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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Camus, Albert, 1913-1960C218i A inteligência e o cadafalso / Albert Camus; tradução de4ª ed. Manuel da Costa Pinto, Cristina Murachco. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2018. 128 p.; 21 cm.

Tradução de: L’Intelligence et l’Échafaud ISBN 978-85-01-11165-4

1. Ensaio francês. I. Pinto, Manuel da Costa. II. Murachco, Cristina. II. Título.

CDD: 84417-45853 CDU: 821.133.1-4

Título original:L’Intelligence et L’Échafaud

Copyright © Éditions Gallimard, 1943, 1952, 1944, 1948, 1951, 1952, 1955, 1959, 1958, 1938, 1939.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000,que se reserva a propriedade literária desta tradução.

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-111165-4

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Sumário

Apresentação 7

A inteligência e o cadafalso 15

Herman Melville 25

Introdução às Maximes de Chamfort 31

Prefácio a La maison du peuple, de Louis Guilloux 47

Encontros com André Gide 55

O artista na prisão 63

Roger Martin du Gard 73

Sobre Les îles, de Jean Grenier 107

René Char 113

A náusea, de Jean-Paul Sartre 119

O muro, de Jean-Paul Sartre 123

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A inteligência e o cadafalso

Dizem que Luís XVI, a caminho da guilhotina, quis encarre-gar um de seus guardas de uma mensagem à rainha, recebendo a seguinte resposta: “Não estou aqui para lhe prestar serviços; estou aqui para conduzi-lo ao cadafalso.” Este belo exemplo de propriedade e obstinação no uso dos termos parece se aplicar perfeitamente, se não a toda nossa tradição romanesca, pelo menos a uma certa tradição clássica do romance francês. Os romancistas dessa família se recusam a “prestar serviços”, e sua única preocupação parece ser a de levar suas personagens, im-perturbavelmente, ao encontro do que as aguarda — seja o retiro de Mme. de Clèves, a felicidade de Juliette ou a decadência de Justine, o cadafalso de Julien Sorel, a solidão de Adolphe, o leito de morte de Mme. de Graslin ou essa festa da velhice que Proust descobre no salão de Mme. de Guermantes. O que eles têm de característico é a unidade da intenção, e seria inútil procurarmos nesses romances o equivalente das intermináveis aventuras de um

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Wilhelm Meister; não que sejamos estranhos ao pedantismo — mas temos o nosso, que, felizmente, não é o de Goethe. Tudo o que podemos dizer é que, na arte, um ideal de simplicidade requer sempre uma intenção fixa. Por isso, podemos colocar no centro do romance francês uma certa obstinação.

É por isso que o romance coloca, de saída, questões de arte. Se nossos romancistas demonstraram alguma coisa, é que o ro-mance, ao contrário do que se pensa, dificilmente pode abdicar da perfeição. Trata-se, porém, de uma perfeição singular, que nem sempre é formal. Estaremos sem dúvida errados ao imaginar que o gênero não requer um estilo. Ele exige, na verdade, o estilo mais difícil, aquele que se submete. Nas questões que nossos grandes romancistas se colocaram não interessava a forma pela forma, mas somente a relação precisa que eles queriam introduzir entre seu tom e seu pensamento. A meio caminho entre a monotonia e a loquacidade, eles tinham que encontrar uma linguagem para sua obstinação. Se essa linguagem muitas vezes não tem prestígio exterior, é porque é feita de sacrifícios. Suprimiram-se os “serviços prestados”; tudo conduz ao essencial. É isso que confere um certo parentesco a espíritos tão diferentes como Stendhal e Mme. de Lafayette: ambos se dedicaram a falar uma linguagem necessária. O primeiro problema que se coloca Stendhal é, efetivamente, o mesmo dos romancistas dos grandes séculos. Ele chama de au-sência de estilo uma conformidade perfeita entre sua arte e suas paixões.1 Pois a originalidade de toda essa literatura romanesca, ante a dos países estrangeiros, é que ela não é apenas uma escola

1. “Se não sou claro, todo o meu mundo se aniquila.” (Stendhal)

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de vida, mas também uma escola de arte: a flama mais vivaz segue uma linguagem exata. Nossos grandes êxitos nasceram de uma concepção particular da força, que podemos chamar de elegância, mas que ainda carece de definição.

*

É preciso ser dois quando se escreve. Na literatura francesa, o grande problema é traduzir o que sentimos para aquilo que que-remos que seja sentido. Chamamos de mau escritor aquele que se exprime levando em conta um contexto interior que o leitor não pode conhecer. O autor medíocre, dessa forma, é levado a dizer tudo o que lhe agrada. A grande regra do artista, ao contrário, é esquecer parte de si mesmo em proveito de uma expressão comunicável. Isso não ocorre sem sacrifícios. E esta busca de uma linguagem inteligível, que deve recobrir a desmedida de seu destino, leva-o a dizer não aquilo que lhe agrada, mas aquilo que é necessário. Grande parte do gênio romanesco francês está nesse esforço esclarecido de dar aos clamores da paixão a ordem de uma linguagem pura. Em resumo, o que triunfa nas obras de que falo é uma certa ideia preconcebida — a inteligência.

Porém, é preciso entender isso. Temos sempre a tendência de pensar que essa inteligência diz respeito ao que é exterior — à composição, por exemplo. Ora, é curioso notar que a composição do romance arquetípico do século XVII, A princesa de Clèves, é bastante frouxa: desdobra-se em diversos relatos e começa de forma complicada, ainda que termine na unidade. Na realidade, é preciso esperar até o século XIX para encontrar em Adolphe a

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linha pura que, por imaginação, atribuímos à Princesa. Da mes-ma maneira, a composição das Ligações perigosas é puramente cronológica e sem os rebuscamentos da arte. A composição dos romances de Sade é primária, as dissertações filosóficas se alter-nam às descrições eróticas até o fim. Os romances de Stendhal oferecem exemplos curiosos de negligência e não nos espanta-remos o suficiente com o último capítulo da Cartuxa, em que o autor, como se estivesse dando cria, com pressa para acabar, acumula desordenadamente o dobro de acontecimentos que há no resto da obra. Não são esses exemplos, em todo caso, que nos permitirão concluir pela perfeição apolínea da forma.

A unidade, a simplicidade profunda, o classicismo, portan-to, estão em outra parte. Sem dúvida, estaremos próximos da verdade se dissermos apenas que a grande característica desses romancistas é que, cada um a seu modo, eles dizem sempre a mesma coisa e sempre no mesmo tom. Ser clássico é repetir a si mesmo. Encontramos assim, no coração de nossas grandes obras romanescas, uma certa concepção do homem que a inteligência se esforça por colocar em evidência em meio a um pequeno nú-mero de situações. Isso certamente poderá ser dito de qualquer bom romance, se for verdade que o romance faz da inteligência seu universo, assim como o drama faz da ação o seu. Mas o que parece peculiar a essa tradição francesa é que a intriga e as personagens em geral se limitam a essa ideia e tudo é disposto para fazê-la ressoar indefinidamente. A inteligência, aqui, não traz somente sua concepção, ela é ao mesmo tempo princípio de uma maravilhosa economia e de uma espécie de monotonia apaixonada. Ela é a um passo criadora e mecânica. Ser clássico é

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ao mesmo tempo repetir-se e saber se repetir. É essa a diferença que vejo em relação a outras literaturas romanescas, em que a inteligência inspira a obra, mas também se deixa levar por suas próprias reações.2

*

Tomando um exemplo preciso, parece-me que Mme. de Lafayette visa somente nos ensinar uma concepção muito particular do amor — nada mais lhe interessando no mundo. Seu postulado singular é o de que essa paixão coloca o ser em perigo. Podemos de fato dizer isso no decorrer de uma conversa, mas ninguém teve a ideia de levar sua lógica tão longe quanto Mme. de Lafayette o fez. Em A princesa de Clèves, como em A princesa de Montpensier, ou em A condessa de Tende, percebemos em ação uma desconfiança constante com relação ao amor. Podemos reconhecê-la já em sua linguagem, em que certas palavras parecem realmente queimar--lhe a boca: “O que dissera Mme. de Clèves acerca do retrato havia-lhe restituído a vida, fazendo-lhe saber que era ele a quem ela não odiava.”* Mas, à sua maneira, as personagens nos persu-adem também dessa desconfiança salutar. São heróis curiosos, que sofrem com seus sentimentos e procuram doenças mortais em paixões contrariadas. Até mesmo suas figuras secundárias morrem por um movimento da alma: “Trouxeram-lhe o per-dão quando ele só esperava o golpe fatal, no cadafalso, mas o

2. Os romances russos, por exemplo, ou tentativas como as de Joyce.* Utilizamos, nas citações de A princesa de Clèves, a tradução de Mário Quintana publi-cada pela editora Globo. (N. do T.)

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medo o fizera perder o conhecimento e ele morreu poucos dias depois.” Os mais audaciosos de nossos românticos não ousaram dar tantos poderes à paixão. E compreendemos sem dificuldade que, diante dessas fúrias do sentimento, Mme. de Lafayette tome como mola propulsora de seu enredo uma extraordinária teoria do casamento considerado como um mal menor: vale mais ser casado a contragosto do que sofrer por uma paixão. Reconhece-mos aqui a ideia profunda cuja repetição obstinada dá sentido à obra. É uma ideia de ordem.

Muito antes de Goethe, de fato, Mme. de Lafayette colocou na balança a injustiça de uma condição infeliz e a desordem das paixões; e, bem antes dele, num gesto espantoso de pessimismo, ela escolheu a injustiça que nada desorganiza. Simplesmente, a ordem que importa para ela é menos a da sociedade do que a do pensamento e da alma. E, longe de querer sujeitar as paixões do coração aos preconceitos sociais, ela se serve destes para re-mediar os movimentos desordenados que a apavoram. Ela não se preocupa em defender instituições que não lhe importam, mas quer preservar seu ser profundo, cujo único inimigo ela conhece. O amor é somente demência e confusão. Não é difícil adivinhar as recordações ardorosas encerradas nessas frases desinteressadas, e é aí — muito mais do que numa composição ilusória — que encontramos uma grande lição de arte. Pois não há arte onde não há nada a ser vencido, e nós compreendemos então que a monotonia dessa melodia cerimoniosa é feita tanto de cálculo clarividente quanto de paixão dilacerada. Se encon-tramos aí um único sentimento, é porque ele tudo devorou; e se este fala sempre no mesmo tom compassado, é porque não

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lhe são permitidos os gritos. Essa objetividade é uma vitória. Outros — que podem ser instrutivos, mas que não acrescentam nada — também se exercitaram na objetividade. Mas é porque não eram capazes de outra coisa. Por isso os romancistas ditos naturalistas ou realistas, que escreveram tantos romances, e muitos deles bons, não fizeram um único romance que fosse grande. Eles não podiam ir além da descrição. Em Mme. de Lafayette, ao contrário, a grandeza dessa arte altiva está em fazer sentir que seus limites foram estabelecidos com intenção. Tão logo eles desaparecem, a obra inteira ressoa. As harmonias dessa arte devem tudo à inteligência e a seu esforço de domina-ção. Mas é evidente que tal arte nasce ao mesmo tempo de uma infinita possibilidade de sofrimento e de uma decisão fixa de dominá-lo pelo discurso. Nada expressa melhor essa angústia disciplinada, essa luz potente cuja inteligência transfigura a dor, do que uma frase admirável de A princesa de Clèves: “Disse-lhe que, enquanto sua aflição tivera limites, eu com ele simpatizara; mas que não o aprovava e não o lamentaria mais se ele se aban-donasse ao desespero e perdesse a razão.” Esse tom é magnífico. Ele postula que uma certa força da alma pode impor limites à infelicidade censurando sua expressão. Ele faz a arte penetrar a vida, conferindo ao homem em luta contra seu destino as forças da linguagem. Vemos assim que, se essa literatura é uma escola de vida, é justamente porque ela é uma escola de arte. Mais precisamente, a lição dessas existências e de suas obras não é somente de arte, mas de estilo. Aprende-se aí a dar forma a sua conduta. E essa verdade constante que Mme. de Lafayette não cessa de repetir, e que ela representa nessa frase de forma

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inesquecível, assume todo seu sentido e ilumina o que desejo dizer quando vemos que o mesmo homem que a pronuncia (o príncipe de Clèves) morrerá de desespero.

Encontraríamos facilmente em Sade, Stendhal, Proust e em alguns raros contemporâneos o ensinamento de um estilo de vida, bem diferente em cada um, mas sempre feito de uma escolha, de uma independência calculada e de uma recusa cla-rividente. A obstinação no pecado tornado legítimo em Sade,3 as litanias da energia em Stendhal,4 a ascese heroica de Proust para remodelar a aflição humana numa existência inteiramente privilegiada — todos eles dizem uma única coisa e não dizem nada além dela. De um sentimento único que os invadiu para sempre, eles fazem uma obra com rostos ao mesmo tempo di-ferentes e monótonos.

Bem entendido, não se trata aqui senão de indicações. Elas são suficientes, talvez, para fazer com que admitamos que não são qualidades puramente formais (na arte, aliás, esta expressão não faz sentido) que fazem o rigor, a pureza, a força contida dessa literatura romanesca. Mas é a obstinação ajustada ao tom que lhe convém, a constância da alma que a ela se ata, a ciência literária e humana do sacrifício. Um tal classicismo é feito de partis pris.5 Esse culto da inteligência eficaz constitui, tanto quanto a arte,

3. “Ele forjou crueldades que não viveu, e que não teria desejado viver, para entrar em contato com os grandes problemas.” (Otto Flake) O grande problema de Sade é a irres-ponsabilidade do homem sem Deus.4. Podemos aproximar a frase do príncipe de Clèves a esta anotação do Journal de Sten-dhal: “Como acontece com frequência nos homens que concentraram sua energia sobre um ou dois pontos vitais, ele tinha o ar indolente e desleixado.”5. Por esta razão Le Parti Pris des Choses, de Francis Ponge, é uma das únicas obras clássicas contemporâneas.

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uma civilização e uma sabedoria de vida. De resto, é possível que essa atitude não funcione sem limitações. Mas talvez sejam limi-tações necessárias. Temos hoje uma tendência de subestimar esse esforço lúcido. E somos muito orgulhosos da universalidade de nossa vocação. Mas ela apazigua nossa força interior. Àqueles que perguntavam como havia chegado a edificar sua teoria, Newton podia responder: “Pensando sempre nela.” Não há grandeza sem um pouco de teimosia.

Em todo caso, é assim que explico o forte sentimento que encontro na leitura de nossos grandes romances. Eles testemu-nham a eficácia da criação humana. Com eles, persuadimo--nos de que a obra de arte é uma coisa humana, sempre muito humana, e que o criador pode prescindir de exercícios de transcendência. Eles não nascem de clarões de inspiração, mas de uma fidelidade cotidiana. E um dos segredos do romance francês é realmente saber manifestar ao mesmo tempo um sen-tido harmonioso da fatalidade e uma arte inteiramente saída da liberdade individual — representar, enfim, o terreno ideal em que as forças do destino se chocam com a decisão huma-na. Esta arte é uma revanche, uma maneira de suplantar um destino difícil impondo-lhe uma forma. Aprendemos com ela a matemática do destino e a maneira de nos libertarmos dela. E se o príncipe de Clèves se mostra superior, apesar de tudo, a esta sensibilidade fremente que o matará, é na medida em que ele é capaz de compor aquela frase admirável que se recusa a pintar o desespero e a desrazão. Nenhum de nossos grandes romancistas jamais se desviou da dor humana, mas é possível dizer que nenhum deles se abandonou a ela e que, com uma

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comovente paciência, eles a controlaram por meio das regras da arte. A ideia que um francês contemporâneo pode ter da virilidade (e ela naturalmente faz alarde), ele a deve talvez a esta sequência de obras secas e ardentes em que se desenrola sem fraquejar, até o cadafalso, o exercício superior de uma inteligência que a tudo domina.

Confluences, número especial, no 21-24: “Problèmes du roman”. Julho de 1943

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