Querido Pai   Tarso B. Firace

Belo Horizonte1ª EDIÇÃO

2019

Copyright © Tarso Firace 2019

 

Direitos reservadosPermitida reprodução desde que citada a fonte.Editor responsável: Tarso B. FiraceFinalização do manuscrito: Equipe Editorial Imensa Vida

Dados Internacionais de Catalografia na Publicação (CIP) ________________________________________________________________________________ F 522. Firace, Tarso B. 2019 Querido PaiBelo Horizonte, MG Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971 F522 Firace, Tarso B. Querido Pai / Tarso B. Firace. —— Belo Horizonte : Instituto Imensa Vida, 2019. 144 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-54025-03-8 1. Poesia. 2. Água. 3. Psicologia - Respeito pela vida e pela natureza. I. Título. CDD B869.1_______________________________________________________________________________

Querido Pai / Tarso B. Firace,

e-mail tarso.firace@gmail.com

Site : www.imensavida.com

contato + 55 (31) 994010015 - Instituto Imensa Vida

Livros do autor :

Imensa Vida, Ouvindo as Montanhas, Alma de Mestre, Escrever e Amar, Lições de Aviação, Abrindo

as Velas, Música do Universo, O Voo dos Sonhos, O Último Segundo, Jardim das Empresas, A Era do

Significado, A Última Aula de Dante Alighieri, Terapêutica Imensa Vida 1, Pedagogia Sistêmica,

Filhos da Luz, A Luz que da Luz a Vida, Plenuum, Terapêutica Imensa Vida 2- #tarsoresponde - Olhai

as Hortênsias de Campos, A Metáfora, Quanta Água. Querido Pai.

Outros Livros da Editora Imensa Vida:

Meditaçōes, de Bert Hellinger. Tu Que Não Tens Nome de Moacir Amaral, Iluminação

Espiritualmente Incorreta de Jed McKenna. Aprendizado Sistêmico- Filmes 1, Polinizando o Mundo

no fluxo do Amor de Henderson Domingos.

Colaboradores dessa edição : Alexia Durso, Eliane Macedo Lima, Alyne Almeida Costa.

Dedicatória

Para minha irmã Tarsila Rosana,

Minha primeira fonte de inspiração.

Suas cores, coloriram meu mundo.

Tatá, você veio primeiro,

Graças a você, eu pude vir.

Você viveu sua experiência com o mesmo pai,

De forma diferente e complementar à minha.

Sou muito grato por cuidar tão bem de nossa mãe.

Querido Pai.

Esse livro acontece na ocasião em que se completam 30 anos da partida de meu pai, Salvador Firace.

Lembro que no dia de sua partida, se comemoravam 20 anos que o homem pisara na Lua. Curiosamente escrevi: Foi o dia que meu pai pisou na Terra.

Fizemos uma linda caminhada juntos.

Pai e filho, amigos, sócios, companheiros de jogo de tênis, toda semana.

Vejo agora que o tempo todo era um tentando entender o outro.

O que entendi, agora escrevo e convido os amigos para essa reflexão, sobre o significado do pai na nossa vida.

A Muralha da China

Chegar na Muralha da China, pelo caminho de Pequim, por Badaling, subindo o cable car, um bondinho que sobe e vai tirando o fôlego da gente, até chegar ao ponto mais alto e mais cênico da muralha, foi fácil. Caminhar por cima da muralha cheia de visitantes, abarrotada mesmo, também não foi difícil, foi até divertido. Mas os últimos minutos dessa aventura, antes da descida do pôr do sol, enquanto fazia as últimas filmagens para o curso Aprendizado Imensa Vida, disponível no Youtube, é que a coisa pegou.Lembrei-me da carta que meu pai me enviou, quando esteve aqui na Muralha da China. A carta era mais ou menos assim:

Querido filho,

Hoje estive na Grande Muralha. Um dia você virá conhecer, e você irá compreender e sentir, o que estou sentindo. Conhecer o mundo é tomar posse dele, uma posse temporária, uma posse sujeita a transmissão para a seguinte geração.

Querido filho,

Um dia você virá conhecer esta muralha e vai receber o que eu estou deixando para você. Ela representa o mundo. Eu te deixo o mundo, como herança, para sua posse transitória.

Então entendi que ser pai é ser capaz de doar o mundo, o mundo que no fundo não é seu, apenas está em suas mãos e com elas você o entrega. Entendi que você não joga o filho no mundo, você entrega o mundo nas mãos do seu filho, nas mãos de da sua filha. Entrega o mundo, através dos seus valores, através da confiança na autodeterminação deles.A entrega do mundo, se dá pela confiança do entendimento da nova geração. Se dá de forma silenciosa, quando a força contributiva dos filhos supera a dos pais.

O que poderia responder para ele :

Querido pai,

Subo nessa muralha da China, 40 anos depois que você esteve aqui, e para mim permanecem frescas as suas palavras. A beleza vista daqui de cima não é maior do que a beleza vista daqui de dentro.

Eu pensei ter vindo aqui para gravar um filme. Mas só agora me dou conta que vim mesmo foi assistir ao filme que você deixou, gravado no “campo” do mundo visto daqui de cima.

Já fazem 30 anos que você se foi e eu continuo recebendo suas heranças e tesouros que se somam aos meus tesouros. Eu aceito, aceito energeticamente o mundo que você dá em minhas mãos. Eu vou cuidar dele para você e para todos. Nada se passa no mundo que me seja estranho. Receber o mundo é me tornar mundo. Mas é me sentir parte de tudo, do jeito que é. Sem refutar nada.

A vida, qualquer vida, é ligada à toda vida, imensa vida. Assim também é com essa muralha. Construída para separar, nesse momento, me parece muito mais para unir. Parece não arranhar nem de leve o todo, ao qual pertence. Me conecto, sem julgamento, por pura beleza. É inegável que existe distensão entre ricos e pobres, poderosos e obedientes, os que detém conhecimento e os pagam por ele. Mas nesse momento, sobre essas altas montanhas, vejo além das divisões. Essa Muralha é apenas a metáfora da divisão do mundo. Olhá-la a partir do todo, me faz um pacificador. Receber o mundo é receber a humanidade, unificada em mim. E só pode receber o mundo, quem está unificado na sua humanidade. Só pode receber o mundo em suas mãos,

Quem está em paz, E então é capaz De olhar a Muralha E não ver separação.

Querido pai,

Eu precisei vir do outro lado do mundo, para poder abraçá-lo. E quando eu abraço o mundo, é você quem abraço.

Edinburgo

Era uma fotografia meia amassada na caixa de fotografias na casa de minha mãe. Uma foto junto com tantas outras. Meu pai, uns amigos e atrás deles um castelo. Aquela foto puxou inteiramente minha atenção. Que lugar é este ? Quem são esses amigos sorridentes de meu pai ? Porque ele está tão sorridente ? Guardei a foto e voltamos para casa, na fazenda da Barra Grande, em Avaré. Naqueles dias, olhando a foto, me pus numa genuína alegria. Como se realmente estivesse com ele lá. Achei no Google a informação. Castelo de Edimburgo, construído do século IX ao século XII. Que espetáculo !!! Me vi lá, com os filhos ainda pequenos, 6,4 e 2 anos. Naquela semana recebi uma propaganda da Companhia Aérea Continental, oferecendo um voo para América do Norte com um ponto na Europa pelo mesmo preço de um voo comum. Hummmm Foi a oportunidade.

Querido pai,

Londres, manhã de 10 de janeiro. Malas prontas no carro. Destino Edimburgo. Que loucura pai. Ontem era só uma fotografia, Hoje é uma expedição. Somos 7 pessoas. A mamãe também veio. Logo após o café da manhã, partiremos. Está tudo congelado. E dirigir com a direção do outro lado, exige toda atenção. Já quebrei dois espelhinhos de outros carros por descuido. Adoro viajar com os filhos. Eles ainda são pequenos, é mais fácil. Faço com eles igual você fez comigo. Ensino-os viajar. Viajar não é se deslocar. É entrar nos diferentes mundos que existem no mundo. Entrar e ver como se sente a gente desse lugar, e sentir se nós mesmos, nos sentimos em casa. Foi assim comigo. Assim também ofereço a eles.

Saímos do Hotel em Dartford, para Manchester, onde já havia trabalhado na Herbert Atritor, há alguns anos antes, quando aprendi tomar cerveja quente, e de lá, seguimos para o norte. As tardes são curtas, com por do sol às 15:30. Comidas e refrigerantes no carro. As estradas escorregadias, neve e gelo. Então a uma certa altura,

Tudo vai ficando verdinho. Paro e respiro. Olho em todas direções e digo : “A Escócia é linda ! “

Na luz da tarde chegamos em Edimburgo. Antes mesmo de ir para o hotel fomos ver a cidade. E lá estava ele, meu velho conhecido por foto. No ponto mais alto, todo iluminado, impressionante. Parei o carro o mais perto possível do castelo. Abri a porta para sair, quando percebi que estava tudo gelado. O caminho para o castelo era praticamente uma pedra de gelo. Foi quando a filha caçula pegando a mão da vovó, disse: “ Vamos patinar vovó !!! ” Ver o castelo ao vivo é muito mais impactante do que pela foto. Fomos para lá. Andando à noite naquele lugar, olhando as mesmas edificações daquela foto, senti meu coração cheio de gratidão por ter vindo. E no meu coração escutei :

Querido filho.

Que lindo lugar é esse. Que bárbaro você ter vindo com todos. Que aventura. Aqui viveram os reis dos escoceses que nunca se deram bem com os ingleses, que se sentiam superiores.

Aqui esse povo aprendeu a cultivar a cevada e o centeio, e aqui ao lado em Glasgow, eles destilaram o primeiro Whisky. Esse povo é muito forte e determinado, nunca abriu mão do sonho de ser uma nação. É um pouco como você que não abriu mão do sonho de vir até aqui. Aprenda isso aqui. Não abra mão de nenhum de seus sonhos. Não importa se pequeno ou grande. Se é um grande feito ou se é só uma coisa que lhe dá prazer.

Edimburgo é uma carta de amor. Minhas lágrimas rolavam. Trabalhamos 12 anos juntos. Todos dias, quando fomos sócios na empresa dele. E nesse tempo aprendi a escutar seus pensamentos. Conversávamos pelo silêncio. Escutar essa carta, e respondê-la, foi moleza.

Querido pai,

Alegria é minha em estar nesse lugar que você esteve e também se emocionou e fotografou sorridente. Sua emoção ainda está aqui. Fomos andar, escorregamos muito. Viemos para o hotel. Estou tomando um Malte Whisky, Talisker.

Essa bebida é bem forte. “Embaralha as vista do caboclo.” Ofereço meu copinho para um tchim tchim. Para que você daí retribua tomando alguma coisa, do tipo, néctar dos deuses… Minhas pernas tremem além do frio. Sinto a sensação de um escalador que chegou no topo de uma montanha. Sinto um tipo de consagração, um marco, uma conquista. Vim aqui porque senti seu chamado naquela fotografia, Eu sabia que tinha uma peça do quebra cabeça aqui nesse palácio. Estar aqui, querido pai, é descobrir a força da inspiração. Ela move e comove pela poesia, pela leveza, pelo sentido. Chegar aqui me emociona inteiramente. Me sinto um menino com o braço junto do seu braço. Mas para te dar o abraço, pai. Só abraçando o mundo.

Fazenda de Avaré

O vento sopra sem medo no altiplano, Cuesta de Botucatu. O nome geográfico dessa região. Vim aqui em cima morar. Lembro-me da última reunião com meu pai na empresa, quando reunimos todos os gerentes num Hotel em Santa Bárbara. Era reunião de planejamento. E, no final, apareceu uma pergunta: Qual é o projeto que mais você deseja ? Lembro-me de ter escrito: Morar na Fazenda. No frio daquelas semanas seguintes do inverno de 1989, meu pai partia. Aneurisma discecante da aorta. Disseram. Para mim ele morreu de Salvadorose, com traços de Salvadorite. Morreu das cargas do pai dele,( ite ) que não deu conta de carregar. Morreu das cargas e sua mãe, ( ose ), que partiu muito jovem, deixou um buraco grande no peito daquele menino de 14 anos. Foi assim.

Bom, depois daquela reunião de planejamento, dois anos certinho, tive a chance de começar arrumar a casa e executar o planejado, morar aqui e oferecer para os filhos que foram chegando, a experiência da infância na fazenda. Morar na fazenda me fez compreender várias mensagens deixadas pelo meu pai.

A primeira que me ocorre agora é : Da mesma forma como as coisas ocorrem, elas podem desocorrer.

A empresa tinha sido grande depois diminuiu e depois voltou a crescer. Nada é estático. Pode ser uma boa morar na fazenda e pode ser uma melhor ainda depois partir. Mas pelo tempo que estou aqui, tenho a chance de fazer um mergulho na alma da família. Meu avô Domingos plantou o pomar aqui ao lado. Meu pai plantou os Eucaliptos. Eu plantei a Espatódia que floresce no dia do meu aniversário. Como são perfumados esse Eucaliptos, são Citrodoros. Morar na fazenda, morar no sonho, me convida escrever essa carta :

Querido pai,

É pôr do sol. O tempo é sempre fresco em Avaré. A música do vento passando pelas árvores em volta da casa, compõe com o som das brincadeiras de crianças tomando banho. Eu sento aqui numa dessas cadeiras que sentávamos na varanda, você e eu, e ainda lembro das conversas que tivemos aqui. Quanta informação. Lembro da sua animação no domingo, lá pelas 3:00 horas, depois do almoço, você levantava e dizia: “ Bom, está tudo muito bem, mas chegou a hora de ir. Tenho muita coisa para fazer nessa segunda…”

Ahh, como me doía ver você. Incansável. Como você amava seu trabalho… Como se dedicava. Era Brasília pra cá, ministro pra lá. Lembro quando você teve que receber o presidente da França na Fiesp. O François Mitterrand. E você falou que ia levá-lo lá pra casa e mamãe quase surtou. Rsrs. Quanta energia você tinha. Como imaginar que você iria embora tão cedo, 65 anos. Você quase não aproveitou a fazenda.

Querido pai,

Depois que você se foi, eu realizei o sonho de vir morar aqui. Agora em família, moramos aqui pertinho dos seus Eucaliptos. Passeando com as crianças, demos o nome de pessoas queridas para todos eucaliptos. Você é esse primeirão. Pai, nessa tarde que adentra noite, eu escuto a mensagem que você deixou plantada para mim.

Então mudando a palavra…

Querido filho,

A fazenda é um pedacinho da terra, igual a todos pedacinhos de terra de todas as partes da Terra.

A fazenda conta a história da nossa família desde o final dos anos 50, quando eu a comprei, você era um menininho de 2 anos que fez xixi na porteira e essa foi a inauguração. Essa fazenda é o um campo onde a gente aprendeu colher samambaia, aprendeu produção de leite, mas sobretudo é um campo de se aprender quem você é no mundo. Aprender ser família. Aprender a cuidar da família como uma árvore de raízes profundas voltada para seus frutos.

Querido filho,

Se você escutar bem o vento que sopra entre os galhos das árvores, você vai ouvir a mensagem : A fazenda não é um destino, é um meio. Hoje é a casa de vocês. Mas para crescerem, vocês poderão deixar a fazenda.

Querido filho,

Aproveite o período que estiverem aí. Ele vai ficar marcado para sempre na sua vida e na de seus filhos, como sendo uma espécie de lastro natural, do contato com a natureza.

Eles vão viver uma vida mais descomplicada devido ao tempo que passaram aí. O contato com a natureza, descomplica.

Aproveite o tempo que passar aí. Depois então, quando as demandas mudarem, você encontrará o que fazer. Se mantenha vivo e fresco como essas árvores, elas vão inspirar você para as mudanças, para o bem de vocês.

Florença

Querido pai,

Vim visitar minha filhinha que está morando esse ano aqui em Florença. Veio fazer um aprofundamento de seu curso de Arquitetura. Esta é uma cidade especial. Principalmente apreciar o por do sol na Piazzale Michelangelo. Eu me lembro bem quando vim aqui com você, ainda adolescente, conhecer essa cidade incrível.

Eu entendo o fascínio que essa cidade tem sobre você, e sobre a humanidade. Tantas coisas legais começaram aqui.

A primeira escola laica, não confessional do mundo surge aqui. Até então, todas escolas tinham professores, os que professavam sua fé, daí o título. Mas aqui uma escola, estudava pela primeira vez a natureza das coisas. Salvatore, seu xará, e o amigo dele, Bruno, montaram essa escola, mãe de todas as escolas modernas.

Aqui também o primeiro banco. O Banco dos Borges. A expressão bancar, financiar, emprestar com juros, começou aqui. E no mesmo momento que se desativou os algarismos romanos. Não dava para calcular juros com MCCCVII menos MCII. Era preciso os algarismos arábicos, que eles tomaram emprestado do povo árabe, aqui do outro lado do Mediterrâneo, vindo da escola de Alexandria.

Mas nessa cidade, nasceu e viveu um bom tempo o seu amigo, Dante Alighieri, que enquanto os banqueiros descartavam os algarismos romanos, ele descartou o latim de vez, e fez poesia no idioma falado ali. O dialeto local, vulgaris, o vulgar. Dante era médico, e foi prefeito, junto com outros dois. Ele era o Secretário da Saúde, um cargo técnico. A política na época estava fervendo. Guelfos contra Gibelinos. E o colega prefeito dele foi preso por furto, e condenado a morte, e a condenação deste incluiu o gabinete todo. Imagine Dante chegando de uma viagem de duas semanas, a pé, “andante”. Quando chega na ponte recebe a notícia. “Se você entrar na cidade, os soldados tem ordem de te matar.” Condenado injustamente, teve que se exilar. Se escondeu numa abadia onde escreveu muitos livros. Um ano antes de morrer em Ravenna, deu uma palestra. Deixou seu legado intelectual. Questio del’Aqua e Terra. Uma ode de amor ao mundo, que tive a oportunidade de traduzir para o português. Foi incrível. Eu escutava seu texto em latim, ia boiando mesmo, mas pegava o ritmo, a métrica. Dai pegava em italiano e inglês. Então vinha na minha cabeça o texto pronto em português, até com rima. Falava de Economia, da riqueza de todos, de Física Quântica, do movimento circular das estrelas e da esfericidade da Terra, isso 300 anos antes de Galileu. Incrível. Entendi sua amizade por ele, materializada nos comentários que você escreveu da Divina Comédia, que publiquei no livro Coraggio. Uma celebração aos 20 anos depois da sua partida.

Querido pai,

Você foi como ele. Um poeta em pele de empresário. Um sonhador idealista. Um diplomata. Um político capaz de olhar além do próprio umbigo. Tantos cargos públicos você ocupou. Nomeado Secretario de Estado da Agricultura, preferiu trabalhar na Sunab, coordenar o abastecimento pelo Ceagesp e continuar na Bolsa de Cereais. Você só não teve tempo e paz de espírito para escrever a poesia e o teatro que corriam em suas veias.

Querido pai,

Acabei fazendo isso por você. Escrevo livros de assuntos sérios, mas quando vou ver, é tudo poesia. Agora vejo, Olhando daqui vejo a ponte Trinitá, Fiz isso por você. Sob a ponte passa o rio. Sob o rio passa a história. O que não passa são as saudades de você.

Assis

Paro o carro na frente da Santa Maria Maggiore, um igrejão construído em cima da Porciúncula, a igrejinha construída por São Francisco e seus amigos, no Vale de Peruggia. O carro é um conversível italiano. Novinho. Alugado. Todos olham, é lindo mesmo. Subo correndo a escada e entro naquela enorme sala vazia com uma capelinha ao centro. Estive aqui pela primeira vez em 1980, quando vim trabalhar em Lugano. Dei uma escapadinha em vim. Foi quando senti algo estranho. Ao entrar na capelinha me senti como se meu corpo não tivesse peso, como se tivesse tirado a tampa da minha cabeça, minha calota superior do crânio. Como se tivesse explodido e junto com isso, o teto da capela. Como se minha mente estivesse em contato direto com o céu. Meu coração parecia sair pela boca. Me senti integrado. Eu e a vida éramos uma coisa só. Então sai correndo dali. Pé de pato mangalô três veiz. E nesse lugar voltei outras vezes. E um ano antes de meu pai partir, levei-o lá. Sem contar nada do ocorrido comigo, Ele entrou na capelinha, E em cinco minutos saiu correndo, Pálido, com a respiração ofegante.

Pai, o que aconteceu ? Perguntei. Ele disse. “Puxa, que capelinha forte. Eu entrei e sentei no banco. De repente. Pluum ! Parecia que o teto da capela tinha se aberto, E eu parecia ser alguém diferente de quem sou. Um tipo ser universal. Eu segurei na mão dele e não disse nada. Mas hoje diria :

Querido pai.

Que espetáculo. Você experimentou o mesmo que eu tinha experimentado. Até sua reação foi igual, picar a mula. Hoje eu vejo esse episódio, e me arrisco entender. Somos parte de uma imensa vida. O todo está na parte, a parte está no todo. Se soubéssemos ver energia, não nos assustaríamos. Veríamos isso em toda parte. Mas nossos olhos veem apenas matéria, matéria iluminada. Matéria distorcida pela luz. Lá na capelinha você viu quem você é. Esse que agora você vê o tempo todo, já que você está fora do tempo. Fora da distorção da luz, a ilusão, ou luzão, que inverte tudo. Eu aqui ainda preciso desinverter para entender.

Desinverter a alegria do nascer Desinverter a tristeza do morrer Desinverter a ideia que luz é totalidade. Desinverter a ideia que almas são individuais. Desinverter a ideia que riqueza é o quanto cada um

consegue juntar para si. Desinverter que o principio ativo é que cura.

Querido pai,

O que viveu na capelinha Foi o abraço do aqui-agora.

Moinho da fábrica

Era um velho moinho da década de 50. Instalado no centro da antiga fábrica. Moinho de martelos, superado, acionado por motor e polias. Estava lá, desde a instalação da empresa. Varias décadas se passaram e ele continuava lá. O produto que fazia, foi descontinuado. O novo produto veio exigindo um moinho moderno, de roletes suspensos.

E o velho moinho continuou lá.

Muitos chegavam e perguntavam : Porque esse moinho ainda está aqui ? Muitos depunham sobre ele: Esse moinho já não serve há mais de 30 anos. Porém eu deixava ele lá, firme. Foi o primeiro moinho montado por meu pai.

Querido pai,

Depois que você partiu, procurei entender melhor as coisas que você fazia. Seu trabalho na Federação das Indústrias, que tanto você amava. Muitos me contaram que você resolvia todos os problemas.

Vejo a sua ligação com este moinho, o primeiro que você montou, para moer samambaia do campo, extrair dela os ingredientes para ração. Você foi um moinho. Incansável. Trabalhou até o último minuto, da última noite, gravando programa na televisão. Mas pai, quinze anos depois que você partiu, A fábrica mudou muito, e se tornou uma fábrica de granulados para fertilizantes e eu a vendi. E os novos donos, na primeira mexida na fabrica, arrancaram o velho moinho. Mas a essa altura, O velho moinho, Já era eu.

Querido filho,

A primeira indústria no mundo, foi a moageira. Moer grãos. Eram moinhos com roda d’água, substituindo o trabalho repetitivo, de homens e animais.

Quando eu montei a primeira empresa, coloquei um nome parecido com o seu: Tarsum. Era uma forma de juntar forças. O filho que nascia junto com a empresa.

Claro que sonhava com você tocando o moinho junto comigo. Mas tudo tem seu tempo. O meu tempo de moageiro venceu. E depois o seu, venceu também.

E desse velho ofício, Você ficou com a melhor parte, Você ficou com a água, Quanta Água.

Querido pai,

Como diz o Bert Hellinger, Você é o pai certo para mim. Quando eu tinha 15 anos, você não me entendia, mas mesmo assim me apoiava. Você é o pai certo para mim. Aos 21 anos, você continuava não me entendendo e continuava sendo o pai certo para mim. Quando comecei trabalhar com você, precisei encontrar meu espaço, precisei mudar para longe, morar no interior, perto da fábrica, e lá eu aprendi trabalhar com você. Entender você e a enorme confiança que você tinha na autodeterminação das pessoas. Quando eu comprei o monomotor, e você escondendo o espanto me disse: Você vai me prometer uma coisa : Voar somente quando sentir confiança, e se tiver uma luzinha não funcionando, você não decola.

Querido pai, certo pai.

Preciso te contar uma coisa. Nem sempre voei com tudo funcionando. Uma vez, voando num evento que convidava as crianças da cidade a virem fazer o primeiro voo, voei com o recolhimento do trem de pouso inoperante. Mas era por uma boa causa. Mais de 100 crianças fizeram o primeiro voo naquele dia, sempre com as rodinhas abaixadas.

Querido filho.

Ainda bem que eu já tinha morrido. Tem coisas que é melhor mesmo a gente não saber. Como foi naquela capelinha na Itália. Aquilo foi forte mesmo, e nem dava para falar. Quase que eu morro ali mesmo. Me senti tragado para dentro. Meu corpo era leve Minha mente era o universo Quando eu morri, eu me lembrei daquele momento. Só que foi diferente. Mas não vou te contar para não estragar a surpresa. Só te digo uma coisa : não é ruim morrer. É até legal. Não pensa e vai indo que dá tudo certo.

Mas se uma luzinha não estiver funcionando, Não morra. Conserte primeiro, rsrs.

Rio de Janeiro

Congresso Mundial da Indústria de Rações. Um grande evento. Coube-me receber e acompanhar os europeus. Traduzia os recados para italianos e alemães. Era o almoço final, num grande restaurante com a vista da Baia da Guanabara. Meu pai começou o discurso de encerramento e depois dos agradecimentos todos, percebi que seu discurso começara a perder força. Peguei um guardanapo fiz umas anotações e um desenho e mandei pelo garçom para ele, que leu, respirou e terminou seu discurso assim.

“ Senhores congressistas, peço que os senhores olhem pela janela e vejam essa enorme ponte. Ela representa a união que fizemos esses dias, entre a Europa e o Brasil, que assim continue.”

Querido filho,

Quando chegou aquele guardanapinho com o desenho da ponte e o escrito, foi como um copo de água gelada para alguém com sede no deserto. Desde quando você era pequeno eu já dizia dos seus

escritos : Ogni parola, cento quili. Cada palavra, cem quilos. Assim me sentia com o que você escrevia.

Atenas, Acrópole

Querido pai,

Vim gravar um filminho aqui em cima na Acrópole. “ Ainda ecoam as palavras dos filósofos…” O céu é mais azul sobre a Grécia. Youtube Aprendizado Imensa Vida, Partenon. Isso inspiraram aqueles moços filósofos a captar a verdade. Lembrei-me de um cartão postal que você me mandou daqui em 1977, quando veio com a mamãe e alguns amigos, onde você dizia. “Assim como essas colunas calcárias resistiram os séculos, assim você permanece dentro de mim” Demorei umas décadas para entender isso que você me escreveu. Mas quando entendi, me tornei um pai melhor para meus filhos.

Rio Amazonas.

Querido pai,

Estou aqui no encontro das águas do Rio Amazonas, perto de Manaus. O mesmo lugar onde vim com você, a bordo do navio Princesa Isabel numa viagem de 30 dias que fizemos desde Santos até aqui, nos anos 60, e marcou para sempre. Lembro-me de encher bexigas e prendê-las a pequenas quantidades de suprimentos juntadas no navio, para serem entregues aos índios. Eles chegavam em canoas, assobiavam, recebiam os presentinhos. Mas foi o encontro das aguas que nunca mais me saiu da cabeça. Como pode ? Dois rios que caminham juntos e não se misturam. Um, o Negro, com esse nome cromático, praticamente um chá escuro de ácido tânico. Vem lento, e pelo caminho pega a decomposição de muitas folhas. Vem se arrastando desde a nascente, lá nos Andes. É um rio silencioso, profundo. O outro, Solimões, é um rio jovem, que vem desbarrancando as margens, ruidoso e barrento. Preferido pelos peixes gigantes, como o Pirarucú, que precisam das águas turvas para não serem vistos por suas presas. O encontro dos dois, é como o encontro do feminino, o Negro e o masculino, o Solimões. Desse encontro, nasce um terceiro. Me ponho a escutar os pensamentos que teve quando aqui estivemos.

Querido filho,

Você era uma criança. Talvez não entendesse o que estou te falando. Mas vou deixar uma mensagem gravada, aqui no encontro das águas. A mensagem é o encontro. Filho, você vai ter muitos encontros em sua vida. Não só de pessoas e amores. Mas encontros que o farão aprender como co-existir na diversidade. Encontro entre o antigo e o novo, entre conservador e o progressista, entre espartano e luxuoso, entre o previsível e o inesperado. O encontro não significa perda de um dos lados. Encontro é a capacidade de convivência entre os diferentes. No Amazonas, Negro e Solimões se encontram, e percorrem oito quilômetros em convergência. Dessa convergência, nasce o Rio Amazonas, o gigante. Se você aprender a mensagem do encontro das águas, você vai ser como o Rio Amazonas. Se você aprender o que é encontro, Verá nascer muitos Rios Amazonas. A vida é a arte do encontro. Seu trabalho no mundo será como o encontro das águas. Águas terrestres e águas celestes. Você vai realizar essa fusão. Águas em convergência. Essa é a metáfora que deixo para você.

Querido pai,

Estou aqui em Manaus no encontro das águas. Tenho hoje, quase a mesma idade que você tinha quando partiu. Eu vejo quão grande foi a herança que você deixou, Ao me entregar o mundo escondido nesses tesouros. Eu fui juntando o quebra-cabeças, Aqui e ali. Na grande metáfora que você me deixou. Cada parte do mundo, revela o mundo todo. Então senti vontade de escrever esse livrinho comemorativo. Ditei no gravador uma parte, quando estava em Manaus, na casa do amigo de infância. Outra parte deixei para escrever aqui no barco, O Imensa Vida, No meio da represa de Furnas, onde vim me retirar para escrever esta homenagem para você, que foi pai não só dos seus filhos, mas foi pai dos amigos dos filhos, foi um pai dos sobrinhos e sobrinhas, foi o pai dos jovens para quem você deu palestras, trabalhou junto e conviveu.

Querido pai,

Aceite minha reverência. Já se foram 30 anos, Mas parece que foi ontem. Obrigado. Você é maior

20 de julho 1969, o dia que o homem tocou a lua, 20 de julho 1989, o dia que o homem que foi você, tocou o céu.

Salve 20 de julho de 2019.

Abraço apertado.

Imensa Vida ; 31 994010015