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1 Raimundo Ibernon Chaves da Silva CHICO MENDES E A INVENÇÃO DO ACRE CONTEMPORÂNEO: IMAGENS E CONFRONTOS EM ALEX SHOUMATOFF, MÁRCIO SOUZA E ZUENIR VENTURA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, na área de Sociedade e Cultura, em Rio Branco – AC, 2009. Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Carvalho (Universidade Federal do Acre – UFAC). Rio Branco Universidade Federal do Acre Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade 2009

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Raimundo Ibernon Chaves da Silva

CHICO MENDES E A INVENÇÃO DO ACRE CONTEMPORÂNEO: IMAGENS E

CONFRONTOS EM ALEX SHOUMATOFF, MÁRCIO SOUZA E

ZUENIR VENTURA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, na área de Sociedade e Cultura, em Rio Branco – AC, 2009.

Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Carvalho (Universidade Federal do Acre – UFAC).

Rio Branco

Universidade Federal do Acre

Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade

2009

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Raimundo Ibernon Chaves da Silva.

Chico Mendes e a invenção do Acre contemporâneo: imagens e confrontos em Alex Shoumatoff, Márcio Souza e Zuenir Ventura.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, na área de Sociedade e Cultura, em Rio Branco – AC, 2009.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________

Prof. Dr. João Carlos de Carvalho

(Orientador)

_______________________________

Prof. Dr. Gerson Albuquerque

(Membro)

_______________________________

Prof. Dr. Aroldo Magno de Oliveira

(Membro)

_______________________________

Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares

(Suplente)

______________________________

Profa. Dra. Margarete Edul Padro

(Suplente)

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À Bruna Regina, ao Raimundo Junior, à Lhilli Naomi, ao Pedro Felipe e ao Francisco Ícaro.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, prof. Dr. João Carlos de Carvalho, pela generosidade, incansável dedicação e precioso esclarecimento às minha dúvidas e angústias, o que me possiblitou ir até o fim deste trabalho.

A meus pais, Zeca e Gleide, aos meus irmãos que mesmo na distância, sempre se fizeram presentes nas minhas memórias e me deram o impulso psicológico fundamental para a realização desta pesquisa.

Aos professores Drs. Vicente Cerqueira, Socorro Calixto, Gerson Albuquerque, Marisa Kalil e Andréa Dantas pelo incentivo às leituras, pelos debates, pela dedicação e harmoniosa convivência.

À turma/2007 do Mestrado em Letras/UFAC pelo companheirismo e solidariedade. Quetodos sigamos firmes mediante os descaminhos da vida.

A todos os amigos e amigas que de perto ou de longe, de alguma forma me ajudaram eme incentivaram, mostrando-me que mais do que nunca é preciso prosseguir.

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CHICO MENDES E A INVENÇÃO DO ACRE CONTEMPORÂNEO: IMAGENS E CONFRONTOS EM ALEX SHOUMATOFF, MÁRCIO SOUZA EZUENIR VENTURA.11

RESUMO: A Amazônia em pleno século XXI ainda carece de mártires e mitos para poder dizer que existe e chamar a atenção do mundo para a urgência de seus velhos problemas. No presente trabalho queremos mostrar as imagens construídas sobre o herói acreano dos povos da floresta Chico Mendes e analisar de que maneira essas imagens o transformam ou não em um mito esímbolo da luta pela preservação da Amazônia. Tais questões serão discutidas a partir da análise e do confronto das obras O mundo em chamas de Alex Shoumatoff, O empate contra Chico Mendes de Márcio Souza e Chico Mendes: crime e castigo de Zuenir Ventura, explorando-as nas imagens e nos aspectos que fundamentam a construção do processo de heroificação da figura humana de Chico Mendes a partir do personagem reconstruído nas obras, ao mesmo tempo em que faremos a partir das referidas imagens uma análise dos aspectos conjunturais do Acre que surge após a tragédia. Portanto, a nossa indagação primeira é buscar entender como se dá essa reestruturação visivelmente ancorada na figura do líder seringueiro. Para isso utilizaremos a metodologia de análise discursiva das obras e de confronto entre os autores.Nosso objetivo é investigar as imagens criadas pelos autores supracitados, sobre a trajetória de Chico Mendes na conjuntura das lutas sociais do Acre nas décadas de 1970 e 1980, confrontá-las e questionar a maneira como elas são apropriadas pelos prováveis seguidores de Chico Mendes, para a invenção de um novo Acre, fundado no discurso da sustentabilidade ambiental e entender como esses elementos ajudam a reforçar ou destruir o mito sobre a imagem de Chico Mendes que se forma a partir do Acre para o Brasil e o mundo. A busca de respostas a essas perguntas se dará, fundamentalmente, à luz da teoria foucaultiana sobre o processo da autoria e da produção do discurso na sociedade. Outros teóricos são também fundamentais para a aplicação do nosso objeto, como Roland Barthes e sua teoria sobre o mito contemporâneo, Erich Hobsbawm e sua tese sobre a invenção das tradições e Jacques Le Goff e seus estudos sobre as relações da história com a memória. O estudo de conceitos como tradição, mito e memória, nos permitirão concluir que mesmo sendo o mito uma necessidade da frenética vida pós-moderna, e a memória uma arma usada pelos que detém o poder, tais instrumentos devem tão somente servir ao esclarecimento e a liberdade do homem.

Raimundo Ibernon Chaves da Silva

PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, autor, discurso, mito, memória e tradição.

1 Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Carvalho – Universidade Federal do Acre / UFAC.

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CHICO MENDES AND THE INVENTION OF CONTEMPORARY ACRE: IMAGES AND CONFRONTS IN ALEX SHOUMATOFF, MÁRCIO SOUZA AND ZUENIR VENTURA.22

ABSTRACT: The Amazon in full twenty first century still claims for martyrs and myths to apprise it exists and to call out the attention to the world for its urgent ancient problems. In this study we will illustrate images created about the acreano hero of the forest natives Chico Mendes, and also analyze how these images change him or not in a myth and symbol for the struggle of Amazon conservation. These points will be discussed throughout the analysis and confront into the books O mundo em chamas by Alex Shoumatoff, O empate contra Chico Mendes by Márcio Souza and Chico Mendes – crime e castigo by Zuenir Ventura, investigating them into images and aspects that basis the process of creation of the hero inside the human figure of Chico Mendes through the character constructed in the books, and at the same time an analyses about the contextual aspects of Acre that rises up after the tragedy. Then, our first inquiring is to search to understand how it occurs the restructuration in the figure of the leader robber tapper. In order to make it we are going to use the methodology of the discursive analysis of the books and confront among the authors. Our aim is to investigate the images created by the former authors about the life path of Chico Mendes in social struggles of Acre in 70’s and 80’s, also face and question the manner they are related to Chico Mendes’ supporters to the invention of the new Acre, even so based in the discourse of environmental sustainability and understand how these elements help to emphasize or destroy the myth about Chico Mendes’ image that comes from Acre to Brazil and world. The searching for this answer will be based in Foucault’s theory about the process of authorship in which we recognize that the production of discourse in the society is controlled, organized, chosen and redirect through some procedures and the author is understood as the beginning of the combination of discourse such as unity and origin of meanings, and focus on its occurrence. Also, with Roland Barthes who points that the myth does not deny the happenings; the main role is to discuss and purify them, so we will explore the comprehension about the functions of the myth into the society. We will use other conceptions as tradition and memory, to conclude that even the myth represents a necessity to the post modern turbulent life, and the memory a tool used by those who are in the power, such instruments must serve to clarify and conceive liberty to the human being.

Raimundo Ibernon Chaves da Silva

KEY-WORDS: Amazon, author, discourse, myth, memory, tradition.

2 Advisor: P.h.D. Prof. João Carlos de Carvalho – Federal University of Acre / UFAC.

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Quietos!

Uma verdade passa por sobre mim igual a uma nuvem – com relâmpagos invisíveis ela me atinge. Por largas lentas escadas sobe até mim sua felicidade: vem, vem, querida verdade!

(Friedrich Nietzsche)

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SUMÁRIO

1. Introdução...........................................................................................................09

2. A verdade do mito e o mito da verdade: Chico Mendes e suas construções

discursivas............................................................................................................17

2.1 O herói em chamas..................................................................................17

2.2 O mito contemporâneo e as categorias do discurso.................................31

2.3 O mito como falência na sociedade contemporânea...............................43

3. Chico Mendes labiríntico: o homem e o personagem...........................................57

3.1 Alex Shoumatoff: o autor invisível.........................................................57

3.2 Márcio Souza: o mito como fabulação telúrica.......................................68

3.3 Zuenir Ventura: entre o herói e o homem...............................................79

4. Conclusão .............................................................................................................101

5. Referências bibliográficas....................................................................................106

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INTRODUÇÃO

O medo cósmico é a trepidação sentida diante do imensuravelmente grande e imensuravelmente intenso: diante do céu estrelado, do volume substancial das montanhas, do mar, e o medo de convulsões cósmicas e desastres

naturais. No cerne do “medo cósmico” jaz a não-entidade do ser humano amedrontado, abatido e transiente.

(Mikail Bakhtin)

No amplo rol dos discursos literário e jornalístico acerca da vida e trajetória do

líder seringueiro acriano Chico Mendes, como se sabe, assassinado em dezembro de

1988, três obras destacam-se pela precisão com que seus autores recriaram discursiva e

textualmente o episódio que abalou o Acre, a Amazônia, o Brasil e o mundo, em fins

daquela década de 1980. Essas obras são: O mundo em chamas (Alex Shoumattof), O

empate contra Chico Mendes (Marcio Souza) e Chico Mendes:crime e castigo (Zuenir

Ventura) publicadas respectivamente em 1989, 1990 e 2002.

No presente trabalho queremos mostrar as imagens construídas sobre o herói

dos povos da floresta Chico Mendes e as questões relativas à construção do mito

contemporâneo, a partir de um confronto entre as obras citadas (que são de caráter

jornalístico e literário, ao mesmo tempo), explorando-as nas imagens e nos aspectos que

fundamentam a construção do processo de heroificação da figura humana de Chico

Mendes a partir do personagem reconstruído nas obras, por seus respectivos autores.

Paralelo a esta análise faremos a partir das referidas imagens uma análise dos aspectos

conjunturais do Acre que ressurge após a tragédia.

Neste sentido, o registro jornalístico e literário promove uma urgência, uma

busca de verdade que, ardilosamente, esconde também as articulações do processo de

construção discursiva sobre a própria construção do herói. Envolvidos neste processo,

somos levados de imediato a entender esse fenômeno como um imperativo, dado a

urgência e universalidade da causa ambiental. Porém, escapar de algumas armadilhas da

linguagem, sobreviver às tramas discursivas é a tarefa que nos obriga a entender melhor

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o papel desempenhado pelo processo de heroificação do personagem a que nos

propomos analisar.

A Amazônia, no passado, a terra das amazonas e do El Dorado, tem nessas

duas narrativas históricas (ou lendas) a exaltação do encantado, do fantástico, que

expressam o medo ante o desconhecido e o desejo de aventura, marcas que iriam fazer-

se sempre presente no ethos cultural regional, desde os primórdios de sua colonização

no século XVI até os dias de hoje, quando ainda reina certa desconfiança, certo temor

com relação ao grande vale. Os primeiros desbravadores e navegadores que por aqui se

aventuraram ansiavam pelo enriquecimento fácil com a possível descoberta do ouro. Os

diários de viagem das primeiras incursões pelo rio das amazonas nos dizem isso. Hoje, a

dura realidade não permite mais tantos devaneios e a Amazônia segue seu curso, ainda

como uma região desconhecida da ciência, mal explorada nas suas riquezas naturais, na

verdade, vítima de uma exploração predatória e com o seu habitante originário, na

grande maioria vivendo em extrema pobreza. Mas a convivência com o exótico, com a

tragédia, com os extremos, com as fantasias, com a aventura e o delírio humano se

tornariam pechas que nunca mais deixariam a Amazônia. É isso que nos provam os

episódios históricos que provocaram o deslocamento de grandes massas humanas,

verdadeiras epopeias pós-modernas, quais sejam: o boom da borracha, a colonização do

Estado de Rondônia e a garimpagem do ouro em Serra Pelada, no Pará.

Apesar de tudo, até os anos de 1930, a grande região permanecia como uma

espécie de santuário isolado, intocado e impenetrável. De Manaus, a pequena

cidadezinha que tinha toda sua vida girando em torno dos negócios com a borracha de

seringa no início do século XX, encravada à confluência do Rio Negro com o

Amazonas, era mais fácil ir à Lisboa do que ao Rio de Janeiro.

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O Acre de fins do século XIX se torna por um capricho da natureza um dos

principais palcos dessa aventura modernista na Amazônia a que nos referimos, ao ver-

se, de repente, no epicentro do ímpeto de consumo e das necessidades de matéria prima

do capitalismo mundial. Tal demanda exigiu que fossem “arrancados” milhares de

homens de sua terra natal e deslocados3 para os altos rios Purus, Juruá, Acre e seus

afluentes (e para quase todos os rios da Amazônia), para o trabalho da produção da

borracha, produto requerido nos mercados do mundo industrializado. Essa conhecida

história será por mim revisitada de forma sucinta para compreender um determinado

fenômeno e em alguns aspectos que são transversais a este trabalho.

Entendemos que o Acre contemporâneo, um século depois do Boom da

Borracha, vinte anos após a morte de Chico Mendes, passa por um processo de

reestruturação que, pelas aparências e atitude de seus líderes, objetiva recolocar o estado

novamente no cenário nacional, dessa vez como exemplo de cuidado com o meio

ambiente. Mas a modernização de seus aspectos estruturais acarreta transformações que

acabam modificando formas e modos seculares de vida. Esse processo (de face dupla)

dá-se a partir de uma trama discursiva (note-se: mas não somente através dela) que se

apoia num poderoso aparato de mídia e propaganda que se espraiam por todo estado a

partir de Rio Branco, a capital, cidade estratégica onde se concentra metade da

população acreana.

Nesse contexto e a partir de tais estratégias, como veremos, o nome de Chico

Mendes se afirma na memória coletiva e se sobressai como a principal marca cultural do

novo Acre e ajuda a inventar um estado que, contraditoriamente, ainda para nosso

3 Tal migração se deu com o apoio de incentivos oficiais, pela ânsia de enriquecimento fácil de seringalistas e do homem nordestino que naquele fim de século XIX se via acossado pela terrível seca que assolou parte do Nordeste brasileiro.

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espanto, não se liberta de suas mazelas passadas.

Mas o Acre de 2008 (duas décadas após a grande tragédia) é diferente em

muitos aspectos do Acre de 1988. Ali vivíamos uma espécie de geléia geral onde

tínhamos a presença do crime organizado amparado pela impunidade, ineficiência das

instituições públicas, inércia governamental e, o pior, uma insegurança que rondava as

pegadas de boa parte da população original do estado que buscava, atônita, se firmar

frente à ausência reinante de perspectivas econômicas e ao mesmo tempo se proteger da

desordem oficial vigente. Hoje, no Acre, o poder público vem realizando os

investimentos reclamados pela sociedade, buscando, mas nem sempre conseguindo,

como veremos, equacionar o desenvolvimento com a sustentabilidade. A busca da tão

sonhada qualidade de vida fica assim comprometida quando percebemos ainda muitos

entraves que fatalmente não deixam o estado avançar. Mas nossa população que durante

muito tempo esteve na fronteira da civilização com a barbárie experimenta hoje ares

mais brandos. Vislumbramos um estado em pleno crescimento urbanístico e integrativo,

apesar do tímido avanço em outros setores estratégicos da sociedade.

Os amigos de Chico chegaram ao poder já no início dos anos de 1990 e se

empenharam na elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para a

sustentabilidade e a questão ambiental, como veremos mais adiante nas obras em

análise. Os sindicatos ao estabelecer suas bandeiras de lutas, agora não mais almejam a

formação de serenos empates4 e não lutam mais pela utopia [grifo nosso] de

interromper a transformação dos seringais em pasto, uma vez que os empreendedores da

agropecuária já têm que seguir as delimitações previstas na lei ambiental e o Estado

4 Palavra derivada de “empatar” que tem sentido duplo: igualar ou impedir. No linguajar amazônico e particularmente no contexto do movimento social liderado por Chico Mendes, o “empate” é mais que um termo, é um conceito muito conhecido e debatido e está relacionado a impedimento.

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criou e regulamentou as Reservas Extrativistas, as Florestas Públicas, os Parques

Nacionais e as Terras Indígenas. Hoje a bandeira de luta de sindicatos, ONGs, e do

próprio governo é para que todos tenham espaço e os incentivos necessários para

desenvolver seus negócios de forma equilibrada e sustentável. Neste cenário a pecuária

(pasmem-se!) se afirma como a mais promissora, a mais forte atividade econômica do

Acre. Se a luta de Chico Mendes era contra a derrubada da floresta (entenda-se os

seringais nativos que são a razão de ser, da origem e povoamento desta parte do Brasil)

para a formação de fazendas de gado, estamos então a nos indagar: sua morte serviu a

quê?

Nosso problema surge então deste questionamento. O que nos propomos

investigar neste trabalho vem ao encontro de uma indagação que brota do confronto das

vozes de construção de um ideal de vida e contestação na Amazônia globalizada que

resulta numa imagem que acabou numa espécie de simbiose com a idéia de martirização

e holocausto que está aí como emblema de uma identidade requerida pelos que

chegaram na última década do século XX ao poder.

Nosso objeto de estudo é fazer uma análise tendo como foco o “herói” Chico

Mendes e seu ideário de vida e contestação, numa conjuntura de enfrentamento entre as

populações tradicionais da Amazônia e os pecuaristas vindos do centro-sul, a partir das

imagens criadas pelo ensaio jornalístico e pelos elementos literários que ali se

encontram.

Márcio Souza, um de nossos autores analisados, nos lembra que não é de hoje

que a Amazônia convive com o moderno e com a tragédia. Quem visita hoje a cidade de

Rio Branco, tende a se impressionar com a modernidade e a impetuosidade de suas vias

principais. Zuenir Ventura não esconde o seu encantamento por essa nova Rio Branco.

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Porém, com um olhar mais cauteloso, a partir de alguns contrastes, esse mesmo

visitante desfaz, naturalmente, essa impressão. Sendo assim, obviamente, muitos

elementos acabam sendo descartados no intuito de se elaborar um quadro que se deve

apresentar de certa maneira aos nossos visitantes.

O contexto geral das obras estudadas e o que falamos até aqui nos remete aos

processos discursivos de construção do mito nas obras em foco, onde o homem Chico

Mendes reaparece, sob a forma de um herói: homem bom, idealista, desprendido,

generoso, firme nos seus ideais e propósitos e que deu a própria vida para salvar a

Amazônia. Mas aí, ele já não era mais de fato um simples homem. Seu idealismo pode

até mesmo nos lembrar personagens célebres da literatura universal como, por exemplo,

o lendário Dom Quixote, que na sua luta contra os imensos moinhos de vento não

imaginava que seria impossível interromper aquele movimento. A pilhagem da floresta

amazônica continua com quase o mesmo ímpeto de vinte anos atrás, como nos mostram

acontecimentos recentes e é notório que determinadas forças econômicas da sociedade

se beneficiam do seu holocausto. Assim vamos vivendo uma realidade de contradições

que a imagem da tragédia está longe de resolver.

O historiador Jacques Le Goff no seu livro História e memória discute as

relações da memória com o poder, onde ele afirma que os donos do poder sempre

souberam que se assenhorear da memória coletiva é, antes de qualquer coisa, uma forma

de dominação. Seu estudo nos faz olhar até a antiguidade e nos leva a compreender que

essa prática foi muito comum e nos traça um percurso histórico das lutas pela memória

ao longo dos séculos. Iniciamos esse texto afirmado que no Acre contemporâneo uma

série de reestruturações da vida do estado está a acontecer por meio de ícones e

símbolos mais ou menos homogêneos, o que nos faz deparar com determinadas

construções e monumentos diversos que, ao reler o historiador francês, temos a

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impressão de que ele acabara de visitar nosso estado e está a nos ajudar a compreender

melhor o momento singular que vivemos. Le Goff nos alerta que a luta da perpetuação

de determinados personagens do poder na memória coletiva faz parte de uma estratégia

de manutenção do próprio poder ao longo dos séculos, porque

a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva. [...] História que fermenta a partir dos “lugares” topográficos, como os arquivos, as bibliotecas; [...] lugares monumentais, como os cemitérios; [...] lugares simbólicos como as comemorações, os aniversários; [...] ou lugares ficcionais como as autobiografias, [...]: esses memoriais têm a sua história. (2003, p. 423-74)

Cair no esquecimento é tudo o que não desejam os atores da vida social. O

autor quer nos chamar a atenção para determinadas artimanhas da vida em sociedade, e

nos mostra que a relação entre memória e seus ‘laços’ com o poder é antiga e muito

comum. No Acre atual nos deparamos com instituições, monumentos e práticas

culturais envolvendo o nome de Chico Mendes, o que não nos deixa dúvidas de que

estamos diante de um articulado processo de construção de um novo herói amazônico.

Essas observações preliminares nos servem inicialmente para a composição de

um determinado cenário onde estaremos a atuar ao longo deste texto, mas não é nossa

pretensão nem nosso objetivo fazer um ensaio sobre a história social do Acre

contemporâneo, o que não nos permite o aprofundamento de determinadas aberturas e

questões até aqui colocadas.

Como metodologia adotaremos a consulta e análise discursiva das obras em

questão sempre referendados pelo arcabouço teórico em que nos apoiamos para

compreender e analisar às questões do mito, do discurso e da memória. Nosso objetivo

geral nesta pesquisa é investigar quais as imagens criadas, pelos autores supracitados, a

partir da trajetória de Chico Mendes na conjuntura das lutas sociais do Acre nas décadas

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de 70 a 80 e, ao mesmo tempo, fazer um confronto dessas imagens do herói acriano,

esclarecendo de que maneira elas são utilizadas hoje pelos prováveis seguidores de

Chico Mendes para a invenção de um novo Acre, fundado no discurso da

sustentabilidade e da florestania. Como objetivos específicos, pretendemos investigar

como a identidade acreana é forjada pelas imagens, narrativas e reflexões presentes em

O mundo em chamas de Alex Shoumatoff, O empate contra Chico Mendes, de Márcio

Souza, e Chico Mendes: crime e castigo, de Zuenir Ventura (como esses elementos

ajudam a reforçar ou destruir o mito e de que maneira isso contribui para a imagem de

Chico Mendes que se forma a partir do Acre para o Brasil e o mundo). Por fim, elaborar

um estudo das imagens criadas sobre Chico Mendes no ensaio jornalístico, por meio do

referencial anunciado; refletir acerca do projeto capitalista de “modernidade na selva”, a

pecuarização e as mudanças acarretadas por ela, e sua relação com o Acre após o boom

da borracha das décadas de 70 e 80, pela ótica dos autores; buscar uma recomposição de

nossa identidade de homens acreanos, relacionando-a com a conjuntura social, política e

econômica que dominou o mundo industrial a partir da década de 1970, inserindo neste

contexto, o Brasil e a Amazônia.

A partir dos objetivos propostos, as questões que queremos responder são as

seguintes: quais valores criados, pelos autores supracitados, entram em jogo sobre a

trajetória de Chico Mendes na conjuntura das lutas sociais do Acre nos anos 70 e 80 que

ajudam a entender o mito? Que identidade acriana possível é forjada pelas imagens

presentes em O mundo em chamas, de Alex Shoumatoff, O empate contra Chico

Mendes, de Márcio Souza e Chico Mendes: crime e castigo, de Zuenir Ventura?

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2. A VERDADE DO MITO E O MITO DA VERDADE: CHICO MENDES E

SUAS CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS

Há, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferente, uma profunda logofobia dessa massa de coisas dita, de tudo que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de

desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso.

(Michel Foucault)

2.1 O herói em chamas

Nossos autores analisam que o movimento social5 liderado por Chico Mendes e

seus companheiros na cidade de Xapuri - AC, nas décadas de 1970 a 1980, é o resultado

de uma conjuntura que agrega múltiplos fatores sociais, políticos, culturais e

econômicos. Eles destacam que a Amazônia e o Acre viviam um momento de ebulição

social e econômica que se originava na superação do modelo extrativista (que vinha de

uma lenta e longa agonia desde a 2ª. Grande Guerra) e a implementação da pecuária

como nova atividade econômica. Uma transição conflituosa. É desse emaranhado social,

deste cenário em mudança, que surge o personagem que vai surpreender o Brasil pelo

carisma, idealismo e simplicidade: Chico Mendes. No imbróglio das tramas discursivas

que se deu após seu assassinato, permitiu-se claramente uma visão estratificada, muitas

vezes maniqueísta, sobre a formação do Acre contemporâneo, onde as classes sociais e

suas respectivas culturas ficaram divididas entre os “paulistas”, os invasores, e de outro,

os seringueiros, nordestinos de origem, tradicionais habitantes da região dos altos rios

da Amazônia. Estes últimos, guiados pela insistência, permaneceram aqui e fundaram,

sob impacto de sucessivas lutas, o que seria mais tarde o estado do Acre. Na década de

1970, se organizaram como classe sindical, e na década de 1980, sob a liderança de

5 A fundação do STR - Sindicato dos Trabalhadores Rurais – e a tentativa de retomada do extrativismo e a forma pacífica de mobilização dos seringueiros e ribeirinhos contra a derrubada dos seringais, denominada empate.

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Chico Mendes, fazem da sua luta uma bandeira para a preservação da floresta. Os

migrantes “paulistas” munidos dos propósitos de aquisição de terra tanto para

especulação quanto para derrubadas e formação de pastagens para a criação do gado,

encontraram então, aí, o seu mais fervoroso obstáculo, a resistência natural do caboclo

amazônico. Nossos autores afirmam que de conflito em conflito, grandes propriedades

rurais foram formadas no Acre a partir do ano de 1970. Os movimentos sociais com

origem nesse período (fundamentalmente os Sindicatos Rurais de Xapuri e Brasiléia)

tomam a decisão de lutar contra a ação de derrubada dos seringais implementada pelos

“paulistas” que crescia a cada dia dada a facilidade com que as terras estavam sendo

vendidas por aqui naqueles anos, como na passagem seguinte afirma Márcio Souza:

No final dos anos 70, grandes seringais acreanos são comprados a preço vil por fazendeiros sulistas. Outros, simplesmente são grilados em cartório, com documentos falsos. O esbulho do direito de posseiros com quase 100 anos de posse era feito com tal falta de cerimônia, os títulos falsificados pululavam com tanta desenvoltura, que chegou-se a pensar que talvez o estado do Acre fosse como um edifício de vários andares, tamanha era a diversidade de proprietários “legítimos” brandindo suas escrituras “autênticas” a disputar o mesmo espaço de terra. (1990, p. 34)

Os três autores se colocam numa perspectiva muito próxima ao analisar o Acre

da década de 1970. Eles percebem que aqui é, de fato, a última fronteira brasileira a ser

“explorada” e isso se dá por uma onda de fatores que se desencandeiam como um efeito

dominó. A ocupação do extremo ocidente amazônico, após sucessivos fracassos, foi

convertida numa ação prática a partir dos anos de 1970 – a implantação da BR-364

ligando Cuiabá (MT) a Rio Branco (AC), o incentivo à ação de grilagem dos seringais

e a consequente derrubada da floresta para a formação das fazendas.

O processo de chegada dos sulistas e ocupação dos seringais acreanos se deu,

como nos mostra a passagem acima, da forma mais perversa e desrespeitosa possível. À

grilagem de terra juntou-se a ação criminosa das instituições (que deveriam primar pela

observação da lei) que passaram a apoiar a ação dos grileiros e por conseguinte, a se

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posicionar contra os habitantes centenários da Amazônia. Mas ao longo de sua história a

Amazônia já experimentava um acelerado processo de (des)apropriação: a confusa

colonização portuguesa nos séculos XVI e XVII, a política pombalina no século XVIII,

a cobiça internacional sobre as “drogas do sertão” e a presença de conceituados

cientistas no século XIX e o boom da borracha no século XX, deixaram marcas

profundas que se refletem até hoje nos nossos espaços culturais e se constituem ciclos

econômicos que causaram um saqueamento de nossas riquezas naturais.

O contexto conjuntural do Acre nos anos que se seguem ao fim do Ciclo da

Borracha, é ressaltado por Carvalho, da seguinte maneira:

Como sabemos, a monocultura da borracha na Amazônia inaugurou um novo modus vivendi na região. A massa de migrantes nordestinos que rumou ao “eldorado”, fugindo do flagelo da seca, permitiu, além da ampliação de nossas fronteiras geográficas, a formação de um novo ethos regional. A grande maioria, logo de início, teria como maior saldo o regime do barracão, acumulando dívidas que jamais seriam pagas, numa situação já bastante anacrônica para a época. Por outro lado, houve uma mudança radical em relação à vida em muitas de suas cidades. Segundo o próprio Márcio Souza, nesse período ‘a Amazônia experimentou um vigor inesperado que a retirou do silencioso passado colonial, com suas vilas de poucas casas, para umritmo trepidante e voraz’. (2005, p.244).

A vida no seringal era dura, como atestam os trabalhos analisados. O “brabo”

era abandonado nas altas florestas para o trabalho do fabrico da borracha, tendo como

companhia, além das águas diáfanas ou turvas de um determinado rio amazônico e dos

mistérios e perigos da imensa hiléia, um outro companheiro de sina. No entanto, nos

arremedos de cidades como Manaus e Belém a vida experimentava um frenesi e

transcorria freneticamente. Os barões da seringa não se lamentavam de nada e, reza a

lenda, acendendo charutos importados com cédulas de um dólar, bradavam: “a

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seringueira é a árvore da fortuna plantada pela mão de Deus em solo amazônico!”6 E a

vida, como ironiza Márcio Souza, seguia como um vaudeville. Com o fim do monopólio

em 1910, ocorre uma mudança na conjuntura econômica de toda região. Os seringais de

cultivo da Malásia começam a produzir, em escala industrial, com otimização de tempo,

espaço e técnica, superando definitivamente a arcaica cultura do barracão e além de

levar a tristeza para as festivas Manaus e Belém, levou ao desespero centenas de

seringalistas e milhares de seringueiros.

Nossos autores reforçam o fato de que a cultura da borracha, mesmo ainda

muito viva na memória dos homens que construíram o Acre, não tinha mais

possibilidade de uma retomada consequente na atividade econômica, e os seringueriros

acreanos estavam à mercê da sorte, da boa vontade dos poucos patrões que ainda

insistiam na exploração dos seringais e agora mais que nunca depediam da sua própria

força de organização e reinvidicação. É provável que o movimento liderado por Chico

Mendes não tivesse a consciência da falência do extrativismo e muito menos de sua

história. Essa consciência, provavelmente só vai se dando aos poucos a partir do

contato e eté mesmo com a chegada de pessoas de outros estados (ambientalistas,

artistas, pesquisadores, etc.) para o Acre e a com a “natural mudança de rumo” que

ganha o movimento. Depois da Batalha da Borracha, a região conhece uma fase de

profundo abandono por parte do poder público e essa “grande depressão” só é

chacoalhada a partir da década de 1970 com a onda de incentivos dos governos federal e

estadual, com a abertura da transamazônica, o baixo preço das terras, a política oficial

do governo brasileiro – “Amazônia: integrar para não entregar” – conjuntura essa que

6 Referenciamos aqui o ensaio contundente desse esse período eufórico da nossa história feito por Souza, Márcio. A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo : Alfa e ômega. 1978. 217 p.

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ocasiona um novo surto de migração para a região. No final do século XIX vieram os

nordestinos. Agora chegariam os “paulistas”7.

Alex Shoumatoff (1990) afirma que Chico Mendes e seus companheiros, muito

provavelmente, não tinham a noção do mosaico maior [grifo nosso] que era nos anos

1980 as derrubadas e queimadas na Amazônia, processo contra o qual acabaram lutando

através do sindicato. Os grandes projetos como a Transamazônica, o Carajás, o Jari e

Tucuruí, entre outros, escondiam um jogo truculento e esnobe onde vencia sempre a

especulação, o desvio de impostos e o aumento da inflação e as verdadeiras vítimas

foram os índios que viviam ao longo do traçado da rodovia e que ou foram atingidos

pelas represas das águas ou pela ação das mineradoras.

Com a chegada dos sulistas para Rondônia (a crise nas fazendas de café do

Sudeste brasileiro os expulsaram para o norte), o cerco se fecha com relação ao Acre.

Uma grande parte das florestas de Rondônia vira fumaça, e a invasão das terras dos

índios – nhambiquara, cinta-larga, uru-eu-wau-wau, arara, gavião – se torna

incontrolável. Shoumatoff (1990, p. 80) nos alerta que

a mesma coisa aconteceu no Acre. Os fazendeiros começaram a chegar em 1970, depois de completada a rodovia BR-364, que ligava Rio Branco a Porto Velho e Cuiabá. O plano do governador Wanderley Dantas, que convidou os fazendeiros, era mudar a base econômica do Estado da borracha para o gado. Os seringueiros, que constituíam quase totalidade da população rural, teriam simplesmente que abrir caminho para o progresso,

pelo simples motivo que se antes foram as peças fundamentais e geradoras da riqueza

amazônica, agora se tornariam um estorvo. Tinham que abrir alas e dar passagem ao

novo jeito de caminhar que estava a se afirmar na região. O panorama histórico

ressaltado pelos três autores prepara a ante-sala do período onde nosso personagem terá

destacada atuação, daí a importância da breve retomada que ora fazemos. Nas obras em

7 “Paulistas” eram assim denominados os migrantes do centro-sul do país, que chegavam para o Acre nos anos de 1970, principalmente aqueles que vinham como agropecuaristas ou a serviço destes.

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foco, Chico Mendes se projeta social e politicamente nas décadas de 1970 e 1980,

portanto num período de absoluto declínio da cultura da borracha nos moldes

tradicionais que a Amazônia conhecia. Aí está o primeiro grande paradoxo: sua figura

se revela como um “gigante com pés de barro” pois surge em meio a uma luta em que

estavam em jogo interesses e forças econômicas muito superiores as que dispunham os

seringueiros. Um dos pilares de sua luta – a retomada do extrativismo – estava

decididamente superado e sua eliminação foi facilmente tramada e mesmo frente a todos

os avisos e denúncias, displicentemente tratada pela força policial pública que só

despertou quando não havia nada mais a fazer. Mesmo com toda a força que o

movimento social por ele liderado adquiriu, num cenário onde reinava a displicência

polícial e governamental, foi muito fácil tirá-lo de cena.

O que ficaria de herança para as gerações posteriores era a recriação discursiva

de um Chico Mendes que não sabemos dizer ao certo quem de fato foi. E talvez, hoje,

essa indagação não interessa a ninguém que esteja usufruindo do seu legado. No entanto

buscaremos ao longo do trabalho compreender as tramas discursivas que se erigiram daí

e a que propósitos elas servem.

* * *

Como percebemos as três obras mencionadas e por nós analisadas têm como

panorama de fundo a questão ambiental e social da Amazônia ocidental dos anos 80, e

destacam em primeiro plano a tragédia anunciada do “herói” acreano – Chico Mendes

no final dos anos 80, anos estes que ficaram conhecidos na Amazônia como a década da

destruição, e que terminaria trágica e paradoxalmente com o assassinato do “defensor da

floresta”. Alex Shoumatoff e Márcio Souza escrevem ainda no calor dos

acontecimentos. Zuenir Ventura, que lança seu livro quinze anos depois do julgamento

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dos mandantes do assassinato de Chico, escreve seu livro em momentos distintos: a

primeira parte é escrita logo após o assassinato, a segunda parte, no julgamento e a

última parte é redigida por ele quando os amigos de Chico já tinham chegado ao poder,

portanto quinze anos depois do crime.

Hoje, vinte e um anos depois, a questão ambiental continua na ordem do dia. O

atual governo brasileiro, na constante busca de uma identidade, pautada na

sustentabilidade ambiental, no entanto mostra-se renitente nos discursos e esgotado na

prática. Os acontecimentos do primeiro semestre do ano de 2008, e a repercussão nas

publicações semanais (revistas, jornais), aguçaram as preocupações de governantes e

ambientalistas. As catástrofes ambientais na Ásia, no Brasil, o julgamento e absolvição

do principal suspeito de envolvimento no assassinato da missionária Doroty Stang, o

pedido de demissão de Marina Silva8 do Ministério do Meio Ambiente e, ultimamente,

as notícias da mídia mostrando as facilidades com que estrangeiros compram terras na

Amazônia, uma semana depois da principal revista americana afirmar que a Amazônia

não é brasileira, soam como um aviso trágico e colocam novamente a Amazônia no foco

das atenções.

Esse aspecto conjuntural atual não é discutido nas obras por nós estudadas. Daí

a necessidade de levantar algumas questões que são hoje pauta obrigatória nos debates e

fóruns ambientais que acontecem por todo o Brasil.

As políticas ambientais brasileiras não conseguem controlar o avanço das

derrubadas e queimadas na Amazônia, bem como o negócio ilegal com a madeira (que é

8 Marina Silva e Doroty Stang são dois símbolos da luta pela preservação da Amazônia na atualidade. A primeira demitiu-se (por motivos obscuros) do cargo que ocupava no governo Lula e a segunda foi assassinada covardemente por fazendeiros a exemplo do que ocorrera com Chico Mendes 20 anos atrás.

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um dos mais rentáveis – ocupa a terceira posição em geração de renda). Os últimos

dados do SIVAM (um sistema de dados emitidos via satélite para uma central que

monitora as queimadas na Amazônia) denunciam os estados do Mato Grosso e de

Roraima como os campeões da destruição da floresta amazônica. Em todo o Brasil se

busca uma resposta convincente à pergunta: como conciliar o crescimento do país

preservando o meio ambiente? Como colocar a Amazônia em patamares mínimos de

IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), preservando sua riqueza biológica, mineral

e cultural e principalmente as pessoas que nela habitam? Em 2006 uma TV brasileira

levou ao ar dois romances de expressão amazônica que trouxeram à tona sua história e

seus velhos problemas no século XX. Há mais de 20 anos, Chico Mendes já denunciara

esses problemas em fóruns governamentais e ambientalistas no Brasil e no exterior.

Desde então, num movimento que culminou com a sua morte, a conjuntura ambiental na

Amazônia tem sofrido diversos reveses.

Dentre todos esses acontecimentos que marcaram os últimos tempos, o pedido

de demissão da Ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente foi o mais

sintomático. Um “sinal dos tempos” para os dias em que vivemos. Marina Silva era tida,

tanto no Brasil quanto no exterior, como um porto seguro para a política ambiental

brasileira, com um olhar especialmente voltado sobre a Amazônia e sua diversidade

ambiental e social. Sob forte pressão e exausta da mediação de conflitos variados de

interesses, mesmo sua gestão tendo avançado em pontos cruciais (segundo sua análise)

na questão ambiental, a conjuntura atual nos mostrou forças muito poderosas

constituindo um empecilho para a construção de uma agenda ambiental brasileira

sustentável. A própria Marina nos fala em sua carta de demissão que, hoje, as medidas

adotadas tornam claro e irreversível o caminho de fazer da política socioambiental e da

economia uma única agenda, capaz de posicionar o Brasil de maneira consistente para

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operar as mudanças profundas que, cada vez mais, apontam o desenvolvimento

sustentável como a opção inexorável de todas as nações.

Marina é sonhadora como Chico Mendes e postula que o desenvolvimento

sustentável é o caminho inexorável das nações no século XXI, mesmo que os EUA,

uma das nações mais ricas e de maior consumo do mundo, não tenha assinado o Tratado

de Kioto, que propunha sérias restrições às nações no tocante a questão ambiental como,

por exemplo, o controle da emissão de gases poluentes na atmosfera.

O sonho de Marina coloca-a definitivamente entre os seguidores do líder

seringueiro: uma defensora da sustentabilidade ecológica e econômica. Mas será que

sua postura (mesmo sendo “o futuro”) não soaria como antiga nestes tempos de

sacralização da atividade agropecuária ou naturalmente não estaria a contrariar muitos

outros interesses? Como explicar então sua saída do Ministério do Meio Ambiente? As

notícias relacionadas à Marina e à missionária Doroty (dois ícones da vida social

amazônica da atualidade) ganharam destaque na imprensa brasileira e passaram a

celebrar uma imagem, hoje, muito comum sobre as questões que envolvem o meio

ambiente no Brasil e seus mártires, a exemplo do líder acreano Chico Mendes.

A causa pela qual Chico Mendes perdeu a vida, mesmo nobre, o colocou

irremediavelmente contra forças muito superiores, como nos atestam os textos que serão

analisados e todas as outras formas de discursos, que se construíram ao longo desses

vinte anos após sua morte. Mas, o que o torna singular? Por que e como isso acontece?

Teria sido o contato com pesquisadores oriundos do centro-sul brasileiro o que

possibilitou à sua pessoa a oportunidade que outros companheiros de luta não tiveram?

O site do Comitê Chico Mendes9, nos disponibiliza em todos os depoimentos

9 www.comitechicomendes.com.br

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registrados sobre o herói dos povos da floresta a produção de discursos investindo na

idealização de sua imagem de militante da causa ambiental e o recolocam no pedestal de

um homem universal. Como em toda recriação histórica, fica claro que não importa

mais quem foi de fato Chico Mendes, e as contradições que acompanham o ser humano

ganham, neste caso, um aspecto irrrelevante.

Voltando a discussão inicial em que analisávamos o herói que começa a brotar

da criação discurssiva dos três autores com que trabalharemos, podemos retomar com

Zuenir Ventura (2003, p. 43) no momento em que ele nos mostra seu entendimento face

ao que estava sendo feito do homem Chico:

Antes de Chico Mendes, Plácido de Castro era o maior herói da cidade – e de todo o Estado. Por que Xapuri não se chama Plácido de Castro, eis uma imperdoável injustiça aos dois. O outro herói que está sendo agora construído é Chico Mendes: nas paredes de muitos bares de Xapuri ainda há um cartaz com a imagem de São Sebastião [...] e como legenda, frases de Chico Mendes: ‘Lutarei até as últimas conseqüências para defender a floresta’ e ‘Quero viver para defender a Amazônia’.

Esse aspecto nos diz claramente que o processo de “beatificação” pelo qual passou

Chico Mendes teve amplo apoio da sociedade e estava sendo implementado a todo

vapor por variadas forças e direfenciados canais. A plena consciência da fragilidade de

sua vida o impulsionava cada vez mais em direção a sua cruz. A divulgação das

ameaças às autoridades brasileiras e acreanas, e nos canais de comunicação simpáticos à

causa, soam como um Pai, porque me abandonaste? Mas não fica claro, na visão dos

autores, se ele entendia isso como uma consequência dos interesses confrontados

originados da nova reestruturação econômica pela qual passava o Acre, e muito menos

se sabia que muitos destes conflitos onde ele se tornara o alvo principal seriam o

resultado imediato das lutas sociais travadas por ele. Ele sabia, sim, que não podia mais

recuar pois se achava mesmo sozinho numa espécie de labirinto sinistro e, sem saídas,

declarou que ia à Xapuri ao encontro da morte. Seus inimigos eram muitos e estavam

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cada vez mais próximos e em todo lugar, numa espécie de cerco fatal. Lutavam, ele e

seus companheiros, por uma causa que ia de encontro a interesses poderosos, que

tinham em primeiro plano o modelo capitalista primitivo (garimpo, exploração

madeireira, formação de latifúndios, etc.) que se instaurara na Amazônia após a fase da

borracha. Assim, ele avisa a todas as autoridades brasileiras responsáveis do perigo que

corria (da autoridade policial acreana ao presidente José Sarney). Todos deram o

silêncio como resposta. No dia 5 de dezembro de 1988, uma impressionante e idealista

carta despedida é escrita de próprio punho por ele, Chico Mendes, como nos ressalta

Ventura:

‘Não quero flores no meu enterro, pois sei que irão arrancá-las da floresta. Quero apenas que o meu assassinato sirva para acabar com a impunidade dos jagunços sob a proteção da Polícia Federal do Acre que, de 1975 para cá, já mataram mais de 50 pessoas como eu, líderes seringueiros empenhados em defender a floresta amazônica e fazer dela um exemplo de que é possível progredir sem destruir. Adeus, foi um prazer. Vou para Xapuri ao encontro da morte [...]; não sou fatalista, apenas realista. Já denunciei quem quer me matar e nenhuma providência foi ou será tomada’[...] e não tenho nenhuma dúvida de que os pistoleiros levarão a melhor [...]. ( 2003, p. 68)

Aí como podemos perceber já não é mais um simples homem quem fala. É

uma pessoa que tem a clara consciência de que sua imolação deveria servir para alguma

coisa. Ao sustentar amor à vida, caminhava a passos largos ao encontro de seus

inimigos que lhe tirariam-na, fatalmente.

A jornalista e escritora Mary Nakashima, (2004, p.159) argumenta que,

se não fosse a presença de um ambientalista estrangeiro e uma antropóloga paranaense no meio da floresta amazônica nos anos 80, provavelmente a fama de Chico Mendes não teria ultrapassado os limites do estado do Acre. Ele teria sido, apenas, mais um na lista de trabalhadores rurais mortos naquele ano. Em 1988, Chico Mendes foi o décimo-quinto líder de sindicato rural assassinado. O assassinato de Chico Mendes foi vulgar e previsível, como tinham sido os anteriores. [...] Chico Mendes se colocou na defesa da parte mais fraca, [...] organizou os seringueiros num movimento pacífico, conhecido como empate,

e é isso que o torna singular juntamente com o fato de ele dispor de bons

relacionamentos e ter ligações com os fóruns ambientalistas no Brasil e no exterior.

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Caso contrário, ele teria sido, sem dúvida, mais um na imensa lista de líderes rurais

assassinados na Amazônia naqueles anos que ficaram conhecidos como a década da

destruição. Aqui entra em cena uma outra personagem que nas palavras de Zuenir

Ventura (2003, p. 87), “foi ela quem ajudou a lançar Chico para o mundo e o sustentou

durante muito tempo através de bolsas que conseguia com seu prestígio junto a

entidades internacionais”, a antropóloga Mary Helena Alegretti10.

Quinze anos depois o autor de 1968: o ano que não terminou volta ao palco da

tragédia e deixa claro sua surpresa ao relatar as impressões que o “novo” Acre lhe

causara. Encontra um estado com grandes avanços na parte estrutural e de serviços

públicos. Quem governava o Estado era um dos admiradores de Chico Mendes, o

engenheiro florestal Jorge Viana. Zuenir Ventura ( 2003, p.182) tem a impressão de que

“realmente, muita coisa parecia ter mudado. Até aquela feiúra de Rio Branco [...], já não

era a mesma. A obra símbolo desse novo [grifo nosso] tempo é o Parque da

Maternidade, com seus arcos majestosos lembrando os da Lapa, no Rio de Janeiro, e

seis quilometros de espaços de lazer.”

Com relação aos seringueiros e ribeirinhos, ele destaca as impressões do

jornalista Elson Martins numa viagem de 10 dias ao Juruá: “os seringueiros, os

ribeirinhos estão libertos [...], eles vivem agora em total liberdade, seguros em relação

às suas famílias, não estão mais acossados. Perderam o sobrosso11” (Ventura, 2003,

p.184). Ou seja, a impressão que se tinha era a de que o Acre estava definitivamente

entrando numa nova fase de sua vida institucional, cultural e social, com os poderes do

Estado funcionando, com o cidadão sendo respeitado e a impunidade combatida. 10 Pesquisadora que nos anos de 1980 elaborava sua dissertação de mestrado junto aos seringueiros do Vale do Juruá e acaba conhecendo a história de Chico Mendes em Xapuri, eleborando com sua ajuda o Projeto Seringueiro, entre outras coisas.

11 Palavra do linguajar amazônico que significa “medo”.

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Shoumatoff e Márcio Souza, como sabemos, escreveram há mais de vinte anos e

portanto seus respectivos textos não analisam a realidade acreana atual. Zuenir, por sua

vez, conhece apenas o início do processo de modernização acreano que se confunde

com os reflexos dos “sonhos de Chico” e estão por toda parte compondo “naturalmente”

nosso cenário cultural onde alguns slogans ganham relevância dicursivo-semântico-

simbólica muito superiores como é o caso da expressão desenvolvimento sustentável

[grifo nosso].

José Fernandes do Rego, um estudioso do Acre, defende a tese sobre o neo-

extrativismo (mostrando a princípio que o velho modelo econômico do início do século

XX estava superado), onde sugere romanticamente que o homem da floresta viva de

tudo o que ela possa lhe dar. Mas adverte que é preciso usar com sabedoria e

racionalidade os recursos ambientais para que se possa usá-los sempre. Ventura (2003,

p.190) destaca as suas palavras da seguinte forma onde ele afirma que,

a perspectiva de uso sustentável dos recursos da floresta dá ao Acre uma boa perspectiva de futuro. Grande parte dos colonos e agricultores não exita quando tem a oportunidade de começar com uma experiência, por pequena que seja, com a pecuária. Há uma cultura implantada no subconsciente dos acreanos de que o progresso passa pela pecuária. É preciso portanto desconstruir essa perspectiva cultural. [...] Rego defende a tese do neo-extrativismo [...], centrada em tres pilares: a sociodiversidade, a água e a biodiversidade. Acostumado a viver em harmonia com o meio ambiente, o homem da Amazônia – o seringueiro, o índio o ribeirinho – sabe como presevá-lo.

Mas alguns dados, algumas histórias, vão nos mostrando e nos fazendo perceber

que a distância entre a tese (o discurso) do professor Rêgo e a realidade é abissal. Num

Simpósio organizado pelo Mestrado em Letras/UFAC em 2007, por exemplo, vários

palestrantes, ex-parceiros do próprio Chico Mendes, e que ainda hoje vivem na região

de Xapuri-Brasiléia, destacaram a precária situação em que se encontram os agricultores

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que vivem nas Reservas Extrativistas12 acreanas (local idealizado para ser modelo da

vida na floresta nestes novos tempos de sustentabilidade). Isolados e sem o apoio

devido das políticas públicas voltadas para a produção, não hesitam duas vezes diante

da possibilidade de abrir uma clareira na floresta para a formação de pasto para a

pequena pecuária, pois isso representa a segurança mínima que requerem suas famílias.

Essa prática, é sintoma e reflexo de algo maior que já contagiou todo o estado.

Shoumatoff, Márcio Souza e Zuenir Ventura quando escreveram suas obras

alertavam para as questões das derrubadas das florestas e do meio ambiente. Como se

sentiriam ao revisitar o Acre hoje? Paralelo à resistível modernidade, eles iriam

constatar que, ao longo da Br Ac-40 (Transacreana), as fazendas para a criação de gado

compunham todo o cenário, transformando a paisagem numa espécie de deserto verde

composto de centenas e centenas de pequenas, médias e grandes propriedades (estas

fazendas substituíram milhares de árvores que, derrubadas, viraram cinza ou

apodreceram). Da cidade de Rio Branco até Brasiléia, ao longo da rodovia que ligará o

Acre ao Pacífico, palco dos muitos empates onde atuou Chico Mendes e seus

companheiros, o cenário se repete (cerca, pasto e boi). O mesmo acontece entre Rio

Branco e Cruzeiro do Sul na BR 364, com excessão apenas para as terras indígenas e as

florestas estaduais situadas ao longo da rodovia, como foco isolado de resistência às

derrubadas e queimadas. As grandes fortunas acreanas, não raramente, pertecem a

pecuaristas. O rebanho bovino acreano, proporcionalmente, é um dos maiores do Brasil.

Essa realidade nos leva a uma constatação: o sonho de nosso herói deu lugar a

perspectivas múltiplas onde a sustentabilidade (essa palavra surge após Chico) mais

parece um embróglio discurssivo a servirço dos que quiserem dela fazer uso do que um

12 As RESEX foram idealizadas e criadas legalmente como o lócus privilegiado onde se colocariam em práticas muitos dos conceitos sobre a sustentabilidade. Tornaram-se a razão de viver e morrer de Chico Mendes.

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conceito com alguma consequência e aplicação prática.

O professor Rêgo, ainda citado por Ventura (2003), conclui que Chico Mendes

teve a aguda percepção de que a defesa da floresta

significava a luta pela preservação dos recursos naturais. Para o seringueiro, a floresta além de sua ‘casa’ é de onde ele tira seu sustento. Desse modo, os produtos e serviços florestais – castanha, borracha, madeira, cosméticos, artesanato, frutas tropicais, ecoturismo – podem se tornar negócios voltados para o mercado, paradoxalmente, numa visão absolutamente descontextualizada, se tomarmos como parâmetro os aspectos econômicos que realmente interessam num mundo globalizado. (p.191)

Na sua última viagem ao Acre, em Xapuri, Zuenir Ventura reencontra os

velhos amigos de Chico Mendes. Referindo-se aos últimos 15 anos, Raimundo de

Barros é incisivo: “Mudou tudo. Hoje não somos mais humilhados nem ameaçados,

somos donos de nossa terra.” (2003, p. 195) De fato, as RESEX dão uma garantia aos

ex-seringueiros, de que o pasto não chegará até ali. Mas os problemas existem também

dentro da própria Reserva, como mostramos. Do prefeito de Xapuri ao governador do

estado, e até mesmo ao Presidente da República, todos que estão no poder, e foram

amigos de Chico Mendes, de uma forma ou de outra, perseguem um espólio deixado

por ele. Mas o discurso de que “tudo mudou” dá margem a muitas interpretações.

Prosseguindo seu discurso, Zuenir Ventura em cita um trecho de uma fala do

então governador Jorge Viana onde este enfatiza que “o Acre, que existe por causa e a

partir da floresta, resolveu um dia abandoná-la em troca de uma aventura destrutiva.

Deu no que deu, num fracasso social e econômico.[...] Temos que fazer acontecer uma

economia florestal sustentável, que incorpore a sabedoria dos antigos, [...] associada ao

que a tecnologia e a ciência tem de mais avançado” (2003, p. 222).

Fica claro que o esforço dispensado, pelo então chefe do executivo acreano, faz

parte de uma estratégia de construção de um discurso em defesa do desenvolvimento

sustentável da Amazônia e que, mesmo frente à implementação de algumas políticas

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públicas com o olhar mais sensível à causa ambiental, ele demonstra claramente que os

produtos da floresta precisam reagir, pois estão perdendo o jogo para o desmatamento,

para as queimadas e para o boi, desde Chico Mendes, já que entramos numa dinâmica

da modernidade que nem os seguidores deste poderão negá-la.

2.2 O mito contemporâneo e as categorias do discurso

Os discursos seriam as estruturas mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito de sentido

(Michel Foucault)

As teorias da Análise do Discurso e mais precisamente o pensamento de

Michael Foucault nos fornecem, entre outras coisas, uma ferramenta importante de

análise das obras em discussão. Revisitando este autor, obtemos um instrumental teórico

que nos dá as condições de entender melhor as questões da autoria e de formação e

controle do discurso na sociedade, dois conceitos presentes no nosso objeto de trabalho.

Inicialmente faremos algumas reflexões a partir da obra O que é um autor?13 Onde

Michel Foucault introduz um debate acerca da questão da autoria – um problema crucial

para os tempos modernos, visto que sobre ele “se afirma o princípio ético, talvez o mais

fundamental da escrita contemporânea: que importa quem fala”? (FOUCAULT, 2001

p.1) Através de uma série de conceitos e referências teóricas, questionamentos ao

princípio da autoria, ele busca esclarecer a questão – o que é um autor? – e partindo da

tese de que o autor está apagado expõe as dificuldades do tema. O que é essencial, no

entanto, é reconhecer onde sua função é exercida. A questão do autor, segundo

Foucault, “constitui o momento crucial da individualização na história das ideias, dos

conhecimentos, das literaturas, da história da filosofia e das ciências” (2001, p.4). Um

13 Publicação original: “O que é um autor?”, Bulletin de La Societé Française de Fhilosophie, 63º.

Ano. No. 03, Julho-Setembro de 1969. PS. 73-104.

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exemplo para ilustrar melhor: a obra de Karl Marx deu origem a uma gama

incomensurável de textos/discursos. Althusser ampliou o conceito de ideologia. Este é

reconhecidamente um autor marxista. Ainda assim uma questão se impõe: o que mais

leu Althusser? E o seu contexto social/econômico/histórico? O que leu Marx? Quais

suas influências teóricas? Qual o seu contexto histórico? São questões como essas que

preocupam o autor. E ele se mostra cheio de incertezas “é ao meu primeiro mestre que

procurarei invencivelmente ouvir” (FOUCAULT, 2001, p.3)

Durante muito tempo a humanidade esteve ciente das verdades do Gênesis.

Mas num certo momento da história, a mente do homem consegue superar séculos de

certezas cristalizadas, que satisfaziam aos interesses do catolicismo, e passa ter uma

atitude questionadora e transgressora. Esse processo de esclarecimento começa com a

invenção da ciência e da filosofia na Grécia Antiga, ainda no século IV a.C. Veio a

formação dos grandes impérios e a humanidade passa por um longo período de domínio

absoluto do poder eclesiástico. Mas no início dos tempos modernos, alguns homens

conseguem sair do lugar comum e ver além do seu tempo e transgridem normas e

certezas: Galileu, Giordano Bruno, Copérnico, Newton, e outros pagam com a vida, a

fogueira, a prisão, o silêncio, tal ousadia. Como podiam dizer que a terra não era o

centro do universo? Mas as inquietações estavam lançadas. Não tinha volta. Outros

vieram e questionaram as “velhas” teses e a Igreja teve de se retratar (mesmo que

tempos depois) de todas as abominações que cometera em nome de Deus.

Era preciso fazer essa digressão, para dizer que somente numa sociedade

fechada pode ser possíve1 o princípio criador. Nada vem do nada. Todo discurso é

permeado por múltiplas vozes anteriores e exteriores a si mesmo. Assim sendo, é ponto

pacífico que Foucault foi influenciado por inúmeras vozes de seu tempo, pelas suas

leituras. Ele se refere a “seu mestre” (não é citado) numa clara referência a sua

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passagem pela academia onde a influência de um professor é clara, “afinal, é a ele que

eu havia falado do meu projeto de trabalho” (2001, p.3). O estruturalismo francês lhe

influenciou fortemente, bem como filósofos contemporâneos como Marx, Althusser.

Mas é a Beckett, a quem toma emprestada a formulação “que importa quem fala,

alguém disse que importa quem fala” (2001, p. 1). Numa referência ao parentesco da

escrita com a morte ele se refere à epopéia grega e a narrativa árabe, como objeto de

análise e influência para suas reflexões. Igualmente vai fazendo referência a inúmeros

outros autores, numa espécie de cruzamento de vozes e ressonâncias, citando: Buffon,

Cuvier, Ricardo, Flaubert, Proust, Kafka, Sade, Clement d’Alexandre, Diógenes,

Mallarmé, Aristóteles, Shakespeare, Bacon, Hipócrates, São Jerônimo, Freud, Marx,

Ann Radcliffe, Galileu, Saussure, entre outros. Assim nos fica claro que ele tem

também como referencial o discurso universal ocidental, o romance, a ficção, a ciência,

a filosofia, a linguística, a semiologia, a antropologia, etc. Para elaborar suas reflexões

vai da ciência à política, da filosofia ao romance. Buscando sempre a resposta à

pergunta”: por que esses homens são considerados autores? O que os caracteriza como

tal?”

A crítica, para Foucault, deve avaliar a obra em seu critério interno, em

sua construção, em sua forma intrínseca, no jogo de suas relações internas. Porém,

antes, ele problematiza: o que é uma obra? Há alguma lista daquilo que caracterize uma

obra? Quando um autor, por exemplo, não era autor, o que eram antes seus papéis de

discurso? Mas, supondo que um autor já é conhecido como autor, deve-se considerar

todos os seus escritos como parte de sua obra? Foucault encontra aí um problema

teórico e técnico. "A teoria da obra não existe" (2001, p.7), conclui ele. Claramente, há

um problema daquilo que se pensa acerca de obra, já que, de fato, não existe um estudo

sério e exaustivo daquilo que se pensa sobre obra, porque se encontra um bilhete em

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meio a sermões ou discursos de algum autor; isso não seria considerado obra, mas os

sermões e discursos sim. A noção de obra, então, torna-se muito relativa tanto a quem

escreveu como o conteúdo daquilo que está escrito.

A escrita, segundo Foucault (2001, p. 5), se libertou do tema da expressão: ela se

basta a si mesma. Ela se identifica com o próprio exterior e seus desdobramentos,

conseguindo nesse contexto uma espécie de vida própria sem que haja outro fator a não

ser ela mesma que lhe faça atribuir a seu conteúdo significados, justamente por que esse

conteúdo não possui um liame fixo, mas tem uma abertura que deixa livre o seu jogo de

significações e,

por consequência, não está obrigada à forma da interioridade: ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; e também que essa regularidade da escrita é experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer. (2001, p.05)

A escrita, aqui, tem certo grau de parentesco com a morte, porque, na

antiguidade, a escrita era tida, como por exemplo, no conto das mil e uma noites, para

adiar a morte, já que, enquanto era contado, seu efeito principal era o de cancelar a

morte daquele que a contava até onde o prazo permitia. Pois, agora, há uma espécie de

inversão desse quadro, porque Foucault anuncia um constante desaparecimento do autor

em seu texto, (mesmo que a escrita preserve sua existência ainda que sutilmente) uma

morte metafórica causada pela não-consciência por parte de alguém que retoma esse

texto e lhe dá uma nova leitura, um novo rol de significações.

A escrita bloqueia a certeza da desaparição do autor, sutilmente preservando a

existência dele. Os estudos críticos tradicionais tentam pensar as condições gerais de

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qualquer texto em termos de tempo e espaço em que ele deve atuar, fazendo com que

leve consigo as características do autor. Ora, se a escrita não possuir essa ligação com

esse universo primeiro, ela não está condenada ao esquecimento e à repressão, mas a

noção de escrita está no jogo das representações que formaram certa imagem do autor.

O nome do autor é, também, um nome próprio, mas não é qualquer nome

próprio, porque não é apenas uma indicação de alguém, mas é equivalente a uma

descrição. Como fazemos quando, por exemplo, dizemos que Aristóteles é o autor das

"Analíticas", fundador da Antologia, etc. Mas não é apenas isso: o problema reside na

ligação do nome próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com o

que ele nomeia. Ou seja, o nome do autor está atrelado não propriamente a um

indivíduo real e exterior que proferiu um discurso, mas a certo tipo de discurso com

estatuto específico, isto é, aqueles cujo modo de ser, numa determinada cultura, torna-os

providos de uma atribuição de autoria. O que faz de um indivíduo um autor é o fato de

que, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos textos que lhe

são atribuídos:

Um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso; ele exerce certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros.(...) O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso, (...) uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível (...) mas que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status.(FOUCAULT, 2001:10)

A função autor está exatamente nessa cisão, nessa divisão e distância entre o

autor como escritor real e locutor fictício. Discursos com função autor comportam uma

pluralidade de egos, como ocorre em um livro didático em que a voz que faz o prefácio,

formal, não é a mesma que explica o conteúdo dentro de um livro, de maneira

semicoloquial, e nem a mesma que encerra o discurso avaliando a recepção da obra

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publicada ou a esclarece.

O autor é definido em Foucault (2001) como um certo nível constante de valor,

um certo campo de coerência conceptual ou teórica, como unidade estilística; e pelos

próprios textos que remetem não a um indivíduo singular, mas a uma pluralidade de

egos ou a várias posições-sujeito. Segundo Foucault,

o autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de escrita – todas as diferenças devendo ser reduzidas ao menos pelos princípios da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda o que permite superar as contradições que podem se desencadear numa série de textos: ali deve haver – em um certo nível do seu pensamento ou do seu desejo, de sua consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns nos outros ou se organizando em torno de uma contradição fundamental ou originária. (2001, p. 15)

Retorno a noção em que acontece um retorno ao discurso originário, um

movimento retrógrado que visa justamente ao que Foucault chama de instaurações de

discursividade. Quando se retoma esse discurso há um processo de modificação, mas

não resulta na perda total desse discurso retomado que resulta na "transformação da

própria discursividade". Foucault chama esse processo de exumação, [grifo nosso] uma

modificação histórica desde a própria gênese do discurso.

Os autores das obras pesquisadas são provenientes de realidades sociais bem

diferentes. Alex Shoumatoff é americano e está envolvido com interfaces da causa

ambientalista mundial e relaciona a tragédia acreana com causas mais profundas

relacionadas aos problemas ambientais do Terceiro Mundo e em especial do “subúrbio

brasileiro”. Márcio Souza conhece profundamente a história e as lutas da Amazônia e

tem escritos importantes sobre a região, principalmente no campo ficcional e ensaístico.

Zuenir Ventura, até sua primeira viagem ao Acre, só conhecia a Amazônia por esparsas

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leituras e chega até aqui, pela primeira vez, em 1989 para fazer a cobertura jornalística

do fato.

Os três autores investigam o mesmo fato e o recriam de maneiras estilísticas

próprias e têm como substrato a conjuntura social, cultural e política do Brasil e da

Amazônia, e como foco o movimento social liderado por Chico Mendes no Acre dos

anos 1970 a 1980.

Portanto, algumas indagações acerca dos autores analisados, neste momento

tornam-se cruciais ao nosso trabalho: quais suas influências? Em que condições foi

elaborada a sua pesquisa? A que interesses respondiam? Essas perguntas nos levam a

uma outra reflexão fundamental: quem de fato são os três autores pesquisados neste

trabalho que nas suas respectivas obras, estão a falar sobre Chico Mendes? A busca de

resposta a essas perguntas se dará, neste trabalho, à luz da teoria foucaultiana sobre o

processo da autoria. E se pensarmos com Foucault (2001) quando afirma que a função

autor está exatamente nessa cisão, nessa divisão e distância entre o autor como escritor

real e locutor fictício, essa preocupação ganha um sentido e uma pertinência ainda

maior. Sua tese fundamental é a de que o autor desaparece porque existe um elemento

fundante que reduplica o que um autor original “cria”.

Michel Foucault (1999), em A ordem do discurso, retoma essa análise

redirecionando-a para as questões do discurso e suas implicações com o real. Nesse

trabalho que é inicialmente uma aula inaugural pronunciada em 1970 no Collège de

France, e depois se torna um livro, Foucault inicia dizendo que “gostaria de perceber

que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo.” (1999, p.5)

Isso nos leva a indagar o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e

de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo? Sua tese é

a de que a produção do discurso na sociedade é controlada, organizada, selecionada e

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redistribuída por alguns procedimentos. O primeiro grupo de princípios de controle do

discurso é a Interdição (palavra proibida):

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala [...], formam uma grade complexa que não cessa de se modificar.[...] Em nossos dias as regiões onde a grade é mais cerrada, são as regiões da sexualidade e da política. Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que oatingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, [...] mas o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1999 p.9)

O desejo de ser ouvido, de ter voz, é umas das metas dos indivíduos na

sociedade contemporânea. O poder de falar e ser obedecido se configura como o poder.

Mas como podemos observar a partir da reflexão foucaultiana a própria sociedade

impõe sérias restrições aos que têm o desejo de falar, tornando assim esse ato uma

faculdade para poucos. Isso ganha um peso maior em áreas melindrosas da tessitura

social, como é o caso da sexualidade e da política. As implicações deste último aspecto

com o nosso trabalho ficarão claras à medida que avançarmos, mas, como se vê, já

adiantamos algumas constatações.

As verdades segundo Foucault (1999) são sustentadas por um sistema de

instituições que as impõem e reconduzem; não se exercem sem pressão, nem sem ao

menos uma parte de violência. Autor não é entendido como o indivíduo que escreveu ou

pronunciou o texto, mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e

origem de significações, como foco de sua coerência. O autor é aquele que dá à

inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no

real.

Os sujeitos que pronunciam os discursos são cerceados por regras e nem todos

têm acesso a elas, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas

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exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” (1999, p.37) Para tanto

duas situações são fundamentais: Primeiramente deve-se cumprir um ritual que “define

a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (...). Os comportamentos, as

circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso.” (1999,

p.39) É imprescindível compreender que existem também as sociedades do discurso

cuja função é “conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um

espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas”. (1999, p.39)

Do segundo grupo, de princípios de controle do discurso (procedimentos

internos) o autor destaca dois momentos cruciais: os discursos fundamentais ou

criadores e os discursos que se repetem e comentam. Essa separação, segundo Foucault,

esse deslocamento, “não é estável, nem constante, nem absoluto”, porque “muitos textos

maiores se confundem e desaparecem e, por vezes, comentários vêm tomar o primeiro

lugar. Mas embora seus pontos de aplicação possam mudar, a função permanece; e o

princípio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto o jogo.” (1999, p. 23)

Segundo Foucault, nossa civilização, apesar de venerar o discurso, tem por ele

uma espécie de temor. Todos os sistemas de controles são instituídos de forma a

dominar a proliferação dos discursos e apagar as marcas de sua irrupção nos jogos do

pensamento e da língua, porque

tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso. (...) como se tivessem querido apagar até as marcas de sua irrupção nos jogos do pensamento e da língua. E se quisermos, não digo apagar esse temor, mas analisar o discurso em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é preciso, creio, optar por três decisões às quais nosso pensamento resiste um pouco, hoje em dia, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de evocar: questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante.” (FOUCAULT, 1999, p. 51)

Michel Foucault nos fornece aqui, alguns elementos essenciais para a

compreensão da produção e do lugar do discurso na sociedade. O grande medo que

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existe na sociedade com relação aos discursos não pode ser abolido. No entanto, o

discurso pode ser analisado nas suas articulações e entrelinhas desde que se tenha claro

que a verdade é sempre uma busca inalcançável, um ponto perseguido e os discursos

vão por isso mesmo ganhar um caráter de acontecimento imprimindo uma questionável

soberania à palavra. Neste trabalho percebemos que os autores analisados constroem o

personagem (e os discursos a ele atribuído) de forma cautelosa, falando somente aquilo

que é possível falar, seguindo uma determinada ordem do discurso. Mesmo em alguns

momentos em que as narrativas atingem determinadas fronteiras (Zuenir em um dos

seus capítulos se refere, por exemplo, à bigamia de Chico), manchando de alguma

maneira uma imagem transparente e eticamente correta já construída, rapidamente

nossos autores retomam o equilíbrio discursivo e novamente passam a enaltecer as

qualidades do herói. Qualquer transgressão ao discurso convenientemente esperado e

aceito causaria um desconcertante “mal estar” e certamente não seria tolerado pelos

guardiões bem intencionados de plantão, uma vez que o personagem central

transformou-se numa espécie de ícone para o movimento ecológico mundial, para

governos e ONGs. Portanto, Alex Shoumatoff, Márcio Souza e Zuenir Ventura buscam

sempre uma forma discursiva conciliatória, agregando-se nos três textos elementos

explícitos e implícitos de uma saga recheada de drama, suspense e que culmina com

uma tragédia, sempre em busca de um leitor-modelo escolhido por eles para consumir

sua produção. Sentidos novos são construídos através da bem contextualizada forma

como os fatos são colocados, gerando assim novas possibilidades de significação dentro

deste universo que é a vida na Amazônia conflituosa dos anos de 1980.

O historiador Eric Hobsbawm (1997), em sua obra A Invenção das Tradições,

defende uma tese que nos leva a fazer certas considerações sobre as questões levantadas

pelos autores analisados acerca da realidade acreana dos anos de 1980. Segundo ele,

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muitas das práticas e tradições que nos aparecem hoje como antigas e consolidadas,

foram, na verdade, inventadas. Isso se dá quando um conjunto de práticas de natureza

ritual ou simbólica busca inculcar certos valores e normas de comportamentos através

da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado adequado.

Como veremos as obras analisadas por nós destacam a formação de uma imagem

oriunda do martírio e do holocausto e a partir dela busca-se uma determinada prática,

um determinado modo de agir. O objetivo dessas tradições seria então a invariabilidade

porque

as sociedades que se desenvolveram a partir da revolução industrial foram naturalmente obrigadas a inventar, instituir ou desenvolver novas redes de convenções e rotinas com uma freqüência menor do que antes. Na medida em que essas rotinas funcionam melhor quando transformadas em hábito, em procedimentos automáticos, ou até mesmo em reflexos, elas necessitam ser imutáveis. (...) Em suma inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. (1997:12-13)

Faremos o esboço de um quadro mais à frente onde procuraremos deixar mais

claro o ponto de vista do iminente historiador britânico, tendo como exemplo o Acre

dos dias atuais e a forma como está sendo utilizado o nome e a imagem de Chico

Mendes no processo de invenção do “novo estado”.

Segundo Eric Hobsbawm (1997), desenvolveu-se um conjunto de rituais

bastante eficazes em torno destas ocasiões: pavilhões para os festivais, mastros para as

bandeiras, templos para as oferendas, procissões, toque de sinetas, painéis, salvas de tiro

de canhão, jantares, brindes, discursos. Essas reflexões nos permitem entender melhor o

Acre pós Chico Mendes e as formas discursivas que ajudaram na construção da imagem

deste como herói dos povos da floresta.

Hobsbawm conclui classificando as tradições do tipo inventada em três níveis,

que descrevemos a seguir: as que simbolizam a coesão social; as que legitimam

instituições, status ou relações de autoridade e aquelas cujo principal objetivo é a

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inculcação de idéias, valores e padrões de comportamento. As práticas inventadas

tendem a ser bastantes gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e

obrigações que procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo:

“patriotismo”, “lealdade”, “dever”, “as regras do jogo”, “o espírito escolar” (1997, p.

19).

As práticas culturais que envolvem o herói seringueiro presentes na vida social

do Acre atual parecem possuir um sentido e um fim determinado, como veremos a

seguir. Ao lado dessa realidade espacial, coloca-se uma realidade temporal que, embora

não descrita profundamente pelo autores analisados, pode ser observada através de fatos

como a decadência da cultura da borracha, a implementação da frente agropecuária

pelos ‘paulistas”, o movimento social (o sindicato dos trabalhadores rurais, os empates)

como reação às derrubadas dos seringais. Esses efeitos espaço-temporais da realidade

fazem parte do recorte de mundo que nossos autores criam, e estão imbricados com seu

imaginário, que trafega entre os personagens ficcionais ou não, de acordo com o estilo

de cada um.

2.3 O mito como falência na sociedade contemporânea

Mircea Eliade (1991), no livro Mito e realidade, nos oferece uma elaborada

reflexão sobre a estrutura, camuflagem, grandeza e decadência dos mitos. De início ele

nos alerta para o propósito de sua pesquisa que “terá por objeto, em primeiro lugar, as

sociedades onde o mito é – ou foi, até recentemente – “vivo” no sentido de que fornece

os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à

existência.” (1991, p.8) O personagem Chico Mendes é nas três obras, em muitos

aspectos, descrito pelos autores de forma idealizada, sendo supervalorizado em seus

paradigmas e ideal, destacado como exemplo de doação para as causas urgentes da

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Amazônia e para a vida em sociedade, mesmo que muitos destes modelos, por meio de

artifícios diversos, beirem a invenção, como também já nos alertava Hobsbawm.

Compreender os mitos, insiste Eliade (1991), equivale a reconhecê-los como fenômenos

humanos, fenômenos de cultura, criação de espírito – e não como irrupção patológica de

instintos, bestialidade ou infantilidade.

Neste sentido a recriação mitificada do personagem Chico Mendes nas obras em

discussão cumpre um papel fundamental que é o de apaziguamento social, o de

aproximar ao máximo o herói mitologizado e seus ideais, do homem na vida em

sociedade e nas lutas que dela advém. Funciona como um parâmetro, tão comum e

necessário nestes tempos pós-modernos de intensa ebulição, onde tudo o que é sólido

facilmente se torna líquido. Segundo Marshall Berman “as pessoas que se encontram

em meio a esse turbilhão estão aptas a sentirem-se como as primeiras, e talvez as

últimas, a passar por isso; tal sentimento engendrou inúmeros mitos nostálgicos de um

pré-moderno Paraíso Perdido” (2007, p.24). Segundo sua análise, o homem pós-

moderno vive numa atmosfera onde se fazem necessários os heróis e os mitos, que

funcionam amenizando o alto grau de frustração que a sociedade capitalista nos impõe

diariamente, uma vez que

o turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas (...), a industrialização da produção que (...) cria novos ambientes humanos e destrói os antigos; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; sistemas de comunicação de massa que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; estados nacionais cada vez mais poderosos que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações (...), dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. (BERMAN, 2007, p.25)

Imerso neste turbilhão que é a vida pós-moderna, o homem está pronto a

consumir novidades, [grifo nosso], pois suas necessidades e os seus desejos são

instigados constantemente pela mídia e pelo mercado consumidor numa espécie de

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frenesi. Assim esse homem está predisposto a consumir tais recriações, tais construções

mitológicas, que são fenômenos humanos e culturais e que surgem na sociedade com

certa naturalidade. Por fim Eliade ressalta que “o mito, portanto, é um ingrediente vital

da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade

viva, à qual se recorre incessantemente” (1991, p.23).

Eliade faz, assim, uma justificação do mito e o coloca, assumindo todo o risco

que daí advém, como um ingrediente vital para os dias de hoje. Como vemos, é assim

mesmo que funcionam as engrenagens da vida social, porém certas ressalvas sempre são

possíveis de serem feitas e o nosso trabalho busca essa meta.

Roland Barthes (1993) no livro Mitologias nos oferece a ferramenta teórica

fundamental para a compreensão e delimitação final do nosso referencial teórico com o

nosso objeto de trabalho. Barthes nos convida a uma análise mais isenta e

desapaixonada do fenômeno mitológico contemporâneo e afirma que o mito é como um

discurso meticulosamente ensaiado, um sistema de comunicação, uma mensagem, e

sustenta ainda que

é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. [...] O mito é uma fala escolhida pela história [...] A fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias-primas do mito quer sejam representativas quer gráficas, pressupõem uma consciência significante. (1993, p.131).

Barthes nos alerta inicialmente para as funções da história e suas implicações

com a fala mítica. Para ele o mito é um discurso escolhido pela história. Isso nos leva a

uma reflexão mais profunda acerca da realidade do Acre contemporâneo e as tramas

discursivas de criação do mito. Essa realidade que está retratada nas obras pesquisadas

nos oferece a imagem do herói, divulgada e cristalizada nos discursos, práticas culturais

e monumentos que estão a compor o novo cenário da sociedade acreana. Um discurso

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escolhido por determinados atores da vida social (jornalistas, pesquisadores, escritores,

ambientalistas e governantes) com fins e propósitos claros e que visa atender a um

público relativamente “bom” e simpatizante dessas informações.

Ao associar o mito a uma fala escolhida pela história, Barthes prossegue: “esta

fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral; pode ser formada por escritas ou por

representações: o discurso escrito, a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os

espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica”. (1993, p.132)

Mais à frente destacaremos uma série de artifícios culturais do Acre moderno, nos quais

podemos encontrar ora explícita, ora veladamente, a fala mítica. Esses artifícios estão

assim a conduzir uma imagem que foi produzida e não tem mais como recuar. Noutra

passagem ele se torna ainda mais esclarecedor: “a fala mítica é formada por uma

matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: todas as matérias

primas do mito quer sejam representativas, quer gráficas, pressupõem uma consciência

significante”. (p.132) Percebemos que nossos autores buscam sempre uma comunicação

esperada, apropriada, que não fuja ao encontro de determinadas expectativas. Segundo

Barthes, “o mito possui um caráter imperativo, interpelatório: tendo surgido de um

conceito histórico (...), é a mim que se dirige: está voltado para mim, impõe-me a sua

força intencional; obriga-me a acolher a sua ambiguidade expansiva”. (p.145)

Finalmente Barthes ressalta que

o que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, (...) o mundo penetra na linguagem como uma reação dialética de atividades, de atos humanos: sai do mito como um quadro harmonioso de essências. (...) A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere, uma evaporação.(...) O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, (...) abole as complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, (...) organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, mundo plano que se ostenta em sua evidência. (1993, p.163)

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O mito torna o homem um ser leve sem o peso das contradições que lhes são

inerentes. O que nos afirma Barthes, podemos facilmente perceber nas inúmeras

passagens das obras em análise, onde o homem é realçado apenas nos seus aspectos

enaltecedores: o seringueiro que vai aos Estados Unidos falar aos poderosos, o homem

abnegado que vivia franciscanamente com a família, mas que lutava por causas que

dizem respeito a toda humanidade, o organizador dos empates, o pacifista, o idealista.

O referencial teórico por nós utilizado nos remete a um certo ponto de vista e a

uma certa compreensão da invenção discursiva do mito, o que, inevitavelmente, nos

leva a antecipar já a algumas conclusões.

Podemos perceber que não foram poupados esforços por parte dos três autores

analisados para a vinculação e divulgação do nome de Chico Mendes a uma imagem de

mártir imolado pela mão armada do latifúndio, imagem esta que, na sociedade, está

sendo “utilizada” de alguma forma por determinados grupos sociais, ora para a

afirmação das causas da Amazônia (que continuam urgentes), ora para afirmação de

estratégias de dominação social pela memória no sentido em que nos alertou o

historiador Le Goff utilizado por nós na introdução deste trabalho. Nossos autores não

tiveram tempo de analisar alguns aspectos interessantes que compunham o cenário de

atuação e (ainda) de construção do herói Chico Mendes hoje no Acre. Esses aspectos

ressaltaremos a seguir.

Em 1990, ainda sob os escombros da terrível perda a agremiação partidária na

qual militava Chico Mendes, o Partido dos Trabalhadores, se articula em todo o estado e

lança candidato próprio ao governo do estado. Mesmo com um momento propício

nunca antes visto na nossa história (o clamor por justiça, o sentimento de fracasso e

impotência, o olhar assustado e desdenhoso do Brasil sobre o Acre) o fracasso nas urnas

foi inevitável. Mas o discurso da modernização havia ganhado alguns corações e uma

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nova postura política ficou marcada para a sociedade, o que foi suficiente para a vitória

nas eleições municipais seguintes. O Partido dos Trabalhadores (PT), que havia sido

fundado no Acre por Chico Mendes, lança candidato próprio à prefeitura da capital e sai

vitorioso do pleito de 1992. Ali estava se iniciando uma outra saga, que também

analisaremos ao final deste trabalho. É sempre bom lembrar que, há não muito tempo

atrás, o próprio Chico Mendes, o nome de maior expressão da esquerda no Acre,

obtivera uma inexpressiva votação numa disputa eleitoral. Agora seus companheiros

conquistavam nas urnas o direito de governar a capital do seu estado. Mas, como

sabemos, isso era só o começo.

O que permitira tamanha mudança de atitude de um povo conservador

acostumado ao clientelismo e fisiologismo político? Como se transformam sub-

repticiamente em eleitores avançados da esquerda?

O que sabemos é que, a partir daí, qualquer estratégia de defesa discursiva da

Amazônia, das florestas e de seus habitantes, dos rios, da fauna e da flora, das reservas

extrativistas e das comunidades indígenas estão necessariamente vinculadas à imagem

de Chico Mendes. O estado do Acre passa a ter a enorme responsabilidade de provar

para o Brasil e o mundo que é capaz de cuidar e defender sua maior riqueza, a floresta,

que é uma parte fundamental da Amazônia. Embora a realidade de consolidação da

pecuária como a nova atividade econômica do presente e do futuro fosse incontestável,

o discurso da sustentabilidade se afirma como imperativo e como a novidade dos

tempos atuais. O homem que fora imolado pelos poderes do latifúndio se tornava então

o novo mártir de libertação da espoliação causada pela frente agropecuária que se

implantara no Acre e em toda Amazônia.

Em Xapuri, cidade de Chico Mendes, logo após seu assassinato, criou-se o

“Comitê Chico Mendes”. Uma entidade não governamental que cuida da divulgação de

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sua memória e dos seus ideais; em Rio Branco, atualmente festeja-se a “Semana Chico

Mendes”, supostamente, como forma de afirmar seus paradigmas à sociedade; como

ponto de acesso e de saída da cidade de Rio Branco para o estado vizinho de Rondônia,

temos a “Via Chico Mendes”, a primeira grande obra de impacto na cidade de Rio

Branco destes novos tempos; recentemente foi construída uma outra via de acesso à

cidade, numa ligação direta do aeroporto de Rio Branco ao segundo distrito, a

ecologicamente correta “Via Verde”; no Natal temos a “Corrida Pedestre Chico

Mendes”; como área de lazer composta de mini-zoológico e trilhas florestais para

caminhadas temos o “Parque Chico Mendes”. A biblioteca da floresta Marina Silva em

seu andar térreo exibe painéis (banners) sobre os recém descobertos índios não

contactados no Acre, fronteira com o Peru, preparando o espírito do visitante, logo na

entrada. No segundo piso tem vasto material memorialístico sobre a saga do herói dos

povos da floresta. Para o descontraído visitante perceber melhor uma atmosfera onde se

busca de forma marcante a manutenção de uma memória viva, temos no acesso do

primeiro ao segundo piso uma escada transformada numa espécie de varadouro

psicodélico, para fazer com que se viva e se recorde as passadas de Chico Mendes

[grifo nosso], nas trilhas sinuosas das florestas e dos seringais acreanos. A biblioteca

Marina Silva torna-se assim um templo da celebração do espírito de resgate da memória

do herói mitificado. Construída sob os traços de uma imponente arquitetura e às

margens de outro espaço marcante do novo Acre – o Canal da Maternidade – possui

também um razoável acervo. Em nível nacional, temos anualmente as atividades

relacionadas ao “Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente”, organizado pelo Ministério

do Meio Ambiente e o “Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e do

Serviço Florestal Brasileiro”, um órgão federal vinculado ao Ministério do Meio

Ambiente que tem a missão de cuidar da implementação de políticas públicas federais

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para a área ambiental no Brasil. No ano em que se rememoraram os vinte anos de sua

morte, (2008) o Comitê Chico Mendes preparou uma série de atividades em memória de

Chico Mendes. A Assembléia Legislativa do Acre ciceroneou uma Seção Plenária do

Senado Federal em homenagem à memória de Chico e agora lança o livro Tudo isso que

Chico foi: lembrança e presença de Chico Mendes na Assembléia Legislativa do Estado

do Acre14, como compilação dessa seção. Por fim, no plano internacional está nas

livrarias o livro de Joy A. Palmer 50 Grandes Ambientalistas: de Buda a Chico Mendes,

livro que faz um perfil de 50 personalidades que marcaram o mundo ambientalista.

Cientistas como Bacon, filósofos como Rousseau, clássicos como Aristóteles e Virgílio,

contemporâneos como Vandana Shiva e Brundtland, históricos como Muir e Carson,

imbatíveis como Darwin e Lovelock, estão ao lado do nosso seringueiro Chico. Será

que ele poderia imaginar que um dia assumiria tamanha importância? O perfil de cada

personalidade escolhida é analisado do ponto de vista da história pessoal e da

contribuição que deu para ideias que foram mudando o mundo, desde a antiguidade até

hoje.

Esse painel que acabamos de traçar não para de crescer. A toda hora surge uma

novidade enaltecendo a memória e nome de Chico Mendes. Isso tudo nos comprova que

há toda uma orquestração que explicita a necessidade de cristalização de uma imagem

na sociedade, de um nome, de uma idéia e até mesmo uma ideologia, ou seja, nas

palavras de Foucault, de uma vontade de verdade.

Ao nos depararmos com o nome de Chico Mendes, em muitos dos nossos

lugares públicos, monumentais, topográficos, simbólicos e culturais observamos que

isso cumpre uma dupla função. De um lado, reaviva seus valores e ideais na memória

14 Tudo isso que Chico foi: lembrança e presença de Chico Mendes na Assembléia Legislativa do Estado do Acre. Org. Edvaldo Magalhães. Acre: Bagaço, 2009. 125p.

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coletiva (a defesa do meio ambiente, a luta para salvar a Amazônia, a luta pelos direitos

dos povos da floresta), mas, por outro, é evidente a intenção do pedido de abrigo de

alguns setores da sociedade sob seu “espólio” inventado ou não, e atrás de seu nome,

hoje mitologizado num sentido nunca antes imaginado na história do nosso estado.

Concomitantemente a tudo isso, outro evento cultural chama a nossa atenção por

se situar na contramão das causas pelas quais lutavam o homem, agora transformado em

mito Chico Mendes. A Expoacre15, foi transformada, a nosso ver, numa super

celebração ao espírito empreendedor do pecuarista acreano, a exemplo do que ocorre no

estado vizinho de Rondônia e em muitas cidades cidades do centro-sul do Brasil.

Durante o festivo evento, as atenções são voltadas para o agronegócio, acontecendo ali

de tudo um pouco: exposição de gado, rodeios, vaquejadas, intenso comércio e shows

com artistas da mídia. A celebrada e esperada cavalgada faz a abertura da festividade.

O traje a rigor é composto de mocinhas com camisas quadriculadas e jeans colado e

bota de cano longo; os rapazes com chapéus de abas e cintos de grandes fivelas

banhados a bijouteria brilhante, ajudam a compor as peças de “um jogo” que se

desenrola num cenário cômico e pragmático que de um modo geral (para o espanto de

alguns e deleite de muitos) não deixa dúvidas do principal caminho econômico

escolhido pelo Acre destes novos tempos: a pecuária. Mas o evento de 2008 apresentou

uma novidade: um grande estande que chamava a atenção pelo letreito exposto em sua

entrada principal – produtos derivados de práticas agroextrativistas sustentáveis

[grifo nosso] – num esforço de chamar a atenção dos milhares de visitantes, potenciais

consumidores, para as questões da sustentabilidade e do respeito ao meio ambiente.

15 Atividade agro-comercial e cultural que acontece anualmente em Rio Branco, patrocinada pelo agro-comércio e pelo governo, atraindo gente de toda a região.

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Realmente tudo o que ali estava exposto naquele exótico estande destoava do restante

da feira.

Essa inquietante agitação cultural em torno do nome de Chico Mendes, já

afirmamos, o transforma paulatinamente em um herói. Como percebemos isso se dá por

meio de uma “onda” de discursos e práticas que estão a celebrar uma imagem que se

volta para a conciliação de determinados interesses da sociedade e também para a

edificação do mito. Em vida ele foi sem dúvida um pólo aglutinador que captou para si

a tensão e a energia sociais oriundas das causas em que acreditava e militava, chamando

a atenção do mundo industrializado para o problema ambiental, falando e atuando

socialmente a partir do coração da Amazônia. Um líder, mas com todas as

características de um homem comum, como o eram todos os seus companheiros de

madrugadas e varadouros16 quando da pacífica luta dos empates. Hoje, a imagem que

foi construída junto à sociedade a seu respeito é a de mito que se bifurca em dois

mundos discursivos bem distintos diante de si: de um lado temos o discurso dos que

relacionam sua imagem à bandeira da igualdade, da justiça e da terra preservada e

dividida (que ele defendia em um plano ideológico e histórico), e do outro, o discurso

que se abriga sob suas “asas”, sob sua imagem de mártir imolado e covardemente

assassinado por defender a Amazônia. Morre o homem, mas fica o mito reinventado

numa série de falas, práticas, lugares e monumentos. O mito vem ocupar um lugar que a

princípio ficaria vazio com a retirada brusca de cena do homem que se tornaria um

modelo, uma personalidade depreendida e idealista, heroica e paradigmática, que lutava

por um ideal supremo – a defesa da maior floresta tropical do mundo, que desde o

século XVII coloca o Brasil no epicentro de uma histórica cobiça internacional, como

16 Caminhos sinuosos e lamacentos no meio da floresta, percorridos pelos seringueiros, homens da floresta e ribeirinhos, normalmente construídos para encurtar a viagem entre dois lugares.

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nos afirma o estudioso da Amazônia, Artur César Ferreira dos Reis (1972).17. O mundo

científico e industrial tinha e tem a exata dimensão da importância de se preservar a

Amazônia. Chico Mendes era um caboclo autêntico que incorporou todas as facetas e

consequências desse desafio que é a luta pela defesa dos interesses do homem da

floresta e da própria floresta.

Mas concomitante a invenção do mito (que, por si só, ocupa um espaço sim, mas

não resolve a problemática social da Amazônia), está a clamar uma realidade dinâmica e

voraz. Já afirmamos isso anteriormente. Como ilustração do que afirmamos relataremos

a seguir as ideias de duas estudiosas da Amazônia (Berta Becker e Mary Alegretti18)

sobre os desafios da região na atualidade.

A pesquisadora brasileira Berta Becker (2009), em recente entrevista a revista

National Geographic, diz que já está defendendo de muito tempo em suas pesquisas

idéias novas sobre a problemática amazônica. Se o legado da luta de Chico Mendes foi a

criação das reservas extrativistas, estamos hoje a nos perguntar qual o futuro delas.

Como vimos anteriormente, em muitas situações, as florestas das reservas estão dando

lugar ao pasto para a pequena pecuária, num claro desvio de foco, mas também como

consequência de uma situação em que não restam outras saídas. Sendo a Amazônia uma

região sofisticada (frágil) no tocante à sua biodiversidade e seus ecossistemas, não é

mais possível que nós continuemos vendo-a como nossos antepassados a viam: um

imenso empório de matérias primas a ser explorado e saqueado. Que as hidrelétricas

17 Neste estudo clássico sobre os problemas amazônicos ele nos alerta para o fato de que, “gigantesca, a bacia amazônica é constituída, além do rio-eixo, que lhe dá nome, por mais dezoito rios volumosos, afluentes e centenas de outros cursos menores. (...) Quanto à floresta (...) constitui a maior extensão continuada de toda a Terra, (...) que na riqueza de sua variedade, e na pobreza de sua homogeneidade, é, apesar disso, a fonte de vida da região” (1982: 15-16)

18 Antropóloga e fundadora do Instituto de Estudos da Amazônia, que foi idealizadora do Projeto Seringueiro juntamente com Chico Mendes nos anos de 1980.

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continuem sendo implementadas, pois a água é a maior riqueza amazônica, mas sem

repetir os impactos ambientais das experiências anteriores. As unidades de conservação

devem ter um manejo adequado para que se possa a partir disso criar cadeias produtivas

de cosméticos e fármacos que gerem emprego e renda para a população local.

Segundo Berta Becker (2009), o potencial amazônico, historicamente, tem sido

usado para fortalecer a economia de outras regiões e de outros países, nada ficando para

as populações locais. Um modelo adotado no século XIX que ainda insiste em ser

implementado por setores produtivos radicados na Amazônia, onde vinte milhões de

pessoas vivem e quase nada usufruem deste potencial, continuando na miséria e se

alimentando da caça e da pesca e praticando a secular agricultura de subsistência. Mas o

mundo está mudando para “formas mais flexíveis e eficientes de exploração dos

recursos naturais onde deve primar o não desperdício, o desenvolvimento sendo pautado

pelos princípios da ciência e da tecnologia, sem destruição e com distribuição equitativa

da riqueza gerada no próprio local” (2009, p.24). Na visão da pesquisadora Amazônia

historicamente ficou à margem, na fronteira, em relação ao restante do Brasil. Se a

biodiversidade, a madeira e a pesca são as maiores riquezas da Amazônia, a esses

produtos devem ser agregados valor numa cadeia produtiva organizada, em substituição

às iniciativas embrionárias e dispersas. Os produtos da floresta devem ser explorados

sim, mas a riqueza por eles gerada deve fortalecer as cidades da Amazônia porque, “lá é

que se encontram serviços, indústria e comércio. O município tem de ser o nó da cadeia

produtiva em que os produtos da floresta são processados e comercializados. (2009, p.

24).

Ela ainda defende que pode ser fomentada nas cidades da Amazônia uma série

de “serviços que atendam às necessidades básicas de educação, saúde e produção, bem

como serviços avançados especializados, de alto valor agregado – jurídico, gestão,

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produção de conhecimento, contabilidade, marketing” (2009, p.25). As cidades

amazônicas devem se tornar verdadeiros celeiros de conhecimento científico sobre as

questões ambientais. Há de se destacar, neste aspecto, em particular a boa intenção e as

práticas tomadas de decisões da Universidade Federal do Acre ao criar no vale do Juruá

a UFAC-FLORESTA19. A visão de Berta Becker em certos aspectos se junta aos

esforços desprendidos no Acre ultimamente, mas como estamos a constatar, ainda, nos

encontramos longe de atingir um patamar que possa se considerar sustentável diante dos

problemas que se descortinam pela Amazônia adentro.

Mary Alegretti, em pronunciamento por ocasião da realização, no dia 5 de

dezembro de 2008, de uma Sessão Solene do Senado Federal, em Rio Branco, no

Plenário da Assembléia Legislativa20 (que marca a passagem dos 20 anos da morte de

Chico Mendes), destaca a importância e os problemas do legado deixado por ele e se

afasta da perspectiva de enaltecimento do mito.

Ela nos chama a atenção inicialmente com a pergunta que até hoje muita gente

ainda faz: “Mas quem foi de fato Chico Mendes?” “Qual o seu legado?” Como

estudiosa dos problemas da Amazônia ela nos consegue passar uma visão menos

apaixonada e mais preocupada com as questões sobre o futuro tanto da região quanto do

homem amazônico. A essas perguntas iniciais, Alegretti responde com outras perguntas

que para ela são mais importantes: “como foi que um grupo de trabalhadores pobres,

marginalizados, sem poder econômico nenhum, poder político nenhum, conseguiu

enfrentar um conflito social que era o conflito pelo direito de posse e criar uma solução

19 Encravado no meio da floresta amazônica, na cidade de Cruzeiro do Sul – AC, este campus implementa cursos voltados para a questão ambiental e social (Biologia, Engenharia Florestal, Agronomia, Letras, Pedagogia, Jornalismo, Enfermagem) num claro sinal que, de alguma forma já entendeu a urgência do novos tempos amazônicos.

20 Essa sessão está registrada no livro Tudo isso que Chico foi – lembrança e presença de Chico Mendes na Assembléia Legislativa do Acre. Org. Edvaldo Magalhães. Acre: Bagaço, 2009. 125p.

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não só para a Amazônia, mas para o Brasil?” (2009, p.75) Ela analisa esse problema

colocando toda a responsabilidade para Chico Mendes, que teve a capacidade de

transformar a falta de poder econômico e político em poder simbólico da luta pela

floresta, essa mistura entre a defesa das pessoas e a defesa da floresta. A tradução de

uma floresta com gente. De início era patente a injustiça, a exploração, que evolui para

o conceito de reservas extrativistas, fase dos conflitos, de violências e assassinatos que

finalmente evolui para uma etapa de construção.

Alegretti destaca a palavra de ordem dos seringueiros: “não queremos sair,

queremos ficar, não queremos dividir a floresta, queremos um território” (2009, p.77).

A força dessa idéia vem do fato de que, na verdade, a reserva extrativista é um seringal

sem patrão. Nela os seringueiros ficaram e os seringalistas é que tiveram que sair. Foi

uma inversão da tradição.

“Há um projeto de modernidade na floresta” afirma ela. Já no Encontro Nacional

dos Seringueiros em 1985 está documentado: “queremos ciência, tecnologia, escola,

infraestrutura e saneamento” (2009, p.78). Mas 20 após a morte de Chico não existe na

Amazônia avanços claros e firmes neste rumo. Talvez ainda precisemos de outro quarto

de século, quem sabe. Na opinião dela este desequilíbrio entre as conquistas legais e os

desafios, o imperativo de vencê-los, faz-nos pensar neste balanço dos 20 anos da morte

de Chico Mendes. E conclui afirmando a necessidade das atuais lideranças em

revitalizar tais ideias com a cara dos herdeiros desse legado.

3.CHICO MENDES LABIRÍNTICO: O HOMEM E O PERSONAGEM

3.1 Alex Shoumatoff: o autor invisível

“De Xapuri, chora o mundo inteiro”

(Tião Natureza)

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“Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes,

ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível”

(Michel Foucault)

Alex Shoumatoff (1989), que escreve sua obra no calor dos acontecimentos,

logo após o assassinato do líder seringueiro, faz acompanhar de O Mundo em chamas

um subtítulo não menos marcante e que nos chama a atenção pela sua força semântica:

A devastação da Amazônia e a tragédia de Chico Mendes, convidando-nos a entender

(como ele o faz de certa maneira) a problemática acreana nos seus variados matizes,

porque, como sabemos, esta faz parte de um mosaico maior21 de ameaça ao ecossistema

da Amazônia. Na contracapa de seu livro a Publishers Weekly nos alerta para o fato de

que o livro de Shoumatoff apresenta um equilibrado relato das condições do interior do

Brasil, do crime em si e de suas consequências, dando a entender que o caso é uma

amostra do que se passa no “subúrbio” brasileiro. Seu livro está dividido em três

grandes capítulos. No primeiro capítulo, ele faz uma longa narrativa com entrevistas e

um mergulho nas formas de vida do povo acriano. Revisita o Ciclo da Borracha e todo o

drama da retirança dos nordestinos (principalmente cearenses) para os seringais da

Amazônia em fins do século XIX. Retoma a infância de Chico e mostra como se deu o

seu amadurecimento como líder e sindicalista e usa um termo novo: ecologia, chamando

a nossa atenção para a singularidade do movimento social liderado por Chico Mendes,

segundo ele, um movimento em defesa da Amazônia. Alex Shoumatoff coloca em

debate a questão do enfrentamento com os seringalistas, o conflito de interesses e os

detalhes da tragédia anunciada: o assassinato de Chico dentro de sua própria casa pelo

21 A Amazônia na sua dimensão territorial gigantesca é uma região de difícil acesso e por isso de difícil controle por parte do poder público, com centenas de nações indígenas e áreas de preservação e uma riqueza vegetal e mineral ainda desconhecida pela ciência e que atrai pessoas interessadas na exploração de seu potencial, gerando conflitos e ilegalidades.

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braço armado do crime que representava os interesses dos devastadores da floresta

amazônica na região.

A segunda parte do livro trata da outra morte de Chico Mendes. Aqui suas

preocupações se voltam para a causa ambiental mundial e suas implicações com a

Amazônia: o terrível verão de 1988, que invade os EUA com uma onda sufocante de

calor e incêndios. Os cientistas passam a falar com mais propriedade do efeito estufa. O

interesse crescente pela Amazônia brasileira fica claro quando discutimos o papel que

ela pode desempenhar no equilíbrio ecológico mundial. Não havia mais tempo a perder.

Os olhares se voltam, então, para a grande planície. O caso da colonização de

Rondônia22 é citado como o exemplo que não deve ser seguido por nenhum país que se

queira responsável ambientalmente. Num único dia, o satélite mostrou mais de sete mil

incêndios em toda a bacia amazônica.

Finalmente, Alex Shoumatoff volta sua atenção para todo o Acre. Vai à região

do Juruá (lá tinha sido criada a Resex do Juruá) e entrevista o “Chico Mendes” de lá, o

sertanista Macedo23, empresários, comunidades indígenas e madeireiros. Com isso,

esboça um painel que procura dar conta de um momento específico, das causas e efeitos

que levaram a todo um estado de coisas, ou seja, a uma situação muito específica em

que se encontrava envolvido o Acre naquele momento.

22 O estado de Rondônia, o primeiro a ser interligado com o Centro-oeste brasileiro por uma rodovia, teve na década de 1970 suas florestas praticamente dizimadas, com a chegada dos agropecuaristas do centro-sul. O exemplo de Rondônia é emblemático (e trágico) e o movimento social no Acre destes anos luta para que o mesmo não se repita aqui. Em Makaloba, E. Martins ressalta que “as plantas ao longo da estrada, num raio de 200 metros (...) vão morrendo, porque certamente lhes falta a respiração. A camada de pó é total e tudo adquire uma cor enlameada. Os 700 mil habitantes de Rondônia vivem agora a expectativa do asfalto prometido pelo Banco Mundial”. (1983:19)

23 Shoumatoff exagera quando compara o sertanista Macedo a Chico Mendes. Aquele, mesmo tendo adquirido alguma expressão social nos anos de 1980 na região do Juruá, não conseguiu levar adiante a causa e caiu no anonimato.

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Na passagem que transcreverei a seguir, Shoumatoff, logo no início do seu

relato, nos permite entrar em contato com um universo desafiador. Este universo só nos

é possível pelo domínio irônico que o narrador nos propõe, quase como se quisesse nos

entregar uma história pronta e acabada onde os heróis e os bandidos já estivessem

plenamente delimitados nos seus campos de atuação. Nesse ambiente de forças

contrárias, Chico Mendes deverá surgir como o personagem capaz de reunir em síntese

as virtudes da floresta indefesa:

Havia algo sobre a imagem desse homem gentil e heroico, assassinado a sangue frio porque queria salvar a floresta, que era particularmente entristecedor e ultrajante. Além do mais, não se tratava de qualquer floresta. Era a floresta amazônica, a mais extensa, com a maior diversidade biológica e a mais misteriosa zona selvagem da terra; um local com uma mística especial para os que nunca estiveram lá; a fonte, a mãe de todos nós, o mais sagrado santuário animal do planeta. E esse santuário fora violado; o homem que o guardava fora cinicamente assassinado. O assassinato de Chico Mendes era muito mais do que um crime comum. Era como se um sumo sacerdote fosse abatido. Era como um assassinato numa catedral. Era também... um grande filme. (1990, p.18)

Shoumatoff não difere muito de tantos outros tantos viajantes que escreveram

antes dele sobre a Amazônia sob um olhar de espanto diante do inusitado e do horror. É

a velha visão da busca do paraíso que aqui mais uma vez se sobressai. Só que se

atentarmos para esse discurso inicial, poderemos notar um domínio estratégico sobre o

fato a ser encarado. Nesse sentido, o personagem principal não é Chico Mendes, e sim a

floresta. O homem “gentil e heroico” é-nos apresentado como um elemento estranho,

pois a floresta continua a predominar no seu glamour: “a mais extensa, com maior

diversidade biológica e a mais misteriosa”. Todos os epítetos reforçam uma mistificação

que não foge ao controle do narrador, ele sabe muito bem aonde quer chegar. O

“santuário violado” é o arremate que introduz Chico Mendes definitivamente no

contexto e assumirá inicialmente como o possível herói a ser constituído pelas forças e

interesses em colisão. O “sumo sacerdote” é o elemento que sacraliza a posição

privilegiada do narrador, mas permite, sobretudo, a enunciação do que se pretende

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relatar. A possibilidade do “grande filme” surge da hesitação das próprias reticências,

mas fecha o parágrafo preparando o leitor para uma grande aventura. Aqui está a base

para o que virá depois: a criação poderosa do duplo mito. A floresta mistificada

dependerá de um outro mito para a sua ideia de sobrevivência. O paraíso sempre esteve

perdido, mas poderá ser resgatado sob o beneplácito de uma era inaugurada pelo olhar

trágico que se enuncia. E para que tudo não seja definitivamente posto à ruína, um

homem (juntamente com outros homens, mulheres e crianças da floresta) lutará

heroicamente contra o poder dos novos donos da terra. Shoumatoff nesse parágrafo nos

entrega claramente os pontos que serão explorados ao longo de seu grande ensaio, entre

eles o papel que caberá a Chico Mendes.

Foucault (2001) ressalta que as verdades são sustentadas por um sistema de

instituições que as impõem e reconduzem e não se exercem sem pressão, nem sem ao

menos uma parte de violência. Lidar com a tragédia acreana é o desafio que Shoumatoff

se impõe desde o início. Nosso autor vai aos poucos encontrando um ardiloso caminho

que lhe impõe necessariamente alguns riscos ao ter que assumir responsabilidades sobre

o que está escrevendo, ou seja, sobre a análise que faz da sociedade acriana (envolvendo

pessoas e instituições) naquela difícil conjuntura dos anos de 1980. Como recriar por

escrito um episódio em que as fontes eram dispersas e que a mídia, como a fonte por

excelência, ora calava, ora era conivente e ora se contradizia? Como versar um episódio

de forma minimamente isenta e consistente numa sociedade onde reinava o medo, a

ameaça e o poder do mais forte? O que dizer do fato das instituições governamentais e

seus representantes estarem sendo acusados de negligência e apoiarem a grilagem dos

seringais? É evidente que desde o início Shoumatoff sabe dos pontos em conflito e

talvez reste a ele, naquele momento crucial, apelar para o mito dos heróis, algo tão caro

para as tragédias em todos os tempos. Retomando Foucault (2001), ele afirma que o

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autor não é entendido como o indivíduo que escreveu ou pronunciou o texto, mas como

princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de significações, como

foco de sua coerência. E é isso o que faz Shoumatoff. Percorrendo trilhas de um

acontecimento que exigia uma investigação minimamente confiável e sobre o qual já se

anunciava certa ordem de discurso ele se mantém aberto às informações e as incorpora

no seu discurso dando-lhes certa unidade textual e exigindo do leitor uma interação na

interpretação da história que ele recria. Mas nem tudo pode ser dito, como se é exigido

de quem escreve ou fala. O autor, nesse sentido, desaparece para fazer ressurgir o mito

na sua força de origem.

Numa reflexão sobre o ato da escrita, Foucault (2001) afirma que ela se

identifica com o próprio exterior e seus desdobramentos, conseguindo nesse contexto

uma espécie de vida própria sem que haja outro fator a não ser ela mesma que lhe faça

atribuir a seu conteúdo de significados, justamente por que esse conteúdo não possui um

liame fixo de significação entre o que escreveu e o referente, mas tem uma abertura que

deixa livre o seu jogo de significações.

A escrita, ainda segundo Foucault (2001), aqui, tem um certo grau de parentesco

com a morte, porque, na antiguidade, a escrita era tida, como por exemplo, no conto das

mil e uma noites, para adiar a morte, já que, enquanto era contado, seu efeito principal

era o de cancelar a execução daquele que a contava até onde o prazo permitia. Pois,

agora, há uma espécie de inversão desse quadro, porque Foucault anuncia um constante

desaparecimento do autor em seu texto, uma morte metafórica através de alguém que

retoma esse texto e lhe dá uma nova leitura, um novo rol de significações. A escrita

bloqueia a certeza da desaparição do autor, sutilmente preservando a existência dele. Os

estudos críticos tradicionais tentam pensar as condições gerais de qualquer texto em

termos de tempo e espaço em que ele deve atuar, fazendo com que leve consigo as

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características do autor. Ora, se a escrita não possuir essa ligação com esse universo

primeiro, ela não está condenada ao esquecimento e à repressão, mas a noção de escrita

está no jogo das representações que formaram certa imagem do autor.

Shoumatoff reforça a imagem mítica ao ressaltar que mesmo não tendo

informações se Chico Mendes já ouvira falar de Gandhi ou Martin Luther King (grandes

ativistas pacíficos da história), transformara o comportamento tímido e sem voz dos

seringueiros24 numa arma contra a derrubada da floresta. Nesse caso, o autor,

estrategicamente, conduz o discurso para o campo de uma imprecisão inicial que, na

verdade, ajuda a reconstituir o personagem num campo mais fácil de controle:

ele reunia as famílias dos seringueiros que viviam nas proximidades e agrupava-os, formando uma barreira nos limites da área, de forma que os pistoleiros e a polícia, contratados pelos fazendeiros para que as coisas corressem de forma suave, não ousassem atirar. Entrementes, Chico passeava pela linha formada, dando segurança aos companheiros. “Não fiquem com medo. Nada vai acontecer.” (...) Em quarenta e cinco empates realizados desde 1975, trinta funcionaram e quinze falharam, mas valeu a pena. (1990, p. 94)

Aqui o personagem em ação, dono de uma fala previsível, reproduz uma

situação limite, em que ele e seus companheiros acossados pela realidade voraz não

tinham outras armas com o que lutar senão com a resistência pacífica. Era a

mobilização, o esclarecimento de seus objetivos e ir à luta. Nesse pequeno trecho, Chico

surge como um personagem dono do seu papel, do qual o autor apenas acompanha os

seus passos, e a sua capacidade de liderança inata. Eis o “homem da floresta” se

constituindo em meio à urgência da própria tragédia. O meio delimitado, as forças da

reação, os seringueiros e suas famílias armadas apenas de bom senso. Temos aí um

campo propício para a constituição do mito dos heróis.

24 Os seringueiros sempre foram figuras benévolas, plácidas e por isso fácil de serem manipuladas pelos espertos patrões e seu sistema de aviamento. O que Chico faz ao adquirir consciência de classe é suscitar nos seus companheiros a mesma coragem de dizer “não”.

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A solidariedade do movimento ecológico internacional torna-se o ingrediente

essencial para completar as potencialidades do herói. O destino, tal como nas tragédias

antigas, está traçado, e todos lemos a narrativa apreensivos e aguardando o desfecho

fatal, mas não dispensamos os elementos de ação e de impasse que darão ao texto o seu

principal sabor. A verdade se impõe como consequência da pressão que as próprias

exigências do discurso permite. Personalidades influentes em visita à Amazônia o

conhecem e tomam ciência de seu trabalho e a partir daí as portas se abriram uma a

uma. Essa abertura que Shoumatoff faz em determinado momento do seu livro para o

homem, e estrategicamente afastando-se do mito, mostra uma certa imprecisão

necessária à construção do seu discurso em relação às forças com que ele está lidando.

Algumas das várias versões da tragédia lhe colocam naturalmente no alto mar revoltoso

dos valores em combate. Ao se referir sobre a “fabricação de um ecologista”, num certo

momento, deixa ao leitor uma lacuna e uma pergunta: estaria o líder dos povos da

floresta servindo a interesses que não estavam claro para ele próprio e para os seus

companheiros? A opinião de Maria Helena Alegretti, destacada por Soumatoff em seu

livro, afirma que este era “muito modesto e despretensioso, Chico Mendes não era uma

personalidade flamejante. Seu carisma estava em suas convicções (...) um líder de

raízes, com um grupo incrivelmente organizado, lutando contra o desmatamento.”

(1990, p.119). Nesse sentido, a verdade se faz presente no texto por si só, pois os

depoimentos daqueles que conviveram com Chico vem ao encontro da construção da

máscara que o autor preparou minuciosamente ao longo da sua narrativa, pois não

interessa se em alguns momentos essas falas sejam de amigos ou parentes, obviamente

falas comprometidas com a heroicização do homem. Seu discurso só se sustenta porque

necessita desses ingredientes que reforçam a tragédia enunciada. E o próprio

Shoumatoff arremata logo em seguida:

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Mas a beleza do esquema de Chico é que ele já estava no lugar. Os seringueiros já estavam na floresta, e eram brasileiros, assim como o autor do plano. Seria mais provável que o governo apoiasse a proposta. Portanto, os ambientalistas queriam que Chico salvasse a floresta, e Chico precisava que os ambientalistas salvassem o modo de vida de seus companheiros. Era um casamento perfeito. Os ambientalistas compreenderam que Chico venderia melhor sua imagem no exterior como ecologista lutando para salvar o Amazonas do que como líder sindical radical. (...) “Chico não havia pensado na luta dos seringueiros como ecológica, mas tinha a mente aberta” (1990, p.120-121)

Aqui a invenção do personagem é extraordinária, já que o que está em jogo

permite o casamento entre o herói e o homem, um alimenta o outro, onde praticamente

o autor desaparece e recria outra realidade através do texto escrito, como se o herói

fosse o homem verdadeiro a partir da sua necessidade de escolha. A escrita adia a morte

do personagem, mas se aproxima dela cada vez que a tragédia se enuncia com a

sobreposição de um valor sobre o outro, no fundo para fazê-lo viver ainda mais no

processo narrativo. Enquanto mantiver essa tensão entre o homem e o mito, Shoumatoff

adia o próprio fim de sua narrativa pela enunciação e permite até certa imparcialidade.

Mas à medida que vamos avançando, o campo vai se estreitando e vamos ao encontro

de um universo que só funciona porque o herói tem ser sacrificado. A narrativa se

aproxima da sua morte tão próxima ela está também da total mitificação do homem

Chico Mendes.

Quando Chico retorna de aclamada viagem internacional onde é reconhecido

como um homem importante na luta pela defesa e sustentabilidade do planeta

(especialmente a Amazônia) é recebido em Rio Branco com uma campanha de

difamação na mídia local25, que “o ridicularizava e denegria sua imagem, afirmando,

entre outras coisas, que ele era analfabeto, um inimigo do Acre, contra o progresso, um

joguete nas mãos dos ambientalistas, um homem que no exterior dizia coisas ruins sobre

25 Os fazendeiros acrianos tinham seus interlocutores e formadores de opinião nos meio de comunicação. Diz-se que à época o Jornal O Rio Branco (hoje governista) era o principal canal de comunicação dos proprietários rurais.

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o Brasil” (SHOUMATOFF, 1990, p.127). Volta o homem, volta a narrativa a ganhar

força de expressão. A sobrevivência para o desfecho da tragédia depende

fundamentalmente dos elementos de representação que estão em jogo, aquilo que de

certa maneira também dependerá quase sempre da mitificação para manter viva a

imagem inicial que se quer. Shoumatoff transita propositadamente entre dois discursos

claramente organizados: o discurso de Chico Mendes e seus companheiros e o discurso

dos fazendeiros. Embora no decorrer de toda a obra esse procedimento de abertura aos

variados pontos de vista seja constante.

Ao longo de seu texto ele vai colocando o leitor a par de toda uma situação,

como se esperasse também deste uma determinada estratégia de recepção quanto aos

fatos que parecem se tornar incontestáveis. A força econômica de determinado grupo

que a toda hora se sobressai quando Shoumatoff fala das ameaças, das mortes impunes,

do preconceito contra o homem simples da floresta, do domínio de determinados setores

da mídia, só vem confirmar o óbvio, que não havia muitas alternativas para nossos

heróicos caboclos. Evidente que os fazendeiros, poderosos e bem relacionados,

dispunham de facilidades como canais de comunicação (TV e jornais) influenciando

assim, de forma premeditada, a opinião da sociedade, enquanto os seringueiros

dispunham somente da solidariedade dos que simpatizavam com a sua causa e das

próprias forças e organização. Shoumatoff deixa claro que nossos personagens entraram

num labirinto onde fatalmente só conseguirão sair do outro lado apenas os que

estiverem munidos de certas estratégias de defesa em que se façam presentes um tipo de

pressão e não raro alguns liames de violência. A tragédia surgirá como natural

desaguadouro de forças dispersas e que estão reunidas estrategicamente para dar vida e

sentidos aos fatos relatados. O herói terá de viver por si só, movido por uma força já

previamente premeditada na própria construção discursiva. Shoumatoff não poupa os

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elementos que virão a reforçar o estado de impasse que urde a figura do herói. O herói

deverá sair exatamente dos motivos que o engendravam inicialmente, e em torno disso

um certo determinismo indicará os vazios a serem preenchidos.

Em A ordem do discurso, Michel Foucault (1999), ressalta que a produção do

discurso na sociedade é controlada, organizada, selecionada e redistribuída por alguns

procedimentos. O primeiro grupo de princípios de controle do discurso é a Interdição

(palavra proibida): “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se

pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar

qualquer coisa.” (1999, p.9) Shoumatoff se situa neste limite, numa margem permeada

de múltiplas vozes que estão a formar sua obra numa espécie de ‘colcha de retalhos’,

mas que no fundo não foge ao jogo de representações enunciado. O autor, que

desaparece para dar espaço aos fatos, persegue sempre uma coerência, uma unidade,

uma inserção no real, que no fundo é a vontade de falar uma verdade, de fazer do texto a

representação dessa verdade através da ideia da própria tragédia.

Numa de suas últimas entrevistas, Chico surge já apocalíptico, como nos diz

claramente Shoumatoff: “se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha

morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a pena. Mas a experiência nos ensina o

contrário. Então eu quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a

Amazônia. Quero viver”. (1990, p.149) Shoumatoff faz, a partir desta fala, surgir o

mártir, o personagem predestinado, agora homem e mito, o que deseja viver pela causa,

mas que a própria morte subentendida o fará ainda mais vivo, já que lidamos com a

tragédia enunciada. Todos os enunciados na boca do próprio Chico vão apenas

confirmar que o personagem precisava morrer para deixar viver o herói. Shoumatoff

sabe muito bem quais forças o impeliam para frente, para o enfrentamento com seus

inimigos, de que ele não poderia recuar em sua luta. O abandono das forças públicas é o

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ingrediente que transformará aquele homem simples numa força da natureza, capaz de

chamar a atenção para a ameaça à Amazônia.

O ensaio encaminha-se para o seu final quando, no funeral, todas as enunciações

se concretizam. A descrição do velório de Chico é construída num tom de profecia:

“enquanto ele jazia no prédio ao lado da igreja, os seringueiros chegaram, e os líderes

do movimento fizeram discursos políticos o dia inteiro e seguiram noite adentro”

(p.198) compondo um cenário de uma exigida exacerbação verborrágica. Shoumatoff

(1999) destaca a fala de um velho companheiro de Chico, o Gumercindo, que em tom

militante e exaltado reverbera: “nenhuma árvore mais será derrubada em Xapuri. Todo

o município será uma grande reserva extrativista. Esse é o preço que os fazendeiros

pagarão por terem assassinado Chico Mendes, e mesmo assim é um preço muito

pequeno” (p.198); logo em seguida a fala de Lula nos esclarece a sua visão sobre a

tragédia: “Vamos eleger Chico um símbolo da falta de credibilidade do governo. Será

que essas pessoas são tão estúpidas que não percebem que matando Chico não matam

suas ideias? Será que os ricos não percebem que mataram Jesus Cristo? Mas o povo não

vai esquecer suas idéias” (p.199) As falas e atmosfera criam o clima final da tragédia

enunciada, onde o autor definitivamente deixa de existir para entrar de maneira direta no

jogo das representações. O mito dos heróis, e a consequente tragédia, deixa o mito

sobreviver acima do bem e do mal, acima do próprio homem que ele foi um dia. A

partir daqui, Chico Mendes será de quem quiser fazer dele o exemplo de resistência e

combate às forças que ameaçam a Amazônia.

Finalmente Shoumatoff ressalta que na sua última visita ao Acre pode ler nas

camisetas das adolescentes estudantes de Rio Branco Chico Mendes, herói mundial

pela causa ecológica [grifo nosso], deixando claro ao leitor que este comportamento da

sociedade nos dá a dimensão que ganhara o assassinato do líder seringueiro. Sua morte

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extrapolara as fronteiras da luta sindical/ecológica e ideológica, e com o apoio de

setores da mídia ganhara muitos outros setores adeptos e simpatizantes, como por

exemplo, as escolas. Está preparado o terreno para a dominação de uma nova ótica, de

uma nova forma de governar o estado.

Nosso autor conclui nos questionando sobre a falibilidade do sonho humano de

estabelecer uma sociedade sem senhor nem escravo, opressor e oprimido e por isso

sugere que os velhos homens humanos terão sempre a necessidade de mártires e santos,

do herói que funciona como apaziguador da ebulição e da voracidade que é a vida em

sociedade. Na seguinte citação corroborando o que acabamos de afirmar, Shoumatoff

destaca que

se fosse possível dar às pessoas a chance de formar uma sociedade perfeita, sem opressão ou discriminação, será que elas aceitariam? Os santos precisam morrer. A impossibilidade de ser totalmente bom está embutida na condição humana, seja qual for o estágio de cultura, e é por isso que precisamos periodicamente de mártires como Chico para aplacar os deuses, a fim de que possamos manter nossas personalidades duplas, nosso modo de viver prevaricando, sendo ao mesmo tempo o bem e o mal. (1999, p.336)

Da prevaricação entre o bem e o mal é que surgem, portanto, os heróis. A

sociedade suspira por mitos e mártires. Ao encarar o desafio de lidar com a tragédia

acreana, Shoumatoff finalmente desaparece para dar espaço ao mito com toda a sua

força de origem. O jogo das representações triunfa, façamos então o que quisermos do

herói que surge daí.

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3.2 Márcio Souza: o mito como fabulação telúrica

Chico Mendes nos aperta a mão de uma maneira esplêndida e nos injeta a consciência

da vitória, tão necessária pra se viver neste cínico final de século.

Se a exploração mata e arrebenta, a solidariedade desfibra e asfixia. Contra a exploração

é possível resistir, mas não há nada que se possa fazer contra a solidariedade.

(Márcio Souza)

O autor amazonense Márcio Souza consagrou-se com o folhetim Galvez,

Imperador do Acre, em que chama a atenção para importantes aspectos da formação

histórica local. Publicou outros importantes romances, também de grande vendagem,

como Mad Maria, A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi, A Ordem do Dia, entre outros.

É autor de peças de teatro como Folias do Látex, Tem Piranha no Pirarucu, que

recuperam importantes aspectos da cultura regional da Amazônia. E escreveu também

polêmicos ensaios, como A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neo-

colonialismo, onde busca com o tom satírico que lhe é peculiar, a revisão da história de

sua região sob um olhar crítico desmascarador. Seus livros são traduzidos para vários

idiomas e publicados com sucesso em vários países ainda hoje. O Empate Contra Chico

Mendes foi lançado em 1990 e dá prosseguimento a uma temática já por ele introduzida

em A Expressão Amazonense, onde Márcio Souza (1978) mostra com picardia a vida no

mais isolado dos rincões brasileiros afirmando:

Pensar criticamente o Amazonas, o processo político e cultural desta terra que padece de uma completa ausência de investigação científica e está assolada pelo recenseamento ou pelo beletrismo. A historia do Amazonas é a mais oficial, a mais deformada, encravada na mais retrógrada e superficial tradição oficializante da historiografia brasileira. Pouco estudada,verdadeiramente abandonada, com uma documentação rara e saqueada por inescrupulosos que se julgam proprietários do passado. Uma história escrita com a letra maiúscula do preconceito e da distorção mentirosa.[...] Olhar para essa realidade é sentir-se um abandonado no interior de uma tradição formal onde o povo não aparece e os heróis são vermes dourados. (p.17)

Aqui na Amazônia, diz ele, apesar de tudo, sempre se conviveu com o

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moderno. Cada uma das fases da história regional mostra a modernidade das

experiências que foram se sucedendo. Ao escrever O Empate Contra Chico Mendes, ele

mostra que chegou a hora de dizer duas ou três coisas que ainda não foram ditas nestes

manuais dos tempos pós-modernos. Ao revisitar a história da região, entrelaça-a com a

história de vida de Chico Mendes e desmonta a farsa de certos ecologistas, defensores

interesseiros da Amazônia: “Era preciso formular a pergunta: como pretendem defender

a integridade da região sem conhecer o passado, as peculiaridades de sua cultura e de

seus costumes? Quem teria sido Chico Mendes? Um intuitivo líder ecológico? O que

esse negócio de ‘ecologia’, movimento tipicamente pós-industrial, teria a ver com esse

líder rural do Acre?” (SOUZA,1990, p. 14)

Márcio Souza é incisivo: “para entender Chico Mendes, a sua morte, a mão que

armou o pistoleiro e o ódio que armou o fazendeiro a jurar o fim do jovem líder

seringueiro, é preciso entender o que vem acontecendo na Amazônia e no Brasil nos

últimos vinte anos”. (1990, p.17) Ao analisar o mundo da borracha, sua crise e a

chegada de um novo modelo econômico para a região – a pecuária, ele não se deixa

levar pela cantilena reinante e enfatiza o clima beligerante, o conflito de interesses que

existia entre seringueiros e pecuaristas e conclui seu livro com a questão da formação

das Resex (Reservas Extrativistas), o que parece ser o resultado mais imediato da luta

travada por Chico Mendes resultando no empate dos fazendeiros contra o próprio.

No segundo capítulo, Márcio Souza recorre à narrativa de forma a entrar

definitivamente na alma do personagem, no herói que começa a surgir, mas da força de

sua própria intuição nativa, de defesa dos interesses dos seringueiros, prestes a serem

desapropriados: “Os olhos atentos, carregando uma maleta de plástico azul, Chico

Mendes ia praticamente arrastado pelo fluxo de passageiros que acabavam de

desembarcar no aeroporto de Miami. (...) Mas Chico não estava em Miami para cumprir

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a alegre e dispendiosa rotina da maioria dos turistas brasileiros que ali desembarcam.”

(p.19)

Chico Mendes nos EUA26 não pode ser o turista habitual, mas alguém

comprometido com uma causa maior, sem o deslumbre, sem atavios que marcam o

homem comum. Da sua causa, do seu comprometimento com a sua gente virá o herói:

“Chico Mendes sabia que se a rodovia fosse, naquele momento, estendida até o Acre,

uma boa parte de sua luta estava perdida. Milhares de seringueiros perderiam as suas

posses e iriam engrossar a massa de miseráveis nas periferias das cidades.” (p.19-20)

O herói telúrico, na ótica souziana, por meio da narrativa, será evidenciado

como aquele predestinado ao combate com as ferramentas da sua origem. Toda a capa

estendida sobre ele, a partir da ótica internacionalista, apenas faz camuflar a verdadeira

essência desse caboclo que existiu para defender o seu modo de vida e a sua gente.

Márcio Souza, portanto, reúne os ingredientes básicos para contar uma história que,

alternada com sua indignação, se preocupará em recuperar os aspectos que tornam

Chico Mendes um líder nascido das forças mais espontâneas da região.

Márcio Souza lança sobre a problemática acreana um olhar crítico e se

posiciona com um “pé atrás” sobre a onda oportunista das calorosas causas inventadas

solertemente nos momentos de crise ou tragédia para salvar a região amazônica do

inferno das chamas e da devastação. Neste sentido, não temos em Márcio Souza mais

um panfletário da criação heroica do líder dos povos da floresta, como faz Shoumatoff,

temos, antes de tudo, o convite ao afastamento e à compreensão da Amazônia nos seus

revezes e nas suas contradições, uma oportunidade de olhar diferenciadamente o homem

26 Chico fez algumas viagens aos Estados Unidos e além de ter despertado o olhar do mundo sobre a problemática amazônica, consolidou para si a imagem de ecologista, e ganhou prêmios importantes ligados ao mundo ambientalista.

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nativo, este sim um profundo conhecedor da região e comprometido com as causas que

dizem respeito ao seu futuro e à sua conservação. Somente como conhecedores das

contradições que surgem das relações espaço-temporais na Amazônia é que para Márcio

Souza teremos condições de nos posicionarmos acerca de sua história e de sua gente. E

é somente daí que ele vai sutilmente construindo seu personagem, um homem comum

que transita entre a história e as verdades da causa que ele abraçava e que aos poucos

vai entronizando um personagem heroico porque nele está a força do comprometimento

com seu povo, suas origens e seu modo de vida.

O ensaio segue alguns procedimentos típicos deste autor já utilizados em seus

romances. Apesar de trabalhar com uma figura histórica, Márcio Souza não poupará

esforços ao se apropriar de elementos da ficção que possam vir ao encontro do que ele

considera ser uma desmitificação do líder seringueiro para o real valor que ele acredita

reativar. Evidente que aqui começamos a nos deparar com fronteiras discursivas ainda

mais complexas do que aquelas que percebemos no livro de Alex Shoumatoff.

Inicialmente, ele procura atacar a onda que levou a celebrização internacional de Chico

Mendes, o que marca o pensamento do autor: “[...] na própria Amazônia, a realidade da

morte do líder dos seringueiros do Acre mereceu outra percepção, menos espetacular,

mas carregada de significações, que foi obscurecida pelos clarões da solidariedade

internacional.” (1990, p. 16) Nesse sentido, a voz bem definida marca a presença do

autor comprometido com as coisas da terra e, nesse caso, Chico Mendes será o símbolo

de resistência que acabou burlado por um movimento de glamourização que, no fundo,

só fez diminuir a sua força de origem telúrica. O ensaio de Márcio Souza é eivado, em

boa parte dele, pelo menos nos momentos que mais interessam, por narrativas que

ajudam a ilustrar o percurso do líder seringueiro. Sendo assim, a narrativa acaba, por

diversos motivos, ganhando um destaque em nosso trabalho. Robert Scholes em A

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Natureza da Narrativa (1977), no quarto capítulo, nos expõe os problemas relativos à

realidade e a sua representação e significado. Segundo ele,

o significado, numa obra de arte narrativa, é uma função de relacionamento entre dois mundos: o ficcional, criado pelo autor, e o universo real, o universo compreensível. Quando afirmamos que “entendemos” uma narrativa, queremos dizer que encontramos um relacionamento ou conjunto de relacionamentos satisfatórios entre esses dois mundos (...); um problema muito mais complicado, porém, e mais difícil de solucionar, é a natureza do relacionamento entre o mundo ficcional do autor e seu mundo real. (p.57)

Da relação entre os dois mundos, o ficcional e o real, surge o significado na

narrativa, afirma portanto Scholes. Márcio Souza se posiciona num limite discursivo

quase imperceptível a ponto de em determinados momentos confundir o leitor em

relação a esses dois mundos ressaltados por Scholes. Sua narrativa transita numa

fronteira formada pelo real e o ficcional. Na passagem a seguir fica claro sua intenção

de colocar o leitor numa espécie de encruzilhada:

Então, o Brasil, país do carnaval, samba e lindas mulheres negras de biquínis sumários se bronzeando ao sol, deixou de ser o país da alegria para se transformar no algoz da natureza, no vilão corrupto e inconsequente, mestiço e culturalmente deformado, capaz de desestabilizar o meio ambiente apenas para garantir um excedente de divisas para pagar os juros da enorme dívida externa. (1990, p.16)

Fica claro aqui que o personagem terá de assumir um papel fundamental diante

dos desafios que a nova ordem do mundo exige do nosso país. O Chico Mendes de

Márcio Souza dá espaço para um personagem comprometido com as raízes e com as

próprias contradições que o geraram. Em Shoumatoff, Chico Mendes e sua tragédia é

apenas um símbolo de resistência para a causa ambiental. Márcio Souza, na fúria de sua

palavra ensaística, reivindica o personagem num patamar mais complexo, numa posição

que refletirá os impasses da nossa história, não para nos condenar, mas para sermos

capazes, antes de tudo, de sentir a força de sua origem.

Scholes afirma que “só na narrativa é que a vida interior dos personagens é

realmente acessível. Mais uma vez conforme observou Forster, o romancista aqui tem

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uma verdadeira vantagem. O elemento mais essencial na caracterização é essa vida

interior”. (1990, p.119) Márcio Souza se apropria de um discurso onde nos coloca em

contato com o homem completamente imerso no seu meio natural, um homem voltado

para a própria gênese, ao afirmar:

Mas os seringueiros do Acre, embora não fossem escravos, viviam em meio a grandes dificuldades. Era sobre isto que três homens conversavam, em certa manhã chuvosa de janeiro. Wilson, Chico e Raimundo tinham nascido e se criado ali. Suas famílias viviam no Acre há pelo menos 50 anos, tirando o seu sustento do fabrico da borracha, da castanha e das lavouras. (...) Todos eles lembravam tempos menos amargos, tempos de pobreza e isolamento, mas sem as angústias daqueles dias. (1990, p.72)

Assim ele nos expõe seus personagens de forma a explorar os elementos que,

aglutinados numa atmosfera peculiar, farão o processo narrativo almejar o retrato que

reúna o homem à terra, aquele que parece estar predestinado a uma grande missão

justamente porque existe a identificação com o natural. É dessa exposição que revela o

homem no que ele tem de mais sincero e mais puro (a sua pobreza material, o seu ideal,

o seu caráter em formação) que vai brotar o herói.

A narrativa souziana nos expõe um personagem com outras máscaras, quase

por inteiro na sua relação com a origem, pois comprometido com a terra, e também

comprometido com as causas de seu tempo, como já afirmamos, ele se torna um

‘gigante com pés de barro’, ou seja, no fundo é outro mito que surge da vontade de fazer

história, agora sob o beneplácito explícito dos recursos da ficção, temperados por uma

voz ensaística que reivindica uma verdade para a Amazônia, aquela que interessa para

ela. Como afirma Scholes, esse mergulho na intimidade e vida do personagem só é

possível na narrativa. A ficção é a ferramenta que dá tratos a uma força essencial que

dever emergir por si só. Em determinados momentos o seu texto ganha aspectos de saga

ao fazer o realce das virtudes do herói colocando-o frontalmente de encontro com seus

inimigos. Na passagem que se segue, quando ele cita uma fala de Chico Mendes aos

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delegados do BID27, esses aspectos são claros, traduzindo a virtude do defensor da

floresta:

A estrada, como tudo que o governo brasileiro tem feito na Amazônia, [...]não foi pedida pelo povo trabalhador. É um projeto que só vai beneficiar meia dúzia de grandes proprietários, mas vai ajudar a expulsar milhares de seringueiros e significará um estímulo ao desmatamento de milhões de hectares de selva ainda intocada. E tudo isto para criar gado, a um custo social elevado, só para satisfazer o imediatismo de certos fazendeiros, que lucram muito mais com a especulação do que propriamente com a pecuária. [...] nós até já desafiamos os fazendeiros a fazerem as contas, só pra provar que a floresta dá muito mais do que o boi. Mas eles não aceitaram, é claro.(1990, p. 20)

Como acabamos de ver, Souza nos coloca de encontro a um personagem que,

para defender a Amazônia, tem a coragem de posicionar contra a liberação de verbas

para a Amazônia em um fórum internacional. Isso aos olhos da elite governante e

dominante era de se posicionar contra o “grande sonho integrativo” da região Norte do

Brasil, sonho acalentado desde o regime militar. As observações por ele feitas sobre a

possível construção [grifo nosso] da BR-364 de Porto Velho a Rio Branco, alegando

que esse projeto iria beneficiar somente os grandes proprietários em detrimento da causa

dos trabalhadores da Amazônia e do meio ambiente, não soavam bem aos ouvidos de

muita gente importante. Ao posicionar seu personagem de forma heroica e corajosa

nosso autor o coloca de encontro a interesses muito poderosos (os fazendeiros que

tinham ligações com os grupos economicamente dominantes – e nunca é demais

lembrar que a política oficial de governo incentivava a agropecuária), formando assim a

dialética básica dos romances: o herói precisa se confrontar com o inimigo, sempre

maior do que ele, aparentemente. Ao realçar o discurso do homem da terra acusando os

“paulistas” como os vilões do ataque dos últimos tempos ao “pulmão do mundo28”,

estava formado o confronto, o palco para o surgimento do herói. A reação dos

27 Banco Interamericano de Desenvolvimento

28 Termo usado por muitos estudiosos, escritores e panfletários da Amazônia para classificá-la como região estratégica para a humanidade.

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fazendeiros foi imediata. Chico Mendes é recebido na capital do seu estado como aquele

que continuava com os olhos voltados para o passado e que não conseguia ver o futuro.

Esta situação demanda uma reflexão sobre o assunto. Ao defender a não

construção da BR-364 nos moldes do que ocorrera na Cuibá-Porto Velho, Chico se

colocava numa posição de fragilidade, quase na contramão da história, se não tivesse

defendido ao mesmo tempo outra causa que era a preservação da Amazônia. Assim, a

sua causa se torna também progressista, por outro lado, porque olhava a preservação da

floresta como algo imperativo para o mundo. Essa dialética coloca o discurso de Chico

Mendes numa encruzilhada que os futuros governantes tentarão resolver com o

desenvolvimento e aplicação de conceitos como florestania e sustentabilidade [grifo

nosso], sendo que o primeiro é claramente uma invenção, um marketing. Evidentemente

que o ideal preservacionista, com viés radical, não sobreviveu, nem poderia sobreviver à

maneira como foi pensado à época. Sua utopia se transformou, na verdade, numa

semente que o próprio futuro e a história se encarregariam de fazer brotar geneticamente

alterada. Chico Mendes é fruto de uma época de indefinições, de questões que até hoje

são colocadas de forma muito passionais, o que obscurece os principais pontos. Chico

Mendes se transformou no personagem dele próprio e no texto de Márcio Souza o herói

terá de surgir da força de uma vontade de vida que paradoxalmente o leva à morte. O

herói de pés de barro mostra sua força quanto mais desafia a morte, morte que num

determinado momento ele próprio dava como inevitável. O mergulho no conflito onde

se destaca claramente o caminho do bem e do mal dá ao texto de Márcio Souza, como já

ressaltamos, os aspectos clássicos do processo ficcional. Esses aspectos são ressaltados

da seguinte maneira por Northrop Frye:

[...] a forma básica da estória romanesca é dialética: tudo se foca num conflito entre o herói e seu inimigo, e todos os valores do leitor ligam-se estreitamente ao herói. Por isso o herói da estória romanesca é análogo ao Messias mítico libertador que vem de um mundo superior, e seu inimigo é

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análogo aos poderes demoníacos de um mundo inferior; [...] o inimigo associa-se com o inverno, as trevas, a confusão, a esterilidade, a vida agonizante e a velhice, e o herói com a primavera, a alvorada, a ordem, a fertilidade, o vigor e a juventude. (1957, p.186)

Assim vamos perceber na obra de Márcio Souza todos os valores do possível

leitor aos poucos sendo ligados aos do futuro herói, pois acontece uma aproximação

deste com seu lado de messias mítico libertador, [grifo nosso] nos oferecendo

enquanto leitores, poucas possibilidades de escolha. O inferno e o céu estão ao alcance

da mão e os vislumbramos claramente. A luta dos companheiros da floresta era uma

causa nobre. A ação devastadora dos latifundiários era a atitude que deveria ser

abominada e abolida da sociedade. Aí, Chico Mendes já começa a missão a que parecia

predestinado, ou seja, a de chamar a atenção do mundo para as derrubadas e as

queimadas que aconteciam na Amazônia e morrer por esta causa. Como um homem

comum saído do meio dos seringais poderia estar agora influenciando as decisões dos

países mais ricos no tocante as suas políticas para o Terceiro Mundo? O que havia de

tão singular naquele homem que o mundo capitalista “parou” para ouvi-lo? Tais

passagens na obra de Márcio Souza não deixam dúvidas de que o seu personagem

estava ganhando uma notoriedade não esperada e isso podia servir tanto para o bem

como para o mal no olhar que se debruçava sobre a região. Chico Mendes era agora a

voz da Amazônia que se fazia ecoar no mundo todo, pelo menos daquela Amazônia que

interessava conhecer. Mas o eco desse grito o colocou numa situação de confronto

imediato. Era como se sua própria voz o tivesse levado para uma situação limite onde o

ressoar internacional de suas denúncias o jogasse irremediavelmente contra o “grande

paredão” organizado e sustentado pelo rentável mundo dos negócios com a terra,

representando a era das trevas, da esterilidade, a vida agonizante, a velhice das

oligarquias corroídas. Assim, Márcio Souza, ao ressaltar a atitude de Chico exigindo o

embargo das verbas do BID para a construção da BR-364, como resultado imediato da

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sua viagem ao exterior, nos faz vislumbrar um momento de luminosidade, de que algo

naquele “fim de mundo” estava valendo a pena:

A vitória incontestável de Chico Mendes atingia duramente os grupos econômicos envolvidos no projeto da rodovia, que viam pela primeira vez seus interesses prejudicados pela ação de um trabalhador. Ao impedir que os dólares dos financiamentos internacionais chegassem aos bolsos dos empresários e técnicos governamentais, Chico Mendes estava cutucando a onça com vara curta. Mas enquanto conquistava aquela vitória, e provocava tanta irritação entre empresários e políticos, Chico era solenemente ignorado pela grande imprensa brasileira. [...] Ninguém podia suspeitar que no Acre estivesse sendo gestado um ato capaz de chocar as consciências, abalar o mundo. [...] Mas o certo é que ele tinha ido longe demais, já havia chegado num ponto sem retorno, ao mostrar que os mais fracos e explorados podiam ser fortes se estivessem unidos e organizados. (SOUZA, 1990, p. 21)

Márcio Souza com a constatação do triunfo, mesmo que pequeno ainda, não

foge ao vaticínio e ao irremediável percurso do herói já construído, que precisará da

tragédia para afirmar o seu nome e a sua causa diante do mundo. Chico Mendes é o

herói que surge das próprias migalhas para se tornar o gigante que o mundo precisa para

a causa ambiental, mas mais que isso, ele representa o homem que com recursos

mínimos conseguiu imprimir um roteiro que redimensiona as novas expectativas diante

do tema, mas nada disso teria o efeito que teve se não fosse a sua morte. A sua morte

surge como uma consequência inevitável, por isso o bloqueio dos recursos vai muito

além de qualquer expectativa.

Márcio Souza afirma que “talvez porque movida pela esperança, a viagem de

Chico aos Estados Unidos acabou resultando numa inesperada vitória. O BID decidiu

suspender os financiamentos para a construção da BR-364 e passou a submeter os

projetos brasileiros ao escrutínio de equipes especializadas em analisar o impacto

ambiental29 de tais projetos” (p.21). Isso talvez seja o que de mais expressivo tenha

29 Os estudos de impacto ambiental são uma exigência legal por parte dos órgãos públicos ambientais para a liberação e construção de qualquer obra de médio ou grande porte no Brasil hoje. Postula-se isso como um dos resultados da luta de Chico Mendes e está a evitar repetição de tragédias como ocorreu com a construção de hidrelétricas na Amazônia. No entanto professores da UNIR debatendo o impacto

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ficado da luta que o tirou da vida. Os estudos de impacto ambiental se tornam uma

exigência para toda e qualquer obra que se venha a fazer na Amazônia a partir de então,

mesmo que isso não passe de mais retórica. O herói da floresta está pronto para servir a

todos os propósitos. O texto de Márcio Souza, mesmo tentando desmascarar, contribui

também para qualquer compreensão destorcida, já que se apoia na mitologização

também. Mas ainda cabe uma última reflexão sobre o mito erigido, aquele que ao

morrer deixa no ar a indefinição: “Mas a sua morte, com a vacância do poder, e sua

mitificação como líder verde, ecológico, que defendia plantinhas e borboletas, trouxe a

confusão e a incerteza para o movimento,” (p.150).

Como constatamos Márcio Souza se posiciona, desde o início, contra os

discursos gratuitos à mitificação de Chico como líder verde, como um mero ecologista,

porque isso o afastava de seus princípios e origens, das suas causas primeiras, mas sem

querer acaba criando um herói mais forte até do que o fez Shoumatoff, porque ao

destacar o homem preso às suas origens, e que seria capaz de sacrificar a própria vida

por seus ideais, está celebrando a imagem do herói que está verdadeira e

irremediavelmente preso às causas de sua gente, e que de fato era o coroamento de uma

longa história de lutas, ilusões e desesperanças.

Márcio Souza é satírico ao nos mostrar que Chico “nos aperta a mão de uma

maneira esplêndida e nos injeta a consciência da vitória, tão necessária para se viver

neste cínico final de século” (p.18). O mito agora é um homem depreendido, sem muitas

pretensões pessoais (queria salvar a floresta) e que sabia que lutava contra forças do mal

que fatalmente lhe tirariam a vida. Mais uma vez a verdade acaba sendo o último ponto

provável da construção das hidrelétricas do Madeira sobre a região impactada, mostram exatamente o contrário.

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a ser alcançado, mesmo que muitas vozes tenham contribuído para o que Chico Mendes

se tornou para o mundo, onde a tragédia que o heroificou não era por ele desejada.

3.3 Zuenir Ventura: entre o herói e o homem

O mito é sempre metalinguagem: despolitizado por uma metalinguagem geral,

domesticada para cantar as coisas, e não mais para agi-las.

(Roland Barthes)

O livro do conceituado jornalista Zuenir Ventura constitui o resultado de várias

reportagens jornalísticas, feitas em pelo menos três viagens ao Acre (a última foi feita

em 2003, mas a primeira, logo depois do crime e a segunda no julgamento, dois anos

depois). Seu livro está dividido em três partes: na primeira, ele se detém sobre o crime

no seu contexto social, político e histórico, onde afirma que o Acre se tornara uma terra

de pistoleiros, crentes na impunidade e inoperância dos órgãos públicos, onde a justiça

custa a chegar. Neste ambiente de disputa pela terra, de ampliação da fronteira

agropecuária por um lado, e de outro, homens que insistiam em sobreviver arrumando

forças da própria situação desassistida e de abandono oficial a que estavam submetidos

e na qual viviam, mas que começavam a acreditar nos ideais de justiça, liberdade,

fraternidade, nos ideais da dignidade humana, Chico Mendes se torna uma presa fácil, e

até mesmo a vítima que se tornara necessária e que fora abandonada pelos próprios

amigos às mãos daqueles que desejavam sua retirada de cena, e o viam como um

estorvo. Mas ele não é somente mais um que tomba na Amazônia onde se ecoava o

choro de líderes populares mortos30.

30 Nos anos de 1980 são inúmeras as lideranças populares que tombam na luta contra os novos donos da terra. Só na Amazônia a lista é imensa e trágica, revelando um ambiente de impunidade e onde vale a lei do mais forte. Chico Mendes, mesmo com todo o carisma, seria mais um se não tivesse acompanhado de tantas pessoas importantes que fizeram notar o alcance da sua luta.

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O que torna, portanto, singular a tragédia de Chico? É que sua luta se encaixa

perfeitamente nos ideais do ecologismo ambiental mundial, tornando-o uma

personalidade global, sua história passa a ser disputada para se tornar um filme

educacional para o mundo, apesar de viver na distante e isolada Xapuri dos anos de

1980, antiga sede de seringal, como boa parte das cidades do Acre, localizada às

margens do rio de mesmo nome, onde imperava literalmente a lei do mais forte e os

jagunços a serviço dos fazendeiros exibiam suas armas em público como forma

explícita de ameaça e intimidação.

Na segunda parte, ele fala sobre o julgamento ou castigo (que era esperado com

a mesma ansiedade com que se espera um grande espetáculo) a que foram submetidos

em face da lei, o mentor e o executor do crime. Dois anos depois, Xapuri se vê tomada

por uma multidão de gente de todo o mundo e do Brasil para assistir ao julgamento.

Com os réus presos, chegara a hora da justiça, finalmente. Darly e seu filho foram

condenados a 19 anos de prisão em regime fechado, e a multidão deixou o fórum de

Xapuri sob uma forte comoção que seria imediatamente canalizada para outros

propósitos.

Na terceira parte, o autor faz um relato de sua visita ao Acre 15 anos depois do

assassinato. Busca analisar quais aspectos de uma evolução histórica e social podiam ser

notados. O que ficara da luta de Chico? Sua tragédia fora em vão? Em Xapuri,

entrevista diversas personalidades que participavam do movimento social na época de

Chico e se emociona. Em Rio Branco, percebe a capital com ares mais brandos. Ali não

se vivia mais o clima de impunidade e ameaças dos anos 80 e já se esboçava uma

modernização nas estruturas, nos bens e serviços públicos. Percebia-se uma autoestima

elevada no povo. O último reduto da certeza da impunidade havia sido debelado com a

prisão dos líderes do esquadrão da morte. O Acre mudara em muitos aspectos, apesar de

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continuar com grandes desafios sociais a serem vencidos. Essa autoestima elevada, a

criação das Reservas Extrativistas, a demarcação das Terras Indígenas, a modernização

das estruturas públicas, os avanços na educação e saúde e a adoção do modelo de

sustentabilidade para as florestas e para a atividade econômica como um todo, são vistas

e divulgadas pelo discurso hegemônico como resultados dos ideais de Chico Mendes.

Zuenir Ventura analisa o caso Chico Mendes, mas não faz conexão com a devastação da

Amazônia, como fazem os outros dois autores trabalhados anteriormente.

O historiador Eric Hobsbawm, já citado por nós, em sua obra A Invenção das

Tradições (1997) defende uma tese que nos ajuda a analisar melhor as questões

levantadas por Zuenir Ventura em sua obra. Segundo ele muitas das práticas e tradições

que nos aparecem hoje como antigas e consolidadas foram, na verdade, inventadas. A

invenção das tradições se dá quando um conjunto de práticas de natureza ritual ou

simbólica busca inculcar certos valores e normas de comportamentos através da

repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado adequado.

Eric Hobsbawm destaca muito bem essa idéia na seguinte passagem:

As sociedades que se desenvolveram a partir da revolução industrial foram naturalmente obrigadas a inventar, instituir ou desenvolver novas redes de convenções e rotinas com uma frequência menor do que antes. Na medida em que essas rotinas funcionam melhor quando transformadas em hábito, em procedimentos automáticos, ou até mesmo em reflexos, elas necessitam ser imutáveis. (...) Em suma inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. (1997, p.12-13)

As sociedade contemporâneas sobrevivem a partir de uma série de invenções, e

fazem parte desse processo inventivo determinadas tradições que funcionam como uma

espécie de compensação às inúmeras frustrações que essas mesmas sociedades impõem

a seus povos, como nos mostra o historiador. Essas invenções tornam-se, assim,

necessárias, pois diminuem a ansiedade, controlam os impulsos e mantêm o espírito

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humano iludido com criações que parecem ser verdadeiras. Como veremos o retrato

elaborado por Zuenir Ventura nos coloca ao encontro a uma situação de indefinição

quando realça e dá vida a uma imagem heroica oriunda do martírio e do holocausto, mas

ao mesmo tempo não abre mão dos aspectos humanos do seu herói.

Segundo Eric Hobsbawm, no desenvolvimento da sociedade moderna

“desenvolveu-se um conjunto de rituais bastante eficaz em torno destas ocasiões:

pavilhões para os festivais, mastros para as bandeiras, templos para as oferendas,

procissões, toque de sinetas, painéis, salvas de tiro de canhão, jantares, brindes,

discursos.” (1997, p.17) Essas reflexões nos permitem entender melhor o Acre pós

Chico Mendes e as formas discursivas que ajudaram na construção de sua imagem de

herói dos povos da floresta por meio de ritos que vão confirmar a necessidade desse

herói. Nesse caso, Chico Mendes não é apenas o herói da floresta, mas um ícone que

representará a parte pelo todo, a figura privilegiada que sustentará os novos valores a

serem assimilados. No Acre de hoje vende-se uma tradição calcada num herói que

precisa ser afirmado em cada gesto ou ato oficial. Algo, se pensarmos mais

profundamente, completamente distante do que um dia foi sonhado por um homem de

posturas radicais. Hobsbawm (1997) classifica as tradições do tipo inventadas em três

níveis que descrevemos a seguir: as que simbolizam a coesão social; as que legitimam

instituições, status ou relações de autoridade e aquelas cujo principal objetivo é a

inculcação de ideias, valores e padrões de comportamento. As práticas inventadas

tendem a ser bastantes gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e

obrigações que procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo:

patriotismo, lealdade, dever, as regras do jogo, o espírito escolar.

Em Xapuri, o retrato que se quer de Chico Mendes, aquele que a cidade

apresenta aos turistas, se enquadra dentro da análise exposta pelo historiador. Antes de

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Chico Mendes, ressalta Zuenir (2003), Plácido de Castro era o maior herói da cidade.

Foi exatamente em Xapuri que foi proclamado o Estado Independente do Acre com a

famosa frase: “Não é festa senhor intendente, é Revolução!” Um século depois o que

estava sendo feito de Chico Mendes e a valorização disso tudo nos é mostrado assim por

Zuenir:

Xapuri, coisa rara no Brasil, tem memória, e já se pode prever o que acontecerá com Chico Mendes. (...) Nas paredes de muitos bares de Xapuri ainda há um cartaz com a imagem de São Sebastião anunciando os festejos do padroeiro da cidade, que divide com o Rio de Janeiro esse privilégio. Como legenda duas frases de Chico Mendes: “Lutarei até as últimas consequências para defender a floresta” e “Quero viver para defender a Amazônia”. Embaixo: “Pague sua promessa, faça sua devoção”. Falar com a viúva do novo mártir sozinha é muito difícil. Não tanto pelo segurança que a protege 24 horas por dia. Pela porta sempre aberta das seis da manha até as nove horas da noite, passam vizinhos, seringueiros, jornalistas, ambientalistas, produtores e diretores de cinema. (2003, p.42)

As imagens trabalhadas como retalhos de uma memória a ser preservada

representam o limite em que Zuenir terá de trafegar. A memória é campo de seleção por

excelência. Aquilo que a cidade preserva pode ser apenas, e é, uma fatia de algo maior.

Zuenir, sem dúvida, perceberá isso no próprio prosseguimento do seu relato mais

adiante. A glamourização vai ao encontro de todos esses aspectos de um cotidiano que,

evidentemente, não vive preso a essa memória, mas que precisa também dela para fazer

de Xapuri um centro de atenção. A partir de Xapuri, Zuenir Ventura entrará em contato

com um universo que para ser entendido precisará sempre da parte para representar o

todo. A tradição começa a ser inventada a partir desses hiatos, nas entrelinhas de uma

história que se, conhecida, precisa ser reforçada em cada ato cotidiano ou solene.

Hobsbawm já nos alertava em algum momento atrás de que o principal objetivo

das tradições do tipo inventadas é a inculcação de ideias, valores e padrões de

comportamento. A disposição de Chico Mendes de lutar até as últimas consequências

para defender a floresta, conforme nos dizem suas próprias palavras, nos coloca na

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fronteira de um discurso em que se revela o personagem cumprindo a missão a que

parecia predestinado. Numa outra passagem o humano em Chico Mendes é destacado

por Zuenir Ventura de forma a não deixar dúvidas de que estávamos presenciando a

recriação de um personagem que trafegava em um labirinto que ora nos coloca ao

encontro do homem e ora ao encontro do herói. Agora ganha destaque o lado humano, a

pessoa simples e cativante; uma clara estratégia usada pelo personagem para a

aproximação com as pessoas comuns, com os companheiros de luta e que era pouco

comum no meio político31 em que militava Chico Mendes fazia se render a seu carisma

até mesmo alguns de seus adversários. É isso que nos fala Ventura na passagem em

destaque:

Para os amigos e até para alguns adversários, Chico era um sedutor. As lembranças, quando conseguem ultrapassar as interjeições e exclamações que pouco informam – “Ele era fantástico!”, “Era incrível!”, “Ah, que homem!” –revelam uma constante não muito comum nas esquerdas. Antes de conquistar as pessoas pelas ideias e projetos, Chico Mendes já havia feito a conquista pela alegria e pelo afeto – pelo coração. (2003, p. 44)

Ao se utilizar dessa situação que enfatiza o homem no que ele tem de mais

humano: a simpatia, o bom humor, a camaradagem, Zuenir Ventura não deixa de

contribuir com os aspectos dos quais falávamos antes – a supervalorização do humano

tende de qualquer maneira a nos levar para uma compreensão de que o homem ali já era

um predestinado por suas próprias qualidades naturais.

Mas a exaltação de determinados valores nobres em um homem comum e do

povo como foi Chico Mendes só pode ser compreendida se analisarmos esse

procedimento por parte dos que deles fazem uso, e particularmente no discurso de

Zuenir Ventura, pela ótica de que nos falava Hobsbawm acerca das tradições

31 Zuenir se refere às esquerdas e a um estereótipo que persegue o movimento e seus principais ícones desde suas origens: o de que nas suas fileiras só tem lugar para os racionais sisudos com a barba mal feita.

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inventadas, de que essas tradições visam sempre à inculcação de valores, idéias e

comportamentos. Fica subentendida a tentativa de sacralização dos paradigmas do

homem que aos poucos vai se tornando um herói.

A segunda parte do livro de Zuenir Ventura é dedicada à cobertura do

julgamento, que começa no dia 12 de novembro de 1990, dois anos depois do crime.

Além do clima de espetáculo e frenesi que vivia a outrora pacata Xapuri, nos dias que

antecederam o julgamento (provocado pela grande movimentação de jornalistas,

estudantes, artistas, ambientalistas, amigos e familiares), aparece neste cenário não de

forma inesperada, e sim surpreendente, por meio de um personagem que na visão de

Zuenir Ventura, rouba a cena. Era Genésio32, que fora dado ainda menino por sua

família aos Alves e estivera com eles até bem pouco tempo, envolvido nos trabalhos

com o gado e nas horas vagas ouvindo distraidamente conversas que seu patrão travava

com as visitas que recebia. Ali Genésio do seu anonimato para se tornar entre as

testemunhas, a grande estrela, como nos afirma Zuenir: “Com uma coragem que

impressionou o júri, ele confirmou o que sabia, e o seu depoimento acabou sendo

decisivo para a condenação de Darly e Darci”. (2003, p.122)

Durante as investigações, estiveram envolvidos com o processo nada menos que

sete delegados e mesmo assim o processo ainda não saíra perfeito como era de se

esperar. Mas as previsíveis falhas processuais seriam superadas com a apoteótica

chegada da justiça naquele distante recanto do Brasil acostumado à força dos jagunços e

à impunidade, pois

durante os quatro dias de julgamento pôde-se assistir ao emocionante espetáculo da justiça chegando ao Acre, depois de décadas de impunidade, para arbitrar o choque entre o avanço que significava Chico Mendes e o

32 A saga do menino Genésio é contada em Ventura, Zuenir. A saga de uma testemunha. In Minhas estórias dos outros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005.

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atraso que representava a família Alves da Silva, a luta entre o Brasil moderno e o arcaico, entre a civilização e a barbárie. (2003, p.124)

Para Ventura, Chico Mendes neste momento já representa uma modernidade de

conceitos e práticas culturais que uma boa parte do Brasil ainda desconhecia

principalmente sobre o “subúrbio” brasileiro que ainda se mostrava capaz de gerar

estirpes como a dos Alves. O dilema brasileiro então está posto da seguinte forma: um

lado que queria colocar o Brasil em outro patamar do seu desenvolvimento e da sua

forma de lidar com as suas riquezas e, ainda outro, que lutava para manter as velhas

práticas de depredação que nos assolam desde o descobrimento. Ao aliar a imagem de

Chico Mendes a esse lado moderno, de um Brasil que necessitava ser ecologicamente

correto, e que já desconfiava que as questões ligadas ao meio ambiente fossem

inevitavelmente a urgência destes novos tempos, Zuenir Ventura coloca-o no panteão

dos heróis.

Mais do que um debate em busca da verdade, o julgamento do século [grifo

nosso] corria o risco de se transformar num show de baixo nível, se fossem confirmadas

as ameaças dos advogados de defesa, que já admitiam que tivessem poucas chances de

evitar a condenação de seus clientes. “Punição, punição! UDR na prisão!” Essa era a

palavra de ordem mais ouvida naqueles dias. Graças ao batalhão de fotógrafos que se

formou numa espécie de barreira entre o público e o réu, não foi possível ver a reação

dos dois condenados à sentença que receberam por unanimidade: 19 anos de prisão.

Enquanto isso, a maior parte dos presentes continuava batendo palmas,

compassadamente e os réus retirados de forma improvisada por uma janela sob a

proteção da polícia.

O julgamento que durou quatro dias teve de tudo, até momentos hilários

quando Zuenir destaca a suposta pureza de intenções de Darly: um homem inocente que

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sabia das últimas notícias pelos jornais de tão dedicado que era aos seus afazeres.

Seguindo as trilhas de um discurso onde estão colocadas na mesa todas as

possibilidades frente à frieza do réu, mas com um júri atento e um corpo de magistrados

sofrendo e sentindo o peso de toda a pressão vinda da sociedade, a premeditada

ingenuidade daquele não nos dá muitas garantias. Zuenir destaca a parte final daquele

“grande duelo” dando ênfase à sarcástica inocência de Darly:

[...] o depoimento de Darly Alves demorou cerca de uma hora, não chegou a conter qualquer revelação, mas foi mais divertido, provocando alguns sorrisos na platéia e muitos na acusação, principalmente quando ele se referiu várias vezes à imprensa. Ao ser perguntado pelo juiz como havia tomado conhecimento da morte de Chico Mendes, ele não hesitou: “Pelos jornais”. (...) E para demonstrar a pacífica convivência que existia entre os dois, Darlyrelata o que ouvira certa vez de Chico Mendes: “Seu Darly, seu caso é fazenda, o meu é reserva extrativista”. (2003, p.166)

Darly, um homem acostumado às durezas da vida rural, quase iletrado, muito

esperto e por isso bem sucedido nas coisas que fazia para ganhar a vida, usa no

julgamento da experiência que o seu passado lhe legara e se coloca sempre numa

posição defensiva e com um discurso cheio de contradições, vai tentando postergar o

inevitável. O julgamento é transformado num grande show [grifo nosso] onde as

personagens presentes, todas de plantão, estão a exigir a justiça a favor do homem que

fora expiado em favor da causa amazônica, e estava agora sendo objeto de

inconfessáveis disputas. Antes, porém, o abandonaram, empurrando-o praticamente à

imolação. Os futuros protagonistas do poder no Brasil e no Acre se fazem presente a

esta solenidade, como se entendessem ou vislumbrassem ali um momento não somente

de afirmação da luta, mas acima de tudo, uma oportunidade de marcar no cenário social

regional os nomes que teriam que suceder o herói imolado num futuro promissor de

mudanças e conquistas que experimentaria o Brasil e o Acre impulsionados, entre outras

coisas, pela sombra da tragédia.

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A última parte do livro de Zuenir é a que nos interessa explorar mais amiúde,

porque é onde, 15 anos depois, ele se encontra com o Acre moderno, um Acre bastante

diferente daquele que Chico Mendes viu. Sua causa ainda continua atual, mas os valores

em debate se ampliaram bastante, como nos provam o atual estado de coisas que

vivenciamos nestes últimos tempos.

Ao longo de nosso trabalho nos empenhamos no esclarecimento de algumas

armadilhas discursivas a que estamos submetidos quando nos deparamos com a missão

de compreender melhor o novo Acre que brota do espólio deixado por seu herói Chico

Mendes. Nas obras pesquisadas e no Acre (nos últimos dez anos) podemos observar a

recriação de um personagem mitologizado, onde seus ideais e paradigmas são

ressaltados de forma exaustiva de maneira a não deixar dúvidas: essa é uma imagem

necessária, que cumpre um papel e ocupa um espaço na Amazônia dos tempos atuais,

que ainda não aprendeu a conviver harmonicamente com a natureza.

No Acre contemporâneo vemos a história ser apropriada por um discurso

contundente (proferido através de variados canais) que visa atingir um público

determinado. Roland Barthes no livro Mitologias elabora um estudo sobre o mito hoje e

afirma que o mito é como um discurso meticulosamente ensaiado, um sistema de

comunicação, uma mensagem, pois,

[...] é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. [...] O mito é uma fala escolhida pela história: não poderia de modo algum surgir da natureza das coisas. [...] A fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista de uma comunicação apropriada: toda a matéria-prima do mito quer sejam representativas quer gráficas, pressupõem uma consciência significante. Esta, porém, não é indiferente: a imagem é certamente mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la. (1993, p.131)

A análise de Roland Barthes nos impõe irremediavelmente frente a um

determinado quadro acerca da realidade do Acre contemporâneo retratado nas obras

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pesquisadas, onde sobresai-se a imagem do herói, que está, como já afirmamos, sendo

fartamente divulgada e cristalizada nos discursos, práticas e monumentos que

proliferam na sociedade acreana. Um discurso meticulosamente ensaiado, treinado e

escolhido por determinados personagens da vida social, com fins e propósitos

exaustivamente elaborados, visando atender a um público relativamente “bom” e

simpatizante dessas informações.

Barthes prossegue: “esta fala é uma mensagem. Pode, portanto, não ser oral;

pode ser formada por escritas ou por representações: o discurso escrito, a fotografia, o

cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de

suporte à fala mítica”. (1993, p.132) Nas entrelinhas do discurso de Barthes está

presente o que falávamos anteriormente: o nome de Chico Mendes nos últimos tempos

foi associado a um universo de representações muito maior do que o que se poderia

imaginar ou esperar, fazendo-se presente em atividades esportivas, artísticas,

jornalísticas, fotográficas e escritas no Acre, na Amazônia e no Brasil. Já citamos

exaustivos exemplos ao longo desse texto do significado dessa recriação e dos

prováveis propósitos a que ele se destina. Retomando Barthes, ele prossegue na sua

análise afirmando que “a fala mítica é formada por uma matéria já trabalhada em vista

de uma comunicação apropriada: toda a matéria prima do mito quer seja representativa

quer gráfica, pressupõem uma consciência significante” (1993, p.132). O discurso

proveniente desse universo mítico relacionado ao nome de Chico Mendes tem sim um

propósito muito claro que é o de ocupar um espaço deixado pela sua trágica (mas, pelo

visto, desejada) retirada de cena. Segundo Barthes (2003), o mito possui um caráter

imperativo, interpelatório: tendo surgido de um conceito histórico, é a mim que se

dirige: está voltado para mim, impõe-me a sua força intencional; obriga-me a acolher a

sua ambiguidade expansiva. Não fica dúvidas ao analisar o resultado de toda essa

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infinita gama de criações (simbólicas ou representativas) acerca do herói acreano,

presentes na sociedade, como estão a nos falar diretamente as palavras de Barthes.

Como dissemos anteriormente, elas têm um alvo, um público que consome e necessita

dessas invenções. De forma mais apropriada Barthes ressalta ainda que

O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo; (...) e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real. O mundo penetra na linguagem como uma reação dialética de atividades, de atos humanos: sai do mito como um quadro harmonioso de essências. Uma predestinação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano. A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere uma evaporação. (...) O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, (...) abole as complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética. (1993, p.163)

O mito organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza e por

isso abole a complexidade dos atos humanos. O que nos afirma Barthes, podemos

facilmente perceber nas inúmeras passagens das obras em análise, onde o homem é

realçado apenas nos seus aspectos engrandecedores: o seringueiro que vai aos Estados

Unidos falar aos poderosos, o homem abnegado que vivia franciscanamente com a

família, mas que lutava por causas que dizem respeito a toda humanidade, o organizador

dos empates, o pacifista, o idealista. O homem que não podia recuar frente à ameaça de

seus inimigos porque estava imbuído de uma missão nobre: salvar a floresta amazônica.

Um “gigante com os pés de barro”, como já nos referimos numa passagem anterior.

Logo esse herói tombará da forma mais banal possível, pelas mãos de um inescrupuloso

pistoleiro que lhe tira a vida em tocaia armada nos fundos de sua própria casa quando se

dirigia ao banho. As condições de seu assassinato (e até mesmo sua própria condição de

vida) nos remetem à compreensão em parte do que significava aquele homem até então

para o Brasil, dentro do contexto que visualizamos por meio dos três autores.

O mito não está a negar nada, não pode negar nada. Está sim a purificar, a

inocentar e a abolir a complexidade dos atos humanos. Se na sua obra Zuenir Ventura

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destaca apenas os aspectos que engrandecem o homem no que ele tinha de mais nobre,

que são os seus ideais, então ele está a contribuir com a mitologização do homem. A

realidade histórica na sua força dialética penetra na linguagem que se transforma e se

mitologiza ganhando aspectos de um quadro harmonioso de essências. É para essa

imagem que Barthes está a nos chamar atenção exaustivamente.

A perspectiva aqui ressaltada por Barthes nos ajudará a melhor analisar e

compreender Zuenir Ventura na última parte do seu livro. Constatamos logo de início

que Zuenir não consegue de fato a ser imparcial, e nem poderia pela forma como ele se

viu ao retratar a delicada condição de um mito em que muitos ainda estão vivos e

podem ainda representar a imagem que quiserem do homem com que conviveram. Ao

visitar o Acre quinze anos depois, ele vai ao reencontro principalmente (será que tinha

outras saídas pela história que ele havia construído antes?) dos velhos amigos de Chico

Mendes (que também haviam se tornado seus amigos), alguns já galgando os altos

postos de comando do poder institucionalizado e outros, senão dentro, agora muito mais

próximos do governo. O outro lado, a outra opinião é pouco levada em conta pelo nosso

autor. Com algum esforço ele entrevista uma ala moderada de pecuaristas. Zuenir não

esconde sua simpatia pela causa e pelos companheiros de Chico Mendes, agora muitos

deles participando das forças de poder do governo. A partir daí é que ele vai formando a

sua impressão sobre o Acre pós-Chico. Na passagem seguinte Zuenir (2003) nos conta

como encontrou o Acre quinze anos depois de sua última visita:

No dia seguinte, quando contei o episódio ao governador, ele se mostrou satisfeito, (...) acreditava ter diminuído a violência com a restrição alcoólica. Realmente muita coisa parecia ter mudado em Rio Branco: o parque da maternidade com seis quilômetros de espaços de lazer, a orla da gameleira, o velho casario revitalizado e a sede do governo, restaurado e que funciona como museu. (...) “O acriano de hoje faz rodinha nos nossos arremedos de shopping, pizzarias, boites e outros bunkeres da moda. No novo Acre, computador, internet e celular começam a invadir as aldeias indígenas”. O reclame é de uma cronista local, diz Zuenir. (p.184)

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O Acre aqui descrito por Zuenir Ventura existe de fato, mas destoa em muitos

aspectos de um outro Acre que não conhece ainda determinadas conquistas e avanços.

Aqui temos um Estado dividido: o Acre onde uma parcela ínfima da população que

galgou nos últimos tempos muitos degraus na pirâmide social e também o Acre da

classe média e do empresariado ligado ao comércio e ao agronegócio. Esses dois

últimos ramos da economia tiveram nos últimos tempos um notável crescimento em

suas atividades e a “Expoacre” está aí como a celebração anual do novo modus vivendi

[grifo nosso] acreano. E o Acre majoritariamente miserável, onde grande parte da

população ainda vive de maneira simples e sem muitas oportunidades de ascensão. É

facilmente constatável que em muitos aspectos a vida desta parcela de pessoas, que

compunham somente uma pequena parte do Acre, mudou, mesmo que uma série de

incrementos esteja a dar nova vida ao estado que acostumou com o moderno desde os

tempos frenéticos das folias do látex, mas carece ainda de muita coisa. Numa outra

passagem Zuenir destaca a impressão que Elson Martins, jornalista e outro velho amigo

seu, teve numa viagem de dez dias que fez ao Juruá. Ele diz que a alegria e disposição

das pessoas era contagiante e por si só simbolizava estes novos tempos acrianos: “os

seringueiros, os ribeirinhos estão libertos, eles que viviam dentro da mata acossados e

tinham medo de chegar à margem do rio, porque era do seringalista. (...) Mas vivem

agora em total liberdade, com garantia da terra, seguro em relação às suas famílias, não

estão mais acossados. Eles perderam o sobrosso”. (2003, p.184)

As palavras de Barthes (1993) aqui parecem proféticas porque uma

predestinação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às

coisas o seu sentido humano, numa espécie de um escoamento incessante, uma

hemorragia, ou uma evaporação (1993, p.163). A realidade descrita por Ventura aqui é

surreal. Negada toda a dialética, toda a contradição e voracidade da realidade histórica,

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fica uma realidade purificada e inocentada, idealizada e isenta de qualquer desafio. O

medo (sobrosso) pode até não existir mais, pois as estruturas governamentais funcionam

melhor agora e, por isso mesmo, a sociedade passou a ter mais segurança, mas, mesmo

assim, a realidade se encontra perversamente invertida33, nas palavras de Ventura.

Reportagem televisiva recente mostrou que um município do Acre está entre os menores

IDH do Brasil, mesmo que sua gente, historicamente tenha uma relação fraternal com o

meio ambiente, o índice de poluição seja zero e as pessoas se sintam bem alimentadas

com a caça e a pesca, mas os benefícios que o poder público deve oferecer ao cidadão

ainda chegam de forma muito tímida ou de maneira proporcional em boa parte do

estado.

Em Xapuri o esperado encontro com os amigos mais próximos de Chico, Júlio

Barbosa e Raimundo Mendes, deu-se na Pousada Xapurys, e a pergunta que não queria

calar aconteceu naturalmente: “o que mudou nestes últimos quinze anos?”. Zuenir

enfatiza a fala de Raimundo Mendes (o Raimundão):

Mudou tudo. Hoje não somos mais humilhados nem ameaçados, somos donos de nossa terra. Queria exemplos? O prefeito, que está em segundo mandato, é seringueiro; eu já estou na minha quarta eleição, um feito inédito; o governador reeleito é engenheiro florestal, a ministra de maior prestígio internacional é seringueira, o líder do governo no senado é daqui, o presidente sempre foi um dos nossos grandes amigos. (2003, p.195)

A fala marcante de um dos amigos mais próximos de Chico nos deixa inquieto.

Os amigos de Chico Mendes chegaram ao poder é verdade, mas, e a floresta? A grande

causa [grifo nosso] continua valendo em suas motivações primeiras? Em capítulo

anterior vimos que mesmo tendo sido criadas e demarcadas as Reservas Extrativistas, as

florestas estaduais, os parques nacionais e as terras indígenas, como forma de garantir

direitos e a sustentabilidade ambiental no Acre, a pecuária também avançou

33 A realidade dos ribeirinhos e caboclos amazônicos continua desumana e as políticas sociais do estado ainda custam muito a chegar aos altos rios e nas regiões mais isoladas.

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sobremaneira e as derrubadas, por conseguinte, e o comércio ilegal de madeira ainda

continuam vigentes no estado e em toda Amazônia. Os órgãos ambientais do governo

em todas as esferas ainda pecam por excesso de burocracia e uma cara ineficiência. A

cidade de Rio Branco passou nestes últimos anos por um processo de “inchamento” de

sua periferia e a cada ano novos bairros surgem, num claro sinal de que há também no

Acre um processo progressivo de êxodo rural, que se acirra com a chegada da

agropecuária nos anos de 1970. O campo, o interior e os altos rios não têm oferecido

condições para que o seu habitante natural lá permaneça. O homem do interior, ao

chegar à cidade, vai certamente se entediar com a “cultura” da periferia e viver da

saudade dos tempos das caçadas e pescarias no seringal e das muitas histórias que,

oriundas daí, agora servem de acalanto. Seus filhos, sem maiores saídas, acabam

engrossando as fileiras do tráfico e da prostituição. É essa a realidade da grande

periferia de Rio Branco e de das outras cidades do interior do Acre, e neste sentido não

compreendemos a afirmativa de Raimundo Mendes quando afirma que tudo mudou.

A atual conjuntura acriana, assim compreendida, se aproxima da análise que

Barthes (1993) faz do mito com a semiologia: “toda a semiologia postula uma relação

entre dois termos, um significante e um significado”. (p.134) Barthes, para se fazer

entender melhor, nos cita um exemplo: um ramo de rosas significa em qualquer situação

paixão, atração, passionalidade. Seria natural se pensar que estamos assim diante de um

significante (as rosas) e um significado (a paixão). Barthes (2003) esclarece que no

plano da análise, estamos perante três termos; pois essas rosas carregadas de paixão

deixam-se perfeita e adequadamente decompor em rosas e em paixão: esta e aquelas

existiam antes de se juntarem e formarem um terceiro objeto que é o signo. (...) Não

posso confundir as rosas como significante e as rosas como signo: o significante é

vazio, o signo é pleno, é um sentido. Na concepção saussuriana, o signo com seus

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constituintes – significante e significado pode ser comparado a duas faces de uma folha

de papel, não se pode cortar um sem cortar simultaneamente o outro. Significante e

significado são entidades mentais, independentes de qualquer objeto externo. O signo é

o mediador entre o pensamento (articulação mental) e a realidade (história). A língua é

um sistema cujos elementos são os signos e cuja estrutura consiste numa rede de

oposições, diferenças e valores. O valor de um signo é determinado por aquilo que o

rodeia e pelos signos com os quais está em oposição.

No mito encontramos o mesmo esquema tridimensional: o significante, o

significado e o signo. Nos alerta Barthes (1993) que é necessário recordar, neste ponto,

que as matérias primas da fala mítica (língua propriamente dita, fotografia, pintura,

cartaz, rito, objeto etc.), desde o momento em que são captadas pelo mito, reduzem-se a

uma pura função significante: o mito vê nelas apenas uma mesma matéria prima. Quer

se trate de grafia literal ou de grafia pictural, o mito apenas considera uma totalidade de

signos, um signo global ou final de uma primeira cadeia semiológica que vai

transformar-se em primeiro termo do sistema aumentado que ele constrói.

Mesmo que notemos que mudanças importantes na política foram

implementadas por todo o estado do Acre nos últimos doze anos, trazendo-nos um ar de

modernidade e nos devolvendo de alguma maneira a autoestima roubada, a mudança tão

festejada por Zuenir, e seus amigos acrianos, me parece que de fato não chegou ainda

para todo o Acre (principalmente para suas “sinuosas e lamacentas” periferias) a não ser

através de um discurso incessante que jorra de forma inflexiva e deformada numa

espécie de hemorragia verborrágica que não consegue se estancar para que os grandes

problemas jamais sejam encarados.

Barthes prossegue corrosivo ao afirmar que “a língua, que é a linguagem mais

frequentemente roubada pelo mito, oferece fraca resistência. Ela própria contém certas

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predisposições míticas, o esboço de um aparelho de signos destinados a manifestar a

intenção com que é utilizada”. (p.152) A semiologia ensinou-nos que a função do mito é

transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência numa eternidade. A

sociedade contemporânea é o campo privilegiado das significações míticas.

A visita à casa de Chico Mendes, diz Zuenir, era um dos pontos obrigatórios.

Ele observa a casa que no final dos anos de 1980 abrigava os Mendes se encontrava

bem conservada e tinha virado ponto de atração turística, visita obrigatória para gente de

todo o Brasil e do mundo: jornalistas, ambientalistas, estudantes e simpatizantes da

causa. Na cozinha, plaquetas indicam os últimos passos do novo herói: “Estou sentado

jogando dominó”, diz a primeira placa. “O jogo é interrompido para o jantar”, diz a

segunda placa. “Me levanto, vou em direção ao banheiro”, está escrito na terceira placa.

E assim por diante, até a última: “no corredor me atiro nos braços de meus filhos e

Ilzamar”. (2003, p.198)

A representação da cena do crime agora está sendo narrada em primeira

pessoa, pelo próprio herói, que “ressurgido” na fala mítica, encontra-se onipresente

entre todos os que visitam sua casa. Seus últimos passos e momentos podem agora ser

revividos e sua casinha, a mais famosa de Xapuri, apesar de estar entre as mais simples,

ganhara outros ares, uma importância que transcende qualquer similitude e que passa a

representar e compor o “cenário íntimo” do mito e se junta a todo um arcabouço de

palavras, discursos e criações pictóricas que compunham a própria “fala mítica”. Para

não parecer por demais parcial, Zuenir expunha também a opinião de quem pensava a

agia exatamente o oposto de todo esse movimento, os que estavam do outro lado da

linha, ou seja, os fazendeiros. O Chico era do confronto, era um homem fabricado, tanto

que, candidato a deputado, não foi quase votado. Outro se mostra mais benevolente: ele

nunca me pareceu uma pessoa intolerante, embora defendesse com unhas e dentes o

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direito do pessoal que representava. Eles demonstram muita desinformação e

preconceito ao falar do movimento conservacionista internacional: “um movimento

mais interessado em defender os interesses do Primeiro Mundo do que os do Acre ou do

Brasil”. Ao movimento, os fazendeiros atribuem a “pecha” que atingiu a todos, ou seja,

“a generalização de que os fazendeiros mataram Chico Mendes, quando aquilo foi uma

briga particular dele com o Darly”. (Ventura, 2003, p. 220)

Zuenir faz aí nessa passagem que acabamos de citar um contraponto a tudo o

que ele vinha dizendo. Os fazendeiros eram os personagens que estavam do outro lado

da linha do confronto. E isso Chico Mendes tinha muito claro. Darly conta em

depoimento citado por Ventura (2003) que uma das poucas vezes em que encontrou

muito rapidamente com Chico, este se dirigiu a ele numa espécie de cumprimento

afirmando que se os propósitos dele (Darly) era fazenda, o dele (Chico) era Reserva

Extrativista. Segundo Zuenir, aqui está o ponto crucial da questão: Chico foi vítima de

quem? Há uma série de questões por trás de uma simples indagação como essa. O que

sabemos é que o ativismo militante de Chico ia de encontro a muitos interesses, e que a

Briga em particular com Darly (o pedido da prisão de Darly articulado por Chico junto à

justiça paranaense, uma vez que aquele era procurado, fugitivo e autor de crimes

naquele estado) poderia muito bem representar tão somente a ponta do iceberg.

Zuenir prossegue dando ênfase ao clima de otimismo que envolve o novo Acre

citando o depoimento de um finlandês a um governador do estado, o que deixa este

ainda mais convicto de suas metas com relação à sustentabilidade ambiental e ao

desenvolvimento: “A floresta para nós é como a igreja; dentro dela a gente encontra a

paz e a harmonia com a vida”. Na Finlândia, ressalta Zuenir, todas as famílias são donas

de um pedaço da floresta. Ainda dando destaque à palavra do governante acreano,

Zuenir diz: “Viana vai citando os produtos com os quais espera transformar a floresta

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numa economia altamente competitiva: o açaí, o artesanato, a borracha, a castanha, a

madeira, os óleos, as resinas, os medicamentos. O Acre, segundo seu governador, tem

condições de oferecer ao mundo em crise ambiental, cercado de poluição e em plena

exaustão de seus recursos naturais, um modelo de gestão integrada, de preservação, de

convivência entre a natureza e o homem, de harmonia entre desenvolvimento

econômico e conservação ecológica”. (2003, p.223)

Ao transformar em política pública o que antes era tese, ele não deixa de

reconhecer sua dívida para com Chico Mendes, de quem é um dos mais dedicados

discípulos. À visão absolutamente atual do mestre, ele atribui à inclusão do tema na

agenda do mundo para nunca mais sair. Esse legado foi-lhe fundamental: Chico deixou

um sonho, um rumo, um conceito.

Mas para que tudo isso pudesse estar acontecendo “foi preciso o Chico

morrer”, já anunciava em algum lugar, um de seus amigos. Zuenir conclui que “a morte

anunciada, o choque provocado no mundo, o sentimento de culpa do próprio país e a

tomada de consciência da sociedade com a questão ambiental, tudo isso acabou

apressando conquistas, obrigando a se fazer depois de sua morte o que Chico não

conseguiu fazer em vida”. (2003, p.226)

Zuenir não nos deixa maiores alternativas entre o homem e o mito, pois sua

conciliação apesar de avançar em relação à Shoumatoff e Márcio Souza não sobrevive

se não se aceitar a versão do herói. A associação da imagem reinventada de Chico

Mendes com o Acre “ecologicamente correto” dos novos tempos é inegável. O sonho de

Chico para muitos de seus amigos já está acontecendo. O rumo que se persegue no Acre

é o da sustentabilidade, dizem suas lideranças políticas, embora a natureza ainda seja

muito agredida. De Chico, no entanto, ficou o sonho.

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Roland Barthes nos dá a possibilidade de conclusão do nosso raciocínio inicial

quando ressalta que,

na exata medida da nossa atual alienação, é que não conseguimos ultrapassar uma apreensão instável do real: vogamos incessantemente entre o objeto e sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade: pois se penetramos o objeto, libertamo-lo, mas destuimo-lo; e, se lhe deixamos o seu peso, respeitamo-lo, mas devolvemo-lo ainda mistificado. (...) certamente, a ideologia e o seu contrário são comportamentos ainda mágicos, aterrorizados, ofuscados e fascinados pela dilaceração do mundo social. E, no entanto, é isso que devemos procurar: uma reconciliação entre o real e os homens, a descrição e explicação, o objeto e o saber. (1993, p.178)

A complexidade do mundo contemporâneo está a exigir e a estimular tais

recriações. O Chico Mendes heroificado vem preencher uma lacuna que, sem ele, talvez

caminhássemos por vias muito mais sinuosas. A ideologia daí “ressurgida” pode ser

tranquilamente questionável, mas o fato é que o mito assim recriado parece buscar uma

conciliação entre o real e os homens e parece difícil falar de Chico Mendes sem

envolver algum tipo de paixão. Zuenir Ventura se posiciona entre o homem e o herói,

busca uma não-definição necessária e conveniente ao seu discurso conciliador, e acaba

por reforçar todo um estado de coisas que servirá também propaganda oficial.

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4. CONCLUSÃO

A Amazônia recriada por Shoumatoff, Márcio Souza e Zuenir Ventura não

difere da velha Amazônia cheia de contradições, pulsações sociais que estão sempre a

transitar entre polos opostos e a despertar o interesse de um número crescente de

pessoas: existem os bem intencionados que querem investir na Amazônia dentro da

legalidade ou vem para a região para o trabalho autônomo, mas existem também os

oportunistas, pessoas que trabalham na ilegalidade e não respeitam as normas

ambientais. Isso tem historicamente sido assim e essa realidade se mostra ainda capaz

de continuar com certo fôlego, mesmo frente à urgência de novas práticas para a região.

O Acre descrito pelos três autores ainda é uma terra ainda no seu nascedouro que busca

uma afirmação, e tem uma identidade ainda em construção, mesmo que já se tenha

passado quase um século de labutas e fábulas que compunham uma história não menos

fabulosa e que agora sofria com a chegada de um modelo que destruía formas seculares

de vida e se mostra incapaz de ditar qual o caminho a seguir. Edilson Martins em

Makaloba34 se refere a esses momentos da história amazônica como tempos em que “o

clima é de bang-bang, daqueles filmes que narram gloriosamente à saga americana da

ocupação do oeste do Estados Unidos” (1983, p.15).

Em fins dos anos de 1980 quando retornava à sua terra natal após uma

temporada no Sudeste brasileiro, fazendo seu curso de graduação, este que vos escreve

viveu a bizarra experiência, compartilhada por tantos que se aventuraram ou

necessitaram sair do Acre por via terrestre naqueles tempos, tendo de percorrer de

ônibus o trajeto entre Porto Velho e Rio Branco. Relembro-me muito bem da estrada

empoeirada e cheia de armadilhas onde o motorista precisava ser muito bom em

malabarismo automobilístico para prosseguir a viagem com a segurança mínima que 34 MARTINS, E. Makaloba: diário lítero-alucinógeno de brancos e índios. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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todos esperavam, mas mesmo assim e a cada minuto estávamos todos nós à beira de um

novo abismo, ao longo do percurso, até que finalmente um longo suspiro precedia a

chegada na capital. Rio Branco, naqueles anos, era um arremedo de cidade e mais

parecia um seringal que havia crescido desordenadamente. Vivíamos então os anos de

chumbo, onde a visão expansionista dos fazendeiros entrava claramente em confronto

com a resistência dos seringueiros organizados nos sindicatos sob a liderança de Chico e

sob esse recrudescimento de interesses e afirmação de ideais, a ampliação da BR-364 de

Porto Velho até Rio Branco (que tiraria finalmente o estado do Acre do isolamento

ligando-o ao Centro-Oeste e ao Sudeste brasileiro) avançava e cada vez mais parecia ser

o grande sonho acriano, paradoxalmente, entrando em confronto com a luta seringueira,

simplesmente porque o tempo não poderia jamais parar.

É neste contexto que surge a figura singular de um seringueiro que exercendo

uma liderança fenomenal sobre os demais rompe com uma prática secular de exploração

e afirma novos ideais e uma nova forma de ver e interagir com a Amazônia e seus

antigos e novos donos. Essa história, recriada pelos três autores que já são do nosso

conhecimento, vem corroborar uma determinada imagem do homem Chico Mendes

para a sociedade. Ao longo desse trabalho foi o nosso propósito mostrar que tudo o que

aqui foi dito tem como base as obras. Esse não é um trabalho ensaístico sobre a

historiografia ou sociologia do Acre no contexto amazônico. Este é antes de qualquer

coisa um trabalho de análise do discurso. A nossa preocupação sempre foi a de buscar

as imagens construídas pelos autores sobre o líder dos povos da floresta nos labirintos

discursivos por eles trilhados. Se em determinados momentos aconteceram digressões, é

porque elas serviam como cenário de fundo e de alguma maneira estão a nos ajudar a

construir uma interpretação mais isenta dessa invenção do Acre contemporâneo, meta

também almejada pelos autores estudados, principalmente Márcio Souza.

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Mas podemos afirmar como já o fizemos, que os autores em discussão

caminham para a reconstrução de um herói mitologizado em suas respectivas obras.

Cada um à sua maneira contribui para a afirmação de um homem que, num “retorno”

discursivo à vida social amazônica, reaparece isento dos males que permeiam o espírito

humano. O que se sobressai então na ótica autoral é o desprendimento, o sonho, a

abnegação, a coragem e a certeza de que “é possível lutar sem perder a ternura”. Esses

aspectos são destacados por Alex Shoumatoff, por Márcio Souza e Zuenir Ventura. Nos

três últimos capítulos deste trabalho a visão de cada um dos autores é bem destacada em

passagens estratégicas de suas obras e que são por nós ressaltadas e analisadas.

A popularização do nome de Chico Mendes na sociedade acreana

contemporânea é destacada e analisada principalmente por Márcio Souza e Zuenir

Ventura, sendo que este último visita o Acre com os amigos de Chico Mendes já no

poder e se mostra satisfeito com os primeiros resultados do que vê. Mas sua análise é

parcial como já mostramos em capítulo anterior. Ao se aproximar das estruturas de

poder Zuenir torna-se presa fácil e seu texto recria o herói ao tentar encontrar uma

suposta verdade. Ambos os autores constroem uma imagem afirmativa do líder

seringueiro o que se mostrou com o passar do tempo, como uma encruzilhada

discursiva. Márcio Souza se volta para as questões mais profundas, estruturais e

políticas da cultura amazônica, nos convida a refletir a viciada relação da memória com

o poder que sempre se deu na Amazônia e destaca na sua análise que somente o homem

amazônico é capacitado para falar sobre a região porque tem conhecimento de causa.

Chico Mendes brota daí com a força do caboclo da região que deve teluricamente cuidar

de sua terra. A chegada do “paulista” nos anos de 1970 iria colocar o Acre

definitivamente numa encruzilhada histórica. O velho Aquiri, palco de tantas lutas e

epopéias no início do século XX, se via agora diante de mais um desafio: como lidar

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com a nova realidade que se impunha pela força e urgência dos novos tempos? Mais

uma vez então se descortina no horizonte o conflito como forma de se chegar à paz.

Tinha sido assim no passado, seria mais uma vez no presente. A realidade de devastação

e desapropriação dos seringais faz brotar a revolta e o sentimento de identidade nos

pacatos homens da floresta e à sua frente um ícone vai aos poucos se firmando e

formando novos conceitos e paradigmas. A Amazônia vivia então um grande paradoxo:

o extrativismo estava superado e a pecuária se descortinava como o negócio da hora.

Mas como, diante dessa inexorável realidade, preservar as nossas desconhecidas

reservas de flora e fauna? Diante desse contexto o líder dos povos da floresta se afirma,

mas também se mostra frágil ante a força do capital e os interesses que visavam à

exploração da região.

É essa a problemática discutida pelos autores. A realidade discursiva recriada

por eles nos remete a um contexto necessariamente de incertezas, de indefinição, de

extremos fronteiriços que estão pulsando mediante a incerta realidade amazônica. Essa

realidade que tem o Acre como o palco principal faz parte de um mosaico muito maior

como diz Shoumatoff. Aqui o nosso herói parte para o sacrifício e destemidamente

enfrenta seus algozes, mas não tinha de alguma maneira como mudar o fluxo da história

ou dos acontecimentos, sabemos hoje, ao nos depararmos com as ampliações

estratégicas de “seus” conceitos e paradigmas.

O que fica então para a sociedade como imagem veiculada nas três obras é o

exemplo de um homem, seu idealismo e coragem que tanto ajuda os que galgaram

certas posições de destaque na política regional. E isso está refletido em monumentos e

nas práticas culturais históricas e discursivas do Acre contemporâneo que requer uma

identidade: a da responsabilidade com o meio ambiente como forma de relegar às

gerações futuras mais qualidade de vida e para que a morte do herói dos povos da

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floresta, o grande ícone acriano, não tenha sido em vão. Mas tudo isso, sabemos, serve a

interesses “maiores”.

Ao longo destes 24 meses de estudos, debates, seminários e simpósios sobre as

questões da identidade amazônica, nos debruçamos no intuito de atingir os objetivos

que firmamos ao iniciar a escrita deste texto, relembrando que o nosso intuito principal

foi investigar as imagens criadas pelos autores supracitados, sobre a trajetória de Chico

Mendes na conjuntura das lutas sociais do Acre nas décadas de 70 a 80 e fazer um

confronto dessas imagens (do herói acreano), esclarecendo de que maneira elas são

utilizadas pelos prováveis seguidores de Chico Mendes, para a invenção de um novo

Acre, fundado no discurso da sustentabilidade e da florestania. Para chegar às

conclusões a que chegamos foi preciso exercer um olhar imparcial, desapaixonado e

nos apoiar sempre no referencial teórico por nós escolhido.

Os teoricos por nós utilizados (Jacques Le Goff, Mircea Eliade, Roland

Barthes, Erich Hobsbauwm, Ferdinand Saussure, Michel Foucault, Robert Scholes e

Northrop Frye) são quem nos fornecem as ferramentas críticas fundamentais, o que nos

possibilitou e à luz de suas teorias uma aplicação analítica do nosso objeto: estabelecer

um olhar crítico sobre a sociedade e sobre os discursos da trajetória do líder acriano a

partir das referendadas obras. Nunca é demais lembrar que todas as críticas à realidade

acreana, sugeridas tanto pelo exame das obras, quanto pelo exame da conjutura

histórica, introduzidas por nós ao longo do texto, são fundamentadas à luz de reflexões

provenientes desses autores. Entendo que é esse o papel do pesquisador, ou seja,

transportar para a sua realidade as reflexões universais e tentar de alguma forma

contribuir com o esclarecimento das gerações presentes e futuras. Essa é uma

responsabilidade da qual este não pode se eximir. Portanto, foi também nosso propósito,

buscar esse esclarecimento. Os três textos analisados, apesar das qualidades que

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possuem acabam buscando uma legitimidade, uma verdade, o que acaba de certa

maneira reforçando a figura do herói.

Chico Mendes, antes de tudo, é um homem, com virtudes e defeitos, e é esse

aspecto será novamente confrontado ao longo de todo o trabalho, assim como o real

sentido e motivos que o levaram a ser o líder que foi.

Mas é com o historiador Le Goff que queremos fazer uma última reflexão

acerca da utilização da memória coletiva pelos grupos hegemônicos da sociedade. Ao

longo deste trabalho fica claro que existe uma imagem e uma memória sendo

“utilizada” exaustivamente por grupos específicos e para fins determinados. Segundo o

historiador essas memórias exercem uma pressão natural sobre a história, hoje fabricada

mediante a turbulência e velocidade das informações que o mundo pós-moderno nos

traz como legado, porque

toda evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pela media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas, e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas. (2003, p.419)

Segundo o historiador, para as elites hegemônicas, o trabalho com a memória

coletiva se descortina então como um dos imperativos dos tempos atuais. Mas essa

prática se mostra também perigosa. São inúmeros os exemplos na história onde tais

procedimentos ganham contornos não muito recomendáveis, pois acabaram por levar a

humanidade em determinados nomentos a experimentar o terror, o genocídio, a guerra e

a divisão. Em um mundo de crise de identidade, onde esta se mostra cada vez mais

fragmentada e com variados matizes, voltamos ao nosso ponto de partida. Que

identidade acriana é forjada a partir das imagens sobre o herói dos povos da floresta

presente nas obras estudadas? As as reflexões do historiador nos alertam de que essa

busca é uma constante nos tempos atuais e nem sempre consegue-se vislumbrá-la: “A

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memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade35, individual ou

coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades

de hoje na febre e na angústia. [...] Mas a memória coletiva não é somente uma

conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. Nas sociedades

desenvolvidas, os novos arquivos não escapam à vigilância dos governantes.” (LE

GOFF, 2003, p.419)

Ao longo desse texto esforçamo-nos para esclarecer que a sociedade acriana

contemporânea vive uma difícil busca de identidade. Os textos analisados nos levam

inevitavelmente à construção da imagem heroificada de um homem que simboliza essa

identidade perseguida, como já exautivamente afirmamos. No entanto, fica claro à

medida que avançamos e de acordo com o referencial teórico que utilizamos, que a luta

pela memória coletiva é também um instrumento e um objeto de poder e dominação.

Portanto, com relação à memória, que é a base da história, que ela continue a salvar o

passado para nos ajudar a ver melhor o presente e o futuro, mas que não legitime jamais

a servidão dos homens ou a sua manipulação e sim e tão somente a sua libertação e

esclarecimento.

35 Conceito muito discutido nos debates acadêmicos da atualidade. Ilustra muito bem esse tema a obra de BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi / Zigmunt Bauman; Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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