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14 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR Portuguesa A os 23 anos, prestes a se casar, recém-formada e com medo de não conseguir emprego num país que vive a pior crise desde que ela nasceu, Ana Rita Amaral Carvalhote reuniu as amigas pa- ra sua despedida de solteiro. Onze mu- lheres em situação financeira confortável o suficiente para pagar 33 euros, 7% de um salário mínimo, cada uma por um jantar em um domingo à noite. Estavam tão consternadas quanto Ana Rita. Ti- nham irmãos, filhos, pensavam elas mes- mas em sair do país por uma vida estável, estavam preocupadas com seu futuro e as dificuldades dos mais pobres. A conten- ção de gastos poderia levá-las a pensar duas vezes antes de comprar aqueles sa- patos lindos em liquidação. Seria motivo suficiente para matar o FMI? Não é de hoje, nem por conta do fun- do, que a situação no país está difícil. O crescimento está abaixo dos 2% des- de 2007, o desemprego acima dos 10% desde 2009. Só no último ano e meio fo- ram quatro pacotes de aumento de im- postos e redução de subsídios sociais. Mas a dependência do fundo ameaça tornar refeições como aquela bem mais raras por conta do aumento de impos- tos sobre os restaurantes. E foi do FMI a ideia (ou ordem?) de cortar pela meta- de o 13º salário dos portugueses. “Era bom mesmo que alguém o matasse” diz Manuela Amores, de 80 anos. Ana Rita decidiu levar as amigas ao Storik, na Baixa de Lisboa, restaurante que inventou o jogo interativo cujo obje- tivo é encenar uma espécie de “Detetive” e descobrir quem matou o FMI. “É uma forma de atrair mais clientes, ter mais visibilidade. E também de oferecer uma maneira de relaxamento nestes tempos difíceis”, diz o gerente, Daniel Filipe. É preciso reunir ao menos dez participan- tes ao custo de 33 euros por cabeça. O jo- go se desenrola durante o jantar, onde cada comensal desempenha um papel. No primeiro mês, a procura não chega a ser animadora – não se sabe se pelo de- sinteresse no jogo ou por falta de dinhei- ro. Além da turma de Ana Rita, mais três grupos toparam a brincadeira. Na sala de espera do restaurante, Ana e as amigas não pareciam preo- cupadas a ponto de tomar medidas ex- tremas. No máximo, abusar da sangria, servida à vontade. Já na mesa, um ca- pacete para acompanhar obras, um ta- cho e algemas sexuais indicavam o per- fil dos personagens. Segura de si, Ana Rita levantou-se perante as amigas, vo- ciferou alguns índices econômicos, dis- se que Portugal estava sendo fustigado pelos mercados e estava muito feliz de ter todas ali reunidas e quietas, permi- tindo que ela ouvisse a própria voz. Era ela no papel do ex-premier de Portugal, uma caricatura acossada e engomada de José Sócrates, que deixou o governo após pedir socorro ao FMI e perder as eleições antecipadas em junho. Desesperada com a crise conjugal e a greve de sexo do marido mais que com a do país, Sócrates, ou melhor, Ana Rita, ocupou-se de vender, com a ajuda da tia, que encarnou o papel de banqueira, par- te do patrimônio público português. Du- rante a noite descobriu-se que o Palácio da Ajuda, onde a família real vivia antes da partida para o Brasil, em 1807, era ne- gociado com a máfia russa, para sediar uma fábrica de matrioskas, e com a Igre- ja Universal. O governo português talvez O APERTO PORTUGUÊS DÍVIDA PÚBLICA: 99,8% DO PIB DESEMPREGO: 12,2% PIB: 172,7 BILHÕES DE EUROS O jantar da crise Restaurante em Lisboa oferece pacote no qual os clientes podem investigar o assassinato do FMI POR SIMONE CUNHA •CCPortuguesab658.indd 14 8/3/11 6:57:00 PM

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Brasiliana da revista Carta Capital

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Page 1: Quem matou o fmi

14 www.cartacapital.com.br

Portuguesa

Aos 23 anos, prestes a se casar, recém- formada e com medo de não conseguir emprego num país que vive a pior crise desde que ela nasceu, Ana Rita

Amaral Carvalhote reuniu as amigas pa-ra sua despedida de solteiro. Onze mu-lheres em situação financeira confortável o suficiente para pagar 33 euros, 7% de um salário mínimo, cada uma por um jantar em um domingo à noite. Estavam tão consternadas quanto Ana Rita. Ti-nham irmãos, filhos, pensavam elas mes-mas em sair do país por uma vida estável, estavam preocupadas com seu futuro e as dificuldades dos mais pobres. A conten-ção de gastos poderia levá-las a pensar duas vezes antes de comprar aqueles sa-patos lindos em liquidação. Seria motivo suficiente para matar o FMI?

Não é de hoje, nem por conta do fun-do, que a situação no país está difícil. O crescimento está abaixo dos 2% des-de 2007, o desemprego acima dos 10% desde 2009. Só no último ano e meio fo-ram quatro pacotes de aumento de im-postos e redução de subsídios sociais. Mas a dependência do fundo ameaça tornar refeições como aquela bem mais raras por conta do aumento de impos-tos sobre os restaurantes. E foi do FMI a ideia (ou ordem?) de cortar pela meta-de o 13º salário dos portugueses. “Era bom mesmo que alguém o matasse” diz Manuela Amores, de 80 anos.

Ana Rita decidiu levar as amigas ao Storik, na Baixa de Lisboa, restaurante que inventou o jogo interativo cujo obje-tivo é encenar uma espécie de “Detetive” e descobrir quem matou o FMI. “É uma forma de atrair mais clientes, ter mais

visibilidade. E também de oferecer uma maneira de relaxamento nestes tempos difíceis”, diz o gerente, Daniel Filipe. É preciso reunir ao menos dez participan-tes ao custo de 33 euros por cabeça. O jo-go se desenrola durante o jantar, onde cada comensal desempenha um papel. No primeiro mês, a procura não chega a ser animadora – não se sabe se pelo de-sinteresse no jogo ou por falta de dinhei-ro. Além da turma de Ana Rita, mais três grupos toparam a brincadeira.

Na sala de espera do restaurante,

Ana e as amigas não pareciam preo-cupadas a ponto de tomar medidas ex-tremas. No máximo, abusar da sangria, servida à vontade. Já na mesa, um ca-pacete para acompanhar obras, um ta-cho e algemas sexuais indicavam o per-fil dos personagens. Segura de si, Ana Rita levantou-se perante as amigas, vo-ciferou alguns índices econômicos, dis-se que Portugal estava sendo fustigado pelos mercados e estava muito feliz de ter todas ali reunidas e quietas, permi-tindo que ela ouvisse a própria voz. Era ela no papel do ex-premier de Portugal, uma caricatura acossada e engomada de José Sócrates, que deixou o governo após pedir socorro ao FMI e perder as eleições antecipadas em junho.

Desesperada com a crise conjugal e a greve de sexo do marido mais que com a do país, Sócrates, ou melhor, Ana Rita, ocupou-se de vender, com a ajuda da tia, que encarnou o papel de banqueira, par-te do patrimônio público português. Du-rante a noite descobriu-se que o Palácio da Ajuda, onde a família real vivia antes da partida para o Brasil, em 1807, era ne-gociado com a máfia russa, para sediar uma fábrica de matrioskas, e com a Igre-ja Universal. O governo português talvez

o aperto português

DíviDa pública: 99,8% Do pib

Desemprego: 12,2%

pib: 172,7 bilhões De euros

O jantar da crise Restaurante em Lisboa oferece pacote no qual os clientes podem investigar o assassinato do FMIpor Simone Cunha

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bem que gostasse da ideia, mas tem tido dificuldade de vender os imóveis, qual-quer imóvel. Desde junho realiza leilões que não atraem compradores.

No jantar, o país ficou sabendo que te-ria de passar para frente também Cris-tiano Ronaldo e o estádio do Benfica. A mãe de Ana Rita, no papel de sindicalis-ta, denunciou a venda da vista para o Te-jo. Uma greve geral tinha sido convoca-da para secar o rio e impedir o negócio.

Na mesa, o líder da oposição não fa-zia mais que culpar a premier pela cri-se e pedir sua nomeação para o cargo. Pedro Passos Coelho, na vida real, ho-je está acomodado na cadeira que Só-crates deixou. A cunhada de Ana Ri-ta, fazendo as vezes de prefeito do inte-rior, propunha obras megalomaníacas e insustentáveis. Mas o fundo só quer saber de cortes. Com 500 mil habitan-tes, Lisboa tem, por exemplo, um me-trô deficitário. O FMI sugeriu (ou man-dou?) o reajuste das passagens em 15% na segunda-feira 1º. De verdade, não na brincadeira do restaurante.

Com sotaque afrancesado, a prima de Ana Rita, o Dominique Strauss-Kahn da noite, desenvolveu um especial interesse por empregadas de hotel e jantou acom-

panhada das algemas sexuais. A avó se dizia a melhor amiga dos portugueses, uma grega capaz de tudo para salvar a imagem de Sócrates e do seu país.

Entre uma garfada e outra, elas fize-ram a caricatura de Portugal e tenta-ram descobrir quem seria a responsá-vel pela morte “que todos gostariam de cometer”, como disse a tia de Ana Rita, Margarida Amores Trindade. Ao sabor do flammekueche, um prato típico da Alsácia, e com enredo tragicômico fica mais fácil engolir a crise.

No moral do jantar, a culpa não é só do FMI – coitado, tão bom –, é também dos portugueses. “A história é sobre es-se assunto incontornável hoje em Por-tugal. Sobre o FMI, mas também so-bre nós e o papel que tivemos na crise”, diz Rui Pereira, diretor da empresa de serviços interativos que vende os paco-tes no restaurante. “O país teve dinhei-ro, gastou tudo, não produziu, agora não consegue pagar, sempre fomos assim.”

Longe do tacho, Joana Taborda, cunhada de Ana Rita, diz não se impor-tar de dar a metade do 13º para assegu-rar condições mínimas a quem precisa. “É sinal de que podemos contribuir, es-tamos numa situação confortável.”Ana Rita olha a cena do crime, já na so-bremesa, e prevê uma resposta. A ami-ga Sofia Caxaria está a três anos do fim do curso de conservação e restauro e vê como fato trabalhar no exterior, co-mo seus dois irmãos fizeram. A prima, Fernanda Furtado Lopes, tem um filho que só conseguiu contrato efetivo na Polônia. Os professores avisaram que será difícil conseguir um emprego. “Só se fala em sair, se tiver de ir, vou. Uma das opções de que nos falam é o Brasil.” E quem matou o FMI? Não importa. •

todas suspeitas. Na despedida de solteira de Ana Rita Carvalhote (no papel de primeiro-ministro), a prima Fernanda Lopes (com as algemas nas mãos) e as amigas Joana Lopes e Joana Taborda (acima, no detalhe) encaram o jogo. O pacote sai a 33 euros por cabeça e brinca com a “situação incontornável” de Portugal, segundo o organizador

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