reale, miguel - teoria tri dimensional do direito 17

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  • 8/8/2019 REALE, Miguel - Teoria Tri Dimensional Do Direito 17

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    TEXTO DO PROF. JOO VIRGLIO TAGLIAVINIwww.virgilio.com.br

    TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO,SEGUNDO MIGUEL REALE

    1. COMEANDO POR VILA BOA,

    UM PEDAO DE BRASIL COLONIAL

    Fundada em 1727 por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, com onome de Arraial de Sant'Ana e, mais tarde, 1739, tendo seu nome alterado para VilaBoa de Gois em Homenagem aos seus primitivos habitantes, os ndios Goyanases, emais recentemente sendo chamada de Cidade de Gois, ela uma tpica cidadecolonial, muito semelhante s cidades histricas mineiras, construda no auge dociclo do ouro, no sculo XVIII. Hoje, esta cidade, situada a 144 quilmetros deGoiania, e que um dia j foi tambm capital da Provncia, conserva seu casario, suasigrejas, museus e dois monumentos que nos chamam a ateno. s margens do

    pouco que restou do antes navegvel Rio Vermelho, est a casa em estilo colonial dapoetisa Cora Coralina que, tendo sido reconhecida apenas no final de sua vida,publicou, entre tantos, o livro Poema dos becos de Gois e estrias mais, um retratoda cidade e da grandeza de sua alma interiorana. No largo do Chafariz est o Museuda Bandeiras que serviu, como era prprio dos tempos coloniais, para abrigar aCmara de Vereadores na parte superior, onde tambm eram feitos os julgamentos,e a cadeia nos seus pores. Julgava no piso superior e jogava-se no poro para ocumprimentos da penas, por crimes comuns ou por motivos polticos. L esto asparedes grossas de cerca de um metro e meio, construdas, pelos escravos queviriam a constituir a maioria dos seus "hspedes".

    A sensibilidade pelos lugares e pela histria desse enorme Brasil nos

    ajudar, sem dvida, no conhecimento das nossas tradies, da nossa cultura e,dentro da cultura, o nosso ordenamento jurdico. Nossas leis e instituies estoinseridas na histria e s no seu contexto podero ser compreendidas emprofundidade.

    Posso ter olhos e sentidos de turista que tira fotos, compra lembranas,se delicia com sua culinria e vai embora. Posso ter olhos e ouvidos de brasileiro,apaixonado por nossa terra, que capaz de ouvir as vozes, sentimentos, alegrias esofrimentos do passado, presos entre as paredes daquelas velhas construes ouespalhadas por suas belas praas.

    Foi num passeio pela Cidade de Gois, sobretudo numa visita ao museudas Bandeiras, que eu pensei e criei esta histria que agora apresento como umamodesta contribuio para o conhecimento do Brasil e de nossas instituiesjurdicas, numa perspectiva filosfica.

    Tem sido muito difcil nos cursos de filosofia jurdica dar uma explicao arespeito da Teoria Tridimensional do Direito e das vrias escolas que buscam osfundamentos do ordenamento jurdico: o jusnaturalismo, o positivismo jurdico,contratualismo, sociologismo, marxismo jurdico etc.

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    Este texto uma tentativa de tornar mais suave esse caminho,ganhando em comunicao, sem perder em seriedade. Para mim, as idias sriaspodem ter roupagens agradveis.

    Na primeira parte, o texto se desenrola no museu das Bandeiras, emsituaes de julgamento, condenao, conformidade ou revolta. E um pedacinho da

    histria da justia no Brasil Colonial, a luz das mais importantes filosofias do direito.Na segunda parte, eu fao um questionamento sobre trs dimenses dodireito: fato, valor e norma, abrindo caminho para a compreenso da teoriatridimensional.

    Trata-se de uma primeira verso, escrita para uso de alunos da Faculdade deDireito de So Carlos, que necessita de muitas correes e sugestes dos leitores.Ficarei grato a todos aqueles que colaborarem comigo e com a filosofia do direito.

    2. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO EM VILA BOA, NOBRASIL COLONIAL.

    Jogado num poro da cadeia de Vila Boa, preso por uma parede de ummetro e meio de espessura, grades reforadas de ferro em cada parede por onde sevia o sol nascer quadrado, sal no cho para aumentar o sofrimento e tortura doscondenados, num ambiente ftido cujo cheiro vinha de um grande barril de fezesdepositado a um canto e que era removido a cada 15 dias, Oludamam, que tinhasangue de rei de tribo africana, na sua tristeza mortal, pensava, consigo mesmo:

    Por que estou aqui neste poro, por que vim para essa terra de sofrimento edor? Que fiz para merecer tamanho castigo? Eu fazia as leis, eu era a lei, mas noera to mau assim!

    Oludamam estava ali, pagando por um crime que cometera h seis meses.Ele reagira, ferindo o filho do senhor da casa grande que, alm de usar sexualmentesua filha pequena, a torturava por puro prazer. Oludamam no suportava mais talsofrimento. Por mais que a escravido o tivera dobrado, corria nas suas veias osangue da nobreza africana. Ele chegou no momento em que sua filha estava sendoespancada por no querer colaborar com um dos caprichos do sinhozinho.Oludamam, negro forte, no se conteve e, fora libertou sua filhinha das mos dopequeno brbaro. O garoto, mesmo sendo fisicamente bem inferior, por se enxergarnuma casta superior, tentou reagir, o que lhe custou vrios arranhes e hematomas.O senhor, para manter os escravos sob domnio, acusou o negro de muitos crimesque seus prprios capatazes haviam praticado a seu mando e, num tribunalcomposto por brancos, Oludamam foi condenado a passar muitos anos naquelamasmorra. O negro tinha o orgulho da coragem de ter reagido mas, ao mesmotempo, a tristeza absoluta da priso que, certamente, no teria fim. Um dia ele seriamorto e diriam que tinha sido numa briga entre os presos. "Por que eu?",

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    perguntava para seus deuses, aqueles deuses que ele representara naquele parasoque era um lugar reservado pela natureza para a sobrevivncia do seu povo. Umverde exuberante, muita caa e aquela cachoeira de guas limpas que, alm derefrescar o calor, era o ponto de celebraes da histria, dos deuses e da vida datribo. Rituais de vida e purificao, passavam todos por ali, por aquele rio.

    Oludamam presidia tudo. Era chefe civil e sacerdote tambm. Muitas lguas deserto e o Atlntico separavam sua masmorra do paraso perdido. Quando padreIgncio lia para eles a histria da criao, Oludamam pensava no seu parasoperdido. Lgrimas rolavam de seus olhos, de saudades. Ao mesmo tempo, no olharbrilhava a esperana de quem se vergara escravido mas no se quebrara no seuorgulho de rei. Paraso era tambm uma esperana. Entre a saudade e a esperanaestavam os brancos, catlicos, catequizados pelo mesmo padre Igncio das Dores."Das Dores" pensava o negro, sou eu. Ele vive comendo na mesa da Casa Grande.

    Oludaman, certo dia, em conversa com Thoms Antnio, um lderrevolucionrio, daqueles que seriam enforcados por traio Coroa, lanou aseguinte pergunta:

    H algum tempo, antes dessa desgraa meacontecer, quando acompanhava o meu senhor Casa daCmara, eu ouvi uma conversa que o Estado Civil teriasurgido para superar as precariedades do Estado deNatureza, para garantir ao homem o gozo tranqilo dosseus direitos naturais. Se as normas surgem num contextocultural determinado, fruto da necessidade humana de

    preservar a ordem para manter a paz e conseguir afelicidade, por que as normas podem contrariar as leis

    naturais? Eu no acho que ser escravo est de acordocom as leis naturais!

    Thoms Antnio:

    Em primeiro lugar, fique bem claro o seguinte: hmuitas normas que contrariam, realmente, as leisnaturais, impedindo o homem de chegar felicidade,como essa que permite que voc seja escravo. O quediriam as mulheres, mesmo as livres, sobre essa

    passagem da lei islmica:

    ... desposai tantas mulheres quantas quiserdes:duas ou trs ou quatro. Contudo, se no puderdes manterigualdade entre elas, ento desposai uma s ou limitai-voss cativas que por direito possuis...1

    1 Alcoro, 4 Sura, 3.

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    Manoel, que passava por ali, fez sinal de satisfao e concordncia plenacom o Alcoro. Thoms, sem perceb-lo, continuou:

    E que diriam as esposas dos brancos sobre essaoutra passagem:

    Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas

    de adultrio, chamai quatro testemunhas dos vossoscontra elas. Se as testemunhas testemunharem, confinai-as ento em vossas casas at que a morte as leve ou atque Deus lhe indique um caminho.2

    Em compensao, em relao aos homens, diz oseguinte:

    Quando dois dentre vs cometerem um adultrio,castigai-os. Mas se se arrependerem e se emendarem,deixai-os em paz. Deus perdoador e clemente.3

    O que significa tudo isso?, continuou Thomas. Pode haver contradio entreas leis naturais e as normas, por muitos motivos, dentre os quais vou elencar algunsmais importantes:

    1. As leis naturais so universais, eternas e imutveis. Mas anatureza como uma grande e complicada cartilha que ns

    precisamos aprender a ler. A cartilha sempre esteve a. Mas, quemconsegue l-la integralmente? Ns vamos aprendendo a ler trechosdessa cartilha, parte por parte. assim que os homens vodescobrindo as leis da fsica, da qumica etc e vo inventado novascoisas. Mas, no d para ler e descobrir tudo ao mesmo tempo. H

    uma evoluo nessa descoberta. E essa evoluo depende dodesenvolvimento da razo humana e do contexto histrico em quevivem os homens. At agora descobriu-se a importncia da ordem, dadisciplina, da obedincia. Agora estamos descobrindo o valor daliberdade e da autonomia do indivduo. No tempo em que vivemos,voc sabe que perigoso falar em indivduo, em sujeito. Mas nsenfrentamos e corremos os riscos. E por tudo o que dissemos atagora, podemos concluir que, muitas normas entram em contradiocom as leis naturais porque essas normas foram escritas h muitotempo e s agora descobrimos a importncia desses novos valores.H, portanto, uma defasagem entre norma e lei natural. Essa

    defasagem precisa ser superada.

    2. Pode ser tambm que a classe dominante de cada pocacrie normas para defender s a sua felicidade em detrimento dafelicidade da maioria. Os brancos fizeram as normas que permitem a

    2 Idem, 4 Sura, 15.3 Idem, 4 Sura, 16.

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    escravido dos negros! Os senhores feudais elaboravam as normas dosfeudos. Por isso, em alguns feudos, havia o direito da primeira noite.O senhor tinha o direito de gozar a primeira noite com as noivas quese casassem em seus domnios. Era uma norma para a felicidade dossenhores e no dos noivos, obviamente. E diziam que era um "direito

    natural".

    3. Pode ser ainda erro de leitura e de interpretao dacartilha da natureza ou da prpria norma. Isso pode trazercontradies e injustias.

    Eu poderia, caro Oludaman, continuar argumentando nessalinha de raciocnio. Mas talvez isso j seja suficiente. As normas, svezes, se parecem com fsseis que se cristalizaram numa camada do

    passado, enquanto os homens continuem vivos, as coisas continuemacontecendo.

    Oludaman estava inconformado com sua sorte (ou azar) e no haviaexplicao nem na sociedade civil, nem no estado de natureza.

    Voc est aqui, continuava Thomas, porque esta a nossa tristerealidade e no temos fora para lutar contra ela. As leis dos homens so fruto destarealidade histrica em que estamos vivendo. Eles so mais fortes, eles dominam,fazem as leis. Ns somos fracos, obedecemos. Como se fosse a lei da selva. Este um fato e "contra fatos no h argumentos". As leis so feitas para manter uma

    determinada ordem na sociedade, a ordem de quem domina. Eles precisam devocs, escravos, para garimpar o ouro que faz sua riqueza. O Senhor da CasaGrande domina, seu filho domina. Resta-nos a resignao ou a resistncia e os riscosda resistncias, os castigos e a morte.

    Mas, um dia, a resistncia poder vencer. Nessa resistncia estovocs negros, ns, brancos subalternos e os indgenas explorados tambm. Eles tmo Estado e Igreja. Um faz a lei e o outro nos convence de que precisamos obedecer,em nome de um certo deus.

    Eu tambm tenho meus deuses, ia dizendo o negro...

    Mas, os deuses dos que dominam so mais fortes e sempre tmrazo, continuou o companheiro. Este o fato, esta a realidade. Guerras dehomens, guerras de deuses... arrematou Thomas.

    O leitor poder estar estranhando a erudio dessa conversa. ThomasAntnio era branco, portugus e j alimentava idias liberais e revolucionrias. Eleera um preso poltico que deveria estar no outro compartimento, daqueles presos

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    histrias do provvel futuro companheiro de masmorra. Joo Manoel Joaquim LinsAlbuquerque Pereira de Souza, juiz daquele tribunal profere sua sentena:

    Este homem desrespeitou a lei vigente em nossa sociedade, leisabiamente feita por aqueles que se preocupam com a ordem e a tranqilidade

    social. Ele deu abrigo e escondeu um pequeno escravo (9 anos), filho de negrosfujes que buscaram refgio num desses malditos quilombos. Isso contra a lei. Leino se questiona, cumpre-se. Lei lei e ponto. No podemos transigir com aviolao da menor lei, pois no h lei sem importncia. Como numa represa, sedeixarmos passar um pouquinho de gua pelas fendas da barragem, logo a violnciada gua ter levado toda a barragem embora. Toda lei deve ser respeitada, porque lei. Ns defendemos o imprio da lei e sua severa aplicao para que a sociedadeno se sinta ameaada por aqueles desordeiros que querem provocar o caos, noimporta se voc acredita ou no nos seus fundamentos, na sua legitimidade. Se esta lei que est em vigor, devemos obedec-la ou enfrentar o castigo e a priso.So regras que mantm a coeso de nossa sociedade...

    "Lei, ora lei", murmurava baixinho Thomas Antnio de sua priso,antecipando um famoso poltico brasileiro que viria quase 200 anos depois.

    Veio mais um preso, rolando escadaria abaixo para se somar aosoutros condenados pela lei.

    Thomas Antnio foi enforcado, por alta traio. Oludamam morreu algunsdias depois da Pscoa, "numa briga interna"... Sua filhinha continuava sendoexplorada pelo sinhozinho.

    A abolio da escravatura viria 100 anos depois, quando os negros jno seriam to interessantes. Novos fatos acabaram mudando os valores e as

    normas. A lei urea foi assinada. Viva princesa Isabel ou viva o mercadointernacional? Por via das dvidas, viva Zumbi, viva Oludamam!

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    3. FATOS, VALORES E NORMAS:TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

    Fatos, valores e normas, uma relao difcil na compreenso do direito.Tenta-se responder famosa pergunta em relao ao dever-ser.

    "Por que deve-ser assim?", perguntam todos aqueles que recebem umaordem qualquer. Ou, a pergunta feita pelo homem do povo, com seu senso comum:Por que devo obedecer?

    Porque os fatos impem! Trata-se de um determinismo histrico?Porque os valores exigem! um determinismo axiolgico?Porque uma imposio da norma! um normativismo abstrato?

    Qual, portanto, o fundamento do dever-ser?

    O fundamento um valor absoluto? a norma? por ser um fato, algo que se me impe, por si, atravs de instituies

    sociais?

    H vises unilaterais, reducionistas e h possibilidade de integrao entre astrs dimenses:

    1. Os fatos so importantes.

    Enquanto o Brasil necessitava de mo-de-obra de forma intensiva mesmo

    desqualificada, a escravido servia aos seus interesses no plantio de cana de acar,na minerao do ouro ou nos cafezais. O Brasil era um grande exportador dessesprodutos que tinham grande aceitao no mercado internacional. Com a revoluoindustrial e o desenvolvimento do capitalismo, ampliou-se a necessidade de sedesenvolver um mercado interno, consumidor dos produtos do mesmo capitalismo.Alm de estar desqualificada para os servios das industrias e de apresentar baixaprodutividade na lavoura, a mo-de-obra escrava no era assalariada e, portanto,no poderia ser consumidora. O escravo passou a ser um mau negcio para o Brasil.Este fato, de natureza econmica e cultural, provocou mudana nos valores:intelectuais e polticos se transformaram em humanistas, defendendo a liberdade, aigualdade e a vida de todos os homens, independente de sua raa. Restava mudar a

    lei. E ela foi mudada, definitivamente em 13 de maio de 1888, com a assinatura daLei urea. Foram, portanto os fatos que mudaram valores, provocando, juntos, aalterao das normas. Iniciou-se, a partir da um novo ordenamento jurdico noBrasil, onde um homem no poderia mais ser prisioneiro e escravo de outro homem.

    Esta explicao pode ser chamada de sociologismo jurdico pois se buscafundamento das leis na estrutura da prpria sociedade. A norma explicada pelacultura a existente.

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    Dependendo da tica, pode-se chamar tambm de marxismo jurdico,pois para Karl Marx e Engels, a existncia material que produz a conscincia dohomem. O homem pensa conforme ele vive ou ganha a vida. De acordo com omaterialismo histrico desses autores, a superestrutura (filosofia, artes, idiasreligio, direito etc.) expresso da infra-estrutura (o modo de produo). Se o

    modo de produo escravista, as idias e, portanto, tambm a lei tem umadimenso que sustenta a escravido. Se o modo de produo capitalista, as leisseguem o esprito liberal que o fundamento do capitalismo, por pregar a liberdade,igualdade, livre iniciativa, tolerncia etc.

    Saindo do Brasil, uma outra comparao pode nos ajudar acompreender melhor essa linha do pensamento jurdico. Dentro da mesma correntede pensamento, poderamos dizer que o nacionalismo exacerbado que provocou osurgimento de uma ideologia totalitria fruto de um fato: a humilhao que a Alemanha sofreu pelos acordos impostos depois da primeira grande guerra. Hitlersoube canalizar essa insatisfao gerando um estado totalitrio. Um fato histrico-econmico-poltico-social produziu um valor chamado nacionalismo que gerou umanova norma, um novo ordenamento jurdico, o totalitarismo.

    Alm disso, direito fato, no sentido que s aquilo que eficaz torna-sedireito de verdade.

    2. Os valores so importantes

    Pode-se olhar a realidade jurdica por outra dimenso, fcil de serpercebida entre os povos primitivos. Toda sua vida social e suas relaes soorganizadas a partir de suas crenas e tradies. Os valores so tradicionais, passamde gerao em gerao, e no podem ser desrespeitados, sob o risco de destruir a

    coeso social. Antes de ser NORMA, o direito foi vivido como fato e como fadoa que ohomem atribua a fora inexorvel e misteriosa dos enlaces csmicos...

    O direito enquanto FATO foi eclipsado pelo direito enquanto SENTIMENTODO JUSTO (o homem, ao tomar conscincia de si, alienou-se a poderes superiores)

    O Ser Humano, em primeiro lugar, reverenciou a deusa JUSTIA.

    "Tmis e Dik foram, entre os gregos, aspersonificaes do sentido ideal que governa de maneiraobrigatria o comportamento social. Poderamos dizer,

    com as devidas cautelas, que, de incio, por usa origemmtica, a ordem humana- na qual se englobava o Direito- sentida ou percebida como algo que deve ser. Oproblema do dever ser imps-se na primeira intuio dohomem sobre a regularidade ou presso das forassociais."4

    4 REALE, 502.

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    Lei lei. Os positivistas dizem que os valores so subjetivos,

    ideolgicos e relativos. Segundo eles, no se poderia conseguir um equilbrio e umapaz permanente em bases ideolgicas, pois os valores podem ter fundamentaesideolgicas. Isso permitiria a cada um julgar conforme seus princpios, abrindo

    caminho para o arbtrio. A estrutura da sociedade s estaria garantida, portanto, norespeito incondicional s normas que esto postas para a obedincia de todos. Oestado de direito um estado de respeito ao direito que est posto (positum) obedincia de todos5

    Se fatos, valores e normas so importantes, como temos visto at aqui,como conciliar essas trs dimenses sem cair em reducionismos ou em visesparciais que destrem a totalidade?

    Uma tentativa de responder a esta questo o estudo da teoriatridimensional do direito de Miguel Reale, que veremos, a seguir.

    4. UMA SNTESE DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DE MIGUEL REALE

    Para Reale, O DIREITO s pode ser entendido na perspectiva datridimensionalidade. Mas, h uma tridimensionalidade

    1. reducionista: considera as trs dimenses, sob o jugo de uma delas,atravs de concepes unilaterais.

    2. genrica ou abstrata que pode se manifestar em forma de

    justaposio: considera importante o estudo das trs dimenses, sem integraoentre elas.Segundo Reale, alguns entendem que a tarefa do JUSFILSOFO seria a de

    realizar uma sntese final das anlises feitas separadamente pelos especialistas queestudam o Direito como

    fato(socilogos, etnlogos, psiclogos e historiadores do direito) valor(axilogos e politiclogos do direito) norma(juristas e lgicos do direito)

    Se eu ficar preso lei, no posso entender a dinamicidade do direito. Afinal,"Uma ordem social estabelecida contm sempre certa dose de justia, mas tambm

    ela se encontra praticamente em conflito com uma dose nova de justia ainda noincorporada" (527)

    O direito dinmico porque o sentido de justia se d em "tenso"permanente. O estudante de direito deve ser formado para a sensibilidade do "ainda

    5 No processo de ensino-aprendizagem do Direito, um professor positivista est mais preocupado com a"regula iuris" (a medida do direito= lei) do que com a "ratio iuris" (a razo do direito, seu fundamento). Ofilsofo indaga a "ratio" que fundamenta a "regula".

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    no", que ajuda a superar a mesmice das solues pr-fabricadas, como manual dereceitas extradas da legislao em vigor.

    Essa dinmica s pode ser percebida se levarmos em conta as outrasdimenses do direito que so valore fato.

    Para entender tridimensionalidade do direito, preciso entender a relao

    entre valor, fim e dever-ser.

    O axiolgico se manifesta em teleolgico, fundando o deontolgico.O fim (teleolgico) determinado com base no valor (axiolgico).Para se atingir o fim preciso escolher meios adequados, que se

    transformam em dever-ser (deontolgico)

    A descoberta e escolha de valores tem uma carga emocional, afetiva, mas aescolha dos meios adequados envolve a dimenso racional, pois se trata deadequao de meios a fins, causas e efeitos.

    Tudo isso se d numa situao cultural determinada e quem escolhe sofre aslimitaes da vida cotidiana (ideologias, conflitos de interesses, de grupos etc).

    Os valores constituem a dimenso essencial do esprito humano em suauniversalidade. Quando obedece aos valores, portanto, o homem est, no fundo,obedecendo a si mesmo, humanitas revelada no fluir da experincia histrica.(549) - Talvez esta seja uma boa passagem de superao da dicotomiapositivismo Xjusnaturalismo, pois evita o relativismo e subjetivismo e o objetivismo empiricista.

    Para Reale, o direito , ao mesmo tempo, UNO e MULTPLICE. "Essa

    exigncia de unidade, sem perda de vista da tridimensionalidade do Direito, essencial. (534)

    Para compreender melhor o esquema da Teoria Tridimensional do Direito,vamos observar o quadro abaixo:

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    5. ESQUEMA DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITOSEGUNDO MIGUEL REALE

    Elementosconstitutivos

    Notadominante

    Concepesunilaterais

    reducionistas

    Objeto de eda:

    Fatofato social ouhistrico

    Eficcia6 Sociologismojurdico

    Histria,sociologia eetnologia do dir

    Valorvalor do justo

    Fundamento7 MoralismoJurdico

    Filosofia do dire(deontologia jurPoltica do Direi

    Normaordenadora daconduta

    Vigncia8 Normativismoabstrato

    Cincia do Direiou Jurisprudnc

    Tridimensionalidade

    especfica

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    O que torna uma norma jurdica socialmente existente?7 Que que torna eticamentelegtima a obrigatoriedade do Direito?8 Que que condiciona logicamente a validade das regras jurdicas?

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    -trs dimensespercebidas de

    forma integradaconcretamente-

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    6. A COLOCAO DE UM PROBLEMA:

    "A QUESTO DA MORADIA"

    O momento de legislar tem significado prprio enquanto alberga sempre um

    sentido de "dever-ser" ao qual inerente umaopo entre diversas vias possveis.

    A Norma se produz em relao a fatos referidos a valores.

    O FATO: o fato complexo, resultado de um conjunto de circunstncias, jogo de presses, conseqncias etc. Como amparar inquilinos, sem ofensa aodireito dos proprietrios? Como estimular a queda dos valores dos aluguis,estimulando, ao mesmo tempo, maior oferta de imveis? Deve-se levar emconsiderao o xodo rural em massa, o crescimento desordenado das cidades, asquestes sanitrias, de promiscuidade e de violncia. preciso garantir direitosadquiridos e proporcionar sadas adequadas para a situao.

    E quem deve fazer a escolha, est imerso na "vida cotidiana", sujeito aaplausos ou repdio, amor ou dio, em conseqncia de sua deciso.

    O VALOR: h uma complexidade de valores que condicionam o ato deescolha de determinado grupo de regras jurdicas ou de uma nica regra. H umcomplexo de fins ou valoraes, uma srie de motivos ideolgicos, conflitos deinteresses de grupos, com cosmovises diversas, a interferirem na escolha da normaa ser imposta.

    A NORMA: com a interferncia do Poder, uma das proposies normativas setransformar em norma, com a garantia de que ser observada, mediante uma

    sano para aquele que a desobedecer. A escolha no mecnica: mesmos valorespodem levar a escolhas de normas (dever-ser jurdico) em contradio.

    Isso tudo pode ser representado graficamente:

    F

    COMPLEXOAXIOLGICO:VALORES

    PROPOSIES

    NORMATIVAS

    P

    N

    V

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    V = valorF= Fato (complexo ftico)P= PoderN= Norma

    A gnese da norma pode ser comparada imagem de um raio luminoso(impulsos, exigncias axiolgicas, valores) que, incidindo sobre um prisma (omultifacetado domnio dos fatos sociais, econmicos, tcnicos etc.), se refrata emum leque de "normas possveis", uma das quais apenas se converter em "normajurdica", dada a interferncia do Poder. (553)

    Para nossa discusso na tese, poderamos aprofundar a dimenso dainterferncia do Poder. Para Reale, o Poder pode ser estatal, costumeiro, jurisdicionalou negocial. Ns perguntamos, onde est concentrado esse Poder, no momento daescolha de uma Norma que dever se impor obedincia: na figura do soberano,numa viso absolutista; no chefe ou no partido nico, numa viso totalitria; nolegislativo, numa viso democrtica... E mesmo, dentro de uma democracia, o Podermaior est nas mos do executivo, do prprio legislativo, do judicirio ou mesmo dopovo organizado? Penso que aqui abre-se caminho, inclusive, para o direitoalternativo.

    Para Reale,cadamodelo jurdico, considerado de per si, corresponde a um momentode integrao de certos fatos segundo valores determinados, representando umasoluo temporria (momentnea ou duradoura) de uma tenso dialtica entre fatose valores, soluo essa estatuda e objetivada pela interferncia decisria do Poderem dado momento da experincia social.

    7. QUESTIONAMENTOS

    1. A teoria tridimensional do direito deixa um espao aberto para sepensar a evoluo do direito?

    2. possvel pensar o direito alternativo, a partir da teoriatridimensional do direito? Como se poderia justificar o direitoalternativo a partir dessa teoria?

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    3. Agora voc j est mais habilitado a definir alguns termos. D a suadefinio para:

    3.1. Jusnaturalismo3.2. Positivismo jurdico3.3. Teoria tridimensional do direito

    3.4. Dimenso axiolgica do direito3.5. Validade e vigncia em direito4. A filosofia do direito pode influenciar a deciso de um juiz?