quarta-feira, sem falta, lá em casa · ainda com o pano fechado e a plateia às escuras, ... lá...

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Quarta-feira, Sem falta, Lá em casa Texto de Mario Brasini

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Quarta-feira,

Sem falta,

Lá em casa Texto de Mario Brasini

PERSONAGENS

LAURA

ALCINA

Ainda com o pano fechado e a plateia às escuras, ouve-se um

toque prolongado de campainha, logo depois se ouve a voz de

Laura.

LAURA (Voz fora) – Já vai! Já vai! Calma... (E o pano se abre. Laura,

vindo do interior do apartamento, abre a porta.

É Alcina, elegantíssima, de pequeno chapéu,

carregada de joias, que, ao longe se percebe

que são verdadeiras).

ALCINA (Com espanto) – Você?

LAURA (Como quem diz “deixa pra lá”) – Ah! (Beijam-se,

formalmente).

ALCINA (Ainda na porta) – E a Helena?

LAURA – Entra.

ALCINA (Obedecendo) – Você abrindo a porta? (Laura, sem

responder, tranca a porta, cuidadosamente, e

guarda a chave consigo, sem que Alcina

perceba. Depois, volta para perto da amiga,

que ainda está em pé. Alcina insiste na

pergunta). Helena está doente?

LAURA – Senta, senta. (Alcina obedece-a intrigada. Pequena pausa).

Suas pílulas. (Alcina é daquelas que adoram

remédios... Abre a bolsa e entrega o saco

plástico contendo alguns frascos). O horário.

(Alcina procura na bolsa uma folha de papel,

que Laura desdobra e lê com certa dificuldade,

porque é míope). Bom, o próximo é às quatro

horas. (Confere seu relógio de pulso). Temos

tempo. (Depois, observando que Alcina está

tensa). Fique à vontade, querida.

ALCINA – Estou à vontade. (O que não é de todo verdade. Pequena

pausa e Laura retoma a conversa, procurando

manter o tom corriqueiro de sempre).

LAURA – Trouxe o xale?

ALCINA – Está aqui.

LAURA – Vai botar ou prefere que eu feche a janela?

ALCINA – Está quente. Por enquanto está bom.

LAURA – Mais tarde, então? (E se senta; ela também. Não passa

despercebido para Alcina, que Laura está um

tanto estranha, embora procure disfarçar).

ALCINA (Depois de pequena pausa) – E Helena? (Outra pausa). Não

está?

LAURA -... Não.

ALCINA (Com espanto) – Saiu?

LAURA -... É.

ALCINA (Espanto total) – Numa quarta-feira, Laurita? Helena saiu

numa quarta-feira?

LAURA (Não aderindo ao espanto de Alcina) – Desde sábado.

ALCINA (Mais espantada ainda) – E você está sozinha em casa?

Laurita: por que não me avisou? Eu mandava o

chofer lhe apanhar, minha querida! Lanchávamos

lá em casa. Era melhor.

LAURA – Ainda sou capaz de fazer um chá, ferver meio litro de leite... E

abrir um pacote de biscoito, e apanhar duas

xícaras na cristaleira.

ALCINA – Sim, mas...

LAURA – Você sabe que eu mesma cuidava de tudo...

ALCINA – Eu sei, mas...

LAURA -... Sozinha. E se não fosse aquela fratura... (Bate na coxa).

ALCINA – Certo.

LAURA -... Ainda não tinha empregada metida nesta casa. Infelizmente,

um dia foi preciso.

ALCINA (Agora defendendo Helena, na suposição de que Laura

está zangada com ela) – Mas Helena é ótima!

LAURA – Vai ficar de chapéu?

ALCINA – Oh! (E ri). Esqueci-me do chapéu! Preocupada com você

sozinha... (E sempre rindo, tira o chapéu).

LAURA – Deixe ver.

ALCINA – Não senhora! (E tenta levantar-se, a princípio sem muito

sucesso). Eu levo pro quarto.

LAURA – Nada, Alcina!

ALCINA – Era só o que faltava! Eu sei onde é!

LAURA – Dê aqui. (E Alcina obedece. Deve-se perceber que Laura

exerce certo domínio sobre a amiga). Helena

não está, mas as coisas devem ser como sempre

foram. (Só agora Laura se levanta e se

encaminha para o quarto, levando o chapéu de

Alcina, que protesta).

ALCINA – Deixa aí mesmo, Laurita! Qualquer lugar está bom!...

LAURA – Hum hum. (Para na porta e pergunta). Tem cigarro na

caixinha?

ALCINA – Deixa ver. (E abre uma caixinha de cristal, que está sobre

a mesinha de centro). Quatro.

LAURA – Vou trazer mais.

ALCINA – Laurita, você pretende fumar mais de...?

LAURA (Saindo) – Não sei.

ALCINA – Eu não vou deixar! Mais de quatro cigarros, não! (E fala bem

alto, para que Laura a possa ouvir). Faz mal,

Laurita! Isto é um veneno! Roberto contou,

domingo, lá em casa, que um amigo dele,

Engenheiro da Empresa, rapaz de 38 anos... Está

ouvindo, Laurita? (Laura aparece na porta, em

silêncio, e para). Laurita, você está me ouvindo?

(Alcina se volta e dá com Laura às suas costas,

imóvel). Não adianta se zangar comigo. Mais de

quatro cigarros eu não deixo! (Num repente

cômico, Alcina apanha os quatro cigarros da

caixa e guarda na bolsa). Trinta e oito anos: na

flor da idade, em cima da cama, morre não morre

por causa do cigarro! (Mas Laura, indiferente ao

discurso de Alcina, tira um cigarro do maço

que trouxe consigo, e o acende. Depois atira,

acintosamente, o maço sobre a mesa. Alcina

observa-a, gesto por gesto). O que você está

fazendo, além do mais, é muito feio! Você está

procedendo feito criança mal educada! (Laura

nem responde. Alcina balança sua zanga,

entrelaçando os braços). Onde é que já se viu

uma coisa dessas? (Marcando bem as palavras).

Se Adalberto soubesse o mal que lhe fez,

ensinando você fumar!... Não se admire se ele

estiver no inferno por causa disso! No inferno,

Laurita! Pode ter certeza disto.

LAURA (Estranhamente tranquila) – Adalberto tem muitas outras

razões pra estar no inferno, Alcina. Pode ter

certeza disto. (E fuma. Pausa. Alcina se debate

contra a fumaça, exageradamente).

ALCINA – Chaminé! Empestando a casa! (Laura continua fumando,

indiferente. Alcina, aos poucos, volta às boas).

Como é que você passou de quarta-feira pra cá?

LAURA – Muito bem. E você?

ALCINA – Horrível, minha filha!

LAURA (Acostumada aos exageros de Alcina) – As dores na

espinha?

ALCINA – Nada. A espinha, Doutor David consertou. (A propósito).

Bom, viu? Lá em Copacabana. Muito bom! Um

menino, hein? Um fedelho! Lembra asssssssim

muuuuuuito de longe o Doutor Pederneiras.

Lembra-se dele? (Laura confirma em silêncio).

Mas garoto, garoto! Quando eu entrei na sala, que

vi aquele frangote de óculos, minha vontade foi de

voltar da porta! Feio! Um galo magro e barbudo.

Eu, mostrar minhas costas, até lá embaixo, pra um

guri que podia ser meu neto? E como é que eu

podia confiar naquele fedelho sem... sem pose,

não sabe? Sem atitude, sem aquela imponência!...

Doutor Pederneiras, você olhava pra ele e PÁ!

Tinha vontade de se ajoelhar! Não tinha? Sei lá!...

Parecia um Cardeal! De branco. O Papa! Uma

figura bíblica! Para ele, eu mostrava tudo, sem o

menor constrangimento! Você, não?

LAURA – Hum... Você sabe muito bem que pra mim, mostrar as...

coisas nunca foi problema...

ALCINA (Docemente repreensiva, contendo o riso) – Laurita!...

LAURA – E ao Doutor Pederneiras, então, que fazia questão de me ver

muito mais que o simples necessário...

ALCINA – Laurita! (E agora ri).

LAURA – Você sabe disso há muito tempo, Alcininha. Eu contei. Já

esqueceu?

ALCINA – Tinha esquecido, sim.

LAURA – Um bom safado!

ALCINA (Matando o riso) – Mas o homem está morto, Laurita... E os

filhos andam por aí, todos formados. Não custa

nada respeitar a memória do velho. Por eles, os

filhos, coitados, que não têm a culpa do que o pai

fazia. E depois, você me disse que todo homem é

assim mesmo. Já esqueceu? Já esqueceu,

também?

LAURA (Depois de ligeira pausa) – Quer dizer que o frangote deu jeito

na sua espinha?

ALCINA – Deu.

LAURA – Sem precisar mostrar nada?

ALCINA – Mostrar?

LAURA – As costas.

ALCINA – Ah, bom... Acabei mostrando.

LAURA – Prática ilegal da medicina. Dói: depois ajuda a viver...

ALCINA – Tinha cabimento eu não mostrar?

LAURA – Claro que não!

ALCINA – Mas agora, olhe. Olha só. (Levanta, senta, torna a levantar,

gira para a direita, para a esquerda, flexiona

para frente, para trás – tudo isto,

evidentemente, sem muito brilhantismo). O que

é que você acha?

LAURA – Quem deve achar é você. A espinha é sua.

ALCINA (Vitoriosa) – Dois remedinhos, Laurita! Quer ver? (Apanha o

saco de remédios). Uns comprimidinhos que

você precisa de lente pra enxergar! E caros! Já

viu? Os remédios estão ficando cada vez menores

no tamanho e maiores no preço! Olha só: vou te

mostrar.

LAURA – Deixa Alcininha!

ALCINA – É bom você conhecer, tomar nota do nome... Se precisar...

LAURA – A espinha não me incomoda.

ALCINA – Mas alguém pode precisar. Eu já receitei – quer ver? – pra

Lurdes, pra Márcia, filha do Pedro, que se

machucou jogando vôlei no colégio, pra Olga... Já

telefonei pra todo o mundo!

LAURA – Um dia você ainda vai presa.

ALCINA – Ah!

LAURA – Prática ilegal da medicina.

ALCINA – O que eu receito minha filha, se não fizer bem, mal não faz.

Eu leio as bulas, o que é que você está

pensando? De ponta a ponta! Com a lente! Uma

letra deste tamanhinho! Desgraçados! Eles fazem

de propósito pra gente não aprender! Mas eu leio!

Tem lá: contraindicações: cirrose. Eu aí, já: você

sofre de cirrose? Então pode tomar. (E ri...) As

burras todas tomam, porque elas não sabem o

que é cirrose!... (E ri, fartamente).

LAURA – E você sabe?

ALCINA – Eu não! Pra quê?

LAURA – Ah, bom.

ALCINA – Mas não devo sofrer, senão já tinha morrido. Estou no

segundo frasco. (E acaba de rir à sua vontade.

Laura, que não conseguiu rir, volta depois da

pausa).

LAURA – Mas se a espinha vai bem, e a cirrose melhor ainda, por que é

que a sua semana foi ruim?

ALCINA – Foi?

LAURA – Você quem disse.

ALCINA – Ah, sim!... Foi.

LAURA – Por quê?

ALCINA – O Sultão!

LAURA (Fingindo alegria) – Morreu? Até que enfim!

ALCINA – Laurita!

LAURA – Falta pouco, minha filha!

ALCINA – O bichinho tem dez anos!

LAURA – Como o tempo passa! Há dez anos que eu rezo pra ele

morrer!

ALCINA – Vira essa boca pra lá! Cachorro vive doze, treze, até quatorze

anos! Principalmente sendo bem tratado.

LAURA – Se é assim, capaz da gente ir antes dele.

ALCINA – Que mal te fez o Sultão?

LAURA (Evidentemente sem argumento) – É feio.

ALCINA – Feio? Medalha de ouro, Laurita! Campeão! Raça puríssima!

LAURA – Se ele não tiver mistura com macaco, não me chamo Laura.

ALCINA – Vou lhe mostrar o pedigree.

LAURA – Pedigree!

ALCINA – Pedigree, sim senhora! Roberto mandou tirar no Kennel Club.

Tem toda a árvore genealógica do bichinho! Vem

desde a Inglaterra, minha filha. Mil oitocentos e

tanto! Sultão é um nobre!

LAURA – Mas late.

ALCINA – Claro!

LAURA – Nunca ouvi falar de nobre que latisse.

ALCINA – É um cachorro, Laurita!

LAURA – Nem que andasse urinando na frente dos outros, com a perna

lá em cima, mostrando o negócio pra gente.

ALCINA (Ri, entre escandalizada e enrubescida) – Laurita: você não

presta, mesmo! Só fala imoralidade.

LAURA – Surpresa pra você?

ALCINA – Hum! Surpresa!

LAURA – Ah, bom. Porque são quarenta anos que você me conhece.

Se ainda não tivesse reparado... (Ouvem-se

quatro badaladas de relógio antigo. Alcina se

assusta).

ALCINA – Quatro horas? Não tem um remédio aí pras quatro horas?

(Laura consulta seu relógio de pulso). Você vai

acabar esquecendo meus remédios, Laurita. Se a

Helena estivesse aqui...

LAURA – Esse relógio está adiantado. Faltam dez pras quatro. E não se

fie nele, porque só toca quando quer. Hoje, é a

primeira vez.

ALCINA – Manda consertar.

LAURA – Não adianta. Já está caducando.

ALCINA – Também, foi do seu pai, não foi?

LAURA – De vovô.

ALCINA – Então? Tem direito, coitadinho.

LAURA – Mas se o Sultão inda não morreu; o que é que houve com

ele?

ALCINA (Dramática) – Nem te conto!

LAURA – Mordeu alguém! (Mas retifica). Não, bobagem: está com os

dentes caindo.

ALCINA – Quem, Laurita?

LAURA – Sultão!

ALCINA – Onde?

LAURA – Quarta-feira mesmo, eu estava reparando. Estão assim, os

dentes dele. Tudo pra fora! (Limita ajudando com

as mãos). Limpa-trilhos. E os de baixo parecem

uma cerca caída.

ALCINA – É feitio, Laura! Desde moço que ele é assim!

LAURA – Cada vez pior, minha filha!

ALCINA – Sempre foi assim. É da raça.

LAURA – Inglesa?

ALCINA – É! Eu te mostro o pedigree.

LAURA – Que é que adiante pedigree, com uns dentes daqueles? Era

melhor ser vira-lata com uma boa dentadura.

ALCINA – Você, quando implica com as pessoas!...

LAURA – Sultão já é pessoa?

ALCINA – Quase... É como se fosse..., um parente.

LAURA – Parabéns! A família está melhorando.

ALCINA – Laurita! Brincadeira tem limites!

LAURA – Foi você quem disse que era seu parente.

ALCINA – Eu disse “como se fosse”. Você não precisa ser grosseira.

LAURA (Apaga um cigarro que estava fumando e acende outro) – E

o que foi que houve com o seu nobre inglês?

ALCINA (Que observou todos os movimentos de Laura, responde-

lhe no tom da repreensão que está preparando)

– Fugiu. (E espera que Laura comente o fato.

Laura, no entanto, sem nenhum comentário

acaba de acender seu novo cigarro, o que

aumenta a irritação de Alcina). Ele desapareceu

três dias! Três dias!

LAURA (Calmíssima) – E voltou sozinho?

ALCINA – Que? Foi preciso pôr anúncio no jornal (E para que a

conversa possa continuar normalmente, Alcina

tenta encerrar honrosamente o assunto do

cigarro). Depois deste não fuma mais, hein? Se

acender o terceiro, eu vou embora. (Laura, a

quem o cigarro não cabia bem, deixa-o no

cinzeiro. Tudo em paz, Alcina continua). Você

não imagina a ideia do Roberto! (E já começa a

prender o riso). Aquele meu filho... (E ri). Sabe

como foi o anúncio? “Menina desesperada”.

Embaixo, “Fugiu da Ladeira do Ascurra, número

tal, no Cosme Velho, um cachorro de raça, que

atende pelo nome de Sultão. Sua dona, uma

menina de 13 anos, inconsolável, ameaça adoecer

gravemente. Gratifica-se a quem der notícias pelo

telefone 242-44, não sei o quê”. O telefone da

Empresa. A menina era eu (E ri, fortemente).

Treze anos! (E agora o riso vai até às lágrimas,

com lencinho, gemidos e tudo...). De noite

levaram o Sultão. O homem queria cem cruzeiros.

Roberto deu quinhentos. Achei muito justo. As

boas ações merecem ser premiadas. (Laura se

levanta). Onde é que você vai?

LAURA – Buscar água pro seu remédio.

ALCINA – Eu posso ir, não? (Quer se levantar).

LAURA – Senta Alcina.

ALCINA – Mas Helena, onde é que foi? Assim, a gente não pode

conversar sossegada. Você levantando a toda a

hora.

LAURA – Pode ser gelada?

ALCINA – Fresquinha.

LAURA – Pegue o remédio, Alcina. (Sai).

ALCINA (Levanta-se e, no saco de plástico, entre muitas caixinhas

e tubos, procura o das quatro. Finalmente). É

este. (Enquanto guarda os demais). Afinal,

Laura, você ainda não me disse por que Helena

saiu. O que foi que aconteceu com ela? Deve ter

havido alguma coisa, pra deixar você sozinha em

casa numa quarta-feira. (Laura voltou com o

copo d’água, que entrega a Alcina).

LAURA – Tome o seu remédio. É esse mesmo?

ALCINA – É. Mas e Helena?

LAURA – Beba. (Alcina obedece). Sente. (Alcina não senta).

ALCINA – Eu perguntei por Helena.

LAURA (Depois de pequena pausa, intencional) – Está grávida.

(Alcina desaba na poltrona, derramando o

copo, caixa de remédios...). Eu mandei você

sentar. Já sabia. Olhe aí. (Recolhe o copo, o

remédio, enxuga o vestido de Alcina... Alcina

está pasma).

ALCINA – Grávida?

LAURA – É.

ALCINA (Depois de pequena pausa, ainda perdida) – Mas vocês

vivem sozinhas aqui!

LAURA – Meu não é: eu lhe garanto.

ALCINA – Helena grávida?

LAURA – Sim senhora.

ALCINA (Sem saber o que dizer) – Você tem certeza?

LAURA – Ela tem; o que é mais importante.

ALCINA (Depois de refletir mais um tempo) – Mas quantos anos têm

Helena?

LAURA – Quarenta e dois.

ALCINA – É uma louca!

LAURA – De fato, um pouco velha pra mãe solteira.

ALCINA (Depois de nova pausa) – E..., como foi, Laura?

LAURA – O quê?

ALCINA – Como foi que ela ficou grávida?

LAURA – Alcina..., você teve filhos. Mais de um. Será que eu preciso

explicar como foi?

ALCINA – Com quem? Com quem? É isto que eu estou perguntando!

LAURA – O faxineiro do prédio.

ALCINA – Não! Não pode ser!

LAURA – Ela, pelo menos, diz que sim.

ALCINA – Faxineiro do prédio?

LAURA (De propósito, para irritar a amiga) – O que prova que dos

faxineiros também dispõem de todo o material

necessário...

ALCINA (Numa pequena explosão) – E você ainda se diverte Laura?

Você ainda brinca com uma coisa dessas? A

criatura trabalhando na sua casa há... Quantos

anos?

LAURA – Muitos.

ALCINA – Chegou aqui com?...

LAURA – Vinte e dois, vinte e três...

ALCINA – Uma menina!

LAURA – Nem tanto.

ALCINA – Como não? Eu, com vinte e dois anos...

LAURA – Você é um caso á parte, Alcina. Já eu, com vinte e dois

anos...

ALCINA – Você, com vinte e dois anos...

LAURA (Cortante e significativa) – Já, minha filha.

ALCINA – Nunca!

LAURA – Alcina, pelo amor de Deus! Quer saber mais do que eu?

ALCINA – Quer ver? Quer ver? Com vinte e dois anos você já

frequentava a nossa casa. Ou não? Eu estava

namorando. Começando a namorar o Leopoldo.

Lembro-me de tudo! De tudo, Laura! (Alcina,

excitada, caminha pala sala). Seus vinte e dois

anos: sua mãe tinha morrido fazia uns seis meses.

Seu pai já era cliente de papai. Você estava

passando as férias conosco lá em Petrópolis, na

casa velha. E no seu aniversário, nós fizemos uma

festa no clube, porque papai era diretor social. Eu

me lembro, perfeitamente! Você completava vinte

e dois anos!

LAURA (Calmíssima, depois que Alcina terminou) – E já.

ALCINA (Pasma, novamente) – Já?

LAURA – Já.

ALCINA – Laurita!

LAURA – Pois é.

ALCINA – Verdade?

LAURA – Por que é que eu ia mentir Alcina? Pra somar tempo? Isso

não dá aposentadoria...

ALCINA – E por que você nunca me disse nada? (E Alcina se senta ao

lado da amiga, como teria feito naquele tempo,

se soubesse).

LAURA (A quem a proximidade da amiga parece provocar certa

repugnância) – Naquele tempo, Alcina... Sua

inocência me assustava. (Afasta-se). Sua família

era certinha demais. Fazia medo.

ALCINA – Mas... Você deve ter passado maus momentos!

LAURA – Uh!

ALCINA – Deve ter sofrido!

LAURA (Como quem diz “um pouco”) – Hum...

ALCINA – Talvez precisasse de..., de um conforto..., de um conselho...

(Laura olha para ela). De um amparo moral!

LAURA – Precisei.

ALCINA – Pois então?

LAURA – Sabe Alcina?... (Procura a melhor maneira de dizer o que

pensa. Sinceríssima). Os melhores confessores –

eu já sabia disto naquele tempo – são os que

estão mais perto do pecado. Os puros - sabe?...

De certa forma assustam o pecador. Humilham,

sobretudo. Os santos mais simpáticos são os

regenerados. Aqueles que voltaram da lama.

Devia ser tão fácil conversar com eles!... Os

“santos de nascença”... Puf! Só servem pra fazer

milagre. Quando fazem.

ALCINA (Muito pragmática) – Você falava comigo, eu falava com a

mamãe, mamãe falava com papai. Papai chamava

o moço...

LAURA – Que moço?

ALCINA – O rapaz!

LAURA – Que rapaz?

ALCINA – O... O seu! Aquele com quem você...

LAURA – E depois?

ALCINA – Ah! Papai fazia ele casar com você!

LAURA – Ele era casado, Alcina.

ALCINA – Laura!

LAURA – E não era um rapaz.

ALCINA – Um velho!

LAURA – Um senhor.

ALCINA – Abusando de você! Mas que canalha!

LAURA – Não era um canalha. Nem teve culpa nenhuma. Era um

homem. Casado e com três filhos.

ALCINA – Santo Deus!

LAURA – Eu podia falar? Hum! Vocês teriam me expulsado de casa.

(Apanha outro cigarro, que Alcina lhe tira dos

lábios). Está certo. Vamos ao chá. (Levanta-se).

ALCINA – Mas eu ajudo!

LAURA – Arrume a mesinha.

ALCINA – Só isso?

LAURA – O resto está pronto. A mesinha é o bastante. (Sai. Alcina se

dirige para a mesinha, onde, de resto, tenta

inventar o que fazer, porque está pronta.

Depois de pequena pausa, quase num

resmungo).

ALCINA – Cada surpresa!... A gente pensa que sabe tudo sobre as

pessoas... Hum! Vinte e dois anos! Agora Helena,

com quarenta... Afinal, quando é que as mulheres

começam a ter juízo?... (Depois, alto). Como foi

que você descobriu?

LAURA (De fora) – Helena?

ALCINA – É.

LAURA (Sempre de fora) – Não descobri.

ALCINA – Como assim? (E talvez fosse ao encontro de Laura, que

volta com o chá).

LAURA – Ela contou.

ALCINA – Contou? Sem por que nem pra que? Helena tinha esta

liberdade com você?

LAURA – Precisava tomar uma decisão.

ALCINA (Pequena pausa) – E?...

LAURA – E tomou.

ALCINA – Casar com ele! (Como quem diz “não podia ser outra!”).

LAURA – Abortar.

ALCINA (Num choque) – Laurita!

LAURA – Que foi?

ALCINA – E?... E você consentiu?

LAURA – Mas claro!

ALCINA – É... É crime!

LAURA (Encarando-a) – Você teria outra sugestão? Um faxineiro que

não tem onde cair morto; Helena precisando

trabalhar. Com criança de colo? Tem?

ALCINA (Pensa, procura e se rende) – Não.

LAURA (Lenta e com uma ponta de estranheza) – Pensei que tivesse.

(É preciso que Alcina não perceba o que se

passou com Laura, neste exato momento).

Sente. Vou buscar o resto. (Sai. Alcina está

abalada. Sente frio. Veste o xale. Agasalha-se.

Laura volta com o resto, que põe sobre a mesa.

senta-se, ela também). Espero que esteja tão

bom quanto o que ela fazia.

ALCINA – Eu... Eu nem tenho mais vontade de lanchar.

LAURA – Não senhora. Com Helena ou sem Helena, é preciso que tudo

seja como sempre foi. (Pausa breve). Chega de

açúcar?

ALCINA – Chega, chega, chega... (As duas se servem, em silêncio,

num verdadeiro ritual de pessoas finas. Depois

de pausa, então...). Quando é que ela volta?

LAURA – Não volta.

ALCINA – Helena?

LAURA – É. Não volta mais. (Alcina estranha, mas pensa ter

entendido o pensamento de Laura).

ALCINA – Bom... Eu também..., no seu lugar... Que diabo! Vinte e dois

anos na sua casa, merecendo toda a confiança...

Era..., era uma espécie de filha, pra você!

LAURA – Era uma empregada, Alcina. Não vamos exagerar.

ALCINA – Mas que você tratava muito bem!

LAURA – Porque ela merecia. Atenciosa, dedicada, honesta...

ALCINA – E de repente, uma surpresa dessas! Não se pode mais

confiar em ninguém! (Come, sem perceber um

rápido olhar de Laura. Depois volta ao

assunto). Está certo, sim. Muito certo. Eu também

não aceitava mais de volta. Nem que fosse a

melhor empregada do mundo!

LAURA – Pois eu aceitava.

ALCINA – Laurita! Depois de?... Na sua casa? E o respeito? Com que

cara, Laurita? Com que cara ela ia olhar pra você

depois de?...

LAURA – De ter dormido com um homem? Nós fizemos a mesma coisa,

a vida inteira, Alcina, e estamos nos olhando com

a cara que Deus nos deu.

ALCINA – Ah! Laurita! Por favor! Não é a mesma coisa!...

LAURA – Por que não? Todas as mulheres que você vê na rua de

manhã, andando, trabalhando, fazendo compras,

levando os filhos para o colégio, todas elas

acabaram de dormir com alguém. Só as infelizes

não conseguem fazer isso. E assim mesmo

durante algum tempo.

ALCINA – Ah, bom! Então pronto! Mande chamar Helena! Diga que ela

pode voltar! Que ela pode dormir com o faxineiro,

quantas vezes quiser! Que pode fazer os abortos

que forem necessários! O que é que você está

esperando? Por que não chama ela de volta?

LAURA (Calmíssima) – Porque Helena está morta, Alcina. (O talher cai

da mão de Alcina, petrificada. Laura continua;

calmíssima). É. Aborto mal feito, com uma

curiosa, em casa da primeira, num subúrbio.

Domingo passou mal, teve febre..., hemorragia

muito forte... Segunda estava pior. Na terça à noite

chamaram um médico. Levaram às pressas para o

hospital! Foi preciso operar. Na anestesia...

Parece que Helena tinha um problema de

coração... E tinha, porque quando o elevador

enguiçava - que ela subia a pé – ela ficava

péssima, o resto do dia. Pronto. Não acordou

mais. (Pensa. Alcina desiste do lanche.

Levanta-se. Laura, calma). Seu lanche, minha

querida?

ALCINA – Eu... Eu não quero mais nada! (Anda pela sala, numa

atitude quase infantil). Você... Você hoje me

reservou uma tarde que, sinceramente... (Num

repente). E pare de comer, como se não tivesse

acontecido nada!

LAURA (Tranquila e triste) – Com Helena ou sem Helena, tem que ser

tudo como sempre foi.

ALCINA (Depois de observar a amiga por alguns segundos) – Não...

Não estou lhe reconhecendo, Laura.

Sinceramente, não estou lhe reconhecendo.

Esta..., esta sua maneira de falar..., de dar uma

notícia dessas!... Você não podia ter dito de outro

jeito? Não podia ter falado pelo telefone? Aos

poucos? Hoje é quarta-feira; ela morreu..., na

terça? Ontem você não podia ter me dito: Helena

está doente, sabe? Passando mal... Parece que

há poucas esperanças... Depois, então: olhe,

Helena piorou, piorou muito! Não: recebe-me

como se não tivesse acontecido nada, conversa...

Bobagens de todo o dia... Como se fosse uma

quarta-feira qualquer... E, afinal, de repente, na

mesa do lanche, na hora em que eu estou

engolindo: Helena morreu! Manchete de jornal! O

que é que você pretendia com isso?

LAURA (Sempre muito calma) – Na nossa idade, Alcina, a morte é um

fato corriqueiro, de que se pode falar a qualquer

momento. Tive bons amigos, que não entraram em

minha casa, tantas vezes quanto entrou a morte.

Por que fazer rodeios pra falar da morte?

ALCINA – Não, não, não... Não é assim, não. Não é assim não!

LAURA – Eu vi morrer mamãe, papai... Não falta muito, vou me ver

morrer, também, eu mesma... Ou você...

ALCINA – Vira essa boca pra lá!

LAURA – Você viu morrer seu pai, sua mãe, Leopoldo...

ALCINA – Não com esta frieza! Não com a indiferença com que você

está falando!

LAURA (Depois de pequena pausa) – Se você não comer qualquer

coisa, depois não vai poder tomar a vitamina.

ALCINA – Eu não tomo mais coisa nenhuma! (Hesita, depois vai à

mesa do centro, apanha o saco de remédios,

atira-o na bolsa, olha o horário e ajeita o xale.

Ainda espera uns segundos, e pergunta...). Meu

chapéu, onde é que você guardou?

LAURA – Já vai?

ALCINA – Acho melhor.

LAURA – Muito cedo, minha querida. O chofer não vem lhe buscar?

Você está muito nervosa. Não há razão pra isso!

(Levanta-se, apanha a bolsa de Alcina, procura

o saco de remédios, e dele retira o vidro das

vitaminas). É a vitamina?

ALCINA – Sei lá!

LAURA – É sim. Eu conheço. Quem está bancando a criança mal

educada agora é você. (Vai à mesa do lanche,

apanha a xícara de Alcina e volta). Tome. Com

um gole de chá.

ALCINA – Eu...

LAURA – Não seja boba. Vamos. (Alcina, embora recalcitrante, acaba

tomando o comprimido). Muito bem. (Devolve a

xícara ao seu lugar).

ALCINA – Me dá um biscoito, pelo menos. Senão esta vitamina não me

sai do estômago.

LAURA – Isso! (Leva o pratinho de biscoitos para perto de Alcina,

que morde um deles).

ALCINA – Senão vou ficar arrotando vitamina até de noite.

LAURA – Claro! E é bobagem, Alcina. Helena morreu? Morreu. Era

amiga? Era. Uma espécie de filha, como você

disse. E daí? Com ela ou sem ela, a vida continua.

Chorei, de noite. Mandei dinheiro para o enterro.

Pronto. Acabou. O que é que eu posso fazer

mais?

ALCINA (Depois de uma pausa) – Era uma boa moça.

LAURA – Muito!

ALCINA (Depois de nova pausa) – E o canalha do...?

LAURA – O faxineiro?

ALCINA – É.

LAURA – Por que canalha; Alcina?

ALCINA – Pois não foi ele que...?

LAURA – Ao que me consta foram os dois. Os filhos que você teve, foi

Leopoldo sozinho que fez? Não foi.

ALCINA – Deixe o Leopoldo em paz, Laurita, sim?

LAURA – Pra você entender.

ALCINA – Leopoldo!... Se todos fossem como ele!...

LAURA – Certo! Leopoldo era um santo.

ALCINA – Mesmo, viu? Pode dizer isso de boca cheia.

LAURA – Ninguém está duvidando.

ALCINA – A... A delicadeza de sentimentos daquele homem! O... O

respeito! Você diz: todas nós dormimos com um

homem a vida inteira...

LAURA – Um momento: com um só – raras -, não é?

ALCINA -... Isto parece até, dito assim..., que a gente... Pois eu dormi

com Leopoldo a minha vida toda, até ele morrer!

Mas olhe Laurita: em todos aqueles anos... Meu

Deus! Posso contar nos dedos! (Alcina é das que

não sabem falar de certas coisas. Não têm o

costume. Vai daí que suas frases resultam

incompletas, reticentes. Mas para ela parecem

mais que claras). Pra ele, a carne, o pecado...,

o..., o sexo, como hoje se diz a torto e à direita,

mesmo nas casas de família... (E adora a chance

de divagar a respeito; pelo menos não está

falando de si mesma). Eu vejo! Eu escuto a

conversa dos meninos! Quinze; dezesseis anos,

os colegas de Ricardinho, de Ana Lúcia... Na

frente dos pais, hein? Na mesa de jantar! Sexo pra

cá, sexo pra lá... Bom: estão estudando sexo na

escola! Você sabia? (Laura sorri). É matéria

regular! Com prova no fim do ano! Tem professor

de sexo! Eu não sei o que é que vai ser desses

meninos! Falei com Roberto. Ah, falei! Meu filho,

você não acha um absurdo? – Sabe mamãe...: é

uma experiência muito importante para a

sociedade... – Experiência? Experiência com uma

coisa dessas? Se der certo, muito bem; mas e se

falhar? Você já imaginou o que é que vai ser

dessa meninada, que está começando pelo fim?

(E retoma o fio da meada). Pois bem: sexo, pra

Leopoldo, era a última coisa! Primeiro a família, a

casa, a gente... Tinha tempos que ele ia pra

fazenda – até a gente vender – era cinco, seis

meses..., ele lá e eu aqui. (Estranho olhar de

Laura, que Alcina não percebe). Voltava: tudo na

mesma! Pois sim que Leopoldo me tocava num

dedo, se eu não quisesse!

LAURA – Você está vindo a meu favor. Se o faxineiro fez o que fez, foi

porque Helena consentiu. Tocou no dedo, ela

deixou; tocou na mão, ela deixou; no braço..., no

ombro... E ela deixando... Toca aqui, toca ali, toca

acolá, minha filha, chega um ponto em que se ele

parar de tocar, a gente é que reclama...

ALCINA (Depois de pequena pausa) – Quer dizer que com ele não

acontece nada?

LAURA – Não. O que é que você queria que acontecesse?

ALCINA – Devia morrer junto!

LAURA (Tentando um sorriso) – Você é engraçada, Alcina!...

ALCINA – Coitada da Helena! Você já reparou? A mulher é quem sai

perdendo, sempre! Sempre! (Pequena pausa). E

você, agora, vai ficar sozinha?

LAURA -... Não.

ALCINA – Sabe que empregada, hoje em dia, é a coisa mais difícil do

mundo, não sabe?

LAURA – Sei.

ALCINA – Roberto paga uma fortuna por das porcarias que eu não

queria nem de graça! E é assim, olhe: dois

sábados e dois domingos de folga por mês! Férias

todos os anos. INSS! Até INSS inventaram pra

elas! (Pausa breve). Onde é que você vai arranjar

empregada, Laurita?

LAURA -... Bom...

ALCINA – Sozinha não pode ficar! E tem que ser pessoa de confiança.

Andam assaltando todo mundo, minha filha! Você

não faz ideia. Então, quando eles sabem: mulher

sozinha, com dinheiro, joias em casa, objetos de

valor... Pelo amor de Deus, Laurita. Agora eu

estou preocupada com você.

LAURA – Não... Apareceram algumas. E tem uma aí...

ALCINA – De confiança?

LAURA – Parece.

ALCINA – Laurita, minha filha: cuidado!

LAURA – Muito boazinha...

ALCINA – Quer que eu peça a Roberto pra saber quem ela é? Ele tem

um amigo na Polícia, que descobre tudo! Tudo!

Até esses ladrões aí... Assassinos... Quer que eu

peça informações?

LAURA – Eu..., eu já tenho algumas. O bastante.

ALCINA – Quem deu?

LAURA – O porteiro.

ALCINA – Ele é amigo do faxineiro? Deve ser. Trabalham juntos. Se são

amigos; não confie! Não confie, Laurita! Estão

querendo outra pra fazer a mesma coisa!

LAURA – Não... A moça apareceu no sábado mesmo, pedindo

emprego. É aí do interior. Helena tinha saído pra

casa da prima. O porteiro sabia que eu estava

precisando, porque ela ia ficar por lá um mês e

tanto. Veio falar comigo... Trouxe a moça...

ALCINA – Que idade?

LAURA – Muito jovem! Dezoito, dezenove, no máximo.

ALCINA – Forte?

LAURA – Magrinha. Até bonita.

LAURA – Mas será que serve pra você, minha querida? Cozinha?

LAURA – Diz que sim.

ALCINA – Todas elas, quando querem o emprego, dizem a mesma

coisa.

LAURA – É.

ALCINA – Conhece o bairro, pra fazer suas compras? Supermercado,

farmácia...

LAURA – Nada.

ALCINA – Pois então? Não serve pra você, Laurita. Deixa ver mais um

biscoitinho. Esta vitamina fede...

LAURA – Desse mesmo ou do outro?

ALCINA – Este, este... É só pra encher o estômago. (Apanha um

biscoito, que come). Tem mais chá?

LAURA – Claro!

ALCINA – O biscoito, você sabe? Entala.

LAURA – Por que não continuamos nosso lanche?

ALCINA – É. Você tem razão. (Voltam as duas para a mesa, onde se

servem e continuam comendo. Pouco depois,

Alcina retoma a conversa). Você tem toda a

razão. As coisas acontecem, mas a gente precisa

superar. É ou não é? Quem se entrega minha

filha, está perdida. Sempre foi o meu defeito:

sofrer além do necessário. É geleia?

LAURA – Mas não é dietética.

ALCINA – Que se dane a dieta. (Comem. Alcina, agora, entregue ao

apetite, fala de boca cheia). Eu sempre me dei

demais. Demais! Às vezes, as pessoas nem

estavam ligando para o problema delas, e eu...,

sofrendo feito uma burra! É aquele queijinho?

LAURA – É, é.

ALCINA – Uma delícia viu? Era até pra ver a marca... Onde é que você

compra?

LAURA – Aqui por perto. Uma casa de laticínios...

ALCINA – Casa especializada: logo vi. Não deve ter em qualquer lugar.

Capaz de ser fabricação própria. (Saboreia o

queijinho). Hum, santo queijinho! (Sempre

delicada e com a boca cheia, volta ao assunto).

Às vezes, a pessoa estava se ralando, e eu

sofrendo por ela. Não, minha filha! Já me

prejudiquei muito pelos outros! De perder o sono,

a fome, tudo! Já me dei demais! (Come. Laurita

faz uma pausa, e depois...).

LAURA – Vou ficar com a moça, Alcina.

ALCINA – Vai?

LAURA – Vou.

ALCINA – Mesmo sabendo que?... Bom: você só faz o que quer.

Adianta discutir?

LAURA – Em sua homenagem.

ALCINA – Essa não!

LAURA – Sabe por quê? (Alcina olha pra ela). Chama-se Alcina.

(Alcina para de comer). Nome fora de moda, não

é? Do nosso tempo. (Devagar). Alcina da Silva

Pontes. (Alcina estática). Alcina – esquece o da

Silva – Pontes. Não é engraçado? Come

queridinha. O chá já está frio. Olhe o queijo. (É

quando Alcina se dá conta de que está de boca

aberta, e recomeça a mastigar, mas sem o

entusiasmo antigo. Laura continua). Eu achei

muito curioso! E pensei: pronto! Vou reunir numa

só pessoa, minha melhor amiga, Alcina e, a

lembrança de..., de Adalberto, que era Pontes.

(Alcina, que parou de mastigar, recomeça,

antes que Laura perceba). Que linda maneira de

eu acabar meus dias! Rodeada das saudades

mais caras de toda a minha vida! (Alcina tira o

xale). Calor?

ALCINA -... Não.

LAURA – Fecho a janela?

ALCINA – Não, não...

LAURA – A esta hora começa um ventinho do mar...

ALCINA – Não, não... Está ótimo assim. (Pausa). E?...

LAURA – Sim?

ALCINA – A..., a figura? A aparência? (Laura se faz de desentendida).

LAURA – De quem, Alcina?

ALCINA – Dessa... Da moça, Laurita. De quem podia ser?

LAURA (Percebendo que ela evitou dizer o nome da moça) – De

Alcina? (Faz pausa, olha para Alcina, como se

hesitasse, e depois...). Não vou dizer; querida.

ALCINA – Ué!

LAURA – Não vou dizer por que você vai pensar que eu estou

sonhando. Ou que enlouqueci, ou que é

sugestão... Deve ser. Sugestão. Deve ser. Mas

vamos ver se passa.

ALCINA (Que começa a impacientar-se) – Passa o quê?

LAURA – A impressão.

ALCINA – Que impressão?

LAURA (Fingindo que procura a melhor maneira de explicar) – A...

Quando ela chegou aqui, com a maleta, uma

sacola... O... (Faz nova pausa. Alcina está

suspensa por um fio). Você quer ver a moça?

ALCINA (Num pequeno susto) – Ela está aqui?

LAURA – Não. Saiu com a mulher do porteiro.

ALCINA – Então como é que eu posso ver? (Laura sorri, levanta-se e

vai a um móvel da sala e apanha um velho

álbum de retratos. Alcina, que acompanha

todos os seus movimentos, surpreende-se).

Que loucura é esta, Laurita? Seu álbum de

retratos?

LAURA (Sorrindo) – Não disse que eu estou doida? (Senta-se ao sofá

e começa a procurar, no álbum, um

determinado retrato. Alcina não resiste, e vai

sentar ao seu lado). É..., é fantástico! Pra mim é

fantástico! (Acha o retrato). Olhe. (Alcina, antes

de olhar, procura os óculos na bolsa).

ALCINA – Onde?

LAURA – Deixe ver se é este mesmo. Com licença. (E, para certificar-

se, apanha os óculos de Alcina, que, aliás, lhe

servem muito bem). É este mesmo. (Devolve os

óculos). Que retrato é este, Alcina?

ALCINA (Depois de examinar a foto por um tempo) – Você, seu pai,

papai, eu... Roberval com a mulher, Ivone... Isto foi

aqui, em Botafogo, pouco antes de Roberval

embarcar pra França.

LAURA – Eu tinha quantos anos?

ALCINA – Vinte e três; vinte e quatro... Deixa ver...

LAURA – E você?

ALCINA – Dois anos menos. Nem precisa fazer conta. (Laura bate com

a unha num ponto do retrato).

LAURA – Alcina.

ALCINA – Hum?

LAURA – Alcina, a moça. Mas sem tirar nem pôr! (Alcina está

perplexa). Os cabelos..., o jeito..., o sorriso. Só

que o dela é mais triste que o seu.

ALCINA – Laura: você quer dizer que a sua empregadinha é a minha

cara?

LAURA – Esta cara. A do retrato.

ALCINA – Absurdo!

LAURA – Juro!

ALCINA – Você deve estar tendo visões!

LAURA – Possível!

ALCINA – Meu nome..., minha cara... Minha cara de moça. Que história

é essa? Você anda vendo muita televisão, minha

filha. Aqueles filmes malucos..., de sobrenatural...

LAURA – E se chama Pontes.

ALCINA – Pior ainda!

LAURA – Adalberto... Pontes. (Alcina se levanta; nervosíssima).

ALCINA – Ah, não! Positivamente, você escolheu esta quarta-feira pra

me enlouquecer! (Apanha o xale, que veste.

Laura volta à carga).

LAURA – Sabe o que é que tinha na maleta da moça? (Alcina para no

gesto, imóvel). Um pacote de cartas assim!

ALCINA (Depois de uma pausa) – E você? ... Você leu as cartas da

moça?

LAURA (Também depois de pequena pausa) – Não eram da moça.

ALCINA – As cartas?

LAURA – Não. Não eram dela.

ALCINA – Mas... Você leu assim mesmo?

LAURA – Todas. (Silêncio). Todas. (Outra pausa).

ALCINA – E?...

LAURA – Sim?

ALCINA – E por que é que você está me contando tudo isso?

LAURA (Naturalíssima) – Porque você é minha amiga. Sempre foi. A

melhor amiga. A única! Amiga de quarenta anos!...

Se eu não contar pra você, pra quem vou contar?

ALCINA (Depois de uma pausa) – Pois conte.

LAURA (Cheia de intenções) – O quê?

ALCINA – Parece conversa de doido, Laura. Conte o..., o que você leu

nas cartas! O que foi que você descobriu, se é que

descobriu alguma coisa?

LAURA – Descobri Alcina. Justamente. Descobri.

ALCINA – O que?

LAURA – Descobri que este mundo é..., é deste tamanhinho. E que a

vida – foi numa fita de Carlitos que eu ouvi esta

frase, portanto não é descoberta minha... Assim

mesmo não deixa de ser: uma coisa é a gente

ouvir os outros dizerem; outra coisa é a gente

constatar que eles tinham razão... Eu descobri que

a vida é um fenômeno local. A vida é um

fenômeno local. (Levanta-se e começa a andar,

em passos soltos, em torno de Alcina).

Entende?

ALCINA (Na defensiva) – Não.

LAURA (Triunfante) – Pois é tão claro! A vida é um fenômeno local! Há

fronteiras, em volta da gente. Verdadeiras

fronteiras demarcando..., um lugar, um espaço.

Cada um tem seu território de vida, seu lugar de

viver. Seu pequeno território. (Ocorreu-lhe outra

ideia). Veja: como um sistema planetário: o sol, no

meio – mas não interessa. Os outros sim, os

planetas. Todos girando em volta de um ponto, ao

mesmo tempo. (E complementa a explicação

com gestos largos, como se localizasse as

pessoas em diferentes pontos). Você..., seus

pais..., seu irmão..., Leopoldo... Eu, Sinval, Júlio

Leite, Batista, Patrick – foram muitos, eu sei –

Adalberto... Todos rodando entre si. (Note-se que

Laura descobre agora estas imagens. De sorte

que as palavras devem nascer, a cada instante,

cheias de brilho da revelação, da descoberta

recente). Misturando-se. Depois... (Indica

posições diferentes das primeiras), seu pai,

meu pai, seu irmão, Leopoldo, Sinval, Júlio Leite,

você... Adalberto... Entende? As posições mudam.

Ah, sim! Mudam. Sempre! A toda a hora! De

repente, vem uma nuvem de planetas novos. E

passa pelo meio da gente. Estranhos. Aí você fica

lá longe... Eu nem lhe vejo mais. (Apontando à

distância, como se custasse a identificar as

pessoas que cita). Adalberto... Seu pai... Seu

irmão... Tudo longe, longe, longe... De repente, a

nuvem passa, vai embora e a gente volta..., e

continua... (Apontando os lugares iniciais).

Você, seu pai, sua mãe, Leopoldo, meu pai,

Adalberto, Patrick, eu... Quer dizer: os mesmos,

sempre. Rodando uns em torno dos outros. Dez

anos, vinte anos, trinta anos depois. Os mesmos,

sempre, ali! Então..., a vida é mesmo um

fenômeno local! (E para. Alcina, ofegante,

parece acuada por fantasmas. Laura continua

depois da pausa, numa decisão). Empreste-me

seus óculos.

ALCINA – Pra quê?

LAURA – Um minuto. (Apanha os óculos de Alcina, e retira de onde

apanhou o álbum, um pacote de cartas. Alcina

observa. Laura mostrando as cartas). À nossa

moda, Alcina! “À moda antiga”. Ah, como

escreviam os velhos!... Eu, então, adorava

escrever. E você também. Naqueles dois anos que

vocês passaram na fazenda, se lembra? Um

monte de cartas! Nem sei onde estão, mas andam

guardadas por aí. Eu também não jogo fora as

cartas que me escrevem. (Senta-se no sofá,

desmancha o pacote, cuidadosamente, e

começa a procurar uma das cartas). Aquele

papel bonito, perfumado... Aqueles envelopes cor-

de-rosa, hein? E a letra de pena, fininha...,

caprichada! Sua caligrafia, Alcina, (Não se

contendo), que inveja que eu tinha! (Alcina não

se contendo mais, avança para Laura, arranca-

lhe o pacote das mãos, e começa a examinar

as cartas. Laura, ao contrário de reagir,

entrega-lhe os óculos e se afasta. Pausa.

Pouco depois, Alcina, descontrolada, olha para

Laura, que a observa à distância, e enfia as

cartas na bolsa, como pode. Laura fala;

calmíssima). Não era impressão, viu? Nem

sugestão. Nem coisas do sobrenatural. Quer dizer

que eu não estou louca.

ALCINA (Depois de pequena pausa) – Onde está o meu chapéu?

LAURA – No quarto, querida. (Alcina ruma para o quarto, mas Laura

barra-lhe a passagem). As cartas. (Alcina não

responde). As cartas, Alcina.

ALCINA – São minhas!

LAURA – Eu sei.

ALCINA – Minhas!

LAURA – Mas hoje pertencem à moça. É toda a sua herança, miserável

herança. Tudo o que lhe resta da família. Um

pacote de cartas que ela não sabe quem

escreveu, mas que relê, em segredo, como se

fossem páginas de um romance proibido.

(Estende o braço). As cartas, Alcina.

ALCINA – Eu vou rasgar tudo isto!

LAURA – Não.

ALCINA – Vou rasgar! Aquele imbecil não tinha o direito de guardar

estas cartas! E muito menos de deixar que elas

caíssem nas mãos de outra pessoa. Foi abuso!

Foi abuso dele!

LAURA – As cartas pertencem à moça. E estavam comigo, sob minha

responsabilidade. Por favor, Alcina. Por favor,

Alcina! (Como Alcina não se mexe, Laura

arranca-lhe a bolsa das mãos e começa a

retirar, de dentro, as cartas. Alcina, por sua

vez, tenta recuperá-las. É uma verdadeira briga

entre as duas. Uma briga que resulta

especialmente grotesca, porque elas não têm

força e equilíbrio para tanto. Por fim, Laura

vence. E Alcina sentindo-se derrotada, dá-lhe

um tapa no rosto. O tapa, que não chega a ser

espetacular, tem efeito mágico: imobiliza as

duas, frente a frente. É quando Alcina, tomada

de um remorso terrível, só consegue dizer):

ALCINA – Que horror! (Laura entrega-lhe a bolsa e se afasta com as

cartas). Desculpe. Eu não queria bater em você.

LAURA (Guarda as cartas e, depois de uma longa pausa) –

Adalberto, hein? (Alcina não responde. Agita-se

apenas). O único sujeito que amei em toda a

minha vida. (Laura está cabisbaixa, tomada de

uma calma feroz). Uma coisa que eu nunca lhe

disse, Alcina: todos, todos os outros, não valeram

nada. Os que vieram antes dele foram como se

não existissem. Foram tantos, depois, e nenhum

conseguiu apagar a lembrança de Adalberto.

(Agora já fala pra si mesma). Como se devesse

ser eterno. Mas a partir de determinado

momento... Sabe a areia que escorre entre os

dedos? Aquela sensação de quem quer correr

num pesadelo... Até as palavras pesam... E aos

poucos se perde a ternura... As coisas mais

íntimas começam a tomar jeito de rotina... Você

não querendo perceber, mas é evidente. Em cada

arremedo de carinho... E você se pergunta por

quê? Por quê? Se enfeita, se veste, se despe!...

Onde está o defeito? Quando começou a morrer?

Até que nascem as primeiras suspeitas. Você

conhece o assunto: já fez o mesmo. Já deu as

mesmas desculpas. Já disse as mesmas mentiras.

Está certo: outra mulher. Mas quem? (Olha para

Alcina, significativamente). Eu nunca imaginei...

Como? Como podia imaginar? (Pausa). Sob este

aspecto, meus parabéns, Alcina. Vi mulheres

muito mais... vividas que você, perderem-se por

muito menos. Meus sinceros parabéns. (Pausa.

Alcina está tensa. E não quer se humilhar).

ALCINA – Acabou?

LAURA – Como é que pude ser tão tola? Devia estar cega!

ALCINA – Acabou?

LAURA (Começando a levantar a voz) – A amiga-irmã de todos os

momentos!

ALCINA (Querendo falar mais alto que Laura) – Acabou?

LAURA – A confidente.

ALCINA (Mais forte) – Acabou?

LAURA (Num grito) – Não! E ninguém vai me impedir de falar o que eu

quiser! Até o fim! Até o fim! Até a última palavra,

doa quanto doer, amargue quanto amargar!

(Alcina não responde. Laura ofega). Há três dias

que não como, porque a comida não passa daqui.

Há três noites que eu não durmo, porque quando

fecho os olhos vejo você nua, agarrada no corpo

de Adalberto, como uma cadela no cio! (Alcina

tenta uma palavra de reação). Está lá! Nas

cartas! Você mesma escreveu! Você mesma botou

no papel, frase por frase, palavra por palavra, toda

a sua paixão de fêmea, de animal! Vagabundas

que eu conheci, vagabundas de rua, mulheres que

haviam saído de um bordel, não teriam coragem

de escrever e assinar aquelas cartas!

ALCINA (Cedendo pela primeira vez) – Laura...

LAURA – Sua puta! Puta, puta, puta! (Mesmo efeito do tapa: as duas

imóveis, frente a frente. Depois, a

agressividade de Laura cede lugar a um

nervoso mal controlado). Como foi?

ALCINA – Laura...

LAURA – Como foi?

ALCINA – São trinta e tantos anos, Laura!

LAURA – Pouco importa! Pra mim foi ontem! Ontem! Mas como foi? Nos

mínimos detalhes! Quando, como? Onde é que

vocês se encontravam? O começo, o fim, tudo!

ALCINA -... Para quê?

LAURA – Tudo, Alcina!

ALCINA (Num repente) – Eu vou-me embora! Ninguém me obriga...

(Vai para a porta da rua, que está trancada).

Abra Laura. (Laura não se mexe). Abra esta

porta! (Laura nega com a cabeça). Não adianta:

o chofer vem me buscar!

LAURA – Às sete. Falta muito tempo. (Alcina compreende que está

vencida, que é inútil resistir. Volta, lentamente,

a uma poltrona, senta-se, e começa;

agressiva).

ALCINA – O que é que você quer? Humilhar-me? Ofender-me? Pisar-

me? Provar que eu fui... desonesta? (Laura quase

sorri de “desonesta”). Que com toda a educação

que recebi, e a despeito de todos os meus

princípios, fui..., fui igual a você, pelo menos uma

vez? Que ridículo; Laura! Que grotesco! Que coisa

mais vulgar! (Laura encara-a com uma frieza

mortal. E Alcina perde o resto da coragem.

Mesmo assim, ainda fala com certa agressão).

Só você tinha nervos? Só? (Sabe que a resposta

não vem, mas espera um tempo). Só você... era

feita... de carne? Só você tinha dentro de si

mesma...? (Ela gostaria que as palavras

fluíssem; mas apenas consegue arrancá-las

aos pedaços). Não lhe passou pela cabeça que

eu também...? Que eu também, com princípios,

educação e tudo?... O que você me dizia dos

livros que lia escondida das freiras... O que me

contava dos homens..., do que fazia com eles...,

do que pedia que eles fizessem..., do que eles

pediam... Não? Não? (Foi quase um grito. Agora

a voz ensurdece). Pois saiba que de noite eu

acordava molhada de suor. E meus seios doíam!

Por quê? Por que não? Eram tão bonitos quanto

os seus! É?... , e por quê? Inúteis, por quê? (Ela

teria muito mais para dizer, mas as palavras

insistem em não sair). Leopoldo, depois. O

boneco! O cadáver! Nem a luz do abajur! Nem um

gesto mais... Um carinho que... Uma palavra de...

Não. Nunca! Nada mais que... E aquele ronco

surdo... Como a agonia de um bicho. Sozinho. E o

sono. Então, pra que meus seios? (Crescendo).

Pra que minhas mãos? Minha boca? Tudo, pra

que? Pra que? Santa se põe no altar, não se leva

pra cama! (Pausa).

LAURA – E Adalberto era bem o devasso que convinha, não? Sob

medida! (Pausa). Que ele fosse meu não lhe

importava?

ALCINA (Pausa) – Ao contrário.

LAURA – Ah, sim?

ALCINA – Quantas vezes eu sabia que ele tinha saído da sua casa!

LAURA – Da minha cama!

ALCINA – E eu procurava nele os restos de seu cheiro.

LAURA – Porca! (Cospe. Pausa).

ALCINA – Chega?

LAURA – E o filho?

ALCINA (Sem ter mais o que esconder: sincera) – Um drama.

LAURA – Sem ninguém perceber? Sem ninguém desconfiar?

ALCINA – Leopoldo na fazenda, meses seguidos. A casa de São

Lourenço vazia o ano inteiro... Sebastiana, a

velha, fiel como um cão... Adalberto ajudou.

Depois prometeu que cuidava do menino. Que

levava pra irmã criar, no interior... Que lhe dava

seu nome.

LAURA – E deu.

ALCINA – Aí..., papai adoeceu..., depois mamãe... Leopoldo voltou: a

fazenda já vendida... E morre papai... Cada vez

mais difícil da gente se ver. Você também não

saía lá de casa, e..., e o tempo foi passando.

Morre mamãe. Vem Roberto, um ano depois...

Doentinho, sempre! Dando tanto trabalho,

preocupando tanto! Cheguei a pensar que era um

castigo. (Pausa breve). Adalberto sumiu. E eu dei

graças a Deus! A fim de pouco tempo, aquilo tudo

era uma espécie de sonho, de pesadelo em que

às vezes nem eu mesma acreditava. Tinham sido

outras pessoas, não era eu, você... Tinham sido

outras pessoas, com toda a certeza.

LAURA (Depois de longa pausa, em que Alcina enxugou os olhos,

primeiro, na ponta dos dedos, depois no

lencinho) – No filho de Adalberto você não

pensava?

ALCINA – Vieram mais dois: Reinaldo, Eliana...

LAURA – Como se não existisse? (Alcina confirma; cabisbaixa). Nem

por um minuto, uma única vez?...

ALCINA (Sincera e sem arrependimentos) – Nunca.

LAURA – Como é que se pode? Se eu tivesse tido um filho...

ALCINA – Nunca.

LAURA – As gatas e as cadelas fazem assim.

ALCINA – Eu sei.

LAURA (Depois de pausa, retoma o discurso, em tom objetivo) –

Mas o menino viveu, a despeito da sua

indiferença. (Alcina escuta, sem olhar para

Laura). Cresceu. Pobre e ignorante. Mal sabendo

que tinha um pai. Quando Adalberto morreu, em

São Paulo, mandaram para o garoto um caixote

de livros e umas cartas, que ele não entendia, mas

guardou. Casou-se por lá, muito cedo, sabe Deus

como. Teve uma filha. Deu-lhe o nome que

assinava aquelas cartas, imaginando que devia

ser a avó da menina. (Pequena pausa). Um

romance de capa e espada, não Alcina? Nos dias

de hoje! Como a vida se parece com as histórias

de mau gosto!... (Laura se levanta, dá dois

passos e depois se vira para Alcina; objetiva).

Bom: e agora? (Alcina olha para ela). É sua neta.

Você não entendeu? (Alcina encolhe os ombros,

sem resposta, num sinal de impotência). Não

basta encolher os ombros, Alcina. É um problema

seu.

ALCINA – Eu sou uma velha... O que é que eu posso?...

LAURA – Como, o que é que pode?

ALCINA – O... O... O que é que eu tenho...?

LAURA – Uma dívida.

ALCINA – Dívida?

LAURA – Que vai pagar.

LAURA – Você não pretende?...

LAURA – Pretendo.

ALCINA – Você...

LAURA – Exijo!

ALCINA – Quer que eu leve a menina pra casa?

LAURA – Não!

ALCINA – Ah, bom!

LAURA – Seria pedir demais a uma cadela.

ALCINA – Laura!

LAURA – A uma cadela! Afeto, instinto maternal, isto você gastou com a

sua família certinha, seus filhos legais, criados,

formados, encaminhados na vida. Suas noras e

sua penca de netos. Afeto você não tem mais. Só

lhe resta..., dinheiro, Alcina.

ALCINA (Ponta de susto) – Mas...

LAURA – E eu vou lhe arrancar o que puder! Pra ela. Se prepare.

ALCINA – Eu... Eu não posso... Veja Laura, eu não posso pedir aos

meninos mais do que...

LAURA – Para começar: as ações do Banco do Brasil.

ALCINA – Laura, as ações...

LAURA – Todas!

ALCINA – Mas as ações...

LAURA – Não venha com mentiras, Alcina. Eu sei tão bem quanto você.

Compramos juntas. Quero cinquenta mil pra ela.

Ao portador. (Alcina baixa a cabeça). Seu saldo

no banco. Deixe ver o talão. (Arranca-lhe a bolsa

das mãos).

ALCINA – Isto... Isto é um roubo!

LAURA – Chame como quiser. (Apanha o talão de cheques e verifica

o saldo, no canhoto). Cento e doze mil. Pra que

uma velha quer tanto dinheiro? Um cheque de

cem mil, agora! (Apanha uma caneta na bolsa

mesmo, os óculos e entrega a Alcina. Alcina, já

de caneta na mão, pretende reagir).

ALCINA – Não assino!

LAURA – E as cartas? Não estou brincando, Alcina. Bato no Escritório

de Roberto amanhã de manhã com todas elas. Vai

ser uma beleza! Vamos contratar juntos, aquele

amigo do seu filho que descobre tudo! (Pausa

breve). Assina? (Alcina, depois de breve

hesitação, preenche o cheque). Em meu nome,

pra ninguém desconfiar. (Laura extrai o cheque,

guarda e devolve o talão). Estes brincos.

(Alcina, tomada de surpresa, ensaia reagir). E o

colar. E o broche. Os anéis de brilhante. Toda

essa joalharia que você carrega em cima! (Alcina,

enfurecida, arranca todas as joias, que atira

sobre a mesa. Laura continua). As ações,

amanhã de manhã. Uma ordem assinada para o

banco me entregar. Se até às onze horas a ordem

não estiver aqui, eu saio à procura de seu filho.

(Reúne as joias ao cheque e sai para o interior

da casa. Volta com o chapéu de Alcina). Seu

chapéu. (Alcina apanha o chapéu num gesto

brusco, e vai ajeitá-lo como pode, diante do

espelho mais próximo. Laura, enquanto isso

destranca a porta da rua e volta para a mesinha

do chá, como se fosse arrumá-la. Depois de

pausa). Tarde horrível!

ALCINA – A... A pior de toda a minha vida!

LAURA – Mas necessária, depois de tudo. (Pausa).

ALCINA – Eu nunca pensei que você... Não quero falar mais nisto. Dá-

me nojo!

LAURA – Nem eu. (Pausa longa, em que Laura completa a

arrumação de uma bandeja. Depois olha para

Alcina, que está imóvel, em pé, descomposta,

encolhida nos braços. Tem quase piedade da

amiga, mas não cede e suspira. Em tom de

lástima). Pena, Alcina.

ALCINA – Hum?

LAURA – Pena.

ALCINA (Pequena pausa) – É.

LAURA – A porta já está aberta.

ALCINA – Que horas são?

LAURA – Dez pras sete.

ALCINA – O chofer vem aí. Agora... (Senta-se. Laura também se

deixa cair numa poltrona).

LAURA – Pena, pena... (Pausa). Quantos anos?

ALCINA – Nós?

LAURA – É.

ALCINA – Quarenta e um, eu acho.

LAURA – Lado a lado.

ALCINA – Foi.

LAURA – E hoje, em poucas horas... Também, você foi tão canalha!

ALCINA – E você foi tão cruel!...

LAURA – Não podia fazer outra coisa. Cheguei a pensar em botar

veneno no seu chá. (Alcina arregala os olhos).

ALCINA – Ainda bem que lhe faltou coragem.

LAURA – Me faltou veneno. Mas foi melhor assim. Agora...

ALCINA – Agora?

LAURA – Fim.

ALCINA – Fim.

LAURA (Depois de pausa) – Vai..., vai ser duro, apesar de tudo. Mas

está certo. É perfeitamente natural que, daqui por

diante...

ALCINA (Depois de esperar que Laura termine) – Daqui por diante?

LAURA – Você não queira mais me ver. Como eu também não quero

ver você.

ALCINA (Sem muita convicção) – É!

LAURA – É. Claro! Pra você..., pra você é mais fácil. Filhos..., noras...,

uma penca de netos.

ALCINA – Sei. E eu converso com eles?

LAURA – Claro!

ALCINA – Nada! Um beijo, duas palavras... “Está boa, mamãe? Está

boa, vovó?” Graças a Deus. E você, meu filho?

Pronto. A conversa acabou. Outro mundo, Laura!

Eles vivem noutro mundo! Gostam de outras

coisas..., ouvem outras músicas..., têm outros

livros... Quando leem outros livros... Quando leem!

Nem as palavras! Nem as palavras eu entendo!

Fossa. Estou na minha. Careta. É uma boa.

(Pequena pausa). A última do Pedro Mário, que

estuda no Largo do Machado e às vezes almoça lá

comigo, quando tem aula particular de tarde, sabe

qual foi?

LAURA – Não.

ALCINA – Pra dizer que o professor é antiquado, se veste fora da moda,

não entende os moços, sabe o que ele disse?

LAURA – Quadrado.

ALCINA – Que!

LAURA – Coroa.

ALCINA – Nada!

LAURA – Careta.

ALCINA – Também não.

LAURA – Esgotei os meus conhecimentos.

ALCINA – Babaca.

LAURA – Isso não era nome feio?

ALCINA – Claro! Era horrível! E você quer que eu me entenda com essa

gente?

LAURA (Sorrindo, depois de um tempo) – Seu neto... Não foi ele,

Pedro Mário?

ALCINA – Foi.

LAURA – Seu neto deve achar que nós somos duas babacas. (E ri,

cansada, apesar de tudo).

ALCINA – Ah, sim! Com toda a certeza!

LAURA – E não somos?

ALCINA – Quem sabe? (Também ensaia um riso fraco). Mas pelo

menos a gente se entende. Eles não me ouvem,

Laura! Não querem saber do que eu falo! Eu não

tenho nada pra dizer a eles! Nada! (Pausa longa).

Está com raiva de mim? (Laura olha para Alcina,

antes de responder).

LAURA – Muita!

ALCINA – Eu também estou muito sentida com você. (Outra pausa.

Longa). Será que passa?

LAURA – Não sei.

ALCINA – Nem eu. (Nova pausa). Mas, passe ou não passe, é com

você que eu tenho de falar. Você conhece os que

eu conheci... Você...

LAURA (Repetindo o gesto circular) – Os planetas...

ALCINA – É.

LAURA – Girando...

ALCINA – É.

LAURA – Seu pai, meu pai, sua mãe...

ALCINA – Eu, você...

LAURA – Leopoldo...

ALCINA – Adalberto...

LAURA – Bom filho da puta.

ALCINA – É.

LAURA – Todos mortos.

ALCINA – Pois é. Se eles ainda existem é do que a gente fala, do que a

gente lembra...

LAURA – Todos mortos. Só nós duas.

ALCINA – Só.

LAURA – Quem sabe por quanto tempo ainda... (Toque da

campainha).

ALCINA – O chofer. Esse agora chega sempre adiantado. (Levantam-

se).

LAURA – Você deve ter deixado de tomar algum remédio.

ALCINA – Não faz mal.

LAURA – Seu xale.

ALCINA – Está aqui.

LAURA – Sua bolsa, os óculos?

ALCINA – Tudo.

LAURA – Boa noite, Alcina.

ALCINA – Boa noite. E obrigada.

LAURA – Ah!

ALCINA – Posso ser sincera? O chá de Helena era melhor.

LAURA – Desculpe.

ALCINA – Ora...

LAURA – Vou ver se aperfeiçoo.

ALCINA – Tá. E..., vê aí o que é preciso fazer pela menina.

LAURA – Vejo.

ALCINA – Mas não... (Como quem diz “não conte a verdade”).

Roberto, Ricardo... As mulheres... Nem é por mim:

pela lembrança do pai. Eles pensam que

Leopoldo!... E tem fotografia dele pela casa toda!...

Com aquela imponência! Aqueles bigodes... Se

pelo menos ele não tivesse bigodes!...

LAURA – Qual era a diferença? (A campainha de novo).

ALCINA – Sei lá! Só sei que não fica bem. Ela mesma pode até vir a

gostar de mim. Sua amiga boazinha... Que eu vou

ser boazinha. Sabendo da verdade, vai me odiar.

É melhor não... Certo?

LAURA – Certo. (E vão se encaminhando para a porta da rua).

ALCINA – Outra coisa.

LAURA – Sim.

ALCINA (Baixando a voz) – Cuidado com o faxineiro!

LAURA – Eu?

ALCINA – Você não! A menina. Se ele engabelou a outra, que era burra

velha...

LAURA – Ah, sim...

ALCINA – Não custa nada prevenir.

LAURA – Claro. (Outro toque da campainha).

ALCINA (Irritada) – Este chofer..., este chofer é um babaca! (Laura ri).

Então, quarta-feira, lá em casa.

LAURA – Sem falta.

ALCINA – Mando lhe apanhar às três e meia.

LAURA – Obrigada.

ALCINA – Quarta-feira, sem falta, lá em casa... (O pano vai baixando

sobre as duas, que se encaminham, lado a

lado, para a porta dos fundos).

FIM