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Page 1: Rago Filho, Antonio - O Seminário Marx e sua influência nas CIências Humanas no Brasil - A crítica da Analítica Paulista - o marxismo adstringido de José Arthur Giannotti

Título: “O ‘Seminário Marx’ e sua influência nas Ciências Humanas no Brasil. Acrítica da Analítica Paulista: o marxismo adstringido de José Arthur Giannotti”

Autor: Prof. Dr. Antonio Rago FilhoPrograma de Estudos Pós-graduados em História da PUC-SP

Resumo:O projeto se propõe a examinar a recepção do pensamento de Karl Marx (1818-1883) apartir do Seminário Marx, coordenado pelo filósofo paulista José Arthur Giannotti, cujacomposição reunia Fernando H. Cardoso, Ruth Cardoso, Fernando A. Novais, PaulSinger, Gabriel Bolaffi, entre outros, que buscavam superar os dogmatismos domarxismo vulgar praticado pela esquerda tradicional. Esta Analítica Paulista promoveuuma dada interpretação de viés epistemologista da obra marxiana dividida num jovem enum Marx adulto. Creditava um aporte feuerbachiano essencialista na produção doJovem Marx. Reconhecia a importância do "Marx econômico". Daí a investigaçãotambém centrada na metodologia inscrita em O Capital. Obra que motivava estudossobre os empréstimos metodológicos de Hegel nesse pensador. Daí brotaram váriasteorias. Todavia, em oposição ao autor dissecado, a teoria do populismo assim como ateoria da dependência vão apresentar acoplamentos exteriores ao Marx maduro. Assimnão só se imputava modelos de talhe weberiano da Sociologia da Modernização, mastambém o método progressivo-regressivo da fenomenologia de Sartre, o estruturalismofrancês, e em todas elas perpassava em sua propositura política a perspectiva liberal-democrática. A teoria da dependência que tem como pressuposto a incompletude docapital, acaba por concluir na impossibilidade da alternativa socialista. A modernizaçãoexcludente acaba por ser a única saída. Escapam várias questões dessa analítica: aquestão da emancipação humana, a teoria das abstrações, o estatuto ontológico, oprocesso autoproducente do indivíduo, o processo do ardil do politicismo.

Artigo:“O ‘Seminário Marx’ e sua influência nas Ciências Humanas no Brasil. A críticada Analítica Paulista: o marxismo adstringido de José Arthur Giannotti”

“Seria um cientista ou um visionário que teria namoradocom o linguajar hegeliano?”.

J. A. Giannotti

Desde as suas origens, em fins da década de 50, o grupo de estudos sobre OCapital de Karl Marx foi capitaneada pela figura de um filósofo paulista, altamenteinfluenciado pela fenomenologia e o estruturalismo francês, que acabou por matrizar umcerto modo de interpretação do pensamento marxiano, apresentado em dois momentosdisjuntivos, a obra de juventude que se contrastaria com a da maturidade. José ArthurGiannotti, nascido em 1930, na cidade de São Carlos, é o artífice principal de umesforço analítico que visava a superar o pensamento de esquerda de baixo padrãodesenvolvido por ideólogos hospedados no PCB, o mais influente partido de esquerdana década de 60.

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As posições giannottianas são caracterizadas por um forte viés gnosiológico,entrelaçado pelo politicismo, que questionam as possibilidades históricas do próprio sersocial do proletariado, com o banimento da revolução do trabalho, a recusa daemancipação humana geral, consagrando, desse modo, um marxismo adstringido, quevai se tornando outra coisa, radicalmente distinta do filósofo alemão, na medida em quenega o estatuto ontológico em sua imanência histórica no pensamento de Marx.

Em sua última produção, transcorridas algumas décadas, Giannotti busca dar aderradeira estocada na filosofia marxiana. O filósofo alemão não se libertaria dasarmadilhas metafísicas da dialética hegeliana, pois sem ter efetuado o corte devido,capitula em sua tentativa de fazer ciência, atropelando-se numa utopia política de umarevolução que superasse o estado e o sistema metabólico do capital.

Uma questão de fundo da filosofia giannottiana é o banimento da revolução dotrabalho. José Chasin, o principal crítico desta posição filosófica com sua “imputaçãohermenêutica”, apontou com precisão para o fato de que o marxismo adstringido seconstitui por meio de “operações redutoras que perfilaram uma versão do marxismocircunscrito à condição de lógica ou método analítico e de ciência do capitalismo, para aqual ficou irremediavelmente perdido o centro nervoso do pensamento marxiano, - aproblemática, real e idealmente inalienável, da emancipação humana ou do trabalho, naqual e somente pela qual a própria questão da prática radical ou crítico-revolucionáriaencontra seu télos, identificando na universalidade da trama das atividades sociais seuterritório próprio e resolutivo, em distinção à finitude da política, meio circunscrito dosatos negativos nos processos reais de transformação”.

Desde longa data, Giannotti perspectivou a alcançar a última palavra neste“retornar a Marx”, pois pretende fazer um acerto final e mostrar como há um liameinseparável, que atravessa toda a filosofia de Marx, com vetores oriundos do idealismoalemão, particularmente da filosofia especulativa e mística de Hegel, e como a utopiamarxiana tem na irrealização da filosofia o cerne de sua lógica mística.

Está claro que esta concepção não é nova e não será a última a “liquidar” afilosofia radical de Marx. Bastaria, como modo de ilustração, as posições do marxismoitaliano, capitaneados por Lúcio Colletti em sua obra Ultrapassando o Marxismo.Giannotti rechaça de chofre o esforço de compreender a obra de Marx, procedendo pelomesmo feitio que este fazia em sua crítica de natureza ontológica, ou seja, apropriando-se da integridade do objeto histórico, seja em sua forma ideal ou material, por meio daanálise imanente articulada ao deciframento de sua determinação social, que a constitui,e finalidade histórica. Giannotti rechaça a postura ontológica do autor de O Capital,mostrando a impossibilidade de tal “retorno a Marx” que não seja por meiointerpretativo. Afinal de contas, na “família” dos marxistas – de Engels a Lenin, deGramsci, Lukács a Althusser, podendo incluir Colletti, Gorz e Castoriadis, por exemplo,já que tudo é possível, angula Marx também por seus efeitos – não há uma penca devisões e posições díspares e divergentes que pretendem desdobrar os conceitosmarxianos? Em resposta, afirmamos que não há como fazer tal “retorno” sem passarpelas objetivações históricas de tal “utopia”.

Ao explicitar as intenções do grupo de estudo de O Capital de K. Marx,Giannotti explicita que “Esse seminário se tornou um mito e, em função disso, foram

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esquecidas suas limitações e suas implicações. Ora, tratava-se de um grupo deestudos./.../ Cabia ler o próprio Marx e foi o que fizemos. Comecei com a análise doprimeiro capítulo d’O Capital e me lembro que ela já foi motivo de uma polêmica comBento [Prado Jr.], pois ele, como bom sartreano, queria encontrar ali uma antropologiafundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano de umalógica. O seminário era variado, somando pontos de vista diferentes, cada um trazendosua própria experiência. Depois do seminário, jantávamos e discutíamos políticabrasileira”.

A chave da interpretação de Giannotti reside na célebre distinção de raizkantiana entre “contradição” e “contrariedade”. É incapaz de pensar a realidade pormeio de uma teoria das abstrações razoáveis – como o projeto chasiniano daredescoberta de Marx nos revelou – , mais ainda, como as duas ordens são distintas edescentradas, o pensamento jamais poderá agarrar a raiz das próprias coisas. Ele se põe,portanto, no campo da linguagem. É forma de pensamento. Autonomizado. A verdadeestá no âmbito da Lógica. Sendo assim, há uma impossibilidade do pensamento comopensamento concreto. De acordo com o filósofo da Analítica Paulista, esta posiçãomarxiana está inteiramente carregada de viés hegeliano, de misticismo lógico.

Intentamos seguir suas idéias e posições ao largo de nossa investigação,detendo-se em suas principais obras e depoimentos. No que tange às suas própriasconvicções filosóficas, de que lado está o filósofo? “Não prego nenhuma posiçãofilosófica. Sou apenas um reator: eu reajo às minhas paixões. Eu me apaixonei pelafenomenologia e tentei, por meio do estudo de intencionalidades noemáticas, entendermelhor o que era a Lebenswelt (o mundo da vida) de Husserl. Isso me predispôs aatentar para os nexos do capital na vida cotidiana. Depois me apaixonei por Marx e quisver como essas intencionalidades podem ser contraditórias e ocultar ao mesmo tempo asatividades visadas individualmente. Terminei me apaixonando por Wittgenstein namedida em que ele estoura a noção de proposição e amplia a própria idéia deexpressão. E assim por diante. Afirmar que possuo posição filosófica seria falsear aperspectiva correta, pois o filósofo brasileiro é simplesmente alguém que luta contravagas, é um ‘antivaga’ ou ‘antivoga’. Nesse sentido, o traçado da minha vida é aquelede um professor, que vê na boa formação de seus alunos uma forma de incentivar aresistência a pensamentos que não têm raízes em nossa experiência cotidiana. Daí essamistura de investigação própria e de polêmica. Estou sempre pensando por meio dealguém contra alguém”.

Sobre a sua relação com o marxismo, o filósofo também esclarece o seuverdadeiro interesse filosófico. “Sempre me interessei mais por Marx do que pelomarxismo. Andei atrás da idéia de como é possível encontrar parâmetros de condutaque sejam ao mesmo tempo identitários e contraditórios. Isso implica pensar, de umamaneira muito cuidadosa, a distinção feita por Marx, en passant, entre a históriacontemporânea das categorias, seu desdobramento formal, e a história do vir-a-ser: deum sistema. De um lado, como as categorias se repõem através de comportamentos,particularmente o processo de trabalho, cujos parâmetros são reafirmados e adaptadosno fim do ciclo produtivo; de outro, como a história vai construindo situações einstituições determinadas – o dinheiro, o trabalho livre, etc. – que passam a ter novosentido quando se integram num novo sistema. Existe nessa passagem uma invenção,uma liberdade, que não está configurada no mero decorrer do tempo. Mas isto abre umacesura entre a regra e o processo efetivo de segui-la, pois só assim a repetição da regra

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pode desenvolver sentidos que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixamrastro cujo significado vai ser aproveitado num novo sistema normativo”.

Refutando a lógica hegeliana, que “parte do pressuposto de que a expressividadese dá no nível do conceito, da relação silogística da regra com seu caso”, e também avulgata marxista, que visa a “antepor à lógica formal uma lógica de contradição”,Giannotti recorre aos supostos da Lógica de Wittgenstein, porque “Sem uma ampliaçãodo conceito de expressão, acabaria caindo na besteira de imaginar que existe, de umlado, uma lógica formal e, de outro, uma lógica da contradição, e de achar que estaúltima consiste em ver os objetos como ao mesmo tempo iguais e contraditórios”.

Qual é sua solução para esta duplicidade? “Acontece que é preciso legitimar essaduplicidade. Mas para mim existem sistemas formais e lógica, o estudo de váriasgramáticas. /.../ Afirmar a existência da contradição real não eqüivale a afirmar aexistência da luta e dos antagonismos, implica ainda transformar o real num logos,numa forma de expressão. Enquanto isso não for explicado de um ponto de vistadistante da especulação hegeliana sobre o Absoluto, a crítica de Marx à economiapolítica e ao capital deixa de Ter sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capitale trabalho se contradizem”.

O que Giannotti deixa de lado inteiramente é se este seu amarramento aoconceito de expressão, no sentido wittgensteiniano, o livra dos problemas da filosofiaespeculativa. Isto, aliás, será uma constância. A versão é o que importa, será sempre oelemento preponderante face ao pensamento marxiano. Este é um padrão decomportamento filosófico muito usual nele, pois de repente põe na boca de Marx assuas próprias falas e perspectivas, os seus próprios interesses. O que resulta naquilo queChasin chama de marxismo adstringido, corporificando-se nas derivações próprias às“imputações hermenêuticas” exteriores ao objeto considerado.

Em seu opúsculo Marx: vida e obra mais do que apresentar as idéias dorevolucionário, é uma chance para José Arthur Giannotti explicitar as sua profundasdiferenças com a ontologia do ser social de Karl Marx. O que permite ao autorapresentar sob a forma popular, em tom rasteiro, as suas imputações hermenêuticas.Segundo Giannotti, não se trata de tentar o impossível, a saber, reproduzir o real pelasabstrações razoáveis até descender à efetividade concreta enquanto pensamentoconcreto. É impossível alcançar plenamente a objetividade no plano da idealidade. Noprincipal formulador da Analítica Paulista, a razão é sempre descentrada com relaçãoaos seres reais. Há um giro ou rebatimento lógico que diz respeito sempre ao giro dopróprio pensamento. A verdade não é concreta, como acredita Marx, pois, ao se passarno plano do pensamento, opera na esfera das regras lógicas específicas à idealidade.

Giannotti passa por cima do recurso à análise imanente do pensamentomarxiano. Por essa razão, responde que é muito complicada a posição daqueles queintentam estabelecer uma diferença entre pensamento de um autor e de seus discípulos.Opta, desse modo, já que uma interpretação abre para múltiplas interrogações desentido, para uma construção subjetiva que articula uma “leitura incoerente”, comesse procedimento, assim nos parece, deita e rola, o que objetivamente significa odesrespeito pelas próprias formulações de uma obra ou autor. No caso, a filosofia deMarx. Esta reporá o “fantasma da Filosofia”, que é a crença metafísica, naspossibilidades objetivas de instauração no mundo de formas do pensamento. Suajustificativa: “Por mais despretensiosa que pretenda ser esta minha introdução aos seus

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pensamentos, ela há de levar em conta que está sendo escrita depois da derrocada domarxismo como força social. Por isso vamos adotar o termo ‘marxiano’ para indicar oque é relativo ao próprio Marx, reservando o termo ‘marxista’ às idéias e aos processossociais que invocaram seu pensamento, mas com muita cautela”.

Cautela diante da crítica de natureza ontológica, que pretende capturar aestrutura objetivada na imanência própria à idealidade produzida por Marx. SegundoGiannotti, os textos não possuem esta objetividade, pois se constituem numa janelaaberta para interpretações e dações de significados. Nesse sentido, “Não convémexaminar os textos tais como se apresentam no cruzamento de suas várias dimensões,considerando-os como um baluarte a ser conquistado por várias frentes? Sob esseprisma prefiro cair numa leitura às vezes incoerente do que pressupor no texto umaharmonia que ele não possui, muito menos ensaiar uma reconstrução que expurgassequalquer contradição do terreno que o próprio Marx balizou, pois me importa sobretudomostrar o caráter muito particular que assumem os conceitos pelos quais ele tentaentender o processo de desdobramento do capital, como esses conceitos se conformamna tentativa de revirar a dialética hegeliana, ao invés de pensá-los simplesmentecomo os únicos parâmetros capazes de pôr a nu a realidade do capitalismo moderno. Ese chegar a perceber contradições no seu discurso, prefiro antes de tudo ficar atento aoslimites do dizer e do pensar que elas estão indicando”.

Contrapondo-se publicamente ao principal crítico da Analítica paulista,Giannotti responde ao texto de José Chasin inscrito na obra Pensando com Marx (SãoPaulo: Ensaio, 1995): “Ao dizer que ‘marxiano’ diz respeito ao que o próprio Marxescreveu, e ‘marxista’, a tudo aquilo que foi feito devida ou indevidamente em nomedele, isso não nos livra da responsabilidade de refletir sobre sua obra levando em contaas leituras e tudo aquilo que elas provocam. Sem dúvida essa distinção serve parasublinhar as contradições entre o que ele mesmo ensinou e o que pregaram em seunome, mas não deve criar a ilusão de que se pode reler Marx sem ter o marxismono horizonte.”

Então, o filósofo de São Carlos, de seu ponto de vista, acrescenta que opensamento de alguém sempre será perpassado por seus continuadores, que completamou modificam o pensamento de um clássico. Afinal, “assim como não se pode distanciaras teses de Aristóteles do aristotelismo, pois este as vai esclarecendo conforme elasmesmas se desdobram e se contorcem, também o pensamento de Marx esfolha seussentidos, tendo no horizonte as vicissitudes do próprio marxismo”.

Como já podemos depreender de seu discurso, o filósofo paulista procede domesmo modo que em sua obra As Origens da Dialética do Trabalho (Difel, 1966), lê omundo a partir de sua ótica fragmentada e do ponto de vista do indivíduo egoísta.Recorde-se que, para ele, os dois Marx continuam a existir. Há um “darwinista”,evolucionista, como também, um “hegeliano”, “místico lógico”. Há um que fala nacentralidade da atividade prática sensível, da práxis; há outro, que pensa de modoespeculativo e místico a lógica do capital e sua superação pela revolução da “classeuniversal”.

A sua “leitura incoerente” que, em verdade, não é novidade nos críticos de Marx– preside por exemplo concepções tão díspares como as de Althusser e Thompson – ,assevera a mesma raiz do idealismo ativo: “logo no início de sua carreira já se

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encontram in nuce os elementos que serão desenvolvidos muito mais tarde, marcando-apara sempre. As diversas maneiras pelas quais vai digerindo a dialética idealistaindicam como se reporta ao quadro teórico delineado pelo idealismo alemão. Por maisque se consagre ao estudo da realidade capitalista, seus adversários sempre imputarãoao seu pensamento o defeito da Metafísica. Mas não seria metafísica a própria realidadedo capital?”

Giannotti bate pesado contra Marx, pois supõe falsamente que o filósofo alemãosubstituirá o “Espírito Absoluto” pela “História” regida por uma teleologia de fundoreligioso. Considera que o equívoco de Marx se daria em função de sua proposta de“realização da Filosofia”, na medida em que no desenvolvimento da “lógica do capital”,pela negação da “classe universal” própria ao desenvolvimento das forças produtivasmateriais, não pode nascer uma consciência totalizadora da história humana.

Desse passo, para uma afirmação que lhe garante o acesso à lógica de Marx,afirma de pés juntos que “é preciso levar muito a sério a advertência do próprio Marx deque suas categorias não são unicamente construções do analista, mas tentam captarformas de pensamento (Gedankenformen) pelas quais atuam efetivamente nocumprimento de suas respectivas tarefas”. Giannotti não se dá conta, ou melhor, não dizao leitor, que sua “leitura incoerente”, que se afasta da “doutrina ortodoxa” de umprisma só, de um único ponto de vista, já está vacinada e amoldada à toda umaprodução ligada à teoria dos “jogos de linguagem” de Wittgenstein, e que continua arecorrer a empréstimos do estruturalismo de Lévi-Strauss, do sociologismo reificado deDurkheim, reificado, porém, de quem acaba se apadrinhando.

Mas se Giannotti sustenta que sua leitura, ou a sua interrogação dos sentidos esignificações da lógica marxiana, irão passar pelo marxismo (os fiéis ou não discípulosde Marx), não é isto que irá apresentar, pois se vale de “novos paradigmas”, no casoespecífico, os “jogos de linguagem” de Wittgenstein, que possibilitaria decifrar a“gramática do capital”. E a teoria da expressão, lacuna que constata na obra de Marx.

Com a pretensão de descartar e liquidar o mais rapidamente possível a“redescoberta de Marx”, identifica nesta um caráter idealista, na medida em que estariacontaminada com o “vírus do misticismo lógico depois de terem sido mordidos pelohegelianismo”. Estranha posição de quem demonstra a impossibilidade da consciênciareproduzir o real enquanto “concreto pensado”. Giannotti, porém explicita de modomais visível o seu posicionamento: “Diria que se trata de um hiper-realismo, umatentativa desesperada de saltar a dualidade do ser e do pensar, mas que me pareceretomar um caminho que só pode levar à intuição intelectual do universal no caso.Contra Lukács, que aceita como um fato a passagem do universal para o singular pormeio da particularidade, Chasin pretende expurgar qualquer viés gnosiológico, qualquerseparação entre o ser e o pensar. As abstrações, mesmo aquelas razoáveis, que nãopossuem referente definido mas servem para estruturar o pensamento, resultam, comoindica o próprio Marx, de operações praticadas pelos próprios agentes. Uma ‘análiseefetiva e sua correlata produtividade só podem se manifestar pela escavação direta dospróprios objetos, reconhecidos como entificações engendradas e desenvolvidas pordistintos movimentos contraditórios’, pois ‘tudo o que existe, tudo o que vive sobre aterra e sob a água existe e vive graças a um movimento qualquer’ (primeira observaçãoda Miséria da Filosofia), ‘ou, por outros termos, quando a determinação é voltada à

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esfera particular da sociabilidade’.”

Giannotti imputa ao “hiper-realismo” chasiniano, assim, a mesma lógica formalque diz encontrar na visão de Marx, perpassada por uma “intuição intelectual douniversal”, própria do idealismo ativo, que busca ao buscar a identificação de umsujeito absoluto, tem como virtude a fabricação de uma consciência totalizante rente àscontradições do movimento real. Aliás, como pretendemos mostrar, é Giannotti quemestá todo devorado pelo logicismo. Marx, ao contrário desta “imputação hermenêutica”,jamais poderia ser acusado de “misticismo lógico”, pois não se encontra uma sobra ouresquício de idealismo ou filosofia especulativa em seus trabalhos. Como assegura compropriedade Lukács, não há na obra marxiana nenhuma afirmação que não seja denatureza ontológica.

O filósofo do marxismo adstringido prossegue com sua exposiçãodesqualificadora: “A partir daí Chasin passa a falar de uma ‘intensificação ontológica’da categoria simples a fim de que ela possa transformar-se em complexa e mais renteaos fenômenos socioeconômicos. Dois pressupostos se infiltram nessa maneira depensar: o de que um movimento pode ser simplesmente lido como uma contradiçãode fato e o de que uma categoria ela mesma, porque resulta de procedimentos sociaisdefinidos, de uma abstração sendo operada pelos próprios agentes em estudo, possuia virtude de vir a ser carregada de realidade efetiva. Somente não se sabe qual é osentido de uma contradição de fato, nem como uma categoria que não seja momento doAbsoluto tem a virtude de pôr seus casos. Poucos se livram do vírus do misticismológico depois de terem sido mordidos pelo hegelianismo”.

Está claro para o crítico da Analítica que se torna um procedimento lógico o deseparar o modo de produção teórico do modo de produção real. Além disso, errohegeliano, não é possível a categoria contradição como categoria real ser identificada àprodução pelos próprios sujeitos históricos, porquanto, pela natureza do capital, asrepresentações são ilusórias.

Vejamos a confusão estabelecida pelo logicismo especulativo do filósofocebrapiano. Em “Marx além de Marx”, título emprestado de Antonio Negri, no CadernoMais! do jornal Folha de S. Paulo, de 5 de novembro de 2000, Giannotti,desconsiderando inteiramente a Teoria das Abstrações da filosofia marxiana, se vale deuma “contradição lógica”: “Seria possível seguir regras contraditórias? A perguntaparece paradoxal, visto que a contradição tem a virtude de inibir qualquer conduta.Como obedecer ao comando ‘mate e não mate’? A questão, pois, só pode Ter sentido seas representações que pilotam o comportamento dos agentes forem negadasradicalmente na perseguição dos efeitos. Se esse for o caso, não se está investigandouma curiosidade gramatical, mas um modo muito peculiar de seguir uma regra, cujosresultados são o inverso daquilo a que o agente visa no primeiro momento. Isso é muitomais do que as conhecidas conseqüências involuntárias de uma ação”.

Está claro que Giannotti não perdeu o seu vinco com a estreiteza do pensamentofenomenológico, que busca a apreensão categorial – enquanto forma de pensamento –pela intencionalidade e sentido dados pela consciência. Nem Marx nem Chasin falaramdesse absurdo. Daí, a idéia de contradição e a apropriação das contradições reais, nalógica giannottiana, serem problemáticas. Se para Marx, um ser sem objetividade éuma absurdidade, as categorias relacionais e carentes exprimem formas de sereshistóricos, modos de existência, para Giannotti, ao contrário, “cada categoria é uma

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forma de pensamento”.

Em sua ruptura ontológica, ao recusar todo o aparato teórico anterior prenhe dafilosofia da autoconsciência, Marx pretendia fundar uma nova filosofia colada à própriaraiz das coisas. Todavia, Giannotti argumenta que “pedregoso será esse caminho devolta às próprias coisas”. Toda a sua interpretação será o de interrogar “em poucaspalavras, como a dialética especulativa há de servir de modelo a um novomaterialismo”. Um dos equívocos manifestos em Marx, dado pela ontologia do lógos,segundo Giannotti, é o de confundir os planos, da universalidade abstrata com as formassensíveis, não percebendo a natureza peculiar da “contrariedade” e da “contradição”. Oreal sempre apresenta oposições, no entanto, isto não conduz à negação da ordem dascontradições. Capital e trabalho formam essa situação, que não leva necessariamente àultrapassagem numa nova síntese produzida por um Absoluto.

Segundo sua exposição, a contradição entre o desenvolvimento das forçasprodutivas materiais da sociedade em contradição com as relações sociais de produçãoexistentes – cerne da teoria marxiana -, levaria a duas leituras inscritas na própriainterpretação de Marx. “Na primeira versão, o homem como ser-genérico é posto noinício e no fim da história, seguindo um processo darwiniano de evolução dasespécies. É o ponto de vista predominante quando Marx sublinha o aspecto histórico-natural desse movimento.”

Como se vê, Giannotti deforma de modo absurdo - mas não destituído dedeterminação social e, portanto, de finalidade - as idéias de Marx aproximando-o dageneridade muda de Feuerbach, porém modulado pelo evolucionismo darwinista. Numrebaixamento total, o autor prossegue com seus delírios especulativos: “Em virtude desua própria generalidade reflexionante, como acontece com as espécies animais cindidaspela oposição macho-fêmea, a rede das relações sociais se particulariza segundo o modode apropriação (propriedade) do excedente econômico. E a história se constitui, assim,graças à sucessão temporal dos modos de produção, numa evolução contínua queculmina no modo de produção capitalista. Neste último passo, a oposição entre trabalhomorto e trabalho vivo se cristaliza na contradição entre capital e trabalho, a qual, sendolevada a seu limite, cria o movimento de sua própria superação, repondo assim ageneralidade do homem numa forma mais perfeita, o comunismo”.

A partir daí, Giannotti identifica na visão marxiana uma história teleológica de“cunho religioso”. Ridiculariza a revolução humana e a posição revolucionária de Marxcomparando-o a um verdadeiro profeta: “A estrutura do capitalismo constituiria o termofinal de um longo processo evolutivo, cuja superação culmina na reposição dauniversalidade primeira em sua plenitude, salvando assim a humanidade dopecado do trabalho e da luta de classes”.

Feita a chicana, típica de uma certa prática deformante dos filósofos, Giannottimostra a impossibilidade do pensamento marxiano e marxista de refletirem ascontradições das classes sociais no modo de produção capitalista. “Seja do ponto devista historicista, seja da óptica da estruturação do sistema capitalista, a dificuldadecontinua sendo pensar a luta de classes como processo contraditório, cujo movimento declausura requer a intervenção de uma aparência necessária. Sem esse jogo necessáriodo aparente e do efetivo, do desenvolvimento de formas categoriais e empuxo das forçasprodutivas, não haveria contradição real, pois a mera oposição de formas ou de forças

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não pode, sem mais, ser dita contraditória. Mas disso resultará uma série de problemasrelativos a uma lógica do sensível, que, como veremos em seguida, escapa ao âmbitotradicional do marxismo”.

Como Giannotti não compreende o processo da individuação social no interiorda interatividade humano-societária, evolver da autoconstituição humana no bojo decontradições reais, não compreende a lógica onímoda do trabalho, porquanto tudo searma pelo construtivismo dado pelos juízos extraídos de regras gramaticais, regras dalógica. O seu apelo maior, como se sabe, é mostrar o caminho pedregoso de Marx. Asua “relação ambígua” com a filosofia especulativa de Hegel.

No final das contas, ele insinua, seria Marx um visionário ou um cientista?“Desenvolve Marx uma análise científica ou simplesmente está propondo umametafísica do social?” Segundo Giannotti, o filósofo alemão tem um modo de ver a“Ciência” que está mais próximo dos idealistas alemães do que a dos ingleses efranceses. A “Ciência” especulativa alemã, “Esta, como sabemos, se converte deimediato numa ontologia do lógos, pois a identidade in fieri dos elementos do discursodeve ser a mesma das unidades da realidade em movimento racional. Obviamente essaidentidade não pode ser mantida pelo marxismo, pois este nega que tudo, em últimainstância, se revele momento do Espírito. O que vem a ser então uma dialética dacontradição que não tem o Absoluto como termo de partida e termo de chegada?”

No entanto, esta indagação virá com a resposta devidamente antecipada: “Najuventude ou na maturidade por certo encontramos o mesmo esquema pelo qual umuniversal abstrato, a essência genérica do homem, há de converter-se, graças ànegação e alienação, provocadas pela divisão social do trabalho, e à atividaderegeneradora do proletariado, no universal concreto do comunismo. Mas essanegatividade possuirá a mesma lógica interna ao funcionar em estruturas diferentes?”

No ensaio “Dialética futurista e outras demãos”, Giannotti afirma: “Se anegação pode ter vários significados, se a nenhum cabe sentido originário, torna-seimpossível separar radicalmente a contradição da contrariedade. /.../ Mas desse meuponto de vista torna-se crucial examinar como as oposições antagônicas se articulam ese diferenciam. As mudanças de forma pelas quais passam os produtos do trabalho,segundo as análises de Marx, entendidas como expressões de um produto por seu outro,aparecem então como um objeto privilegiado para examinar como é possível queagentes sigam regras contraditórias. Sob esse aspecto, contradições passariam a existirna realidade, mas apenas naquela realidade que ela mesma é modo de expressão,forma de discurso tecendo uma forma de sociabilidade. Daí o interesse renovado em seestudar a fonte inspiradora dessa problemática: a lógica especulativa hegeliana.”

Da mesma forma, se interroga: “Ao elaborar um novo conceito de capital,dotado de uma gramática própria, não empresta à alienação do trabalho uma novadimensão, aquela de fetiche?” Assim, Giannotti exprime seu ponto de vista, queconsidera autenticamente científico, porque professa a neutralidade axiológica aoapresentar o mundo por suas expressões lógicas. Giannotti acredita que está procedendonos mesmos moldes de Marx, todavia, sempre que pode anuncia a adesão marxiana aoprocedimento crítico de Hegel. “É porque a crítica possui o sentido hegeliano de pôr emxeque a positividade do ser que o capital poderá ser entendido como sujeito-substânciaque requer a desmistificação das estruturações aparentes. Mas se esse procedimento

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imita o movimento das determinações de reflexão da lógica da essência, tal comoHegel o descreve, seu fundamento, em vez da Idéia, será o desenvolvimento das forçasprodutivas. Não somos então obrigados a esmiuçar o texto de Marx, a nos demorar nasconexões de suas formas lógicas para então compreender o próprio objeto a que elevisa?”

Ou, em outra passagem adiante: “No entanto, convém não perder de vista queMarx, embora aceite que as contradições tenham sentido, nunca se propôs a estudarcomo isso pode ser possível, porquanto para ele existem contradições na realidade, desorte que o discurso pode falar delas precisamente porque existem da óptica da não-identidade. Já que existem, nossa tarefa é conhecê-las. Frisarei /.../ que as categoriasdo modo de produção capitalista são formas de pensar, conseqüentemente formasdiscursivas, mas não é por isso que pensamento e realidade se identificam, como setodo ser fosse racional e vice-versa. Ao tratar de fazer Ciência, embora a seu modo,Marx sublinha a diferença entre o ‘concreto espiritual’ (geistiges Konkret) (G, 22) dateoria e o concreto tal como ele é e permanece sendo, a despeito de todo esforço deteorização. Pensa esse esforço em termos de uma apropriação, que produz seuresultado de verdade, de modo diferente, entretanto, das outras apropriações efetuadaspela consciência”.

Recorde-se, mais uma vez, que estamos diante de um novo Sr. Szeliga, queapresenta o mundo sempre por uma lógica especulativa, que busca diferenciar o terrenopróprio das regras gramaticais que são “formas do pensamento”. Porque, “Se Marxconcebe a consciência teórica e a consciência artística sob o mesmo paradigma daprodução coletiva, não é por isso que a transposição do material para o cérebro segue asmesmas regras nas ciências e nas artes. E o que importa é a especificidade dessasregras, que não são regras do pensamento ou da imaginação em geral, mas seconformam e ganham sentido junto dos conteúdos apropriados”.

Como se pode extrair disso, Giannotti mais uma vez põe a sua colher decontorcionista para sua interpretação enviesada. Do seu ponto de vista, os termosproduz e diferente significam que são objetos existentes numa dada gramática real, masque são também interpretações de sentidos múltiplos criando outra gramática no campoda lógica. O que tornará grave sua interpretação é que passará a recortar vários textosmarxianos numa colagem às deduções a partir das totalizações de um Absoluto, Marxconstruirá a partir de uma ordem de oposições para uma lógica de contradições, a fimde alcançar o Aufhebung do capital pela revolução do trabalho (que não veio e nãovirá), ilusão das ilusões que jamais pode ser atingida.

A dação de sentido, no universo das contrariedades e contradições, aqui, natransmutação giannottiana, a partir de seus vícios logicistas, reside no fato de que arazão é sempre descentrada com relação ao ser, a verdade se situa sempre no planoda construção lógica. Há, portanto, duas ordens de realidades. A ordem construída pelosjuízos lógicos e aquela expressa no mundo das coisas. Vícios logicistas, diga-se depassagem, que não estão isentos de determinação social, de perspectiva e horizontesocial, sentido posto em seu próprio ser social. De Giannotti poderíamos dizer, domesmo modo que Marx se dirigiu às boas intenções dos jovens hegelianos, que“nenhum desses filósofos teve a idéia de perguntar pela interconexão da filosofia alemãcom a realidade efetiva alemã, pela interconexão da crítica deles com a própriacircunstância material deles”.

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Segundo Giannotti, em sua “visão de sobrevôo” (Wittgenstein), o cientista deveabandonar a idéia de possuir uma visão privilegiada do todo histórico por representar osinteresses da classe trabalhadora e a ilusão de que poderia abarcar todos os segredos deum corpus teórico de um único ponto de vista. Entre o decifrar da lógica do capital, como seu modo de ver a “Ciência”, e a postura revolucionária de “realização da filosofia”,de intervir “privilegiada e ilusoriamente”, Marx não teve como resolver os impasses queele próprio se enredou. “Por isso desconfio que entre o pensamento econômico de Marxe seu pensamento político se abre um abismo travando a continuidade de seu trabalho.Não é à toa que permanece inacabado. Marx, como os melhores pensadores doocidente, termina por levar ao limite uma forma de pensar, sua atividade criadora émais forte do que a armação que levantou, de sorte que, quando seu discurso perde opé, não lhe resta outro recurso a não ser escrever textos inconciliáveis entre si”.

Se não, vejamos.

“Haveria um corte epistemológico, como pretende Louis Althusser? Ou o corteseria sobretudo político, como defende Michel Löwit (sic)? Acredito que as duas tesessão defensáveis, mas tendo a pensar que a ruptura se dá sobretudo a partir do momentoem que Marx, afastando-se definitivamente de Feuerbach e compreendendo o alcanceda teoria valor-trabalho, elaborada por David Ricardo, formula sua noção de capital,cujo desdobramento meramente conceitual substitui a lógica do sensível. Em vistadisso, o mundo invertido das relações sociais adquire estatuto ontológico muitoparticular, que permite o emprego sistemático da contradição no sentido hegeliano dapalavra, de sorte que todos os conceitos produzidos pela análise do trabalho alienadosão torcidos para adquirir novos significados”.

Se isto é verdadeiro, então Marx é um contorcionista que desdobraespeculativamente um conceito emprestado à economia política – não vai àrealidade, mas opera no plano da lógica, na esfera da idealidade – para a partir disso,formular seu ataque ao capital. Na mesma linha, se Marx está submerso às formulaçõesde Ricardo sobre a noção de proletariado, cada vez mais desefetivada num mundo deenormes riquezas, deduz a missão histórica do proletariado como batalha especulativae não extraída das possibilidades objetivas do ser social em seu evolver histórico.

Dessa maneira, há um imbróglio que Marx não pode resolver. E aí reside obanimento da revolução do trabalho no projeto giannottiano: “Que base formal teria oproletariado para se constituir em classe quando as categorias mais complexas dosistema fibrilam, isto é, colocam-se como pressuposto das ações dos atores sem contudofornecer-lhes os meios de medir a parte da riqueza social que lhes cabe? Como acontradição entre capital constante e capital variável, sempre sendo pressuposta, poderáencontrar suas determinações quantitativas, que somente se configuram na comprovaçãodo ato de medir? E se, além do mais, se esboroa a oposição entre trabalho produtivo eimprodutivo – como calcular o trabalho produtivo que produz computador ou se realizapor ele? – onde os operários vão encontrar a medida que os transformaria em classesocial? E sem essa demarcação, como o objeto da produção da riqueza social parte dotrabalho morto sempre requerido por ela, converter-se-ia no sujeito que, além deconstruí-la, seria capaz de se apropriar dela?”

Buscaremos assim demonstrar a pertinência ou não dessas questões. Contudo,podemos sinalizar a partir de uma resenha feita por um amigo dileto, da obra Certa

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Herança Marxista, no Caderno Mais!, aparece, de modo nítido, quem são os suportesfilosóficos do pensamento giannottiano. Ao comentar uma antiga resenha de Giannottiao positivismo de Gilles Granger, o filósofo uspiano se valia do conceito de“autoprodutividade do social”. Bento Prado Jr. explicita a base transcendentalista desua concepção: “Nem será difícil entender essa passagem, aparentemente insólita, dafilosofia da lógica para a ontologia do social, se lembrarmos a origem husserliana etranscendental de nosso filósofo. Com efeito, não é a idéia de constituição crucial noprocedimento fenomenológico? Não opera ela tanto no nível da lógica transcendentalcomo no das ontologias regionais? Mas a maior originalidade, nesse momento, e quedistingue sua empresa de outras semelhantes na tradição fenomenológica, é aarticulação que proporá entre a idéia de constituição e aquilo que poderemos chamar dea ‘lógica’ do Capital”.

Sendo que, sob o fetiche do capital, “as condições de existência já estãogramaticalmente articuladas, de sorte que o real é simultaneamente práxis epensamento” (Marx: vida e obra, 85), não se apresenta a possibilidade de ruptura comestas “regras gramaticais” o que leva a um “eclipse da revolução”. Bento Prado Jr.denuncia, dessa maneira, os limites de “uma certa idéia de razão”, na visão do mundogiannottiana. “Qual é a conclusão final de Giannotti? Ele encerra seu livro com aseguinte proposição: ‘Qual é, porém, o sentido da luta de classes, a luta pelo controle danorma, numa sociedade em que a norma fibrilou, serve para marcar intervalos cujoespaço intermediário, contudo, é preenchido por decisões ad hoc?’”.

Bento Prado Jr. arremessa uma lança certeira sobre a impotência dessa crítica,em seu incrustado “fim da história” e, por conseguinte, na sobrevida dada aocapitalismo. Visto que, “Grosso modo, haveria problema com o ‘projeto iluministamodesto’ de Giannotti, já que o recurso a Wittgenstein implica o reconhecimento de umlimite essencial no processo de ‘desalienação gramatical’.” Bento Prado Jr. aponta paraos limites dos propósitos giannottianos de santificação e prostração diante do capital,assim, vai mais longe ainda do que a crítica feita por outro cebrapiano à Giannotti. “Masé preciso reconhecer que parece difícil conceber, como insiste Balthazar, um projetoiluminista, mesmo modesto, ‘porque faz parte, eu penso, de qualquer gramáticatranscendental, a preservação da necessidade do erro gramatical’.” E arremata, com umatijolada: “Santificação do que está aí?”.

Giannotti se ressente de uma grave lacuna no pensamento marxiano. Na verdade,este carece de uma “Teoria da Expressão”. Esta “teoria” novamente acoplada à suainterpretação hermenêutica da obra marxiana, está delineada na filosofia do segundoWittgenstein, desenvolvida na doutrina dos “jogos de linguagem”. Trata-se, dessamaneira, de posse de outro modo de ver a “Ciência”, de identificar os furos em Marxpor meio desta lógica. Nem que para isso, as concepções de Marx sofram nas mãos desua “leitura incoerente”. A nova reflexão dessa Lógica se apoia nos jogos de linguagem.O que vem a ser isto? “Um jogo de linguagem é um modo de apresentar um paradigma,um critério, uma mesmidade a ser contraposta à diversidade e multiplicidade dos váriosempregos e funcionamentos das palavras”.

A nova gramática da sociabilidade aponta para algumas dimensões do mundoque aponta para a falência do projeto de emancipação radical de Marx. O mundo docapital com suas benesses e males, soterrou a força social – com a fragmentação dotrabalho – portadora da emancipação do gênero humano e a filosofia radical norteadora

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de uma transformação social não se libertou de suas próprias contradições, ficandoimpotente diante do ardil do Absoluto. A ilusão de revolução do trabalho de Marx – deque o historicamente novo brotaria do historicamente velho – não se configurou, a nãoser com a transformação dos sonhos em pesadelos.

Giannotti deposita as reflexões de Marx como mais um capítulo das intençõesutópicas que desembocaram no lixo da história. A “classe universal” do proletariado foiesmigalhada pela revolução tecnológica e pela desmedida do próprio valor-trabalho.

Dessa maneira, jamais poderá compreender, nos termos chasinianos, que: “Arevolução social como possibilidade real, posta pela lógica onímoda do trabalho, não éa afirmação de uma classe – dita universal, mas a afirmação universal do homem. Não éa afirmação do proletariado como classe universal, mas da sua condição de classenegada, de uma classe que não é uma classe da sociedade civil; é essa condição declasse negada – que não reivindica nenhum privilégio histórico, mas a simples condiçãohumana – que é a mediação para a afirmação da universalidade humana dosindivíduos universalizados.”

Mesmo um autor que sempre se pôs num tom apologético ao atualdesenvolvimento das forças produtivas materiais, autêntica revolução dos instrumentosde produção, se mostra, no entanto, constrangido a afirmar que “Mais do que o jogo dopoder pelo poder, circunscrito por uma gramática própria, essa política, para que nãoseja impossibilitada pela dispersão das forças econômicas atuais, requer que seproponha a colocar um limite na expansão de forças produtivas que criam tanto ariqueza como a miséria dos homens”. Dessa maneira, Giannotti pretende, por meio dapolítica, barrar o avanço das forças vitais da sociabilidade, organizar a dispersãocausada pelo capital, uma vez que há uma desmedida em sua reprodução ampliada, ocapital perde o seu metro, “coloca-se a tarefa de conciliar as contradições que ele criasem poder resolver no mesmo plano em que se move. A história contemporânea escapade sua gramática e perde de vez sua referência natural”.

Giannotti se lança, assim, à crítica de Marx a partir de uma posiçãocontemporânea, da perspectiva do futuro ausente, numa época que se caracteriza pelasupremacia sem resistência radical ao capital, potencialização inaudita das forçasprodutivas e pelo fracasso do leste europeu. Crítica esta que não mais pode se deter noâmbito do próprio pensamento do autor, e que também deve se reportar às inúmerasinterpretações dos conceitos marxianos em seus “desdobramentos e contorções”, o quesignifica dizer, examina a partir da história universal que fez nascer com amundialização do capital, uma “classe universal”, o historicamente novo, que surgissedo ventre das circunstâncias atuais. Pelo contrário, a classe operária está cada vez maissendo fragmentada e pulverizada, que lhe impede de produzir uma consciência universalsuperadora do capital. Além disso, o mercado se constitui numa esfera que não podemais ser desprezada pela esquerda, sendo até aqui a racionalidade inscrita nocapitalismo, a forma superior imbatível, no que tange à produção das riquezas.

Segundo o filósofo da Analítica Paulista, “Não parece haver, para o modo deprodução da riqueza, outra forma que não o capitalismo”. Nesse sentido, ocapitalismo surge como uma espécie de fim da história – ainda que Giannotti continuea negar este fato –, faltando ainda a impregnação da ética política da perspectiva social-democrata, da edificação de um estado político ajustador das mazelas que essa mesma

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forma particular de metabolismo social segrega, como causa do desenvolvimento dasforças produtivas materiais ilimitado e sem peias políticas.

Está claro, pois, que a própria movimentação do capital soterraria a Teoriamarxiana do valor-trabalho, facultada pela metafísica inerente ao sistema e peladesmedida do valor: “O capital variável traz vida nova para a totalidade do sistema,surge como se fosse parte do capital, trabalho morto, embora seja a única fonte de mais-valor. Mas se ele revigora a comunidade das coisas, com a introdução de máquinastecnologicamente avançadas, também vê anulada sua capacidade negadora: coloca-semedido como trabalho morto, mas se exerce dissolvendo a fronteira entre trabalhoprodutivo e improdutivo de mais-valia, vale dizer, impossibilitando a medida que lhe foiimposta. Denuncia na prática a ilusão de fechamento do sistema, necessária para queele seja posto como morto. Marx paga o preço de sua grande descoberta: a sociabilidadecapitalista é metafísica, funciona como um deus capaz de criar seu próprio mundo, masa criação divina consiste na aparência da criação de um trabalho, que perde sua formanatural de se socializar”.

A história contemporânea não caminha no sentido que Hegel supunha, haja vistaque “A força das coisas não carrega em seu bojo o motor de sua transformação emespírito, como queria Hegel. As coisas sensíveis/supra-sensíveis perdem seus perfis aolongo do caminho de suas próprias individuações. Os processos responsáveis por suasrespectivas produções, ao invés de se transformarem em discurso, em Verbo referindo-se a si mesmo conforme o mundo mostra-se o lado opaco de sua atividade pura,escapam da rede que os transformavam em coisas medidas e fazem valer o peso damatéria que o capital não é capaz de dizer. As relações sociais de produção não podemmais exprimir a totalidade das forças produtivas que elas mobilizam, a própriacomunidade que o capital postula e repõe como força produtiva foge de maneira pelaqual ele deveria exprimi-la”. (Giannotti, Marx: vida e obra, 2000: 104)

Apoiando-se no trabalho do historiador Martin Malia (The Soviet Tragedy,1994), Giannotti sustenta que a teoria marxista não dá conta do fenômeno soviético,“pois se consiste numa forma de sociologismo, se toma as relações sociais como basepara explicar a política, a religião e outras formas de sociabilidade, torna-se entãoincapaz de compreender o predomínio da política na tentativa de instalar a novasociedade a partir de um projeto pré-concebido. Por isso recorre ao esquema datragédia, pois assim o terror provocado pela tentativa de impor uma ideologia sobretoda a população pode ser pensado e vivido como destino despejando-se sobre os sereshumanos. Mas situam-se as análises de Marx sobre o modo de produção capitalista nomesmo nível dos trabalhos de Durkheim e de outros autores da mesma linhagem? Ocaráter de coisa dos fenômenos sociais, mais do que o índice de sua objetividade, nãoindicará seu lado mistificado?”

Esta pergunta, que ele mesmo diz não possuir a mais remota resposta, noentanto, deve levar em conta que o sistema metabólico do capital “recria o trabalhadorisolado de suas condições de existência, colocando-o sob a ameaça de ficar de fora dometabolismo que o homem mantém com a natureza”. Por esta razão, o sujeito históricoda revolução se esboroa pelo processo de desenvolvimento das forças produtivas.Giannotti faz crer que ao tentar o desvelamento da lógica do capital, Marx visa a capturade sua racionalidade. O marxismo “rejeita a mera justaposição da moral à ciência,procurando descobrir no âmago da racionalidade capitalista aquele empuxo capaz de

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transformá-la por dentro e por inteiro e, desse modo, pavimentar o caminho paraemancipar o gênero humano desse vale de lágrimas”.

Nas oposições destacáveis do capitalismo, Marx supunha que “o lado negativo,o proletariado, nada tendo a perder a não ser suas próprias cadeias, terminasse sabendoexercer o positivo inscrito em sua negatividade”. A dupla negação captada e projetadapor Marx, se transforma em sua visão, num positivo que emerge da negatividade. Ovislumbre metafísico inscrito no projeto marxiano, “o comunismo anunciaria a verdadeda luta de classes, processo de superar os conflitos passados a fim de desenhar aquelatotalidade que configura uma história universal a englobar na sua presença aarquitetura do passado”.

Ou ele está se confundindo ou todos nós estamos, na verdade, a delirar. Marxjamais afirmou que a revolução contra o sistema metabólico do capital, no fim da linha,abraçaria a “arquitetura do passado”. Seria isto a harmonia do homem com ele e com anatureza? No que consiste essa afirmação de Giannotti? O “comunismo” seria expressãode uma dialética hegeliana, que o passado se reconstitui sob outra forma no momento deuma nova síntese?

Porém, para o nosso filósofo, a derrocada das formações do pós-revolucionárias,mostraram que essa racionalidade do capitalismo se constitui numa força insuperável.Aí está porque temos de ler Marx a partir do presente: o mercado não pode serultrapassado, (é arquitetura do passado?), o capital, nessa visão social-democrata, nãopode ser superado totalmente: “Não duvido que o fracasso do socialismo levantemuitas questões para todos aqueles que apostaram na completa abolição de umaeconomia de mercado, na denúncia dos engodos da economia e da política, ambashavendo de ser substituídas pela administração racional das coisas”.

Como vimos ao longo da pesquisa, de todo esse tempo, Giannotti se contorcepor meio de suas “imputações hermenêuticas”, mostrando que a filosofia de Marx estápermeada do “misticismo lógico” próprio à filosofia de Hegel. Porquanto, “Ao afirmarque o capital é uma contradição existente em processo de resolução, até que ponto Marxnão se compromete com esta Ciência da Lógica que, para poder separar o princípio daidentidade e o princípio da contradição, necessita fundir num único cadinhodeterminações de pensamento e determinações do ser? Mas, assumindo o ponto devista da finitude, denunciando o misticismo de um lógos capaz de absorverintegralmente as peripécias do real, que reviravoltas Marx necessitou praticar para verno capital um sistema de antagonismos irredutíveis caminhando para sua auto-superação? Seria um cientista ou um visionário que teria namorado com o linguajarhegeliano?”.

Por outra parte, é notável que Giannotti é de fato quem está impregnado defilosofia especulativa, atravessado por um idealismo mistificador. Com a sua magistralcrítica à Marx e aos seus herdeiros, abraçado às denúncias mais cretinas da filosofia deextração conservadora, a pergunta que nos resta a fazer é: se a filosofia é sempremetafísica, qual é o projeto político de Giannotti, a não ser a de uma minguada social-democracia a la brasileira conciliada à terceira via dominante?