimento regional/territorial.As perguntas que se fazem são: quais os conflitos que existem e como ocorre a implementação dosinstrumentos de resolução nos estados?. Através da abordagem histórica apresentam-se a distribuição dos recursos e os conflitos bem como o ambiente institucional jurídico instalado, após a Constituição de 1988. A conclusão é que os instrumentos são passos importantes e necessários, mas estão longe de serem suficientes para a gestão integrada.

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Page 1: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

RECURSOS HIDRICOS E FERRAMENTAS PÚBLICAS DE RESOLUÇÃO DE

CONFLITOS NO BRASIL.

Amalia Maria Goldberg Godoy

Universidade Estadual de Maringá

[email protected]

RESUMO: Este artigo explora uma das facetas da gestão integrada dos recursos hídricos, pois , pois, o acesso em qualidade e quantidade necessárias é fundamental. A água é um recurso de uso comum e de múltiplos usos e fundamental para o desenvolvimento econômico. A implementação de normas e leis com a Política Nacional de Recursos hídricos têm como pressuposto criar instâncias formais para a resolução de conflitos com a participação dos usuários, de maneira a garantir os objetivos do desenvolvimento regional/territorial. As perguntas que se fazem são: quais os conflitos que existem e como ocorre a implementação dos instrumentos de resolução nos estados?. Através da abordagem histórica apresentam-se a distribuição dos recursos e os conflitos bem como o ambiente institucional jurídico instalado, após a Constituição de 1988. A conclusão é que os instrumentos são passos importantes e necessários, mas estão longe de serem suficientes para a gestão integrada. Palavras-chaves: recursos hídricos, plano nacional de recursos hídricos, conflitos

ABSTRACT: This article explores the integrated administration of the water resources because the protection of this resource is fundamental. The water is a common resource pool and multiples uses and fundamental for the economic development. The application of norms and laws with the National Politics of Water Resources have as presupposition to create formal instances for the resolution of conflicts with the users' participation to guarantee the objectives of the regional and territorial development. The questions that make is: which the conflict that exist and as it happens the application of the resolution instruments in the states?. Using the historical approach it show the distribution of the resources and the conflicts as well as juridical instruments and institutional atmosphere after the Constitution of 1988. The conclusion is that the instruments are important and necessary steps but they are far away from they be enough for the integrated administration. Word-keys: water resources, national plan of water resources, conflicts

ÁREA TEMÁTICA: RECURSOS HÍDRICOS, RECURSOS NATURAIS E MEIO AMBIENTE.

1. Introdução e conceitos

A água tem um papel fundamental para o ser humano. Além de manter e exercer

funções vitais como regulação térmica e a renovação dos tecidos, o homem não sobrevive

sem beber água por mais de uma semana.

Page 2: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

O desenvolvimento econômico e social de qualquer país está fundamentado na

disponibilidade de água potável e na capacidade de conservação e proteção dos recursos

hídricos. É um importante insumo de vários produtos de consumo final e intermediário.

Nesse contexto, o termo recurso hídrico considera a água como bem econômico. Ou

seja, ocorre a passagem da água como bem comum para, no caso brasileiro, para bem

público, com valor/preço, normas e regras escritas para a sua utilização por vários tipos de

usuários.

Embora o homem dependa da água para a sua sobrevivência e os países para o seu

desenvolvimento, o aumento da demanda e da degradação das águas superficiais1 e

subterrâneas2 aumentam a cada ano que passa. No Brasil, já ocorrem muitas pressões

ocasionadas pelo aumento das demandas hídricas e pela deterioração da qualidade que

comprometem a saúde da população brasileira, o meio ambiente e o desenvolvimento.

Existem várias discussões que envolvem os conflitos nos diversos usos da água.

Segundo Mueller (2002, p. 50), a disputa ou os conflitos entre os diversos usos da água

ocorrem a partir do momento em que, devido ao uso inadequado ou a modificação pela

ação humana, esta passa a ser escassa ou insuficiente para o suprimento das várias

necessidades.

Por sua vez, sem referência ao conflito diretamente mas à necessidade de regras

formais, Kanazawa (1999, p.20) afirma que quando um bem tem significativos

impactos/efeitos externos, como no caso da água, surgem sistemas complexos de regras

para governar diferentes aspectos do uso do bem.

O surgimento das regras, portanto, passa a depender dos desequilíbrios ambientais, a

escassez, entre outros, que são observados e não evitados pelas regras até então existentes.

Existe uma forte tendência a afirmar que o desequilíbrio ambiental surge devido a falta de

gerenciamento e de dispositivos jurídicos, que limitem/proíbam as práticas inadequadas.

No presente artigo, a instituição formal legal é a Lei federal 9.433/97 e os limites

determinados por elas incluem o que é proibido fazer, quais as instâncias legais para a

1 -São consideradas águas superficiais os rios, lagos, mares, oceanos e geleiras 2 - As águas subterrâneas são os lençóis freáticos e poços semi-artesianos e artesianos.

Page 3: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

resolução dos conflitos e quais as regras para obter acesso para as diversas atividades que

usam o recurso.

Não há dúvidas que essa abordagem jurídica e formal, por sua vez, é incompleta, pois,

parte do principio, que com as novas regras, ocorrem melhores soluções pelo diálogo entre

dos diversos grupos de interesse que visam o bem-estar comum. No entanto, estes grupos

têm estratégias traçadas e atuam no sentido de regulamentar as diferentes possibilidades de

usos das águas de maneira a beneficiar alguns setores (Godoy, 2005).

Além disso, o recurso natural é uma construção social, ou seja, passa a ser recurso a

partir do momento em que a sociedade define o elemento natural como tal (DEL PRETTE,

2000, p.48-49). Veja o caso do petróleo que passa a ser recurso “escasso” e futura “fonte de

conflito” a partir do momento em que foi utilizado por Henry Ford, para movimentar o

automóvel. O que não vale nada, hoje, por uma série de circunstâncias inclusive

tecnológicas, podem ser fonte de disputas até internacionais.

No presente artigo parte-se da hipótese de que.as regras formais existentes para os

recursos hídricos são uma condição necessária, mas não suficientes para resolver os

conflitos existentes. Os objetivos são apresentar os conflitos existentes e a evolução

institucional e a proposta de resolução por parte do poder público, no Brasil.

2. A distribuição e os conflitos

A água, além de ser vital para o homem é condição fundamental para o

desenvolvimento, pois tem inúmeros usos. Os mais freqüentes são os usos domésticos,

industriais, agrícolas e energéticos.

Segundo REBOUÇAS (1999, p.7), a quantidade de água na Terra é praticamente a

mesma, nos últimos 500 milhões de anos. Totaliza 1.386 milhões de km3 e se distribui

conforme a tabela 1:

Observa-se que 97,5% das águas são salgadas. O restante, 2,5%, é de água doce. Com

relação a esta última tem-se que: a) 69% de toda a água doce é composta por geleiras

glaciais, calotas polares e neves eternas, portanto, não disponível para o consumo humano;

e, b) o restante, ou seja, somente 31% das águas doces, estão disponíveis nos rios e lagos,

Page 4: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

para uso e consumo imediato e futuro3, assim como compõem a umidade dos solos, vapor

e águas dos pântanos. Acredita-se que menos de 1% de toda a água doce seja potável.

Tabela 1 – Distribuição percentual das águas no mundo Distribuição por tipo Percentual Água salgada 97, 5 Água doce 2,5 - geleiras e neves eternas 69,0 - água subterrânea 30,0 - rios e lagos 0,3

- outras situações (vapor, pantanais e umidade de solo) 0,7 Fonte: Tundisi (2003).

A água é um bem inesgotável e reciclável, pois, ela tem um ciclo hidrológico. O ciclo

hidrológico opera em função da energia solar que produz evaporação dos oceanos e dos

efeitos dos ventos, que transportam vapor d’água acumulado para os continentes, como se

observa na figura 1.

FIGURA 1 - CICLO HIDROLÓGICO Fonte: Shiklomanov (1999)

3 As quantidades estocadas nos diferentes reservatórios da Terra, variam substancialmente segundo a metodologia utilizada (GODOY, 2003)

Page 5: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Como as características do ciclo hidrológico não são homogêneas ocorre tanto a

distribuição desigual da água no planeta quanto dentro de cada país. Segundo a UNESCO

(2006), há 26 países com escassez de água e, pelo menos, 4 países (Kuwait, Emirados

Árabes Unidos, Ilhas Bahamas, Faixa de Gaza – território palestino) com extrema escassez

de água (entre 10 e 66 m3/habitante/ano).

A distribuição das águas e da população pode ser vista na tabela 2.

Existem situações discrepantes, como se pode observar: a Ásia tem 60% da população

mundial e somente 36% de recursos hídricos enquanto a América do Sul tem 6% da

população e 26% das águas mundiais.

Tabela 2 -Disponibilidade de água e população por continente (em %) Continente Água População América do Norte e Central 15% 8% Europa 8% 13% Ásia 36% 60% América do Sul 26% 6% África 11% 13% Austrália e Oceania 5% 1%

Fonte: UNESCO (2006)

A distribuição desigual da água tem causado sérias limitações para o desenvolvimento

de várias regiões e restringe o atendimento das necessidades humanas. Além de haver a

demanda para vários usos (domestico, energia, industrial e agrícola), a escassez está se

expandindo para áreas cada vez mais extensas, o que pode resultar em sérios problemas de

segurança regional, conflitos e migrações em larga escala (SALATI, LEMOS E SALATI,

1999, p.58)

Outro fator desafiante da gestão é que muitos países tornam-se, cada vez mais,

dependentes de águas geradas fora de seus territórios, o que agrava os problemas políticos e

sociais, em nível internacional. Alguns países que se encontram nessa situação são: Egito,

Hungria, Bulgária, Holanda, Camboja, Síria, Congo, Sudão, Paraguai, Niger, Iraque,

Uruguai, Alemanha, Portugal, Venezuela, Senegal e Israel.

Page 6: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

À medida que ocorre uma percepção cada vez mais acentuada sobre os recursos

hídricos e seu valor econômico e social, mais acirrada se torna a disputa por recursos

hídricos nacionais e internacionais (TUNDISI, 2003)

Conseqüentemente, apesar de ser considerada abundante por boa parcela da

população, a água é escassa em vários países e dentro de cada país e pode se tornar

inapropriada para vários fins devido às atividades humanas que interferem no ciclo

hidrológico e alteram o padrão e a disponibilidade da água ao longo do tempo e no espaço.

Essa situação tem resultado em conflitos, ameaçado o desenvolvimento das regiões e exige

mecanismos de resolução.

3. A situação brasileira.

O Brasil possui uma área de 8.511.965 km2 e, aproximadamente 90% do território

apresenta clima tropical dominante e abundante quantidade de chuvas. A interação do clima

e regime de chuvas proporciona elevado excedente hídrico.

Como resultado, o Brasil é um país rico em água, pois, dispõe de 177.900 m3/s de

descarga de água doce em seus rios. Unindo-se à descarga dos rios amazônicos

internacionais, que é de 73.100 m3, juntos alcançam uma descarga total 251.000 m3/s, o que

representa 53% da produção de água doce do continente sul-americano (que é de 334.000

m3/s); e 12% de água doce superficial do mundo, que é da ordem de 1.488.000 m3/s

(REBOUÇAS, 1999, p.30).

Devido a essa “disponibilidade”, o país viveu a ilusão de sua abundância que, após os

“apagões”, racionamentos e secas sucessivas, parece se desfazer.

Apesar da situação privilegiada do Brasil, a situação exige cuidado. No Brasil, além

da distribuição desigual das águas ocorrem diferenças nas demandas per capita.

Observa-se pela tabela 3 que 79,7% do potencial hídrico está localizado na Região

Norte, que possui 7,8% da população e a menor demanda no Brasil. Particularmente, a

região Amazônica, que corresponde a 54,48% do território nacional, abriga uma escassa

população de 1 hab/Km2.

Page 7: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

As águas restantes, ou seja 21,3%, estão localizadas nas demais regiões do país, que

abrigam 92,2% da população total.

Tabela 3 – Disponibilidade hídrica, Potencial Hídrico e demandas por Estados do Brasil Estados

População

Demanda Total

Potencial Hídrico

Demanda Potencial

Hab. % M3/s % m3/hab/ ano

m3/s % M3/hab/ano (%)

Acre 483.374 0,3 2,2 0,1 144 5.395 2,1 351.977 0,04 Amapá 361.831 0,2 1,7 0,1 148 3.660 1,4 318.994 0,04 Amazonas 2.506.044 1,5 14,1 0,7 177 133.000 51,6 1.673.669 0,01 Pará 6.264.869 3,9 31,9 1,5 161 31.679 12,3 159.465 0,10 Rondônia 1.649.353 1,0 7,9 0,4 151 22.338 8,7 427.108 0,04 Roraima 340.734 0,2 2,1 0,1 194 5.412 2,1 500.989 0,04 Tocantins 1.016.879 0,6 21,7 1,0 673 3.898 1,5 120.887 0,56 NORTE 12.623.084 7,8 81,6 3,8 204 205.382 79,7 513.102 0,04 Alagoas 2.796.375 1,7 20,1 0,9 227 140 0,1 1.579 14,4 Bahia 13.114.736 8,1 128,0 6,0 308 1.143 0,4 2.748 11,2 Ceará 6.915.342 4,3 79,7 3,7 363 491 0,2 2.239 16,2 Maranhão 5.418.080 3,3 26,3 1,2 153 2.684 1,0 15.622 1,0 Paraíba 3.415.886 2,1 31,2 1,5 288 146 0,1 1.348 21,4 Pernambuco 7.616.477 4,7 80,1 3,8 332 298 0,1 1.234 26,9 Piauí 2.810.968 1,7 36,0 1,7 404 786 0,3 8.818 4,6 R.G. do Norte 2.691.619 1,7 27,8 1,3 326 136 0,1 1.593 20,4 Sergipe 1.684.620 1,0 16,4 0,8 307 82 0,03 1.535 20,0 NORDESTE 46.464.103 28,7 445,6 20,9 302 5.906 2,3 4.009 7,54 Espírito Santo 2.911.399 1,8 56,6 2,7 613 552 0,2 5.979 10,3 Minas Gerais 16.931.099 10,4 224,5 10,6 418 6.165 2,4 11.483 3,6 Rio de Janeiro 13.522.553 8,3 197,8 9,3 461 930 0,4 2.169 21,6 São Paulo 35.035.219 21,6 467,5 22,0 421 2.912 1,1 2.621 16,1 SUDESTE 68.400.270 42,2 946,4 44,5 436 10.559 4,1 4.868 8,96 Paraná 8.838.903 5,5 80,6 3,8 288 3.713 1,4 13.247 2,2 Sta. Catarina 5.022.885 3,1 78,3 3,7 492 2.026 0,8 12.720 3,9 R. G. do Sul 9.826.970 6,1 378,8 17,8 1.216 6.210 2,4 19.929 6,1 SUL 23.688.758 14,6 537,7 25,4 716 11.949 4,6 15.907 4,50 Dist. Federal 1.836.866 1,1 11,9 0,6 204 89 0,03 1.528 13,4 Goiás 4.428.021 2,7 41,2 1,9 293 5.098 2,0 36.308 0,8 Mato Grosso 2.623.374 1,6 31,0 1,5 373 16.549 6,4 198.938 0,2 M. G. do Sul 2.002.684 1,2 31,7 1,5 499 2.208 0,9 34.769 1,4 CENTRO-OESTE

10.890.945 6,7 115,8 5,4 355 23.994 9,3 69.477 0,48

BRASIL 162.067.160 100 2.127,1 100 414* 257.790 100 50.162* 0,83* FONTE: Maia Neto (1997)

Page 8: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

O Sudeste, que tem a maior concentração populacional (42,2%), a maior demanda

(44,5%) dispõe de apenas 4,1% dos recursos hídricos. O Nordeste, que abriga 28,7% da

população dispõe de apenas 2,3%. A região Sul, com 14,6% da população, participa com

25,4% da demanda total e a disponibilidade hídrica corresponde a 4,6%.

As regiões Sul e Sudeste se destacam pela concentração populacional, o consumo

elevado de água e por possuir bacias hidrográficas localizadas em regiões altamente

industrializadas há tempos apresentam conflitos de uso, sobretudo em decorrência da

contaminação por efluentes industriais e domésticos, como relata a ABES (1997).

4. Confitos e pressões

Apesar da quantidade de água no planeta ser a mesma, a qualidade se deteriora e a

demanda aumenta, o que gera pressões e conflitos de uso.

Dados da WWF (2006) mostram que o consumo vem aumentando, nos últimos 100

anos, conforme mostra o Gráfico 1.

Gráfico 1 – Tendências no consumo global de água, 1900-2000

Page 9: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Fonte: WWF (2006, p.12)

De 1900 a 2000, o consumo total da água no planeta aumentou dez vezes (de 500

km3/ano para mais 5.000 Km3/ano). Os usos da água aceleram-se em todas os setores,

continentes e países.

No Brasil, em 1940, a população era de 40 milhões de habitantes, dos quais 12,8

milhões viviam em núcleos urbanos. No início deste século, a população brasileira quase

quadruplicou e mais de 80% vive nas cidades.

A urbanização acelerada, por sua vez, produz inúmeras alterações no ciclo

hidrológico: as águas para suprir as necessidades múltiplas são buscadas cada vez mais

longe e aumentam os custos do tratamento; há a necessidade de mais energia para a

população e para distribuição de água; as demandas de água na agricultura aumentam e a

população menos favorecida ocupa e exerce pressões sobre os mananciais.

Soma-se que muitos dos lixões estão em áreas alagadiças, em nascentes e alteram a

qualidade dos lençóis freáticos. Muitos loteamentos clandestinos (inclusive, as favelas) são

construídos em áreas de mananciais. Em São Paulo, quase 20% da população total ocupa

áreas de encosta e várzeas. Na Região Metropolitana de São Paulo, a capacidade média

máxima do sistema de água potável é de 70 m3/s enquanto que a demanda média é de 60

m3/s (Scare, 2003, p.122)

Para se ter uma idéia dos impactos sobre os recursos hídricos das diversas atividades,

destacam-se, para o artigo, o saneamento básico e os setores alimentício e energético.

4.1. Saneamento Básico

O Brasil apresenta poluição das águas decorrente de esgotos domésticos e industriais

e das atividades de mineração, inclusive o garimpo. No entanto, segundo MMA (2002), a

principal pressão nos mananciais hídricos é gerada pela precariedade da rede de

saneamento básico existente na maioria das cidades brasileiras.

A situação brasileira é diferenciada regionalmente, como se pode observar na tabela

4.

Page 10: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Tabela 4 – Cobertura dos serviços de água e esgoto no Brasil - 2000

Regiões Nº.domicilios Cobertura água encanada (%)

Cobertura de esgoto (%)

Norte 2.809.912 47,9 35,62 Nordeste 11.401.385 66,39 37,95 Centro-Oeste 3.154.478 73,19 40,79 Sudeste 20.224.269 88,33 82,33 Sul 7.205.057 80,06 63,78 Brasil 44.795.101 77,82 62,20

Fonte: IBGE, Indicadores sociais, 2000.

O país, sem dúvida, pós-anos 1970, avançou na cobertura de serviços de saneamento.

Pela tabela, 77,82% das residências tem água tratada encanada e o acesso a esgoto é de

62,20%. No entanto, a cobertura dos serviços não ocorreu de forma homogênea nas regiões.

Além de existir, em cada região, uma situação desequilibrada entre a cobertura de água

encanada e tratamento de esgotos, sendo este ultimo em menor proporção, ainda ocorre a

oferta diferenciada de coleta e tratamento de esgoto entre as regiões. As regiões Sul e

Sudeste têm a maior cobertura e as regiões Norte e Nordeste são exemplos emblemáticos

dos desequilíbrios.

Os esgotos não tratados são, em grande parte, jogados in natura nos rios, o que

contamina o solo e as bacias hidrográficas urbanas assim como deteriora a saúde das

populações4. Quanto a essa última, as mais atingidas são as mais pobres, que tem menor

acesso aos serviços de tratamento de esgoto, como se pode constatar na tabela 5.

Em todas as regiões verificam-se que o acesso à coleta e o tratamento de esgoto é

proporcionalmente bem menor entre os mais pobres relativamente aos 10% mais ricos.

Pode-se apontar que, apesar dos avanços na prestação dos serviços de saneamento,

esta atinge diferenciadamente as regiões e as populações.

4 As doenças veiculadas pela água são: cólera, amebíase, gastroenterite viral, hepatite A, desinteria basilar, esquistossomose e dengue.

Page 11: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Tabela 5 - Acesso aos serviços de saneamento conforme a renda, 1992 e 1999.

ACESSO AO TRATAMENTO DE ESGOTO REGIÕES

ANOS 40% mais pobres 10% mais ricos Norte 1992

1999 6,6 5,8

0,6 23,4

Nordeste 1992 1999

7,4 11,5

42,9 53,6

Centro-Oeste 1992 1999

17,9 22,6

59,3 60,4

Sudeste 1992 1999

52,9 66,7

91,3 93,7

Sul

1992 1999

22,8 30,9

60,6 70,6

BRASIL 1992 1999

26,3 32,3

76,5 80,1

Fonte: IBGE (2000).

4.2. O setor de alimentos

O Brasil perde, todo ano, toneladas de solos férteis, aliada à prática de monocultura

extensiva, queimadas e desmatamentos. Junto com o solo, também se perde água, quando a

erosão carrega os sedimentos, o que causa o assoreamento dos cursos d´água. Soma-se a

isso, devido a necessidade de aumentar a produção utilizam-se fertilizantes e agrotóxicos de

forma exagerada e sem muitos critérios. O Brasil se encontra no oitavo lugar em uso de

agrotóxicos, com um consumo aproximado de 3 kg/ha (EMBRAPA, 2002).

Conseqüentemente, tanto a quantidade quanto a qualidade da água são comprometidas.

Grandes quantidades de água são utilizadas para a obtenção de alimentos vegetais e

de origem animal. Em termos mundiais, esse uso responde por cerca de 70% do consumo.

No Brasil, segundo FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (1998), o consumo de água supera os

60%.

Segundo CHRISTOFIDIS (2001) E CARMO (2004), o Brasil é um grande

exportador de água virtual5. Em média, para produção de 1Kg de trigo são necessários

1.000 Kg de água; cada quilo de soja exige dois mil litros de água para ser produzido. Já o

quilo da carne bovina exige 43 mil litros de água. Neste cálculo entram não só a água

5 É a quantidade de água que se utiliza para a produção de commodities, conforme CARMO (2004).

Page 12: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

consumida diretamente pelo animal, que varia de 50 a 60 litros por dia, mas também a água

utilizada na produção da alimentação do gado.

Além disso, a produção agrícola depende da irrigação, da precipitação natural e da

água produzida por aqüíferos subterrâneos utilizada para irrigação. No Brasil, houve um

crescimento das áreas irrigadas de 2.332 milhões de hectares, em 1990, para 3.113 milhões

de hectares, em 2001 (CHRISTOFIDIS, 2002).

A irrigação, sem tecnologia, apresenta grandes impactos. Além de consumir muita

água, ela altera significativamente o ciclo da água, a retirada ocorre numa velocidade muito

maior do que a sua reposição natural. Segundo dados da UNESCO (2004), no Brasil, os

maiores desperdícios de água vêm da fruticultura, do cultivo de grãos irrigados e da

pecuária de corte.

À medida que são intensificados os vários usos da água, torna-se evidente o

crescimento dos conflitos, como os da transposição do rio São Francisco. No Sudeste,

evidenciam-se os conflitos em torno da utilização da água dos rios Paraíba do Sul,

Piracicaba e Capivari, entre outros. No Sul do país, nas bacias dos rios Araranguá, Itajaí,

Tubarão, Jacuí e baixo Uruguai, a grande demanda de água é para irrigação de arrozais

(CAMARGO E PEREIRA, 2003).

4.3. Setor energético

Hoje, o Brasil dispõe de um dos maiores parques hidrelétricos do mundo: mais de

75% da matriz energética tem como base os recursos hídricos, conforme se observa na

Tabela 6.

A energia hidrelétrica foi uma prioridade na industrialização do Brasil e não se pode

negar a importância da energia para o desenvolvimento. No entanto, a sua instalação e

funcionamento repercutem em impactos ao meio ambiente, tanto locais quanto global, que

merecem atenção dos gestores públicos.

Construir uma hidroelétrica quase sempre envolve a construção de uma barragem,

que pode implicar em deslocar cidades, populações indígenas inteiras, animais e acabar

com florestas e sítios históricos, que ficarão submersos. A vegetação submersa decompõe-

Page 13: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

se, dando origem a gases como o metano, que tem impacto no chamado "efeito estufa".

Muitas vezes o curso natural do rio é alterado em função das áreas a serem alagadas,

causando interferência nos ciclos naturais, reprodução e dispersão de peixes e outros

animais aquáticos. O novo lago pode afetar o comportamento da bacia hidrográfica. Com a

operação, mais tarde, ocorrem assoreamentos que, em conjunto com outros fatores, podem

ocasionar mudanças na qualidade da água (TUNDISI, 2003).

Quanto às Usinas Térmicas, estas emitem uma série de gases de efeito estufa como o

dióxido e o monóxido de carbono, o metano e, no caso das térmicas à carvão e óleo,

emitem óxidos de enxofre e nitrogênio, que na atmosfera, dão origem às chuvas ácidas que

prejudicam a agricultura, as florestas e até mesmo monumentos urbanos. Cresceu bastante a

participação das termelétricas, que passou de 13,92% em 2001 para 21,48% em 2006.

As Usinas Nucleares, por sua vez, aproveitam a energia do urânio e do plutônio.

Embora sejam cada vez mais seguras, elas envolvem o risco de acidentes que podem causar

vazamentos de radiação para o meio ambiente com graves conseqüências. No Brasil,

existem duas em funcionamento, que foram instaladas nos anos 1970 e à medida que as

outras alternativas energéticas aumentam, a participação desta categoria diminui.

Conforme a ANEEL (2006), a maioria da capacidade instalada, ou seja, 59,0%, está

localizada nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, ou seja, na Bacia Hidrográfica

do Paraná. Cresceu bastante a participação quantitativa e percentual das termelétricas.

Quadro 15 - Unidades em Operação (dezembro de 2001 e 2006). Tipo Quantidade Potência (MW) % do total

2001 2006 2001 2006 2001 2006 Eólicas 6 12 18,8 120,65 0,03 0,13 PCHs 309 265 1.002,3 4.774,0 1,35 1,43 Hidrelétricas* 123 349 61.018,8 71.391,82 82,06 74,7 Térmicas 585 937 10.349,8 20.514,83 13,92 21,48 Nucleares 2 2 1.966,0 2.007,0 2,64 2,10 Total 1.025 1.565 74.355,8 95.506,8 100,00 100,0

Fonte: ANEEL (2001, 2006).

Page 14: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Pode-se, com os cenários apresentados, notar que os impactos e conflitos ocorrem

devido a diferentes formas de ocupação e uso e envolvem vários aspectos inter-

relacionados como população, estilo de vida, hábitos de consumo, serviços estatais

ofertados, tecnologias, entre outros. Os impactos das atividades e estilos de vida afetam

direta e diferentemente as populações humanas e as economias regional, nacional e

internacional.

As conseqüências são: i) Alteração para pior da qualidade da água superficial e

subterrânea; ii) Retorno e aumento das doenças de veiculação hídrica; iii) Diminuição da

qualidade e quantidade de água disponível; iv) Aumento no custo de tratamento das águas e

da produção de alimentos; v) aumento dos conflitos entre os diversos usos da água; vi)

comprometimento do desenvolvimento regional.

Além dos impactos citados também deve ser considerados os conflitos internacionais

e nacionais já expostos em várias ocasiões pela mídia. No nível nacional, como exemplos, a

Bacia hidrográfica do Médio Tiete recebe a carga poluidora que é gerada à montante; as

bacias hidrográficas do Piracicaba-Capivari-Jundiai são fornecedoras de água, o que

compromete o seu próprio consumo (DEL PRETTE, 2000, p.25)

As mudanças globais, em parte resultantes da aceleração dos ciclos biogeoquímicos e

o aumento da contribuição de gases de efeito estufa na atmosfera poderão interferir nas

características do ciclo hidrológico, afetar a temperatura das águas superficiais de lagos,

rios e represas e produzir impactos na biodiversidade, na agricultura, na distribuição da

vegetação e conseqüentemente poderão alterar a quantidade e qualidade dos recursos

hídricos, conforme TUNDISI (2003).

Nesse contexto, é interessante averiguar a evolução institucional das políticas

públicas voltadas à resolução dos conflitos causados pelos usos múltiplos existentes.

5. Ambiente Institucional e mecanismos formais de resolução dos conflitos.

Historicamente, a economia brasileira era preponderantemente agrícola até os anos

1920. As formas e as tecnologias utilizadas para a retirada da água eram de interesse local e

voltadas para o abastecimento das cidades e geração de energia elétrica.

Page 15: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

As primeiras fábricas foram estabelecidas, devido à existência das primeiras

hidroelétricas: em São Paulo, na represa de Parnaíba no Tietê, em 1901, no estado de Rio

de Janeiro, na represa de Lages, em 1900, as quais foram construídas pela LIGHT, empresa

canadense, sendo que as concessões foram dadas pelo governo municipal.

Apesar do governo federal ter enviado uma proposta em 1907, somente vinte e sete

anos depois, é promulgado o Código de Águas, com o Decreto n.º 24.643 de 10 de julho de

1934.

O Código foi promulgado quando começou a construção de grandes hidroelétricas e

conferiu ao governo federal o poder de fixar as tarifas de eletricidade e garantir certo

domínio sobre o setor, que era liderado por estrangeiros. Este decreto (que regeu as águas

brasileiras até 1997), em seu preâmbulo apontava que a água tinha objetivo de fornecer

energia elétrica para o desenvolvimento do país.

“Considerando que o uso das águas no Brasil tem-se regido até hoje por uma legislação obsoleta, em desacordo com as necessidades e interesses da coletividade nacional; Considerando que se torna necessário modificar esse estado de coisas, dotando o país de uma legislação adequada que, de acordo com a tendência atual, permita ao poder público (federal) controlar e incentivar o aproveitamento industrial das águas; Considerando que, em particular, a energia hidráulica exige medidas que facilitem e garantam seu aproveitamento racional” (Decreto.24.643/37)

No caso de São Paulo, por exemplo, o exercício do monopólio do setor de energia

privado sobre as águas impediu o planejamento e a utilização dos recursos hídricos para

fins múltiplos e contribuiu para a maciça poluição originada do lançamento indiscriminado

dos esgotos da região (Victorino, 2003, p.51).

Nessa fase, a água era considerada abundante e eterna e qualquer indústria,

propriedade urbana ou rural podia perfurar um poço sem nenhum controle federal, estadual

ou municipal e, freqüentemente, sem tecnologia apropriada. Nesse período, portanto, a

preocupação com os impactos ambientais eram localizados, de curto prazo e diluídos em

programas voltados principalmente ao saneamento básico e à infra-estrutura que serviriam

de suporte à industria nacional emergente. (GODOY e EHLERT, 1995).

Com o crescimento industrial houve grande aumento na demanda por eletricidade e a

política nacional continuava a recomendar a construção de hidrelétricas com a meta de se

produzir mais energia. Nessa época, a existência de grande quantidade de rios e o enfoque

Page 16: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

no apoio ao desenvolvimento industrial, apesar dos grandes protestos nacionais e

internacionais, grandes quantidades de terras, belezas cênicas (como Salto de Sete Quedas-

PR) e foram alagadas e populações foram transferidas.

O modelo de desenvolvimento existente, portanto, levou à desastres sociais e

ambientais que, com o aumento da demanda por água e o declínio da qualidade

levaram a sua revisão.

Nas últimas décadas, o governo brasileiro criou uma série de leis e decretos para

ordenar o uso dos recursos naturais, os quais atingem tanto a União quanto os estados e

municípios.

Na Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 19886, uma das principais

alterações feitas foi a extinção do domínio privado da água, previsto na constituição

anterior7. Todos os corpos d’água passaram a ser de domínio público (artigo 20, parágrafos

III a VIII ).

Rios que atravessam dois estados, que servem de fronteira entre dois estados, que se

originam ou se destinam a paises fronteiriços ou que servem de fronteira internacional são

considerados de domínio da União. Os rios que nascem e tem sua foz nos limites de um

mesmo estado, assim como as águas subterrâneas constituem águas de domínio dos estados

federativos em que se encontram. Extinguiram-se as denominadas águas municipais e

privadas.

Além disso, o Artigo 21, parágrafo XIX, estabelece que compete ao governo federal

instituir o Sistema Nacional de gerenciamento dos recursos hídricos e definir critérios de

outorga de direitos de seu uso.

Apesar de previsto desde 1988, o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos

Hídricos passou por uma série de discussões e levou muitos anos para ser regulamentado,

especialmente por causa das dificuldades impostas pelo setor de geração de eletricidade,

6 - Antes disso, houve criação/incorporação de órgão públicos voltados aos recursos hídricos: em 1939, criação do Comitê Nacional de Águas e Energia Elétrica-CNAEE; em 1968, criação do Ministério de Minas e Energia que incorporou o CNAEE; em 1969, a Divisão de Águas do Departamento Nacional de Política Minerária transforma-se em Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica; em 1996, o DNAEE é extinto e cria-se a ANEEL. 7 - Na constituição anterior, no capítulo III, o artigo 8 afirmava: “são particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que, também, o sejam, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, águas públicas ou águas comuns”.

Page 17: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

que não queria perder a sua supremacia na utilização de água. A lei federal foi promulgada

em 1997.

A Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, conhecida como a Lei das Águas, sancionada

pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, instituiu a Política Nacional de Recursos

Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos-

SNGRH, com os respectivos instrumentos de gestão.

O avanço é que a Lei objetiva harmonizar a oferta com os diversos usos e demandas

das águas, de maneira a dar acesso a todos, minimizar o risco de conflitos e a deterioração

da qualidade. Conseqüentemente, estipula espaços para negociações, cria instrumentos de

gestão e define novas funções para organismos ou entidades já existentes para

implementação prática do negociado entre o setor público e usuários.

A PNRH adota a bacia hidrográfica8 como unidade de planejamento e usos múltiplos

dos recursos hídricos, o que por conseqüência quebra a hegemonia do setor elétrico sobre

os demais usuários. A água passa a serconsiderada como bem finito e vulnerável e, com

esse pressuposto, adquire valor econômico. Criam-se mecanismos para induzir o uso

racional desse recurso natural, com a instituição da cobrança pela utilização dos recursos

hídricos e, por ultimo e fundamental, a gestão descentralizada e participativa.

O SNRH- Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (artigo 32),

pressupõe a gestão compartilhada. Tem como objetivos, dentre outros, arbitrar os conflitos

relacionados aos recursos hídricos, promover a cobrança pelos seus usos, coordenar a

gestão integrada das águas, planejar, regular e controlar o uso,a preservação e a recuperação

dos recursos hídricos.

Integram o SNRH:

a) - O CNRH - Conselho Nacional de Recursos Hídricos (regulamentado pelo

Decreto 2612, de 3 junho de 1998), de âmbito federal é compartilhado com atores sociais

governamentais, não governamentais e privados. Promove a articulação entre as diversas

instâncias governamentais e tem o objetivo de auxiliar/intervir nas resoluções dos conflitos

8 - A partir de 1976, começou a se implantar sistemas de gestão em bacias hidrográficas, particularmente em São Paulo. É o caso do Comitê de Acordo entre o Ministério de Minas e Energia e o Governo do Estado de São Paulo que atuaram no Alto Tietê e Baixada Santista; Comitês Executivos de Estudos Integrados da Bacia de rios federais; Comissão Especial de Estudos Integrados da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul, no qual participaam SP, RJ e MG (DEL PRETTE, 2000, p. 59)

Page 18: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

de maior vulto. Segundo CNI (2005), os principais problemas apresentados no Conselho

(os quais inibem o investimento na área) são: falta de regra definidora de competências dos

reguladores setoriais; ausência de locus de coordenação; morosidade dos processos

decisórios; e inexperiência no Poder Judiciário.

b) A SRH - Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, órgão do MMA, formula a

PNRH e apresenta planos e programas governamentais;

c) A ANA- Agência Nacional das Águas, de âmbito federal é integrante do Sistema

Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9984, de 17 de julho de 2000- artigo 30). É uma

agência reguladora com autonomia administrativa, estrutural e financeira, vinculada e não

subordinada ao Ministério do Meio Ambiente. É responsável pela execução e

implementação do PNRH e do SNRH e tem como objetivos supervisionar, controlar,

avaliar, outorgar o direito de uso de águas da União, estimular formação de comitês de

bacia (art.3)

d)- Os comitês de bacia hidrográfica, formados pelos governos federal, estaduais, e

municipais e a sociedade civil organizada. Com a proposta de cobrança do uso da água,

pode decidir sobre as prioridades no investimento de cada bacia. Permite a resolução dos

conflitos na própria bacia (arts. 37 a 40).

e) As agências de água estaduais e federal têm como objetivos gerir os recursos

oriundos da cobrança pelo uso da água, manter balanço hídrico atualizado, manter cadastro

de usuários, gerir Sistema de Informações, elaborar o Plano de Recursos hídricos para

apreciação do respectivo comitê de bacia. Portanto, são objetos de leis especificas e com

gestão mista entre governo, representantes de usuários das águas e de organizações civis de

RH (arts. 41 a 44).

f) Os conselhos de Recursos Hídricos estaduais e do Distrito Federal- CERH, com

leis especificas são coordenadas pelas secretarias de estado e compostas, particularmente,

por entidades estaduais.

Como se pode notar, a participação da sociedade para a resolução de conflitos e

gestão dos recursos hídricos ocorre no CNRH, comitês de bacia e nos conselhos estaduais

de recursos hídricos.

Esquematicamente, o sistema está na figura 3.

Page 19: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Figura 3 – Esquema do SINRH e esferas de atuação

Fonte: MMA (2002)

Conseqüentemente, na esfera federal, tem-se o Conselho Nacional de Recursos

Hídricos, o Ministério do Meio Ambiente órgão federal de formulação de políticas de

recursos hídricos e meio ambiente, a Secretaria de Recursos Hídricos como órgão gestor

federal de recursos hídricos e responsável pela execução do Programa. Cabe ao Governo

Federal instituir um Comitê destinado à coordenação da atuação dos órgãos e entidades

federais executoras ou co-executoras do Programa Nacional. Com a criação da ANA esta

passou a responsável pelas atividades da implementação da Política Nacional de Recursos

Hídricos.

No plano estadual, tem-se o Conselho Estadual de Recursos Hídricos, a Secretaria de

Estado responsável pela política estadual de recursos hídricos, o Órgão estadual gestor de

recursos hídricos, responsável pela execução do Programa, sendo composta de acordo com

cada legislação estadual.

Page 20: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Por fim, nas bacias hidrográficas encontram-se os Comitês de Bacias, as Agências de

Bacia, os Consórcios ou associações intermunicipais ou de usuários de recursos hídricos,

outras entidades civis de recursos hídricos, entidades públicas e privadas usuárias de

recursos hídricos, concessionárias de serviços de utilidade pública usuárias de recursos

hídricos.

A apresentação do esquema é bem simples e não expressa a complexidade existente de,

por exemplo, uma bacia estar sob a jurisdição federal e estadual e municipal e mesmo

internacional. Também não espelha o fato de a bacia estar localizada em terras indígenas, etc.

Pela mesma existe uma articulação dos comitês de bacia de rios federais com os

comitês estaduais da mesma bacia que será feita caso a caso como ocorreu na criação do

Comitê para Integração da Bacia do rio Paraíba do Sul, envolvendo os estados do Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Ocorre, também, articulação entre a Agencia de Águas,

federal e as Agências de Bacias previstas nas leis estaduais, também definidas caso a caso

e a articulação entre a Secretaria Executiva do SINGREH

Pode-se apontar que, pelo processo previsto em lei, a administração dos recursos

hídricos passará de centralizada a ser compartilhada/descentralizada e conta com a

participação do poder público, dos usuários e da comunidade.

Se, do ponto de vista jurídico e institucional, há espaço para a participação da

sociedade civil organizada nos conselhos e comitês, a grande questão é como esta é

implementada? Todos os estados têm implementado? Os mecanismos propostos pela lei

permitem a participação igualitária (com o mesmo poder de decisão) de todos os usuários

afetados? Não se responderá todas, mas estas perguntas têm seu fundamento, pois,

enquanto leis e normas, a gestão de água deve ser prioritariamente implementada a partir da

construção de consensos entre o poder publico, setor privado e sociedade civil.

5.1. Os instrumentos disponíveis e implementados para a resolução de conflitos

Parte-se do principio que a legislação é um elemento que permite/impõe o avanço de

algumas questões fundamentais na gestão de um bem de uso comum como a água. No

Page 21: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

entanto, o fato de existir a legislação nem sempre quer dizer que existe a aplicação da lei.

Então cabe a pergunta: Passados quase dez anos de legislação, quais os instrumentos

implantados para criar fóruns de discussão e diminuírem os conflitos e os impactos?

Cabe ao Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos hídricos estimular a

implantação dos seguintes instrumentos previstos dentro da PNRH:

a) outorga de direito de uso dos recursos hídricos (O). Segundo a Resolução n. 16 do

CNRH, Art. 1, a outorga é um ato administrativo mediante o qual a autoridade outorgante

(poder público) faculta ao outorgado o direito de uso dos recursos hídricos, por prazo

determinado. Têm como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos

da água e acesso a todos os usuários (arts. 11 a 18)

A outorga estimula a participação dos usuários na gestão dos recursos hídricos

através dos Comitês de Bacias, que serão os responsáveis pelo gerenciamento dos recursos

hídricos. Embora a outorga seja concedida pelo Poder Público, essa concessão está

condicionada às diretrizes estabelecidos pelos planos de bacia, aprovados pelos respectivos

Comitês de Bacia Hidrográfica.

b) a cobrança pelo uso da água (C). A cobrança é um instrumento de controle que

objetiva o uso racional da água, pois, segundo a base jurídica e econômica adotada, uma

vez que se paga, a tendência é gastar menos e adotar medidas de redução do consumo ou

seu reuso assim como arcar com os custos de recuperação da qualidade da água, no caso de

sua poluição. A cobrança será exercida pela entidade de outorga dos direitos de uso das

águas, federal ou estaduais, ou por entidade credenciada pelo outorgante. Estão sujeitos à

cobrança os usuários públicos e privados bem como as prefeituras ou seus serviços de água

e esgoto, as indústrias e os que utilizam a irrigação. O valor da cobrança será

obrigatoriamente aprovado pelo Comitê de Bacia. O produto da cobrança será aplicado nos

programas aprovados nos Planos de Bacia, também de responsabilidade do Comitê de

Bacia (arts. 19 a 23).

Esse instrumento é polêmico, pois, o valor que pagamos, atualmente, refere-se ao

tratamento dispensado à água para que ela se torne própria para o consumo humano, ou

seja, não pagamos pela utilização da água. Nesse contexto, dentre as diversas discussões,

destaca-se aquela que, de um lado, estão os que vêem a água como um direito fundamental

Page 22: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

do ser humano e, portanto, não deve haver cobrança sobre a mesma e, de outro lado, estão

os que defendem que a cobrança irá racionalizar o seu uso.

c) enquadramento dos corpos de água de rios (E). Permite classificar as águas de acordo

com a qualidade e os usos preponderantes de maneira a reduzir os custos de tratamento e

combate à poluição das águas. O enquadramento é importante instrumento de gestão de

bacias, principalmente pelo seu caráter preventivo e de planejamento dos usos possíveis

para um dado trecho de um rio ou uma bacia hidrográfica. (arts. 9 e 10)

d) Plano de Recursos hidricos (P). é um documento que orienta, no longo prazo, a

atuação da União e dos estados no que diz respeito ao uso, recuperação, proteção e

conservação dos recursos hídricos. O Plano de Recursos Hídricos é feito no âmbito

nacional, estadual e por Bacia Hidrográfica e deve ser aprovado pelos colegiados

respectivos, ou sejam: Conselho Nacional de Recursos Hídricos, Conselho Estadual de

Recursos Hídricos e Comitê de Bacia. A importância dos Planos de Recursos Hídricos será

notada quando for regulamentada e colocada em prática a legislação, principalmente

referente à cobrança pelo uso das águas, que é a principal fonte de recursos para execução

do Plano.

e) Plano de recursos hidricos por bacia hidrografica (PB), já comentado no item

anterior.

f) Sistema de Informações sobre recursos hidricos (S) – objetiva criar e implementar um

sistema de coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre recursos

hidricos (arts. 26 e 27).

Embora não seja considerado um instrumento na Lei analisa-se também a

implementação dos Comitês de Bacias, que são comissões de uma Bacia Hidrográfica,

com funções deliberativas e consultivas.Os comitês são formados por representantes do

poder público - federal, estadual e municipal -, dos usuários e da sociedade civil.

Para seu adequado funcionamento necessita de apoio de uma Agência de Bacia ou

instituição semelhante. O Comitê aprova o Plano de Bacia, que é um documento que

descreve e justifica as prioridades de obras e ações, define as disponibilidades hídricas e os

investimentos necessários para aproveitamento, proteção e conservação dos recursos

Page 23: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

hídricos, assim como a fonte de recursos. Aprova também a forma e os valores da cobrança

pelo uso das águas, suporte financeiro do Plano.

Estes comitês enfrentam problemas como: a vontade política em instalá-lo; os

conflitos, inclusive de representatividade/competitividade com outras organizações

existentes (órgãos ambientalistas municipais, estaduais e municipais, conselhos ambientais,

entre outras), segundo GODOY (2006).

A implementação dos instrumentos é apresentada na Tabela 7

Como se pode observar na mesma, a situação é bem diferenciada por estado.

Todos os estados das regiões Norte e Centro-Oeste, que são os mais ricos em água no

Brasil, têm, somente, a lei estadual, com exceção de Mato Grosso que possui formalmente

um comitê de bacia composta pela capital, sem muita abertura para a resolução de conflitos

na região e/ou locais. O próprio Distrito Federal, capital do país, apresenta a outorga, mas

não têm Plano, comitês de bacia e nem enquadramento das águas. Isso, de certa maneira,

vai de encontro á visão de que em estados em que a disputa pelo recurso hídrico é

menor, menor é a tendência de os governos estruturarem sistemas amplos e

complexos de gestão,

No país foram instituídos 107 Comitês Estaduais de Bacias Hidrográficas, todos

previstos em suas legislações. A Bahia e a Paraíba não prevêem Comitês.

A região Nordeste tem uma participação distinta do restante do país. Nota-se que

mais de noventa por cento dos estados têm o sistema de outorga funcionando, embora se

observe também que há baixíssima participação dos comitês e dos municípios.

Se levarmos em conta que o gerenciamento dos recursos hídricos é composto por

relações entre diversas instâncias, com poderes específicos na resolução dos conflitos,

pode-se ver que há incoerências na implementação dos instrumentos.

Page 24: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Tabela 3 – Disponibilidade hídrica, Potencial Hídrico e demandas por Estados do Brasil Estados Total

munic. n.comites

Mun.no comite

Lei E C S P PB 0

Acre 22 X Amapá 16 X Amazonas 62 X Pará 143 X Rondônia 52 X Roraima 15 - Tocantins 139 X NORTE Alagoas 102 3 25 X X Bahia 417 X X X X Ceará 184 8 153 X X X Maranhão 217 1 5 X Paraíba 223 X X X X Pernambuco 185 8 38 X X X X Piauí 223 X R.G. do Norte 167 1 0 X X X X Sergipe 75 X X X NORDESTE Espírito Santo 78 5 16 X Minas Gerais 853 20 155 X X X X X X Rio de Janeiro 92 5 16 X X São Paulo 645 21 379 X X X X X SUDESTE Paraná 399 3 1 X X X Sta. Catarina 293 14 90 X R. G. do Sul 496 17 479 X SUL Dist. Federal 1 X X Goiás 78 X Mato Grosso 141 1 1 X M. G. do Sul 78 X CENTRO-OESTE

BRASIL 107 1.318 3 1 5 6 3 12 FONTE: elaboração própria. Observações: Lei = Lei Estadual de Recursos Hídricos, E = enquadramento das águas; C = cobrança pelo uso; S = Sistema de Informação; P = Plano Estadual deRecursos Hídricos, PB = Plano de Bacia Hidrográfica; O = Outorga; X = presente no estado.

No Brasil, o instrumento mais implementados nos estados são a outorga (12

estados e a União). Fica a necessidade de pesquisa para saber se tal fato demonstra a

Page 25: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

preocupação dos governos em desenvolver condições e mecanismos de

financiamento do sistema, garantindo que o valor obtido com a cobrança pelo uso da

água em uma bacia seja efetivamente aplicado na gestão dos recursos hídricos dela

própria. As experiências são muito diferentes. Segundo Leeuwestein (2000), há estados

que desenvolveram metodologias avançadas e experiências que contam com a participação

de Comitês de Bacia Hidrográfica no processo decisório, tais como São Paulo, Minas

Gerais e Rio Grande do Sul.

O estado da Paraíba, que é um sistema centralizado de decisão, ou seja, está nas

mãos do governo estadual, foi o único que implantou a cobrança e a outorga, sem ter

nenhum comitê funcionando. O Paraná, que teve desativação dos comitês, hoje, possui um

comitê centralizado nas mãos do governo estadual, que fez o enquadramento de suas águas

e implantou a outorga.

A cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos é o instrumento que provoca mais

resistência na sua implementação devido aos impactos econômicos e sociais bem como na

disposição dos usuários de pagar pelo uso da água. Como resultado, somente o Estado de

Ceará está implementando a cobrança, apesar do instrumento estar previsto em todas as leis

estaduais.

Uma outra experiência é a do Comitê da Bacia do Paraíba do Sul, que aprovou

recentemente a proposta de uma metodologia para a fase inicial da cobrança pelo uso de

recursos hídricos na referida bacia, aprovada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos

(Resolução CNRH n.º 19/2002).

Apesar do incentivo ao desenvolvimento dos Sistemas Estaduais de Informações

sobre Recursos Hídricos (via crédito) e de ser elemento fundamental de apoio nas decisões

sobre a gestão, somente cinco estados implementaram o instrumento.

Segundo MMA (2004), no Brasil foram ainda instituídos 41 Consórcios

Intermunicipais de Bacias Hidrográficas, organizações civis importantes para articulação e

implementação de ações nas bacias hidrográficas.

Quanto às Agências de Água, a experiência nacional é ainda muito pequena, sendo

o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio Itajaí, no estado de Santa Catarina, o pioneiro na

implantação deste organismo.

Page 26: Recursos Hídricos e Ferramentas Públicas No Brasil

Qualquer uma das instâncias, em que há discussão dos conflitos e/ou negociação

(comitês, agencias, consórcios, etc) e se definem as prioridades nos usos das águas são

espaços sociais em que ocorrem relações de poder. As estratégias traçadas explicitam os

interesses e as relações estabelecidas entre os atores sociais envolvidos, o que

acentua/define a estrutura de poder. Como afirma SEABRA (1987, p.275-276), “a atuação

ideal do Estado está permeada de interesses privados atuando os detentores desses

interesses sobre os aparelhos de Estado, ora como pólo de uma relação conflituosa, ora

através dele em beneficio próprio” .

Observa-se que a maior parte dos instrumentos estão previstos nas leis estaduais, no

entanto, há desigualdades no ritmo e na forma de implantação, existem instrumentos que

exigem a participação/decisão dos comitês e estes não existem, muitas decisões continuam

centralizadas nas mãos dos governos, a aplicação de muitos instrumentos são incipientes

e/ou inexistentes, pouco participativos e não levam em conta o objetivo principal que é a

articulação entre os diferentes usuários.

6. Conclusões

A gestão dos recursos hídricos mudou no Brasil. Até meados dos anos 1980, a visão

era fragmentada, setorial e voltada às ações corretivas, com pouca importância para os

impactos e os conflitos de uso. As ações estavam restritas ao cumprimento de normas e o

poder era centralizado. No entanto, como aumentaram os custos de tratamento com a

industrialização e a urbanização acelerada, a preocupação com os mananciais e as fontes de

abastecimento, se consolidou.

A Constituição de 1988 e todo o aparato legal instituído para a gestão dos recursos

hídricos significaram um grande avanço. A gestão muda para uma visão integrada de usos

múltiplos, ao nível de bacia hidrográfica e com o objetivo de minimizar assim como evitar

impactos, crises e conflitos. A mudança implica também em modificações profundas,

principalmente no direito de propriedade, pois, águas particulares passam para águas de

domínio público e de uso comum, que somente poderão ser usadas mediante outorga de

direito de uso.

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Com isso, o paradigma alicerçado no aumento da produção a qualquer custo, mesmo

com grandes passivos e desequilíbrios ambientais e sociais, a partir dos anos 60 e,

principalmente dos anos 70, passa a mudar. Hoje, o debate não se restringe à polarização

entre desenvolvimento e sustentabilidade (embora ainda exista a visão) e sim na

regulamentação que permite a superação dos conflitos.

A descentralização da gestão dos recursos hídricos pressupõe que as leis modelam

novos comportamentos e que a sociedade pode se unir em torno de um objetivo comum que

é o bem-estar de todos. No entanto, tal situação provoca confrontos locais que envolvem

interesses diversos e provoca conflitos/reações com a situação anterior, pois, prioriza usos

múltiplos e tem como princípio a participação dos usuários nos comitês de bacia, que

estabelecerão os critérios de outorga.

Por outro lado, o afastamento do governo federal e sua atuação nas políticas de

regulação e planejamento implicam na perda de controle sobre o que ocorre com o recurso

(que é público e de uso comum), o que gera a necessidade crescente de instrumentos de

incentivos e coação para assegurar a implementação das novas funções em níveis local e

estadual.

Na maior parte dos estados brasileiros, os direcionamentos das políticas hídricas estão

sob a competência de diversas secretarias, cujos mecanismos de coordenação integrada são

incipientes ou inexistentes. Como decorrência, os problemas do setor agrícola, de saúde,

educação e energias continuam em secretarias diferentes. Essa situação não é somente um

entrave à gestão integrada, mas também uma duplicação de esforços,recursos públicos,

coleta de informações, etc.

Para terminar faz-se a pergunta: o que leva o Homem a degradar mesmo sabendo dos

seus impactos?

A legislação, de modo geral, está alicerçada na idéia de que o problema que a

humanidade enfrentará será a crise da água, devido a sua “escassez”. Como apresentado, a

quantidade de água é a mesma no mundo e no tempo, portanto não se trata de “escassez”. A

questão está no acesso com qualidade e quantidade necessárias. Os problemas são

decorrentes do desperdício, degradação crescente, má gestão e utilização intensiva do solo

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inclusive devido ao alto grau de dependência dos países e das atividades econômicas que

alteram o ciclo hidrológico no espaço e no tempo.

A causa principal dos impactos tem sido pouco discutida. É possível apontar que a

deterioração do meio ambiente é causada pelas práticas inadequadas, as relações de

dependência internacionais que impulsionam a sobre-exploração dos recursos naturais, a

exportação de água virtual e a pobreza, que, por sua vez, gerarão maior desequilíbrio

ambiental e mais pobreza. Tem componentes nacionais: os governos priorizam infra-

estrutura de saneamento que atingem os mais ricos e deixam de fora exatamente as parcelas

de menor poder aquisitivo que se localizam predominantemente sobre os locais de risco,

mananciais e lençóis freáticos e avança-se pouco nas energias alternativas.

Estes são alguns dos grandes conflitos e desafios.

Conseqüentemente, esclarece-se que apesar de se dar atenção aos instrumentos legais,

ele é uma das condições e não a única para superar os conflitos existentes.

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