racismo e politica no estado novo

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A criminalização da raça: a xenofobia institucionalizada 1 Marion Brepohl de Magalhães [Os imigrantes alemães] ... não vinham com o pensamento de incorporar-se à nossa gente, de integrar-se numa outra nacionalidade, como uma segunda pátria; vinham com o pensamento exclusivista de prolongar na nossa a sua pátria. O japonês é como enxofre: insolúvel. Oliveira Vianna O racismo, sentimento que se responsabilizou, na modernidade, pela legitimação do princípio da desigualdade entre os homens, e que esteve, como sabemos, presente entre os mais diversos grupos sociais da Europa, tem suas raízes no final do século XVIII, devido ao aristocrático preconceito da "lei do mais forte" . Ao final do Século XIX e início do XX, esse preconceito vai se tornando cada vez mais complexo. Para Michel Foucault, ocorre uma importante transformação, algo que se pode chamar de racismo de Estado: racismo biológico e centralizado 2 , um problema do Estado e para o Estado, problema que passa a ser gerenciado pela ciência. Quando esta ciência passa a introduzir-se num sistema político centralizado, ela opera um corte para o próprio poder de estado: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer; segundo o autor: 1 Com modificações e título diferente, este texto foi publicado em: BREPOHL DE MAGALHAES, M. D . A ciência do racialismo informa a política: o caso brasileiro. In: Maria Manuela Tavres Ribeiro. (Org.). Portugal-Brasil; uma visão interdisciplinar do século XX. 1ed.Coimbra: Quarteto, 2003, v. 1, p. 441-456. 2 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 96

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Racismo e PolíticaMarions Brephol

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  • A criminalizao da raa: a xenofobia institucionalizada1

    Marion Brepohl de Magalhes

    [Os imigrantes alemes] ... no vinham com o pensamento de incorporar-se nossa gente, de integrar-se numa outra nacionalidade, como uma segunda ptria; vinham com o pensamento exclusivista de prolongar na nossa a sua ptria.

    O japons como enxofre: insolvel.

    Oliveira Vianna

    O racismo, sentimento que se responsabilizou, na modernidade, pela

    legitimao do princpio da desigualdade entre os homens, e que esteve, como

    sabemos, presente entre os mais diversos grupos sociais da Europa, tem suas

    razes no final do sculo XVIII, devido ao aristocrtico preconceito da "lei do

    mais forte" .

    Ao final do Sculo XIX e incio do XX, esse preconceito vai se tornando

    cada vez mais complexo. Para Michel Foucault, ocorre uma importante

    transformao, algo que se pode chamar de racismo de Estado: racismo

    biolgico e centralizado2, um problema do Estado e para o Estado, problema

    que passa a ser gerenciado pela cincia.

    Quando esta cincia passa a introduzir-se num sistema poltico

    centralizado, ela opera um corte para o prprio poder de estado: o corte entre o

    que deve viver e o que deve morrer; segundo o autor:

    1 Com modificaes e ttulo diferente, este texto foi publicado em: BREPOHL DE MAGALHAES, M.

    D . A cincia do racialismo informa a poltica: o caso brasileiro. In: Maria Manuela Tavres Ribeiro. (Org.). Portugal-Brasil; uma viso interdisciplinar do sculo XX. 1ed.Coimbra: Quarteto, 2003, v. 1, p. 441-456.

    2 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 96

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    2

    No contnuo bio da espcie humana, o aparecimento das raas, a distino entre as raas, a hierarquia das raas, a qualificao de certas raas como boas e de outras, ao contrrio, como inferiores, tudo isso vai ser uma forma de fragmentar esse campo do biolgico de que o poder se incumbiu3.

    De outro lado, prossegue Foucault, o racismo passa a ter uma segunda

    funo, tambm de carter biolgico, qual seja, a de que a morte de uns (os inferiores) est diretamente relacionada vida de outros.

    A morte do outro no simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurana pessoal; a morte do outro, a morte da raa ruim, da raa inferior (ou do degenerado, do anormal) o que vai deixar a vida em geral mais sadia: mais sadia e mais pura.4

    Essa transformao, que ocorreu exatamente num perodo em que os

    movimentos sociais de inspirao socialista se organizavam e se fortaleciam,

    fundamental para que se entenda que nesta relao de poder, transforma-se o

    outro no em inimigo, adversrio poltico, mas em "perigo", "perigo" a ser

    evitado, "perigo" em relao populao e para uma populao. E no me refiro

    apenas ao extermnio fsico, mas morte poltica, rejeio, humilhao, ou seja, s inmeras estigmatizaes depreciativas que tornam a violncia mais tolervel tanto para quem a pratica quanto para aquele que com ela convive.

    Mesmo quando a violncia no praticada diretamente pelo estado, como

    no caso dos movimentos extremistas da atualidade, segundo Ulrich Bielefeld,

    ela guarda uma relao com alguma poltica oficial associada ao preconceito.

    Ao analisar os ataques contra estrangeiros por parte de membros destes

    movimentos na Frana e na Alemanha, contesta a idia de que o medo, o

    3 idem, p. 304

  • 3

    3

    desemprego ou a insegurana sejam fatores que explicam a violncia contra o diferente. Estes fatores desempenham um papel importante, mas a seu ver, o

    que justifica a perfidez, a covardia e a violncia em srie o significado que se atribui a eles, ou seja, em nome de quem tais atos so praticados.

    Para Bielefeld, o que detona a violncia em srie, a xenofobia

    institucionalizada, ou seja, quando esta se transforma em poltica oficial.5 Isto porque, em nossas fantasias individuais e coletivas, sempre temos

    um ente, um objeto persecutrio, um outro (que pode se cristalizar numa religio, no estrangeiro, no vizinho, no homem rico, no homem pobre, no

    homossexual), como imagem do inimigo, um ente em quem projetamos, pelo menos em parte, a causa de nossas limitaes e frustraes. Essa imagem

    permanece em nossas fantasias, s vezes, inclusive, como um lenitivo para

    acalmar nossas frustraes.

    No entanto, quando o Estado - que deve controlar e interditar a violncia,

    quem a promove ou a estimula - pois apresenta, por meio de imagens e leis,

    esse inimigo como verdadeiramente perigoso, ele legitima afetivamente a

    prtica da violncia.6

    como, assim o vislumbro, se sassemos de uma pea teatral em que representamos o papel de heris, de justiceiros, a qual encenamos em nossas fantasias, e entrssemos na histria real, por incumbncia do chefe, exatamente

    neste mesmo papel. De ns, exige-se o sacrifcio, mas em troca, recebemos o

    reconhecimento. E todos ns sabemos o quo importante ser reconhecido na

    4 idem, p. 305

    5 BIELEFELD, Ulrich. Die institutionalisierte Phobie. in: MERTEN, Otto (org.). Rechtsradikale Gewalt in

    vereigneten Deutschland. Bonn: Bundeszentralstelle fr politische Bildung, 1993. p.36 6 BIELEFELD, op. cit., p. 37

  • 4

    4

    dinmica do grupo; este , inclusive, um dos fatores determinantes para motivar

    os soldados em combate.

    Mesmo em tempo de paz, o Estado, desde o sculo XIX at nossos dias,

    tem selecionado inimigos objetivos, ora inimigos polticos, ora religiosos, ora uma classe social, ora um outro pas. Mais recorrentemente ainda, os inimigos

    da raa.

    Por que o recurso a esse instrumento?

    Porque a maior parte dos movimentos que se inspiraram no nacionalismo,

    que tambm um sentimento poltico com grande fora mobilizadora,

    constituiu-se a partir de princpios tnicos. E quando a nao definida por este

    critrio, teremos forosamente de eleger uma raa, bem como sua (s) minoria (s).

    No Brasil, os indgenas, na Noruega, Sucia e Finlndia, os lapes, na

    Europa do XIX, principalmente os judeus. Contudo, nem toda minoria necessariamente objeto de perseguio, algumas delas so inclusive protegidas ou progressivamente assimiladas.

    Mas quando o critrio tnico se sobrepe a outros paradigmas identitrios,

    a objetivao do inimigo se projeta nessa diferena, que se torna ento inaceitvel (desconheo casos em que isto no tenha ocorrido).

    Trata-se, para Bielefeld, de uma imagem muito forte face insegurana

    social, que a imagem da necessidade de purificao.

    Muitos poderiam argumentar que estas concluses so vlidas para uma

    comunidade imaginada 7 como ariana, ou pelo menos branca, mas no no

    7 ANDERSEN, Benedict. Nao e conscincia nacional. So Paulo: tica, 1989.

  • 5

    5

    Brasil, cuja miscigenao racial foi e inclusive celebrada por nossos artistas e intelectuais.

    Mas ns, que pesquisamos estes temas, sabemos que sob o ponto de

    vista das imagens produzidas pelo Estado, pelo menos at o final da Segunda

    Guerra, no era esse o desejo de nossas elites, tampouco a legislao por elas desenhada.

    Contra o meu argumento, pode-se ressalvar a tese da miscigenao ou do

    branqueamento, mas observemos, s para citar um exemplo, as afirmativas de

    Oliveira Vianna, um intelectual que participou de diversas articulaes das

    polticas estadonovistas:

    Esta funo de (governo) cabe aos arianos (...) so estes os que de posse dos aparelhos de disciplina e de educao, dominam esta turba informe pululante de mestios inferiores e, mantendo-a, pela incompreenso social e jurdica, dentro das normas da moral ariana, a vo afeioando lentamente mentalidade da raa branca.8

    O mulato (...) explosivo, rebelde, desordenado e agressivo: ele que se faz fator principal da desordem e da anarquia em nossa histria (...) isto se explica porque a servilidade, caracterstica do negro no se transmite ao mulato.. Este, ao contrrio, extremamente susceptvel e altivo; mas, a sua altivez reveste um carter altaneiro, cheio de arrogncia e insolncia, sem esse trao de gravidade e nobreza, prprio altivez do selvagem e do mameluco.9

    Mencionemos ainda a legislao imigratria, que durante o perodo

    colonial, proibiu o ingresso de judeus e muulmanos; que proibiu, em 1889, o ingresso de asiticos e africanos; que estendeu essa interdio trinta anos

    depois, para quaisquer negros e amarelos independentemente de sua

    8 Populaes meridionais no Brasil, 1918. 1. vol., p. 65

    9 Ensaios inditos, UNICAMP, [1931],1991

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    6

    nacionalidade 10 ; e que estabeleceu, no ano de 1938, regime de cotas

    desfavorvel para estes mesmos grupos11. Um pas que se queria europeu,

    branco e catlico, governado por brancos e para os brancos, como demonstram

    os trabalhos de Otvio Ianni, Alcir Lenharo, Jeffrey Lesser e Tucci Carneiro,

    entre outros12.

    Ao lado destas prticas jurdicas, gostaria de apresentar um outro conjunto de medidas exercitado durante o Estado Novo, o qual refora o racismo de

    Estado, e que eu denomino de criminilazao da raa, posta em prtica pela

    polcia poltica.

    Criminalizao da raa um termo pouco preciso, mas ele tambm tem

    sua histria e seu desdobramento mais trgico: as leis de Nrenberg.

    Suas aes esto associadas ao que Hannah Arendt compreende por

    instrumentalizao poltica do preconceito; a este respeito, afirma a autora que,

    quando o racismo associa uma prtica qualquer - geralmente condenvel -

    predisposio gentica, isto transforma a perversidade humana; esta assume as

    feies da qualidade psicolgica, que o homem no pode escolher nem rejeitar, que lhe imposta de fora e que o domina de modo mais ou menos compulsivo,

    como a droga domina o viciado.13 E no raramente a tolerncia para com os

    racialmente predestinados ao crime desaparece, ocorrendo a a recorrncia a

    10 LESSER, Jeffrey. A negociao da identidade nacional. So Paulo, Editora UNESP, 2001. p. 27-28.

    11 Referimo-nos aqui ao percentual de 2% que regulava o ingresso de novos imigrantes segundo a

    nacionalidade j estabelecida no pas de 1844 a 1933 (Decreto-Lei n 406. 04.05.1938. 12

    IANNI, Otvio. As metamorfoses do escravo. So Paulo: DIFEL, 1962; Raas e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questo judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995; A negociao da identidade nacional, op. cit.; CARNEIRO, M. Luiza Tucci: O Anti-semitismo na era Vargas. So Paulo: Brasiliense, 1988; LENHARO, Alcir. A sacralizao da poltica. Campinas: Papirus, 1986. 13

    ARENDT, Hannah. Anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de Janeiro: Documentrio, 1975. p.119

  • 7

    7

    leis e polticas que apregoam esta necessidade de libertao social do perigo

    em potencial.14

    Assim interpreto o regime de cotas, mas principalmente as prticas da

    polcia poltica do Estado Novo em nome do combate ao quinta-colunismo. certo que elas no so comparveis s leis de Nurenberg, nem o dio ao

    diferente foi pregado de forma to violenta; mas as imagens veiculadas pela

    polcia poltica se deixaram orientar, como veremos a seguir, pelo que denomino

    de criminalizao da raa.

    Os inassimilveis: o alemo e o japons

    Segundo minha compreenso, os polticos do Estado Novo no elegeram

    um nico inimigo para a nao brasileira15. Eles objetivaram esta figura em diversos grupos, de acordo com as diferentes conjunturas e especificidades poltico-regionais: os comunistas, os anarquistas, em primeira linha; italianos,

    alemes, poloneses, japoneses no sul e sudeste; os judeus, os espies, os mendigos, os vagabundos, os desordeiros em diversas regies. Entretanto, se

    examinarmos os documentos do DOPS, constataremos que, fossem quais

    fossem os inimigos, a criminalizao da raa cooperou decisivamente para que

    tais perseguies fossem aceitas socialmente.

    Para ilustrar minhas afirmaes, elegi apenas dois casos, aparentemente

    paradoxais:

    14 idem, p. 119

    15 Para o aprofundamento sobre a importncia do inimigo interno no discurso nacionalista, ver:

    ENRIQUEZ, E. Tuer sans culpabilit. in: L 'inactuel. Paris, n. 2, 1999. p. 16-36.

  • 8

    8

    O primeiro, a perseguio aos nipo-brasileiros, considerados

    como o penltimo grupo na hierarquia tnica, s no inferior ao

    negro;

    O segundo, a perseguio aos teuto-brasileiros, por alguns

    considerados os arianos por excelncia, a mais bela raa do

    gnero humano, segundo Johan Friedrich Blumenbach.16

    No caso dos japoneses, ainda que as restries sobre suas qualidades raciais persistissem h at bem pouco tempo, no incio da imigrao de tais

    levas para o Brasil, eram vistos como ao menos trabalhadores e limpos; alm

    disso, provinham de um pas rico, prova de sua operosidade e submisso,

    diferentemente dos imigrantes anarquistas, como os italianos. Ademais,

    cooperariam para o embranquecimento da cor da pele, forma de preconceito

    racial tpico de nossas elites.

    Com o Estado Novo e a exacerbao do nacionalismo, somado ao

    rompimento de relaes diplomticas do Brasil com os pases do Eixo, o DOPS

    passa a suspeitar que a colnia nipo-brasileira obedecia a um plano elaborado

    pelo Exrcito japons contra a soberania nacional. A confuso entre japoneses e chineses revela, segundo Lesser, os

    sentimentos xenofbicos em relao aos primeiros: o japons mau, o chins bom; o japons falso, o chins sincero; o japons antiptico, o chins simptico.17

    16 BLUMENBACH, Johan Friedrich. De generis humani varietate nativa , cf. LISBOA, Ilka. A nova

    Atlntida de Spix e Martius; natureza e civilizao na viagem pelo Brasil. So Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1997. 17

    LESSER, op. cit., p. 236.

  • 9

    9

    Para alm desses lugares-comuns, some-se a afirmao de Luiz

    Guimares, de que o japons era espio de nascena, e nosso inimigo pelo sangue18.

    Acusados de no ensinarem, propositadamente, o idioma portugus aos

    seus filhos, para que o sentimento de brasilidade no os cativassem19, de serem

    cegamente obedientes s suas tradies, portanto, inassimilveis20, foram alvo

    de diversas perseguies, como por exemplo, seu deslocamento compulsrio do

    litoral para o interior, evitando seu assentamento em regies ditas estratgicas.

    Ainda, fecharam-se escolas e associaes culturais mantidas por este grupo

    social.

    Mesmo com o final da guerra, as perseguies prosseguem; cite-se uma

    notcia no Dirio da Tarde, sobre armas apreendidas em Arapongas, no Paran,

    pertencentes sociedade terrorista Da Nippon K Zai Taio, considerado como o

    comunismo amarelo, e do apedrejamento de um cinema em Assa, no Paran, por transmitir um filme japons sem legendas em portugus, ambas de 1951.21

    Cite-se ainda, as consideraes de Carlos de Souza Moraes, em seu livro

    A ofensiva japonesa no Brasil, de extrema violncia verbal:

    O japons se fecha na sombria desconfiana nativista dos insulares, na estreiteza monglica dos dios nacionais e dos ritos caducos, na presuno da estirpe celeste, no orgulho do modernismo decalcado sbre a inventividade europia, mas adstrito s fices politestas e ao culto s armas vencedoras; um ator dissimulado, inadaptvel, no compreende nem perdoa o amor fora de sua crena ou raa: o devotamento, a gentileza, a simpatia e a fidelidade, resume-se no cavalheirismo tradicional dos samurais; e acima de tudo, fanaticamente, adora no Mikado a prpria divindade.22

    18 idem, p. 160.

    19 Departamento Estadual de Arquivo Pblico do Paran, Acervo DOPS, Pasta Documentos Antigos

    20 Departamento Estadual de Arquivo Pblico do Paran, Acervo DOPS, Ofcios e portarias expedidos

    21 SHIZUNO, Elena. Desconstruindo identidades, Curitiba, 2001, p. 104 (mimeo)

    22 apud SHIZUNO, Elena. Os bandeirantes do oriente ou perigo amarelo; os imigrantes japoneses e a

    DOPS na dcada de 40. Curitiba. Mestrado. Universidade Federal do Paran. 2001. p. 41

  • 10

    10

    Segundo Lenharo, s imagens de inferioridade, somavam-se a de

    conspirao. Pactos sinistros eram denunciados, tanto na imprensa como pelas

    autoridades policiais, as quais confirmavam, como testemunhas oculares da

    histria, a veracidade de tais suspeitas. Para o autor,

    O crescimento sbito da imigrao japonesa no final da dcada de 20, paulatino queda brusca da imigrao branca europia trouxe ordem do dia a insegurana e o descontrole que a miscigenao com o diferente - muito diferente - ocasionava. Sua "linguagem completamente impreensvel para os brasileiros"; seus costumes so exticos, seu fsico, pouco apresentvel, sua moral parece-nos estranha... o japons como enxofre: insolvel, afirmou uma entre outras vezes Oliveira Vianna.23

    Este elemento, estigmatizado como perigo amarelo, passaria a ser

    inaceitvel aos agentes da DOPS, que popularizariam, ao lado de jornalistas e intelectuais, o preconceito e a discriminao.

    Com relao aos teuto-brasileiros, sua trajetria distinta, pelo menos at se constiturem objeto de suspeio da polcia poltica.

    Celebrados por diversos intelectuais, como por exemplo, Oliveira Vianna e

    Wilson Martins24, como portadores das mais altas qualidades tnicas, o ariano

    por excelncia, a imigrao germnica para o Brasil foi estimulada desde 1824,

    contando com o empenho pessoal de Dona Leopoldina, e depois, de Dom Pedro

    II.

    Entretanto, a partir dos finais do sculo XIX, esta comunidade ser

    influenciada pela Liga Pangermnica, entidade de carter privado que, coerente

    23 LENHARO, op. cit., p. 142.

  • 11

    11

    com os interesses do imperialismo alemo e ideologia nacionalista e racista da

    Europa, buscar exercer influncia sobre os imigrantes e seus descendentes,

    incutindo-lhes um forte sentimento de pertencimento nao de origem. Para

    tanto, fomentavam-se a preservao do idioma, da religio luterana, o senso de

    superioridade racial.

    Com a Primeira Grande Guerra e a conseqente difuso do mito do perigo

    alemo, a comunidade de origem alem passa a ser vista de forma totalmente

    diferente do que o fora no sculo XIX. De um povo laborioso e morigerado, culto

    e disciplinado, que s teria a contribuir para o engrandecimento da nao

    brasileira, bem como para o branqueamento da raa, ser concebido doravante

    como um corpo exgeno, submetido apenas s suas leis e interesses, dotado

    de um poder amedrontador e clandestino.

    Mas se, at os anos 30, as discriminaes de que foram alvo os

    teuto-brasileiros provieram da sociedade civil, durante o Estado Novo, e em

    nome da brasilidade, a iniciativa oficial quem se responsabiliza pela

    discriminao social e poltica de tais segmentos. Neste perodo, probem-se o

    uso do idioma alemo, a existncia de entidades recreativas de origem teuta e

    os usos de seus emblemas e smbolos.

    Quando do rompimento das relaes diplomticas entre Brasil e Alemanha,

    em 1943, todas as organizaes e manifestaes culturais dos teuto-brasileiros

    torna-se uma prtica a ser reprimida em nome do combate ao quinta-colunismo.

    Esta mudana - de um anti-germanismo social para um anti-germanismo

    poltico ou oficial, pode ser compreendida como instrumentalizao poltica do

    24 Respectivamente: Ensaios inditos. Campinas, Editora da UNICAMP, 1991 e Um Brasil diferente. So

    Paulo, Anhembi, 1991.

  • 12

    12

    preconceito contra os alemes. Tal deslocamento cooperou para que medidas

    de carter autoritrio e repressivo pudessem ser adotadas com o aval da

    sociedade. Mais do que isto ; o prprio DOPS passa a se popularizar , entre as

    pessoas comuns, como um servio de defesa da nao brasileira25.

    Como no caso anterior, mencionemos alguns exemplos.

    De autoria de Antonio de Lara Ribas, delegado do DOPS de Santa

    Catarina, O punhal nazista no corao do Brasil um livro-denncia sobre as

    atividades nazistas no pas. Neste, a Alemanha apresentada como uma nao

    belicosa , cujas pretenses raciais e expansionistas vm sendo pregadas pelos lderes polticos, militares, cientistas e homens de letras, o que levou ao poder

    Hitler... quer territrios da Europa, sia e Amrica do Sul.26 Para alcanar seu objetivo, prossegue o autor, tenta conquistar as massas no Brasil, que, como um pas jovem e de cultura ainda no definida, prescinde de defesas contra tais organizaes ideolgicas.

    Em outro livro, de autoria do chefe de polcia do Rio Grande do Sul,

    intitulado A Quinta Coluna no Brasil, os planos nazistas so cuidadosamente

    descritos, atribuindo-se sua autoria a uma minoria da populao teuta,

    agitadores comprometidos com o nacional-socialismo.

    So textos que esto a divulgar os planos da A.O. - Organizao para o

    Exterior do Partido Nazista (Auslandsorganisation der NSDAP), que de fato atuou em favor da Liga Pangermnica e outras entidades afins com o objetivo

    25 Estamos conscientes de que as medidas contra a populao germnica foram menos severas e tardia, se

    compararmos com outros grupos. Isto se deve, ao nosso ver, integrao de boa parte desta populao sociedade brasileira e simpatia que o governo Vargas nutria pelo sistema poltico vigente na Alemanha ncional-socialista. No entanto, quando do rompimento das relaes diplomticas com aquele pas, o combate ao quinta-colunismo justificar uma srie de proibies e perseguies s entidades representativas deste grupo social, independentemente de suas convices polticas.

  • 13

    13

    de desenvolver no Sul do Brasil uma sorte de imperialismo indireto, por meio da

    conquista dos teuto-brasileiros para a sua causa. Todavia, anexar esta regio

    Alemanha no estava nos planos de Hitler, interessado, conforme Jacobsen, em

    exercer domnio efetivo apenas na Europa.27 Alm disso, somente uma parcela

    da populao de origem teuta aderiu quela doutrina, e disto estavam seguros

    os coordenadores da poltica oficial de represso.

    Mas nas mos de policiais dos estratos inferiores, a voz de seus chefes

    ser incorporada como denncia de uma conspirao internacional - de foras

    irrefreveis, um plano sinistro que impunha uma contra-espionagem dirigida a

    todo o elemento de origem germnica.

    Novamente, temos aqui fantasias do homem comum transformadas, ainda

    que por um curto momento, em realidade, e sugerindo a ele sua chance de

    demonstrar bravura e herosmo.

    Neste clima, o policial comum, seja por seu prprio juzo, seja pela fabricao dos media, enxerga diante de si uma transformao qualitativa no

    que concerne ao crime que ele deve combater: no mais um crime comum

    contra a propriedade ou contra a pessoa, mas contra o Estado. E se o vilo

    um criminoso poltico, o policial responsvel pela sua captura pode tornar-se

    um heri da poltica, tanto quanto os diversos personagens dos romances

    policiais, gnero especialmente caro a esta categoria profissional.28

    Este novo personagem difundido nas crnicas policiais dos jornais e revistas da poca. De um lado, sua luta incansvel para deter o inimigo. De

    26 Porto Alegre, 1941. p. 17

    27 JACOBSEN, Hans Adolf. Nationalsozialistische Aussenpolitik; 1933-1938. Frankfurt: Alfred Metzner,

    1968. 841 S.

  • 14

    14

    outro, a proliferao de aes malficas. Com este material, podemos identificar

    como o teuto-brasileiro descrito enquanto espio alemo, ao mesmo tempo

    em que o DOPS procura construir sua auto-imagem de paladino da justia. Como uma das principais manchetes deste perodo, apresenta-se o

    desmantelamento do que julgado como principal servio de espionagem nazista: a Igreja Luterana.

    De todos os segmentos profissionais que so arbitrariamente presos para

    investigaes, os pastores protestantes so os mais expressivos em termos

    numricos. Para Aurlio da Silva Py, a Igreja Luterana era um entreposto cultural do nazismo, no passando de um disfarce para as atividades de

    doutrinao ideolgica, pois esta, segundo ele, como toda a igreja, est colocada mais ou menos a salvo da ao vigilante das autoridades e portanto

    das restries da censura.

    A este respeito, afirma ainda,

    Os agitadores nazistas no distinguem entre os meios, no respeitam estes territrios de evaso sentimental do homem que a sabedoria universal por assim dizer havia fechado ao Estado. Muito pelo contrrio, degradam-nos, adaptam-nos, insinuam-se aos seus propsitos.29

    Uma vez "descoberto" este plano, medidas de contra-ataque so

    encetadas e amplamente divulgadas: os bens sagrados da igreja - como o crucifixo, o plpito, o talar, a Bblia e os hinrios foram profanados; levados s

    praas pblicas e incendiados, em frente a uma multido catlica que

    escarnecia do protestante nazista, do nazista alemo, da igreja-partido.

    28 Sobre a importncia do romance policial, e em particular, do crime contra o Estado, ver: MANDEL, E.

    Delcias do crime. So Paulo: Busca Vida, 1988.

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    Alm da turba, mencionem-se as crnicas policiais: na Revista Vida

    Policial, rgo de divulgao da polcia rio-grandense, mantinha-se desde 1942

    at o final da guerra, uma coluna intitulada Cortando as Azas do Nazismo, em

    que, em cada nmero, elaborava-se uma biografia sobre um preso poltico,

    considerado agente do nazismo por aquele rgo. Como ilustrao desta

    matria, utilizavam-se fotografias e manchetes da Alemanha de Hitler, com uma

    diagramao que objetivava associar a conjuntura local conjuntura internacional.

    Todas as biografias possuam um denominador comum: nelas, o mal e

    mesmo a morte, so desencarnados. So espritos, inteligncias, tramas loucas

    que regem um corpo - no caso, o corpo do biografado, sempre pouco dotado,

    frgil, demente, um fantoche nas mos de seus entes superiores30.

    O mesmo pode se observar nas charges e anedotas contra os

    nipo-brasileiros: as mulheres aparecem vestidas como gueixas (insinuao prtica da prostituio), o drago (smbolo sagrado para aquela cultura) desenhado como um falo a devorar corpos apequenados, cujos rostos so caricaturizados com um esgar lascivo e perverso. Destaca-se ainda seu alto

    contingente numrico como um perigo em si - perigo militar mas tambm de

    contaminao da raa31.

    29 PY, Aurlio. A quinta coluna no Brasil. Porto Alegre, 1942, p. 210

    30 Revista Vida Policial, julho de 1943. Porto Alegre.

    31 Sobre esta imagem, um mapa ilustra as diferentes regies de assentamento das colnias nipnicas em

    So Paulo, estando o desenho do Estado enlaado por um enorme drago. Ver: SHIZUNO, Elena. Os bandeirantes do oriente ou perigo amarelo; os imigrantes japoneses e a DOPS na dcada de 40. Curitiba. Mestrado. Universidade Federal do Paran. 2001. p. 61

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    Os rostos alemes so caricaturizados com a imagem de uma batata,

    estigma pejorativo contra o campons; o talar luterano apresentado como fantasia de palhao. Japoneses so denominados de macaco amarelo.

    Para alm dos noticiosos., gravuras e fotos, preciso atentar para as

    crnicas policiais, prximas da linguagem de um romance de aventura. A, o

    vilo, dono de uma personalidade sinistra, vencido pelo heri, que desde o

    incio o conhece perfeitamente bem. Mais do que aprision-lo, importa utiliz-lo

    como uma pista para se descobrir o objetivo final de seus superiores, que , invariavelmente, invadir e dominar o Brasil.

    Assim procedendo, a polcia e a imprensa vo tecendo uma rede de

    intrigas que envolvem o "alemo" e o "japons", rede em que a ideologia poltica associada s caractersticas inatas das duas raas, o que acaba por

    conformar um nico discurso, naturalizando, desta feita, a xenofobia.

    Concluso

    Os noticiosos, anedotas, charges e caricaturas mencionadas neste artigo

    representam uma faceta da vida cotidiana prpria de uma poca de guerra. So

    pginas e pginas resgatadas pela memria dos atingidos e dos agressores.

    Captulo de uma histria poltica que marcou pesadamente este perodo: um

    perodo em que falar de guerra, viver a guerra, ouvir o rdio e torcer por um dos

    lados ocupava um espao de enorme densidade: um momento em que, rir do

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    ato violento, da morte, da derrota, no deixava de ser uma forma de se domar o

    medo; um momento em que, no combate aos racialmente mais fortes - os

    alemes - e aos racialmente inferiores - os japoneses, alguns grupos sociais - e eu destaco aqui a prpria polcia poltica - encontraram-se com sua identidade

    nacional.

    Para alm daquela conjuntura, o que importante ressaltar, guisa de concluso, o papel que o DOPS passa a representar junto ao imaginrio social: a polcia aliada aos interesses da nao, dispensando qualquer outra

    mediao jurdica para por em prtica a verdade, a justia e a ordem: a polcia contra os soldados do Eixo. Heris populares que, ao vencer o adversrio,

    eliminam o "perigo" e generalizam a xenofobia - tornando a vida do homem

    comum mais segura e, principalmente, mais sadia e purificada.

    Quero finalizar com uma afirmativa de Bielefeld, para quem, a questo

    tnica uma das formas de legitimao a-poltica da poltica autoritria,32 uma

    vez que, ao potencializar nossos preconceitos sociais, atenuamos a desordem

    interna que trazemos em nosso inconsciente, por meio da projeo dos desejos ou temores ocultos ou inconscientes num " outro" - a quem se passa, pelo

    menos na fantasia , eliminar.

    *****

    32 Bielefeld, op.cit., p. 36