quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense
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UFRJ
Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense
Sandra Regina Garcia Leite
Tese de Doutorado submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras
Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,
opção Literatura Italiana).
Orientador: Prof. Dr. Marco Americo Lucchesi
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense
Sandra Regina Garcia Leite
Orientador: Marco Americo Lucchesi
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,
opção Literatura Italiana).
Examinada por
______________________________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor, Marco Americo Lucchesi, Univ. Federal do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________
Prof.a Doutora Silvia Inés Carcamo de Arcuri, Univ Federal do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Luiz Barros Montez, Univ. Federal do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________
Profa Dr
a Maria do Carmo Leite de Oliveira, Pontifícia Univ.Católica do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________
Profa Doutora Vanise Gomes Medeiros, Univ. do Estado do Rio de Janeiro
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Julio Aldinger Dalloz, Univ. Federal do Rio de Janeiro, Suplente
______________________________________________________________________
Profa Dr
a Teresa Cristina Meireles de Oliveira,Univ.Federal do Rio de Janeiro,Suplente
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
Leite, Sandra Regina Garcia.
Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul
fluminense/Sandra Regina Garcia Leite. Rio de Janeiro:
UFRJ/CLA, 2008.
226f.
Orientador: Marco Americo Lucchesi
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação de
Letras Neolatinas, 2008.
1. Imigração Italiana no Brasil. 2. Espaço. 3. História oral.
– Teses. I. Lucchesi, Marco Américo (Orient.). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pós-Graduação em
Letras. III. Título.
a Gustavo Luís Garcia Leite
AGRADECIMENTOS
A todas as famílias que me acolheram como pesquisadora em seus lares, em especial às
famílias de “Renato” e “Vittorio”; a Marco Americo Lucchesi, intelectual notável que
durante todo o processo da tese demonstrou ser, além de um grande amigo, um
inestimável sensei - mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser
retribuído; a meus irmãos e irmã, cada um com seu jeito único de me apoiar; às minhas
cunhadas Paola Wyatt e Bruna Leite que além de apoiarem meus irmãos me
incentivam; a meus avós, suaves recordações; a meus pais, que em suas diferenças
ajudaram a me construir; a meus padrinhos, pelo entusiasmo e afeto; às famílias
Gomes, Canaverde Fernandes, D’Ávila Estigarribia, Marangon, refúgios de alegria
e tranqüilidade; a Lara Feldmann, minha adorável afilhada, que me traz serenidade e
tanta alegria; a Paolo Targioni, a Marinei Almeida, a Simone Gugliotta, a Angela
Leite e a Guilherme Reich, pelo apoio incondicional; a Bernardo Borges Forte, a
Chris Braun, a Márcio Galvão, a Allan Crean, pela lealdade; a Milene Gomes e
Carla Faria, pelas fugas necessárias; a Marcello Arruda e Olga Arruda (em
memória), por parte do material bibliográfico sobre Barra do Piraí; a Vanise Medeiros
e Roberval Silva, grandes mestres; a Thiago Carvalhaes, William Alves, Guilherme
Turon e Brunna Noznica, pelas conversas e estímulos; a Milene Ahouagi, André
Luiz Silva, Sérgio Iotte, pela seriedade com que desempenham seus múltiplos papéis;
a Margareth Santos, Vanessa Barbosa, Carol Lippi, Allan Calixto e Rosana de
Oliveira, pelo empenho; a Jussara, Telma, Monique, Regina exemplos de mulheres e
de diretoria democrática, tenho aprendido muito com vocês, muito obrigada; a Maria
Lizete dos Santos, pelas sugestões a cerca do espaço, a Liliana Cabral Bastos, a
Maria do Carmo de Oliveira, a Maria das Graças Pereira, a Érica Camargo, a
Teresa Cristina Meireles, a Julio Dalloz, a Silvia Arcuri, a Luiz Montez, pelos
conselhos, sugestões e ponderações; a Roberto Monzo Filho, Secretário de trabalho e
desenvolvimento do Município de Barra do Piraí, pelo entusiasmo e empreendedorismo
no setor público; Agradeço, enfim, a todos que fizeram parte dessa etapa, a todos os
amigos; colegas, alunos e funcionários da UFRJ, da Puc-Rio, da USP, do IIC-RJ, das
Wizard Miguel Pereira, Vassouras e Barra do Piraí, da ACIB, da FAETEC/CETEP de
Barra do Piraí, da Escola Municipal Augusto Vaz, Prefeitura de Vassouras, e da USS.
RESUMO
Quando o trem passa: retrato em 3x4 de italianos no sul fluminense
Sandra Regina Garcia Leite
Orientador: Marco Americo Lucchesi
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.
A partir da coleta de histórias de vida de imigrantes italianos no sul fluminense,
sob um olhar da Sociolingüística Interacional para a Análise do Discurso ao analisar a
construção de identidade de dois imigrantes italianos, em situação de pesquisa. O estudo
analisa a organização discursiva da fala dos entrevistados focalizando diferentes
dimensões de sua construção identitária, bem como as estratégias de envolvimento
utilizadas e suas implicações para a construção da identidade dos narradores. Após
observar em que medida as histórias de vida dos entrevistados foi orientada por valores
da cultura italiana e por sua condição de imigrante no Brasil foi elaborado um texto
ficcional de apresentação das histórias dos entrevistados e do percurso da pesquisadora
levando-se em conta que as identidades constituem-se simultaneamente nos universos
da história, da interação e dos valores sócio-culturais.
Palavras-chave
Imigração italiana; história oral; identidade; narrativa; Sociolingüística Interacional
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
ABSTRACT
When Train Goes By: 3”x 4” portraits of Italian Immigrants in South Fluminense
Sandra Regina Garcia Leite
Orientador: Marco Americo Lucchesi
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.
Collecting Italian Immigrants Life Stories on south of Rio de Janeiro State,
based on Interactional Sociolinguistics approach to discourse analysis, this investigation
has a discursive approach, namely, that of analyzing the construction of identity of two
Italian immigrants in a research interview situation. At the start the analysis focuses on
different dimensions of identity construction. Involvement strategies and its
implications for the constructions of the narrators’ identities, using during the interview,
were analyzed based on the statement that narratives are co-constructed by participants
in a communicative event. After observed how the narrators’ identities constructions in
relation to their Italian culture-based attitudes and which extent the interviewed life
stories were oriented by Italian Cultural values and also his immigrant condition in
Brazil, a fictional text was made in order to present the interviewed stories and the
researcher paths. Important to remark that Identity is built simultaneously in three
different universes: story, interaction and social-cultural values.
Keywords
Italian Immigration; Oral History; Identity; Narrative; Interactional Sociolinguistic
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
Siccome questo è il vuoto c´è posto per tutto, e quel poco che c´è, è come se non ci fosse. Anche i binari sono perfettamente inerti, le lucertole immobili i vagoni dimenticati (Fabio Pusterla. Paesaggio. Poesia Sempre, ano 3, n. 6, outubro 1995,120)
Como isto é o vácuo há lugar para tudo, e o pouco que há é como se não fosse. Até os trilhos são perfeitamente inertes os lagartos imóveis, os vagões abandonados. (Fabio Pusterla. Paesaggio. Poesia Sempre, ano 3, n. 6, outubro 1995,120)
O ITINERÁRIO: Sumário
1. O APITO: Introdução 11
2. A VIAGEM: história ficcional de italianos no sul fluminense
20
3. A PAISAGEM: Panorama Sócio-Histórico
66
3.1. Fluxos migratórios 66
3.1.1. os êxodos de massa entre o século XIX e XX 66
3.1.2. as migrações da segunda metade do século XX 70
3.2. O trem é vida 71
3.3. A malha ferroviária no Brasil 73
3.4. A Estrada de Ferro em Barra do Piraí
80
4. O VAGÃO: Espaço 86
4.1. A Cidade 86
4.2. O Habitar doméstico 87
4.2.1. a casa 90
4.2.2. o lar e a memória afetiva
96
5. OS PASSAGEIROS: Renato e Vittorio 101
5.1. Vidas Paralelas
5.1.1. Renato
101
103
5.1.2. Vittorio 104
5.2. Os Estilos Narrativos
5.2.1. o contar histórias
106
108
5.2.2. o uso de repetições 110
5.2.3. o uso de imagens 118
5.2.4. o uso de diálogo construído
5.2.5. o dueto conversacional
5.3. Conexões e Desvios: as trajetórias de Renato e Vittorio
121
124
126
6. A PLATAFORMA: Considerações Finais
132
7. A BAGAGEM: Referências Bibliográficas
136
8. O DIÁRIO DE VIAGEM: Anexos 152
8.1. Anexo I: Convenções de Transcrição 153
8.2. Anexo II: transcrição da segunda entrevista com Renato 155
8.3. Anexo III: transcrição da primeira entrevista com Vittorio 192
Velhas estórias
(quase)
em busca
de uma “moral” nova
ou
ao encontro de uma moral nossa
(MELO, 1985)
O APITO: INTRODUÇÃO
Quando o trem passa, quando a vida passa, desde o início dessa pesquisa o trem
estava presente, a metáfora não estava clara, mas a idéia de deslocamento, mais do que
por nave ou avião subjazia no meu inconsciente.
Até pouco tempo o título era “Das FFSS a Barra do Piraí: histórias de vida de
imigrantes italianos no sul fluminense”, mas ao redigir o texto ficcional que encontra-se
no segundo capítulo, a metáfora da vida como uma viagem de trem revelou-se. Assim
como a metáfora epistemológica que se anuncia desde o sumário, sendo este
denominado itinerário por descrever os caminhos por mim traçados ao longo da
elaboração escrita desta pesquisa.
Durante a minha graduação um professor me indicou um livro intitulado
Contesti italiani, um compêndio didático com diversos tipos de textos, de material
autêntico em língua italiana, em dois dos quais, dos meus preferidos, está presente o
trem, a saber: “Anche i treni bevono”, de Giorgio Manganelli, no qual o autor trata sobre
a degradação do trem e “La bella sconosciuta”, cuja passagem “e sai chi vide affaciata
al finestrino? La bella sconosciuta”, de Achille Campanile, que sempre me desperta
emoção pelas imagens e sentimentos que suscita e cuja passagem “La vide affacciata a
um finestrino”, sempre me remeteu ao retrato, como representação.
Portanto, acredito que a literatura italiana tenha influenciado minha opção por
trabalhar com a língua italiana, ao invés, da língua inglesa, que na época estudava
paralelamente na UERJ; cujos textos de Shakespeare me eram mais caros: Romeu e
Julieta, os amantes de Verona, e A megera domada, ambientada entre a Toscana e
Veneto, tinham relação com a Itália. De qualquer forma, foram decisivos o contato com
as pinturas italianas na Pinacoteca de Brera e as aulas do Prof. Marco Lucchesi cujo
conceito de leitura não se resumia ao textual, mas também à imagética e à semiótica.
Portanto, no título desta pesquisa, o termo “retratos em 3x4”, além de referir-se
ao aspecto documental da coleta de relatos de histórias de vida de italianos, já que esse
tipo de fotografia é o mais usado no Brasil em documentos, também remete à imagem
que temos das pessoas debruçadas nas janelas dos trens como que se posassem para um
retrato, “affaciate ad um finestrino”.
12
Daí, ao pesquisarmos as histórias de vida (Linde, 1993) de imigrantes italianos
residentes em Barra do Piraí que vieram ao Brasil após a segunda guerra mundial nos
questionarmos a respeito de essas narrativas se tratarem de uma literatura coletiva,
elaborada pelo sujeito da enunciação, posto em perspectiva de um “griot” da atualidade,
um sujeito que rememora eventos coletivos e privados sob a luz da atemporalidade de
provérbios e de algumas lendas tradicionais ou se as limitaríamos como registros orais
da presença de uma comunidade italiana no sul fluminense.
Se considerarmos a literatura de forma abrangente, social, literatura coletiva,
plural e flutuante, percebemos que não poderíamos circunscrevê-la somente a livros,
posto que se perpetua em várias formas de expressão do imaginário do imigrante, a
saber: em cartas, diários “científicos” ou pessoais, biografias, jornais, crônicas, folhetins
e porque não em registros orais em situação de entrevista? Como sugere Cláudio Murilo
Leal em artigo no Caderno Prosa & Verso dO Globo de 1º de novembro de 2008 ao
analisar a coletânea “Viver & escrever” de Edla Van Steen.
Evidentemente há a diferente semiose que presidem a escrita e o relato oral,
conforme constata argutamente o escritor angolano Manuel Rui:
Eu sou poeta, escritor, literato. Da oratura à minha escrita quase só me resta o
vocabular, signo a signo em busca do som, do ritmo que procuro traduzir
numa outra língua. E mesmo que registre o texto oral para estruturas
diferentes – as da escrita – a partir do momento em que o escreva e procure
difundi-lo por esse registro, quase assumo a morte do que foi oral: a oratura
sem griô, sem a árvore sob a qual a estória foi contada; sem a gastronomia
que condiciona a estória; sem a fogueira que aquece a estória, o rito, o ritual.
(RUI, 1981, 29-30)
No momento em que ocorre a consciência de construção de um novo momento
no qual o imigrante torna-se o sujeito de sua própria história, a cultura trilha novos
rumos e um deles é buscar na oralidade as formas para que os impasses sejam
transpostos. Sendo assim, a matéria híbrida da qual os textos são constituídos é exposta
e a fala se torna escrita e a escrita, a fala ritualizada no papel.
Literatura-memória, movimento contínuo, linha de união entre dois povos, duas
pátrias, do “Expresso” Brasil-Itália, não somente Barra do Piraí – Salerno ou Barra do
Piraí - Calábria. Não podendo esquecer que seus passageiros encontravam-se na
condição de imigrantes, condição na qual, segundo Alfredo Bosi:
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Traz em si as múltiplas formas concretas da existência interpessoal e
subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na
mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar,
de rezar, de cantar, de morrer e de ser sepultado.
(BOSI, 1992, 27)
Coletando os dados para a pesquisa em questão, as narrativas, os relatos de vida
de imigrantes italianos residentes na anteriormente citada situação de pesquisa, convivía
com a história, com a memória imigrante a ser registrada, ilustradas por documentos tais
como fotos, cartas, menções honrosas, passaportes antigos é verdade, mas formas
documentais a espera de uma narrativa que as vivifique, que as reconstruam que as
tornem presentes. Assim como os documentos, às vezes guardados em caixas, às vezes
expostos pela casa, necessitavam de uma narrativa. Os fatos históricos não, poderiam
ser desprezados como enquadre que se apresenta.
Deste modo, antes de observar a possível produção literária oral, devemos
refletir sobre os motivos que trouxeram os italianos ao Brasil, assim afloram questões,
tais como: quando os “italianos” começaram a chegar ao Brasil? Quais as principais
levas migratórias? Como era a realidade italiana no segundo pós-guerra e no Brasil?
Havia uma participação culturalmente ativa da comunidade italiana? Quando teria sido
o início de participação em atividades culturais no Estado do Rio? Algumas das tantas
questões que se apresentam quando o objeto a ser pesquisado refere-se a uma literatura
italiana que começa na Itália, mas se firma no Brasil em língua portuguesa com acento
“italiano”.
As relações entre História e Literatura, muitas vezes vistas como evidentes, se
fazem necessárias quando se pretende observar de que maneira os imigrantes “italianos”
que vieram para o Rio de Janeiro registram e expressam suas impressões e experiências
e, em que proporção tais registros se definem entre texto literário, ou seja, possuem uma
estética literária e um histórico.
Nesta pesquisa analisamos a presença italiana em Barra do Piraí, cidade do sul
fluminense, antigo entroncamento ferroviário, como produto artístico, a partir de duas
narrativas expressivas de imigrantes da Calábria e Campanha, depreendidos dentre as
entrevistas por mim realizadas desde 2004, com imigrantes que residem no Estado do
Rio de Janeiro ora residentes nos subúrbios cariocas ora em cidades do sul fluminense.
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Para tal, senti necessidade de não somente entrevistá-los e transcrever suas falas,
mas também de me inserir na comunidade, como eles o fizeram, por meio não só de
minhas identidades de pesquisadora e professora, mas também pela de empresária, de
modo a realizar uma pesquisa etnográfica densa.
Concomitantemente a análise das narrativas não pode deixar de lançar um olhar
às raízes histórico-sociais que alimentaram essa árvore geradora de frutos como as
referidas narrativas, pois de acordo com Sevcenko (1995,20):
Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto
artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar
uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade de seus frutos não
depender das características do solo, da natureza do clima das condições
ambientais?
(Sevcenko, 1995, 20 - grifo meu).
Como podemos notar, literatura e história entrelaçam-se de tal modo que ao
pesquisarmos a presença italiana em Barra do Piraí a partir das narrativas de imigrantes,
faz-se necessário traçar um panorama da história da imigração italiana nessa cidade,
como veremos no capítulo 3, desde a primeira grande leva, no final do século XIX, em
decorrência da necessidade de mãos de obra para a colheita do café; quando chegou a
Barra do Piraí o avô de um dos entrevistados. Assim, podemos compreender que a
Estrada de Ferro foi fundamental para o crescimento da população e comércio locais por
possibilitar os deslocamentos de pessoas e mercadorias, trazendo a Barra pessoas de
diversas etnias, dentre as quais a italiana.
A investigação, o fato da pesquisa de campo ter sido a pioneira na coleta das
fontes primárias, em anexo, constitui a originalidade desta investigação. Cabe ressaltar
que o material em questão serve de contra-prova do trabalho científico, por mim
realizado.
Importante lembrar que o Rio de Janeiro foi o primeiro pólo imigratório do
Brasil e que tem sido deixado de lado no que se refere a memória da imigração italiana,
pois os pesquisadores tendem a restringir seus estudos ao Estado de São Paulo.
Ao escutarmos e registrarmos ao que Linde (1993) denomina história de vida
desses imigrantes que chegaram ao Brasil em decorrência das condições de miséria na
qual se encontrava a Itália do pós-guerra, com o sonho de fare la Merica, me veio
sensação de estar registrando a História, de trazer a baila um tesouro tão brilhante como
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a couraça de uma Maria fumaça, tão intenso e prazeroso como seu apito característico.
Memória dissipada como ocorria com a névoa que saia das caldeiras dessa máquina tão
querida, fumaça que aos poucos ao longo do percurso deixava seu rastro. A respeito
dessa sensação de felicidade que o encontro com o passado suscita cito uma passagem
de Walter Benjamin (1885, 223):
O passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção. Pois
não somos tocados por um sopro do ar que já foi respirado antes? Não
existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Se
assim é, existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e
a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada
geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado
dirige um apelo.
(Benjamin, 1885, 223)
Paul Thompson assinala o fato de que geralmente nas famílias há ao menos um
filho detentor da história da família, geralmente o primogênito, mais não
necessariamente este, como veremos adiante, ao entrevistarmos Vittorio e Renato esses
confirmam a tese, o primeiro dizendo que seu primogênito é o que mais respira a Itália,
ao passo que a filha do segundo é a única a inscrever-se em um curso de língua italiana
e mantêm a sala de sua casa, como a da casa paterna, inclusive com o mesmo pôster da
cidade de Luzzi.
Não é raro famílias irem ao encontro ao apelo do passado, aflancando História e
Literatura, expressas em discursos híbridos, pois que conjugam idéias de homens
divididos entre a possibilidade de abrasileirarem-se ou de permanecerem o outro, o
estrangeiro. Importante ter presente a existência desses sentimentos contraditórios,
posto que podem desencadear alguns mecanismos de autopreservação cultural ou de
formação do estereotipo do vero italiano no Brasil ou o que lhe valha.
Segundo Labov e Waletzky (1997) e Labov (1972), a narrativa é um método de
recapitular as experiências passadas e se caracteriza por sua estrutura organizada em
uma seqüência temporal, por ter um ponto e por ser contável, porém essa aboradagem
tem sido objeto de críticas, como por exemplo, a de não problematizar a relação entre o
evento passado, memória e narrativa.
Para Labov a narrativa é composta de seis elementos básicos: resumo,
orientação, ação complicadora, avaliação, resultado ou resolução e coda. O resumo se
relaciona ao tópico da narrativa; a orientação especifica os participantes; a localização
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diz respeito ao espaço, ao tempo e a natureza do evento; ao passo que a ação
complicadora se relaciona aos eventos descritos na narrativa e a avaliação se refere ao
motivo da ação estar sendo contada; o resultado ou resolução compreende o
fechamento da narrativa e; a coda é o elemento que pode aparecer para ligar a narrativa
à situação atual dos participantes da interação onde a narrativa ocorre, como veremos no
capítulo 5, no qual analiso as estratégias de envolvimento dos entrevistados ao narrarem
suas estórias de vida.
Importante ressaltar que o estudo de estórias de vida é uma boa forma de se
pesquisar como as pessoas constroem suas identidades sociais (Linde, 1993; Mishler,
1999) por meio de suas produções narrativas, já que, ao narrar estórias, as pessoas tem o
poder, segundo Mishler (1986), “não apenas de falar com sua própria voz e contar sua
própria estória, mas de aplicar o entendimento adquirido para agir de acordo com seus
interesses”. Deste modo, como aponta Santos (2007), “o narrador evidencia o desejo de
construir significados específicos de si e de seu posicionamento no mundo”, fato este
que, por meio de instrumental adequado, dá ao pesquisador a possibilidade de traçar
uma análise de como o indivíduo co-constrói a sua narrativa e a sua identidade social
por meio do discurso.
Sendo assim, é fulcral a percepção de que, ao narrar estórias, as pessoas utilizam
a narrativa não apenas para (re)construírem um evento passado, mas também para que
elas sejam interpretadas segundo suas representações, por isso, segundo Riessman
(1993:2), as
“análises em estudos da narrativa se abrem para formas de contar sobre a experiência,
não simplesmente para o conteúdo ao qual as línguas se referem.”
Além disso, assim como obras literárias sofrem adaptações para serem contadas
em diferentes espaços, uma mesma estória pode ser contada de diferentes maneiras,
dependendo do público, contexto e objetivo.
Ao longo dessa pesquisa, ao analisar as narrativas de Renato e Vittorio, percebi
que diferentemente do sujeito de pesquisa de minha dissertação de mestrado
“Amarcord: narrativa de um imigrante italiano no Rio de Janeiro”, orientada pela Prof.a
Doutora Liliana Cabral Bastos, não se tratava de narradores de alto-envolvimento como
o era Salvatore.
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Eles se utilizam de estratégias discursivas semelhantes às de Salvatore, e como
ele, lhes são importantes os tópicos família, emigração, trabalho, sendo que detectei,
durante a minha análise a importância do espaço doméstico, como desenvolvo no
capítulo 4. Porém, a estética, a plasticidade em suas narrativas, não são comparáveis a
de Salvatore.
Tal fato suscitou um dilema: continuar o trabalho com essas narrativas, e caso o
fizesse como apresentá-las, ou, simplesmente trilhar o caminho mais fácil e analisar a(s)
narrativa(s) de outro(s) informante(s). Porém, Renato e Vittorio são as referências da
colônia italiana em Barra do Piraí por serem os mais velhos, os de sua geração que estão
há mais tempo na localidade.
Optei, portanto, pela primeira e, após o exame de qualificação, tive a certeza de
que a solução seria criar um relato, uma adaptação para a apresentação das narrativas.
Ressalto que muitos historiadores como Rui Castro, por exemplo, lançam mão desse
recurso, assim como, escritores de romances, tal qual José Saramago, partem de um fato
histórico e criam romances formidáveis.
Eu, como visto anteriormente, defendo que a história oral deva ser vista como
literatura e, como no início desse capítulo, evoco a figura do Griot que poderia ser
representada aqui pelos filhos detentores das histórias de família.
O problema é que nunca havia criado um texto ficcional, nem ao menos histórias
para fazer minha irmã mais nova dormir. Ela tinha que se contentar com textos de
Umberto Eco, em italiano! Posto que, na época, ainda estava cursando minha
graduação.
Além disso, ao visitar Sandrino Santoro, o Salvatore, de minha dissertação, após
sua leitura de meu trabalho, compreendi o quanto a preservação da nossa fase negativa
(Brown & Levison) nos é cara. O quanto desejamos ser aceitos e como, segundo
Montaigne, sermos julgados por outras pessoas nos incomoda.
E como, segundo Riessman (1993:08) os “investigadores não possuem acesso
direto às experiências do outro. Nós lidamos com representações ambíguas das mesmas
e , implícito à análise há um julgamento, consciente ou inconsciente o que corrobora a
tese de não haver neutralidade em pesquisa no âmbito social, vista que são realizadas
por pessoas.
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Sendo assim, mais uma vez, realizaria um julgamento no qual os sujeitos da
pesquisa estariam em situação de desvantagem. A solução? Ao menos para minimizar
essa disparidade?
Expor-me, assim como eles, generosamente e credulamente, o fizeram ao me
receberem e ao narrarem suas estórias de vida (Bastos, 2005).
Deste modo, após coletar os dados, analisá-los no capítulo 5, fazer o
levantamento bibliográfico, conviver com a comunidade italiana em Barra do Piraí,
trabalhando como professora de italiano em uma escola pública e inserir-me na
comunidade barrense como empresária, abrindo uma escola de idiomas, após um
processo de amadurecimento, elaborei o capítulo que compõem o capítulo dois, no qual
além das vozes de Renato e Vittorio, há também a minha como personagem, ao relatar
trechos da minha história, fruto da necessidade de paridade aos meus entrevistados e, a
do narrador, como observador de essas histórias.
Como este trabalho foi construído em base a metáfora do trem e, como a
Literatura é importante em nossas vidas, cada capítulo é iniciado por trechos de poemas,
músicas ou materiais que circulam pela internet.
Boa Leitura!
“É muito interessante, porque nossas vidas parecem ser realmente como uma viagem de
trem, cheia de embarques e desembarques, de pequenos acidentes pelo caminho, de surpresas agradáveis ou não.
Quando nascemos e embarcarmos nesse trem, encontramos duas pessoas que
acreditamos, farão conosco a viagem até o fim: nossos pais. Não é verdade. Infelizmente, em alguma estação, eles desembarcam, deixando-nos órfãos de seus carinhos, proteção, amor e afeto. Mas isso não impede que, durante a viagem, embarquem outras pessoas interessantes que virão ser especiais para nós: nossos irmãos, amigos e amores.
Muitas pessoas tomam esse trem a passeio. Outras fazem a viagem experimentando somente tristezas. E no trem, há, também, outras que passam de vagão em vagão, prontas para ajudar quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas. Outros tantos viajam no trem de tal forma que, quando desocupam seus assentos, ninguém sequer percebe.
Curioso é considerar que alguns passageiros que nos são tão caros acomodam-se em vagões diferentes do nosso. Isso nos obriga a fazer, essa viagem, separados deles. Mas isso não nos impede de, com grande dificuldade, atravessarmos nosso vagão e chegarmos até eles. O difícil é aceitarmos que não podemos sentar ao seu lado, pois outra pessoa estará ocupando esse lugar.
Essa viagem é assim: cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, embarques e desembarques. Sabemos que esse trem jamais volta. Façamos essa viagem da melhor maneira possível, tentando manter um bom relacionamento com todos, procurando em cada um o que tem de melhor, lembrando sempre que, em algum momento do trajeto poderão fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender isso. Nós mesmos fraquejamos algumas vezes. E, certamente, alguém nos entenderá.
O grande mistério é que não sabemos em qual parada desceremos. E fico pensando: quando eu descer desse trem sentirei saudades ? Sim. Separar-me dos amigos que nele fiz, do amor da minha vida, será para mim dolorido. Mas me agarro na esperança de que, em algum momento, estarei na estação principal e terei a emoção de vê-los chegar com sua bagagem, que não tinham quando embarcaram.
E o que me deixará feliz é saber que, de alguma forma, eu colaborei para que essa bagagem tenha crescido e se tornado valiosa. Agora, neste momento, o trem diminui sua velocidade para que embarquem e desembarquem pessoas. Minha expectativa aumenta, à medida que o trem vai diminuindo sua velocidade …
Quem entrará? Quem sairá?
Eu gostaria que você pensasse no desembarque do trem, não só como a representação da morte, mas também, como o término de uma história, de algo que duas ou mais pessoas construíram e que, por um motivo ínfimo, deixaram desmoronar. Fico feliz em perceber que certas pessoas como nós, têm a capacidade de reconstruir para recomeçar. Isso é sinal de garra e luta, é saber viver, é tirar o melhor de todos os passageiros.
Agradeço muito por você fazer parte da minha viagem e por mais que nossos assentos não estejam lado a lado, com certeza, o vagão é o mesmo.”
(Mazzei, Julinho, 2007)
2. A VIAGEM: história ficcional de italianos no sul fluminense
I
A primeira vez que cruzei o rio me emocionei. A grande ponte metálica me
lembrava os tempos de pendolario na Itália...
Todo dia ia a Milão de trem, via Monza, partindo de Bergamo. Desse viavai similar
ao movimento de um pêndulo de um relógio de parede foram feitos meus dias. Assim como
os das pessoas que como eu, iam e vinham de uma cidade a outra para trabalhar ou, no meu
caso, estudar a língua italiana sendo assim chamadas, pendolari.
Não sei dizer se o rio estava caudaloso ou tranqüilo, bege ou verde. Tenho-o
atravessado de duas a três vezes por semana e cada dia ele se apresenta de um modo
diverso, porém sempre belo e misterioso. Vendo-o assim sedutor compreendo Ofélia e
Virgínia.
Com a distância temporal, que nos faz criar realidades, não saberia precisá-lo
naquela primeira tarde, há dois anos, quando, naquela manhã, atravessei-o cometendo um
erro, como quem confunde uma perna com um braço, atravessei o Paraíba acreditando ser o
Piraí.
Perna com braço porque visto que as terras compreendidas hoje pelo Município de
Barra do Piraí eram dominadas pelos índios Puris, Araris, Botocudos, Tamoios, todos
pertencentes ao grupo Tupinambá, e, segundo reza a lenda de formação do mundo desse
grupo indígena, Maíre – o transformador – de quem todas as tribos barrenses provieram,
andava sempre na terra acompanhado de Jacy e Guaracy, levando luz aonde chegava. As
metamoforses que operara despertaram a ira em muitas pessoas. Foi então Maíre convidado
a uma festa e obrigado, juntamente com seus dois companheiros inseparáveis, a pular por
sobre três fogueiras acesas. Após ter sido bem sucedido na primeira prova, Maíre evaporou-
se ao saltar a segunda fogueira e foi, assim, consumido pelas chamas. Sua cabeça, ao
explodir, produziu o trovão, enquanto que as labaredas do fogaréu se transformaram em
raios que incendiaram todo o Universo. Ao explodir, junto com Guaraci – o sol – e Jacy – a
21
lua – subiu aos céus. Seus olhos viraram estrelas, seu bafejo, o vento, enquanto que seus
outros membros, ao retornarem à terra que ardia em chamas foram pedaço a pedaço
transformando-se em mares a partir do tronco, pernas e braços em rios e lagos. Uma
perna e um braço, respectivamente transformaram-se no rio Paraíba e no Piraí.
A grande conspiração contra Maíre custou à humanidade dias de grande penúria,
castigo imposto por Monan, o criador do homem que teria destruído a primeira leva
humana pela culpa adquirida e, desse grande aniquilamento teria poupado somente um
ser Irin-Magé, do qual Maíre descendia. O grande feiticeiro Maíre, introduzido nas artes
das transformações por Monan, tomado de piedade pela grande penúria na qual se
encontrava a humanidade, transforma-se em uma criança Manai e ensina a agricultura
aos Tupinambás, trazendo-lhes todos os vegetais que passaram a constituir a base da
alimentação de seus descedentes. Além disso, ensina-lhes a distinguir os vegetais úteis
dos nocivos e o uso que podiam fazer de suas virtudes medicinais.
Séculos depois a agricultura impulsionaria Barra do Pirai e a colocaria em
destaque no Império como grande produtora da região que seria denominada Vale do
Café. Além de no caso dos italianos, promoverem uma grande transformação culinária,
não somente introduzindo a massa e impulsionando esse tipo de indústria, como
veremos mais adiante, como mostrando aos brasileiros, que, por exemplo, poderiam
comer as flores de alcachofra e não somente dá-las aos porcos.
Naquela manhã atravessei a ponte metálica com grande esperança para encontrar
o secretário de trabalho e desenvolvimento de Barra do Pirai. Sabia que era um grande
entusiasta da cultura italiana por ser descendente de italianos. Imaginara-o um senhor
convencional. Deparei-me com um jovem empreendedor, o secretário empreendedor,
como se lhe refere um amigo, dono de pousada, em Ipiabas, distrito turístico do
Município.
O secretário conhecera meu irmão em uma divulgação de nosso curso e soubera
que eu era professora de italiano. Sim, professora de italiano, mais que uma formação,
um papel social, essa tem sido a minha existência. Posso realizar diversas atividades,
mas ao me definir, me defino e me compreendo como professora de italiano.
Há alguns meses ele iniciara um trabalho no sentido de trazer o ensino de
italiano para a rede pública, com o auxílio de uma associação carioca, seu único
problema: não havia professor de italiano na região. Eu, sempre quis ver a língua
22
italiana nas escolas públicas, cheguei a fazer uma prova em Santa Catarina somente para
ter a sensação de prestar um concurso público para o ensino da língua italiana, nos
ensinos: fundamental e médio.
Problema resolvido, pensamos... Porém, nada é tão simples, em meio a
negociações, acertos, contratos, levou-se um ano para que víssemos a língua italiana na
Faetec de Barra do Piraí.
Durante esse ano passei a conhecer melhor a cidade e seus habitantes. Meu
projeto que consistia em recolher as histórias de vida de imigrantes italianos nos
subúrbios cariocas, transferiu-se para Barra do Pirai. Passei a conhecer a comunidade
italiana de Barra e gostaria de contar-lhes essas histórias.
23
II
Há quem diga que Barra é feia. Eu sou feia, tímida e anacrônica, mas, como o
escritor, por força de pensar-me diferente, consegui simular exatamente o contrário.
Quem julga Barra feia atenta para alguns detalhes, tais como o viaduto que leva
de lugar algum a nenhum lugar ou à agitação do centro que lembraria Madureira. Nada
contra Madureira. Porém, tenho certeza que se a pensassem olhando o céu, o rio, os
casarios e, principalmente, os descendentes de Maíre com os filhos de África e Europa,
veriam-na gentil e hospitaleira, pois em Barra temos hausses, daomeetros, bantus,
iorubas, libaneses, italianos, alemães, portugueses, franceses, espanhóis, russos.
Nos meus 34 anos já morei em duas dezenas de casas e viajei por várias cidades
e países. Eu sou do tipo que para disfarçar a timidez puxo assunto e fico a escutar os
causos dos desavisados. No entanto, nunca conheci povo tão gentil, pessoas tão
agradáveis e olhares tão caridosos.
Dia 26 de julho fui à festa julina no “sítio dos italianos”, o sítio pertence a uma
família italiana, por isso ser conhecido como sítio dos italianos. Duas de minhas alunas,
professoras que se encontram na casa dos sessenta, são bisnetas de um friulano que
fundou o sítio e foram criadas segundo a doutrina espírita.
Barra do Piraí possui o mais antigo centro espírita do Rio de Janeiro, muitas
pessoas com as quais tenho convivido em Barra, alguns descendentes de italianos,
professam essa doutrina o que nos faz rever a associação de italianos ao catolicismo.
Devemos lembrar que além de católicos, vieram para o Brasil judeus, espíritas e até
mesmo ateus. Todos com um desejo comum, fare la Merica, melhorar de vida,
trabalharem e darem aos filhos a oportunidade de estudar
Minhas alunas do sítio dos italianos, são indubitavelmente as mais aplicadas,
uma vez me relataram como o desejo de estudar sempre prevaleceu às roupas e sapatos,
pois que tinham que optar em comprá-los ou ir à escola, na qual trabalhavam para que
pudessem estudar. Imediatamente lembrei-me das histórias de minha mãe que tinha que
usar o dinheiro do pão para pagar a passagem de ônibus ou ir a pé, até o colégio, que era
há muitos quilômetros de distância da casa de seus pais.
Talvez por ter sido embalada por histórias inventadas por meu pai e crescido
escutando os relatos de minha mãe eu goste tanto de um banco escolar e privilegie as
24
viagens a qualquer sapato ou roupa da moda. Não me importo de pegar ônibus, van,
trem ou combi se no final chego ao destino de minha viagem e durante o percurso posso
conhecer pessoas diferentes. O único senão é andar até a rodoviária, mas daí me lembro
que o problema com as academias é o mesmo: chegar até lá, depois é só se divertir.
Tenho uma amiga que diz que eu sou a Sra. Perrengue, já seu namorado é mais
gentil na sua análise e diz que na verdade eu sou determinada. Ela diz que eu complico a
vida por não andar somente de carro. Aliás, depois de prestar o exame do Detran e ser
aprovada aos 19 anos nunca mais dirigi, isso nunca me atrapalhou, somente por ocasião
da segunda festa de casamento do Paolo, por questão de tempo, não poderia me dar ao
luxo de dispor de três dias para ir e voltar a Ilha Grande, organizei o evento com carinho
por telefone, mas fiquei profundamente triste por não poder comparecer, quisera ter um
helicóptero a disposição, às vezes um pouco de luxo faz falta, não é verdade? Minha
amiga também aponta o fato de eu ser um tanto quanto Kamicaze nos negócios, posto
que quando acredito em algo mergulho de cabeça, como no caso das duas escolas que
abri com meu irmão sem ter um tostão, me endividando absurdamente com
empréstimos que estão quase quitados a custa de acreditar que iria dar certo e viver por
três anos uma vida espartana. Sinceramente deixo a vocês o julgamento sobre merecer
ou não tal apelido.
E por falar em negócios, curiosamente tenho outros dois alunos descendentes de
friulanos, de Pordenone, um que a família pode ser considerada do Veneto ou do Friuli,
que se instalaram em Barra há pouco tempo, originalmente são de Jundiaí, vieram,
começaram com gado, depois café, mas felizmente optaram em abrir um laticínio. Eles
têm uma linha de produtos italianos que são realmente maravilhosos, atestados pelo
Paolo, meu amigo toscano que adorou os queijos e a manteiga. Conseguiram expandir
seus negócios e agora estão com um novo braço da empresa, uma fábrica de cerveja que
acredito mantenha a mesma qualidade dos produtos do laticínio. In bocca al Lupo!
Interessante notar que Barra, talvez por ser o maior entrocamento aéreo-rodo-
ferroviário da América Latina traga constantemente pessoas de outras localidades.
Tenho outra aluna, de Juiz de Fora, descendente de venetos que veio há alguns
anos habitar em Barra. Durante a faculdade se apaixonara por um barrense, passou a
freqüentar a cidade, após formada em odontologia começou a clinicar em Barra e daqui
não mais saiu.
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Assim temos a comunidade italiana constantemente renovada com descendente
dos italianos que vieram no ottocento plantar café no vale e outros que por motivos de
trabalho ou coração elegeram Barra do Piraí sua cidade.
Ontem qual não foi minha surpresa ao abrir meu email e ter um convite para
ingressar em uma comunidade de um famoso site de relacionamento, que se intitula:
“Vale do café parla italiano”, elaborada por um aluno descendente de portugueses. Não
precisa dizer que imediatamente me juntei à causa. Afinal, como dizia Raul, sonho que
se sonha só, é sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.
O curioso é que grande parte de meus alunos não são descendentes de italianos,
mas adoram a língua e a cultura italiana. Vive le Italian style de vida!
26
III
Disse que minha mãe morava a quilômetros de distância de sua escola. O sonho
dela era estudar no Colégio Pedro II, e conseguiu. Nada a faria perder essas aulas e sua
paixão pelo colégio foi transmitida a mim. Agora é tradição familiar estudar no CPII.
Como não poderia deixar de ser, durante os anos no colégio nutri profunda admiração
pela figura de Dom Pedro II e quem sabe por extensão ao trem, já que a Central do
Brasil chamava-se Dom Pedro II.
Também para Barra do Piraí o trem possui papel fundamental e um dos
episódios famosos em Barra é a vinda de Sua Majestade Dom Pedro II no dia 07 de
agosto de 1864 para a inauguração da Estação Ferroviária de Barra do Piraí, hoje um
prédio abandonado no qual parte da comunidade barrense anseia para que seja
transformado em Centro Cultural.
S.S.M.M. chegou a Barra do Piraí em um trem de passageiros especial,
transportado pela “Baroneza”, locomotiva que, em terra de barões, como os anfitriões
José de Oliveira Faro e Matias Gonçalves de Oliveira Roxo, futuros barões do Rio
Bonito e de Vargem Alegre, nada mais apropriado do que chamar a “vedete” do
momento de Baroneza, locomotiva a vapor, única tombada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, primeira a circular no Brasil e que media 7 metros e
meio de comprimento por 2 metros e meio de largura e 3 metros e 40 centímetros de
altura, uma verdadeira miss, neste caso, inglesa. Construída em 1852 por William Fair
Bairn & Sons- Manchester- Inglaterra.
Além da antiguidade e do contraste entre seus cobres polidos e os cromados
modernos das automotrizes, a “Baroneza” despertava interesse pela riqueza do
acabamento e dos ornamentos artísticos dos carros que puxava.
Após 20 anos de serviços prestados ao Imperador D. Pedro II, a então senhora
retirou-se de cena por decreto do Gabinete Imperial, regressando à cena por ocasião da
visita do Rei Alberto da Bélgica, ao Brasil. Em 1954, ao completar um centenário de
existência foi incorporada ao patrimônio nacional, por decreto e recolhida à área das
Oficinas do Engenho de Dentro.
Não só para a inauguração da Estação Ferroviária de Barra do Piraí deu-se a
visita de S.S.M.M, durante a elaboração do cerimonial, estabeleceu-se que o imperador
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também plantaria uma oreodoxa régia em uma aléia na Rua Angélica e que inauguraria
a pedra fundamental da Igreja de Nossa Senhora de Sant´Anna ao lado esquerdo do Rio
Paraíba.
Porém, para chegar à margem esquerda do Paraíba o imperador teria que passar
por terras de pessoas não-gratas. Para resolver o impasse, José Pereira Faro, numa visão
diplomática, mandou enfeitar luxuosamente uma de suas embarcações utilizadas no
transporte de carga e ancorou-a no cais de alvenaria, atualmente Avenida Rabelo. No
tombadilho colocou um trono dourado, sobre um tapete vermelho, tendo ao fundo uma
bandeira imperial brasileira. Contornando o barco foram dispostos os integrantes da
banda de música e alguns militares.
Deste modo, Sua Majestade D. Pedro II embarcou e desceu o Rio Piraí sob
aplausos populares, ao som de alegres marchas marciais, atravessou a foz do Paraíba e
desembarcou em frente a Casa do Imigrante, atual Rua Angélica, sem em nenhum
momento pisar terras de barrenses malquistos pela corte.
Com a chegada da estrada de ferro, cada vez mais desembarcavam em Barra do
Piraí levas de imigrantes, cuja maioria integrava-se facilmente, passando a contribuir
positivamente para o enriquecimento material e cultural do povoado.
Uma torrente de cargueiros vindos de Minas Gerais, Goiás e comarcas vizinhas,
passam por Barra, linha do centro e do ramal São Paulo.
Era um mar de imigrantes, mercadorias, matéria-prima, todos utilizando a
Estrada de Ferro de Barra do Piraí, atraindo filiais de importantes comissários de café na
Corte Imperial, tais como: Guerra & Ribeiro; Barbosa Júnior & Cia; José Ferreira
Cardozo; José Lourenço Torres; Bernardo Santiago & Cia; Barros Coelho & Cia;
Jacintho Lopes de Azevedo; Francisco José Corrêa Quintella; Joaquim José Ferreira e
Francisco Eugênio de Azevedo & Cia.
Além disso, a Diretoria da Estrada de Ferro Dom Pedro II centralizou em Barra
do Piraí seu depósito de material, onde funcionava também uma oficina de pequena
conserva e reparo dos trens de ferro, escritórios administrativos, e assistência aos
trabalhadores dos dois ramais em construção.
Interessante notar que o ramal ferroviário do centro seguiria quase o mesmo
traçado de uma variante do Caminho Novo de Barra do Piraí, Entre-Rios Serraria,
Simão Pereira, Matias Barbosa, Juiz de Fora, Chapeu D´Uvas, Passagem por João
28
Gomes, atravessando a Mantiqueira na Garganta de João Ayres, alcançando a Borda do
Mato, ao passo que o traçado ferroviário de São Paulo seguia quase a antiga Estrada real
da Boiada, partindo de Barra do Piraí, passando por Vargem Alegre, Pinheiro, Barra
Mansa, Resende e, finalmente, chegando a São Paulo.
Nascia em 16 de julho de 1872, em Capriolle, província de Salerno, Itália, Carlo
Mandorla, fundador da S.A. Mandorla, posteriormente denominada: Del Fiore.
29
IV
Dia vinte nove de julho de quarenta e nove para dois mil e sete, fiz cinqüenta e...
Nossa! Cinqüenta e oito anos de Brasil.
Vim de avião, cheguei no dia 29 de julho de 1949. E vim de avião. Trinta e seis
horas voando, em um avião de quatro motores, no qual as asas eram utilizadas para
armazenar o combustível. O avião veio enguiçando por aí afora. Descemos no Senegal,
em Dacar, depois paramos em Natal, no Rio Grande e, finalmente Rio de Janeiro.
A viagem era longa, naquela época era a Pistão, não existia Jato, nada disso. O
avião tinha só treze lugares, vinha enguiçando, era asa e tanque e, acredite ou não, não
explodia. Quando chegou ao Rio de Janeiro, ao descer quebraram-se dois motores,
pifou o terceiro e a asa virou, o piloto conseguiu acertar, se batesse com a asa
explodiria. Então a chegada foi assim. Não tive medo porque eu era garoto, tinha treze
anos. Tudo para mim naquela época era festa. Não tinha noção.
A “Itália” foi fundada em mil novecentos e quarenta e seis, na verdade a
República italiana foi constituída após a segunda guerra mundial.
Três anos depois eu vinha de avião para o Brasil, fui um dos primeiros a utilizar
o avião, como pioneiro foram meus avós.
Viagem para a Itália de navio só em mil novecentos e sessenta após me formar
em Direito, no Rio de Janeiro. Eu me formei em mil novecentos e sessenta e, em
sessenta e um, a minha avó permitiu que eu fosse para a Itália. Quatorze anos depois
daquela viagem de avião.
Eu saí garoto e voltei homem feito a Capriolle. Dessa vez fui de navio e voltei de
navio, onze dias de viagem pra ir e onze pra voltar. Se fosse hoje, levar onze pra ir onze
pra voltar se acabavam as férias!
Eu vim, não para ver o Rio de Janeiro. Vim por causa dos meus avós, porque o
meu avô tinha uma empresa, que era a “Del Fiore”. Quer dizer, nasceu Sociedade
Anônima Mandorla só depois passou a se chamar Del Fiore.
Na realidade, o meu avô se chamava Carlo Mandorla, então em mil novecentos e
dezoito ele criou a Carlo Mandorla e Cia. que em mil novecentos e trinta três passou a
Sociedade Anônima Mandorla, e veio assim até os anos setenta, quando a Del Fiore
entrou com propaganda e ao nome da empresa foi anexado o Del Fiore, Sociedade
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Anônima Mandorla Del Fiore. A marca dos produtos Del Fiore ficou tão forte que por
fim a empresa passou a ser Del Fiore S.A.
O nome fantasia era Del Fiore e tinha outras marcas, mas o mercado foi tão forte
que ele sobrepujou todos os demais, passou a ser tão forte que acabou eliminando o
nome de Mandorla e passou a ser Del Fiore S.A., Del Fiore S.A. Era Mandorla Del
Fiore e depois passou a ser Del Fiore S.A.
O Mandorla, meu avô, veio pra cá no final do século XIX, ele nasceu em mil
oitocentos e setenta e dois e veio pra cá em mil oitocentos e noventa e sete. Ele veio
então pra Barra do Piraí com vinte e cinco anos, mais ou menos com a mesma idade do
nosso amigo Renato. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras para chegar com um
trocadinho aqui. Ele era analfabeto. Você vê que coisa bonita o avô que era analfabeto
montou a Del Fiore o outro que era farmacêutico, falava latim. Então tem os dois
extremos na minha família, uma coisa bonita.
Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e noventa e sete,
desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o endereço de uma pessoa
conhecida, de uma tia dele. Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem
nada, tinha um peixeiro, italiano que passava para quem ele pediu informação.
Conheceram-se no cais do porto, e ele disse:
- Eu não posso te levar lá, mas eu tenho que trabalhar, mas no final do meu
trabalho... Então ele passou o dia todo vendendo peixe com ele...
Para no final do dia ser levado para o tal endereço, onde tinha uma pessoa
conhecida. Bom, aí fica até um pedaço obscuro porque eu não me lembro de outros
detalhes, só lembro que ele veio parar em Cruzeiro, ficou um tempo em Cruzeiro e veio
para Barra do Piraí onde começou suas atividades.
Inicialmente ele vendia fazenda nas fazendas, vendia corte de fazenda, era
mascate, chamadas de mascate naquela época, as pessoas que viajavam pelas fazendas
vendendo as coisas.
Comércio antigamente não existia. Então, ele foi vendendo cortes de casimira
pelo interior. Inicialmente, levava vários tipos, para escolha, mas as mulheres ficavam
em dúvida e acabavam não comprando.
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Acabou concluindo que tinha que levar poucos tipos para não dar margem à
dúvida. Passou a levar para as fazendas dois ou três tipos, com essa estratégia suas
vendas aumentaram consideravelmente.
Ele sempre comentava isso, sobre aquela objetividade. Depois, com sua visão
para negócios, montou uma empresa e começou a matar porco e vender suíno. Fazia
banha, carne salgada, pensava em industrialização até que os tempos de guerra
chegaram aqui também e teve problemas com controles da Cofap - Comissão Federal de
Abastecimento e Preço.
O Brasil sempre teve a mania de controlar os preços o que felizmente acabou
graças ao Sarney. Isso é uma coisa que pertence ao passado, mas foi uma fase
complicada, que a política que precede tudo tentava dominar a parte comercial.
Hoje está provado que o mercado é o que funciona, mas naquela época se
tentava direcionar o mercado, então tinha controle de preços e tudo e o controle era tão
grande nos produtos que ele resolveu diversificar. Montou uma fábrica de macarrão,
para não depender apenas de um insumo, o porco, controlado na época pela Cofap.
Comprou umas máquinas para fazer macarrão, máquinas com uns parafusos
enormes que misturavam os ingredientes, a masseira, muito rudimentar. Botava nos
parafusos que espremiam a massa contra os buracos para sair macarrão. Cortavam-na
com a mão, penduravam-na num bambu, metiam-na numa sala com ventiladores
enormes para não cainhar, cainhar é quando o macarrão fica todo rachadinho, trinca ou
mofa, o produto se chamava Macarrão Dalva. Como a estrela Dalva, a cantora Dalva de
Oliveira.
Além disso, também começou a trabalhar com fumo de rolo e cachaça. Tinha o
porco que abatia por causa da banha e da carne, depois o macarrão, tinha fumo de rolo,
aqueles rolos de fumo, tinha cachaça, engarrafava cachaça que comprava em Minas, a
cachaça Capacete de aço, que na época da guerra era uma cachaça famosa.
O vovô se casou, nasceram três filhos, o primeiro foi a minha mãe, o segundo
foi o César que foi presidente da Del Fiore até morrer, depois eu tive que assumir e o
outro, o caçula, foi o Eduardo que foi o dissidente da família.
Ele foi representante da Brahma, correspondente do Banco do Brasil, a primeira
agência passou pelas mãos dele. Era uma pessoa muito respeitada. E aí o tempo foi
32
passando, chegamos até chegarmos aos anos cinqüenta. Eu tinha chegado ao Brasil em
quarenta e nove, convivi com meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e um de
abril de mil novecentos e cinqüenta e um. Ele tinha nascido em setenta e dois, então ele
estava com setenta e nove anos. Quando ele faleceu o César tinha vinte e tantos anos na
época, e teve que assumir as empresas. Era fim de ano, eu estava estudando um bocado
de coisas, fazendo o terceiro ano ginasial na escola Nilo Peçanha, fui pro Rio, fiz São
José, na Usina.
O César que era o segundo filho, a minha mãe morreu quando eu nasci, estudou
química, então era um técnico, todo perfeccionista, gostava das coisas perfeitas. Foi ele
que começou a Del Fiore e tudo. Também nasceu lá na Itália, veio para o Brasil com
oito meses. Nasceu nessa casa aqui da foto que trago no display do meu celular.
O César era perfeccionista, chegou à fábrica e começou a mexer em uma porção
de coisas. Quando chegou no setor onde fabricávamos o macarrão viu que o piso de
concreto tinha cedido, então ele resolveu fazer uma coisa bem feita. Tirou as máquinas,
botou o piso no nível, botou as máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou o
maquinário e nunca mais a fábrica de massas funcionou, nunca mais conseguiu fazer
macarrão, porque as máquinas tinham ganhado as formas do piso que foi cedendo, e
elas foram se acomodando quando botou tudo no prumo não teve jeito, e ficou pra trás a
fábrica de macarrão.
O São José era um internato, mas eu era externo, só assistia às aulas. Eu ia
almoçar em casa porque morava pertinho. Pegava o bonde e ia almoçar, depois voltava
para assistir as aulas da tarde, então eu era aluno externo.
Para eu poder estudar aqui no Brasil tive que fazer o que se chamava na época
exame de adaptação. Todo estrangeiro para poder continuar os estudos aqui tinha que
fazer exame de geografia do Brasil, história do Brasil e português, eu tinha estudado
geografia, estudava geografia mundial. Estudava história mundial, mas no exame você
tem história do país, geografia do país. Então tinha que fazer essas três matérias:
geografia, história e português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e
continuar e eu fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo para a Barra, a casa do alto
da Boa Vista estava fechada, então eu tive que ficar na casa do sogro do meu tio, fiquei
uns quinze dias na casa dele pra fazer o exame. O filho dele Humberto Ferrini, era
diretor social do Vasco da Gama. E uma coincidência, nesse ano de mil novecentos e
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cinqüenta foi inaugurada a sede náutica do Vasco da Gama na Lagoa Rodrigo de
Freitas, que até hoje é bonita. Imagina, imagina cinqüenta e sete anos atrás, aquilo era
um desbunde, era uma coisa maravilhosa. Um dia ele chegou e disse:
-Não, eu vou te levar pra jantar hoje. E me levou para jantar e botou na mesa,
você como não era nascida, o Ademir Menezes, o Queixada, que foi o maior goleador
que o Vasco teve, Antônio Campos e o Chico que era um dos expoentes da seleção
brasileira e jogava no Vasco da Gama...
Isso com um garoto de quinze anos... Eu ia fazer o que? Eu virei vascaíno na mesma
hora.
É pegar um garoto hoje e botar com Romário... esses jogadores famosos aí. Pra
um garoto de quinze anos... de trinta e seis à cinqüenta, estava com quatorze anos, então
um garoto com quatorze anos... virei vascaíno.
Depois de estudar no São José resolvi fazer Direito e tive que sair de lá porque
naquela época só havia dois cursos: o clássico e o científico. Quem fosse fazer Letras,
Filosofia, Direito tinha que fazer clássico. Agora, quem fosse fazer Engenharia,
Medicina tinha que fazer o científico.
Eu acho que uma das razões que me fizeram pensar em sair foi que ali só tinha
homem. Então, eu já estava ficando crescido, não é possível ver só marmanjo e no
Lafaiete não, no Lafaiete tinha muita mulher, muita menina bonita e tal e eu ficava de
olho comprido, por isso acabei indo para o Lafaiete fazer o Curso Prático. Em cinqüenta
e dois, eu estudei lá uns anos. Meu nome está lá na estátua do padre, porque estudei no
ano do cinqüentenário.
Cinqüenta e três, cinqüenta e quatro e cinqüenta e cinco eu estudei no Lafaiete,
que era misto, tinha o feminino e o misto, a minha turma era de oito homens para
quarenta e duas mulheres, vindo de um colégio onde só estudavam homens, era a sala
do paraíso. E foram três anos, depois fiz o cursinho para fazer vestibular, pois tinham
muitos candidatos para poucas vagas: passei direto para a faculdade em cinqüenta e seis.
Cinqüenta e seis, cinqüenta e sete, cinqüenta e oito, Cinqüenta e nove, sessenta.
Cinco anos de faculdade. No primeiro ano eu freqüentei as aulas de Direito, depois
comecei a trabalhar na Del Fiore e já não ia mais, mas quando faltavam uns vinte dias
para a prova, onde estivesse eu me trancava, pegava os livros e sempre passei. Minha
avó fazia questão que eu usasse o anel de advogado.
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E pensar que vim para cá porque na Itália, apesar do meu pai ser médico, o meu
avô farmacêutico estávamos no período do pós-guerra e na Itália faltava tudo, pois tinha
sido destruída, bombardeada.
Faltava tudo. Faltava gasolina, faltava pneu, faltava... Não tinha nada.
Durante a guerra o meu pai era militar e meu tio, um dos dois tios também era
militar. Meu pai foi oficial, era Tenente, viajou para a Albânia. Todos os colegas do
papai morreram, todos caíram. E ele ficou. Não tinha trauma, não, mas ficou marcado
com a guerra, só se lembrava da guerra com tristeza e acabou morrendo de problema no
coração, mas eu acho que o problema era da guerra, morreu com oitenta e oito anos.
Ficou doente, mas quando eu cheguei já tinha morrido. Eu o encontrei ainda, mas já
morto.
A guerra tem passagens muito tristes, porque faltava tudo. Como a minha
família tinha propriedade tinha um pouco de conforto porque a propriedade era grande.
Tinha gordura, tinha rebanho de ovelha, dava pra fabricar queijo, tinha cabrito, tinha
galinha...
Mas faltava tudo. Eu me lembro que eu escutava o barulho das bombas: era o
barulho da guerra, eu ouvia lá da minha vila, escutava o barulho das bombas dos
Aliados chegando na praia de Pestum.
Pestum fica encostada em Salerno. Os Aliados desembarcaram ali. Eles
desembarcaram em um lugar que lá de casa dava para escutar, porque é um lugar
relativamente perto.
Da minha casa até Salerno são oitenta quilômetros, então se ouvia o barulho das
bombas. Os americanos lançavam de avião, algo que chamavam de Ratti, Erre, a, te,te,
i. Ratti. Não era uma bomba, tinha a queda iluminada. Ele descia devagarzinho e
iluminava o terreno, depois bombardeavam lá embaixo. Então, lá de casa olhando a
gente via aquilo descendo. Depois vinha o bombardeio. E eu me lembro dos alemães
passando, embaixo de casa, porque a minha casa era em cima da estrada. As forças
passando, os alemães armados, mas ali não houve guerra, somente sofreu as
conseqüências da guerra. Quando o exército passava, o máximo que pedia era comida,
às vezes pediam cigarro, paravam e pediam cigarro para o pessoal da aldeia, mas era um
relacionamento assim, nunca houve nenhum fato, nada que acontecesse de grave, não.
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Houve a invasão, os problemas das insulinas, o fato de a Itália ficar dividida
quando parte do território virou casaca, virou pros americanos e tal. Virou, fez parte dos
aliados, mas antes disso tudo houve uma época que ficamos sob a invasão. E nessa
época da invasão o pessoal tinha muito medo, porque a guerra estava ali perto, era como
ter a guerra na porta de casa. Então, o quê que acontecia, o pessoal da aldeia resolveu
guardar as coisas lá em casa. A confiança que se tinha no meu avô, no meu pai, era tão
grande que a aldeia toda resolveu guardar alguma coisa de valor lá em casa.
A minha casa tem vinte e seis cômodos, umas paredes de dois metros, no porão
da casa, que agora foi transformada em residência, tinha engenho pra fazer vinho e
engenho pra fazer azeite. O meu avô com os caminhões transportava azeite, vinho.
Também lá tinha uma trave de madeira de nove metros de comprimento, e o meu avô
descia tudo, explicar é complicado, mas era ali que fazia o engenho todo.
Na casa tinha uma escada para baixo, e embaixo dessa escada tinha um vão,
então resolveram que dava um cômodo grande, o cômodo era metade dessa saleta aqui.
Então, todos os habitantes da aldeia, cada um levou um baú com dinheiro, com jóias,
relógios. A gente fez uma parede, fechamos, sem nada e escurecemos a parede,
passamos carvão e tudo, envelheceu a parede de modo que você chegava e não via
aquilo, via a escada, mas não existia nada. Então se porventura houvesse invasão, os
bens ficariam preservados e quando o perigo passasse abriríamos os baús e cada um
teria como recomeçar a vida.
Não houve invasão na minha zona, e eu me lembro de quando o cômodo foi
aberto. Abriram-se os baús e tudo mofado. Não tinha jeito, com a umidade tudo estava
estragado, mas as coisas estavam lá, guardadas lá em casa de modo que cada um levou o
seu baú, depois da guerra.
A única invasão que sofreram as pessoas da minha aldeia foram as dos anos
trinta, por causa do banditismo na minha casa tinha, na parede de dois cômodos umas
pedras almofadadas. Tinham umas pedras com desenho assim, a fresta e o gordinho em
cima, ou seja, um lugar para poder botar a espingarda, mas lá em casa nunca houve nada
porque todo mundo respeitava. A única que foi respeitada foi a nossa porque meu avô
era um cidadão acima de qualquer suspeita. Sobre essa época tem até um filme: Juliano,
o bandido da Sicília.
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Então são coisas que ficam registradas, ainda me lembro como se fosse hoje. A
guerra se foi em agosto de quarenta e cinco, eu nasci em trinta e seis, portanto tinha
nove anos quando acabou a guerra. Saí na rua cantando: “acabou a guerra, acabou a
guerra”! Eu tinha nove anos, então está bem vivo na minha memória. A guerra acabou
em quarenta e cinco, eu vim em quarenta e nove. Quatro anos após a guerra ainda estava
tudo destruído.
Só me lembro de tamanha alegria quando a luz chegou à aldeia. Minha tia, a
sogra do meu pai, tinha uma casa na praia, a cidade em que nasci era em um terreno
muito montanhoso, a uns doze, quinze quilômetros ela tinha essa casa. Era eu acabar de
prestar os exames e fugir para a casa dela. Passava os três meses de verão lá, na praia.
Era uma coisa maravilhosa. A tia então era uma coisa muito ligada. Então quando veio a
luz eu estava em Pietro, isso foi antes do armistício. Eu devia ter uns cinco, seis anos.
Quarenta e dois, quarenta e três, quando a vi sob a luz pela primeira vez, exclamei:
- Tia “peppina”, come sei bella!
Porque veio a luz, então via como ela era bonita, antes era só a luz da vela, você
não via direito à noite. Foi um acontecimento que me marcou.
Como já disse, meu pai era médico, e na época do Mussolini médico era
chamado de “doutor”. Ele atendia o município, era médico, oftalmologista, pediatra,
ortopedista. Fazia de tudo um pouquinho. Fazia de tudo porque era só ele.
Toda a população do município na minha faixa etária nasceu pelas mãos do meu
pai. Consertava braço e perna quebrada da turma que trabalhava na zona rural, a colher
azeitona, buscar fruta...
Então ele recebia azeitona, porquinho, essas coisas. Ele não recebia, nem
cobrava porque não tinham dinheiro para pagar, um dava uma galinha outro mandava
uma cesta de figo. Engraçado mesmo, a época na qual meu pai era médico. Fase boa da
vida!
O meu avô materno estava aqui. Tenho dois ramos da minha família italianos. O
do meu pai que é família Mango, que está todo na Itália, o da minha mãe Mandorla que
está todo no Brasil.
Todos eles eram italianos, o meu avô estava no Brasil, mas ele foi pra Itália, a
minha mãe tinha sete, oito anos quando conheceu meu pai lá na Itália. Conheceram-se,
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foram colegas de infância depois ela veio pra cá. Passado alguns anos o papai veio para
o Brasil, começou a namorar minha mãe, noivou e casou e foram-se embora pra Itália.
Eu tenho alma de brasileiro porque eu fui de contrabando daqui pra lá,quando a
minha mãe foi pra lá já estava grávida, foram-se embora e eu nasci na Itália. Minha mãe
morreu poucos meses depois do meu nascimento. Tenho um retrato seu em algum
lugar... Olha ela aqui, essa é a minha mãe. Veja como ela é linda!
38
V
“Venham a mim as massas
exaustas, pobres e confusas ansiando por
respirar liberdade. Venham a mim os
desabrigados, os que estão sob a
tempestade. Eu os guio com minha tocha.”
(inscrição na Estátua da Liberdade)
Você conhece aquilo?
Luzzi?
No, não é. É o Rio. O Cristo Redentor e o Pão de Açúcar!
Aquilo me deixou a maior lembrança do mundo! Embarquei dia vinte e nove de
julho! Desembarquei no dia vinte e um, del mille novecentos e quarenta e nove. Na
madrugada, vou falar português, torto, como meu italiano.
- O Cristo Redentor com os braços abertos, porque o Marconi, tinha dato a luce!
Em 12 de outubro de 1931, exatamente às 19 horas e 15 minutos, Guglielmo
Marconi, cientista italiano, inventor do rádio, foi convidado, por iniciativa de Assis
Chateaubriand, em cerimônia presidida por Dom Sebastião Leme e Getúlio Vargas, para
proceder a iluminação do monumento ao Cristo por intermédio de um sinal elétrico
enviado de algum ponto da Itália, o que permitiu aos cariocas verem até mesmo em
noite de lua nova, o que atualmente é considerado, uma das sete maravilhas do mundo
moderno.
Que emoção! Como no livro La leggenda del pianista sull´oceano, de
Alessandro Baricco, a cena da chegada de imigrantes a Nova York, o momento no qual
sempre há um passageiro que primeiro vê a Estátua da Liberdade ao aproximar-se da
ilha da liberdade serve também para ele. Cenários diferentes, mas semelhantes emoções.
Ao aproximar-se do Rio de Janeiro e vislumbrar a estátua do Cristo Redentor, ou de
Nova York e deparar-se com a Estátua da Liberdade.
O Cristo, A Estátua da Liberdade, ícones da esperança por melhores dias...
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Recentemente em uma revista li que uma senhora, ao ver a estátua da liberdade
disse que ainda descobriria o nome daquela santa. Se fosse uma santa, sob o olhar do
imigrante, teria de ser a Santa Esperança.
Mille Novecento e Quarenta e nove... o pai tinha rientrato, então veio com o pai
para cá. Era um rapazinho novo da Itália. Foi para Genova, nascera em Luzzi, província
de Cosenza, Calábria. Em Genova foi para o porto, chegaram lá de madrugada. Dia
vinte e um, de julho! Dias e mais dias no mar, até que um patrício gritou:
- Nós tamo no Rio de Janeiro! Ó, tem o Cristo Redentor!
Ele levantou-se, tirou o pijama. Dormiam em cima, no tombadilho do navio. Ah,
o Cristo Redentor de braços abertos sobre a pedra! Ficou realmente encantado com
aquilo, mas, mesmo já tendo se passado cinqüenta e poucos anos... Sua primeira
lembrança continua sendo aquilo, daquela cena ao chegar ao Rio de Janeiro, disso não
se esquece.
Não, não é propaganda de sutiã. Quando Washington Olivetto elaborou o tão
premiado comercial, em cima de uma frase de música popular nos anos 40, “o primeiro
amor a gente nunca esquece”. Imortalizou para toda uma geração que viveu os anos 80 a
idéia das primeiras experiências, que tanto nos marcam por seu caráter único e
impossível de reprodução e que ao mesmo tempo era um replay de um momento
universal, de uma experiência já vivida, de uma experiência que algumas pessoas
querem viver e de uma experiência que outras estão vivendo.
Assim como a menina Patrícia diante do espelho, nosso amigo ficou
hipnotizado, completamente encantado com a visão do Cristo encrustado no Morro do
Corcovado, Assim como a visão do Cristo à primeira vez, ele conheceu seu pai aos
quatro anos e, diferente emoção lhe assolou:
- Chegou lá o mille novecentos e vinte e nove, io ero uma criança, no jardim de
infância. Dei um chute na cara dele porque não o conhecia!
O pai partira quando a mãe estava grávida dele, o calabrês ia para Itália fazia um
filho e voltava, ia lá fazia outro e voltava ao Brasil, era um sofrimento, toda vez que
voltava dava era mais trabalho pra mulher.
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Os filhos nasciam com a diferença de quatro a seis anos, o tempo de trabalhar,
juntar algum dinheiro para o que viria a ser o dote das filhas, naquele tempo só casavam
as moças com dotes.
Deste modo, o pai regressou a Itália em mil novecentos e vinte e cinco, e o
tiveram, depois voltou em mil novecentos e vinte e nove, virada para mil novecentos e
trinta, e nasceu sua irmã mais velha, depois voltou em trinta e seis, e, finalmente a
caçula nasceu, em trinta e sete.
Por causa da guerra o pai passou um longo período sem ir para a Itália,
regressando somente em quarenta e oito. Não conviveu com os filhos, as crianças
tinham um pai vivo e morto.
- Pesce, olha o pesce, la sardina!
No Brasil, o pai era peixeiro, com freguesia de mil novecentos e vinte e cinco a
mil novecentos e sessenta e cinco. Sempre trabalhando com peixe, perambulava o Rio,
pelos arredores do Campo de Sant´Anna.
O filho conheceu verdadeiramente o pai somente aqui no Brasil, já homem feito,
ao conviverem pela primeira vez por um período razoável de tempo, já que as idas e
vindas do pai a Itália eram muito rápidas.
O pai, analfabeto, não sabia muito não, mas, a seu modo, fez a Merica. No
início, comprou duas latas, amarrou-as a um pedaço de pau, apoiava-o nos ombros e
saia a vender peixe. Depois de um tempo, comprou uma carrocinha e com o peixe ele
trabalhava, e com o peixe ganhava seu sustento.
Ia e voltava a Luzzi. Cumpria com a sua obrigação... Mandava um dinheirinho.
Ia e voltava.
O imigrante sonhava com a América! Vou fazer a América! Diziam e
acreditavam, como os eleitos dos deuses, em duas coisas na Sorte e no Destino em nada
mais. Tem a vida amarga e a vida boa.
Com o dinheiro que o pai mandava para a mãe, a mãe comprou uma carroça com
dois burros.
Naquela época na Itália era comum o transporte com burros, ele tinha uma tia
que vinha até sua casa com o tio puxando o burro e, para não machucar botavam um
capim e seguiam a puxar o burro.
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Não sendo burro, nem de intelecto nem de carga o pai chegou aqui em mil
novecentos e vinte e cinco. Poderia ter desembarcado um ano antes, mas acreditava que
o destino o tinha mandado para a Argentina e para lá seguiu em vinte quatro.
Lá chegando, começou a trabalhar em uma firma que fazia água doce, mas era
muito sacrificado, não gostou de trabalhar naquelas bombas que ficavam a puxar água.
Então quando o pai veio aqui, o irmão dele emprestou um dinheiro, mas deixava
a mãe muito jovem sozinha. E deixava o trigo pra moer, e alguns bichos pra criar, e os
filhos pra cuidar, e tudo pra fazer.
A mãe era o homem e a mulher. A mãe foi uma sofredora, pois devia fazer a
parte do uomo e da mulher. Deixou uma moça que era a sua mãe e ele até hoje não sabe
como ela não botou chifre no pai! Já que somos de carne e osso...
- Veja como minha mãe era bonita, olhe essa foto, essa outra tem meu pai e
minha mãe, nessa ela está mais bonita porque parece menos sisuda. Sozinha está muito
séria.
42
VI
Dizem que ela era muito bonita, muito bonita! Não a conheci, tinha vinte anos,
vinte e um anos quando morreu, era novinha. Era nova ainda... Veja só o destino, a
minha mãe foi pra lá, estava grávida, eu nasci lá, acabei vindo pro Brasil. Muitos anos
depois, após me casar, viajei com a minha mulher pra Itália, tínhamos um problema, ela
não engravidava. Fomos para a Itália e ela voltou de lá grávida. Então meu filho mais
velho foi feito também de contrabando, ou seja, minha mãe engravidou aqui e eu nasci
lá, já minha mulher engravidou lá e o Alessandro nasceu aqui. De todos os meus três
filhos ele é o que mais respira a Itália.
Eu conheci minha esposa no campo de futebol, eu gosto muito de futebol e eu
freqüentei muito o Moirão, que é o meu time em Barra e é tricolor também. Freqüentava
muito lá, tinha uns amigos meus, tudo homem casado, eu andava com gente mais velha.
Eu só andava com gente casada, meus amigos eram todos na faixa do meu tio que a
diferença era de dez anos, tem uma fase da vida que essa diferença é grande, depois a
diferença desaparece e na velhice torna a aparecer, mas some depois dos vinte anos. Ela
também freqüentava muito lá e acabei a conhecendo.
No Moirão tem a parte social, a arquibancada social e dentro da arquibancada
social tinha um telhadinho que a gente chamava de tribuna. Ela ia acompanhada por uns
quatro ou cinco conhecidos da mãe dela porque as amigas não gostavam de futebol e ela
sim. Um dia eu cheguei e estava muito cheio, então eu sentei na social, mas não na
tribuna. O pessoal começou a mexer com a gente perguntando pra mim:
- Por que você não sentou lá?
Nós éramos os mais novos, solteiros. Ela tinha dezessete anos. Então, eles
começaram a fazer sarro com a gente. Depois a gente namorou por três anos, ela já tinha
se formado, já tava dando aula, isso foi em sessenta, em sessenta e seis a gente casou.
O namoro foi interrompido em sessenta e um porque eu fui pra Itália. Disseram
pra ela que eu já era casado lá. Tinha uma senhora, que dizia que eu tinha namorado a
neta dela, mas namorada eu só tive ela. Essa senhora dizia pra ela:
- Não fica triste não, o Vittorio não casou com a minha neta, não casou com
você porque ele é noivo na Itália.
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Imaginem só!
É uma riqueza grande na vida da gente ter duas pátrias, duas famílias, muito
carinho com a gente é um negócio fantástico, eu tenho um amor pelo Brasil. Eu sei o
hino brasileiro inteiro e não sei o italiano, quase não ouço, então é natural. A maior
parte dos italianos não sabe cantá-lo também! Ele é complicado. É impressionante. Não,
não sei porque o hino nacional italiano tem uma letra que não dá para entender. Tem
umas partes que tem que interpretar o hino.
Meu pai com três anos de viúvo, casou-se de novo, em segunda núpcias lá na
Itália e eu tenho um irmão que morreu novinho e tenho duas irmãs, a Alessandra que
tem seis anos a menos do que eu e a Cássia que nasceu cinco anos depois da
Alessandra. Além disso, tenho a minha madrasta que de madrasta, ela só tem o nome. É
a sogra que minha mulher conhece. Ela é mais a meu favor do que das filhas, até hoje.
Chora, diz que eu não tenho que ir. Esse ano não fui, ano passado não fui, fomos em
dois mil e quatro. Ela é uma criatura maravilhosa, está com oitenta e cinco anos, já
quebrou fêmur, quebrou bacia, quebrou tudo, mas sobe e desce escada, cozinha, varre.
Ela gosta quando minha esposa está lá porque quando se levanta ela já fez café, quando
voltamos ela chora:
- Quem é que vai me fazer o café? Eu falo: - Sua filha tá aí, bota ela pra fazer.
Ficou uma ligação muito grande, muito forte com elas porque o italiano é muito
sentimental. Eu, por exemplo, vendo um filme choro à toa, não tenho vergonha,
realmente a emoção fica a flor da pele, muito sentimental. Eu fui criado, não tive mãe,
mas tive uma porção de mães, o que me atrapalhou porque eu achava que o mundo tinha
que girar em volta de mim.
Era o príncipe da aldeia. Até hoje quando chego lá me chamam de Dom. Filho
do médico e afilhado do padre que era muito amigo do papai, então eles eram o poder,
sendo assim, eu era o Dom Vittorio, Dom, tinham essas coisas do passado. Uma vez
minha mulher tomou um susto danado e falou:
- Meu Deus, caí na máfia! ((risos))
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Felizmente isso não subia à minha cabeça, pelo contrário, eu achava ruim porque
eu queria andar descalço igual aos outros, que não tinham possibilidade, mas eu tinha
que usar o sapato e quando o pessoal bobeava, eu tirava o sapato e saía descalço.
Chegava em casa, e vinha logo alguém dizendo:
- Mas tem que botar o sapato!
E eu argumentava:
- Mas eu quero ficar igual aos meninos!
Minha mulher também adora andar descalça, quando chegou a primeira vez na
Itália, que viu as pessoas descalças, resolveu também andar descalça, a tia tomou um
susto, falou:
- Você vai machucar o pé!
Ela argumentou: - Por quê?
Então expliquei-lhe que na Itália para o pessoal antigo, quem anda descalço é
pobre.
Outro símbolo importante era o anel de formatura, eu o usava, ele caía, então
fiquei sem usar por um tempo. Quando me casei colocava-o para segurar a aliança. Até
que um dia caiu tudo da minha mão e eu não usei mais, nem aliança, nem nada, mas ela
ficou brava, então voltei a usar aliança.
Vamos fazer quarenta e um, fizemos quarenta anos de casados, desde mil
novecentos e sessenta e seis. No início estudava e trabalhava ao mesmo tempo, depois
começou a minha vida de cigano. Eu vivia na estrada, trabalhando para a Del Fiore, até
a Del Fiore falir, em mil novecentos e noventa e seis. Perdi tantas coisas, devo ter feito
muita besteira, mas aprendi muita coisa e foi um aprendizado extraordinário de vida, de
tudo.
A Del Fiore vendia direto e eu cuidava do marketing, toda a parte comercial ficava
comigo. César na presidência, tio Eduardo na parte de produção industrial, e eu na parte
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comercial. Contatos com a televisão, propaganda na TV Globo, aqueles patrocínios do
carnaval
Tivemos três filhos. O Alessandro que é solteiro, é o mais velho, nasceu em
sessenta e nove, tem trinta e oito anos. O Bruno que é o do meio, trinta e seis e a caçula
que é a Marcela, trinta e quatro. De dois em dois anos. São três filhos, dois homens e
uma mulher. E tenho três netos. Dois são do Bruno e uma neta que vai fazer quatorze
anos, do primeiro casamento dele, separou, casou, separou de novo e tem um filho que
está com ele aqui, com cinco anos. Renata que é a mais velha, vai fazer quatorze. O
Francisco, que vai fazer cinco e a Roberta que é filha da minha caçulinha e vai fazer três
anos. São três filhos e três netos.
Eu sempre fui muito imaturo, esse casamento durou esse tempo todo graças a
ela. Se fosse outra, tinha se mandado. Imaturo e grosso. Eu fazia muita grosseria com
ela, um machismo porque eu queria me afirmar. Não tenho vergonha disso não. Dos
primeiros anos até os cinco, seis anos de casado, depois eu fui amadurecendo, fui
aprendendo, vendo o que ela necessita, mas no início ficamos casados por causa dela,
que enfrentou a barra pesada da grosseria, da estupidez. Imaturo, não estava preparado
para o casamento. Não se pode imaginar a idiotice que eu era.
Agora estou com setenta anos, a falência da Del Fiore foi um choque, e eu me
tornei diabético emocional. De certa forma isso foi bom pra mim. Eu já tinha uma vida
bastante regrada, de alimentação e algum exercício. Já tinha deixado de fumar no
primeiro ano de casamento, comecei a fazer exercício, mas depois que tive diabetes, tive
uma semana desregrada, mas não passou de uma semana porque pensei:
- para que morrer?
Aceitei a doença, ao invés de brigar com a doença passei a brigar com o
problema pra trazer solução, se você briga pra resolver, você faz parte da solução. Eu
dizia pro meu pessoal:
- Gente, não vamos fazer parte do problema, vamos fazer parte da solução.
Então passei a cuidar mais da alimentação, eu sempre gostei muito de
legumes, verduras, saladas... aqui em casa todo mundo também só come carne branca. E
passei a fazer exercício, a me exercitar. Quase todo dia eu ando três ou quatro
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quilômetros. Tenho qualidade de vida agora, melhor que antes de eu ter diabetes. A
minha médica que diz:
- Do jeito que o senhor leva a sério, o senhor está melhor do que quem não tem
nada!
Eu descobri isso em noventa e oito, foi em noventa e seis que a Del Fiore faliu.
Dois anos depois que eu descobri a minha diabetes. Então eu faço meus exercícios, mas
também com as minhas viagens no início, era complicado ter uma vida saudável.
Quando comecei a trabalhar, viajava muito, muito, muito. Então, para quem está sempre
na estrada ou no avião, em jantar de negócios, é complicado. Janta aqui, almoça lá. É
complicado. A vida agitada, agitadérrima. Podia levar até uma vida devassa porque tem-
se todas as facilidades.
Certa vez eu fui pra Itália, em mil novecentos e setenta e três, e nós tínhamos
comprado uma máquina que vale um milhão de dólares era o valor dela, depois peguei o
avião e fui para Milão encontrar com os caras, lá. E fomos jantar e eles pegaram e
trouxeram uma mulher pra mim! Até hoje eles riem da minha cara, mas não temos que
misturar uma coisa com a outra. Eu estava tratando de negócios. Podia sair muito caro,
uma noite de farra.
Eu sempre procurei manter a vida particular , às vezes o cara mistura as coisas e
acaba estragando muito, pode acabar com o casamento. A idade tira da gente um pouco
do físico, mas acho que ela acrescenta mais do que tira. A gente entende melhor as
pessoas, compreendendo o ser humano, suas fraquezas. A gente vai acrescentando
conhecimentos que na balança pesam muito mais que o físico.
Eu acho que tenho hoje tranqüilidade com a minha mulher, porque o que tinha
de errado, eu fiz quando podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e triste
porque não fez na juventude o que tinha que fazer. Tudo que você possa imaginar de
errado eu fiz. Hoje, eu não sinto falta. O que tinha de ruim eu consertei. Um dia eu
cheguei no médico e ele falou:
- Quê que você tá fazendo aqui?
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E eu disse: - Vim pra você me operar.
Ele: - O quê é isso? Operar o quê?
Repliquei: - Cálculo renal.
E aí mostrei os exames para ele, para resolver logo. Quando viu os exames
falou:
- É, vamos ter que tirar a vesícula.
A essa conclusão eu já tinha chegado, mas ao me perguntar quando eu queria
operar. Respondi:
- Amanhã!
Aí ele falou: - Você ta maluco, tem que fazer os exames de sangue.
Então eu fui fazer os exames. Fui para o Rio com a mulher. As meninas ficaram
sem jeito porque tinha que fazer tricotomia, raspar tudo e a mulher lá, mas não me
deram nem pré-anestésico. Eu nem estava preocupado com a operação, eu tava feliz que
no dia seguinte não ia ter mais nada. E realmente eu tirei. Fiquei internado três meses
porque tirei vesícula, hérnia de hiato, tive que fazer uma operação plástica. Fiquei
quatro horas e meia na cirurgia.
O meu batimento é maior. Quando estou parado de noite bate cinqüenta e oito
vezes o meu coração, meu colesterol um mais alto, outro baixinho, triglicerídio bom,
porque eu levo a sério... quer dizer, às vezes me dá vontade eu bebo umas cervejas, hoje
mesmo já bebi umas... Não pode pela diabetes, mas eu levo uma vida normalíssima.
Não me privo de nada, nunca gostei muito de doce. O pessoal come doce na minha
frente, não tem problema.
O problema é massa, mas aí descobri uma coisa maravilhosa, o macarrão
italiano não me faz mal. É porque ele é feito com trigo duro, o trigo mole que tem aqui a
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composição é diferente. um é elaborado mais depressa o outro mais devagar. Um dia fiz
um pratão de macarrão e no dia seguinte de manhã meu açúcar baixou.
Copiar dos outros, só o que é bom, não o que é ruim, afinal de contas, o que é a
teoria senão a prática dos outros posta no papel?
Eu já voltei umas trinta, quarenta vezes a Itália. Minha mulher foi umas quinze
ou vinte vezes comigo, férias pouco a gente tirava, mas era obrigado a ir por causa das
muitas máquinas, o macarrão por exemplo, os melhores equipamentos de macarrão são
italianos, de Milão, então pela facilidade da língua eu preferia viajar.
Depois tem a Alemanha com as salsicharias, a Espanha por causa do presunto,
os Estado Unidos, então, eu fazia estes circuitos pra participar das feiras, pra conhecer
as máquinas. Eu já viajei muito, inclusive junto com eles, comigo eles foram duas
vezes.
Sempre que possível eu procurava levá-los, mas muitas vezes eu viajava
sozinho, às vezes com colega de trabalho, mas às vezes até sozinho mesmo. Teve uma
vez que saí daqui numa terça-feira, pouco movimento, peguei quatro poltronas, deitei,
dormi aqui, acordei em Roma. Foi a melhor viagem que eu tive, dormi a viagem
inteira! Mas geralmente ia acompanhado, quando não da família, dos colegas de
trabalho, fui várias vezes.
Então eu cuidava da parte comercial da empresa, isso me obrigava a estar fora,
tinha na época, em sessenta e nove, a Del Fiore começou com propaganda, e foi
pioneira porque ninguém do ramo alimentício fazia propaganda na televisão. A Del
Fiore foi a primeira.
Em dezembro de sessenta e nove, fiz um Outdoor do Tender, presunto tender,
porque estava próximo ao natal e depois começou com aquela musiquinha: Del, Del,
Del, Del Fiore...
A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV Globo muito meu
amigo... Gerente comercial. É gerente comercial, ia lá para passar o final de semana,
então quando ia acertar o carnaval ele disse:
- Não Vittorio, aqui não, tem que ser lá na sua casa em Angra.
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A gente pegava a lanchinha que tava lá, saía de lancha, passeava... Ele era uma
jóia, na hora da gente ir embora ele dizia:
- Ih ainda não falamos sobre o preço dos comerciais, então papapapapa, resolvia
tudo!
A Del Fiore patrocinava o carnaval. Era assim que a coisa funcionava e com
propaganda, foi crescendo. Cheguei a ter cento e vinte vendedores no Rio de Janeiro.
Depois a gente foi pra Brasília, Belo Horizonte, Bahia, Salvador, São Paulo, Espírito
Santo, fui abrindo e viajava muito porque participava das convenções. Essa parte eu
gostava. Ela me ajudava muito porque ia e fazia camaradagem com as mulheres dos
donos de supermercados, então ficava uma coisa, uma linha assim de amizade intensa
com todo mundo, ela passou a conhecer, passou a conviver dentro da casa, um
relacionamento maravilhoso, mas isso me obrigava a pegar o avião e estar sempre lá. E
a gente unia o útil ao agradável, porque era uma coisa que era minha obrigação e era
gostoso e tal.
Nas festas, o pessoal começava a cantoria e eu gostava de cantar. Cantava, trazia
o microfone e cantava aquelas coisas bonitas, eu era bastante encabulado no início e
depois passei pra outro esquema, depois pegava o microfone e quanto mais gente tinha
do lado melhor pra mim. Gostava de público.Tinha um dos donos das Casas da Banha,
olha como eu me dava bem com ele, ele falava:
- Você vai parar de vender lá nas Casas da Banha, olha o que sua mulher tá
falando com o Júlio!
O cunhado dele, que era flamenguista doente e eu caíamos no riso. Porque eu
estava torcendo pro fluminense!
- Você não vai mais vender nas Casas da Banha.
Aliás, o Valdemar, que era um dos donos da Casa da Banha um dia ligou aqui
pra casa e disse:
- Vittorio, estou precisando de uma bolsa alimentícia.
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Ele era presidente da bolsa aqui no Rio, uma bolsa que mandava pro Mercado
Brasil, então fui ser diretor da bolsa durante três ou quatro gestões.
Engraçado, era pra eu ser fluminense, porque a bandeira italiana... Mas você
sabe porque que eu num... Eu gosto do fluminense, torço e tudo, mas em primeiro tá o
Vasco, em segundo fluminense.
Você acha que o fato político precede o econômico, ou o fato econômico
precede o fato político? À questão de alguns meses... vi que o fato político precede o
econômico, e a economia depende do mercado e para isto a democracia. Eu me lembro
do Marco Aurélio que dá cursos e eu lhe disse:
- Pô Marco Aurélio para mim estava tudo muito claro.
Por exemplo, você pega o relacionamento do homem e da mulher e pega o
relacionamento do empregado com a fábrica. Vou te dar dois exemplos pra isso: Numa
fábrica, você tem dois tipos de relacionamento, a parte funcional e a parte material.
Então, vamos na parte funcional. O empregado, em relação à fábrica, ele tem que ser
pontual, tem que ser honesto, tem que ser competente, tem que ser atencioso, tem que
ter talento. Na parte material. Qual é o relacionamento? O salário. É por isso que em
todas as pesquisas o salário nunca aparece em primeiro lugar, sempre aparece lá
embaixo. Se você puser o salário na frente, você não é funcionário. Porque você acha
que tudo isso aqui é bom por causa do salário. Não. O salário é conseqüência disso.
Então a parte abstrata, ela precede a parte concreta. E no relacionamento marido e
mulher, você tem o relacionamento afetivo e o físico. No afetivo você tem o quê? O
amor, tudo bem. Mas representado pelo quê? Pelo respeito, pela compreensão, pela
renúncia, pelo parceirismo, o pessoal gosta muito de usar a expressão cumplicidade,
isso tudo e a admiração formam o afetivo.
E o relacionamento físico? É sexo! E aí tem muita gente que confunde, porque
tem uma mulher bonita... Só que da mesma forma que quando você bota o salário na
frente da competência... se você bota o sexo na frente do afetivo... Quanto mais intenso
é o relacionamento afetivo, muito mais prazeroso é o sexo.
E as pessoas fazem confusão, às vezes. Tem que ver o que é causa e o que é
conseqüência. Então, isso é uma conclusão que a humanidade inteira faz, eu cheguei a
esse conhecimento agora, a esse aprendizado agora. Só depois dos setenta. Aos trinta,
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eu queria saber de festa, queria saber de salário... depois é que a gente chega à
conclusão de que as coisas não são bem assim.
52
VII
Tem gente que é cabeleireira, tem gente que é sartina, que faz roupa, tem gente
que é doméstica. Naquela época não se usava muito a mulher trabalhar fora e estudar
bem, quem estudava lá eram os filhos de gente com alta categoria, que estudavam os
filhos para serem padres, engenheiros, médicos. Hoje, lá é o contrário, o filho do
lavrador é professor.
O pai voltou para a Itália em maio de sessenta e cinco. Não, eles não queriam
que ele voltasse, mas ele insistiu porque ficava feio, era homem com caráter. Tinha
vindo pra cá para poder melhorar a situação da família. Fazia dinheiro para fazer o dote
para as filhas, sem dote nada de casamento. Dieci mila lire, ou dieci mila lire ou nada de
casamento.
É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo, está tudo ao contrário.
Em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a mãe, com as duas filhas que com
o dote assegurado tinham se casado e tiveram filhos. Ele tinha netos lá que nem
conhecia. Ele era mais apegado com os netos daqui porque os vira nascer. Um tinha o
nome dele, o outro o da esposa dele. Aqui tem um costume, se vem donna tem que botar
o nome da mãe, com o pai a mesma coisa, por isso, o segundo nome de sua filha é o da
avó.
Então a vida se passa assim, num estalar de dedos, a gente sofre. Isso é o
Passaporte, a inveja no Paraíso. Já pensou em deixar uma moça bonita de vinte e quatro
anos e voltar depois de passados mais de trinta anos?
AHHHHH o que é isso!
Ele sempre comprava o cartão, que na sua terra se chama cartolina. Ele sempre
comprava a Cartolina do Cristo Redentor e mandava para os amigos, as irmãs, um dia
mandou até mesmo para o padre de Luzzi. Ainda nutre esse hábito. Sua adoração por
essa lembrança é tão grande que aproveitou a ida de um amigo ao Rio e encomendou-
lhe um pôster com esse tema. Tinha visto o tal pôster em uma banca de jornal, no Rio,
mas o jornaleiro no momento não dispunha de outro exemplar e aquele não estava à
venda.
53
O velho amigo lhe trouxe o pôster e ele logo tratou de afixá-lo na parede da sala
ao lado do pôster de sua cidade. Proclamando que iria ficar eternamente ali, afinal ele
era um sujeito guardador de coisas.
Tinha só o quarto ano primário, mas gostava de guardar fatos, documentos.
Outro dia um amigo lhe mostrou no computador uma notícia, um artigo de jornal no
qual havia uma notícia sobre uma jovem e preparada mulher, graduada cum laude que
teria colaborado em um trabalho com o então ministro Giuliano Amato. A jovem da
reportagem, depois me explica, é sua sobrinha, por parte de pai.
Imaginem o orgulho de um imigrante que tendo apenas o quarto ano primário, lê
no jornal uma notícia sobre um parente que permaneceu na Itália. Aliás, cabe ressaltar
que muitos filhos de imigrantes, no Brasil, tornaram-se “doutores”, ou seja, obtiveram
uma graduação e uma ascensão social por meio do estudo.
Ele queria mandar-lhe duas palavras, um telegrama. Sem saber onde ela mora,
quando partiu da Itália a cidadezinha onde morava era uma contrata de dez mil
habitantes. Mas já virou ao contrário, após a guerra, durante o milagre econômico dos
anos 50, todos foram para Alemanha, Roma, Genova, Milão. A mulher da notícia de
jornal, sua sobrinha permaneceu e casou-se com um rapaz que por ter tido o avô morto
na guerra recebeu uma gratificação e pôde estudar na melhor universidade de Roma,
regressando posteriormente a sua cidade natal, casando-se e incentivando sua esposa a
estudar.
- Queria mandar duas palavras para ela, ma non sei onde é que mora, mas sei
que é na comune de Luzzi, ficava lá, se chama Contratta.
Assim como se orgulha da sobrinha na Itália e de sua filha Bióloga, fez questão
que se formassem suas três netas - não teve netos - cada qual em uma especialidade:
Geógrafa, Advogada e Nutricionista. Atribui o feito ao fato de ter-se casado com uma
professora, a mais inteligente de todas, segundo suas próprias palavras, que lecionou
português durante muitos anos na Escola Barão do Rio Bonito, lembram-se desse
nome? Sim, ao falar da vinda de S.S.M.M. tocamos nesse nome, um dos anfitriões de
Sua Majestade anos após a famosa recepção veio a receber esse título.
54
Tal qual Barra do Piraí, formada de gente de todo tipo, sua família é constituída
de gente camponese, gente médico, ingegnere, tutto isso por aí, compreendeu? É uma
família muito grande, muito. Seu avô, já tinha conseguido uma propriedade, mas a
guerra levou tudo, não fosse o pai imigrar e mandar aquele dinheirinho para sua mãe
que com zelo e grande capacidade administrativa, comprou terra, cabras, porcos
constituindo assim belos dotes para suas filhas, essas talvez, por ser hábito da época,
talvez não se casassem.
Atualmente, Barra do Piraí tem até um gemelaggio com Paola, cidade da
Calábria, visando à integração das duas cidades. Foi uma grande recepção organizada
pela colônia italiana ao cônsul da Itália no Brasil e ao chefe da associação dos
Carabinieri, na qual, além do gemelaggio, ele e outros membros da comunidade foram
homenageados. Comovido, mandou uma cartolina para o prefeito de Paola
agradecendo-lhe o reconhecimento.
Ele veio para o Brasile com vinte e quatro anos, sua esposa não conhece bem o
temperamento dos italianos, conviveu pouco com eles na Itália, mas intui que ele é
diferente, talvez porque já se acostumou mais com ele, não sabe ao certo.
Ele sabe que os costumes são diferentes, para ele a maior dificuldade no Brasil,
foi a diferença de costumes. O Brasil é um país maravilhoso, mas pode ser um
verdadeiro inferno se nos perdemos nos costumes. Com anos de Brasil alle spalle, pode
enumerar diversas diferenças.
Na Itália primeiro vem o sobrenome, depois o nome. Quando registrou seus
filhos fez questão de dar-lhes o sobrenome de sua mulher. Tem gente que não faz
questão: “meu sogro não é nada pra mim, dizem” Ele fez questão, afinal casara-se com
a filha dele!
Há também semelhanças, tais como as recomendações. Eu conheço você, você
me conhece, nos ajudamos. Se tiver ao seu alcance faça com que o curriculum de meu
parente seja ao menos lido, considerado pela direção de sua empresa. Networking, rede
de relacionamento, Q.I. (quem indica), não importa o lugar no mundo no qual nos
encontramos, somos seres humanos, sociais e, ao menos nessa história, a família é nosso
bem maior, e nela incluem-se os amigos, a família eleita por nós.
Não só a família próxima importa, cada vez mais nos preocupamos com nossos
ancestrais, e com a Comunidade Européia, no afã de sentir-se incluído o brasileiro
55
preocupa-se cada vez mais com sua árvore genealógica, indagam parentes mais velhos,
procuram documentos e baús esquecidos em sótãos e porões, passam parte das férias
percorrendo cidadezinhas por onde avós, bisavós, tataravós teriam residido, contraído
núpcias ou falecido.
Quem tem possibilidade vai a Itália, até as paróquias procurar registros de
nascimento, casamento de seus ancestrais, tudo na esperança de conquistar mais uma
cidadania. Quem não possui tantos meios, consola-se em escrever às paróquias, procurar
em arquivos na internet ou contar com a ajuda de alguém que more na Itália, ou mesmo
a passeio, inclua essa incumbência.
No caso dele, da sua família a cidadania é mais fácil de obter-se, pois que ele é
italiano. No entanto, talvez por estar há muito tempo longe da cidade de sua infância,
talvez por querer preservar a italianidade em sua família, preocupa-se com sua árvore
genealógica e quer identificar cada ramo para que seus descendentes reconheçam-se
como provindo de Carmela, Angiolina, Francesco, Michele, Concetta, Racchella,
Aurelia, Gerardo, Adellino, Pietro, Angelo.
Para que esses não sejam meros nomes evocados do passado a desfilarem em
páginas amareladas pelo tempo, com datas e cruzes, indicativas de nascimento e morte,
mas sim, nomes que lhes digam algo, já que para ele tanto significam, tanto lhe são
familiares, posto que fazem parte de sua história.
Para que seus herdeiros saibam mais do que somente as datas, que Mariano, não
seja apenas o pai ou sogro que nasceu em vinte de dezembro e faleceu em setenta e
quatro não no Brasil, onde residiu de mil novecentos e vinte a sessenta e cinco, mas na
Itália. Faleceu lá! Porque suas filhas ficaram lá, sua esposa ficou lá. Ele veio só e depois
trouxe o filho, mas depois de tantos anos, indo e vindo, não ficava bem para a mãe, ou
seja, para sua esposa, se ele não voltasse depois de ter campado os filhos.
As histórias de vida são únicas e deveriam ser preservada para que daqui há
vários anos alguém possa contar:
Oh! meu pai, meu avô, meu tataravô – não importa - emigrou em mil
novecentos e vinte e quatro. Foi para a Argentina. Ele tinha um irmão que se chama
Michele que foi no cais do porto para esperá-lo. Naquela época tinha a carta, era
necessária uma carta de responsabilidade. Passavam-se quarenta dias, cinqüenta dias,
sem notícias, mas hoje eu telefono, acesso a internet e falo com qualquer pessoa que eu
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queira. Não era assim naquela época. Então meu tio-avô falou: - Mariano, pois meu pai
se chamava Mario Ângelo no documento, porém todos os chamavam de Mariano.
Meu pai não tinha nem nascido. Minha avó tava esperando ele. Quando meu avô
chegou no cais do porto no navio, falou:
- Mariano, desce aqui!
Porque naquela época podia descer onde bem entendesse, pagava-se o bilhete e
imigrava-se igual a um cachorro de pobre, um vira-lata... Então, falou:
- desce aqui que você tem família em São Cristóvão.
Ele falou: - Não, o destino me mandou ir pra Argentina, eu tenho que ir pra lá...
E ficou por seis meses na Argentina, depois voltou pro Brasil. O irmão dele tava
aqui, chegou em vinte cinco. Sua avó mandou uma carta para o seu tio-avô dizendo que
seu pai tinha nascido. Somente em mil novecentos e vinte e nove seu pai (avô, bisavô e
assim por gerações e gerações) voltou pela primeira vez para a Itália. E vejam só o que é
necessidade ou miséria, não sei. Não sei o que acontecia. Como meu avô pôde deixar
uma moça bonita como minha avó lá. Vou te mostrar um retrato, tão bonita, muito bela.
- Escuta!
Ele voltou aqui de novo. Bom, ele mandou dinheiro, tinha lavoro, em mille
novecentos e trinta e seis voltou pra Itália. Em trinta e sete voltou de novo pra cá. O
quarenta e oito voltou pra lá, o quarenta e nove voltou para cá e ele trouxe o filho mais
velho, seu avô para o Brasil. Disse que tinha mulher bonita. Lá uma aldeia de dez mil
habitantes, doze mil habitantes. Ele o trouxe, trouxe por causa de sua profissão de
alfaiate.
Aqui, o avô chegou quase ao ponto de chorar, queria ir embora pra Itália de
novo, tinha deixado uma namorada, quando via o retrato dela queria voltar, queria
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voltar. A sua felicidade foi a avó, professora que lhe deu uma menina e um menino. E
não voltou mais. Por toda a vida deles. Compreendeu?
O primeiro encontro que o pai fez aqui, morando com os primos não se adaptou
muito no Rio de janeiro. Já tinha seus primos, sua tia, eram muito bons, mas era muito
diferente ele deles. Ele tinha os seus costumes. Eles aqui. Ele não os adotava, dizia para
uma parente sua com ar de indignação:
- Io vou casar com uma brasiliana?!
Ela depois teve vários anos para lhe dizer:
- Cuspa no prato e come, eh!
Toda sua vida foi sempre trabalhando, sempre trabalhando, sempre trabalhando,
sem ter o domínio da língua.
Outro dia ele se aborreceu porque veio um português se gabando. Dizendo que
tinha feito isso, aquilo. Ele imediatamente lhe respondeu:
- Olha! Tu não é nem mais inteligente, nem mais esperto. Tu fala a língua daqui.
Porque o outro tinha vindo de Portugal já com Língua do outro país, o tio dele
tinha uma barraca, era um vendedor como ele. Com ele foi um pouco mais difícil
porque falava A, tinha que esperar o freguês falar, ficava quieto tinha que escutar um e
outro pra vender. Ele teve sorte, o outro mais sorte, mas o sujeito não era mais
inteligente do que ele. Chegou no Brasil, chegou em Barra do Piraí, eles se encontraram,
dois fósforos apagados. Além disso, no Brasil seu nome era nome de fruta.
58
VIII
“Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave?”
(Drummond)
Veja, o fato de eu ter sotaque, eu tenho, eu tenho sotaque carioca. Você não vai
achar outro Italiano que tenha passado tantos anos na Itália, nascido lá, passado a
adolescência lá, como é que chama aquele nosso amigo que tem nome de fruta? Bom,
ele chegou em Barra do Piraí oito dias antes de mim. Eu cheguei no dia vinte e nove de
julho, ele chegou dia vinte e um. E com a minha idade, ele tem mais ou menos a minha
idade. Você conversa com ele e vê o sotaque dele é um negócio assim... Italiano puro.
Quando cheguei no Brasil, fiquei mudo durante muito tempo porque era muito
encabulado, ficava com medo de errar, com vergonha, eu era todo cheio de frescura,
garoto inseguro, insegurança todos nós temos mas naquela época era mais ainda porque
saí de um mundo que falava italiano, não falava português, não entendia nada, não
conhecia meus avós direito, mas eu comecei devagarzinho estudando, me apaixonei
pela língua portuguesa e gostava, estudei um ano no São José, fui desenvolvendo e
acabei sendo o melhor aluno de português da turma lá no São José, porque me dedicava,
tinha que aprender. Então, fui bom aluno de português, de vez em quando errava,
ortograficamente é difícil, mas eu sempre gostei de português.
Sempre fui bom em português, e perdi o sotaque, falo com sotaque carioca, mas
mantenho o sotaque italiano, quando vou lá também, me escondo no meio e ninguém
percebe.
Com os meus avós aqui, no início falava só italiano. Não tinha como. Só falava
italiano, e dialeto, era o dialeto da minha região, porque a Itália tem vários dialetos. Na
rua tentava falar português no início, depois não, depois eu comecei a pensar em
português, sonhar em português, mas no início era só italiano. Esperei um ano pra
aprender a falar português, cheguei em quarenta e nove e só em mil novecentos e
cinqüenta, depois meus tios colocaram-me no professor particular, estudei com o
Barbosa Leite.
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Ele foi meu primeiro professor, na rua ali, meu primeiro professor de português.
E comecei aqui, refiz o terceiro ano ginasial no Colégio Municipal Nilo Peçanha, que
naquela época era ali na esquina, onde hoje é Barão de Rio Branco.
Na Itália fiz até o terceiro ginasial, aí eu vi que tinha aqui. Em Campagna. Eu
nasci na Campagna. a cidade, o município chama-se Capriolli , é uma aldeiazinha.
Nasci aqui, nessa casa aqui que tenho no display do celular, a aldeia se chama
Garrazzano, que em italiano é com dois erres e dois zes, uma fração do município de
Capriolli que pertence a província, que aqui é como se fosse o estado, aqui tem estado
lá tem província. Então era a minha província que é a província de Salerno.
A Itália tem pequenas frações. Fração é o município que tem três, quatro frações,
uma a duzentos metros da outra, em cima do monte assim...
Já meu avô aqui era analfabeto, já lhe disse, não?
Mas o meu avô, agora me lembrei, meu avô era analfabeto, ele foi para o Rio e o
camarada exigiu o recibo, então teve que botar impressão digital, e o cara disse assim:
- Mas senhor Mandorla, o senhor um empresário assim não sabe escrever?
Passou uma humilhação o meu avô e saiu de lá chorando, soprando ar e, já tinha
cinqüenta e quatro anos, disse:
- Eu vou aprender a ler e escrever.
Botou professora e aprendeu a ler e escrever, ganhou a vida dele quando passou
a ler jornal, cadernos de notícia. Você vê o que é a força de vontade, cinqüenta e quatro
anos... Aprendeu a escrever, a fazer recibo direitinho.
O outro meu avô, ele era farmacêutico, ele era uma pessoa muito instruída,
estudava latim e quando eu fiz o vestibular, tinha latim no vestibular...
O professor que conhecia e tal e caiu num trecho lá que eu conhecia e pediu pra
eu dissertar eu dissertei, a turma toda parou, todo mundo começou a bater palmas, mas
o senhor, como o senhor conhece isso e tal, aí eu expliquei pra ele e disse:
- Olha eu nasci na Itália.
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Ele disse: - Não, eu sei, o senhor falando a gente sente um sotaquesinho...
Completei: - Mas o meu avô era farmacêutico e falava latim com o padre, que
era o meu tio. Resultado eu fui obrigado a estudar latim mesmo.
E foi aquela coisa, tirei dez. Natural, porque...o meu avô falava latim...
Meu avô falava latim, era juiz de paz, nos conflitos de limites de terra, ele era
farmacêutico e juiz. Além disso, ele era o conselheiro, ele era o Dom Elíseo, todos
falavam:
- Não, o Dom Elíseo falou, tá falado!
Ele era muito justo, como meu avô Mandorla aqui tinha uma noção de honradez
que todo mundo fala que meu avô era homem honrado.
Porque ali tinham as regras básicas de moral e de ética, hoje a moral é elástica.
Foi assim que nos dois ramos da minha família só tem exemplo de correção.
Certa vez, um dia de madrugada, o vovô ouviu alguém batendo na porta, ele foi
abrir, tinha um cara com um capote, barbudo, eu estou com um probleminha, precisava
de um remédio. Ele disse:
- Pois não, que problema é o teu?
Ele morava na aldeia, tinha que subir uma escada e tava na praça, na praça
pública, tinha a farmácia. Então foram de madrugada, tudo escuro, tudo deserto, a luz
veio depois. Era da minha época a luz. E foram lá e ele preparou lá a emulsão, botou
num copo e o camarada virou pra ele e disse:
– Prima Lei, ou seja, primeiro o senhor
Meu avô pegou o copo, quando chegou na boca o camarada disse:
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- Dom Elíseo!
Ajoelhou no chão e, papai me contando isso:
- Dom Eliseo, o senhor me perdoa, eu conheço a honra do senhor, não devia ter
feito isso, mas a vida que a gente leva... A polícia me procura, eu fui obrigado a matar
fulano de tal, minha família não sabe onde eu estou, mas eu estou escondido na caverna
tal, o senhor é o único a saber, agora, onde me escondo.
Sabia seu nome, filho de quem era, quem tinha matado, porque tinha matado.
Continuou: - Eu fui obrigado a matar, mas a polícia desconhece isso, agora, eu
só posso lhe agradecer, pedir desculpas e dizer para o senhor que se algum dia alguém
incomodar o senhor, atravessar o seu caminho, cometer uma injustiça, o senhor me
procura.
O papai me contou, mas o vovô não contou pra ele o nome da pessoa e onde
estava, nem ele me contou, até porque não sabia. Conhece a história, mas não sabe o
santo, porque o vovô morreu com esse segredo, não disse, ele contava a história,
contava o milagre, mas nunca contou o santo nem o milagre que tinha feito...É uma
coisa assim que fica. Umas coisas do passado. Então tem os dois ramos. Meu pai casou
e minhas irmãs estão lá. Agora aqui no Brasil, Mandorla ficou aqui.
A minha irmã mais nova aposentou-se agora, foi professora, a vida inteira,
aposentou-se junto com o marido que era do exército, coronel no exército italiano,
comandante lá no batalhão, mas se aposentaram os dois. A irmã mais velha também
professora, deu aula e aposentou-se como professora, mas tem consultório, ela fez
psicologia, então ela tem um consultório, onde ela atende, está sempre atendendo, tem
sempre gente procurando por ela porque ela é boa no que faz, ela continua atuante.
Agora está na política. Ela é muito procurada, tem expressão e tudo e o homem
que se elegeu prefeito lá em Salerno, pediu a ela para ajudar, fazer discurso de posse,
então ela de pano de fundo.
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O prefeito que se elegeu era muito amigo do dono da clínica onde ela trabalha há
vinte, trinta anos, e o dono da clínica pediu pra ela ajudar, então ela está ajudando.
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Trem das sete
Ó, olha o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis,olha o trem Ó, olha o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho neon Ó, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem Ó, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem Quem vai chorar, quem vai sorrir ? Quem vai ficar, quem vai partir ? Pois o trem está chegando, tá chegando na estação É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão Ó, olha o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões Ó, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons Ó, ó o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral
(Raul Seixas. 1974)
3. A PAISAGEM: PANORAMA SÓCIO-HISTÓRICO
3.1. Fluxos migratórios
As sociedades, no interior ou acima de suas fronteiras visíveis, são dotadas de uma
fixidez relativa. Segundo Fernando Azevedo, “as sociedades se misturam de todas as
maneiras, penetram entre suas vizinhas ou são penetradas por elas, dilatam com
imigrantes ou os enviam, mantendo-se em perpétua transformação” (pág. 13).
3.1.1. Os êxodos de massa entre o século XIX e XX
Imaginem o seguinte cenário para o Brasil na virada do século XX: fim da
escravatura; renovação urbanística na cidade.
O Rio de Janeiro inspirava-se no modo de viver francês até mesmo no que dizia
respeito à reorganização urbana, por outro lado o crescimento da classe burguesa fez
com que surgisse tanto em Paris como no Rio de Janeiro a vinculação de classes
laboriosas a classes perigosas, trabalhadores identificados como possíveis criminosos.
Paralelamente a Itália vivia um momento conturbado, com a expulsão dos
anarquistas contrários ao projeto burguês de unificação, além dos excluídos da nova
ordem social, trabalhadores e desempregados que simpatizavam com as teorias
socialistas e anarquistas viram-se expulsos pelo governo italiano ou forçados a sair por
serem perseguidos politicamente, muitas vezes sendo presos ou tendo seus
companheiros mortos por terem se envolvido em manifestações ou protesto político,
como presencia Severina, a última personagem, inacabada, de Ignazio Silone.
Deste modo, os imigrantes italianos que chegavam ao Rio de Janeiro na virada
do século XIX para o XX encontravam-se mergulhados entre doutrinas anarco-
socialistas, importantes para a conscientização e organização da nova classe, a classe
trabalhadora, e a necessidade de sobreviver, ou melhor, a necessidade de concretizar o
desejo que os fizeram transpor um inteiro oceano, o desejo de fare la merica.
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Infelizmente, para a maioria dos italianos que aqui chegaram, o eldorado
prometido revela-se uma imensa pedreira e não uma generosa mina de ouro. Poucos
foram os Matarazzo e muitos os italianos simples, anônimos que fizeram a história
nessa nova pátria. Nesse cenário chegam o avô de Vittorio que por seu percurso de vida
em Barra poderia ser considerado um representante do primeiro gênero, ou seja um
Matarazzo, e já no início do século XX o pai de Renato, representante do segundo
gênero.
Os imigrantes que acabavam de chegar, sem ter como voltar, perceberam que se
na Itália não se sentiam integrados, aqui não seria diferente. Parte que não está feliz
segue em busca da felicidade, de um lugar melhor, onde possamos chamar de lar.
A sociedade do Rio de Janeiro na virada do século era uma sociedade em
transformação, mas capitalista, com os mesmos valores burgueses dos países europeus
e, portanto, com as mesmas conseqüências. Não é à toa que muitos italianos que não
encontraram trabalho ou que eram considerados ideologicamente perigosos também
foram expulsos do Brasil, por exemplo o primeiro anarquista a chegar no Brasil, em
1880, de nome José Saul que foi expulso de Pelotas pelas autoridades locais que temiam
suas idéias sobre a doutrinação e organização de “Grupos Libertários”, Galileu Botti,
diretor do jornal “Gli Schiavi Bianchi”, este foi expulso de São Paulo e do Brasil, V.
Cordasco, alfaite de 52 anos, expulso em 1908; J. Caiazo, sapateiro, 35 anos, expulso
em 1919, estes denominavam-se anarquistas e por encontrarem-se desempregados
foram enquadrados como “vadios”, o que lhes valia expulsão do Brasil (Menezes, 1996,
106 e 108 apud Santos, 1999, 26).
Cabe ressaltar que o desenvolvimento da ideologia libertária no Brasil é fruto
não somente do processo migratório, mas principalmente das contribuições sociais,
políticas, econômicas vigentes no país, no início do século passado, e que o contingente
de imigrantes italianos não se restringia aos grupos anarquiastas e socialistas, mas que
em sua maioria era formado de pessoas comuns que por passarem dificuldades sociais
nel suo paese vieram ao Brasil a procura de trabalho honesto, comida e casa. Porém,
aqui chegando por vezes encontraram exploração e desemprego. Nesse cenário, não
muito diferente na prática da Itália, nasce em 1854, da reunião de 34 italianos residentes
no Rio de Janeiro, a Società Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso que tinha como
objetivo ajudar “os italianos de quaisquer dos vários Estados da Itália” (“gli italiani di
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qualunque dei vari Stati dell’Italia”; In Cenni, 1975:239 apud Santos 1999:29). A
história da fundação da Società Italiana di Mutuo Soccorso, confunde-se com a própria
história da imigração italiana na capital e serve como indício de que o Rio de Janeiro
não foi apenas uma estação de transição para outros lugares do Brasil.
De diversas regiões da Itália vieram não somente pessoas comuns como
também, religiosos, médicos e enfermeiros voluntários, mas com a chegada da princesa
D. Teresa Cristina de Maria Borbone, ao casar-se com D. Pedro II em 1843, é que o
processo imigratório toma propulsão. Com ela, além do irmão Príncipe d´Aquila vieram
amigos da corte e empregados de confiança e abre-se o caminho da migração italiana
para a capital do Brasil, ou seja para o Rio de Janeiro e posteriormente para as zonas
cafeeiras do sul fluminense e São Paulo.
Segundo Rodrigues, começam a chegar os pequenos comerciantes e
profissionais ou
especialistas em algum ofício “que conseguiam trabalho nas fábricas de tecidos, nas
indústrias de vidros, nas fundições, na construção civil, nas pedreiras” (Rodrigues,
1984: 12) atrás, de esses, os aventureiros que vinham tentar a sorte na nova terra e os
que por circunstâncias políticas ou econômicas adversas viram-se obrigados a
abandonar sua terra natal.
Porém, muitos desses italianos não se fixaram na capital, foram para o interior
do estado do Rio de Janeiro trabalhar como mascates, como no caso do avô de Vitório,
ou em fazendas e praticar agricultura de subsistência em cidades como Resende, Porto
Real, Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, Valença. Como Santos teve a oportunidade de
confirmar essa presença dos imigrantes italianos no sul do estado ao encontrar folhetim
“I drammi delle colonie italiane del Brasile”, enredo ambientado em Porto Real
(Santos, 1999, 30).
Em meados do século XIX, quando ao formarem-se dois povoados: São
Benedito e Sant‟Anna inicia-se a história de Barra do Piraí, cidade na qual encontra-se a
colônia de italianos cujas histórias de vida são narradas nessa pesquisa, que seria
elevada a município em 1890, que começara a se tornar importante em 1864 com a
chegada da estrada de ferro de Dom Pedro II, mais tarde denominada Central do Brasil,
cresceu tanto de modo a se tornar centro comercial da região cafeeira e em 1871, com a
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construção de novos ramais na estrada, ligando São Paulo a Minas Gerais, tornou-se o
maior entroncamento da América do Sul.
Atesta Menezes que em 1880 c.a. há um aumento da imigração e os italianos
mais humildes que optam por permanecer na capital dedicam-se ao comércio
ambulante, como o caso do pai de Renato que trabalhou como peixeiro por vários anos
na capital, e exercem várias atividades consideradas menores como “engraxates,
jornaleiros, amoladores, sapateiros, varredores de rua, pedreiros, alfaiates, barbeiros,
marceneiros e jardineiros” (Menezes, 1996, 77).
Em meio a esse vai e vem de novos personagens, com música diversa em suas
falas uma capital modernizada à força como cenário. Um Rio de Janeiro com ares
parisienses que tentava se não arrancar, camuflar tudo o que lembrasse as raízes
africanas e portuguesas, pois que lembravam o passado de colonização e escravidão. A
partir de 1890, tendo sido a República nova forma de governo proclamada em 1889,
novos traçados para um novo estilo de governo: planificação de morros, construções
modernas seguidas do “Bota-abaixo” das moradias antigas, o que engendraria as
primeiras favelas; vielas escuras e fétidas davam lugar a largas e arejadas avenidas
numa higienização diferente da pregada por Oswaldo Cruz, pois que essa era de fato
não uma metáfora de engenharia sob o comando de Pereira Passos.
A uma mudança de ambiente segue-se uma mudança de estilo de vida, portanto.
Naquele momento o chic era voltar as costas para o passado, ordem do dia que
infelizmente enraizou-se na alma brasileira. O comportamento da população passou a
ser orientado pelo modelo francês. Segundo Menezes: “comportar-se à parisiense
tornou-se a representação da nova era. Dos costumes às construções, dos lazeres ao
vestuário, o chique era voltar as costas ao passado” (Menezes, 1996,31). A partir dessa
época data o “quadrilátero” francês do centro da cidade, os belíssimos prédios em estilo
eclético do Clube Naval, Museu de Belas Artes, antiga Faculdade de Belas Artes, a
Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal. Primoroso conjunto arquitetônico com ares
europeus, mais precisamente, em meio ao novo passeio público a larga e ampla: Rio
Branco, parisiense.
Infelizmente nem tudo são flores, a bela reforma não incluía o cidadão comum
em seu planejamento. A população pobre que habitava o centro da cidade, com a
diminuição das ofertas de casas o preço dos aluguéis subiram e os trabalhadores que
70
moravam no centro e foram despejados para que a construção da atual Presidente
Vargas e Rio Branco fossem possíveis viram-se muitas vezes obrigados a dormirem em
casas abandonadas na periferia ou mesmo ao relento.
A higienização incluía afastar todos os que pudessem atrapalhar a renovação dos
hábitos da capital, principalmente, vadios, prostitutas e mendigos. Tudo em prol da
construção de uma imagem “saudável”, afinal, por que se preocupar com que já vivia à
margem da sociedade, com excluídos? O mínimo estudo histórico e preocupação social
teriam evitado muitos dos atuais problemas do Rio de Janeiro atual.
Ao afastarem-se os trabalhadores do seu local de trabalho gerou-se a
dependência desses pelos transportes coletivos e, desde aquela época o sistema de
transportes mostrou-se precário. A alternativa a morar nas periferias era a de habitar os
morros mais próximos. O que propiciou o encontro de pessoas provenientes de diversas
áreas do Brasil e do mundo com os quilombolas, do maxixe, da polca e do choro com o
jongo, um verdadeiro celeiro cultural, mas que ao longo das décadas foi inchando, sem
infra-estrutura.
Nesse cenário de renovação e efervescência cultural, a Società ajudava aos
italianos pobres que, obedecendo-se a nova ordem de exclusão, foram expulsos do
centro da cidade para áreas periféricas.
Assim como os italianos foram se dirigindo para diversas áreas, as associações
que tinham como base num sentimento de italianidade desenvolvido, multiplicam-se por
todo Brasil, mesmo antes da unificação da Itália. Além do fato de tornarem-se italianos
fora da Itália e antes mesmo que essa fosse unificada esses imigrantes por se
comoverem e sentir-se culpados com as notícias que recebiam por cartas da Itália sobre
a situação na qual seus entes queridos se encontravam, passaram a enviar as tão bem-
vindas remessas de dinheiro. Não é estranho que décadas mais tardes, nos anos „50 uma
das fórmulas do governo italiano para gerar o milagre econômico tenha sido a de
estimular a emigração criando diversas peças publicitárias para que essa fosse
estimulada.
3.1.2. as migrações da segunda metade do século XX
71
No filme Cari F.....amici (caros F.... amigos) o narrador começa descrevendo
suas memórias na cidade de Florença durante a libertação da seguinte forma:
“Piazza Del Duomo”, Carmine - agosto 1944. Meu nome é Gino Martini e eu
tinha 20 anos na época. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Florença
fora libertada pelos americanos que eram, em sua maioria ingleses (...) que
sempre foram egoístas e arrogantes com os povos conquistados. De fato, em
Florença não deram uma bolacha sequer, nem uma ervilha seca, por isso
estávamos todos famintos. Fechados em casa por mais de quinze dias, sem
luz, sem água e sem gás, comendo a palha das cadeiras”.
Pesquisar sobre a imigração italiana no Brasil por meio de depoimentos, de
relatos pessoais é uma forma de conhecer um pouco a história de dois povos: o italiano
e o brasileiro e descobrir particularidades de universos micros ao invés de somente se
basear em fatos que se referem ao macro. Ao investigarmos o micro nos deparamos com
pontos de vistas como o da personagem do filme relatado, posições que nem sempre
seguem o politicamente correto por expressar sentimentos de seus declarantes.
3.2. O TREM É VIDA
Segundo Paola Corti a migração não seria um evento extraordinário, mas uma
constante ao longo da história humana, ou seja, poderíamos pensar em migração em
termos de um fenômeno da circulação, constante e de extraordinária importância
inerente à vida humana.
Já Ratzel, ao formular sua teoria sobre as migrações – conjunto dos movimentos
em virtude dos quais as coletividades chegaram a grupar-se ou a distribuir-se sobre o
solo em cada momento da história -, insistiu sobre os incessantes movimentos dos
povos “que nunca se detêm e não apresentam diferenças senão na natureza e na
intensidade”1
1 Friedrich Ratzel – Antropogeographie. Erster Teil: Grundzüge der Anwendung der Erkunde auf died
Geschichte. (Antropogeografia. Primeira parte. Princípios da aplicação da geografia a história) 2a ed.
Stuttgart, I. Engelhorn, 1899, apud: F. Azevedo.
72
Nesses termos não nos concentraríamos nos Vapori, os navios nos quais vieram
os imigrantes italianos desde as primeiras levas de imigrantes no século XIX até o final
da II Guerra mundial, período de chegada dos imigrantes estudados nesta pesquisa, mas
nos trens, meio de deslocamento desses italianos quer seja na Itália para chegarem aos
portos, quer no Brasil para dirigirem-se aos subúrbios cariocas ou ao interior do estado
do Rio de Janeiro, onde fixariam residência e dariam continuidade às suas vidas.
Alguns de nossos entrevistados trabalhavam ou tinham parentes que trabalhavam
nas ferrovias italianas e se fixaram ao longo da malha ferroviária fluminense. Na
memória de outros, aparece o trem quer seja na Itália quer seja no Brasil, como meio de
transporte, ligação e saudosismo.
Além disso, nas primeiras ondas migratórias italianas, no Brasil, muitos italianos
vieram e trabalharam na construção da rede ferroviária paulista. A construção das
ferrovias não só traziam empregos imediatos como também o desenvolvimento
exponencial de regiões, que no momento anterior de sua construção eram apenas
pequenas vilas, como ocorreu com Barra do Piraí.
Não é à toa que as vias de comunicação possuam uma extraordinária
importância comercial e cultural nas sociedades humanas, talvez por residir à base de
todo processo de civilização. Durkheim distinguia entre “densidade estática”, número
de habitantes por quilômetro quadrado, e “densidade dinâmica”, grau de intensidade das
trocas econômicas e culturais entre grupos humanos.
As ferrovias, importantes canais de desenvolvimento e comunicação, por causa
da política de desperdício e dilapidação que paradoxalmente já ocorriam desde a sua
formação; do número excessivo e o salário de empregados e funcionários, fizeram com
que grande parte dessas estradas acabassem por manterem durante longo tempo um
regime deficitário. Segundo Pandiá Calógeras:
“o mal está no sistema que faz de um serviço industrial uma repartição
pública, sem elasticidade de movimentos; sem noção de deveres, mas apenas
de direitos; em que o trabalho remunerado conforme seu valor é substituído
pela gratificação fixa, haja ou não serviço feito; e em que se paga a quem
nada faz, nos domingos e feriados, constituído nova aristocracia dos
operários do Estado, na massa geral do proletariado brasileiro; em que a
noção de responsabilidade desapareceu, porque a autoridade foi solapada, por
não haver meio prático de sanção às faltas, prontamente como a indústria
requer e como ela efetua em mãos particulares; em que o zelo pelo
73
funcionário eleitor faz passar para o segundo plano o dever de servir ao
público.” 2 (págs. 42-43 apud Azevedo, F.)
Apesar das vicissitudes pelas quais passaram as estradas de ferro brasileiras
desde sua formação, devemos reconhecer as conquistas no domínio dos transportes
ferroviários, principalmente no que se refere ao importante papel da iniciativa
particular.
3.3. A malha ferroviária no Brasil
As linhas da Estrada de Ferro Central, originada da antiga Companhia de E. F.
D. Pedro II, inaugurada no dia 30 de março de 1858, com o primeiro trem partindo do
Campo de Sant‟Ana ou Aclamação. Esta Estrada, que chegou a se estender de São
Paulo ao Rio e bacia do São Francisco, ramificando-se por quatro Estados, com 3.354
Km, surgiu a partir de iniciativa privada e teve seu nome mudado com o advento da
república. Cristiano Otoni, um dos pioneiros da indústria ferroviária nacional, é que
esteve a frente desta que foi a segunda ferrovia brasileira a se desenvolver. A primeira e
terceira, a Estrada de Grão Pará e Santos-Jundiaí respectivamente, foram de iniciativa
do Barão de Mauá que em 1854 abriu a “era das ferrovias” no Brasil com o
financiamento de firmas inglesas.
Cristiano Otoni e, posteriormente, Mariano Procópio, na direção da Estrada F.
D. Pedro II, foram, cada um a seu tempo, realizando o plano, já previsto por lei de
Diogo Feijó, de ligar à capital do império ao norte e sul do país. Por essa estrada
passaram homens do vulto de Paulo de Frontin, Pereira Passos, Alfredo Maia, Osório de
Almeida, Aarão Reis e Arrojado Lisboa, que com ações empreendedoras resolveram
problemas técnicos e administrativos de ordem a fazer da estrada, segundo a Lei de
1835, um “monumento de previsão dos homens da Regência” (apud Azevedo, F- pág.
44).
2 Pandiá Calógeras – Problemas de administração. Relatório confidencial apresentado em 1918 ao
Conselheiro Rodrigues Alves, sobre a situação orçamentária e administrativa do Brasil. Brasiliana, vol.
XXIV. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1933
74
Foi Cristino Otoni que com o intuito de passar a estrada por São Paulo e Minas,
que iniciou a escalada da Serra do Mar, galgando em linha de simples aderência em 25
Km, a partir de Belém, e perfurou ao todo através da serra, 15 túneis, inclusive o “túnel
grande”, de 2.236 m) para chegar a Barra do Piraí, em 1864
Em 1881, o plano Bicalho, que propõe a ligação norte-sul e as comunicações
internas de todas as províncias, mediante a coordenação dos transportes fluviais e
ferroviários, distingue-se não só pelo seu traçado mais também pelo emprego de
transportes mistos, o qual, apesar das inúmeras baldeações, teria a vantagem da
otimização das vias naturais de comunicação.
Já o plano Bulhões, apresentado em 1882 ao primeiro Congresso Ferroviário
Brasileiro, desdobra-se em quatro troncos principais, sendo o primeiro, o grande leste-
oeste, ligando o Rio de Janeiro a Mato Grosso.
De todos os planos para junções dos caminhos de ferro, o mais “continental”
sem dúvida é o de André Rebouças, que, em linhas transversais, de leste a oeste, ou nos
seus dez paralelos, denominados segundo as bacias hidrográficas que deveriam
atravessar, projetava unir os portos brasileiros à costa do Pacífico, do lado do Peru, do
Chile e da Bolívia. Infelizmente, dos dez sistemas transcontinentais elaborados por
Rebouças, apenas um teve prosseguimento a variante da transversal São Paulo, que
partindo de Santos e atravessando o norte do Paraná, deveria dirigir-se a Chaco, passar
pela província Argentina de Salto e chegar ao porto de Água Bueno. Faz parte desse
projeto o trecho de prolongamento da Noroeste até Corumbá pela construção da Brasil-
Bolívia, com que se estabeleceria a ligação ferroviária direta entre Arica e Santos.
Apesar do confronto entre Brasil e Argentina, sendo uma das razões a diferença
entre os 17.242 Km brasileiros de linha férrea contra os 20.814 Km argentinos,
Euclides da Cunha pondera em 1909 “o progresso atual (dos argentinos) advém-lhes
antes de tudo, de suas estradas de ferro; as nossas estradas de ferro resultam, antes de
tudo, de nosso progresso”. Enquanto,
“atentos aos empecilhos naturais que a dois passos da costa nos repeliam, nos
era impossível o avançar pelos sertões em fora, levando a civilização nos
75
limpa-trilhos, e, para vencermos a terra, houvemos de formar até o homem
capaz de a combater”3
Enquanto que na Argentina, sempre segundo Euclides da Cunha, a civilização
pôde ser “um desdobramento apenas: a cultura européia, estirando-se pelo nível dos
mares e prosseguindo, sem tropeços num cerro, pelos pampas”.
Porém, essas não foram as únicas barreiras que nos impediram de ter um
aparelhamento mais rico e vias de comunicação mais rápidas. A natureza não foi menos
adversa no Canadá e Estados Unidos, por exemplo. Afinal, segundo ditado popular
americano, onde passa um burro, passa também a estrada de ferro”. No confronto entre
Brasil e Argentina ficamos para trás porque a economia rudimentar, de baixa densidade
demográfica até meados do século passado, de um país que demorou a ultrapassar o
estágio agrário, o lento processo de industrialização, a falta de “espírito de
continuidade” na administração que somente na década passada tentou-se remediar
instaurando lei na qual o administrador público que se segue, deve levar a cabo as obras
e projetos iniciados na gestão anterior e a lei de responsabilidade fiscal, e, a pressão dos
interesses regionais e das competições partidárias reuniram-se aos fatores geográficos
desfavoráveis.
Uma explicação para o fato de que, depois de um começo tão promissor, com
estradas erigidas aceleradamente, terminarmos, segundo julgamento de Mário
Travassos, “com um parque ferroviário deficitário, técnica e financeiramente, até o
desmantelo” (apud Azevedo, 63) consiste em empregarmos, segundo dados relativos a
1945, máquinas de tração a vapor, ou seja, com alto custo de combustível, sendo um
terço dos mais de um milhão em hulha, utilizados, carvão estrangeiro.
Levando-se em conta os grandes potenciais hidráulicos brasileiros, a
eletrificação da E. F. Central, que se iniciou, em 1937, no primeiro trecho, ligando os
subúrbios à capital do país e se estendendo, depois, do Rio de Janeiro a Barra do Piraí,
apontava uma solução e soprava um novo vento de esperança para a tão sonhada
expansão ferroviária no Brasil. Porém, não só de alto custo de combustível padeciam
3 Euclides da Cunha – A margem da história. 3
a Ed. Viação Sul-Americana. Livraria Chardon, Porto,
1922 págs. 140/141. apud Azevedo, F. Pág.61
76
nossas estradas, acrescentam-se a isso a escassez de material rodante (locomotivas,
carros, vagões) e péssimas condições técnicas a que chegaram as linhas.
Se durante os séculos XVII e XVIII os sertanistas tiveram importante papel na
expansão geográfica, principalmente no estado de São Paulo, coube ao café na segunda
metade do século XIX esse papel. Os paulistas que de sertanistas passaram a lavradores
começaram a se preocupar com o transporte de sua produção. As plantações se
espalharam por todo Vale do Paraíba - graças a esse fato atualmente foi-se
implementada uma nova rota turística denominada Vale do café, cujo grande atrativo é a
visitação às fazendas de café da região -, ou seja, foi o café que lançou as primeiras
estradas de ferro, não só as que ligavam o Rio de Janeiro às mais antigas fazendas de
café e, o porto de Santos e São Paulo, para escoamento da produção, mas também as
linhas de penetração que foram instrumentos de valorização econômica e, pioneiras de
povoamento tendo em vista que o ferro-carril é um importante fator de desenvolvimento
econômico das regiões a que serve, pelas facilidades de escoamento em massa.
O tempo que um indivíduo podia fundar uma cidade, os townmakers, como
Bento de Abreu Sampaio Vidal, fundador de Marília, Moura Andrade, criador de
Andradina, ou o personagem de “Era uma vez no Oeste”, de Sérgio Leoni, já não existe.
É certo, que essas pessoas míticas se inspiraram com a via férrea que também os animou
o poder de organização. Porém, até meados do século passado foi o caminho de ferro
que fundou cidades e promoveu, com a indústria, as grandes aglomerações urbanas.
Somente a internet teria um impacto tão grande como via de comunicação no
interior como foram as linhas do ferro carril. Como notou então Lucien Fébvre, nada
influiria tanto nos destinos das cidades como os destinos dos caminhos. Em torno de
gares não somente há um grupamento maior da população, como é para as cidades
servidas de estação que passa a convergir as rodovias e nelas os campos de pouso,
aeroportos.
O apito primeiro, que se ouviu nas selvas, da “máquina devoradora de espaços”,
foi como uma convocação para o trabalho. A enorme procura de braços, para as obras
da estrada de ferro; as perspectivas que se abriam à agropecuária; as facilidades em se
obter terras com loteamento e latifúndios, atraíram para essas regiões milhares de
operários, lavradores de outras terras então cansadas; famílias inteiras, legiões de
imigrantes estrangeiros, sobretudo sírios e italianos e pessoas economicamente ativas
77
que se lançavam ao trabalho rude com espírito de aventura para abrir caminho à fortuna
por meio de dificuldades, riscos e decepções.
Nesses sertões em que quase todos eram imigrantes e vinham de terras
longínquas, encontravam-se raças e culturas diversas, para implantarem a prosperidade
onde reinava a solidão. Tinha razão, pois o poeta Rodrigues de Abreu quando na
década de 30 diz:
Nenhum homem feito, ó Noroeste,
Poderá dizer-te: “minha terra natal”.
Referindo-se ao fato de que apenas vinte anos depois de lançados os trilhos da
estrada Noroeste, em qualquer vila ou cidade, entre tantas fundadas ao longo da linha;
nenhum homem poderia chamar-lhe “minha terra natal”.
No afã de dominar a técnica e de transformar o meio natural, para atender às
necessidades agrícolas e indústrias a Noroeste e o povo a que ela serve se lançaram às
culturas intensivas, aos cafezais em zonas novas e à criação de hortos-florestais em
1944, seguindo o exemplo da pioneira E. F. Paulista. Pondo em execução a plantação ao
longo dos trilhos, entre Bauru e Porto Esperança, de 1.500.000 pés de eucaliptos,
necessários à produção de linha, postes e dormentes, indispensáveis aos seus trabalhos4.
O que sob a denominação de horto-florestal nos remete a algo positivo e
benéfico ao meio ambiente, décadas mais tarde com a desativação de alguns trechos, faz
nascer entre os ambientalistas, ojeriza a esse tipo de plantação, pois sendo originária da
Austrália, característica de pântanos e mangues, possuem essas árvores que chegam a
grande altitude, raízes não muito profundas o que as tornam perigosas, pelo fato de
reterem os nutrientes e tombarem com relativa facilidade. Levantando essa bandeira é
que alguns ambientalistas promovem o corte de esses espécimes que foram introduzidos
na Mata Atlântica.
Segundo Azevedo, pág. 98:
4 Cf. Relatório referente ao ano de 1945 apresentado ao Cel. Edmundo de Macedo Soares e Silva,
Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Cel. José de Lima Figueiredo, Diretor da E. F. Noroeste do
Brasil. Tip. E Livraria Brasil S. ª, Bauru, 1946. (apud Azevedo, F. Pág. 97)
78
“A eficiência da Estrada Noroeste, na sua função política, de ligação
da capital do país com a região meridional e ocidental de Mato Grosso, e
estratégica ou militar, de defesa das fronteiras, aumenta na razão direta de
povoamento e da expansão agrícola e industrial das zonas a que serve, e da
reestruturação interna dessa indústria de transportes em bases modernas. Se o
desenvolvimento dos Estados (Staatenwachstum) se faz, na observação de
Ratzel, por dois processos, a saber, por extensão (Ausbreitung) e por
consolidação (Befestigung) ou enraizamento (Einwurzelung), e se o primeiro
tem por agente essencial o próprio Estado, e o segundo, a massa da
sociedade, compreende-se o papel que tem, na radicação dos Estados, a
pressão demográfica e a intensidade dos fenômenos de produção”.
No entanto, como uma estrada de ferro com notório desgaste do material
rodante; que utilizava mais lenha do que carvão e cuja eletrificação ainda não tinha sido
nem sequer implementada na linha-tronco poderia atender de maneira eficaz à sua
função comercial e política?
Rui Barbosa chama atenção para o fato da ineficiência das estradas de ferro em
um discurso parlamentar datado de 1892, segundo o grande político:
“encarecem víveres, porque a pequena lavoura,a cultura parcelar não se
desenvolve, e porque os nossos caminhos de ferro, já pela usura de suas
tarifas, já pelas insuficiências de sua extensão, já pelos defeitos do seu
serviço, não nos permitem irmo-nos sortir largamente nos vastos
abastecedouros que o interior do país nos depararia, se um amplo sistema de
viação, pronta e barata no seu tráfego, animasse a agricultura na opulenta
imensidade de nossos sertões” 5.
Palavras que continuam atuais. Triste perceber que mesmo com a cessão de
direitos de alguns trechos para empresas privadas em nada mudou o quadro. Como no
caso da Supervia, empresa que passou a operar os trechos que partem da Central do
Brasil em direção aos subúrbios cariocas.Trens que servem a população, mas que não
possuem banheiro, nem mesmo nas estações, somente duas estações dentre elas, a
Central do Brasil, possuem banheiro para o público que se vê obrigado a suportar
viagens calorosas, tendo em vista que somente um dos cinco ramais possui alguns trens
com ar condicionado, isto em uma região que durante grande parte do ano tem uma
media de 30o graus Centígrados, podendo chegar a 42
o graus. Quanto ao transporte de
5 RUI BARBOSA – Discursos parlamentares, vol. XIX, 1892. Tomo I, pág. 141. in Obras completas de
Rui Barbosa. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1947.
79
carga, como os de pequena lavoura parece que o governo nunca considerou essa
possibilidade e trechos do interior que eram cobertos pelos trens a vapor nunca foram
cobertos por trens elétricos. Como é o caso do trecho denominado Serra Azul, que partia
de Japeri e passava pelas estações de Conrado, Portela, Miguel Pereira, Paty de Alferes.
Este último, grande produtor de batata e tomate. Município que, sem outra opção, tem
que utilizar as rodovias como vias de escoamento para sua produção e que deixa nas
mãos de intermediários a negociação de produtos. Quem sai perdendo são os
produtores.
O ideal para a constituição de qualquer plano viatório seria a coordenação de
transportes ferroviários, rodoviários, fluviais, marítmos e aéreos e, a expressão prática e
realista de uma sábia política de comunicações criada pela variedade e pelos progressos
dos meios mecânicos de tração de um país que apresenta, “pela extrema complexidade
topológica dos territórios uma aptidão para os transportes mistos”6.
Para fomentar a produção a estrada deveria fornecer transportes baratos, mas não
manter fretes baixos, como os de algodão em rama, toras e outras que enchem o vagão
em volume, sem o lotarem em peso, não há como não ter prejuízo para a economia de
transportes. É o que ocorreu com a Noroeste que, entre os produtos principais de
exportação, só lucrava com o café, razão pela qual havia disparidade entre a receita do
trecho paulista em confronto com o matogrossense nos idos dos anos quarenta.
Por que o sistema férreo funciona na Europa e é deficiente no Brasil?
Ninguém atacou esse problema melhor que Pandiá Calógeras que o explica da
seguinte maneira, em breve: enquanto na Europa, inventada a locomotiva e associada
aos trilhos, um vasto sistema de comunicações, por estradas de rodagem e por via
fluvial, constituída a fase preparatória, com que se tornou fácil promover-se uma
verdadeira adaptação dos tipos antigos às experiência moderna, no Brasil, como em
quase toda América, essa fase preparatória não existiu.
6 Mário Travassos – Nossa política de comunicações. O plano de viação nacional de 1934, in “Cultura
Política”. Ano I, no 5. Julho de 1941. Rio de Janeiro, págs. 50/59.
80
No Brasil, até meados do século XIX não possuíamos nenhuma estrada e só
havia circulação pelos atalhos mais ou menos alargados pelo uso, que datavam do
período colonial. Não havia reservas para cuidar simultaneamente dos caminhos
carroçáveis e das vias férreas. Daí, empregarmos recursos para construirmos os trechos
do caminho mais perfeito, dos caminhos para o ferro-carril.
Enquanto na Europa centros de produção e de trocas preexistiam e se mantinham
pelas redes viárias, no Brasil, o isolamento de tais centros era a regra, como ainda hoje
para o interior do país: a via férrea tinha que buscar as regiões produtoras e, por sua
presença criar o tráfego.
3.4. A Estrada de Ferro em Barra do Piraí
A primeira indústria barrense originou-se do franco progresso da Fazenda de N.
S. de Sant´Anna, com vista ao beneficiamento do café, o comendador José Pereira de
Faro, em 1855, fundava o Engenho Central, hoje a torre da Chaminé do Matadouro.
Naquele mesmo ano, José de Alencar, amigo dos Faro, hospedou-se na fazenda
N. S. de Sant´Anna e, deslumbrado com a paisagem do rio Paraíba, com o vai e vem
dos canoeiros dominando suas águas caudalosas, os índios, mamelucos e colonos,
inspirou-se para escrever O Guarani.
Onze anos depois, no dia 7 de agosto de 1864 era inaugurada a Estação
Ferroviária de Barra do Piraí por Sua majestade o Imperador Dom Pedro II. S.S.M.M.
que chegou a Barra do Piraí em um trem de passageiros especial, transportado pela
locomotiva “Baroneza”, em companhia de Esperidião Eloy de Barros Pinto, Presidente
da província do Rio de Janeiro; os comendadores anfitriões José de Oliveira Pereira de
Faro e Matias Gonçalves de Oliveira Roxo, respectivamente futuros barões do Rio
Bonito e de Vargem Alegre; Engenheiro Christiano Otoni, 1º Diretor da Estrada de
Ferro Dom Pedro II; Capitão reformado do Exército João José de Brito, comandante da
Polícia do Estado do Rio de Janeiro; Paulo de Frontin, Pereira Passos, Mariano
Procópio, Bento José Ribeiro Sobragi, Carlos Conrado Niemeyer, Jorge Rademaker
Grumewald, Honório Bicalho, João Teixeira Soares, Joaquim Silveiro de Castro
Barbosa, Henrique Sheid, José Carvalho de Souza, e vários engenheiros, em sua maioria
construtores da ferrovia.
81
Com seus silvos do progresso a Baroneza representava o ideário automista
barrense. Ao aproximarem-se de Sant´Anna os trilhos faziam sentir seus benefícios. A
população local progrediu ao longo do que se tornou o maior entroncamento ferroviário
latino-americano. O operário como produto de energia, além do boi, do cavalo, fez uso
das únicas ferramentas que conhecia, ou seja, a enxada, a foice, o machado, o facão, a
marreta para moldar um município com características próprias.
Barra do Piraí passou a sustentar, a partir da chegada do trem, o epicentro
apoteótico do Centro Sul Fluminense. Naquele ano já tinha seu centro urbano
configurado, era uma estrada que margeava o lado direito do Piraí, começando como
ramal da Estrada Real da Boiada, ia de Vargem Alegre, passando pela Muqueca até
atingir o “Hotel Pirahy”, onde podia-se atravessar a ponte de Sete Vinténs do
Comendador Antônio de Gonçalves de Moraes7, prosseguindo pela Rua da Estação até
o largo do mesmo nome, atual praça Heitor Vale, onde havia um grande rancho, no qual
os tropeiros dormiam em redes e se abasteciam de toucinho salgado, farinha, bananas e
peixe, aguardente e café.
Ao lado da propriedade de Chico Fernandes iniciava-se uma rua transversal que
avançava até o Largo da Independência, atual praça Nilo Peçanha, revigorada na última
gestão do prefeito reeleito José Anchite que a revitalizou, restituindo-lhe ao povo
barrense, e a Rua Dom Pedro II, atual governador Portela, passando pelo Largo Amador
Bruno, atual praça Júlio Braga, até alcançar o Largo José Bonifácio, ao lado do
entreposto da família Breves.
Naquele ponto situava-se a então recém-construída ponte de madeira Senador
Vergueiro que possibilitava aos habitantes atravessar o Rio Paraíba para chegar ao
povoado de Sant´Anna. Havia, também a rua Angélica, homenagem à mãe do 3º Barão
do Rio Bonito, Angélica de Oliveira Faro, que começava numa plantação de cana de
açúcar em Campo Belo, passando pelo rancho ao lado da ponte Senador Vergueiro,
situada perto do início do cais e pelo Engenho Central até a Fazenda do Sant´Anna.
Uma segunda rua, a do Córrego, hoje, rua Barão do Rio Bonito.
No povoado de São Benedito, onde imigrantes portugueses haviam erguido uma
capela em homenagem ao Padroeiro de Lisboa, havia outras vias públicas que
7 Frente à Estrada União Industrial, em 1853, Antônio Gonçalves de Moraes, “O Capitão mata gente”,
instituía no Brasil a cobrança de pedágio de sete vinténs por veículo, animal ou pessoa que utilizassem a
ponte que construíra sobre o rio Piraí e investia a quantia arrecadada na conservação da mesma.
82
completavam o então centro barrense. Uma partia do Beco do Camarão, atravessando o
Largo Amador Bueno, o Beco do Chico Fernandes, atual rua Padre Alfredo, ligando-o
ao Largo da Independência. A rua que partia do Largo Amador Bueno seguia pela Rua
do Entreposto, atual Paulo de Frontin, até alcançar a Rua da Palha, hoje, Rua Assis
Ribeiro, para completar a sua ligação com uma estrada que atingia a Estrada Real da
Boiada, em Vargem Alegre.
Com a construção de casas comerciais e de residências para os trabalhadores e
empreiteiros da ferrovia, aquele perímetro urbano expandiu-se fazendo com que Barra
do Piraí desfrutasse de crescente fama em toda região, atraindo pessoas, empresários de
várias procedências, antes de depois dos seis anos de trabalhos para a construção da
ferrovia, com quatorze túneis, incluindo o Túnel Grande de 233 metros de
comprimento, esculpido em rocha granítica.
Simultaneamente, levas e mais levas de imigrantes aqui desembarcavam e
integravam-se à comunidade, o que contribuiu para o enriquecimento material e moral
do ainda povoado. Muitos vinham sedentos de fortuna, em pouco tempo a paisagem
local modificou-se, a outrora tranqüilidade das mansões coloniais cedeu lugar à
efervescência das empresas.
O movimento das mercadorias que vinham de Minas Gerais e passavam na linha
do centro e no ramal de São Paulo era tamanho. O café continuava como grande
mercadoria, era uma chusma de imigrantes, mercadorias, matéria-prima, todos
utilizavam a estrada de Ferro que aquinhoava Barra do Piraí no contexto das
comunidades brasileiras, na aspiração crescente da sua nova realidade, atraindo filiais
de importantes comissários de café na Corte Imperial: Guerra & Ribeiro; Barbosa
Júnior & Cia; José Ferreira Cardozo; José Lourenço Torres; Bernardo Santiago & Cia;
Barros Coelho & Cia; Jacintho Lopes de Azevedo; Francisco José Corrêa Quintella;
Joaquim José Ferreira e Francisco Eugênio de Azevedo & Cia. Uma conjuntura de
forças favorecia novos empreendimentos, o comércio, Barra do Piraí lançava mão das
comunicações mais rápidas com o restante do Brasil, além de situar-se no maior
entroncamento da América Latina, por meio do telégrafo, estava em linha direta com
Londres, naquele tempo, o centro financeiro do mundo.
Em 21 de julho de 1873 foi aprovada a planta da primeira seção da Estrada de
Ferro entre Barra do Piraí e Ipiabas, atual distrito turístico de Barra do Piraí, numa
83
extensão de 22 quilômetros, menos de um mês depois, no dia 13 de agosto, o Imperador
Dom Pedro II conferiu a José de Oliveira Faro o título de 3º Barão do Rio Bonito. Uma
década depois, no dia 18 de julho de 1883 foi inaugurada a igreja de Sant´Anna, obra de
extraordinárias linhas arquitetônicas, construída em terreno cedido pelo barão do Rio
Bonito e executada por mãos de artistas provenientes de várias partes do mundo, que
vieram se refugiar em Barra do Piraí, em 1875, da epidemia de febre amarela que
assolava o Rio de Janeiro.
No seguinte ano, dia nove de dezembro, nasceu em Pisciotta, província de
Salerno, José Speranza, cujo filho tive a oportunidade de entrevistar durante essa
pesquisa no intuito de compreender melhor o cenário barrense do início e medade do
século passado. O nome Speranza ficou imortalizado em Barra do Piraí pela construção
do cine Speranza, seguido do cine Brasilia, ambos empreendimentos do Sr. José que
constituíram símbolo da evolução social e cultural barrense.
Impulsionando o movimento autonomista barrense, em 20 de outubro de 1881
foi inaugurada a Estrada de Ferro que ligava Barra do Piraí à Santa Isabel do Rio Preto.
Sete anos mais tarde, grande euforia tomou conta da população negra de Barra
do Piraí, em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel, apreciadora das camélias, sancionou
a Lei de Libertação dos Escravos no Brasil. Alguns escravos apoderaram-se das antigas
propriedades, outros partiram para represálias contra antigos capatazes e outros tantos
concentraram-se diante da Igreja de São Benedito, na praça da Independência, atual
Praça Nilo Peçanha, e festejaram noite adentro, cantando, dançando o banzo, jongo,
caxambu, candomblé, louvando deuses das religiões africanas e São Benedito,
agradecendo-lhes pela liberdade conquistada.
No dia seguinte, o trem chegava por uma paisagem modificada. Muita “Casa
Grande” de engenho em ruínas, solares saqueados, cafezais convertidos em cinzas. Era
a decadência da opulência do café. Sem braços para colher a safra de 1888, uma das
maiores da época muitos senhores de engenho ficaram prostrados, sentiram-se
arruinados, outros tentaram novas alternativas para prosseguir as culturas de café. Foi
assim que as firmas Carvalho & Faro, em meados de 1888, conseguiram junto ao
Governo Imperial, por intermédio do Ministério da Agricultura, que fossem enviadas ao
povoado 50 famílias italianas, para trabalharem como assalariadas na Fazenda Ibitira.
84
Ao chegar à estação, os festejadores começaram a embarcar nos vagões da E. F.
Dom Pedro II, rumo aos grandes centros, em busca de vida nova, afastando-se dos
trabalhos forçados, das humilhações no tronco comandadas pelos feitores, do cativeiro.
Respirando o ar da liberdade enquanto o trem rasgava o território barrense levando
alguns até mesmo às lágrimas. Para uma nova vida, novos nomes, adotados de santos ou
das propriedades nas quais trabalharam.
O último remanescente da escravidão de Barra do Piraí, João Antônio
Guaraciaba, neto ilegítimo do Barão Guaraciaba, dirigiu-se para Parati e em 1974 vivia
o seus 124 anos! Durante seus anos de cativeiro foi, segundo suas palavras, um negro
reprodutor de raça. Solicitado por várias fazendas fluminenses teve 330 filhos. Com o
fim da escravidão passou a praticar a “religião dos exus”, como a denominava, mas
enfatizava não fazer mal a ninguém, seu novo trabalho consistia em tirar as “coisas” que
botam na vida dos cristãos, especializando-se em rezar crianças doentes.8
Um dia antes do início da primavera de 1889 a Estrada de Ferro Barrense era
vendida à Companhia Viação Férrea Sapucay, com todos os seus bens imóveis,
utensílios e materiais. A venda compreendia ainda toda faixa de terreno em que
assentava-se a Estrada de Ferro, desde Barra do Piraí até a Freguesia de Santa Isabel do
Rio Preto, incluindo-se todos os edifícios de estações, armazéns, oficinas, pontes, casas,
bem como os direitos resultantes de contratos estabelecidos no dia 23 de dezembro de
1876 entre a Província do Rio de Janeiro e o Comendador João Pereira Darrigue de
Faro.
Dia 15 de novembro de 1889 o Brasil dormiu Império e amanheceu República.
Alguns meses depois, mais precisamente no dia 19 de fevereiro de 1890, Barra do Piraí
amanheceu Município, o primeiro Município constituído no recém-instaurado Regime
Republicano.
O novo Município que viria a ser conhecido como Pérola do Vale finalmente
conquistara sua independência dos Municípios de Valença, Vassouras e Mendes e, às
freguesias que outrora eram compreendidas a esses municípios acrescentou-se as do
Turvo e Dores do Piraí.
8 Relato registrado por Gilson Baumgratz.
XXXVIII
Tu casa suena como un tren a mediodía, zumban avispas, cantan las cacerolas,
la cascada enumera los hechos del rocío, tu risa desarrolla su trino de palmera.
La luz azul del muro conversa con la piedra, llega como un pastor silbando un telegrama
y entre las dos higueras de voz verde, Homero sube con zapatos sigilosos.
Sólo aquí la ciudad no tiene voz ni llanto, ni sin fin, ni sonatas, ni labios, ni bocina, sino un discurso de cascada y de leones,
y tú que subes, cantas, corres, caminas, bajas, plantas, coses, cocinas, clavas, escribes, vuelves o te has ido y se sabe que comenzó el invierno.
(Neruda, 1999: 52)
XXXVIII
Tua casa ressoa como um trem ao meio-dia, zumbem as vespas, cantam as caçarolas,
a cascata enumera os feitos do orvalho teu riso desenvolve seu trinar de palmeira. A luz azul do muro conversa com a pedra,
chega como um pastor silvando um telegrama e, entre as duas figueiras de voz verde,
Homero sobe com sapatos sigilosos. Somente aqui a cidade não tem voz nem pranto,
nem sem-fim, nem sonatas, nem lábios, nem buzina mas um discurso de cascata e de leões,
e tu sobes, cantas, corres, caminhas, desces, plantas, coses, cozinhas, pregas, escreves, voltas
ou te foste e se sabe que começou o inverno.
(Neruda, 1999: 52)
4. O VAGÃO: ESPAÇO
4.1. A Cidade
“Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias [felizes ou infelizes],
mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a
dar forma aos desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.”
(Italo Calvino – As cidades invisíveis)
Hoje a cidade de Barra do Piraí suscita opiniões contraditórias, há quem a ame e a
veja como um centro efervescente de comércio, há quem enxergue nessa característica um
aspecto caótico, uma superposição de letreiros que geram uma poluição visual. Muitos
lamentam a má conservação dos casarios antigos, outros tantos os ignoram, assim como
muitos não percebem a grandiosa beleza dos rios Paraíba e Piraí.
Segundo o censo do IBGE de 2000, Barra do Piraí contava com 88.503 habitantes,
distribuídos em sua área territorial de 578,47 Km2, a 363 metros de altitude, distante da
capital em 79.553 km.
Durante muitos anos a praça central da cidade, outrora Praça da Independência,
atual, Praça Nilo Peçanha, era um verdadeiro matagal. Abandonada pelo poder público
passou a ser ponto de prostituição e passagem perigosa para os transeuntes e viajantes que
desembarcavam na Rodoviária localizada imediatamente em frente à praça.
Na gestão antiga o recém reeleito prefeito José Anchite a revitalizou a devolvendo à
população. Atualmente, feiras, filmes, apresentações teatrais são realizadas nesse espaço e,
durante a semana, o movimento de pedestres é intenso.
Quando cheguei pela primeira vez a Barra, a praça ainda estava em obras,
circundada por tapumes, já havia me emocionado com o rio, notei os casarios belos, mas
necessitados de revitalização e fiquei curiosa quanto à praça. Feliz a minha surpresa ao
retornar e vê-la pronta.
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O barrense refere-se a esse centro da cidade como “lá fora”. Dirigir-se ao centro
da cidade é como ir lá fora de casa. Esse posicionar-se quanto ao centro em relação ao
local onde nos encontramos no momento da fala, isto faz com que o centro cidade torne-
se uma extensão do nosso habitat doméstico, do nosso refúgio, da cabine de nossa
viagem.
4.2. O Habitar doméstico
“Para participar do mundo em que estamos inseridos, temos que deixar
nossas casas físicas e, no mundo, escolher um caminho. Uma vez cumprida
nossa tarefa social, nós nos recolhemos de volta em nossas casas para
recuperarmos nossa identidade pessoal. A identidade pessoal é, portanto, um
componente do habitar doméstico.” (Norberg-Schulz, 1985:89).
Já Christian Norberg-Schulz nos diz que estamos acostumados a definir o habitar
como sendo “ter um teto sobre nossas cabeças e um certo número de metros quadrados
à nossa disposição”; ou seja, entendemos o conceito de habitar “em termos materiais e
quantitativos” (Norberg-Schulz, 1985; p. 12). Para ampliar a visão deste conceito,
Camargo (2007,21) recorre, inicialmente, ao pensamento de Martin Heidegger, e sua
análise da essencialidade do conceito de habitar, identificado pelo autor como a
“maneira como os homens fazem seu caminho desde o nascimento até a morte, sobre a
Terra, sob o céu”. Este caminhar seria “o aspecto fundamental da habitação, enquanto
permanência humana entre o céu e a terra, entre o nascimento e a morte, entre a alegria
e a dor, entre a obra e a palavra”. Considerando este “Entre multiforme” – rico em
transformações, em aspectos diferentes – como sendo o mundo, esse mundo pode ser
visto como a própria “casa que habitam os mortais” (Heidegger, 1982).
Deste modo, a autora (2007, 23) delimita “o sentido do habitar que nos servirá
de meio para nos aproximarmos do tema habitar doméstico” sintetizando-o “como a
experiência cotidiana de se estar em um lugar, rodeado de proteção, resguardado, em
paz; livre, em sua essência, de qualquer ameaça contra essa paz.”
Referindo-se ao Espaço, mas precisamente ao anteriormente denominado habitat
doméstico, o filósofo Otto F. Bollnow coloca-nos como sujeitos de nossa experiência no
espaço e propõe que, como seres viventes de forma concreta que somos - tal como nos
são dados, em função do nosso corpo, os conceitos, igualmente concretos, de acima e
abaixo, à frente e atrás, à direita e à esquerda -, tomamos esse ponto específico em que
88
habitamos como “ponto zero”, ou seja, como nossa referência em relação ao espaço
mais amplo em que habitamos em termos universais (Bollnow, 1969; p. 58)
Segundo Norberg-Schulz (1985, 13) há quatro modos de habitar, inter-relacionados
em seus aspectos essenciais, a saber:
i) o habitar natural seria aquele que implica a “domesticação” do meio
natural onde se dá esse habitat. O autor argumenta que mesmo um espaço
previamente construído também deve ser entendido em termos de
“desbravamento” do meio no qual nos instalamos e que, superada essa fase,
viriam outras formas básicas de relacionamento humano;
ii) o habitar coletivo, quando o meio do qual nos instalamos passa a funcionar
como uma espécie de local de intercâmbio, tanto de produtos, quanto de
idéias ou sentimentos, o espaço urbano seria “essencialmente um lugar de
descobertas”. Nele, o homem „habita” no sentido de experimentar a riqueza
do mundo”.
iii) o habitar público refere-se a algo partilhado pela comunidade. Esse modo
de habitar se caracterizaria porque o nosso “estar sempre a caminho”
implica a condição, dentro da imensa variedade de possibilidades que temos
no meio coletivo, de fazermos certas escolhas. E, quando essas escolhas são
feitas de forma a atender determinados padrões de acordos estabelecidos,
experimentamos uma forma mais estruturada de se estar junto a alguém do
que um mero encontro. Neste caso, estaríamos falando, de fato, de
“acordos”, os quais implicariam interesses ou valores em comum. E para
que um acordo possa acontecer há que haver um lugar – um lugar no qual
os valores comuns possam ser acolhidos e expressados. Tal lugar pode ser,
geralmente, reconhecido em uma instituição ou um edifício público;
iv) o habitar privado refere-se àquelas ações que ocorrem em nosso
“pequeno mundo”, afastadas do convívio social e da intrusão de estranhos, e
o cenário desse habitar seria a casa, ou lar, onde experimentamos a chamada
“paz doméstica”, e onde reunimos e expressamos as memórias que
constituem nosso “mundo pessoal”, considerando que escolhas também são
89
de natureza pessoal, e que a vida de cada pessoa tem seu curso particular,
nada mais natural do que o habitar também compreender a escolha de um
“pequeno mundo” para nós mesmos.
Ao longo dessa pesquisa tive a possibilidade de me encontrar com Vittorio e
Renato em mais de um habitar, o primeiro contato, as entrevistas que se encontram em
anexo, ocorreu no habitar privado. Porém, houve momentos como por ocasião da
inauguração do curso de italiano de encontrá-los em um habitar público, o edifício no
qual administro as aulas, passando a outro habitar público, um restaurante no qual
seguiu-se a cerimônia e em um habitar coletivo, a mesa de esse restaurante na qual me
encontrava com eles e outros representantes da colônia italiana em Barra do Piraí que,
pela troca de idéias em comum, de memórias do grupo passou a ser um habitar coletivo
inserido em um habitar público. Outro momento como esse ocorreu no casamento de
Alessandro, filho mais velho de Vittorio, ao encontrar-me na mesa dos padrinhos do
noivo, ao lado de uma amiga da noiva que por coincidência havia trabalhado com meu
irmão no Rio de Janeiro.
E como quem casa quer casa, diz o antigo dito popular, pude atestar a
importância do habitar privado, o esmero com o qual meus entrevistados escolhem os
objetos e convivem com os membros de suas famílias. O povo italiano é reconhecido
pelo zelo com suas casas e é sempre apontado como um povo que se preocupa com a
família.
De acordo com Amos Rapoport (1969) quase todas as “necessidades básica”, ou
a maior parte delas, envolvem julgamentos de valores e, portanto, escolhas – sendo,
assim, de natureza cultural. Deste modo decisões/escolhas – sejam elas formais ou
funcionais – com relação à moradia estariam submetidas ao contexto cultural de quem
as define e sujeitas à definição do que essas culturas consideram como principal
componente de uma visão de mundo. Se, por um lado, cada contexto cultural específico
poderá destacar um determinado aspecto – como, por exemplo, o conforto, ou utilidade,
ou religião, etc. – como principal componente de sua visão de mundo, e as
decisões/escolhas, então realizadas, estarão submetidas a essas visões, por outro lado,
cabe ressaltar que até mesmo a definição de conceitos que consideramos corriqueiros e
familiares, como, por exemplo, o de utilidade ou de conforto, será menos óbvia do que
90
se supõe – não apenas na idéia que se faz do que é confortável (ou útil), mas mesmo na
busca expressa por essas sensações (Rapoport, ibidem; p. 60-62).
O fator cultural como vimos torna-se importante e, para ampliar o conceito de
cultura, lanço mão de Chaney. Conforme o autor o conceito de cultura refere-se ao fato
de haver maneiras distintas de se fazerem determinadas coisas – como se realiza um
determinado trabalho manual, como se cozinha, como se come, o que se espera do
comportamento das crianças, maneiras estas que, normalmente imbuídas de força moral
mantidas por meio de tradições e reproduzidas ao longo de gerações caracterizam um
determinado grupo social e constituem o elemento central da identidade desse grupo.
Representando um grau de vida em grupo que precede, e é mais fundamental, que a
própria experiência individual (Chaney, ibidem; p. 8).
Interessante notar que tanto Vittorio como Renato casaram-se com brasileiras.
No Caso de Renato, a esposa ao casar-se não sabia cozinhar e Renato a ensinou a
culinária calabresa, em almoço na casa deles e depois em contato com a filha mais velha
do casal pude atestar que a elaboração dos pratos seguem essa cultura. Na casa de
Vittorio o café é feito na moca, com exceção dele, os membros da família tendem a uma
alimentação que exclui a carne vermelha e a culinária não é somente italiana.
4.2.1 A Casa
“resultado da distinção, no mundo público, de um determinado lugar para a
prática do habitar no nível do privado e do pessoal. E o cenário onde essa
prática acontece, afastada do habitar público e da intrusão de estranhos, é a
casa, ou o lar”. (Camargo 2007, 17).
Como bem observa Yi-Fu Tuan, mais útil do que entendermos a casa como local
natural ou físico, ou mesmo como um ambiente físico pura e simplesmente construído,
devemos começar pelo conceito de que “[casa] é uma unidade de espaço organizada
mentalmente e materialmente para satisfazer as – tanto reais quanto percebidas –
necessidades básicas biosociais das pessoas e, além disso, suas mais altas aspirações
político-estéticas” (Tuan, 1991; p. 102. Apud Cresswell, 2004; p. 109). E, ainda, para
David Morley, a função e o significado da casa variarão em função do contexto em que
esse habitar estiver inserido (Morley, 2000).
É importante ressaltar que é possível verificar o fato de que espaços domésticos,
ainda que inseridos em contextos socioeconômicos bem semelhantes, poderão
91
expressar, através de seu habitar doméstico, inúmeros modos de viver,
surpreendentemente particulares e distintos. Isto pode ser observado em um edifício
habitacional multifamiliar, onde, na maioria das vezes, as unidades habitacionais são
projetadas com intenções arquitetônicas semelhantes, se não idênticas (Camargo, 2003;
p. 78-95). Ainda que se trate de grupos usuários inseridos em faixas de renda
relativamente equivalentes, e que esses grupos partilhem não só o mesmo bairro, mas a
mesma tipologia de habitação, suas particulares escolhas e julgamentos, resultados de
valores e significados específicos de cada grupo usuário, especificam a linguagem
estandartizada de seus apartamentos, convertendo o que era padrão em um mundo
particular, diferenciado e único. Talvez isso ocorra pelo hibridismo contido na
identidade de todo indivíduo e no nosso estudo, ainda mais pungente no caso de
imigrantes.
No caso dos imigrantes entrevistados verificamos a importância da casa não só
como proteção para aquele núcleo familiar específico, mas também como um dos
maiores bens, herança-base para seus descendentes. A propriedade da casa de nos
acolher física e psicologicamente nos leva a considerar duas formas de observar essa
inserção da casa no mundo: a casa como proteção frente ao mundo e a casa como meio
de identificação com esse mundo.
Cabe ressaltar que Vittorio e Renato moram em bairros diferentes, um no centro
o outro no Belvedere, e escolheram tipos diferentes de habitar. Enquanto Vittorio, desde
seu casamento habita um apartamento no último andar de um prédio residencial e, ao
invés de se mudar, foi incorporando ao longo dos anos o apartamento ao lado e os
superiores criando um duplex com vista para o rio e com um terraço que dá a idéia de
casa, segundo suas palavras. Renato, após casar-se morou em cidades e imóveis
diferentes até mudar-se para a atual casa de dois andares, cujo terraço além do espaço
para festividades possui um quarto com chuveiro de água fria para, segundo suas
palavras, “colocar os bêbados” ocasionais.
Em comum tem o terraço como espaço recreativo para a família e familiares e
prosperidade conquistada ao longo dos anos simbolizada pela casa em que habitam e
pelas casas compradas para cada filho. Ambos tiveram essa preocupação, a de garantir
aos filhos um teto, no qual eles, se desejassem, pudessem transformar em lar, não
correndo o risco de não terem esse espaço, um refúgio garantido.
Buscando uma contextualização histórica para a concepção, trazida por
Heidegger – e desenvolvida por Bollnow –, de ser o espaço interior da moradia um
92
refúgio frente a um mundo exterior de ameaças –, o arquiteto Iñaki Abalos propõe que
um dos seus fundamentos seria o fato de o tema casa ter surgido nos primeiros escritos
de Heidegger no período pós-guerra. O autor estaria fortemente envolvido com as
implicações da violência do mundo público sobre o privado; com o efeito das
manifestações da exterioridade e da realidade artificial do cosmopolitismo, as quais,
chegando através das tecnologias industrializadas e dos meios de comunicação,
assumiam, pelo autor, o caráter de algo nocivo, uma ameaça à autenticidade do habitar
doméstico. Além disto, Heidegger estaria imbuído da “própria intenção de auto-
exculpação de sua participação do nazismo” (Ábalos 2000; p. 51, 52).
Esta contextualização histórica é importante, uma vez que serve de motivo para
questionar até que ponto para Vittorio e Renato o fato de terem vivenciado a guerra
durante a infância teria feito com que formassem uma concepção de casa, assim como
Heidegger, como proteção frente às ameaças do mundo exterior influenciando-os a
adquirir imóveis para si e para seus filhos, garantindo-lhes mais que um bem material,
um refúgio.
Também podemos considerar, como referência para o conceito de casa como
entidade concreta, protetora do corpo físico e também da vida interior, a visão
fenomenológica de Gaston Bachelard, segundo a qual, por mais variados que sejam os
tipos de habitação humana, em termos geográficos e etnográficos, há que considerá-la
como a “concha inicial em toda a moradia”; “o germe da felicidade central, segura,
imediata” (Bachelard, 2003; p. 24).
Em sua poesia da casa, Bachelard nos faz reconhecer tanto uma casa universal
quanto a nossa própria casa como a “cabana”, o “ninho”, com os cantos onde
gostaríamos de nos encolher, “como um animal em sua toca” (Bachelard, ibidem).
Não é de se admirar, portanto que a medida na qual habitamos o espaço público,
reunimos em nossa casa física lembranças, em forma de coisas, que elegemos como
representantes de nossas experiências no mundo lá de fora, e as quais trazemos para o
nosso habitar doméstico.
Helena, esposa de Vittorio, define uma parte da casa como “cantinho da
saudade”, é naquele espaço em que se encontram: o piano que pertenceu à mãe de
Vitório, a cadeira que pertenceu ao pai de Helena, uma parede repleta de quadros,
pratos. Lembranças, memória evocada, presença de tantas ausências. Ao passo que
Renato se define como “um sujeito guardador de coisas” que expõe pelas paredes da
casa suas lembranças: fotos dos pais e das netas; pôsteres que o faz lembrar a primeira
93
visão da nova terra e sua cidade natal, dispostos lado a lado, fazendo com que passado e
futuro permaneçam lado a lado.
Importante frisar que para designarmos um objeto como lembrança não precisa
ser um objeto antigo, como no caso do pôster do Rio de Janeiro para Renato, ou
recordações, como a lembrança do Cristo evocada como sua primeira recordação de
chegada. Simplesmente ao manipularmos objetos adquiridos, convivermos diariamente
com eles – ao comer, dormir, conversar e nos entreter –, essas coisas passam a fazer
parte de nossa vida privada e nós passamos a perceber seus significados como
experiências já interiorizadas. Assim, ao entrarmos em casa e encontrarmos aquelas
coisas que trouxemos do mundo lá de fora, com as quais já estamos tão familiarizados,
sentimo-nos, enfim, em casa. É neste sentido que Norberg-Schulz afirma que por meio
da casa física, experimentamos ser parte do mundo (Norberg-Schulz, ibidem; p. 89, 91).
A sensação que tenho no meu novo lar, ano passado meu quarto pegou fogo,
após seis meses de reforma de toda a rede elétrica e pintura decidi que seria mais
prático, para mim, morar em outra cidade Como trabalhava no eixo Miguel Pereira –
Vassouras – Barra do Piraí, seria mais fácil habitar em Vassouras. No início, definia
como sendo meu lar a casa de Miguel Pereira e estúdio – um retângulo de 27 m2 no qual
estão dispostos: o quarto que é também sala, a cozinha e o banheiro – o imóvel que
aluguei em Vassouras. Porém, com o passar do tempo, com o habitar de esse novo
espaço privado, comecei a vê-lo como meu lar, onde manuseio e guardo as “coisas”
essenciais para viver, nessas “coisas” incluem-se além de móveis e utensílios, livros,
fotos de amigos e CDs que me colocam em conexão com o mundo.
Curioso, que foi nesse meu pequeno espaço que encontrei a tranqüilidade para
escrever, que elaborei a idéia de capítulos como partes que compõem uma viagem de
trem e que de repente dei-me conta que a metáfora do trem podia se aplicar a esse
espaço. O outrora retângulo passou a ser visto por mim como um vagão, no qual por
uma porta externa entramos na sala-quarto, ou cabine, passando por uma interna
chegamos ao vagão restaurante propriamente dito que também possui outro acesso por
outra porta externa e ao fundo uma outra porta interna na qual temos acesso ao banheiro
da composição. Privado e Público, mundos interior e exterior em contato por meio do
indivíduo que os habita e identifica.
Ecléa Bosi chama a atenção para o modo como estabelecemos com nossa casa e
com a paisagem que a rodeia uma “comunicação silenciosa que marca nossas relações
mais profundas”, a autora nos lembra que “mais que um sentimento estético ou de
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utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa
identidade” (Bosi, 2003; p. 441, 442): “Sons familiares da água da torneira, dos
talheres nos pratos, dos passos no chão, do relógio, do martelo, da vassoura, compõem
o ambiente acústico familiar que se integra no da rua” (Bosi, ibidem; p. 445)
Na contra-mão das aquisições e vínculos que formamos com os objetos que nos
cercam e nossa casa o sociólogo Ervin Goffman formula o conceito de “deformação
pessoal” decorrente do fato de o indivíduo ser destituído das coisas que possui, às quais
atribui o “sentimento do eu”; e da “grande mutilação” desse “eu” que decorre da
impossibilidade de se estabelecer quaisquer vínculos pessoais com o espaço e os objetos
onde e com os quais se habita (Goffman, 1974; p. 27, 29), como podemos ver a seguir
em citação sobre um estudo do autor em ambiente religioso, no qual é prática liberar-se
de todo e qualquer vínculo material, que os remetam ao mundo exterior:
“Para dormir, devem ter apenas um colchão, um cobertor, uma colcha e um
travesseiro. Essas camas devem ser freqüentemente examinadas pelo abade,
por causa da propriedade particular que aí pode estar guardada. Se alguém
for descoberto com algo que não recebeu do abade, deve ser severamente
castigado. E para que esse vício de propriedade particular possa ser
completamente eliminado, todas as coisas necessárias devem ser dadas pelo
abade: capuz, túnica, meias, sapatos, cinto, faca, caneta, agulha, lenço e
tabuletas para a escrita. Assim, é possível eliminar todas as queixas de
necessidades. [...].” (“The Holy Rule of Saint Benedict”, cap. 55. Apud
Goffman, ibidem; p. 28)
Pessoas que sofrem furtos nos quais suas casas são esvaziadas ou tem suas
moradas devastadas por incêndio ou inundação sofrem uma “deformação pessoal”
involuntária, nesse ponto diferem dos neófitos religiosos, pergunto-me se no caso dos
imigrantes, que ao embarcarem podiam trazer consigo somente poucos pertences, se
nesse caso teriam a experiência próxima de “deformação pessoal” que os noviços
anteriormente citados e eu, ao já ter passado na infância e adolescência pela experiência
de furto e recentemente pela do incêndio, experimentaram.
Fato é que se afastar de sua casa, seu lar, muitas vezes com a perspectiva de
nunca mais voltar, com apenas um baú, quando não somente uma trouxa de roupa e uma
fotografia desbotada de um ente querido, pode ser considerado, no mínimo, uma
violação. Apesar da esperança de ir ao encontro de uma vida melhor, o desafio e
dificuldades de se construir, re-construir um novo espaço, um novo lar são particulares e
inimagináveis, assim como múltiplas são as escolhas a serem feitas.
Como coloca Clare C. Marcus, os motivos que nos levam a alugar ou comprar
uma determinada casa para morar, além de serem determinados por nossas
95
possibilidades econômicas, por suas características físicas, localização e nível de
conservação do imóvel, também o são pelo papel simbólico desse imóvel como uma
expressão da identidade social que queremos comunicar a esse meio. Assim, dirá a
autora, nossa casa passa a funcionar como um veículo de comunicação, um display para
informar aos nossos vizinhos, convidados – e até a nós mesmos – quem e como somos,
que posição ocupamos na sociedade, nossos valores, etc. (Marcus, 1997; p. 9). Afinal,
segundo King:
“Nossa casas falam por nós, sobre como somos, e sobre nós para os outros;
se formos honestos, elas também nos dirão quem e o quê nós queremos ser.
As casas, portanto, também podem ser vistas como um espelho que erguemos
para nós mesmos” (King, ibidem; p.78).
Quanto a nos vermos refletidos no nosso espaço habitado, Marcus ainda
acrescenta que, como nossa auto-imagem se transforma com o tempo, nós também
transformamos o espaço que habitamos, podendo, por exemplo, nos desfazer de coisas
que não mais refletem quem somos, e adquirir outras que correspondam a nossa atual
realidade interna. Portanto, nosso espaço doméstico torna-se uma espécie de cenário no
qual nossa auto-imagem é projetada através de objetos móveis que controlamos.
Conforme afirma Marcus, “tal como a exploração do self, a organização interna da casa
está freqüentemente em um processo de tornar-se” (Marcus, ibidem; p. 57).
Além disso, segundo Santos o lugar habitado seria o “teatro insubstituível das
paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas
manifestações da espontaneidade e da criatividade” (Santos, ibidem; p. 322)
Cenário, palco, coxia é em nossa casa que somos, representamos e exercitamos
nossas identidades, onde organizamos nossos papéis e delimitamos o público do
privado.
Para Hannah Arendt somos seres condicionados – ou seja, temos a propriedade
de tornar imediatamente condição da nossa existência tudo aquilo com que entramos em
contato, seja por meios espontâneos ou intencionais. Segundo a autora, além das
condições naturais nas quais recebemos a nossa vida sobre a Terra – “e, até certo ponto,
a partir delas” –, é de nossa natureza criar novas condições que, por mais variadas e de
diversas origens que possam ser, terão a mesma força condicionante de nossa existência
que têm as “coisas naturais”. Assim, a própria realidade do mundo, sua objetividade, ou
seja, seu caráter de coisa ou objeto, também passam a impor sobre a existência dos
homens, seus próprios autores, essa força condicionante (Arendt, 1997; p. 17).
96
Provavelmente minha resistência em apresentar meu novo imóvel como sendo
meu lar deveu-se ao status, é muito mais glamoroso viver em um sítio arborizado, com
uma casa de 150 m2 do que em um estúdio, assim como denominar de estúdio o que
poderia ser designado como uma quitinete. Porém, como aponta Bosi, são os objetos
que nos dão assentimento “à nossa posição no mundo, à nossa identidade”, por isso
com a vivência do novo espaço, com ter a minha volta os objetos que elegi para me
significarem, com o habitar real desse novo espaço passei a senti-lo como lar e a
possibilidade de ter que me mudar novamente me assombra.
Ao percorrem suas casas, meus entrevistados mais que um imóvel me
mostraram, me abriram seus lares, fato perceptível pelo modo como se referiam não só
aos cômodos, mas a quem ocupavam esses cômodos e ao demonstrar carinho com
objetos que tanto significavam para eles. A dimensão social que Marcus aponta sobre os
motivos que nos levam a alugar ou comprar um imóvel também apresentou-se no modo
como enalteciam as qualidades de morar no bairro escolhido, em falar-me sobre a
vizinhança.
4.2.2 o Lar e a memória afetiva
Segundo Camargo o habitar doméstico é uma atividade que evolve mais do que
o simples ato de nos inserirmos em um invólucro físico segundo as condições que,
objetivamente, permitem e definem o modo como permanecemos lá. (Camargo, ibidem,
65) A autora investiga em que aspectos a condição concreta do habitar físico propicia
aos habitantes relações tais, que vão além das materialmente evidentes; que envolvem
os aspectos não palpáveis do habitar doméstico, como os da alma, do espírito, do sonho,
da memória, das emoções do indivíduo – aspectos que fazem com que a casa, em sua
objetividade concreta, passe a incorporar um significado subjetivo para quem a habita.
De acordo com o “Dicionário da Arquitetura Brasileira” (Corona e Lemos, 1972;
p. 462): Habitação Lugar no qual se habita. Constitui em arquitetura o abrigo ou
invólucro que protege o homem, favorecendo sua vida no aspecto material e espiritual.
Já Peter King (2004) percebe uma “simbiose” entre as estruturas objetivas que
encerram a casa física e as atividades que desempenhamos – privadamente – dentro
dela, ou seja, de um lado, temos a casa como objeto físico: reconhecível e passível de
avaliação objetiva, segundo critérios concretamente verificáveis, tais como, por
exemplo, o projeto arquitetônico, suas relações de espaço e uso, os materiais utilizados,
97
os padrões de construção, e de outro lado – porém apoiado nessas condições objetivas –,
está, o habitar doméstico, com todas as ações e interações de caráter, particular e
individual, que envolvem tal atividade, as quais, como observa King, pelo seu caráter
íntimo, ficam praticamente fora de monitoramento (King, ibidem; p. 60, 176).
Uma prova de que a memória afetiva age também no espaço doméstico é a de
que muitas vezes, podemos passar longo período da vida buscando-se reencontrar, em
novas casas, as boas impressões, que um habitar doméstico da infância deixou,
marcadas no íntimo de uma pessoa, como no caso de Vittorio ao dizer que o terraço de
seu apartamento dava a idéia de estar em uma casa, na sua infância ele morou em uma
casa – ou, tentando-se evitar reviver alguma experiência doméstica especialmente
dolorosa.
Peter King, dá um exemplo desse último caso, ao relatar o momento no qual,
tendo em vista o falecimento de sua mãe, se viu, juntamente com seus irmãos, diante da
tarefa de esvaziar a casa onde ela morara, pois à medida que os objetos que pertenceram
à mãe eram retirados, como um processo de “des-animação”, tornava-lhes cada vez
mais difícil a localização das memórias que sempre estiveram ali. Segundo o autor,
aquele espaço, inicialmente “cheio das suas coisas, tal como fora até a última vez em
que a vira”, tornava-se, aos poucos, um lugar “frio e antisséptico”. Como afirma King,
se, por um lado, nesse processo, o espaço crescia em possibilidades de uso – “a casa de
nossos pais tornava-se, agora, mais uma casa [..., que] poderia ser habitada por qualquer
um” – para ele e os irmãos, aquele espaço “encolhia-se”, pois deixava de ser um lugar
significante para ser uma simples concha com capacidade de abrigar mais um habitar –
“... qualquer habitar” (King, ibidem; p. 154-155).
Outro a sentir o vazio deixado pela casa por ter seus objetos
“despersonalizados” é o autor português José Saramago ao recordar-se da
partida de seu tio: “[...] desapareceu num montão de escombros [...] aquela
[casa] que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e
profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo
se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses
decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo
que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da
memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar
a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a
cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas
pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro de
esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele
Verão. (Saramago, 2006; p. 15-16)
[...]
A construção era do mais tosco que então se fazia, térrea, de um único piso,
mas levantada do chão cerca de um metro por causa das cheias, sem
nenhuma janela na frontaria cega, nada mais que uma porta em que se abria
o tradicional postigo. Tinha dois compartimentos espaçosos, a casa-de-fora,
98
assim chamada por dar para a rua, onde havia duas camas e umas quantas
arcas [...]. À noite, apagando o candeeiro de petróleo, sempre se podia
distinguir pelas frinchas do telhado o cintilar de uma estrela vagabunda.
[...]. Além das camas e das arcas, havia na casa-de-fora uma mesa de
madeira em branco, isto é, sem pintura, de pernas altas, com um espelho
velho, embaciado e com falhas na película de estanho, um relógio de capela
e outras bugigangas sem valor. (Muito mais tarde, já tinham passado há
muito os meus quarenta anos, comprei num antiquário de Lisboa um relógio
semelhante que ainda hoje conservo, como algo que tivesse ido pedir
emprestado à infância). [...]. Por cima da mesa, na parede branca, como
uma galáxia de rostos, era onde se reuniam os retratos da família: [...]
Estavam ali como santos no altar, como peças de um relicário colectivo,
fixos imutáveis. A cozinha era o mundo. Havia duas camas, uma mesa que
bamboleava no chão irregular e que de cada vez era preciso calçar para que
não bandeasse, duas cadeiras pintadas de azul, a lareira com a „boneca do
lar‟ ao fundo, uma figura vagamente antropomórfica, de contorno sumário,
que desapareceu, como todo o resto, quando o tio Manuel, o mais novo dos
tios maternos [...], ficou com a casa depois de morrer a avó, para levantar
no seu lugar uma construção hedionda para qualquer pessoa de mediano
gosto [...].” (Saramago, ibidem; p. 83-85)
A partir dessas considerações, podemos entender o papel da estrutura física da
casa além do seu aspecto inicial, o de abrigar o nosso habitar doméstico e compreender
que essa estrutura também abriga todas as coisas e objetos de grande importância e
significado para nós que nela inserimos, ou seja, que a casa possui uma memória afetiva
advinda de esse reunir de coisas e objetos vindos das mais variadas origens, portando
com os mais distintos significados, e que até então estavam dispersos no mundo, em um
só contexto resultaria em uma “colagem” – como diria King (ibidem; p. 60) – de
significado pessoal, específico e particular para nós, o qual não só apóia o nosso habitar
doméstico, mas é, mesmo, confundido com ele e com o sujeito que o habita.
Afinal, segundo Ecléa Bosi, durante o curso PST5720 – Cultura e Memória
Social, ministrado no segundo semestre de 2005, no Instituto de Psicologia da USP:
“Ainda que a sociedade queira, de todos os modos, mostrar que os objetos
têm valor em si mesmos, é o sujeito, o causador histórico do valor dos
objetos: somos nós que damos alma aos objetos, transformando sua
neutralidade em apoio à nossa identidade.” (ao que a autora acrescenta) “O
espaço que encerrou os membros de uma família durante anos comuns, há de
contar-nos algo do que foram essas pessoas. Porque as coisas que
modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram
algo do que fomos.” (Bosi, ibidem; p. 443)
A autora aponta um fato importante do habitar, o de que muitas vezes o habitar
doméstico é compartilhado, portanto, tão importante quanto as coisas e objetos que
possuímos guardados em nossa casa é com quem nela os partilhamos. É neste sentido
que King afirma que muito do que temos em casa como querido não são apenas posses,
99
mas relações afetivas. Para o autor, uma função chave da casa seria “abrigar aquelas
coisas e aqueles seres que amamos e queremos ver protegidos” (King, ibidem, p. 60).
De forma semelhante, Chaney afirma que o que conta como casa, para qualquer pessoa,
é definido por conexões emocionais – “a casa é onde está o coração” (Chaney, ibidem;
p. 59).
Assim, ao me mostrar as fotos de suas irmãs na parede de seu quarto, as de seus
pais e netas nas paredes da sala, Renato me dizia o quanto aquelas pessoas eram
importantes para ele, elas vivem com ele em seu coração e por isso compõe a decoração
de sua casa, assim como a bandeja de prata que ganhou de um amigo por ocasião de
suas Bodas de ouro com sua esposa, mostra o quanto aquele casamento é importante
para ele.
O cantinho da lembrança, como define Helena na casa de ela de Vittorio também
indica o quanto os ancestrais são importantes para aquela família, o quanto deixam
saudades.
Também os filhos que os visitam ou moram com eles fazem parte dessa relação
de lar como espaço de afeto. Afinal, nada como a casa dos avós, pena que cada vez
mais, pela decisão tardia de termos filhos, esses tem cada vez menos a possibilidade de
desfrutar a convivência com os avós.
As Time Goes By
You must remember this,
a kiss is just a kiss,
A sigh is just a sigh,
The fundamental things apply,
as time goes by.
And when two lovers woo,
They still say "I love you,"
On that you can rely,
No matter what the future brings,
as time goes by.
Moonlight and love songs,
never out of date,
Hearts full of passion,
jealousy and hate,
Woman need man, and man must have his maid,
that no one can deny.
It's still the same old story,
a fight for love and glory,
A case of do or die,
The world will always welcome lovers,
as time goes by.
(música tema do filme Casablanca,de 1942, composta por Herman Hupfeld)
5. OS PASSAGEIROS: Renato e Vittorio,
5.1 Vidas Paralelas
“A única verdadeira viagem, o único banho de juventude, seria não ir ao encontro
de novas paisagens, mas ter novos olhos, ver o universo com os olhos de outro,
de cem outros, ver os cem universos que cada um vê, que cada um é.”
(Marcel Proust. In.: Sono Piccolo ma crescerò. Tradução minha)
Como dito anteriormente, as histórias de vida coletadas em situação de entrevista,
são narrativas de imigrantes, portanto, neste capítulo analiso a construção de narrativas de
dois imigrantes italianos, Renato e Vittorio, que se integraram na comunidade barrense.
Ao analisar as narrativas dos sujeitos de pesquisa constatei que esses preservam
traços da cultura italiana, principalmente no que concerne aos hábitos alimentares, ao
mesmo tempo em que cunharam uma nova identidade, uma identidade ítalo-brasileira. Tais
narrativas são testemunho da passagem de uma existência peninsular para uma continental,
nos quais o contraste entre o presente e o passado é fortemente marcado.
Segundo Paola Corti, o homem é naturalmente nômade, portanto os fenômenos
migratórios são naturais e não o contrário. Apesar disso, a mudança de cenário, de hábitos,
pode implicar em alterações senão identitárias, de percepção, ao nos defrontarmos com o
outro.
Dentre encontros e desencontros pode haver desde a assimilação do discurso do
outro, podendo ocorrer uma nova formação identitária, até uma total intolerância, muitas
vezes representada por movimentos nacionalistas.
Neste cenário, o estudo sobre imigração tem ganhado importância em diversos
campos da Literatura, História, Antropologia, Sociologia, Sociolingüística Interacional, que
tem contribuído imensamente para o entendimento da imigração; sem desprezar as
importantes contribuições dessas e de outras áreas de pesquisa, algumas das quais citadas
neste trabalho, uma vez que lido com uma perspectiva interdisciplinar de pesquisa. Tenho a
certeza de que a Análise do Discurso e o aparato desenvolvido pela Área dos Estudos da
Linguagem contribuem para o estudo da migração.
102
Aqui, neste capítulo focalizarei apenas uma porção desta contribuição que é a
investigação da contribuição de narrativas pessoais de experiências de imigração que
resultam em transformações identitárias.
Nesta pesquisa concebo identidade como co-construção, que são estabelecidas em
um processo contínuo de relações sociais, afinal, como bem coloca John Caputo: “somos
seres históricos e sociais concretamente situados em uma outra tradição histórica, cultural e
lingüística” (2001:34)
Neste capítulo, portanto, me proponho a analisar como são construídas narrativas de
imigração, tendo como base a análise de entrevistas não-estruturadas em que sujeitos
relatam suas estórias de vida. Seguindo Bastos (2005) utilizo o termo “estória de vida”,
neste capítulo, de acordo com a proposta de Linde (1993), para diferenciá-lo do conceito
“historia de vida” termo esse mais ligado aos estudos da Antropologia, História e
Psicologia, de modo a focalizar a construção discursiva de narrativas, que não deixam de
ser autobiográficas.
A análise de como as narrativas de imigração são construídas leva em consideração,
principalmente, de que a(s) construções identitárias dos sujeitos de pesquisa são construídas
discursivamente nos relatos dos entrevistados; como constroem discursivamente a
importância do aprendizado da língua portuguesa e do casamento com brasileiras e como
essa influência se estendem para outros aspectos de suas vidas sociais. Objetivo, portanto, a
busca de uma maior compreensão de como os relatos de imigração são estruturados e, de
como os narradores constroem a si e aos outros em suas estórias de vida. Dessa forma,
nesse capítulo objetivo:
1. Analisar como os entrevistados estruturam suas narrativas para contar suas
trajetórias de imigração, ou seja, como os diferentes aspectos da experiência de imigração
presentes nos relatos são organizados tendo-se em vista o trabalho de (re)construção das
identidades sociais;
2. Analisar como os narradores constroem suas experiências passadas tendo em
vista a sua perspectiva de presente, ou seja, estando já integrados e sendo atuais membros
da sociedade barrense e não simplesmente representantes da “colônia italiana” em Barra do
Piraí.
103
Proponho que as identidades construídas ao longo das narrativas de estórias de vida
dos sujeitos aqui pesquisados sejam entendidas, a partir de um conjunto de transformações
sofridas por esses indivíduos que os levam, na sua forma de pensar e em suas ações
cotidianas, a se alinhar a um sistema de coerência (cf. Linde, 1993). Processo esse, descrito
como assimilado de forma gradual e que possui como principais características o próprio
alinhamento dos sujeitos ao novo sistema de idéias, alinhamento este que os levou a um
status social privilegiado. Essa crença é pautada, geralmente, pela sorte, boa ventura, boa
fortuna, o que remete à proximidade com a divindade, tendo em vista que os tocados pela
sorte são, de certa forma, os agraciados por Deus. Talvez, mais do que fazer fortuna, o
significado de “fare la merica” esteja vinculado a integrar-se para viver de forma melhor do
que no passado, dando melhor condição de vida a seus herdeiros.
Cabe ressaltar que, ao pesquisar o uso da perspectiva do presente levo em
consideração que a narrativa é mais do que uma seqüência ordenada de eventos. Filio-me,
deste modo, a estudos que problematizam a visão estritamente cronológica da narrativa,
mais especificamente àqueles estudos que consideram ser a “perspectiva do presente” ou o
“sentido do final” que orientam a construção narrativa (Ricouer, 1980, 1984; Brockmeier,
200; Mishler, 2002; Jarvinen, 2004, Santos, 2007).
5.1.1. Renato
Renato, italiano residente no Brasil, mais especificamente no bairro Belvedere, em
Barra do Piraí, cidade situada no sul fluminense, tem 83 anos, é casado, tem dois filhos.
Na Itália, estuda somente até o quarto ano do ensino fundamental. Era o homem da
casa, ajudava a mãe, pois o pai já havia migrado alguns meses antes de seu nascimento e
retornava somente de tempos em tempos para a Itália, onde permanecia por poucos meses.
Sendo assim, ele vem a conhecer o pai somente aos quatro anos de idade. Com a guerra o
pai passa um longo período sem retornar ao Brasil. Deste período Renato guarda na
lembrança os sacrifícios que sua mãe fazia a fim de suprir as necessidades da família.
Quando seu pai retorna em mil novecentos e quarenta e nove, decide trazer o Renato
com ele para o Brasil por causa de sua profissão de alfaiate, profissão essa que Renato
104
desempenha por pouco tempo por aqui.
Ao chegarem ao Brasil, Renato aloja-se junto com o pai na casa de uma tia em São
Cristóvão, mesmo estando entre familiares começa a estranhar os costumes da terra. Sua tia
e primo esforçam-se para dar-lhe conforto. O primo cede a cama e passa a dormir em uma
esteira, mas Renato não se adapta e procura um outro local, vai morar em um quarto na
Paula Matos, rua do bairro de Santa Teresa. Passa por vários tipos de habitações, divide
quarto com estranhos no Grajaú, e com amigos novamente na Paula Matos até que em mil
novecentos e cinqüenta e sete casa-se com Maria e vão morar em Nilópolis. Como as
condições de higiene do bairro eram péssimas e as crianças adoeciam constantemente
decidem mudar-se para Barra do Piraí, onde Renato estabelece-se como comerciante e
Maria continua a dar aulas de português em escolas da rede pública.
Já diz o ditado “santo de casa não faz milagre”, por isso, apesar da esposa ser
professora de português, Renato fala um português, segundo suas próprias palavras, “torto
como seu italiano” A comparação é interessante porque no período no qual Renato veio ao
Brasil o italiano era aprendido na escola e por meio da televisão, entre familiares falava-se
em dialeto, no caso de Renato, o calabrês, por ter tido pouco estudo o português e o italiano
para ele eram claudicantes.
O casal teve um filho e uma filha e esses duas filhas e uma filha, respectivamente,
ou seja, o casal atualmente tem três netas, duas formadas e uma completando os estudos
universitários.
A filha de Renato seguiu os passos da mãe, tornou-se professora, assim como sua
filha, ao passo que o filho assumiu o bar que foi do pai. Renato fez questão de comprar um
imóvel para cada filho e de ajudar com os custos com a instrução das netas. Encontra na
família sua grande realização.
5.1.2. Vittorio
Vittorio, italiano residente no Brasil, mais especificamente no centro de Barra do
Piraí, cidade situada no sul fluminense, tem 72 anos, é casado, tem dois filhos e uma filha,
um neto e três netas, na época da entrevista tinha somente duas netas, mas no ínterim seu
105
filho solteiro casou-se e teve uma filha.
Vittorio atribui o fato de estar casado até hoje por mérito da esposa que soube
contornar suas ações imaturas dos primeiros anos de casamento.
Após entrevista do filho mais velho de Vittorio com suas tias na Itália, descobrimos
que ao invés da versão que se encontra nessa entrevista de que a mãe de Vittorio teria
falecido no parto, essa veio a falecer três meses após dar a luz, tendo tempo de amamentá-
lo.
Três anos após o falecimento da esposa, o pai de Vittorio casa-se novamente e desse
matrimonio resultam duas filhas. Vittorio convive muito bem com a madrasta, a ponto de
essa tomar partido dele em relação às filhas. Vive, segundo ele, uma infância de príncipe,
na Itália é chamado de Dom Vittorio, pelo prestígio de seu avô farmacêutico, seu pai
médico e seu tio padre.
As lembranças da guerra estão vivas em sua memória, assim como a precariedade
na qual a Itália se encontrava no pós-guerra. Levando-se em consideração esse cenário e o
fato do avô materno ter uma boa situação no Brasil, como industrial, e prometer a parte que
caberia a filha falecida ao único neto que deixara, caso Vittorio fosse morar com eles em
Barra do Piraí, a família italiana concede a ida do primogênito ao Brasil para garantir-lhe
um melhor futuro.
Aos treze anos, Vittorio vem para o Brasil de avião, é um dos pioneiros como
passageiro de linhas aéreas.
Ao chegar ao Brasil comunica-se somente em italiano e em dialeto com os avôs,
fica mudo durante um tempo, freqüenta aulas de português com um prestigiado professor
de Barra do Piraí e somente quando se sente confiante passa a falar a língua portuguesa,
apaixonando-se por ela.
Presta os exames necessários para continuar seus estudos e vai morar no Rio de
Janeiro, no Alto da Boa Vista, para concluir o atual Ensino Médio e iniciar seus estudos na
Faculdade de Direito. Após o primeiro ano de faculdade, começa a trabalhar na fábrica de
macarrão do avô e presta somente os exames na faculdade, a fim de obter a graduação em
Direito. Orgulho para a família que lhe dá o anel de advogado. Anel esse que usa durante
muitos anos até mesmo depois de casado, para segurar a aliança, o que não funciona por
106
muito tempo e ele o perde.
Na indústria, é responsável pelo marketing, patrocinam o carnaval do Rio durante
muitos anos, na sua função viaja muito a trabalho pelo Brasil e Europa, sempre que
possível levando a mulher e as crianças. Por vários motivos, porém, a empresa vai à
falência. Vittorio se aposenta e, em decorrência do stress, torna-se diabético, enfrenta a
doença de frente e passa a ter uma vida mais saudável do que antes da doença.
Há dez anos vem desenvolvendo um novo produto com uma nova marca. Colocou o
produto, um novo tipo de leite de soja com diversos sabores, no mercado duas semanas
após nossa entrevista.
5.2. Os Estilos narrativos
Neste subitem, segundo proposta de Tannen (1989), analiso estratégias de
envolvimento utilizadas por Renato e Vittorio. Meus entrevistados, apesar de não tão hábeis
como Salvatore, o entrevistado cuja narrativa e trajetória de vida analisei em minha
dissertação de mestrado, narrador esse de alto-envolvimento, segundo Tannen (1989),
produziram em seus relatos algumas estratégias, dentre elas narrativas que se enquadram no
modelo laboviano . Além de narrativa, focalizei também as estratégias de repetição,
imagem/detalhe e diálogo construído.
Tannen (1989), ao examinar a criação de significado como resultado de uma co-
produção discursiva, analisa estratégias que criam envolvimento, conexões emocionais
entre falantes, e sentido.
Falantes e ouvintes, em uma situação conversacional, necessitam sinalizar seu
envolvimento quer seja diretamente por palavras, quer indiretamente por meio de gestos e
sinais não-verbais. Como estratégia de envolvimento, a autora cita o uso de recursos
lingüístico-discursivos, tais como contar histórias, repetição, imagens/detalhes e dialogo
construído. Os recursos citados serão expostos analisados a seguir.
O contar histórias. Segundo Tannen (1989), um falante de alto-envolvimento conta
muitas histórias a fim de estabelecer um maior vínculo com seus interlocutores. Isso
porque, entre muitas outras coisas, as narrativas provocam emoções.
107
A repetição, dentre as estratégias de envolvimento, é considerada por Tannen
(1989) uma das mais importantes não apenas por ser especialmente abundante na fala, mas
também por possuir diversas formas e funções, dentre as quais: funcionamento na produção
e compreensão de significados em uma conversa; gerenciamento da conversação; criação
de humor. Bastos (1992), ao analisar a repetição no discurso, nos chama a atenção para dois
aspectos da repetição. O primeiro é como a repetição opera na construção da coerência.
Segundo a autora:
“a repetição funciona na inserção de informações no discurso, através de
processos de encaixe, substituição e adição. Simultaneamente, as repetições
funcionam na expressão de emoções e avaliações, atuando como estratégia de
valorização do que é dito.”
O segundo aspecto é o poético. Embora culturalmente a repetição esteja conectada à
idéia de monotonia, na poesia, este recurso é amplamente utilizado, por meio da métrica, da
rima, das aliterações.
Já o uso de imagens/detalhes, sempre segundo Tannen (1989), constitui uma
estratégia de envolvimento porque as imagens possuem poder de comunicar significados e
emoções por meio da evocação de cenas, especialmente no que diz respeito ao papel do
detalhe na construção de imagens, ou seja, ao fornecer detalhes, o falante faz com que o
ouvinte imagine cenas e situações, objetos, idéias e emoções, criando um maior
envolvimento e imprimindo dramaticidade ao relato.
A autora também se refere às figuras de linguagem. Neste caso a imagem formada
não é um cenário, mas um campo de associação que também estabelece envolvimento entre
falante e ouvinte.
Tannen (1989) questiona o conceito tradicional de fala relatada por não se tratar de
uma simples reprodução da fala de uma determinada pessoa, num determinado contexto.
Na verdade, trata-se de uma criação daquele que relata, dado que os enunciados são
produzidos em contextos diferentes. A autora propõe a denominação de diálogo construído
ao processo no qual uma pessoa se apropria das palavras de outrem ao repeti-las, pois estas
passam a pertencê-la. Deste modo, cito:
108
“o diálogo construído é a transposição da fala de uma terceira pessoa enunciada
em um outro contexto discursivo para a interação em curso, com finalidade de
criar envolvimento entre falantes e ouvintes (Dantas:2000)”.
Ritmo, imagens, detalhes, figuras de linguagem, diálogo construído, todos estes
elementos estão em maior ou menor grau presentes na Poesia. Para Tannen, a linguagem
cotidiana é também poética. Assim como há poetas maravilhosos, há excelentes narradores,
os chamados narradores de alto-envolvimento.
No decorrer do evento de fala em análise, Renato e Vittorio se valem de algumas
estratégias para criar significados e envolvimento, na co-construção das interações desta
entrevista, como veremos a seguir.
5.2.1. O contar histórias
No exemplo abaixo, Renato nos narra a história sobre a invasão de um moinho que tinha
sido fechado pelo governo, por ele e por sua mãe, a fim de moer o trigo para alimentar a
família durante o período de guerra.
Fragmento 1:
768 Renato Ma, naquela época?
no caso passou por guerra também, enfim
passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto era um garoto
novo. O governo fechou tutto que moinho
ahã
duas horas da madrugada eu puxando o burrinho minha mãe carregou o
bolo de saco de trigo pra botar ele lá, compreendeu? nós andamos daqui até
o batalhão a pé, carregando o burrinho, uma senhora e meu pai ficando
aqui.
769 Sandra
770 Renato
771 Sandra
772 Renato
É importante ressaltar que a história aqui relatada se constitui numa micro-narrativa, mas
que possui os elementos estruturais fundamentais de narrativa, de acordo com a perspectiva
laboviana.
Orientação: “naquela época?”; “eu era um garoto um garoto novo”; “duas horas da
madrugada”
Ações complicadoras: “o governo fechou tutto que moinho”, “eu puxando o
109
burrinho minha mãe carregou o saco de trigo pra botar ele lá”, “carregando o burrinho”
Avaliação: “passou por guerra”, “nós andamos daqui até o batalhão a pé”, “uma
senhora e meu pai ficando aqui”.
Durante a entrevista Renato produz outros relatos sobre o fato de seu pai ter deixado
sua mãe, uma mulher jovem e bonita, sozinha para cuidar dos filhos.
Renato constrói essa micro-narrativa cujo ponto (vide turno 772), pode ser o de
mostrar que sua mãe era “uma senhora e meu pai ficando aqui” (no Brasil) de modo que
pode ser interpretado de duas formas: a) o inconformismo de Renato com essa situação,
como vemos em outros momentos da entrevista e b) em uma instância mais ampla, o
sacrifício que os pais são capazes de fazer por seus filhos.
Afinal, a mãe fazia um enorme trajeto carregando um saco para conseguir alimentar
seus filhos, porque os amava e queria assegurar-lhes a subsistência, além do pai ter
emigrado para o Brasil para assegurar uma vida mais digna e o dote das filhas.
O conflito experimentado por Renato, no que diz respeito ao pai é gerado por sua
ausência e abandono de sua mãe como mulher, mas ele, assim como sua esposa, em alguns
momentos da entrevista, afirma seu bom caráter, sua vida de labuta e assinala o fato de seu
pai “cumprir com suas obrigações” ao enviar periodicamente dinheiro e sempre que
possível passar alguns meses na Itália, bem como o fato de retornar no fim da vida para
Itália para viver ao lado da esposa já que sua missão de criar os filhos tinha sido cumprida.
Vittorio também utiliza o contar história durante seu relato. Na sua narrativa
podemos perceber uma forte ligação entre ele, seu avô, fundador da fábrica que se tornaria
conhecida como Del Fiore, mas que originalmente carregava o nome da família Mandorla,
seu tio e a empresa na qual trabalhou por quase toda a vida.
O trecho a seguir esclarece que seu avô emigrou para o Brasil logo nas primeiras
levas de imigrantes, no final do século XIX, mesmo período no qual chegou a ferrovia a
Barra do Piraí e, em contraste com a agitação que o comércio vivenciava em razão do
entroncamento ferroviário, havia as readaptações pelas quais passavam as fazendas de café
da região por causa da abolição da escravatura.
Fragmento 2
110
113 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?
114 Vittorio O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos e
setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e noventa
e sete.
115 Alessandro Ele veio então pra Barra do Piraí?
116 Vittorio É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo com vinte
e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras do navio pra
chegar com um trocadinho aqui.
Ele era analfabeto... você vê que coisa bonita o avô que era analfabeto
que montou a Del Fiore o outro que era que falava latim, então tem os
dois extremos,uma coisa bonita, né.
E que ano, que ano que ele veio?
Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e noventa
e sete
117
118
Alessandro
Vittorio
119 Alessandro Desceu aonde?
120 Vittorio Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o
endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.
121 Sandra Hum-hum.
122 Vittorio Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem nada,
tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se conheceram
no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te levar lá, mas eu tenho
que trabalhar, mas no final do meu trabalho”... Então ele passou o dia
todo entregando pão junto com ele...
Notem que é Alessandro, o filho primogênito que introduz a questão de quando o
avô teria vindo para cá, durante o breve tempo em que participa da entrevista, Alessandro
dá sinais de conhecer essa histórias, as histórias de família, como apontado na introdução,
muitas vezes o primogênito age como um griot, um mantenedor das histórias de família,
assim como Alessandro, Vittorio, o pai, também é primogênito e além disso, foi durante
muito tempo o diretor de marketing da empresa, que era “uma grande família”. Portanto, a
história acima relatada não é apenas a história da família Mandorla, nome fictício como
todos nessa pesquisa, a exceção do meu, mas da empresa Mandorla S.A. que se torna Del
Fiore e cujo nome, é referência na cidade de Barra do Piraí, onde os habitantes pronunciam
o nome Mandorla com certa intimidade, como se fizessem parte dessa família que projetou
o nome da cidade pelo Brasil por meio de seus produtos e da propaganda em torno desses.
Outra estratégia utilizada mais por Renato do que por Vittorio é a repetição, sendo
assim, a seguir, analiso possíveis funções para o uso de repetição.
5.2.2. – O Uso de repetições
111
Tannen (1989) também nos mostra que a fala oral possui muitos elementos da
poesia. Renato e Vittorio, em suas falas confirmam a tese da autora, pois, em vários
momentos de seu relato, podemos notar uma organização, por meio de estratégias de
envolvimento, que evocam uma estética poética. Além, de em um olhar sutil, na fala, a
repetição pode se fazer presente, de um modo mais amplo, na memória, por pessoas que
utilizam o ritmo, como no caso dos músicos ou o raciocínio matemático, como no de
comerciantes.
Tannen (1989), por sua vez, ao focalizar o caráter criativo da repetição, a considera
uma das estratégias mais importantes para criar envolvimento por possuir diversas formas e
funções, dentre as quais:
a) intensificação do significado - ao repetir um padrão rítmico o ouvinte poderá, além de
ecoar o padrão proferido pelo falante, transformar o significado deste padrão, pois ao
repetir, ele estará utilizando este recurso segundo sua própria criatividade;
b) esclarecimento de significado - quando o falante usa a repetição como recurso para
diminuir o ritmo da interação, a fim de ganhar tempo para formular melhor um enunciado
ou resolver uma questão;
c) manutenção da interlocução - a interlocução pode ser mantida pelos interlocutores
quanto estes constroem uma interlocução longa com poucas palavras ou idéias conectadas
por meio da repetição;
d) ratificação do ouvinte - o ouvinte confirma a argumentação do falante repetindo uma
palavra ou um enunciado proferido anteriormente pelo falante;
e) Humor - a repetição com uma pequena variação torna-se um grande recurso para obter-
se humor em uma interação.
Renato ao contar-nos sobre sua trajetória de vida utiliza algumas estratégias de
envolvimento porém, no momento, me aterei à análise das repetições, dos seguintes
fragmentos, destacadas em negrito.
a) Intensificação do significado
Fragmento 3:
112
642 Renato Do Paula Mattos ai arranjei um amigo meu que se chama A. Naquela época
trabalhava de alfaiate, o A., tinha o A.o. um cozinhava, um lavava os
pratos, um apanhava a água na bica de noite
No fragmento 3, o narrador faz uso da repetição do artigo indefinido um, que
reforça a idéia de divisão de tarefas entre os amigos que dividiam o quarto onde moravam
na rua Paula Matos, segundo palavras do entrevistado e de sua esposa, o local era
reconhecido como reduto dos italianos na década de ´50.
Além de trabalhadores os italianos, no Brasil, são conhecidos por pela ligação com a
cultura, teatro, literatura e bel canto. No fragmento abaixo, o seu gosto por cantar é
enfatizado por Vittorio por meio da repetição do verbo cantar no imperfeito.
Fragmento 4
195 Vittorio E o pessoal começava, cantoria e eu gostava de cantar, cantava Trazia o
microfone e cantava aquelas coisas bonitas...
O uso do verbo no imperfeito serve para criar uma imagem relacional, com os
personagens do tempo passado, cria uma atmosfera para o ouvinte, fazendo com que ele
monte uma imagem, um cenário na cabeça. A repetição enfatiza o gosto com o qual
Vittorio executa a ação. O fato de se referir à ação no passado não significa que ele não
mais a execute. Ele continua cantando em eventos, como pude presenciar no casamento de
seu filho, que seguiu os passos de seu pai também nesse aspecto, só não canta mais com
aquelas pessoas que pertenciam à esfera de sua vida empresarial.
b) Esclarecimento de significado
Fragmento 5
461 Renato cabeça no lugar. o amor existe. engano existe também, tristeza existe
também, então olha aqui
Fragmento 6
487 Renato mesma coisa. Existe O amor, existe a sinceridade, existe ( ) hoje não
podemos comprar isso aqui, hoje não podemos esse
113
chapéu,compreendeu? não é a briga a discussão. Nunca briguei Nunca
discuti, nem um Nem outro. Nunca bati no meu filho
A repetição na fala de Renato geralmente ocorre grupos de três, como podemos
observar acima, tanto nas construções com o verbo existir na terceira pessoa do presente do
indicativo como nas com o advérbio nunca.
A fim de facilitar a análise dispus um após o outro os fragmentos 5 e 6, que se
referem respectivamente aos turnos 461 e 487.
Se adotarmos a diagramação baseada em Tannen (1989) e Bastos (1992 e 1993)
para a apresentação da transcrição poderemos visualizar melhor a repetições e a
aproximação de um padrão rítmico que se apresenta na fala de Renato.
(5.1)
461 o amor existe
engano existe também
tristeza existe também
(6.1)
487 O amor existe,
existe a sinceridade,
existe ( )
hoje não podemos comprar isso aqui,
hoje não podemos esse chapéu, compreendeu?
Segundo Labov, a avaliação marca ponto importante na fala, dá força, valoriza a
colocação (apud: Cabral:1992). Os enunciados “hoje não podemos comprar isso aqui” e
“hoje não podemos comprar esse chapéu, compreendeu” integra uma avaliação e funciona
como explicação para o vocábulo intelegível que compõe a repetição estruturada com o
verbo existir que, a partir desses enunciados e do contexto que se refere ao casamento
podemos preencher esse espaço com vocábulos tais como: compreensão, acordo, diálogo.
Assim como, seguida da asserção “não é briga, a discussão”, e intercalada pela conjunção
nem, surge a repetição do advérbio nunca que, por meio de repetição de formas de negação
ou exclusão, reforça e esclarece o fato de Renato não brigar com a mulher nem bater nos
114
filhos.
(6.2)
487 não é a briga
a discussão
nunca briguei
nunca discuti,
nem um nem outro
nunca bati no meu filho
Talvez um exemplo mais claro do uso da repetição como explicação esteja no
próximo fragmento da fala de Vittorio, no qual ele esclarece o ano de falecimento de seu
avô e sua idade, ao elaborar uma conta. Vejamos:
Fragmento 7
156 Vittorio Foi representante da Brahma e era correspondente do Banco do Brasil, ele era
uma pessoa muito respeitada e tal, e era correspondente do Banco do Brasil,
até a primeira agência passou pelas mãos dele. E aí o tem pó foi passando,
chegamos aí aos anos cinqüenta. Eu já cheguei em quarenta e nove, convivi com
meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e um de abril de mil
novecentos e cinqüenta e um, ele tinha nascido em setenta e dois, então ele
estava com setenta e nove Anos. Vinte e oito com cinqüenta e um, é setenta e
nove anos, faleceu em cinqüenta e um. Ele faleceu o Cesar tinha vinte e tantos
anos na época, assumindo as empresas ( )era fim de ano, eu estava
estudando um bocado de coisas, fazendo o terceiro ano ginasial na escola Nilo
Peçanha, fui pro Rio fiz ( ) São José, na Usina...
Nesse fragmento, em um primeiro momento Vittorio usa a repetição para enfatizar a
importância do avô para a comunidade e para ele, afinal ele teve a oportunidade de
conviver por alguns anos com esse homem mítico.
Em um segundo momento a repetição da data e da idade do avô como é feita sugere
uma explicação baseada no cálculo elaborado por meu entrevistado.
Além das funções já vistas, a repetição também serve para a manutenção da
interlocução como veremos a seguir.
c) Manutenção da interlocução
115
Fragmento 8
157 Renato O filho de patrício, eles lá não tem muita Não tem muita ( ) Muita
ligação com as coisas
No trecho acima, Renato para não perder o turno acrescenta o advérbio de ligação
não à primeira proposição e retoma o advérbio de intensidade muita, utilizado na segunda
proposição para manter a conversação e ganhar tempo para estruturar a frase que lhe fugia
“muita ligação com as coisas”.
Este recurso é muito utilizado quando queremos falar algo que não nos vem a mente
e queremos manter a conexão com nosso interlocutor, pois uma pausa poderia fazer com
que nosso interlocutor tomasse o turno e mudasse o argumento.
Interessante notar o vocábulo patrício, empregado por Renato, posto que esse
vocábulo é característico do falar lusitano, o que indica o contato de Renato e seu
aprendizado da língua portuguesa em contato com imigrantes portugueses. Como apontado
pelo próprio entrevistado, ele teve poucos anos de instrução formal na Itália e não
continuou seus estudos no Brasil, diferentemente de Vitorio, como podemos ver no
próximo trecho.
Fragmento 9:
207 Vittorio Pra eu poder estudar aqui no Brasil, temos que voltar aos anos cinqüenta, eu
tive que fazer o que chamava na época exame de adaptação. Todo
estrangeiro pra poder continuar os estudos aqui tinha que fazer exame de
geografia do Brasil, história do Brasil e português, é... eu tinha estudado
geografia, estudava geografia mundial, tudo bem. Estudava história
mundial, mas você tem história do país, geografia do país...
Hum-hum.
Então tinha que fazer essas três matérias: geografia, história e
português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e continuar e eu
fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo pra Barra, o alto da Boa Vista
estava fechado ali, então eu tinha que ficar na casa do sogro do meu tio,
fiquei uns quinze dias na casa dele pra fazer o exame.
208 Sandra
209 Vittorio
Notem que após minha manifestação de estar-lhe seguindo, Vittorio retoma o
assunto ressumindo o tópico tratado no turno 203, exames necessários para continuação de
seus estudos no Brasil, ao repetir os vocábulos geografia e história, garantindo a
116
manutenção de seu turno, além de enfatizar as matérias necessárias para o exame de
adaptação.
d) Ratificação do ouvinte
Ao retomarmos o Fragmento 1, podemos também notar que eu e Renato co-
construímos, por meio de uma repetição, a coda, tendo esta, segundo uma perspectiva
laboviana, função avaliativa. Vejamos em negrito:
(1.1)
769 Sandra no caso passou por guerra também, enfim
770 Renato passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto
Notem que nesta co-construção, ao retomar minha fala, Renato ratifica a minha
asserção estabelecendo deste modo uma outra função para esta repetição, a saber: a função
de ratificação do ouvinte (Tannen:1989). Note-se ainda que a concordância em relação à
avaliação é condição para a continuação da interação (Linde, 1997).
Fragmento 10
181 Vittorio A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV Globo muito meu
amigo...
182 Helena Gerente comercial.
183 Vittorio É gerente comercial, ia lá pra passar o final de semana,
Nesse fragmento, Helena por meio da repetição do vocábulo gerente, seguida da
extensão comercial, explica e ratifica Vittorio, que por sua vez ratifica a fala da esposa
repetindo, após interjeição é, toda a denominação gerente comercial.
Talvez uma das funções mais criativas do uso da repetição, seja a de imprimir
humor, muitas vezes estabelecendo a ironia.
e) Imprimindo Humor
Fragmento 11
413 Renato O que chama vira-lata, u, u. O cachorro que (imitação de Latido) (risos)
117
então falou: - desce aqui que tem família em São Cristóvão. Ele falou nãaao
o destino me mandou ir pra Argentina eu tenho que ir pra Argentina e
ficou seis meses na Argentina e voltou pro Brasil.
414 Sandra Que o irmão dele já tava no Rio ( risos)
415 Renato Já tava aqui.
Por sabermos que seu pai “fez a América” no Brasil, primeiro o relato de ele ter ido
a Argentina, nos causa espanto. Para reforçar a insistência do pai em seguir seu destino, ou
seja, ir para o país que inicialmente lhe foi designado, Renato repete por três vezes,
somente no turno 413, o vocábulo Argentina.
O humor estabelece-se por meio da resistência do pai de Renato em seguir os
conselhos do irmão e descer no Brasil e o fato de após tanto insistir no destino Argentina, lá
permanecer por apenas seis meses, retornando ao Brasil, onde se estabelece e consegue
prover o sustento da família.
A seguir, mais uma vez Renato estabelece a função de humor para Repetição, dessa
vez com o vocábulo América.
Fragmento 12
583 Renato Então a mulher esperava três ou quatro anos ele chegar da América,
América América! Alguns botavam dente de ouro
A grandiosidade do feito de emigrar, alimentada pela ilusão de “fare la Merica”, é
desmontada por Renato por meio da repetição do vocábulo América por três vezes, como
se desse vivas, estabelecendo a ironia ao inseri-la logo após a proposição iniciada pelo
advérbio então e na qual aponta a longa espera das esposas pelo retorno de seus maridos e
o longo período pelo qual elas deveriam desempenhar os papéis de homem e mulher da
casa.
Interessante notar que além de estabelecer o humor, imprimir ritmo a narrativa, a
repetição também evoca uma imagem formada pelo ideal de fare la Merica, imagem essa
construída e desconstruída pelo narrador ao longo de sua entrevista, pois que apresenta não
só as maravilhas do Brasil, mas também o sofrimento do imigrante ao se deparar com
novos costumes e afastar-se da família.
118
Já Vittorio, utiliza-se da repetição para estabelecer o humor com seu próprio tio
que, segundo ele, por ser químico, tratava-se de uma pessoa muito metódica e no afã de
organizar o espaço de trabalho acaba por inutilizar todo o maquinário para a fabricação de
macarrão, carro-chefe da fábrica.
Fragmento 13
146 Vittorio O Cesar era perfeccionista, aí ele chegou e começou a mexer uma porção de
coisas, chegou ao macarrão ( ) o piso tinha cedido, o concreto, então ele
resolveu fazer uma coisa bem Feita. Tirou as máquinas, botou o piso no
nível, botou as máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou e
nunca mais a fábrica de massas funcionou nunca mais conseguiu fazer
macarrão, porque as máquinas tinham ganho as formas do piso que foi
cedendo, e elas foram se acomodando quando botou tudo no prumo não
teve jeito, e ficou pra trás a fábrica de macarrão.
Além de imprimir ritmo, no fragmento acima a repetição estabelece humor,
quando após várias ações descritas no pretérito perfeito referindo-se a algo positivo, ligar,
arrumar seguem-se as duas frases:
(13)
e nunca mais a fábrica de massas funcionou
nunca mais conseguiu fazer macarrão
Imaginem uma fábrica de massas que não consegue mais fabricar macarrão, na
repetição e hipérbole jaz a ironia dessa asserção.
5.2.3. O uso de imagens
Bosi (1979), ao comentar sobre a teoria psicossocial de Halbwachs nos mostra que:
“Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória
não é um sonho é trabalho. [...] Halbwachs amarra a memória da pessoa à
memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória
coletiva da sociedade. (Bosi,1979:55)”
Já para Tannen (1989), o uso de imagens descritas ou sugeridas podem criar
119
envolvimento em uma interação, assim como detalhes específicos podem desencadear
memórias que despertam emoções.
Tannen (ibidem) nos mostra como as imagens possuem poder em comunicar
significados e emoções por meio da evocação de cenas, especialmente no que diz respeito
ao papel do detalhe, ou seja, ao fornecer detalhes o falante faz com que o ouvinte imagine
cenas e situações, objetos, idéias e emoções, criando um maior envolvimento e imprimindo
dramaticidade ao relato.
Sendo assim, vejamos como Renato no fragmento abaixo relata a chegada de seu
navio ao Rio de Janeiro.
Fragmento 14
62 Renato Aquilo, aquilo, foi. Me deixou a maior lembrança do mundo! embarquei
vinte, trinta, vinte e nove de julho! Desembarquei julho, vinte e um
63 Sandra Hã, hã
64 Renato Na madrugaDA, vou falar português, ( ) torto, como meu italiano. ( ) o
Cristo redentor com o braço aberto, porque o Marconi. Tinha dato a luce
65 Sandra ahã
66 Renato Quando cheguei lá
67 Sandra Quando chegou. Dia viiinte e nove..?
68 Renato Cheguei dia, vinte e um
69 Sandra Vinte um de julho
70 Renato De julho
71 Sandra De que ano?
72 Renato Mille novecentos e quarenta e nove
73 Sandra Quarenta e nove
74 Renato Quarenta e nove. A primeira lembrança é aquilo que não me) esqueço.
Um outro patrício, que que ( ) (.) meu pai era rientrato. Que vim com o
meu pai pra cá era um rapazi novo. (da Itália. Fui pra Genova, de
Genova pro Rio de Janeiro. Fui pro porto. ma quando chegamos lá de
madrugaDA! Dia vinte e um, de de julho! (..) gritou. Nós tamo no Rio de
Janeiro! Chegou um patrício e gritou. Ó tem o Cristo Redento!
Levantei (.) levantei, tirei o pijama. Dormíamos em cima, no navio. A, o
Cristo redentor de braços abertos sobre a pedra. Fiquei encantado com
aquilo (..) mas passaram cinqüenta e Poucos anos. Sempre comprava o
cartão, cartão. Que lá na minha terra se chama cartolina. Cartolina. Do
cristo redentor
Retomo a Tannen ao reinterar que “detalhes específicos desencadeiam memórias
que desencadeiam emoções”. Chamo a atenção para o fato de Renato se comover ao
mostrar o poster em sua sala e narrar a primeira vez que viu a estátua do Cristo Redentor
ainda no navio, ao aproximar-se da cidade do Rio de Janeiro, onde daria início a uma nova
120
vida.
Neste fragmento, o narrador utiliza-se de detalhes para construir seu relato. Renato,
para explicar a existência do pôster do Cristo Redentor em sua sala ao lado do pôster de sua
cidade natal, nos fala sobre o retorno de seu pai, no qual decide levar seu filho, Renato,
para o Brasil, da sua ida até o porto de Gênova, da data de partida e de chegada. Também
nos fala que durante a madrugada um conterrâneo grita do tombadilho do navio “Ó tem o
Cristo Redentor”. Imediatamente esse relato me transporta para diversas imagens de
imigrantes retratados em filmes ao se aproximarem à terra, mais especificamente à
passagem do romance de Barrico, que teve uma versão cinematográfica, na qual a
personagem principal, Millenovecento diz que sempre há um que primeiro avista a estátua
da liberdade, nesse caso, o Cristo Redentor.
Outro detalhe que contribui para a montagem do cenário é o fato de Renato levantar,
tirar o pijama e declarar que dormiam em cima do navio, detalhe importante para
compormos a cena de sua chegada e o fato de posteriormente, em outro momento da
narrativa, Renato declarar que “viajavam como animais”, tecendo bem as condições de
viagem e o modo como emigrou.
Ao dizer: “a primeira lembraça é aquilo que não me esqueço”, Renato chama a
atenção de seus interlocutores para o que irá relatar, pois isto faz parte de suas lembranças,
suas memórias. Ele cria uma espécie de moldura para o que irá relatar.
O que Renato dirá a seguir serão fatos referentes ao seu passado que estavam sendo
ativados naquele momento. Este exercício de “ativação” da memória não cria somente
envolvimento da parte do falante, mas dá também uma impressão de verossimilhança ao
ouvinte (cf. Tannen, 1989:141).
Além do uso da imagem, para imprimir dramaticidade a sua fala, Renato utiliza-se
do diálogo construído, exemplo a seguir em negrito:
121
(14.1)
Chegou um patrício e gritou. “Ó tem o Cristo Redento!”
Esse tipo de recurso dá a fala do narrador um tom de veracidade, além de imprimir
dinamicidade.
5.2.4. O uso de diálogo construído
Renato imprime dramaticidade no seu discurso utilizando o recurso denominado
diálogo construído, termo proposto por Tannen (1989) para marcar a criatividade do falante
ao utilizar-se da fala de uma outra pessoas ou de sua própria fala em um outro momento,
como no caso anteriormente apresentado. Para a autora a conceituação tradicional de fala
relatada, discurso direto/indireto ou citação não demonstram esta importante característica.
No exemplo a seguir Renato nos conta como eram as habitações por onde morou no
início de sua vida no Brasil
Fragmento 15
632 Renato Lá sabia da vida dos outros, sabia de tudo. tinha o banheiro coletivo. tinha
que fazer fila, espera que vou io. O primeiro saia espera mais um mocadinho
633 Maria Ele comeu o pão que o diabo amassou nessa época
634 Renato Bom, isso passou porque eu não vou fazer isso não “eu vou arranjar outro,
outro negócio”. Um dia um sujeito ordinário trouxe uma mundana, uma
vagabunda que todo mundo ali escutou ahhh. O patrício, o outro compadre
falou “ela quer fazer xixi leva ela porta afora”, eles brigaram com o outro
Patrício então aconteceu uma coisa, lá no Catumbi em frente a S. tinha uma
igreja bonita ( ) Nazaré então disse a S.o. minha mãe tinha batizado uma filha
dele. Casou por correspondência Sem conhecer o marido, por retrato, ho
detto “compadre tu pode dormir aqui que te arranjo uma casa, uma
vaga” nos primeiros anos do lado da minha cama tinha um português “e o
banheiro compadre?” “O banheiro é um sacrifício” ha detto. “tem só, um
só banheiro se você quiser ir e outra pessoa também”. Saí de um inferno e
caí em outro inferno (risos) mas não falou isso. Falou Assim: “tem que
apanhar acqua, no balde, na caçamba”. Falou Assim o português: “lá
embaixo tem uma escada, tem que jogar água quando fizer a
necessidade, senão outro reclama”. Se estiver falando mentira que Deus me
cegue. Tinha que ficar assim ó, era só um duto de cimento. chegava lá e bla
bla bla.
um bonito dia de noite escutei um sujeito que tossia: “cof cof.” do meu lado
tinha um rapaz que dormia quando de manhã. Esse camarada com uma folha
de jornal toda cheia de sangue
122
635 Sandra Tuberculose?
636 Renato Tuberculose. Quando cheguei um compadre disse “tem um trinta e três”,
não sabia o que era esse trinta e três ha ha ha
637 Sandra Trinta e três era tuberculoso?
638 Renato “Un po’ di tísica” ha detto. Eu disse: “compadre amanhã vou sair daqui”.
“Não”, disse “que te arranjo um lugar perto da janela”, mas eu saí e fui
morar no grajaú, na rua Dona A. ( )
Quartos sem privacidade, pois na verdade alugava-se uma vaga em um quarto cujas
camas eram dispostas lado a lado; um único banheiro para todos os ocupantes da pensão,
sem descarga, um companheiro com tuberculose. Diante dessas condições Renato decide
mudar-se para o Grajaú outro bairro no qual durante a década de cinqüenta os italianos se
instalaram.
No fragmento quinze podemos notar que Renato utiliza amplamente o recurso
denominado por Tannen de diálogo construído, assinalados em negrito e dispostos entre
aspas, ora para citar uma frase sua como, por exemplo, em:
(15.1)
Eu disse: “compadre amanhã vou sair daqui”
Ora referindo-se a fala do amigo que arrumara-lhe a vaga:
(15.2)
“Não”, disse “que te arranjo um lugar perto da janela”
Também Vittorio se vale do diálogo construído ao relatar sua história de vida
e, talvez por ter tido uma das maiores empresas de Barra do Piraí e ter o nome de sua
família ligado a essa empresa, em grande parte de seu relato nos conta fatos relativos
a seu trabalho. Trabalho e família se fundem a ponto de ele concordar comigo na
metáfora de que a Del Fiore era uma grande família, como veremos a seguir.
Fragmento 16
457 Vittorio Depois ( ) virou pra mim e disse: “Doutor Vittorio o senhor não tem
juízo”. E eu; “Por quê?” Ele: “Porque enquanto o senhor tinha Del
Fiore, nem aparecia na rua, agora o senhor vive pelas esquinas, o
senhor se arrisca”. E falei: “Não meu filho, quem não deve não teme”.
Eu nunca tive ninguém que me xingasse na rua, pelo contrário, teve fatos
123
que me marcaram gente com lágrimas nos olhos: “se voltar eu trabalho de
graça pro senhor no início”. Coisa bonita, né.
Sandra [Bonita... Era uma família]
458 Vittorio A Del Fiore era uma grande família.
Interessante notar, que em um dos diálogos construídos, Vittorio cita o
provérbio “quem não deve não teme”. Tanto ele como Renato, ao utilizarem o
diálogo construído citam provérbios, que são expressões de visão cultural de uma
sociedade, alguns dos provérbios citados são em língua portuguesa, outros em
italiano e há também a tradução, por parte de Renato, de um provérbio italiano para o
português.
Fragmento 17
489 Vittorio E os provérbios italianos, são maravilhosos. Quantos... tem um então que é
fantástico! Papai sempre gostava... Um dizia assim: “se ognuno in fronte
scritto portasse i propri affanni ahimé quanti, che invidia fan, farebbero
pietà”. É difícil até de Traduzir. Se ognuno in fronte scritto portasse i propri
affanni,na própria cara, ahimé quanti, quando... Olha que bonito isso.
Muita gente que nos faz inveja...
490 Sandra É aquela coisa, todo mundo tem seus problemas, alguns não demonstram...
Vitório diz ser um apaixonado pela língua portuguesa, mas nem por isso deixa
de admirar a língua italiana, como nos relata, transita muito bem pelos dois mundos,
na Itália, mimetiza-se aos outros italianos, no Brasil, não teria nem sotaque ao falar
português, ou melhor, revendica para si um sotaque carioca.
Enquanto Vittorio declara seu amor à língua portuguesa e às suas duas
pátrias, Renato nos fala de um ditado sobre o amor que lhe dizia sua avó,
provavelmente em calabrês e por ele traduzido.
Fragmento 18
465 Renato Não ( ) mas pra me casar tem que ser com uma pessoa que eu gosto. Meu
avô dizia, a mãe de minha mãe de noventa e poucos anos “ama quem te
ama. Responda a quem te chama”
Vimos que o diálogo construído serve para referir-se a fala de si mesmo ou de
outrem, no caso dos provérbios se refeririam à fala de uma comunidade, pois, como dito
124
anteriormente, espelham a identidade sócio-cultural de uma comunidade. Afinal, assim
como as identidades nos discursos são construídas, a partir de recursos como os vistos
nesse capítulo os provérbios servem como exemplos de visão de mundo dos integrantes de
determinada comunidade.
Além dos recursos até o momento exemplificados, temos no fragmento dois
exemplo do recurso denominado por Falk (1979) dueto conversacional, como veremos a
seguir.
5.2.5. O dueto conversacional
Notem o contar cooperativo de Alessandro e Vittorio, duas gerações do que Paul
Thompson denomina detentores das histórias de família.
(2.1)
113 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?
O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos e
setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e noventa e
sete.
Ele veio então pra Barra do Piraí?
É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo com
vinte e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras do navio
pra chegar com um trocadinho aqui. Ele era analfabeto... você vê que
coisa bonita o avô que era analfabeto que montou a Del Fiore o outro
que era que falava latim, então tem os dois extremos,uma coisa
bonita, né.
E que ano, que ano que ele veio?
Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e
noventa e sete
Desceu aonde?
Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o
endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.
Hum-hum.
Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem nada,
tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se conheceram
no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te levar lá, mas eu tenho
que trabalhar, mas no final do meu trabalho”... Então ele passou o dia
todo entregando pão junto com ele...
114 Vittorio
115 Alessandro
116 Vittorio
117 Alessandro
118 Vittorio
119 Alessandro
120 Vittorio
121 Sandra
122 Vittorio
125
Dantas (2000), cita Falk (1979:17) para conceituar dueto como “uma produção
conjunta de falantes, na qual estes se associam em um jogo conversacional através de um
mesmo objetivo comunicativo.”, ou seja, o dueto caracteriza-se pela participação de duas
pessoas ao introduzir novas informações a uma terceira pessoa.
Exatamente como durante um verdadeiro “bate-bola”, para usar uma metáfora
baseada em uma manifestação cultural tão querida de Vittorio e de grande parte de
brasileiros e italianos, o futebol, Alessandro propõe tópicos como que se guiando o pai na
explicação sobre a vinda de seu avô, história essa que faz parte da história familiar.
Interessante notar que durante essa co-construção entre pai e filho para me relatarem
a história da vinda do primeiro Mandorla ao Brasil e de sua fixação em Barra do Piraí,
Alessandro risca passar ao posto do entrevistador, em decorrência da quantidade de
perguntas direcionadas ao pai, enquanto eu me atenho somente a sinais paralingüísticos e
não verbais para demonstrar meu interesse pelo relato.
Para me explicarem os motivos da vinda do pai de Renato para o Brasil, ele Maria
também formam um dueto, como veremos a seguir:
Fragmento 19
538 Renato Aquele homem. Aquele homem com caráter já ( )
539 Maria Ele achava que ele veio pra cá pra poder melhorar a situação da
família lá e tudo que lá era guerra, né?
540 Renato Fazia dinheiro pra fazer a dote pras filhas
541 Sandra ahã
542 Maria é porque lá tinha que ter dote
543 Renato Dieci mila lire. ou me dá dieci mila lire ou não me caso. então não quer a
ela. como o meu caso
544 Sandra (risos)
545 Maria É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo
546 Renato Agora virou tutto. é tudo o contrário
547 Sandra ai em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a sua mãe. ficou
548 Maria ai voltou
549 Renato com as minhas duas irmãs, minhas irmãs casadas lá
550 Maria tinha netos lá que ele nem conhecia. Ele era mais apegado, viu nascer os
netos aqui, né? um tinha o nome dele o outro o da esposa dele
551 Renato aqui tem um costume, ( ) se vem donna tem que botar o nome da sua
mãe, tem que botar o nome dela. Do pai a mesma coisa
Então.
552 Maria Do nonno entendeu?
Sandra [ahã]
553 Renato É do nonno. Tudo
554 Maria
Renato Por isso minha filha chama R. C. de O. Dattero
[C.]
126
Diferente do dueto criado por Alessandro e Vittorio, Maria e Renato me explicam as
razões pelas quais o pai de Renato depois de ganhar a vida no Brasil, regressa para Itália.
No fragmento 19 atestamos um “vero e proprio Valser”, entre o casal. A harmonia
empregada pelos dois me deixam à vontade para fazer meus questionamentos o que não
quebra o ritmo de co-construção dos participantes.
A seguir traço algumas considerações sobre pontos em comum e diferenças das
identidades construídas por Renato e Vittorio.
5.3. Conexões e Desvios: As trajetórias de Renato e Vittorio
Neste subitem, analiso como os entrevistados estruturam suas narrativas para contar
suas trajetórias de vida, ou seja, como os diferentes aspectos da experiência da emigração
presentes nos relatos são organizados tendo-se em vista o trabalho de (re)construção das
identidades sociais. Além de como os narradores constroem suas experiências passadas
tendo em vista a sua perspectiva de presente, ou seja, estando já integrados e sendo atuais
membros da sociedade barrense e não simplesmente representantes da “colônia italiana” em
Barra do Piraí. Soma-se a isso o fato de ambos terem se casado com brasileiras, barrenses
de boa família.
O tópico família é muito importante para ambos, pois podemos perceber que a tem
como um bem, uma grande conquista. Porém, a experiência de casar-se com uma
professora, brasileira, de boa família, e com ela constituído família é vivenciada de modo
diverso.
Renato aponta para o preconceito que a colônia italiana, que pregava o casamento
entre membros da mesma, tinha para com os casamentos entre italianos e brasileiras
(turnos: 487, 463) e esclarece que seu casamento deu certo porque, como sua avó dizia,
escutou seu coração (turno 465). O curioso é que ao mesmo tempo, que diz ser tão
estrangeiro como ela (turno 487), Renato a enaltece dizendo nunca ter se decepcionado com
a esposa que sempre se comportou como verdadeira Luzzitana (turno 752,754), ou seja,
casou-se com uma brasileira, mas que se comporta tão bem como as italianas, seja por seu
127
comportamento ao receber pessoas em casa, seja pela perfeita execução dos pratos italianos
que aprendeu a fazer com Renato, pois que por ocasião de seu casamento não sabia
cozinhar (turno 807).
Já Vittorio não parece ter vivenciado esse preconceito, talvez por seu pai ter-se
casado com sua mãe que era filha de italianos, mas havia nascido no Brasil, ou seja, era
brasileira.
Vittorio, mostra orgulho de ter duas pátrias (turno 239) e atribui a esposa o caráter e
maturidade necessários para a manutenção de seu casamento nos primeiros anos (turno
366), período no qual comportava-se mal com a esposa, pois ao invés de atentar para suas
necessidades, agia em seu confronto com grosserias e estupidez (turno 366), marcando a si
próprio com o esteriótipo do machão.
Porém, cabe ressaltar que ambos vêem suas esposas como companheiras
importantes para os negócios da família. Maria, com sua profissão de professora garantia
estabilidade financeira (turno 479), na medida em que seu salário era algo certo, com o qual
o casal poderia contar, o que não ocorre com a profissão de comerciante do marido (turno
477), que depende das vendas. Além de receber bem as visitas, fazendo com que elas
sentissem-se em casa, como também o fazia Helena que ajudava o marido executivo
relacionando-se bem com seus clientes e suas esposas.
O traquejo social e a conduta de ambas são enfatizadas por Renato e Vittorio que,
cada um a seu modo, sinalizam a apreciação pelo sexo feminino e relativo sucesso com esse
público, além de trazerem à baila o tabu da virgindade.
Renato diz ser Maria, apesar de suas pernas bonitas e morenice (turno 688), a mais
feia dentre todas as suas namoradas, mas a da qual mais gosta e a mais recatada,
enfatizando ter levado meses para dar-lhe um simples beijo e que o fazia dormir em um
hotel, ao passo que outras o convidavam para dormir em suas casas. Como podemos ver a
seguir:
730 Renato ( ) namorada ( ) sabe por que? Meu pai era uma pessoa muito esquisito (.)
era muito sério, se namoravo uma filha de patrício “Vê lá o que que você
vai fazer, hã.” Como essa minha senhora era conhecida do meu tio que ( )
“Vê lá não deixa teu tio comcara grande não, hein?” compreendeu? As
mulheres me queriam
731 Sandra o senhor era bonito, me mostrou a foto
732 Renato hã?
128
733 Sandra o senhor já me mostrou a foto, de quando o senhor era novo
734 Renato hã?
735 Sandra o senhor me mostrou a foto, o senhor era bonito, né?
736 Renato é é e: aquela quantos anos eu tinha. Cheguei aqui com vinte e quatro, vinte
sete eu tinha, era novo, era novo, compreendeu? e ela é ciumenta
[cochichando, em tom de confidência] de todas as namoradas que namorei
ela era a mais feia, mas é a que eu mais gosto.
737 Sandra (risos)
738 Renato palavra de honra, te juro. palavra de honra, tu sabe o por quê? Eu não vou
dizer a sua pessoa porque ia ser um pouco pesado, mas quando você
gostava e a pessoa te convidava pra ir a casa naquela época, que falava de
verginità, que não era mais Virgem era babaca o homem
739 Sandra hum hum
740 Renato Eu só fui beijar ela depois de três, quatro, cinco, seis MESes demorada
741 Sandra (risos)
742 Renato e com posição social e tudo, namorei é que é uma delícia todo dia pegava o
bondinho, no largo das neves. Agora não sei mais, sabe o bondinho?
743 Sandra hum, hum, tem tem o bondinho ainda
744 Renato compreendeu? ( ) palavra de deus te juro que estou sendo sincero
745 Sandra ela fazia jogo duro (risos)
746 Renato ma no, ela era sincera
747 Sandra ahã
748 Renato está se passando isso, isso e isso comigo. Na minha casa tem isso isso e
isso. Você não pode dormir na minha casa, tem que dormir no hotel. Se
fosse outra “não pode dormir aqui” e tal Ahh pára com isso!
749 Sandra (risos)
750 Renato compreendeu? pra mim de todas as namoradas que tive eu amo essa. por
mim se ela morresse eu ia junto. nós somos assim ó assim ó (fazendo sinal
com as mãos de unha e carne). Não deixa morrer não amor. Não é por
interesse é pelo caráter (som de ônibus) tem um caráter permanente um
caráter de ( ) mas a mais feia é ela.
751 Sandra (risos) fica irritada, né? mas tem que ficar (risos)
752 Renato e nunca me deixou decepcionado quando vinha um patrício, ela sempre
pronta, uma vez veio um patrício, filho, sobrinho do meu irmão, meu primo
que mora em Itatiaia chama B. A., a mãe se chama E. é de Milão um
engenheiro telefonaram, mas como é que você engenheiro me telefona de
Milão? e o B. como é que você está se arranjando por ai? Aqui tem uma
Luzzitana! A Luzzitana era a mulher do Renato (com orgulho) porque ela já
teve em Itália, apanhou o costume, a minha prima lá: “é uma boa moça pros
filhos então minha mulher diz, vamos fazer aquilo”.
Após me perguntar se eu era casada, Vittorio inicia o tópico sobre virgindade, para
logo em seguida, talvez com o intuito de evitar uma gafe, apontar para o fato de alguns
homens optem por se casar virgem.
Inicialmente, diz não ser contrário para logo após reforçar a idéia de aproveitar a
juventude, deixando subentendido que ele não foi partidário de Cacá, o jogador de futebol
que, segundo divulgado pela mídia, que se casou virgem.
129
499 Vittorio É tem gente que casa virgem. Tem homem que casa virgem, mas tudo bem,
não tenho nada contra. Eu até tenho algo contra, que eu acho que eu tenho hoje
tranqüilidade com a minha mulher, porque o quê tinha de errado eu fiz quando
podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e triste porque não fez
na juventude o quê tinha que fazer. Tudo que você possa imaginar de errado eu
fiz. Hoje eu não sinto falta. O que tinha de ruim eu consertei... Um dia eu
cheguei no médico e ele falou: “Quê que você ta fazendo aqui?” E eu: Vim
pra você me operar. Ele: “O quê é isso? Operar o quê?” “Cálculo renal”. E aí
mostrei os exames pra ele, pra resolver logo.
Por sua vez, quando o assunto é a emigração Renato e Vittorio se aproximam no
que se refere às histórias de seu pai e avô, respectivamente, pois ambos eram analfabetos e
no Brasil conseguiram o sustento de seus filhos, sendo que o avô de Vittorio construiu um
verdadeiro império no ramo alimentício em Barra do Piraí, daí a diferença da vinda de
Vittorio para de Renato.
Vittorio, veio como o “príncipe-herdeiro”, sua mãe havia falecido poucos meses
após seu nascimento e após a guerra seu avô prometeu dar-lhe a parte da herança que cabia
a filha ao neto, caso esse viesse para o Brasil, morar com ele. Deste modo, aos 13 anos o
menino Vittorio embarca em um avião, uma verdadeira aventura, pois a aviação civil havia
começado há pouco tempo e a aeronave comportava apenas poucos passageiros, além de
enguiçar constantemente, o que contribuía para o caráter de aventura. Ao chegar em Barra
do Piraí, Vittorio teve professor particular de português e deu seguimento a seus estudos,
preparando se para assumir a gestão da empresa de se avô, coube-lhe os setores de vendas e
marketing, chegou a ter 120 vendedores e esteve à frente desses setores até a falência da
Del Fiore.
Deste modo, temos duas imagens da emigração. Enquanto Vittorio sozinho cruzava
os céus, pioneiro como faz questão de nos contar sobre seu avô, Renato com seu pai
singrava os mares, como animais, pois as condições dos navios eram péssimas e a viagem
longa.
Ao chegar ao Rio, aos 24 anos, Renato, cujo pai decidira trazê-lo consigo por causa
de sua profissão de alfaiate, estranha os costumes locais, se depara com a realidade das
pobres instalações para imigrantes e trabalha, trabalha, trabalha, não dando continuidade
130
aos estudos e aprendendo a língua portuguesa no convívio com imigrantes portugueses e
brasileiros.
Por pouco tempo desempenha o trabalho de alfaiate, pois percebe que não ganharia
muito dinheiro e passa a vender coisas, até, já morando em Barra do Piraí, montar um bar e
posteriormente cantinas em colégios da cidade.
Mais uma vez, o “fare la merica” toma o significado de constituir família e, por
meio de muito trabalho, garantir-lhe um teto, dar estudos aos filhos para que eles se
sustentem, enfim, mantê-la saudável. Sob esse aspecto ambos foram bem sucedidos.
A seguir teço as últimas considerações a respeito do estudo desenvolvido nessa
pesquisa.
TREM DAS ONZE
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã
Além disso mulher, tem outra coisa
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único, tenho minha casa prá olhar
Não posso ficar, não posso ficar...
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã
Além disso mulher, tem outra coisa
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único, tenho minha casa prá olhar
Não posso ficar, não posso ficar...
(Samba: Letra e Música de Adoniran Barbosa, 1965)
A PLATAFORMA: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, abordo questões que acredito nos interessam porque lidam com
discursos com os quais nos deparamos em nosso quotidiano. Lido com o mundo dos
seres humanos histórico e socialmente construídos com a linguagem como sistema
simbólico compartilhado e como uma prática social; com a construção narrativa e; com
a percepção de a forma como os seres humanos estão agindo no mundo pode decorrer
de ideologias presentes em seus discursos.
Ressalto que trabalho com narrativas contadas por membros-representantes de
uma comunidade italiana no sul fluminense que emigraram após a segunda guerra
mundial e cujos ancestrais vieram ao Brasil no final do século XIX ou início do século
XX, de acordo com as grandes levas de imigração, como visto no capítulo 3 e cujas
estórias de vida encontram-se nos anexos e foram por mim recontadas no capítulo 2, em
breve avô e pai, apesar de analfabetos, por meio do comércio, se estabeleceram, uns
acumulando maior riqueza do que os outros, mas todos bem sucedidos no que diz
respeito a fare la merica.
E, assim como seus ancestrais, também Renato e Vittorio fanno la merica , se a
lermos como constituir família e dar aos membros destas possibilidade de uma vida
melhor, fazendo com que seus filhos estudem, que tenham um lar e trabalho, bem como
o fazem Renato e Vittorio.
Os narradores descrevem o período do pós-guerra como de miséria para o país,
mas encontram na família o esteio e sentem a falta desse berço ao afastarem-se, até
constituir a sua própria família e assegurar-lhes um lar como refúgio, reflexo de si e
conexão com o mundo exterior, como vimos no capítulo 4.
O processo de emigração, como visto foi diferente para ambos, posto que um
vinha de avião, um luxo para a época e o outro como um animal em um navio. De certa
forma o caráter de aventura os une nessa experiência.
A análise das narrativas mostra que o processo de reconstrução das identidades
foi complexo, já que passaram por vários estágios antes de se tornarem membros da
comunidade barrense.
Certas experiências vividas pelos narradores, segundo suas narrativas, os
levaram, de forma gradativa, a mudanças de paradigmas na condução de suas
identidades sociais.
133
Nesta pesquisa os entrevistados constroem suas narrativas de modo a mostrar
que a reconstrução de suas identidades sociais se deu por meio do contato com os
costumes brasileiros e com a língua portuguesa, contato esse ampliado ao se casarem
com brasileiras e terem filhos brasileiros. Para que pudessem trabalhar, e no caso de
Vittorio também estudar, precisaram aprender a língua portuguesa, ao menos tanto
quanto os conhecimentos de língua italiana, que no caso de eles era uma segunda língua,
dado que a língua materna era em um caso o dialeto da Calábria e no outro da
Campagna.
Na análise, também procurei demonstrar como os narradores fazem uso de
algumas estratégias de envolvimento para construírem as suas narrativas de história de
vida e ratificarem suas identidades. Dentre essas estratégias se destacam o uso de
diálogo construído, o de repetições e imagens e, o próprio discurso narrativo, o contar
histórias, como uma tática que implica a co-construção e, confere ao ouvinte um papel
de colaborador ativo na construção de sua estória de vida. Nessas interações discursivas,
formaram-se “duetos conversacionais” (Falk: 1979), caracterizados pelo contar
conjunto, cooperativo entre a entrevistadora, o entrevistado e seus familiares.
Deste modo, por meio dos temas escolhidos pelo entrevistado para narrar suas
histórias de vida e pelas estratégias de envolvimento por eles utilizadas, pudemos atestar
as diferentes dimensões da identidade dos entrevistados.
Evidencio que para se adequarem ao global e o local, Renato e Vittorio,
construíram diversas identidades, ao se definirem implícita ou explicitamente como
calabrês, salernitano, italiano, presença italiana no Brasil.
Assim como as identidades, a compreensão do espaço, para o indivíduo que
vivenciam as tensões do mundo atual, posto que os fenômenos da globalização os
coloca cada vez mais em contato com outras realidades, com outros indivíduos fazendo
com que eles se construam e re-construam cada vez mais, fato esse que também se
reflete no seu modo de habitar, como visto no capítulo 4.
O habitar doméstico segundo a forma como ele é percebido e vivenciado pelos
habitantes, esse habitar é tão amplo quanto a própria vida de seus indivíduos. Não
ocorre isoladamente, ou independentemente das interferências externas, as quais não
apenas permeiam a vida doméstica, mas a enriquecem, tornando-se privadas e
interferindo nos sentidos que damos a ela. Talvez por isso, possamos compreender a
134
razão pela qual as pessoas ao falarem de suas casas, tragam à tona não apenas suas
relações formais com o espaço doméstico, mas a própria maneira de encarar a vida.
Minha língua minha pátria, ao analisarmos o discurso, podemos não só
compreender a identidade, mas suas ideologias, seu modo de viver, que são retratados
quer a partir da linguagem quer a partir da materialização de seus desejos e formas de se
relacionar com o espaço privado, o espaço eleito para ser seu para retratar seu eu, para
servir de refúgio e local de reflexão. Extensão visível do seu íntimo e de suas relações
com o mundo exterior.
Acredito que essa pesquisa contribua para que o barrense lance um novo olhar
para si e para sua cidade e espero que outras pesquisas sejam realizadas no intuito de
preservar a memória das diversas comunidades que se encontram no Município de Barra
do Piraí e municípios vizinhos que formam o roteiro denominado Vale do Café,
situados no sul fluminense.
Com Licença Poética
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir. Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos (dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
(Adélia Prado In: http://www.releituras.com/aprado_bio.asp)
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ANEXOS
CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO
… pausa não medida
(2.3) pausa medida
. entonação descendente ou final de elocução
? entonação ascendente
, entonação de continuidade
- parada súbita
= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas
sublinhado ênfase
MAIÚSCULA fala em voz alta ou muita ênfase
°palavra° fala em voz baixa
>palavra< fala mais rápida
<palavra> fala mais lenta
: ou :: alongamentos
[ início de sobreposição de falas
] final de sobreposição de falas
( ) fala não compreendida
(palavra) fala duvidosa
(( )) comentário do analista, descrição de atividade não verbal
“palavra” fala relatada
↑ subida de entonação
↓ descida de entonação
hh aspiração ou riso
.hh inspiração
Convenções baseadas nos estudos de Análise da Conversação (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974; Atkinson e
Heritage, 1984), incorporando símbolos sugeridos Schiffrin (1987), Tannen (1989), Castilho e Petri (1987),
Gago (2002).
ENTREVISTA RENATO
155
Entrevista realizada em 15 de março de 2007 01 01 Renato
Maria
( )
02 02 Sandra É eu saltei no Barão do rio Bonito, na escola
03 03 Renato ( ) minha filha
04 04 Sandra tranquilo
05 05 Maria Então quando quiser
06 06 Renato ( )
07 07 Maria Ah o menino da I.
08 08 Sandra É, ele falou
09 09 Maria Ele falou ?
10 10 Renato Você apanhou o ônibus? O grande ou pequeno?
11 11 Sandra pequeno
12 12 Renato Saltou na padaria? Na padaria, lá?
13 13 Sandra bem
14 14 Renato ( ) de lá pra cá?
15 15 Sandra Eu subi, né? (barulho de xícaras sendo colocadas)
16 16 Renato Subiu?
17 17 Maria Nãaaaaaaao. Ela subi/ ela parou. Foi... no Barão do Rio
18 bonito?
18 19 Sandra Isso. Na escola. Ai vim subindo
19 20 Maria Veio subindo a pÉ.
20 21 Sandra
Renato
Maria
Isso
[ a pé? Aaaaaaaaaaaaaaaaaah
[ah!
21 22 Renato Danada!
22 23 Sandra Em menos de dez minutos, eu
23 24 Maria
Sandra
Aqui não é longe . Aqui é considerado centro. Entendeu?
[ahã, ahã]
24 25 Renato Ela saltou na light
25 26 Maria ( )
26 27 Sandra
Maria
A ladeirinha
[( )]
27 28 Sandra Barão do Rio Bonito, né? A escola
28 29 Renato ( )
29 30 Sandra Passei pelo Carioca, pela igreeeja
30 31 Maria Pelo beco do Carioca
31 32 Renato Ela saltou em frente ao açougue. No Pinheiro
32 33 Maria É é certeza
33 34 Renato
Maria
( )
É, é
34 35 Renato No açougue parou
35 36 Maria Justamente, ai na própria calçada ela veio. Isso mesmo
156
Renato [é, é]
36 37 Sandra
Maria
( ) porque até a rodoviária pra voltar...
[é, é]
37 38 Sandra Você leva mais tempo do que subindo
38 39 Maria Justamente, mas ai eu pensei. Meu deus do céu ela vai parar lá
40
Renato
no Belvedere. Isso na minha cabeça
[( )]
39 41 Maria
Renato
Você falou, peguei o ônibus
[( )]
40 42 Renato Aliás você vai na rodoviária, depois passa aqui quando vai na
43 ( ) na na na na subida do Vitório. O Três Rios que vai pra
44 Resende não passa por cima, passa por baixo. Ai você apanha
41 45
Maria
ele lá na rodoviária.
[ahhhhhhh]
42 46 Renato Tem um ônibus que de Três Rios vai a Resende. Pega na
47 Rodoviária e sobe por aqui.
[e...]
43 48 Maria Vou até ali passar um cafezinho fresquinho
44 49 Sandra Ta, obrigada
45 50 Maria
Renato
É você quer cafezinho só ou acompanhado. ou
[ o almoço]
51 espera o almoço?
46 52 Renato O almoço.
47 53 Sandra Não gente.. que isso (sem graça)
48 54 Renato
Maria
Dez horas, quando ... onze e meia
[ ( ) ] (voz afastando-se em direção à cozinha)
49 55 Renato Oi, o banheiro ta aqui. Tem outro em cima e tem lá
50 56 Sandra ok
51 57 Renato ( )
52 58 Sandra Ha ha
53 59 Sandra brigada
54 60 Renato Nada, nada nada
61 Ai eu voltei hoje pra conversar com o senhor de nooovo, ainda
[( )] aquela história
55 62 Sandra
Maria
(risos) contar de novo
[( )] (retornando da cozinha)
56 63 Renato ( ) você conhece aquilo? (referindo-se a um cartaz turístico
do Rio de Janeiro com o Cristo redentor)
57 64 Sandra De Luzzi
58 65 Renato no
59 66 Sandra
Renato
Não é é uuu, aqui é o RIO!
[uuu, uuu]
157
60 67 Renato U Cristo Redentor e o pão de açúcar
61 68 Sandra Foi agora? (risos)
62 69 Renato Aquilo, aquilo, foi. Me deixou a maior lembrança do mundo!
70 embarquei vinte, trinta, vinte e nove de julho! desembarquei
71 julho, vinte e um
63 72 Sandra Hã, hã
64 73 Renato Na madrugaDA, vou falar português, ( ) torto, como meu
74 italiano. ( ) o Cristo redentor com o braço aberto, porque o
75 marconi. Tinha dato a luce
65 76 Sandra ahã
66 77 Renato Quando cheguei lá
67 78 Sandra Quando chegou. Dia viiinte e nove..?
68 79 Renato Cheguei dia, vinte e um
69 80 Sandra Vinte um de julho
70 81 Renato De julho
71 82 Sandra De que ano?
72 83 Renato Mille novecentos e quarenta e nove
73 84 Sandra Quarenta e nove
74 85 Renato Quarenta e nove. A primeira lembrança é aquilo que não me)
86 esqueço. Um outro patrício, que que ( ) (.) meu pai era
87 rientrato. Que vim com o meu pai pra cá era um rapazi novo. (
88 da Itália. Fui pra Genova, de Genova pro Rio de Janeiro. Fui
89 pro porto. ma quando chegamos lá de madrugaDA! Dia vinte e
90 um, de de julho! (..) gritou. Nós tamo no Rio de Janeiro!
91 Chegou um patrício e gritou. Ó tem o Cristo Redento!
92 Levantei (.) levantei, tirei o pijama. Dormíamos em cima, no
93 navio. A, o Cristo redentor de braços abertos sobre a pedra.
94 Fiquei encantado com aquilo (..) mas passaram cinqüenta e
95 Poucos anos. Sempre comprava o cartão, cartão. Que lá na mi
96 nha terra se chama cartolina. Cartolina. Do cristo redentor.tem
97 O M., que tem, o M., que tem uma casa no Rio de Janeiro
98 Eu disse: “M. quando tu vai no Rio de Janeiro” ( ) disse que
99 você vinha aqui. Eu disse: “o M. faz um favor pra mim?” (..)
100 ( ) “um favor”, eu disse “você me apanha? um cartão postal
101 do grande na banca de jornale? (.) em Ipanema ou no Leblon
102 porque eu vi. E o rapaz falou que aquilo não era pra vender.
103 Mas que se eu quisesse ele manda, reproduzia e depois ( )
104 aquilo foi a primeira lembraça do Rio de Janeiro.”
75 105 Sandra Ai o senhor ( )
76 106 Renato Não, é. Tem um inquilino nosso que tem uma casa no Rio de
107 Janeiro que ta. ( ) aquilo foi a primeira recordação(.) cinquenta
108 e sete anos. Durante todo esse tempo sempre comprava
109 cartolina postal, mandava pra minha irmã. Um dia mandei até
158
110 Pro padre da igreja. ( ) aquilo foi a primeira lembraça do do
111 Rio de Janeiro.(.)
77 112 Renato É muito bonito, né?
78 113 Sandra é
79 114 Renato Emociona. (.)
80 115 Renato Emociona. Quando ele trouxe perguntei. Quanto é? Ele disse:
116 “Não é nada não. Comprei pra você” Eu disse, “dez, quinze.”
117 ele: “não, não quero. Te dou de presente pra você.” ( ) que tem
118 uma banca lá no Leblon. Na na Ataulfo de Paiva, tem um pat
119 ricio. Que me falou que não podia vender aquilo, porque naq
120 uele dia (.) ele arranjaria outro. E compra aquilo pra mim. Me
121 deu de presente. Em casa tem muitas coisas. Tem também o o
122 pão de açúcar.
81 123 Sandra Isso aqui foi quando?
82 124 Renato Foi feito agora. Três meses, quatro meses atrás.
83 125 Sandra Ah! Ai o senhor colocou lá.
84 126 Renato É. Coloquei lá. Aquilo vai ficar eternamente lá.
85 127 Sandra Aquele ao lado é lembrança, lembrança da cidade, né?
86 128 Renato Aquele é ( ) vai até. Eu sou, sou um sujeito guardador das coi
129 sas
87 130 Sandra Sujeito guardador das coisas (risos)
88 131 Renato ( ) eu tenho o quarto ano primário ( ) outro dia um amico
89 132 Sandra ( ) (lendo um documento em italiano que me foi mostrado)
133 Outro dia tem uma amigo mio que tem computador, o filho ( )
134 então ( ) eu conheço, da família eu conheço. conheço de algu
135 m lugar. Mas não sabia. Sabia que era casado com um parente
136 meu. Mas vai lendo isso aqui que o ( )
90 137 Sandra ( ) nella città di ( ) il segretario comunale ( ) uma giovane pre
138 parata donna inter, invertendo ( ) si può definire uma
139 preparata giovane donna ( ) laureata com 110 lode. Ha
140 discusso la tese con il ministro dell´interno Giuliano Amato in
141 Cui ha intrapreso uma colaborazione sensibile e ( ) (..)
142 Si sente ( ) a coprire ( ) suo nonno ( )
91 143 Renato È mio zio, mio mio ( ) parte di mio padre
144 ( )
145 Agora io queria mandar um ( )
92 146 Sandra Podia scannear e mandar por email, né?
93 147 Renato Ahã?
94 148 Sandra Mandar um email?
95 149 Renato No. Queria mandar duas palavras sobre
96 150 Sandra um telegrama?
97 151 Renato não um telegrama, um telegrama. Não sei nem onde que mora
152 porque. Onde morava porque é uma contrata de dez mil habita
159
153 ntes. Ma já virou ao contrário. Tutti foram pra alemanha, foi
154 pra Roma, Genova, Milano. ( ) a tia ( ) niente mia sorella
155 porque aqui. O nonno foi morto na guerra é o, o esposo dessa
156 menina aQUi recebeu gratificação pra estudar na melhor
98
157
Sandra
universidade de Roma, junto com essa, é o nonno dessa
[hum hum]
158 donna qui il comunale, il comunale ( ) etc e tal. Ma non sei
159 onde é que mora, mas sei que é na comune de Luzzi, ficava lá,
160 ma minha cunhada, ma ( ) que lá se chama contratta.
99 161 Sandra Hum hum, ah, é
100 162 Renato Se chama
101 163 Maria Ó eu trouxe até o .. se você quiser (indicando o adoçante)
102 164 Sandra brigada
103 165 Renato ( )
104 166 Maria (dirigindo para o Renato) o seu ta com açúcar
105 167 Renato ( )
106 168 Maria Se quiser.. ah! Ta falando da história da E.?
107 169 Renato É uma parente
108 170 Maria Hum hum. hisTOria não falta pra ele não você vai ficar ( )
109 171 Sandra Agora eu to vendo assim, é, é assim lá na Itália ela se formou,
172 né? E tal e você também fez questão que seus filhos e netos se
173 Formassem.
110 174 Renato é, eu casei com uma professora. ( ) a mais inteligente de todas
111 175 Maria trabalhei aqui no Rio Branco
112 176 Sandra pertinho, né?
113 177 Maria é
178 Renato Meus parentes(barulho de xícara. pausa para gole de café) tem
179 gente camponese, tem gente médico, ingegnere, ( ) tutto isso
180 por ai, compreendeu? uma família muito grande, muito ( )
181 uma família de ( ) cada UM ( ).Meu avô, já tinha propriedade
182 já tinha propriedade, o meu ( )
183 ( ) guerra
184 Depois empresário, né. A Banca di Napole, banca. Lá se
185 chama Banca. A Banca di Napole.
114 186 Renato Meus parentes(barulho de xícara. pausa para gole de café) tem
187 gente camponese, tem gente médico, ingegnere, ( ) tutto isso
188 por ai, compreendeu? uma família muito grande, muito ( )
189 Uma família de ( ) Cada UM ( ). Meu avô, já tinha proprieda
190 de, já tinha propriedade, o meu ( )
191 É empresário, no. Depois a Banca di Napole, banca, lá se
192 chama Banca. Banca di napole ( ) é uma pessoa. Então esse
193 Aqui mandou. Não que não me conhece é só que tem um
194 parente aqui no Brasil. Que ele não me conhece. Me conhece
160
195 Uma irmã que ( ) outro dia me telefonou me conhado, meu
196 Aniversário. Ele me telefonou e me disse que ( )
197 Lá não tenho o endereço, lá do ( )
115 198 Sandra Hum hum. E o senhor queria mandar duas palavrinhas pra ela
116 199 Renato É eu queria mandar os parabéns. Ela não me conhece. O
200 marido O avô dela morreu. A família dela eu não conheço.
201 Conheço o ( )que casou com uma prima minha com a tal
202 de ( ) Aqui tem correspondência. Porque eu sou muito ( )
203 tem muita gente..Sou muito curioso. Tem o gemelaggio, ma
204 gente de alta categoria de alta capacidade. Eu fiz um
205 ringraziamento ao Prefeito. O Prefeito, o prefeito que deu ( )
206 que palavras bonitas que ele, que ele me mandou.
117 207 Sandra O prefeito de Paola, né?
118 208 Renato De Paola, é. Pode ler isso.
119 209 Sandra A mio caríssimo Renato Dattero, vinte e quatro de julho de
210 2007, agora!
120 211 Renato sì
121 212 Sandra Vorrei pogerti un sentito ringraziamento di
213 Un saluto augurale che ( ) rivolgersi alla mia persona ( )
214 Ti rinovo il sentimento di profunda stima ( )
215 Alla tua splendida famiglila e in attesa di rivederci ti ínvio
216 mille care cose. R. P. ele veio aqui ouuu ?
122 217 Renato Já esteve aqui quando nós fizemos o gemelaggio
123 218 Sandra Ah! Com esse gemellaggio
124 219 Renato Ele veio aqui, mas ninguém lhe mandou carta, cartolina, nem
220 Ringraziamenti, mas quando eu soube que ele foi candidato e
221 Tinha perdido na primeira, primeira. Agora ganhou. Passou
222 um mês e ai, mas como ganhou? Primeiro falou que não
125 223 Sandra Tinha ganhado?
126 224 Maria Dá primeira vez não, mas da segunda?
127 225 Renato Ninguém sabia que ele tinha perdido se ( ) eu tenho um
226 retrato, tenho um vídeo com ele. Uma porção de coisas Eu
[( )]
227 mandei uma carta pra ele
128 228 Maria Parabenizando, né?
129 229 Renato Mandei um cartão pra ele
130 230 Maria O da daqui da Barra, não foi?
131 231 Renato Será que foi da Barra?
132 232 Maria Foi foi. O cartão é (..) ( som de xícara)
133 233 Renato Será que mandei da Barra?
134 234 Maria foi
135 235 Renato Isso aqui (.) isso é minha cidade (mostrando postais) tem
236 Uma igreja aqui.
161
136 237 Maria Eu fui nesse igreja ai.
137 238 Sandra Basílica Citernese della Santa ( ) Luzzipress (risos)
138 239 Renato Essa é a minha cidade. A minha cidade
139 240 Sandra Beeeella!
140 241 Sandra Só na Itália. as cidadezinhas pequenininhas todas muito bonitas
141 242 Renato O aqui tem todas as igrejas do ( )Esse é o sacristão.Sabe o que
243 É sacristão. Que trabalha na igreja
142 244 Sandra ahã
143 245 Renato Um muito amico mio. Ele mandou ( ) e aqui mandaram um
246 convite pra io voltar
144 247 Maria Ah ele sempre recebe(referindo-se a carta enviada)
145 248 Renato Eu sempre recebo (com ar de satisfação)
146 249 Maria De lá e do Rio, aqui do consulado.
147 250 Sandra Isso ai é o que?
148 251 Maria Isso ai é do Pavarotti, daquele
149 252 Sandra Ah! Pra você votar, né? (.)(barulho de papeis sendo
253 manuseados) Você pode votar aqui, no no
150 254 Maria É ele vota. Ele vem, tem a cédula que vem tudo da Itália
151 255 Renato Isso quando recebi o convite do gemelaggio, do Carabiniere
256 que nós pegamos
152 257 Sandra É eu lembro do (.) Rocca, né? O carabiniere
152 258 Renato É.isso
153 259 Sandra Vou tirar a foto disso tudo, ok? Pra ficar tudo registrado (risos)
154 260 Renato ( ) isso aqui, vou te mostrar uma coisa. Eu mandei buscar. Um
261 Patrício mio. Isso aqui, mandou um selo de San Francesco di
262 Paola.
155 263 Sandra Ah que lindo! Muito bonito, né?
156 264 Sandra
Renato
do santo de Paola
[( )]
157 265 Renato O filho de patrício, eles lá não tem muita
266 Não tem muita ( )
267 Muita ligação com as coisas
158 268 Maria Tem com (interrompe a fala sedendo turno pra Renato)
159 269 Renato Eles são são. Mas quando eles tem, eles vem com as coisas
160 270 Maria Esse aqui é diferente dele, né? Não sei se é porque conviveu
271 aqui com a gente que a maior parte da vida dele foi com.
272 Ele veio co , com vinte quatro anos não é, filho?
161 273 Renato é
162 274 Maria Você veio com vinte e quatro anos
163 275 Renato Isso tem que devolver a ele
164 276 Sandra Então você acha que ele é diferente ( )
165 277 Maria Ah! Eu não sei como é o temperamento deles. Eu convivi lá
278 com os parentes dele tudo. Eu eu achei assim eles são ótimos.
162
279 trata a gente muito bem tudo e tal, mas assim, sabe não é de
280 assim de conversar muito. Sabe? É diferente dele. Eu acho que
281 é diferente. Sabe? Não sei se é porque eu já me acostumei
282 mais com ele
166 283 Sandra (risos)
167 284 Maria Vou botar a fita aqui, ta? No armário, viu? (..) O que que você
285 Vai fazer?
168 286 Renato
Maria
Nada. Eu mandei buscar o negócio lá se lembra? Com M. ( )
[( )]
169 287 Renato De de Valença (.)
170 288 Sandra M. da S. C. (..) hum hum (.) ex-combatente do Brasil
171 289 Renato É. Aqui é o meu attestato di nascita
172 290 Sandra Ahhhhh! Renato P.!
173 291 Renato É.
174 292 Sandra O seu P., primeiro tem Dattero (D.)
175 293 Renato D., porque lá primeiro se chama D., Renato P. e aqui ficou o
294 o contrário Renato. P. D. e lá tem D. Renato. P.
176 295 Sandra É primeiro o sobrenome depois o nome. O senhor ficou com
[nome é]
296 Renato P., mas na verdade seu sobrenome é Dattero.
177 297 Renato É. Dattero.
178 298 Sandra E ai quando foi pra registrar seu filho botou Dattero.
179 299 Renato Dattero, lógico
300 Â. Dattero, Â. de O. Dattero, porque aqui se usa o nome
180 301 Sandra Nome da esposa
181 302 Renato É. Nome da esposa. Do pai dele ai eu botei. Minha filha
303 se chama R. C. de O. Dattero. Tem gente que não faz questão
304 “meu sogro não é nada pra mim eu não. Afinal to com a
305 Filha dele (risos)
182 306 Sandra (risos) é verdade. Então o senhor tem um filho e uma filha
183 307 Renato É. Tenho uma filha que é professora de Biologia. ALIASE
308 Você tem que fazer também antes de fazer a entrevista, da
309 Escola (dirigindo-se a Maria) me dá o ( ) da família.
310 ( dirigindo-se a mim): aspetta um pouquinho, que nós vamos
311 conversar direitinho, ta?
184 312 Sandra Ah! (risos) ta bom. Bem na verdade teria que estar uma
313 hora em Vassouras.
185 314 Renato (risos)
186 315 Maria Meio-dia o almoço (risos)
187 316 Maria
Renato
Sabe o que é esse é o curriculum da minha neta.
[da minha neta]
188 317 Maria Da filha da, você conheceu ela teve aqui.
189 318 Sandra Da neta, né
163
190 319 Maria É da neta dele
191 320 Renato Se tiver
192
193
321 Sandra
Renato
Que fez Geografia, né
[é, compreendeu?]
194 322 Maria Ai ela falou
195 323 Renato Ela conheceu
196 324 Renato A escola
197 325 Sandra Ah ta!
198 326 Renato Dar na sua mão e ver se tem ( ) como é que chama um
327 Conhecimento. Miguel Pereira (vozes sobrepostas ao fundo)
328 Doida pra ganhar dinheiro e doida pra trabalhar.
199 329 Sandra Ahã.
200 330 Renato Dá aula particular, mas ela gosta de ter o dinheirinho dela
201 331 Maria Sabe como é que é, né?
202 332 Sandra Ela se formou com uma ex-professora nossa
203 333 Renato é
204 334 Sandra Com a E., né?
205 335 Maria éeeeeeeeee
206 336 Renato Compreendeu? é que tu faz recordar aquela moça tão bonita
337 que tu pode dar uma ajuda em alguma coisa, né?
207 338 Maria Se tiver ao seu alcance...
208 339 Renato Não é que você seja obrigada, não
209 340 Sandra Nãao
341 Um favore que tu pode. Eu sei que não depende de você
[(voz de Maria ao fundo)]
342 depende dos outros
210 343 Maria Ah, o a ficha que você deixou aqui
211 344 Sandra Ahhhh. obrigada
212 345 Maria Isso aqui. Você ficou de voltar aqui..
213 346 Sandra VOLtei (risos)
214 347 Renato (risos)
215 348 Maria A data que eu não coloquei. Acho que foi em julho
216 349 Sandra Eu tenho. Tenho tudo direitinho
217 350 Maria Ai, alguma coisa que faltar. Que já coloquei tudo direitinho
218 351 Sandra M. Â. Dattero. Ele teve um filho
219 352 Maria Um filho e uma filha. É, é
220 353 Renato Quer caneta?
221 354 Maria Quer caneta? M. Â. O. (voz afastando-se)
222 355 Renato Você que conhece muita caligrafia. Olha o que meu patrício
356 me escreveu. Eu mandei buscar. Queria fazer uma árvore (.)
223 357 Sandra Ahã? Pode falar
224 358 Maria Mas ai não
359 Sandra Aqui você não botaram o de O., viu? (risos) Ai os nomes das
164
360 netas. Tem uma. Qual o nome da neta, da da filha do M.?
225 361 Renato E.
224 362 Maria E. com dois eles!
226 363 Renato E. Dattero.
227 364 Maria Aqui
228 365 Sandra É euuuu
229 366 Maria Não repara que isso ai
230 367 Sandra E o menino dele?
232 368 Renato Menino não. Ele tem duas meninas
233 369 Sandra Duas meninas
234 370 Renato A outra se chama
235 371 Maria A. Também com dois enes
236 372 Renato A minha neta se chama, a minha neta se chama
237 373 Sandra Essa é Dattero.
238 374 Renato B. (referindo-se ao sobrenome)
239 375 Maria E a da R. (referindo-se à filha)
240 376 Sandra Tem uma filha só? A R.
241 377 Maria Só uma filha (..)Éeee F. (.) Dattero. B.
242 378 Renato Dattero. B.
243 379 Sandra B. (soletrando o nome). Essa que é a de geografia?
244 380 Maria É essa que é formada. Ah! Essa aqui é nutricionista
245 381 Sandra É eu lembrava que tinha uma nutricionista
246 382 Maria É, e a outra. A outra ta, ta estudando advocacia porque se
383 encaminhou
247 384 Sandra É o interesse, né?
248 385 Maria Direito
249 386 Sandra Olha tem de tudo já
250 387 Maria É se Deus quizer, né?
251 388 Sandra (risos) Advogada! (risos)
252 389 Maria É. Eu acho que ta tudo ai, né?
253 390 Renato Bom você pode me disser o que tem aqui? Ta em uma
391 caligrafia desgraçada
254 392 Sandra Â., Di G.
255 393 Renato G. Dattero., il mio nonno
256 394 Sandra Z., S.
257 395 Renato ( )
258 396 Sandra Dattero., C. dois do três (?)
259 397 Maria Vinte e quatro
260 398 Sandra Vinte e quatro ou vinte e nove, né? Dovrebbe essere lo figlio
399 Piccolissimo. Agora esse maggio aqui eu não sei
261 400 Maria ( )
262 401 Sandra PicoLLIssimo. O filho morto piccolissimo
263 402 Maria Hum hum. é morreu quando pequenininho. Não sei. Filho,
165
403 filho. De quem?
264 404 Sandra C.
265 405 Maria C. ?
266 406 Sandra C. Dattero.
267 407 Maria C. Dattero.
268 408 Sandra A senhora
269 409 Maria O filho? É morreu pequenininho?
270 410 Sandra Aqui ta. É dois do três de vinte e quatro ou de vinte e nove
271 411 Maria Ah tá
272 412 Sandra porque
273 413 Renato É minha irmã que morreu a primeira filha ( )
274 414 Sandra Então é isso o filho morto piccolissimo
275 415 Renato ( ) aqui ó. Aqui tem tutto esse nome aqui. Tutto ( ) isso aqui
276 416 Sandra A., F., aqui deve ser M., né?
277 417 Renato é
278 418 Sandra M., C.
279 419 Maria R.
280 420 Sandra R., R.
281 421 Renato R. é
282 422 Maria U. esse aqui deve ser U.
283 423 Sandra É, é parece. Â., P.
284 424 Renato P.
285 425 Maria P.
286 426 Sandra P., G. e C. deve ser
287 427 Renato e A., não tem não?
288 428 Maria Deve ser A. C., não é não?
289 429 Sandra Aqui é A. Concetta
290 430 Renato A. não tem não?
291 431 Sandra Não A.
292 432 Renato A., A. não tem não? ( )
293 433 Maria Será que é Aurélia?
294 434 Sandra É A.
295 435 Maria Aqui tem um A. e C.
296 436 Sandra é
297 437 Maria Eu falei. A. e C.
298 438 Renato ( ) A.
299 439 Maria A.o., então essa aqui, será que essa é A. C.? Não
440 Pode ser ... se ela tinha dois nomes? Que ela tinha dois nomes
300 441 Renato Não. A.
301 442 Sandra Porque aqui tem uma C. uma C.
302 443 Maria É tem uma concetta aqui, ó
303 444 Sandra C. e o filho morto, né? É a data de de morte
304 445 Renato Si. Uma data de morte, sim
166
305 446 Sandra Então aqui tem uma C. que morreu dia dez de fevereiro de
447 Mil oitocentos e trinta e um. e tem uma A. C. que acho que
448 foi trinta e um de março de oitenta e quatro
306 449 Renato Que morreu?
307 450 Maria NÃO! Será que morreu?
308 451 Sandra morreu
309 452 Renato Também acho que morreu
310 453 Sandra A data parece nascida em trinta e sete, falecida em oitenta e
454 Cinco. Vinte e dois falecida em ( ) não é aqui não? data
311
455
Renato
De nascimento aqui data de morte?
[( )]
312 456 Sandra ( )
313 457 Maria Agora eu não entendi não. Pensei que aqui fosse de
458 nascimento não é não? Ah Ah
314 459 Sandra Porque aqui tem uma data menor, né? Não é? Aqui tem trinta
460 E sete, trinta e dois, trinta e sete. Do lado oitenta e cinco.
461 então não sei se nascimento é aqui..
315 462 Renato ehee ( )
316 463 Sandra Isso veio de onde?
317 464 Renato Il comune, veio di Luzzi
318 465 Maria Â.! Â.!
319 466 Renato Â. é meu pai, sì
320 467 Maria Vinte do oito
321 468 Renato Do oito. Mil ( ) e noventa e oito
322 469 Sandra Mas do lado ta dezesette. Ele não faleceu em dezessete, né?
323 470 Maria Ele eee mio mio sogro
324 471 Renato A da prefeitura
325 472 Maria Noventa e oito?
326 473 Renato Meu pai nasceu em noventa e oito? Meu pai nasceu em
474 noventa e oito
327 475 Maria Mil oitocentos e noventa e oito, não é? Não tem a data. Tem a
476 Data. Aqui você não viu a data?
328 477 Sandra Que aqui ta vinte de dezembro de noventa e oito
329 478 Maria Então. Vinte de dezembro é a data de nascimento dele
330 479 Sandra Vinte de dezembro. Nascimento e morte. Mas aqui não tem a
480 ver porque ele não morreu em dezessete
331 481 Renato Deixa eu ver isso aqui
332 482 Sandra Só se ele partiu em dezessete e parou o registro (riso irônico)
333 483 Maria Isso aqui é a data de nascimento dele
334 484 Sandra Porque em quarenta e nove ele voltou com o senhor, né? Se
485 lembra?
335 486 Renato E se soubesse
336 487 Maria Ele morreu em setenta
167
337 488 Renato Setenta...
338 489 Maria Setenta e poucos não foi
339 490 Renato Setenta e
340 491 Maria Setenta e poucos
341 492 Renato Setenta e dois, setenta e quatro
342 493 Maria É foi mil
343 494 Sandra ( )
344 495 Renato Vamo fazer uma coisa
345 496 Maria Não é não filha, isso é data de nascimento
346 497 Sandra Aqui é nascimento
347 498 Maria nascimento
348 499 Sandra Agora isso ai eu não sei o que que é não
349 500 Renato ( )
350 501 Sandra É verdade eu não tinha percebido o ( .) nonno, padre
351 502 Maria Ó ai ó. Mil ( ) noventa e oito e o vinte de de é a data de
503 nascimento dele (.) ( )
352 504 Sandra Uma árvore genealógica, né?
353 505 Maria Hum hum
354 506 Renato aqui tem tutto il nome delle, a C. o que eu quero saber como
507 como é que chama aqui a C., como é que chama a fulana?
355 508 Maria Mas se você escreve ou telefona pra eles eles não sabem
356 509 Renato Num num ( )
357 510 Maria Ah não conheço, não sei. Outro dia ele ligou pra irmã dele pra
511 Saber de umas umas pessoas lá
358 512 Renato Da da parente da da
359 513 Maria paRENte. A irmã dele não soube explicar!
360 514 Renato (murmúrio)
361
515 Sandra
Maria
Ó aqui ó confere a mesma data (.) ( ) noventa e oito
[meu sogro]
362 516 Sandra Porque lê eles só vão ter mesmo a data de nascimento, né?
363 517 Maria Não é..
364 518 Sandra ( )
365 519 Maria Se bem que ele faleceu LÀ
366 520 Sandra Faleceu lá?
367 521 Maria Mas foi em mil novecentos e setenta e poucos, né?
368 522 Renato (murmúrio)
369 523 Maria Antes de setenta e cinco
370 524 Renato Mas tava conversando com Salvador, agora ( ) pra apanhar
525 Tutto i nome dos meu parentes (.) não precisa nada. Quando
526 Nasceu, quando morreu e ta acabado. O M. fez uma confusão
527 ( ) ginásio ( ) meu lado
371 528 Maria É é
372 529 Renato Essa coisa vai e volta, é conversa fiada. Patrício que morava
168
530 naquela esquina lá. Era um rapaz que ( )
373 531 Maria O sogro da minha sogra
374 532 Sandra Pai da Rosaria, né?
375 533 Maria É. C. C. é.. é
376 534 Sandra que teve os filhos Dattero, Renato P., Dattero, A. e Dattero. L.
377 535 Maria Ai é a família dele
378 536 Sandra ai é L., né?
379 537 Maria É L.
380 538 Sandra Então A. e L. ficaram na Itália
381 539 Maria é
382 540 Sandra Só veio o Renato
383 541 Maria Ahã. Entendeu? Mas ai isso ai é data de nascimento deles.
542 Agora é lógico, evidente que aqui eu sei que a tia R., tia A.
543 Aqui onde morreu
384 544 Renato Certo, certo
385 545 Maria Tia A.
386 546 Renato Tia A. morreu ( )
387 547 Maria pois é (.)Ele, ele É. mas é porque ele tava sempre assim. Sabe?
388 548 Renato (Murmúrio) tem um da família, C. – il nonno di mia madre,
549 Minha mãe. Foi in Argentina. Chama N., Tia A. ( )
389 550 Maria Mas, assim pra como é que se diz? Pra ver esse negócio dos
551 familiares. Até pela internet pode conseguir, né?
390 552 Sandra Ahã, ah consegue sim
391 553 Maria
Renato
Não é? Eu acho que
(olha)
392 554 Renato Que deixou pra mim
393 555 Sandra Oh! Que bonito!
394 556 Maria Ih! Que ele tem certificado de uma porção de coisa. Fala
bastante coisa.
395 557 Sandra
Maria
Per riconoscenza
[vou deixar A VONtade]
396 558 Maria Ta? Conversando ai com ele. Ele vai fazer a sala
397 559 Sandra ahã
398 560 Maria Qualquer coisa. Eu vou cuidar lá, ta?
399 561 Sandra brigada
400 562 Maria Ta bom?
401 563 Renato Compreendeu ou não?
402 564 Sandra Então assim, com riconoscenza e gratitudine per l´imenso
565 impegno profondo nel piano umano, sociale, profissionale
566 Per la fedeltà alle radici e all´ideale di libertá e democracia
567 contribuendo in modo rilevante alla crescità dell´immagine
568 dell´Italia e della Calabria nella magnífica terra brasiliana.
569 Paola, ventuno giugno millenovecento( ) Bello
169
403 570 Renato ( ) Quero ( ) io que estou aqui que lembro
404 571 Sandra Eles que estão lá não lembram, né?
405 572 Renato Nãaao!No no no parece que não sei, que não são interessados
573 ( )
406 574 Sandra Ahã
407 575 Renato (incompreensível)
408 576 Sandra Voltando assim, pra quando o senhor chegou aqui. Seu pai já
577 tinha vindo pra cá. Ele veio quando?
409 578 Renato Oh! ( ) meu pai emigrou millenovencentoventiquatro. Foi pra
579 Argentina
410 580 Sandra hum
411 581 Renato Ele tinha um irmão ( ) que se chama M.e. Dattero foi no cais
582 do porto a esperar ele. Naquela época tinha a carta. Quarenta
583 dias cinqüenta dias, mas hoje eu telefono e falo com minha
584 Irmã, é. Então meu tio falou: “M.o, se chama M. Â. Dattero
585 conhecido M. como M.o, mas se chama Â. (..)” eu não tinha
586 nem nascido. Minha mãe tava esperando io. Quando chegou
587 chegou no cais do porto no navio. Falou: Mariano, desce aqui
588 porque naquela época você descia onde você queria, você
589 pagava imigrava igual a um cachorro de pobre. Conhece o
590 Cachorro de pobre?
412 591 Sandra não
413 592 Renato O que chama vira-lata, u, u. O cachorro que (imitação de
593 Latido) (risos) então falou: “desce aqui que tem família em
594 São Cristóvão”. Ele falou “nãaao o destino me mandou ir pra
595 Argentina eu tenho que ir pra Argentina” e ficou seis meses na
596 Argentina e voltou pro Brasil.
414 597 Sandra Que o irmão dele já tava no Rio ( risos)
415 598 Renato Já tava aqui. e na Argentina, quer dizer no vinte quatro chegou
599 vinte e cinco. minha mãe mandou uma carta que eu tinha
600 nascido. No mille novencentos e vinte e nove, meu pai voltou
601 pra Itália. Escuta ou o ( ) ou a necessidade ou a miséria, não
602 sei não sei que tocava. deixar uma moça bonita que era a
603 minha mãe lá. vou tem mostrar o retrato tão bonita, muito
604 bela. chegou lá o mille novencentos e vinte nove, io ero uma
605 uma criança no jardim de infância. Dei um chute na cara dele
606 Porque não conhecia.
416 607 Sandra Rá
608 Bom, o mille novencentos e trinta voltou pro Brasil de novo
417 609 Sandra Rá
418 610 Renato Escuta. Deixou uma moça que era minha mãe. Eu não sei
611 como não botou chifre! Olha somos de carne e osso. ele voltou
612 aqui de novo. Bom ele mandou dinheiro, tinha lavoro, tava ai.
170
613 Bom, no mille novecentos e trinta e seis voltou pra Itália.
614 trinta e sete voltou de novo pra cá.O quarenta e oito voltou pra
615 lá o quarenta e nove voltou pra cá ele me trouxe pro Brasil.
616 disse que tinha mulher bonita. Lá uma aldeia de dez dez mil
617 habitantes dez doze mil habitantes. Ele me trouxe, trouxe por
618 causa da minha profissão de alfaiate. cheguei aqui ao ponto
619 que eu chorava,queria embora pra Itália de novo,tinha deixado
620 uma namorada, quando via o retrato dela queria voltar, queria
621 voltar a minha felicidade foi essa mulher. E não voltei mais.
622 por toda a nossa vida. Compreendeu? o encontro que fiz aqui.
623 tinha primo, parente, não me adaptei muito no Rio de janeiro
419 624 Sandra É porque já tava aqui com a família, né? Já, já tinha o seu tio o
420 625 Renato não
421 626 Sandra priimo
422 627 Renato Meus primos, minha tia, mas eram muito bons, eram muito
628 diferentes io deles. Eu tinha os meus costumes. Eles aqui. Eu
629 não adotava
423 630 Sandra ahã
424 631 Renato Io dizia pra uma parente minha. Io vou casar com uma
632 brasiliana! Ela agora diz pra mim. Cuspa no prato e come, eh!
425 633 Sandra (risos)
426 634 Renato (risos)de São cristóvão pr´aqui. compreendeu? mas namorar
635 ( ) toda minha vida foi isso. Compreendeu?
427 636 Sandra Ah!
428 637 Renato Sempre trabalhando, sempre trabalhando, sempre trabalhando
429 638 Sandra E como é que o senhor conheceu a sua esposa?
430 639 Renato Essa aqui?
431 640 Sandra é
432 641 Renato Aqui tinha duas parente minha. prima de meu pai
433 642 Sandra Aqui em Barra
434 643 Renato Com uma oficina mecanica
435 644 Sandra Hum hum
436 645 Renato oficina mecânica. ele e a irmã dele me convidaram pra pra
646 imigrou pra cá. O D.o. em Barra do Piraí disse uma cidade tem
647 um trem pequeninho que sobe aquela serra, aquela serra lá vinha
648 de Paulo de Frontin aquela serra boniita. Olhava tudo aqueles
649 currais! ficava encantado. Quando cheguei aqui. ( ) vi minha e
650 tutto ( )na Barra.vim três vezes só o quarenta e nove o cinquenta
651 e o cinqüenta e um. até ainda tinha o trilho do trem no meio
652
Sandra
da cidade de Barra do Piraí. Vim aqui com o meu tio:
[hum hum]
437 653 “Vamos na Barra do Piraí?” O sete de setembro. Essa aqui
654 Embarcou no ônibus. Dava aula lá, onde aqui chamam de
171
655 Vargem Grande. Me olhou eu olhei: “opa! Ta no papo”. Falei
656
Sandra
Assim. Eu vou voltar, no lugar onde encontrei ela, mas não
[risos]
657 Sabia que era professora não sabia nada. Eu quase já ia
658
Sandra
embora pra Itália. hein
[hum hum]
438 659 Sandra Isso em que ano?
439 660 Renato Mille novecento e cinqüenta e três
440 661 Sandra Ahã. Quarenta e nove, não
441 662 Renato (tosse) Fui e voltei e encontrei, na praça Julio, na casa da N.
663 na praça Júlio( ) encontrei ela lá.Encontrei olhei, ela me olhou
664
Sandra
eu fiquei.Bom, começamos a namorar, namorar.uma boa noite
(risos)
665 cheguei aqui ela morava na Cunha Lima, numa subida. ( ) ela
666 E a irmã dela. uma chuva desgraçada pegava o trem pra Barra
667 Do Pirai. mandei chamar ela, ela não quis descer fiquei de
668 inimigo dela, fiquei de inimigo de cinqüenta e três até o
669 cinqüenta e quatro. Escrevi uma carta malcriada e falei. Quem
670 escreveu foi o capitão da polícia se chama, se chama, C. era
671 um patrício. C. C., me manda uma carta. Ma quando meu tio
672 em cinqüenta e quatro voltou pra Itália pra passear também.
673 eu voltei também pra saber notícia da Itália da minha mãe,
674 minha irmã. meu pai tava aqui também, voltei naquela loja
675
Sandra
e começamos a : “ta no papo falei agora” (risos)
(risos)
676 Comecei a namorar o cinqüenta e quatro, cinqüenta e cinco
677 fiquei noivo, cinqüenta e sete me casei. Daqui fui morar em
678 Nilópolis assim que me casei
442 679 Sandra Hum hum
443 680 Renato essa é a minha vida. cinqüenta anos de casado.
444 681 Sandra fez uma festa? (referindo-me as bodas de ouro)
445 682 Renato Ãha?
446 683 Sandra comemOROU?
447 684 Renato comecei a namorar, fiquei noivo, cinqüenta e cinco. cinqüenta
685 oito me casei. fui a Aparecida do Norte pra me casar. agora
686 vou te mostrar uma coisa tão bonita. Um amigo meu, um
687 amigo, o M.! Olha aqui
448 688 Sandra Do do do M.ro?
449 689 Renato Do M. V., M. V., conhece?
450 690 Sandra Ah! O V.!
451 691 Renato M. V.
452 692 Sandra Bodas de Ouro. Renato e Maria. Ai que linda essa bandeja!
693 vinte e sete de janeiro de dois mil e sete ( ) abençoa senhor ( )
172
453 694 Renato Que ela (a esposa do M. V.) é muito religiosa ela me deu de
695 Presente ( )
454 696 Sandra ãha
455 697 Renato Me deu de cinqüenta anos de casado (...)
456 698 Sandra Então o senhor foi até Aparecida do Norte pra casar
457 699 Renato Hein?
458 700 Sandra Foi até Aparecida pra casar!
459 701 Renato Eu tinha que ir até Aparecida do Norte pra me casar. a maré
702 era tão brava que eu e ela juntamos dois trapos velhos ()(risos)
460 703 Sandra (risos)
461 704 Renato Todo mundo perguntava como é que um italiano casa com uma
705 brasileira. tinham medo, meus patrícios tinham medo.() vulgar
706 ( ) corna, come que você convive, como é que essa brasileira
707 convive com nada? È só ter a cabeça no lugar e manter a
708 cabeça no lugar. o amor existe. engano existe também, tristeza
709 existe também, então olha aqui Pra que ela não escuta. ( )
710 não tinha condição de fazer festa. Eu falei: “você concorda
711 em casar em Aparecida do Norte?” Ela falou: “perfeitamente.
712 é você mesmo”. então fomos pra Aparecida do Norte. Eu
713 morava no Rio de Janeiro e ela morava em Barra do Piraí. na
714 Eu aluguei uma casa na baixada, em Nilópolis
462 715 Sandra Hum hum
463 716 Renato Compreendeu? E só tinha a tranqüilidade de ( )e não fiz a festa
717 Quando fiz o noivado fiz uma festa maior do que o casamento
718 É de poucas palavras, não gosta muito de galanteria e o povo
719 ficava apavorado. como é que casa com uma brasileira vai ter
720 um filho brasileiro. E depois de um ano fui ver minha mãe.
721 depois levei ela pra Itália, três meses Roma, Milão. A vida é
722 doce ( ) e casar com uma brasileira, porque os patricios te
723 convidavam pra ir casa deles pra namorar com uma filha deles
464 724 Sandra (risos) ah! Pra ficar tudo na colônia, né?
465 725 Renato Não ( ) mas pra me casar tem que ser com uma pessoa que
726 eu gosto. Meu avô dizia, a mãe de minha mãe de noventa e
727 poucos anos “ama quem te ama. Responda a quem te chama”
728 quem tem cachorro do vizinho não dar pedrada no cachorro do
729 vizinho não. dá uma água uma comida, tudo. eu fui criado pra
730 criado pra( )e os outros ficavam apavorados porque até guaio e
731 te a morde Língua, mas a Itália agora ficou piena de sacrifício
732
733
( ) o pessoal dizia vou vou na França, vou na Alemanha, vou
734 vou tutti tutti ( ) lá A vida a vida tudo ( ), minha filha. (risos)
466 735 Sandra O senhor falou que alugou uma casa em Nilópolis, né?
467 736 Renato Em Nilópolis, é
173
468 737 Sandra Então depois que o senhor casou foi pra Nilópolis não ficou
aqui em Barra.
469 738 Renato Não. em trinta e sete vim morar aqui no sessenta e cinco.
739 minha filha nasceu lá o meu filho nasceu lá, nessa área em
740 Madureira e Cascadura um no ( ) Rio de janeiro o
741 outro Guanabara
470 742 Sandra ahã
471 743 Renato Em julho na Guanabara, mas o produto saiu de Nilópolis ( )
744 era Sócio do Brasil-Portugal que era um hospital que
745 tinha em Madureira
472 746 Sandra ahã
473 747 Renato Tinha uma vizinha lá eu sou italiano não sou português então
748 eu dou uma ajuda pra vocês. Lá ela fez o pré-natal, em uma
749 maternidade em cascadura. Madureira, cascadura, tutto isso ali
750 depois os filhos ficaram, lá era uma cidade, nilópolis, do turco
751 havia Prefeito muito relaxado também, não havia estrada,
752 Não havia nada, vala em cima de vala. As crianças sempre
753 doentes. vamos, falei pra minha senhora: “vamos ou na minha
754 terra ou na tua terra qual a que prefere?” “Bom, como a situação
755 periclitante, vamos na tua terra que é melhor. Pra eu ir lá
756 tenho que me acostumar a outros costumes a outras coisas
757 você não vai deixar eu sai mesmo porque ( )”
474 758 Sandra O senhor sempre trabalhou como alfaiate?
475 759 Renato não
476 760 Sandra Não?
477 761 Renato Trabalhei lá pela rua. Vendedor de bebida e bar, mas nunca
762 nunca tive carteira profissional
478 763 Sandra Hum hum e a Maria já tinha o emprego dela
479 764 Renato a Maria já tinha o emprego dela era funcionária pública, do
765 Estado. Nossa vida nós começamos assim. Nós casamos ( )
480 766 Sandra ai o senhor voltou pra cá com as crianças..?
481 767 Renato é, as quitandas sempre aqui nos colégios, sempre, o colégio
768 das irmãs, depois parece que foi para o Rio Bonito, e o
769 Candido Mendes. É filha que casou, não teve sorte separou e
770 tá levando a vida dele.Ajudando a filha e o filho, propriedade
771 aqui, propriedade aqui. Uma propriedade pra cada um
482 772 Sandra A primeira coisa que o senhor montou aqui foi a mercearia,
773 padaria? Foi o que?
483 774 Renato Não. Comprei foi o bar ao lado da estação
484 775 Sandra ahã
485 776 Renato o bar ao lado da estação,depois fui no Nilo Peçanha,no ginásio
777 depois fui no Coimbra quando você passa por lá onde tem
778 uma mercearia grande? tinha botado bar do Renato, depois
174
779 vim pra cá. minha vida é assim, minha filha ( . ) o Programa
780 (..) o sujeito (.) não pode se deixar (.) de perdição (.) nem por
781 outras mulheres (.) nem pela bebida nem pelo governo nada.
782 Tem que ter honra pela família, pelos filhos tem que ser bem
783 tratado. pode dizer aquele sujeito lá não presta, mas tem
784 que ver se não presta é a família. Ele fala que meus parentes
785 é meio maluco, mas a verdade pra mim é a conveniência
789 deixar de ( ) e lá a guerra (risos) eu sempre vivi assim, na paz
790 de Deus. agora vamos fazer Cinqüenta e um anos em janeiro
486 791 Sandra Hum hum
487 792 Renato De vida. De vida, de compreensão. Quando um estrangeiro
793 casa com uma estrangeira. straniero dizem straniero,não é
794 estrangeiro É straniero.Casado com uma straniera. Como é
795 que tem o dialogo com ela. Eu digo é a mesma coisa, pensa a
796 mesma coisa. Existe O amor, existe a sinceridade, existe ( )
797 hoje não podemos comprar isso aqui, hoje não podemos esse
798 chapéu,compreendeu? não é a briga a discussão.Nunca briguei
799 Nunca discuti, nem um Nem outro. Nunca bati no meu filho
800 (relata um caso da filha ou filho querer bater em uma das netas)
801 “o queee?! Eu já bati em você?!” ( ). Mas fala qualquer coisa!
488 802 Sandra (riso) eu queria saber, assim. Eu me lembro que o senhor disse
803 Que seu pai trabalhava como peixeiro
489 804 Renato peixeiro
490 805 Sandra Ele sempre foi
491 806 Renato Pesce, olha o pesce, la sardina! Meu pai tinha uma frequesia
807 de mil novecentos e vinte e cinco até (..) o mille novecentos e
808 Sessenta e cinco, mas ele sempre com o peixe
492 809 Sandra No Rio, né?
493 810 Renato No Rio, Campo de Santanna e tudo ( ) igual aquele português.
811 Minha mãe comprou uma carroça com dois burros, o meu
812 filho com três? Era ele que puxava no meio (risos)
494 813 Sandra Tinha uma foto ali, né? Tinha uma foto ali com os burricos
495 814 Renato Eh eh? Mas aquela das fotos ali com aquele burricovocê vai
815 achar ruim é (risos)
816 Aquele burro era era pederasta
496 817 Sandra (risos)
497 818 Renato (risos) era appena outro burro. Isso eu nunca me esqueço
819 porque tinha uma tia minha que vinha meu tio puxando o
820 burro correndo
498 821 Sandra hum
499 822 Renato botava um botava um capim pra não machucar e puxava o burro
500 823 Sandra ahã
501 824 Renato Então quando meu pai chegou aqui no mil novecentos e vinte
175
825 e quatro, no vinte cinco. vinte e quatro tava na Argentina
826 trabalhava na firma, na empresa de no mar que faz água doce,
827 Mas era muito sacrificado. Naquelas bombas que ficavam
828 puxando água. O imigrante achava América! Vou fazer a
829 América! Acredita em duas coisas você? A sorte e o destino?
502 830 Sandra Ahã? Acredito
503 831 Renato Eu acredito. A sorte e o destino e mais nada. Então quando
832 veio aqui ele. O irmão dele emprestou um dinheiro. Quanto
833 vale o peixe com um patrício. Nicola um vizinho da rua.
834 Analfabeto! não sabia muito não. Comprou duas latas com um
835 pau nas costas, aqui. vendendo o peixe, depois de um tempo
836 comprou uma carrocinha
504 837 Sandra Ahh!
505 838 Renato E com o peixe ele trabalhava, mas ganhava dinheiro. ( ) assim
839 me falaram, me falaram
506 840 Sandra (risos)
507 841 Renato Mas ia e voltava, cumpria com a sua obrigação. Mandava um
842 dinheirinho, ia e voltava, mas deixava um jovem, minha mãe
843 com idade muito
508 844 Sandra Coitada, sozinha, né?
509 845 Renato E deixava e o trigo pra moer, tudo. Minha mãe era o homem e
846 a mulher
510 847 Sandra Como é que era a vida lá na Itália?
511 848 Renato Minha vida?
512 849 Sandra é
513 850 Renato Lá?
514 851 Sandra é
515 852 Renato A vida mais que mais que mais que seja. Tem a vita amarga e
853 a vita boa. Você veja, minha mãe foi uma sofredora
516 854 Sandra Hum hum
517 855 Renato Devia fazer a parte do uomo e da mulher (dirijindo-se à Maria)
856 pega lá o retrato da minha mãe pra eu mostrar pra ela. Tem
857 gente que é cabeleireira, tem gente que e sartina, que faz roupa,
858 tem gente que é doméstica. Naquela época não se usava muito.
859 muito quem estudava lá eram filhos de gente com alta categoria
860 que estudavam os filhos para serem padres, engenheiros,
861 médicos. Hoje lá é o contrário o filho do lavrador é professor
518 862 Sandra Hum hum
519 863 Renato Outro dia vi uma ( ) de Paola, ( ) Professor Palermo ele disse
864 é meu primo. de onde? aquele nasceu na Campagna, nasceu lá
865 é professor. Tem um irmão que hoje está na ilha do governador
520 866 Maria (voz ao fundo) dá licença
521 867 Renato Essa é mais bonita
176
522 868 Sandra Ah! É bonita! De fibra, né?
523 869 Maria Bonitona, né?
524 870 Renato E lá tem meu pai e minha mãe lá (indicando foto na parede)
871 mas melhor essa aqui
525 872 Sandra essa
526 873 Maria ( ) tem um pouquinho de sorriso também, né?
527 874 Renato é
528 875 Sandra A outra ta muito séria
529 876 Maria Hum hum. Ela eu não conheci pessoalmente, mas ele morou
877 Um pouco com a gente aqui
530 878 Sandra Enquanto vocês estavam em niLÓPolis?
531 879 Maria
Renato
É enquanto nós estávamos em Nilópolis e um tempo. Foi né?
[( )]
532 880 Renato Em sessenta é cinco
533 881 Maria Ele veio em sessenta e cinco, em fevereiro quando foi em
882 maio, ele foi embora. Maio de sessenta e cinco
534 883 Sandra Ai ele voltou pra Itália?
535 884 Maria Ele voltou
536 885 Renato Eu disse: “não volta não”
537 886 Maria Ele não queria que ele voltasse, mas ele não porque não
887 porque fica feio ( )
538 888 Renato Aquele homem. Aquele homem com caráter já ( )
539 889 Maria Ele achava que ele veio pra cá pra poder melhorar a situação
890 da família lá e tudo que lá era guerra, né?
540 891 Renato Fazia dinheiro pra fazer a dote pras filhas
541 892 Sandra ahã
542 893 Maria é porque lá tinha que ter dote
543 894 Renato Dieci mila lire. ou me dá dieci mila lire ou não me caso.
895 então não quer a ela. como o meu caso
544 896 Sandra (risos)
545 897 Maria É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo
546 898 Renato Agora virou tutto. é tudo o contrário
547 899 Sandra ai em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a sua mãe. ficou
548 900 Maria ai voltou
549 901 Renato com as minhas duas irmãs, minhas irmãs casadas lá
550 902 Maria tinha netos lá que ele nem conhecia. Ele era mais apegado, viu
903 nascer os netos aqui, né? um tinha o nome dele o outro o da
904 esposa dele
551 905 Renato aqui tem um costume, ( ) se vem donna tem que botar o nome
906 da sua mãe, tem que botar o nome dela. Do pai a mesma coisa
907 Então.
552 908 Maria Do nonno entendeu?
909 ahã
177
553 910 Renato É do nonno. Tudo
554 911 Maria
Renato
Por isso minha filha chama R. C. de O. Dattero
[C.]
555 912 Sandra É a a mãe do
556 913 Maria É a mãe dele
557 914 Renato mas lá não se bota o nome, eh
558 915 Sandra Eh R., né?
559 916 Renato compreendeu, então a vida se passa assim, você sofrer. Isso é
917 o passaporto, inveja no Paraíso. você já pensou deixar uma
918 moça bonita de vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis anos
919 depois voltar de novo com trinta e poucos.AHHHHH que isso!
560 920 Maria Ele ia lá fazia um filho e voltava, ia lá fazia outro (risos)
561 921 Renato (risos) é sofrimento. voltava
562 922 Sandra (rindo) dava era mais trabalho pra sua mãe
563 923 Renato Nem era. É os filhos depois que nasceram
564 924 Maria Com qual diferença? Com quantos anos que você você
925 conheceu ele?...
565 926 Renato A diferença era de quatro anos. Ele foi no mille e vinte e cinco
927 Depois voltou no mille vinte nove, no trinta. Ai nasceu minha
928
Maria
Irmã A. voltou no trinta e seis, a L. nasceu no trinta e sete
[certo]
929 teve a guerra, no quarenta e oito ele voltou pra Itália
566 930 Maria
Renato
Ele não teve convivência com os filhos
[convivência]
567 931 Renato tinha um pai vivo e morto, vim a conhecer mais o meu pai aqui
568 932 Sandra ahã
569 933 Renato ( ) conheci mais ele aqui do que lá, compreendeu?
570 934 Maria Quer dizer, ele não teve assim um contato
571 935 Renato Uma pessoa antigamente ( ) quando a pessoa migrava ( ) ah
936 VOcê pode dizer que estou falando isso ou aquilo da Itália,
937 Mas estou falando a sinceridade. Quando vinha um imigrante
938 lá, era um imigrante que não tinha condição, era ( )
939 Trabalhava em fazenda. Não havia industria lá, hoje não é
940 comparável a Luzzi. com 10 mil habitantes tem mais de dois
941 mil automóveis, cada camarada tem dois carros.
572 942 Sandra hum
573 943 Renato Não sou maluco, ( ) inteligente ( )
574 944 Maria Os camponeses ficaram ricos, entendeu?
575 945 Renato Os camponeses casaram com as filhas, com as netas dos
946 proprietários
576 947 Sandra Hum hum
577 948 Renato ( ) aquela gente de alta sociedade. Quando vinham aqui
949 Ajudavam ( ) com pouco minha mãe comprou um burrico
178
578 950 Sandra Hum hum
579 951 Renato Um carro de boi e um pedaço de terra
580 952 Sandra Hum hum
581 953 Renato ( ) botava duas cabras, duas ovelhas, criava um porco, criava
954 Galinha e vivia só, vivia daquela maneira
582 955 Sandra Ah!
583 956 Renato Então a mulher esperava três ou quatro anos ele chegar da
957 América, América América! Alguns botavam dente de ouro na
958 boCA haha, outros vinham com relógio de pataca no bolso.
959 Itália sofreu! Itália sofreu, depois veio o regime Mussolini,
960 depois do vinte e dois até o quarenta e seis, um mar de
961 sofrimento. Mussolini fazia uma coisa. Você não sabia ler e
962 escreVER, tu não imigrava pra América do Norte, vinha
963 pro brasile. Naquela época não precisava de passaporte, se
964 chamava responsabilidade, você tava lá, te mandava chamar e
965 Pegava responsabilidade pra te dar comida, onde dormir,
966 Mandar de novo pra Itália isso e aquilo ( ) a napole, lá tem o
967 Vapor que te espera Buuu, Bu Bu ( imitando apito do vapor)
584 968 Maria Agora é tudo o contrário
585 969 Renato Tudo o contrário
586 970 Maria
Renato
Pra ir, pra ir pra lá eles tem né? Que saber se a pessoa tem
Eh eh
971 Maria
Renato
condição de ficar lá, se tem alguém reponsável virou, né
Eh eh
587 972 Renato Antigamente se viajava como animale, quatro, cinco, seis
973 pessoa quando chegou o quarenta e nove, falei com meu pai,
974 falei: ( ) tocava o sino dirilo diro dim era hora do almoço
975 Chegava na porta da cozinha o Napolitano: “a ( ) isso era
976 A hora pra comida”
588 977 Sandra ahã
589 978 Renato Lá na entrada, dentro do vapor (risos)
590 979 Sandra Dentro do vapor (risos)
591 980 Renato É, mas chegávamos como animale
592 981 Sandra Hum (com pesar)
593 982 Renato Hoje não. E lá, nunca tinha visto mulher de short lá
594 983 Sandra Hum hum
595 984 Renato na vida. uma alemoa que embarcava no navio em Napole.
985 Aquilo era um paraíso. Normal agora, mas não naquela época
596 986 Hum hum
597 987 Nunca me esqueço (.) então a vida era isso. Comprar uma
988 propriedade, fazer a dote pros filhos, pras filhas ou comprar um
989 negócio pros filhos porque Itália tava quebrada era uma Italia
990 que tinha tido guerra o quatorze a o dezoito, depois é a guerra
179
991 da África, depois vem o Franco na França, na na EspaNHA
598 992 Sandra Espanha
599 993 Renato na Espanha (.) depois vem o Mussolini com aquela coisa.
994 quando chegava ( ) dizia assim: “você tem sorte, vai no
995 Brasil, mas que sorte que você tem hein?” Mas não sabia o
996 inferno que encontrava aqui, mas não inferno encontrou (.) os
997 costumes, não é inferno, essa terra é terra abençoada por deus!
600 998 Sandra Hum hum
601 999 Renato Um brasileiro que fala mal do Brasil ele não tem cultura, ele
1000 Quer ( ) infelizmente.. você tem algum parente português
1001 não? Sua família é portuguesa? não?
602 1002 Sandra Hum não. É muito longe
1003 Maria É Leite
603 1004 Sandra É Leite, mas é muito longe
604 1005 Renato sim sim, mas o problema do Brasil ter ficado assim sabe qual é?
605 1006 Sandra Ahã, ahã?
606 1007 Renato Que foi colonizado por português
607 1008 Sandra (risos)
1009 Ele apanhou o ouro, levou pra Portugal os ingleses apanhou
1010 Deles. Então eles ficaram só com o ouro, porque essa é uma
1011
Maria
Terra abençoada por Deus. Não trabalha quem não quer. Um
[( )]
1012 camarada vem trabalhar aqui dá pra sustentar o filho. trabalha
1013 como cabeleireira, como manicure, como doméstica e tudo. eu
1014 tiro o chapéu. A menina chega aqui sábado venho, mas não
1015 volta. Que é preguiçosa, eu odeio isso. A terra é abençoada
1016 por deus ( ) sabe como é que é? chama desempregado. o
1017 desemprego eu não aceito. Tem muitas coisas. Eu não aceito
1018 tem tanta coisa pra fazer! Compreendeu? tem gente que diz
1019 que não tem sorte!
608 1020 Sandra agora eu lembro, que um dia o senhor disse que assim que
1021 quando o senhor chegou aqui! Na Itália, o senhor tinha cama
609
1022
Renato
bem feitinha, que quando veio aqui tinha uma esteira, né
[não não é]
610 1023 Renato Não, não não não, mas isso aqui sabe o que é? Te digo a
1024 verdade eu fui sempre, não o filho mimado, mas ( ) era filho
1025 único como homem , e duas filhas mulher
611 1026 Sandra Hum?
612 1027 Renato Mãe o que que gosta? Gosta mais do filho homem, do filho
1028 homem, então eu tinha certa regalia em casa, compreendeu?
1029 queria um ovo, minha mãe fritava, queria isso, ok. Então,
1030 quando cheguei aqui meu pai era um homem severo. Podia ter
1031 o que quisesse, era um homem honesto. Chegamos em São
180
1032 Cristóvão, a minha tia era viúva
613 1033 Sandra hum
614 1034 Renato Lavava roupa (.) pra sustentar os filhos que era irmã do meu
1035 pai, o quarto tinha oito filhos, os filhos. Não dava pra estudar
1036 nem nada. Trabalhava pra marinha fazia aquelas calças da
1037 marinha, ela lavava roupa pra fora, mas a minha tia ofereceu
1038 a casa, falou com o filho dela: “O. dá a cama pro Renato, dá,
1039 dá. dá a cama pro Renato”. Ele dormia no chão, meu pai já
1040 tava aqui: “Oh! M.! compra uma cama pro Renato e bota
1041 Aqui”, “onde compro?” “A na rua Bela que tem uma boa”. ele
1042 me trouxe uma esteira ao invés da melhor
615 1043 Sandra ahã
616 1044 Renato Quando eu olhei aquilo “puta que pariu (.) mas isso é a cama?”
1045 “É, provisória! Pra não gastar o dinheiro”. Então meu primo
1046 me deixou dormir na caminha dele e ele dormia em cima de
1047 esteira
617 1048 Sandra Ah! coitado
618 1049 Renato Era assim ou uma esteira ou uma cama turca, cama turca sabe o
619 1050 Renato que É?
620 1051 Sandra O que? Aquela que dobra?
621 1052 Renato nÃO! É quatro tábua com quatro pés
622 1053 Sandra ahã
623 1054 Renato Aquilo se chama cama turca depois o filho foi pra Amaca e
1055 disse vem comigo na Gomes Freire, te dou comida, encontro
1056 uma cama que caiba, assim patente. Aquela cama que dava,
1057 como é que se chama o bicho que fica embaixo da cama?
624 1058 Sandra O percevejo?
625 1059 Renato Percevejo. A cama, coloquei querozene embaixo da cama
626 1060 Maria Mas ele não tinha
627 1061 Renato Não tinha ( ) aquela casa. ( ) vc aceita as minhas palavras
1062 coisa vergonhosa, mas era uma cabeça de porco. Quando
1067 cheguei da itália, fui morar numa casa. Aqui tinha uma cama
1068 aqui tinha outra cama, aqui tinha. Tutti em volta era um curral
1069 um curral de Dona C., uma patrícia
628 1070 Maria No Brasil, né?
629 1071 Renato É ali na Paula Mattos
630 1072 Maria Lá era o reduto dos italianos
631 1073 Sandra Igual ( )
632 1074 Renato Lá sabia da vida dos outros, sabia de tudo. tinha o banheiro
1075 coletivo. tinha que fazer fila, espera que vou io. O primeiro
1076 saia espera mais um mocadinho
633 1077 Maria Ele comeu o pão que o diabo amassou nessa época
634 1078 Renato Bom, isso passou porque eu não vou fazer isso não “eu vou
181
1079 arranjar outro, outro negócio”. Um dia um sujeito ordinário
1080 trouxe uma mundana, uma vagabunda que todo mundo ali
1081 escutou ahhh. O patrício, o outro compadre falou “ela quer
1082 fazer xixi leva ela porta afora”, eles brigaram com o outro
1083 Patrício então aconteceu uma coisa, lá no Catumbi em frente
1084 a S. tinha uma igreja bonita ( ) Nazaré então disse a S.o. minha
1085 mãe tinha batizado uma filha dele. Casou por correspondência
1086 Sem conhecer o marido, por retrato, ho detto “compadre tu pode
1087 dormir aqui que te arranjo uma casa, uma vaga” nos primeiros
1088 anos do lado da minha cama tinha um português “e o banheiro
1089 compadre?” “O banheiro é um sacrifício” ha detto. “tem só, um
1090 só banheiro se você quiser ir e outra pessoa também”. Saí de um
1091 inferno e caí em outro inferno (risos) mas não falou isso. Falou
1092 Assim: “tem que apanhar acqua, no balde, na caçamba”. Falou
1093 Assim o português: “lá embaixo tem uma escada, tem que jogar
1094 água quando fizer a necessidade, senão outro reclama”. Se
1095 estiver falando mentira que Deus me cegue. Tinha que ficar
1096 assim ó, era só um duto de cimento. chegava lá e bla bla bla.
1097 um bonito dia de noite escutei um sujeito que tossia: “cof cof.”
1098 do meu lado tinha um rapaz que dormia quando de manhã.
1099 Esse camarada com uma folha de jornal toda cheia de sangue
635 1100 Sandra Tuberculose?
636 1101 Renato Tuberculose. Quando cheguei um compadre disse “tem um
1102 trinta e três”, não sabia o que era esse trinta e três ha ha ha
637 1103 Sandra Trinta e três era tuberculoso?
638 1104 Renato “Un po’ di tísica” ha detto. Eu disse: “compadre amanhã vou
1105 sair daqui”. “Não” disse “que te arranjo um lugar perto da
1106 janela”, mas eu saí e fui morar no grajaú, na rua Dona A. ( )
639 1107 Sandra E ai do Grajaú você foi pra onde?
640 1108 Renato Do Grajaú, fui de novo pro Paula Mattos
641 1109 Sandra Ãhn?
642 1110 Renato Do Paula Mattos ai arranjei um amigo meu que se chama A.
1111 Naquela época trabalhava de alfaiate, o A., tinha o A.o. um
1112 cozinhava, um lavava os pratos, um apanhava a água na bica
1113 de noite
643 1114 Sandra Ai, você foi pro Paula Mattos e ficou com mais duas pessoas
644 1115 Renato Éramos três pessoas, compramos fogão a querosene que a
1116 comida pros três cheirava mais a querosene do que
645 1117 Sandra Do que cheiro de comida (risos)
646 1118 Maria Você pode, florear um bocado a história dele
647 1119 Renato ( )
648 1120 Maria ( ) você ta contan . então se você lembrar, ela floreia mais
649 1121 Renato Tem imigrante, tem imigrante. Outro dia me veio um
182
1122 português. Ah porque eu fiz isso, aquilo. Ho detto: “olha!
1123 Tudo não é nem mais inteligente, nem mais esperto tu é mais
1124 rico, mas o seu dinheiro não me serve não”. Tutto um homem de
1125 onore, mas sabe porque? Ele veio de Portugal já com LínGUA
1126 do outro país, mesmo o tio dele tinha uma barraca, um
1127 venditore. Olha o que você tem ai. Agente falava A o sujeito
1128 falava O, a gente ficava quieto tinha que escutar um e outro
1129 pra vender. Tive sorte, ele mais sorte, mas o sujeito não era
1130 mais inteligente do que eu.
650 1131 Maria Chegou no Brasil, chegou em barra do piraí, me encontrou né?
1132 nos encontramos, dois fósforos apagados
651 1133 Renato Ta falando a verdade
652 1134 Maria
Renato
A nossa vida minha filha
[( ) ]
653 1135 Renato Io me chamo Renato lá não é nada aqui é fruta, né mulher?
1136 Outra coisa quando Deus, ouve as preces e te dá uma esposa
1137 Produtiva igual uma árvore que faz frutos, os filhos que nascem
1138 o primeiro que nasce é esse nome. Então disse vamos casar
654 1139 Sandra Tinha que ter uma Rosária e um Mário
1140 Maria Rezei tanto pra que os dois primeiros viesse uma menina e um
1141 menino e pronto!Ah pelo amor de Deus
655 1142 Renato Outra coisa, vem que te explico, desculpa falar meu gosto,
1143 palavra assim meu primo falou assim, ele era mais inteligente
1144 eu tinha feito o quarto primário ele tinha feito oito, ela a escola
1145 de professora. “o dia que você vai casar, faz um filho ou dois,
1146 não faz mais filho não. Sua mulher te trata”. Até nisso o patrício
1147 disse a realidade , porque se você vai se encher de filho, veja
1148 Sua tia tem que lavar as roupas com cheiro, roupa fedorenta
1149 Porque, porque tem muito filho. Porque eu fui um rapaz que se
1150 tinha quinze anos andava com os rapazes de dezoito, se tinha
1151 dezoito eles tinham que ter vinte e dois
656 1152 Sandra ahã
657 1153 Renato Compreendeu então eu vi a vida, o sujeito não acredita, não
1154 acredita na vida. Fiquei sabendo ( )
658 1155 Sandra Então o senhor disse que tava no Grajaú, do Grajaú o senhor
1156 voltou pra paula mattos e de Paula Mattos, depois de paula
1157 Mattos o senhor já veio, já veio pra Nilópollis ou pra Barra?
659 1158 Renato da paula Mattos começamos a namorar
660 1159 Sandra ahã
661 1160 Renato Aquela época, o cinqüenta e cinco o cinqüenta e seis
662 1161 Sandra ahã
663 1162 Renato Telefonava, marcava na casa da prima dela que morava perto:
1163 “te chamo depois”, depois de uma hora ou duas telefonava,
183
1164 Compreendeu?
664 1165 Sandra Ahã
1166 Renato “te chamarei depois, amanhã venho de dia”
1167 Maria Aqui vocês não querem sentar pra irem comendo
1168 Renato O que já deu a hora?
1169 Sandra Depois eu quero fotografar isso, ok
1170 Maria Ah! Então ta. ( ) (barulho das pessoas se afastando em direção
1171 a mesa de jantar) porque eu vou servir o almoço mais cedo
1172 hoje porque ela tem que ir
665 1173 Renato Não sim, claro
666 1174 Sandra Cortei um pãozinho italiano
667 1175 Renato O que?
668 1176 Sandra Cortei um pãozinho italiano
669 1177 Maria Entendeu? Vai beliscando ai porque ... (.) Ta bom? A gente
1178 tem que resolver
670 1179 Renato Me dá um copo de vinho pra moça
671 1180 Maria ( )
672 1181 Renato O me dá um copo de vinho
673 1182 Sandra (risos)
674 1183 Maria Vinho? Não sei se pode beber...
675 1184 Renato Traz o ragú
676 1185 Maria Esse aqui né? (Referindo-se ao vinho)
677 1186 Renato ( ) ela é professora formada, eu sou mais velho nove anos que
1187 ela e essa é nossa vida, de felicidade
678 1188 Sandra Eu lembro que da outra vez os senhores me falaram que: “você
1189 Sabe que ela é professora”, alguém te falou isso?
679 1190 Renato Ah não é tinha um senhor comerciante que era parente do meu
1200 tio tinha uma conhecida que era a irmã dela
680 1201 Maria O vinho
681 1202 Sandra obrigada
682 1203 Renato Ducato d´oro
683 1204 Sandra Ducato d´oro dell´Emilia
684 1205 Renato Passou, passou. Foi no sete de setembro, que uma data que eu
1206 nunca me esqueço. Quando outubro, novembro voltei. O C.
1207 falei quero namorar essa menina aqui, mas ela é professora!
1208 mas ela não me falou naDA. Ai veio outro patrício meu, você
1209 vai casar mesmo com professora, você? Um retirante!
1210 Não acredito
685 1211 Sandra E naquela época o professor tinha prestígio, né?Porque agora..
686 1212 Renato Pó que sorte desgraçada que tem (risos)
687 1213 Sandra (risos) ( barulho de louça)
688 1214 Renato então (risos) e foi verdade, não sabia, te juro que não sabia era
1215 uma morena bonita, com umas pernas bonitas, cheia de recato
184
1216 posso falar?
689 1217 Maria O que?
690 1218 Renato Das namoradas?
691 1219 Maria A mais feia (risos) tão feia e dei uns filhos bonitos pra ele viu
1220 As netas bonitas também
670 1221 Sandra São bonitas mesmo
671 1222 Maria Isso é um pãozinho italiano
672 1223 Sandra Ciabata, né
673 1224 Maria é
674 1225 Renato Na minha terra se diz, árvore que não faz fruto, cortam-na,
1226 tagliano
675 1227 Sandra (risos) essa rolha ai,
676 1228 Renato Onde ta?
677 1229 Sandra O abridor?
678 1230 Renato O abridor
679 1231 Maria É, não precisa esse ai é só girar a rolha
680 1232 Sandra (barulho de rolha estourando) opa!
681 1233 Renato (risos) Saúde!
682 1234 Sandra Saúde, obrigada (risos)
SEGUNDO SEGMENTO
683 1235 Maria ( ) acho que vou colocar ( )
684 1236 Renato você tem que estar lá uma hora?
685 1237 Sandra eu tenho que estar lá uma hora. eu posso voltar outro dia (risos)
686 1238 Renato Que horas são?
687 1239 Sandra São onze horas
688 1240 Renato ( ) vamos puxando
689 1241 Sandra tá, tá
690 1242 Maria Preparei o molho pro macarrão, a água ta fervendo é rapidinho
1243 Ai almoça direitinho, depois você vai.
691 1244 Sandra Ta bom, obrigada
692 1245 Maria Ta bom?
693 1246 Sandra Ai, voltando. Do Paula Mattos você ficou namorando a Maria
1247 aqui
694 1248 Renato nos casamos aqui. Eu trabalhava em feira, tinha uma barraca
1249 di ( ) tinha que ir pro Leblon, Copacabana, conheço a zona sul
1250 todinha. Quando eu cheguei aqui comecei a trabalhar como
1251 alfaiate, mas ai teve meu vizinho que perguntou: “o rapaz,
1252 você não quer trabalhar como vendedor de bebida, não? Ali
1253 em Duque de Caxias.” Eu disse: “perfeitamente”. Andava pra
1254 cima e pra baixo, depois, outro patrício ( ) porque alfaiate não
1255 dava muito dinheiro não. Se continuava a trabalhar como
1256 Alfaiate não tinha o pouco que tenho. Comecei a vender
185
1257 Sandália e chinelo lá, depois vim pra cá. Comprei uma casa
1258 em Nilópolis. Não era uma casa, mas pra pagar um aluguel
1259 caro era uma tristeza.
695 1260 Sandra hum hum
696 1261 Renato o camarada me vendeu a casa, não era um casa era dois quartos
697 1262 Sandra hum hum
698 1263 Renato agora um momento. num quarto se cozinhava e se dormia, o
1264 outro quarto tinha um banheiro dentro de casa, mas não era
1265 um banheiro. ( ) mas eu como tive sorte fiz mais dois quartos
1266 na frente.
699 1267 Sandra hum hum
1268 Renato Mas fui morar lá de ônibus, apanhava o trem e ia pra lá. Aí
1269 Começaram a ficar doentes as crianças por causa da fossa
670 1270 Sandra E o senhor quando morava em Nilópolis trabalhava onde?
1271 ali, em Nilópolis mesmo?
671 1272 Renato por minha conta mesmo
672 1273 Sandra mas, ali?
673 1274 Renato dentro de casa
674 1275 Sandra hum hum
675 1276 Renato a alfaiataria era dentro de casa
676 1277 Sandra Ah, ta! em Nilópolis era a alfaiataria
677 1278 Renato A alfaiataria e depois comecei a vender chinelos
678 1279 Sandra hum hum
1280 Renato quando chegou um certo ponto que as crianças começaram a
1281 ficar doente, ai. Viviam no hospital tinha que ir pra uma lado
1282 e pro outro. Falei assim: “o Maria, ou vamos embora pra Itália
1283 ou vamos pra Barra do Piraí”. Sem dinheiro porque não tinha
1284 dinheiro.
679 1285 Sandra ahã
680 1286 Renato vamos pra Barra do Piraí ( ) vendi minha casa lá, comprei a
1287 que dei pro meu filho aqui.
690 1288 Sandra hum ta aqui perto
1289 Renato ele virou comerciante, logo aqui. dei pra ele. ai vamos estudar
1290 as filhas. Estudar a filha, estudou lá na estrada de Ipiabas, se
1291 formou, se casou. Ta trabalhando. Agora ta em pensione.
691 1292 Sandra Ah, ta agora que se aposentou
692 1293 Renato tem que estudar uma filha ou tem que ser arquiteta ou
1294 engenheira, foi ser professora ela. Ela trabalha em três local.
693 1295 Sandra hum
694 1296 Renato trabalha na prefeitura, no José Costa que é um colégio
695 1297 Sandra ahã
696 1298 Renato Não tem colégio, não tem nada, que tem outro na prefeitura
1299 Trabalha também, trabalha em três local. Então com as minhas
186
1300 Forças, eu e minha senhora educamos os filhos. Pagamos três
1301 Faculdades (referindo-se às netas)
697 1302 Sandra hum hum
698 1303 Renato ( ) não tive neto, fecharam a porta não sai mais nada, só filha
1304 mulher
699 1305 Sandra (risos)
700 1306 Maria que que é?
701 1307 Renato tua neta, tua filha não deu homem
702 1308 Maria Ah, sim
703 1309 Sandra quem sabe não vem um bisnetinho, né?
704 1310 Maria to falando quem sabe? Mas graças a Deus tudo com saúde,
1311 sabe? Negócio de de
705 1312 Renato [( )] mudando de assunto ( ) o M. ( ) seu J. também ta no Rio
706 1313 Sandra hum hum
707 1314 Maria você já fez entrevista com eles, né?
708 1315 Sandra Já, já
709 1316 Maria ( )
710 1317 Sandra quando o senhor falou, a gente tava conversando e o senhor
1318 falou que conheceu o pai da G. A., da da que é barítono, da
1319 atriz. Quando foi?
711 1320 Renato Ah, morava lá perto,
712 1321 Sandra mas foi da primeira vez ou da segunda vez que o senhor morou
1322 Na Paula Mattos?
713 1323 Renato no no era novo, era novo. A família toda morava lá em Santa
1324 Teresa
714 1325 Sandra ahã
715 1326 Maria Lá era o reduto
716 1327 Renato um reduto, você queria não podia. Deixava uma namorada ai
1328 pedia pra fulano escreve pra ela, mas vinha no vapor, vinha
1329 dez cada vez (referindo-se ao hábito de usar os que emigravam
1330 como mensageiros que traziam notícias)
717 1331 Sandra nossa!
718 1332 Renato e vinha uma também que se casavam por retrato
719 1333 Sandra procuração!
720 1334 Renato procuração (risos)
721 1335 Sandra (risos) (..)
722 1336 Renato a família, S. A. o senhor A. A., mas ela deve ser neta ou
1337 bisneta dele. com a família tutti ( )
723 1338 Sandra eles são calabreses também?
724 1339 Renato eles são da Toscana, são da da como se chama? CAMPAGNA
1340 são tutti da campagna, igual aqui tem o M., o M.o. é da
1341 Campagna, o avô paterno do coisa é da Campagna. São da sul
725 1342 Sandra é
187
726 1343 Renato de Roma pra baixo somos do sul.
727 1344 Sandra (risos)
728 1345 Renato Dona D., tanta gente conheci eu lá (..)
729 1346 Sandra pra entender o movimento, você morou com a tua tia, perto do
1347 seu pai no início, mas depois
730 1348 Renato ( ) namorada ( ) sabe por que? Meu pai era uma pessoa muito
1349 esquisito (.) era muito sério, se namoravo uma filha de patrício
1350 “Vê lá o que que você vai fazer, hã.” Como essa minha senhora
1351 era conhecida do meu tio que ( ) “Vê lá não deixa teu tio com
1352 cara grande não, hein?” compreendeu? As mulheres me queriam
731 1353 Sandra o senhor era bonito, me mostrou a foto
732 1354 Renato hã?
733 1355 Sandra o senhor já me mostrou a foto, de quando o senhor era novo
734 1356 Renato hã?
735 1357 Sandra o senhor me mostrou a foto, o senhor era bonito, né?
736 1358 Renato é é e: aquela quantos anos eu tinha. Cheguei aqui com vinte
1359 e quatro, vinte sete eu tinha, era novo, era novo, compreendeu?
1360 e ela é ciumenta [cochichando, em tom de confidência] de
1361 todas as namoradas que namorei ela era a mais feia, mas é a
1362 que eu mais gosto.
737 1363 Sandra (risos)
738 1364 Renato palavra de honra, te juro. palavra de honra, tu sabe o por quê?
1365 Eu não vou dizer a sua pessoa porque ia ser um pouco pesado,
1366 mas quando você gostava e a pessoa te convidava pra ir a casa
1367 naquela época, que falava de verginità, que não era mais
1368 Virgem era babaca o homem
739 1369 Sandra hum hum
740 1370 Renato Eu só fui beijar ela depois de três, quatro, cinco, seis MESes
1371 demorada
741 1372 Sandra (risos)
742 1373 Renato e com posição social e tudo, namorei é que é uma delícia todo
1374 dia pegava o bondinho, no largo das neves. Agora não sei mais,
1375 sabe o bondinho?
743 1376 Sandra hum, hum, tem tem o bondinho ainda
744 1377 Renato compreendeu? ( ) palavra de deus te juro que estou sendo
1378 sincero
745 1379 Sandra ela fazia jogo duro (risos)
746 1380 Renato ma no, ela era sincera
747 1381 Sandra ahã
748 1382 Renato está se passando isso, isso e isso comigo. Na minha casa tem
1383 isso isso e isso. Você não pode dormir na minha casa, tem que
1384 dormir no hotel. Se fosse outra “não pode dormir aqui” e tal
1385 Ahh pára com isso!
188
749 1386 Sandra (risos)
750 1387 Renato compreendeu? pra mim de todas as namoradas que tive eu amo
1388 essa. por mim se ela morresse eu ia junto. nós somos assim ó
1389 assim ó (fazendo sinal com as mãos de unha e carne). Não
1390 deixa morrer não amor. Não é por interesse é pelo caráter (som
1391 de ônibus) tem um caráter permanente um caráter de ( ) mas
1392 a mais feia é ela.
751 1393 Sandra (risos) fica irritada, né? mas tem que ficar (risos)
752 1394 Renato e nunca me deixou decepcionado quando vinha um patrício,
1395 ela sempre pronta, uma vez veio um patrício, filho, sobrinho do
1396 meu irmão, meu primo que mora em Itatiaia chama B. A., a
1397 mãe se chama E. é de Milão um engenheiro telefonaram, mas
1398 como é que você engenheiro me telefona de Milão? e o B.
1399 como é que você está se arranjando por ai? Aqui tem uma
1400 Luzzitana! A Luzzitana era a mulher do Renato (com orgulho)
1401 porque ela já teve em Itália, apanhou o costume, a minha prima
1402 lá: “é uma boa moça pros filhos então minha mulher diz,
1403 vamos fazer aquilo”.
753 1405 Sandra ah você diz que a Maria ela já teeem
754 1406 Renato é Luzzitana, é di Luzzi
755 1407 Sandra ah ela já pegou os modos da (risos)
756 1408 Renato qualquer patrício que vier aqui é incapaz de dizer de que não
1409 gostou dela. Dizem até que eu sou meio grosso, mas nada dela
1410 pegam ela e colocam numa torre, eu falo com sinceridade
1411 quando vê que uma pessoa me procura a mim ela se alegra
1412 fica contente, vem prefeito, gente da alta sociedade que tem
1413 contato com, como se chama? Eu me esqueço, ora to me
1414 esquecendo agora o do consulado?
757 1415 Sandra o cônsul
758 1416 Renato o cônsul. ela é maravilhosa, mas tem outras brasileiras que não
1417 desculpa não cuspo no prato que como, mas tem outras
1418 brasileiras que são assim (levantando o nariz)
759 1419 Sandra esnobes!
760 1420 Renato tem outras que são assim (repetindo o gesto) Deus que me
1421 perdoe que se sente dona do paraíso. Ela não, o café dela!
1422 eu fico contento, faz tudo e a vida é isso. Eu acredito a sorte
1423 e o destino se não tiver esses dois fatores não vince, não vence
1424 então, dentro da minha família tem médico, engenheiro,
1425 lavrador
761 1426 Sandra hum hum
762 1427 Renato de todo tipo, cada um tem uma profissão porque na minha
1428 família um tinha que ser advogado, outra freira. pra não se
1429 casar
189
763 1430 Sandra hum hum. Pra sustentar, pra cuidar, cuidar dos pais
764 1431 Renato mas agora passou. agora já passou. não tem mais essa coisa
1432 antiga, muito radical. graças a Deus, acabou tudo
765 1433 Sandra como é que foi isso? tua mãe ficou sozinha, né? Ai vocês
1434 disseram que tinha um moinho e tudo, tinha a propriedade
1435 ela tinha que cuidar da propriedade e dos fiiilhos.
766 1436 Renato depois vendeu!
767 1437 Sandra mas assim durante a sua infância até você vir pra cá?
768 1438 Renato ma naquela época?
769 1439 Sandra no caso passou por guerra também, enfim
770 1440 Renato passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto
1441 era um garoto novo. O governo fechou tutto que moinho
771 1442 Sandra ahã
772 1443 Renato duas horas da madrugada eu puxando o burrinho minha mãe
1444 carregou o bolo de saco de trigo pra botar ele lá, compreendeu?
1445 nós andamos daqui até o batalhão a pé, carregando o burrinho,
1446 uma senhora e meu pai ficando aqui.
773 1447 Sandra isso foi o que? duranteeeee
774 1448 Renato durante a guerra, no quarenta e quatro, quarenta e cinco,
775 1449 Sandra ahã
776 1450 Renato depois ( ) o quarenta e cinco
777 1451 Sandra então o senhor participou, né?
778 1452 Renato participei no último tempo, eu recebo uma pequena pensão da
1453 guerra. Porque eu pago o INPS aqui e recebo isso de lá.
1454 compreendeu? isso eu vivo isso dessa maneira. Minha mãe era
1455 corajosa, camponesa. Puxando o burrinho mesmo minha mãe
1456 com um pedaço de vara puxava, óo.
779 1457 Sandra Então mesmo durante a guerra vocês não passaram?
780 1458 Renato hã?
781 1459 Sandra Vocês chegaram a passar fome?
782 1460 Renato não
783 1461 Maria Olha o molho eu deixei separado
784 1462 Sandra obrigada
785 1463 Maria (dirigindo-se a Renato) coloquei pouquissimo molho porque
1464 não pode por causa do... ai você se serve, ta à vontade
786 1465 Sandra obrigada
787 1466 Maria não fique esperando por mim não. Eu vou lá dentro
788 1467 Sandra ta (risos) brigada. Bella pasta!
789 1468 Renato Tinha um bocado de ( ), um bocado de anemia então médico
1469 Me proibiu de muito molho, muita carne. Eu tinha a calça, o
1470 Pantaloni era cinqüenta e dois agora é quarenta e seis
790 1471 Sandra Emagreceu bem, hein?
791 1472 Renato é
190
792 1473 Sandra (risos)
793 1474 Renato Bom, tem, macarrão, né
794 1475 Sandra (risos) buon appetito
795 1476 Renato Coma um po´. Ó não fica acanhada não
796 1477 Sandra Não, muito bom
797 1478 Renato Ó Maria! Coloca um po´da queijo parmesão pra ela, desse
1479 Queijo. Sabe?
798 1480 Maria ta ta aqui. Se você quiser o queijo aqui tem, tem a carne tem
1481 o molho, ta?
799 1482 Sandra Aqui a mesa é à moda italiana, assim, sempre? (risos)
800 1483 Maria ahh
801 1484 Renato éee
802 1485 Sandra Ou tem também as interferências brasileiras
803 1486 Maria Ih, não aqui tem só a comida italiana
804 1487 Renato Aqui é comida italiana
805 1488 Maria é
806 1489 Renato aqui sabe como faz, bota ( ) bota no pão com azeite e come
1490 no pão com azeite
807 1491 Maria me casei, não sabia cozinhar aprendi assim
808 1492 Sandra é bem, bem estilo italiano, né?
809 1493 Renato não fica acanhada não, viu
810 1494 Sandra não pode deixar
1495 (..)
811 1496 Renato sabe essa moça aqui?
812 1497 Maria ó aqui ta a salada, não ta temperada, viu
813 1498 Renato nunca botou um prato. Veio a aprender comigo e com os meus
1499 parentes
814 1500 Sandra Ah! Então por isso que é luzzitana (risos)
815 1501 Renato Um dia, mas isso foi há vinte e quatro anos.
ENTREVISTA VITTORIO
192
Entrevista realizada dia 03 de fevereiro de 2007
01 01 Sandra ( )
02 02 Vittorio Ta fazendo dia dois, “fiz” de quarenta e nove para dois mil e
03 sete, cinqüenta e...Nossa Senhora!
03 04 Sandra Cinqüenta e oito anos, então?
04 05 Vittorio ( )
05 06 Sandra Desculpe, qual é a data?
06 07 Vittorio 29 de julho de 1949.
07 08 Sandra E veio de avião? ((risos))
08 09 Vittorio E vim de avião. Quer dizer, levou trinta e seis horas voando, veio
10 enguiçando por aí afora.
09 11 Sandra Ah que horror.
10 12 Vittorio Descemos no Senegal, em Dacar, depois paramos em Natal no
13 Rio Grande e depois no Rio de Janeiro, quando chegava no Rio
14 Rio de Janeiro vinha quatro motores, eram quatro motor a as
15 asas eram utilizadas como tanque de combustível.
11 16 Sandra Hum-hum.
12 17 Vittorio É que a viagem era longa, naquela época era Pistão não
18 existia Jato nada, disso nem tudo é ( )
13 19 Sandra E parando, né?
14 20 Vittorio Não, uma coisa a gente vinha enguiçando, porque como ele
21 tinha treze lugares só, ele só tinha asa e tanque e não
22 explodia, né? E quando chegou no Rio de Janeiro pra descer
23 quebrou dois motores, pifou o terceiro e a asa virou, o piloto
24 conseguiu acertar, se bate com a asa explodia. Então a
25 chegada foi assim. ( ) não porque eu era garoto, tinha
26 treze anos.
15 27 Sandra Tudo era festa, né? Não tinha noção. (risos)
16 28 Vittorio É, não tinha noção das coisas, mas depois que ( )
29 passagens anteriores.
17 30 Sandra Hum-hum.
18 31 Vittorio (....) e a “Itália” foi fundada em mil novecentos e quarenta e
32 e seis. Tinha três anos, três anos. Quando viajava pra Itália,
33 às vezes que eu viajava bastante, ia comissário com comandante
34 na cabine e tudo, pessoal ia, mas pessoal pioneiro porque a
35 Itália foi fundada em quarenta e seis, eu vim viajando em
36 em quarenta e nove, realmente era um negócio... Um dos
37 primeiros a utilizar o ( ).
19 38 Sandra Quando falou, eu achei que fosse navio, aí falou de avião...
20 39 Vittorio Não, não. Eu, eu fiz uma viagem de navio sim, mas foi em
40 mil novecentos e sessenta... eu me formei, fiz direito, me
41 formei em mil novecentos e sessenta no Rio né, e em
193
42 sessenta e um, a minha avó tinha permitido depois que eu me
43 formasse, quatorze anos depois, eu saí garoto voltei homem
44 feito, aí eu fui de navio e voltei de navio, onze dias de
45 viagem pra ir e onze pra voltar, hoje onze pra ir onze pra
46 voltar acabaram as férias. ((risos))
21 47 Sandra É, muito tempo, né? Mas você falou que vocês vieram pra
48 ficar no Rio de Janeiro?
22 49 Vittorio Não eu vim, eu vim não pra ver o Rio de Janeiro eu vim por
50 causa dos meus avós, né. Porque o meu avô tinha uma empresa,
51 que era “Del Fiore” né, passou a ser Sociedade Anônima
52 Mandorla. E, lá na Itália, apesar do meu pai ser mádico, o meu
53 avô farmacêutico, e tudo, nós “era” triste com a guerra ( )
54 no período do pós guerra na Itália faltava tudo, a Itália tinha
55 sido destruída, bombardeada, quer dizer, a Itália, ela é um
56 desembocador, tudo que chega na Europa passa na Itália
57 ( ).
23 58 Sandra É.
24 59 Vittorio Então, não existia nada, não tinha, faltava tudo: faltava
60 gasolina, faltava pneu, faltava... não tinha nada. A guerra ( )
61 foi em agosto de quarenta e cinco, eu nasci em trinta e seis...
25 62 Sandra Hum-hum.
26 63 Vittorio Eu tinha nove anos. (......) saí pra rua cantando: “acabou a
64 guerra, acabou a guerra”! Eu tinha nove anos, então ta bem
65 vivo na minha memória, então acabou em quarenta e cinco, eu
66 vim em quarenta e nove, de quatro anos após a guerra estava
67 estava tudo destruído, a Itália foi...
27 68 Sandra Seu pai trabalhou...
28 69 Vittorio Meu pai era médico, que na época do Mussoline chamava
70 Médico “com douto”, era o médico que atendia o município,
71 era médico, oftalmologista, pediatra, ortopedista.
29 72 Sandra Fazia de tudo um pouquinho.
30 73 Vittorio Fazia de tudo porque porque era só ele. Toda a população do
74 município na faixa etária minha, nasceu pelas mãos do meu
75 pai.
31 76 Sandra Hum-hum.
32 77 Vittorio Consertava braço e perna quebrada da turma que trabalhava na
78 zona rural, à colher azeitona, buscar fruta...
33 79 Sandra Então ele recebia azeitona, porquinho, essas coisas todas. Isso
80 é o que o pessoal conta, que os médicos cuidavam de alguém e
81 recebiam...
34 82 Vittorio Ele não recebia, nem cobrava porque não tinham dinheiro pra
83 pagar, uma dava uma galinha outra mandava uma cesta de figo
84 (risos), é engraçado mesmo era uma época que o meu pai ( ),
194
85 fase boa da vida, né?
35 86 Sandra O seu pai era médico morava na Itália e o seu avô já tava no
87 Rio?
36 88 Vittorio Isso, o meu avô já tava aqui. O meu avô...
37 89 Helena [Materno, né.]
38 90 Vittorio É que eu tenho dois ramos da minha família. O do meu pai que
91 é família Mango, ta todo na Itália, da minha mãe Mandorla
92 todo no Brasil. Então...
39 93 Sandra Seu pai conheceu sua mãe...
40 94 Vittorio É, acontece o seguinte: Todos eles eram italianos, o meu tava
95 no Brasil, mas ele foi pra Itália, a minha mãe tinha sete, oito
96 anos quando conheceu meu pai, foram pra lá, se conheceram,
97 foram colegas de infância depois ela veio pra cá, aí o papai
98 veio pro Brasil, começou a namorar minha mãe, noivou e
99 casou e foi embora pra Itália. E eu tenho alma de brasileiro
100 porque eu fui de contrabando daqui pra lá,quando a minha mãe
101 foi pra lá já estava grávida, foi embora e eu nasci na Itália,
102 minha mãe morreu, ( )
41 103 Sandra Mas foi de parto?
42 104 Vittorio Olha ela aqui ó. (risos) Essa é a minha mãe.
43 105 Sandra Linda!
44 106 Vittorio Dizem que ela era muito bonita, né?
45 107 Sandra Muito bonita!
46 108 Vittorio Não a conheci, tinha vinte anos, vinte e um anos, era novinha.
109 Você tem que idade?
47 110 Alessandro Foi no parto.
48 111 Sandra Trinta e dois. (risos)
49 112 Vittorio Trinta e dois? Eu pensei que você tinha vinte e quatro, vinte e
113 cinco, engraçado, ela não parece ter trinta anos , não. Parece
114 ser bem menor. Mas ela tinha vinte e um anos...
50 115 Sandra Era nova ainda...
51 116 Vittorio Então, você vê o quê que é o destino, a minha mãe foi pra lá,
117 estava grávida, eu nasci lá, acabei vindo pro Brasil. Eu viajei
118 com a minha mulher pra Itália e tinha um problema e tal,
119 voltou de lá grávida também, então ele foi também de
120 contrabando.[referindo-se ao filho mais velho que estava na sala]
52 121 Sandra ( )
53 122 Alessandro Foi realmente uma coisa interessante né, por que minha avó
123 engravidou aqui e ele nasceu lá, já a minha mãe engravidou
124 lá e eu nasci aqui.
54 125 Sandra Então não tem desculpa, né. É meio a meio.
55 126 Vittorio Você vê, o fato de eu ter sotaque, eu tenho, eu tenho sotaque
127 carioca. Você não vai achar outro Italiano que tenha passado
195
128 tantos anos...
56 129 Sandra Na Itália, né?
57 130 Vittorio Nascido lá, passado a adolescência lá, como é que chama, o
131 Renato né? Ele tava lá também, o Renato?
58 132 Sandra Não, não, não.( )
59 133 Vittorio Ele chegou em Barra do Piraí oito dias antes de mim. Eu
134 cheguei no dia vinte e nove de julho ele chegou dia vinte e um.
135 E com a minha idade, ele tem mais ou menos a minha idade.
136 Você conversa com ele e vê o sotaque dele é um negócio
137 assim...
60 138 Sandra Italiano puro.
61 139 Vittorio Italiano puro e eu já... Eu cheguei, fiquei mudo durante muito
140 tempo porque era muito encabulado, ficava com medo de errar,
141 com vergonha eu era todo cheio de frescura, garoto inseguro,
142 insegurança todos nós temos mas naquela época era mais ainda
143 porque saí de um mundo que falava italiano, não falava
144 português, não entendia nada, não conhecia meus avós direito,
145 não conhecia, pra mim era tudo...
62 146 Sandra Hum-hum.
63 147 Vittorio Mas eu comecei devagarzinho estudando, me apaixonei pela
148 língua portuguesa e gostava, estudei um ano no São José ( )
149 fui desenvolvendo e acabei que era o melhor aluno de
150 português da turma lá no São José, porque me dedicava, tinha
151 que aprender, né. Então, fui bom aluno de português, de vez
152 em quando errava, ortograficamente ( ) é difícil, mas eu
153 sempre gostei de português.
64 154 Sandra Hum-hum.
65 155 Vittorio Sempre fui bom em português, e perdi o sotaque, falo com
156 sotaque carioca, mas mantenho o sotaque italiano, quando
157 vou lá também, me escondo no meio e ninguém percebe.
158 ((Risos))
66 159 Sandra ((Risos))
160 Com os seus avós aqui, você falava italiano?
67 161 Vittorio No início sim, só italiano,né.Não tinha como.Só falava italiano.
68 162 Sandra Português só na rua?
69 163 Vittorio E dialeto, hein. Era o dialeto da minha região, por que a Itália
164 tem vários dialetos. Na rua tentava falar português no início,
165 depois não, depois eu comecei a pensar em português, sonhar
166 em português...
70 167 Sandra Hum-hum.
71 168 Vittorio Pensava em português, sonhar em português, aí ta bom, mas
169 no início era só italiano. Esperei um ano pra aprender a falar
170 português, cheguei em quarenta e nove e só em mil novecentos
196
171 e cinqüenta, depois meus tios colocaram no professor
172 particular ( )... Como é que era o nome dele Helena?
173 Barbosa Leite, né?
72 174 Helena É, Barbosa Leite.
73 175 Vittorio E ele foi meu primeiro professor...
74 176 Sandra É, na rua ali, na entrada do... ( )
75 177 Vittorio Meu primeiro professor de português. E comecei a ( ) aqui
178 e refiz o terceiro ano ginasial no Colégio Municipal Nilo
179 Peçanha, que naquela época era ali na esquina, onde hoje é
180 Barão de ( ).
76 181 Sandra Na Itália você fez até o terceiro ano?
77 182 Vittorio Até o terceiro ginasial, aí eu vi que tinha aqui.
78 183 Helena O colégio era estadual, não era municipal não.
79 184 Sandra ( ) era calabrês, falava italiano ( ).
80 185 Vittorio Calabrês não, eu, eu nasci acima da Calábria.
81 186 Helena Em Campagna.
82 187 Vittorio Em campagna, eu nasci na campagna. A Calábria é pra baixo,
188 a cidade, o município chama-se ( ) , é a cidade da
189 cidade, é uma aldeiazinha.
83 190 Sandra ((risos))
84 191 Vittorio Nasci aqui, nessa casa aqui ó, essa casa a gente morava na
192 aldeia. ((risos)), que chama garrazzano, garrazzano que em
193 italiano é com dois erres e dois zes, que é uma fração do
194 município de ( ) que pertence a província, que aqui é
195 como se fosse o estado, aqui tem estado lá tem província
85 196 Sandra Hum-hum.
86 197 Vittorio Então era a minha província que é a província de ( ),
198 cinqüenta e quatro quilômetros de ( ).
87 199 Alessandro Aqui, ela é professora de italiano,
88 200 Vittorio Ela conhece da Itália, ta fazendo doutorado, já passou pelo
201 mestrado e tudo.
89 202 Alessandro Entre outras coisas, né.
90 203 Sandra Não, a Itália ( ) pequenas frações.
91 204 Vittorio Fração né. Fração é o município ( ) tem três, quatro frações
205 uma a duzentos metros da outra, em cima do monte assim...
92 206 Sandra E depois de sessenta você foi outras vezes também...
93 207 Vittorio É eu voltei umas trinta, quarenta vezes. Voltei umas duas
208 vezes, minha mulher foi umas quinze ou vinte vezes comigo,
209 férias pouco a gente tirava mas era obrigado a ir por causa das
210 muitas máquinas, o macarrão por exemplo, os melhores
211 equipamentos de macarrão são italianos de Milão, então pela
212 facilidade da língua eu preferia viajar.
94 213 Sandra Hum-hum.
197
95 214 Vittorio Depois tem a Alemanha com as salsicharias, a Espanha por
215 causa do presunto, dos Estado Unidos então eu fazia estes
216 circuitos pra participar das feiras, pra conhecer as máquinas.
217 Eu já viajei muito, inclusive junto com eles, comigo eles foram
218 duas vezes, umas dez eu fui sozinho e a minha mulher foi
219 comigo umas quinze vezes
96 220 Sandra Hum-hum.
97 221 Vittorio A gente viajou muito, viajamos bastante. Sempre que possível
222 eu procurava levar, mas muitas vezes eu viajava sozinho. Às
223 vezes com colega de trabalho mas vezes até sozinho mesmo.
224 Teve uma vez que saí daqui numa terça-feira, pouco
225 movimento, peguei quatro poltronas, deitei, dormi aqui
226 acordei em Roma. ((risos))
98 227 Sandra ((risos))
99 228 Vittorio Foi a melhor viagem que eu tive, dormi a viagem inteira! Mas
229 geralmente ia acompanhado, quando não da família, dos
230 colegas de trabalho, ( ) fui várias vezes.
100 231 Sandra E a fábrica foi fundada quando? Foi pelo seu avô mesmo?
232 Vittorio É foi pelo meu avô. Na realidade o seu início foi em mil
233 novecentos e dezoito o meu avô se chamava Carlo Mandorla,
234 então em mil novecentos e dezoito ele criou Carlo Mandorla
235 e Cia.
101 236 Sandra Hum-hum.
102 237 Vittorio Em mil novecentos e trinta três ele transformou Carlo
238 Mandorla e Cia em Sociedade Anônima Mandorla, e veio
239 assim até os anos setenta, e no final de sessenta, sessenta e
240 nove, setenta, quando a Del Fiore entrou em propaganda
241 anexou o nome Bel Prato e ficou Sociedade Anônima
242 Mandorla Del Fiore e depois passou a ser Del Fiore S.A.
243 A marca ficou tão forte que acabou tirando ( )
103 244 Sandra Del Fiore era só um seguimento da empresa?
104 245 Vittorio Não, Del Fiore era a empresa.
105 246 Alessandro Era inicialmente a marca dos produtos.
106 247 Vittorio É a marca dos produtos.
107 248 Sandra Como um nome fantasia?
108 249 Vittorio Isso nome fantasia.
109 250 Sandra O nome fantasia era Del Fiore e...
110 251 Vittorio Tinha outras marcas, mas o mercado foi tão forte que ele
252 sobrepujou todos os demais, passou a ser tão forte que acabou
253 eliminando o nome de Mandorla e passou a ser Del Fiore
254 S.A., Del Fiore S.A. Era Mandorla Del Fiore e depois passou
255 a ser Del Fiore S.A.
111 256 Sandra Hum-hum
198
112 257 Vittorio Na época que abriu o capital, as bolsas...
113 258 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?
114 259 Vittorio O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos
260 e setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e
261 noventa e sete.
115 262 Alessandro Ele veio então pra Barra do Piraí?
116 263 Vittorio É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo
264 com vinte e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas
265 caldeiras do navio pra chegar com um trocadinho aqui.
266 Ele era analfabeto... você vê que coisa bonita o avô que era
267 analfabeto que montou a Del Fiore o outro que era que falava
268 latim, então tem os dois extremos,uma coisa bonita, né.
117 269 Alessandro E que ano, que ano que ele veio?
118 270 Vittorio Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos
271 e noventa e sete
119 272 Alessandro Desceu aonde?
120 273 Vittorio Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o
274 endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.
121 275 Sandra Hum-hum.
122 276 Vittorio Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem
277 nada, tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se
278 conheceram no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te
279 levar lá, mas eu tenho que trabalhar, mas no final do meu
280 trabalho”... Então ele passou o dia todo entregando pão junto
281 com ele...
123 282 Sandra Hum-hum
124 283 Vittorio Pra no final do dia ser levado para o tal endereço, onde ele
284 tinha uma pessoa conhecida. Bom aí fica até um pedaço
285 obscuro porque eu não lembro de outros detalhes, só lembro
286 que ele veio parar em cruzeiro, ficou um tempo em cruzeiro
287 E veio para Barra do Piraí onde ele começou as atividades
288 com... ele começou, inicialmente ele vendia fazenda nas
289 fazendas, vendia corte de fazenda, era mascate, chamado de
290 mascate naquela época, as pessoas que viajavam pelas
291 fazendas vendendo as coisas, né.
125 292 Sandra Hum-hum.
126 293 Vittorio Comércio antigamente não existia. Então ele foi vendendo
294 cortes de casimira ( ) Ele levava vários tipos, pra escolha,né,
295 Mas ficavam em dúvida. Aí ele chegou a conclusão que tinha
296 que levar poucos tipos pra não haver dúvida, então só levava
297 dois ou três, porque eram muitas opções.. ((risos))
127 298 Sandra ((Risos))
128 299 Vittorio Passou a levar só duas ou três estampas... ele sempre
199
300 comentava isso, sobre aquela objetividade. Aí depois montou
301 uma empresa e começou, começou a matar porco e vender
302 suíno aí fazia banha e a carne salgada, a industrialização... e
303 depois veio a época da guerra aqui também, com os problemas
304 controles... chamava-se Cofap ( ) Comissão Federal de
305 Abastecimento e Preço.
129 306 Sandra Hum-hum.
130 307 Vittorio O Brasil sempre teve a mania de controlar os preços o que
308 felizmente acabou graças ao Sarney, isso é uma coisa que
309 pertence ao passado, mas foi uma fase complicada, que a
310 política que precede tudo tentava dominar a parte comercial.
131 311 Sandra Hum.
132 312 Vittorio Hoje está provado que o mercado é o que funciona. Mas
313 naquela época se tentava direcionar o mercado, então tinha
314 controle de preços e tudo e o controle é tão grande nos
315 produtos que ele resolveu diversificar, então botou uma fábrica
316 de macarrão, pra não depender apenas de um insumo que era o
317 porco.
133 318 Sandra Ah.
134 319 Vittorio Que era controlado assim. Então ( ) comprou umas máquinas
320 para fazer macarrão, e era umas máquinas com uns parafusos
321 enormes que misturava, a masseira muito rudimentar, botava
322 nos parafusos que espremiam nos buracos para sair macarrão,
323 cortava com a mão, pendurava num bambu, metia numa sala
324 com ventiladores enormes, lá ele ficava cainhava...
135 325 Sandra Hum-hum.
136 326 Vittorio Tem até uma história engraçada por que...
137 327 Alessandro Cainhava é ótimo, né?
138 328 Vittorio Cainhar é quando fica todo rachadinho, trincar, trincar é, ou
329 Mofava, né. ((risos))( ) Macarrão Cruzeiro.
139 330 Sandra ((risos))
140 331 Vittorio Tem até um fato interessante por que o vovô foi... ele casou,
332 depois separou etc, se juntou a outra mulher, a minha avó foi
333 pessoa maravilhosa e nasceram três filhos, o primeiro foi a
334 minha mãe, o segundo foi o Cesar que foi presidente da Del
335 Fiore até morrer, depois eu tive que assumir e o outro foi o
336 Eduardo que foi o dissidente da família, caçula da família.
141 337 Sandra Hum-hum
142 338 Vittorio Mas, o Cesar que era o segundo filho, né, a minha mãe.
339 morreu quando eu nasci, estudou química, então era um
340 técnico, todo perfeccionista, gostava das coisas... Foi ele que
341 começou a Del Fiore e tudo. Também nasceu lá, veio com oito
342 meses, nasceu, nasceu...
200
143 343 Sandra Uma viagem, né?
144 344 Vittorio Nasceu nessa casa aqui...((risos))
145 345 Sandra Ah, ta...((risos))
146 346 Vittorio O Cesar era perfeccionista, aí ele chegou e começou a mexer
347 uma porção de coisas, chegou ao macarrão ( ) o piso tinha
348 cedido, o concreto, então ele resolveu fazer uma coisa bem
349 Feita. Tirou as máquinas, botou o piso no nível, botou as
350 máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou e nunca
351 mais a fábrica de massas funcionou nunca mais conseguiu
352 fazer macarrão, porque as máquinas tinham ganho as formas
353 do piso que foi cedendo, e elas foram se acomodando quando
354 botou tudo no prumo não teve jeito, e ficou pra trás a fábrica
355 de macarrão.
147 356 Helena ( )
148 357 Sandra Pois é, né ((risos))
149 358 Alessandro Não pula a ordem cronológica, não.
150 359 Vittorio Mas vamos botar ordem... porque senão depois ela se
360 confunde, eu não... quando você achar que eu to devagar
361 você me acorda.
151 362 Sandra Ah ta! ((risos))
152 363 Vittorio Então nós estávamos na vinda do meu vô Mandorla, que no
364 início veio como mascate nas fazendas, depois ( ) suínos,
365 Fabricação ( ), macarrão...
153 366 Alessandro Fumo de rolo...
154 367 Vittorio Fumo de Rolo e cachaça, tinha o porco que abatia que fazia
368 banha, depois o macarrão, tinha fumo de rolo, aqueles rolos de
369 fumo ( ), tinha cachaça, engarrafava cachaça, comprava e
370 Minas e tinha cachaça capacete de aço que na época da guerra
371 tinha então que parecia capacete de aço, era cachaça famosa.
155 372 Sandra Hum-hum.
156 373 Vittorio Foi representante da Brahma e era correspondente do Banco
374 do Brasil, ele era uma pessoa muito respeitada e tal, e era
375 correspondente do Banco do Brasil, até a primeira agência
376 passou pelas mãos dele. E aí o tem pó foi passando, chegamos
377 aí aos anos cinqüenta. Eu já cheguei em quarenta e nove,
378 convivi com meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e
379 um de abril de mil novecentos e cinqüenta e um, ele tinha
380 nascido em setenta e dois, então ele estava com setenta e nove
381 Anos. Vinte e oito com cinqüenta e um, é setenta e nove anos,
382 faleceu em cinqüenta e um. Ele faleceu o Cesar tinha vinte e
383 tantos anos na época, assumindo as empresas ( )era fim de
384 ano, eu estava estudando um bocado de coisas, fazendo o
385 terceiro ano ginasial na escola Nilo Peçanha, fui pro Rio fiz ( )
201
386 São José, na Usina...
157 387 Sandra Hum-hum.
158 388 Vittorio Um internato mas eu era externo, só assistia as aulas, eu ia
389 almoçar porque morava ( ) que era pertinho, pegava o
390 bonde ia almoçar, voltava e almoçava e ainda assistia as aulas
391 ( ) então eu era externo. Aí eu resolvi fazer Direito, e tive
392 que sair do São José porque naquela época só havia dois
393 cursos: clássico e o científico. Quem fosse fazer Letras,
394 Filosofia, etc... ou Direito tinha que fazer clássico, que tinha
395 letras, filosofia. Agora quem fosse fazer Engenharia Medicina
396 etc, tinha que fazer o científico.
159 397 Sandra Hum-hum.
160 398 Vittorio Eu acho que uma das razões que me fizeram pensar em sair foi
399 que ali só tinha homem, né.
161 400 Sandra Hum-hum
162 401 Vittorio Então eu já estava ficando crescido não é possível ver só
402 marmanjo e o Lafaiete não, Lafaiete tinha muita mulher, muita
403 menina bonita e tal e eu ficava de olho comprido, e aí acabei
404 indo pro Lafaiete fazer o curso prático ( ). Em cinqüenta e
405 dois, eu estudei lá uns anos, né, ( ) porque meu nome ta lá na
406 estátua do padre, estudei no ano do cinqüentenário ( ).
407 Cinqüenta e três, cinqüenta e quatro e cinqüenta e cinco eu
408 estudei no Lafaiete, que era misto, tinha o feminino e o misto,
409 a minha turma era de oito homens para quarenta e duas
410 mulheres, era a sala do paraíso.
163 411 Sandra Depois de vir de um colégio só com homens...
164 412 Vittorio E foram três anos, aí eu fiz o cursinho pra fazer vestibular, que
413 tinham muitos candidatos pra poucas vagas, mas eu passei
414 junto com o terceiro ano e passei direto pra entrar na
415 faculdade... cinqüenta e cinco, cinqüenta e seis... Comecei em
416 cinqüenta e seis o primeiro ano, cinqüenta e sete, cinqüenta e
417 oito, Cinqüenta e nove, sessenta: cinco anos de ... No primeiro
418 ano eu freqüentei as aulas direito, depois comecei a trabalhar e
419 já não ia... mas... Comecei a trabalhar na Del Fiore... Mas
420 quando faltava uns vinte dias pra prova, onde estivesse eu me
421 trancava, pegava os livros e sempre passei ( ) Fazia questão
422 que eu usasse o anel, que se usava anel de advogado, e ele caía
423 e depois que eu casei botava isso aqui pra segurar. Até que um
424 dia caiu tudo da minha mão e eu não usei mais nem aliança
425 nem nada. Mas ela ficou brava aí, então voltei a usar aliança
426 ( ) ((risos)).
165 427 Helena ( ) ((risos)).
166 428 Sandra ((risos)).
202
167 429 Vittorio Vamos fazer quarenta e um, fizemos quarenta anos de casados,
430 desde mil novecentos e sessenta e seis. E aí comecei, estudava
431 e trabalhava ao mesmo tempo e aí começou a minha vida de
432 cigano, né.
168 433 Sandra Hum-hum.
169 434 Vittorio Eu vivia na estrada, trabalhando na Del Fiore, até a Del Fiore
435 falir, em mil novecentos e noventa e seis. Foi uma vida muito
436 ( ) , perdi tantas coisas, devo ter feito muita besteira, mas
437 aprendi muita coisa e foi um aprendizado extraordinário de
438 vida, de tudo, né. Então esse é um grande resumo, né, agora
439 vê lá que você quer saber mais alguma coisa, algum detalhe...
170 440 Sandra Você tava falando que você estudou, e na época você estudava
441 e trabalhava e tava Rio – Barra ( )
171 442 Vittorio É. Não, não, a Del Fiore vendeu direto, e eu cuidava no
443 marketing, toda a parte comercial ficava comigo.
172 444 Sandra Hum-hum.
173 445 Vittorio Cesar na presidência, tio Eduardo, meu tio, na parte de
446 produção industrial, e eu na parte comercial... televisão,
447 propaganda na TV Globo, aqueles patrocínios do carnaval,
448 então tinha...
174 449 Alessandro Desculpa, eu tenho uma reunião agora, vou te deixar aí, fica
450 à vontade com o meu pai. Depois minha mãe vai ligar pra o
451 Dr. Geraldo Di Biase pra ver se já marca de uma vez. Ta bom?
452 Tchau.
175 453 Sandra Ta, obrigada.
176 454 Vittorio Tchau meu filho, vai com Deus.
177 455 Sandra Tchau.
178 456 Vittorio Então eu cuidava da parte comercial da empresa, isso me
457 obrigava a estar ( ) tinha na época de... em sessenta e nove a
458 Del Fiore começou com propaganda, e foi pioneira porque
459 ninguém do ramo alimentício fazia propaganda na televisão. A
460 Del Fiore foi a primeira...
179 461 Sandra Hum-hum.
180 462 Vittorio Em dezembro de sessenta e nove, fiz um Outdoor do Tender,
463 presunto tender, que tava próximo o natal e depois começou
464 com aquela musiquinha: Del, Del, Del, Del Fiore...
465 Sandra [Del, Del Fiore...]
181 466 Vittorio A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV
467 Globo muito meu amigo...
182 468 Helena Gerente comercial.
183 469 Vittorio É gerente comercial, ia lá pra passar o final de semana,
470 então quando ia acertar o carnaval ele disse: Não Vittorio,
471 aqui não, tem que ser lá na sua casa em Angra. A gente pegava
203
472 a lanchinha que tava lá, saía de lancha, passeava...
184 473 Helena Ele era uma jóia.
185 474 Sandra Hum-hum
186 475 Vittorio Na hora da gente, de ir embora ele dizia: Ih ainda não ( ) e
476 papapapapa, resolvia tudo! ((risos)). A Del Fiore que fazia lá o
477 patrocínio do carnaval, etc. Era assim que a coisa funcionava
478 e com propaganda, foi crescendo... Cheguei a ter cento e vinte
479 vendedores no Rio de Janeiro
187 480 Sandra ( ) Rio Branco, né?
188 481 Vittorio Depois a gente foi pra Brasília, Belo Horizonte...
189 482 Helena Bahia.
190 483 Vittorio Bahia, Salvador, São Paulo, Espírito Santo, fui abrindo... e
484 viajava muito por que participava das convenções
191 485 Helena Essa parte eu gostava.((risos))
192 486 Sandra Gostava...((risos))
193 487 Vittorio Ela me ajudava muito porque ia e fazia camaradagem com as
488 mulheres dos donos de supermercados, então ficava uma coisa,
489 uma linha assim de amizade intensa com todo mundo, ela
490 passou a conhecer ( ), passamos a conviver dentro da casa,
491 um relacionamento maravilhoso, mas isso me obrigava a pegar
492 o avião e estar sempre lá. E a gente unia o útil ao agradável,
493 Porque era uma coisa que era minha obrigação e era gostoso e
494 tal...
194 495 Sandra É. ((risos)).
195 496 Vittorio E o pessoal começava, cantoria e eu gostava de cantar,cantava
497 trazia o microfone e cantava aquelas coisas bonitas...
196 498 Sandra Hum-hum.
197 499 Vittorio E eu era bastante encabulado no início e depois passei pra
500 outro esquema, depois pegava o microfone e quanto mais
501 gente tinha do lado melhor pra mim... ((risos))
198 502 Sandra ((risos)) Gostava de público...
199 503 Vittorio É, é.
200 504 Helena Tinha um dos donos das Casas da Banha, olha como eu me
505 dava bem com ele, e eu falava: ó ce vai parar de vender lá nas
506 Casas da Banha, olha o quê que sua mulher ta falando com o
507 Júlio! Que era o cunha dele, flamenguista doente e eu caía no
508 riso. Por que eu sou fluminense, né!
201 509 Sandra ((risos)).
202 510 Helena Ce não vai mais vender nas Casas da Banha. ((risos)).
203 511 Vittorio Inclusive o Valdemar, que era um dos donos da Casa da Banha
512 Um dia ligou aqui pra casa e disse: Vittorio estou precisando
513 de uma bolsa alimentícia, que era presidente da bolsa aqui no
514 Rio, uma bolsa que mandava pro Mercado Brasil, aí tudo bem,
204
515 aí eu fui ser diretor da bolsa durante três ou quatro gestões ( ).
204 516 Sandra ((risos))
205 517 Vittorio Engraçado, né, era pra eu ser fluminense, porque a bandeira
518 Italiana... Mas você sabe porque que eu num... Eu gosto do
519 fluminense, torço e tudo, mas em primeiro ta o Vasco, em
520 segundo fluminense.
206 521 Sandra Hum-hum.
207 522 Vittorio Pra eu poder estudar aqui no Brasil, temos que voltar aos anos
523 cinqüenta, eu tive que fazer o que chamava na época exame de
524 adaptação. Todo estrangeiro pra poder continuar os estudos
525 aqui tinha que fazer exame de geografia do Brasil, história do
526 Brasil e português, é... eu tinha estudado geografia, estudava
527 geografia mundial, tudo bem. Estudava história mundial, mas
528 você tem história do país, geografia do país...
208 529 Sandra Hum-hum.
209 530 Vittorio Então tinha que fazer essas três matérias: geografia, história e
531 português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e
532 continuar e eu fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo
533 pra Barra, o alto da Boa Vista estava fechado ali, então eu
534 tinha que ficar na casa do sogro do meu tio, fiquei uns quinze
535 dias na casa dele pra fazer o exame.
210 536 Sandra Hum-hum.
211 537 Vittorio E o filho dele Humberto Ferrini, era diretor social do Vasco da
538 Gama. E uma coincidência, nesse ano de mil novecentos e
539 cinqüenta foi inaugurada a sede náutica do Vasco da Gama na
540 Lagoa Rodrigo de Freitas, que até hoje é bonito, imagina,
541 imagina cinqüenta e sete anos atrás... aquilo era um disbunde,
542 era uma coisa maravilhosa. Aí ele pegou e disse: “Não, eu vou
543 te levar pra jantar hoje”. E me levou pra jantar e botou na mesa,
544 você como não era nascida, o Ademir Menezes – o Queixada
545 que foi o maior goleador que o Vasco teve, Antônio Campos e
546 o Chico que era um dos expoentes da seleção brasileira e
547 jogava no Vasco da Gama...
212 548 Sandra Hum-hum.
213 549 Vittorio Isso com um garoto de quinze anos... eu ia fazer o que, eu virei
550 vascaíno na mesma... ((risos))
214 551 Sandra ((risos))
215 552 Vittorio É pegar um garoto hoje e botar com, com Romário... esses
553 jogadores famosos aí. Pra um garoto de quinze anos... de trinta
554 e seis à cinqüenta, estava com quatorze anos, então um garoto
555 com quatorze anos... virei vascaíno.
216 556 Sandra Hum-hum.
217 557 Vittorio Mas o meu avô, agora me lembrei, meu avô era analfabeto, ele
205
558 Foi ( ) no Rio e o camarada exigiu o recibo, então teve que
559 botar impressão digital, e o cara disse assim: “Mas senhor
560 Mandorla, o senhor um empresário assim não sabe escrever?”
561 Passou uma humilhação o meu avô e saiu de lá chorando,
562 soprando ar e, já tinha cinqüenta e quatro anos, disse: “Eu vou
563 aprender a ler e escrever”. Botou professora e aprendeu a ler e
564 escrever, ganhou a vida dele lendo jornal, cadernos de notícia.
565 Você vê o que é a força de vontade, cinqüenta e quatro anos...
218 566 Sandra Hum-hum.
219 567 Vittorio Aprendeu a escrever, a fazer recibo direitinho. Tava falando
568 da minha vida, né... Faculdade, trabalho... Bom, não sei...
220 569 Sandra Tava no colégio ((risos)) levou dez anos pra conhecer...
570 ((risos)).
221 571 Vittorio Não eu conheci no campo de futebol
222 572 Helena Ah não, eu gosto muito de futebol e eu freqüentei muito o
573 Moirão, que é o meu time que é tricolor também. E ele e o
574 pessoal dele freqüentava muito lá, aí a gente, tinha uns amigos
575 meus, tudo homem casado mas sempre ligado ( )
223 576 Vittorio Eu andava com gente mais velha, eu só andava com gente
577 casada, meus amigos eram todos na faixa do meu tio que a
578 diferença era de dez anos, tem uma fase da vida que essa
579 diferença é grande, depois a diferença desaparece e na velhice
580 torna a aparecer, Mas ela some depois dos vinte anos.
224 581 Sandra Hum-hum.
225 582 Vittorio Todos casados, e ela freqüentava muito lá e acabei conhecendo
583 ela lá.
226 584 Helena Não, lá no Moirão tem a parte social, a arquibancada social e
585 Dentro da arquibancada social tinha telhadinho que a gente
586 chamava de tribuna. Então quando eu conheci aquele campo
587 todo e tinham quatro ou cinco que moravam na minha rua...
227 588 Vittorio ( )
228 589 Helena Uns quatro ou cinco que moravam na minha rua, eram
590 conhecidos da minha mãe... então eles me adotaram, eu ficava
591 Muito sozinha, porque as outras colegas não gostavam... então
592 eu ia, não queria nem saber, queria companhia. Então eles me
593 adotaram e diziam: “Você vai sentar aqui com a gente”. E um
594 dia eu cheguei e estava muito cheio, então eu sentei na social
595 mas não na tribuna, aí conversava e o pessoal falando: “Por
596 que você não sentou lá?” E aí o pessoal começou a mexer
597 comigo, mexer com ele.
229 598 Sandra Então os mais novos eram vocês?
230 599 Helena É, eu então... ( ) E tinha dezessete, dezoito anos. Então eles
600 começaram a fazer sarro com a gente. Depois a gente namorou
206
601 por três anos, quando, quando eu namorei mais firme, assim,
602 eu já tinha me formado e já tava dando aula ( )
231 603 Sandra Hum-hum.
232 604 Vittorio Muito bem. Vamos voltar, senão...
233 605 Helena Isso foi em sessenta... em sessenta e seis a gente casou.
234 606 Sandra Então foi em sessenta e três?
235 607 Helena Não a gente começou antes, né. Mas ele foi pra Itália. Em
608 sessenta e um ele foi pra Itália, eu estava me formando.
236 609 Vittorio Disseram pra ela que eu já era casado lá...
237 610 Helena Não, é que tinha uma senhora, que ele foi namorado da neta
611 dela...
238 612 Vittorio Namorada eu só tive você.
613 Helena Aí ele foi namorado da neta dela e depois terminaram. Mas ela
614 falava: “Não fica triste não, o Vittorio não casou com a minha.
615 neta, não casou com você porque ele é noivo na Itália”.
616 E eu com isso?
239 617 Vittorio É uma riqueza grande na vida da gente ter duas pátrias, duas
618 famílias, muito carinho com a gente é um negócio fantástico,
619 né. Eu tenho um amor pelo Brasil... Eu sei o hino brasileiro
620 inteiro e não sei o italiano, quase não ouço, né, então é natural.
240 621 Sandra A maior parte dos italianos não sabe também! ((risos))
241 622 Vittorio Ele é complicado.
242 623 Sandra É impressionante.
243 624 Helena ( ).
244 625 Sandra Não, não sei. Porque o hino nacional italiano tem uma letra
626 que não dá pra entender. ((risos)).
245 627 Vittorio Tem umas partes ( ) que tem que interpretar o hino. O
628 brasileiro não, o brasileiro é...
246 629 Helena ( ) O pai dele com três anos de viúvo,casou de novo...
247 630 Sandra Você disse que depois teve muitos filhos...
248 631 Vittorio Ele casou a segunda núpcias lá na Itália, né, e eu tenho um
632 irmão que morreu novinho e tenho duas irmãs e a minha
633 Madrasta que de madrasta só tem o nome, né...
249 634 Helena É a sogra que eu conheço.
250 635 Vittorio Ela é mais ao meu favor do que das filhas, até hoje. Chora, diz
636 que eu tenho que ir. Esse ano não fui, ano passado não fui,
637 fomos em dois mil e quatro. Então ela é uma criatura
638 maravilhosa, está com oitenta e cinco anos, já quebrou fêmur,
639 quebrou bacia, quebrou tudo, mas sobe e desce escada,
640 cozinha, varre.
251 641 Helena Ela gosta quando eu to lá que quando ela levanta eu já fiz café,
642 Quando eu venho embora ela chora: “Quem é que vai fazer
643 me café?” Eu falo: “Sua filha ta aí, bota ela pra fazer.”
207
252 644 Sandra ((risos)) E tem duas irmãs que estão com quantos anos?
253 645 Vittorio Uma é de quarenta e dois outra de quarenta e quatro, você é de
646 quarenta e três. De quarenta e dois que é a Alessandra que tem
647 seis a menos do que eu. Porque o papai casou sendo três anos
648 viúvo e três anos depois já tinha a Alessandra e a Cassia cinco
649 anos depois. São as duas irmãs.
254 650 Sandra Hum-hum.
255 651 Vittorio Duas irmãs, né. A primeira não tem filhos e a mais nova
652 também casada, as duas são casadas, duas irmãs casadas com
653 dois irmãos e tem dois filhos...
256 654 Helena Tiveram aqui, agora.
257 655 Vittorio É foram embora em janeiro
258 656 Helena ( )
259 657 Vittorio E vimos nascer, né. Ela trocou fralda ( ) então ficou uma
658 ligação muito grande, muito forte, porque o italiano é muito
659 Sentimental, né.
260 660 Sandra É.
261 661 Vittorio Eu, por exemplo, vendo um filme choro à toa, não tenho
662 vergonha, realmente a emoção fica a flor da pele, muito
663 sentimental. Eu fui criado, não tive mãe mas tive uma porção
664 de mãe, então... o que me atrapalhou por que eu achava que o
665 mundo tinha que girar em volta de mim.
262 666 Sandra Hum-hum.
263 667 Helena È o príncipe da aldeia.
264 668 Sandra ((risos))
265 669 Helena Até hoje ele vai ( )
266 670 Vittorio É, e eu era filho do médico que era ( ) e o padre que me
671 batizou que era muito amigo do papai, então eles era o poder,
672 então eu era o Dom Vittorio, Dom, tinham essas coisas do
673 passado.
267 674 Helena Uma vez eu tomei um susto danado e falei: “Meu Deus, caí na
675 máfia!” ((risos))
268 676 Sandra ((risos))
269 677 Vittorio ( ) Felizmente isso não subia à minha cabeça, pelo contrário
678 eu achava ruim porque eu queria andar descalço igual aos
679 outros, que não tinham possibilidade, mas eu tinha que usar o
680 sapato e quando o pessoal bobeava eu tirava o sapato e saía
681 descalço. Chegava em casa: “Mas tem que botar o sapato!”
682 “Mas eu quero ficar igual aos meninos!” Na minha infância,
683 adolescência...
270 684 Helena Quando eu cheguei a primeira vez na Itália, que eu vi pessoas
685 descalças, eu adoro andar descalça, né, a tia dele tomou um
686 susto, falou: “Você vai machucar o pé!” Eu falei: “Por que?”
208
271 687 Sandra ((risos))
272 688 Helena E eu adoro andar descalça e aí que ele falou, que na Itália pra
689 aquele pessoal antigo, quem anda descalço é pobre.
273 690 Vittorio O meu avô que faleceu... Nós já éramos casados, não é?
274 691 Helena Não, sessenta e sete. Tínhamos um ano de casados.
275 692 Vittorio É um ano de casados...
276 693 Vittorio Eu quando voltei lá...( )
277 694 Helena Não ele morreu em sessenta e oito, no ano que a gente... ( )
695 ele morreu em março...
278 696 Vittorio É em março de sessenta e oito. Mas quando eu estive, em
697 sessenta e um eu tive lá, então eu revi o meu avô, minha avó já
698 tinha falecido. E o meu avô, ele era farmacêutico, ele era uma
699 pessoa muito instruída, estudava latim e quando eu fiz o
700 vestibular, tinha latim no vestibular...
279 701 Sandra Hum-hum.
280 702 Vittorio O professor era ( ) que conhecia e tal e caiu num trecho lá
703 que eu conhecia e pediu pra eu dissertar eu dissertei, a turma
704 toda parou, todo mundo começou a bater palmas, mas o
705 senhor, como o senhor conhece isso e tal, aí eu expliquei pra
706 ele e disse: “Olha eu nasci na Itália”. Ele disse: “Não, eu sei, o
707 senhor falando a gente sente um sotaquesinho”... “Mas o meu
708 avô era farmacêutico e falava latim com o padre, que era o meu
709 tio. Resultado eu fui obrigado a estudar latim mesmo”.
710 E foi aquela coisa, tirei dez. Natural, porque...
281 711 Helena O avô dele falava latim...
282 712 Vittorio O avô falava latim.
283 713 Vittorio O meu avô era juiz de paz, nos conflitos de limites de terra, ele
714 era...
284 715 Helena Era farmacêutico e juiz.
285 716 Vittorio É, é. Era farmacêutico e juiz de paz.
286 717 Vittorio E além disso ele era o conselheiro, ele era o Dom Eliseo,
718 então ele falavam: “Não, o Dom Eliseo falou, ta falado!”Ele
719 era muito justo. Ele tinha aquela noção de... Como meu avô
720 Mandorla aqui tinha uma noção de honradez que todo mundo
721 fala que meu avô era homem, né. Então realmente...
287 722 Sandra Interessante, que aqui também você conta ( ).
288 723 Helena ( )
724 Vittorio ( )
725 Sandra ( )
289 726 Vittorio Porque ali tinham as regras básicas de moral e de ética, hoje a
727 moral é elástica. Foi assim que nos dois ramos da minha
728 família só tem exemplo de correção, né.
290 729 Sandra Hum-hum.
209
291 730 Vittorio Mas o vovô um dia de madrugada, batendo na porta, ele foi
731 abrir, tinha um cara com um capote, barbudo, eu estou com um
732 probleminha, precisava de um remédio... ele disse: “Pois não,
733 que problema é o teu?” Que a farmácia, ele morava na aldeia,
734 tinha que subir uma escada e tava na praça, na praça pública
735 tinha farmácia.
292 736 Sandra Hum-hum.
293 737 Vittorio Aí eles foram de madrugada, tudo escuro, tudo deserto, a luz
738 veio depois, né. Era da minha época a luz. E foram lá e ele
739 preparou lá a emulsão, botou num copo e o camarada virou pra
740 ele e... : “prima Lei”, você fala italiano e sabe o que é isso você
741 É professora de italiano, dá aula : “Prima Lei”. Aí meu avô
742 pegou o copo, quando chegou na boca o camarada disse:
743 “Dom Eliseo!” Ajoelhou no chão e, papai me contando isso,
744 “Dom Eliseo, o senhor me perdoa, eu conheço a honra do
745 senhor, não devia ter feito isso, mas a vida que a gente leva”...
294 746 Sandra Hum-hum.
295 747 Vittorio “A polícia me procura, eu fui obrigado a matar fulano de tal,
748 minha família não sabe onde eu estou, mas eu estou escondido
749 na caverna tal, o senhor é o único a saber, agora, onde me
750 Escondo”. Sabia seu nome, filho de quem era, quem tinha
751 matado, por que tinha matado. Falou: “Eu fui obrigado a
752 matar, mas a polícia desconhece isso, agora, eu só posso lhe
753 agradecer, pedir desculpas e dizer pro senhor que se algum dia
754 alguém incomodar o senhor, atravessar o seu caminho,
755 Cometer uma injustiça, o senhor me procura”. ((risos)). Como
756 É seu nome?
296 757 Sandra Sandra.
297 758 Vittorio E o papai me contou, mas o vovô não contou pra ele o nome
759 da pessoa e onde estava, nem ele me contou, até porque não
760 Sabia. Conhece a história, mas não sabe, porque o vovô
761 morreu com esse segredo, não disse, ele contava a história,
762 contava o milagre, mas nunca contou o santo nem o milagre
763 que tinha feito...É uma coisa assim que fica, né!
298 764 Sandra É.
299 765 Vittorio Umas coisas do passado... Então tem os dois ramos... Meu pai
766 casou e minhas irmãs estão lá. Agora aqui no Brasil,
767 Mandorla ficou aqui.
300 768 Sandra Suas irmãs, elas trabalham?
301 769 Vittorio Trabalham... A minha irmã mais nova aposentou-se agora, foi
770 professora, a vida inteira, aposentou-se junto com o marido
771 que era do exército, coronel no exército italiano, comandante
772 lá no batalhão, mas se aposentaram os dois. A irmã mais velha
210
773 também professora, deu aula e aposentou-se como professora,
774 mas tem consultório, que ela fez psicologia, então ela tem um
775 consultório, onde ela atende, ta sempre atendendo gente
776 Procurando, porque ela é boa no que faz, ela continua atuante.
302 777 Maria Agora ta na política.
303 778 Vittorio É, ela é muito procurada, tem expressão e tudo e o homem que
779 se elegeu prefeito lá em Salerno, pediu a ela pra ajudar, fazer
780 discurso de posse e não mais o quê, então ela ta... Não é
781 atuante, mas é que chamaram ela...
304 782 Sandra De pano de fundo...
305 783 Vittorio O prefeito que se elegeu era muito amigo do dono da clínica
784 ( ), onde ela trabalha há vinte, trinta anos, e o dono da
785 clínica pediu pra ela ajudar, então ela ta fazendo... ajudando,
786 pra o homem se eleger, ta lá agora.
306 787 Sandra O senhor disse que a luz chegou na sua época, como é que foi
788 isso, a chegada da luz na cidade?
307 789 Vittorio A luz chegou, eu me lembro que a tia ( ) que é sogra do meu
790 pai, né, ela tinha uma casa na praia, que ali era muito
791 montanhoso, ( ) são doze, quinze quilômetros. Ela tinha
792 casa ali e eu acabava de prestar exame, passei, fugia pra casa
793 dela e passava os três meses de verão lá, na praia. Era uma
794 coisa maravilhosa.A tia ( ) então era uma coisa muito
795 ligada... Então quando veio a luz eu estava em Pietro, deve ter
796 sido, deve ter sido em... trinta e seis, quarenta e... foi antes,
797 antes do armistício, eu devia ter uns cinco, seis anos. Quarenta e
798 dois, quarenta e três, e eu dizia: “Tia “pepita”, come sei bella!”
799 por que veio a luz então via como ela era bonita, antes era só a
800 luz da vela, você não via... Foi uma acontecimento que me
801 marcou, porque o pessoal falava... ( )
308 802 Sandra Hum-hum.
309 803 Vittorio Eu tinha cinco, seis anos, quando veio a luz na aldeia. Em
804 quarenta e cinco, três ou quatro anos antes de eu vir pro Brasil.
805 Bom o quê que a gente podia comentar mais
310 806 Sandra Durante a guerra assim...
311 807 Vittorio É durante a guerra eu estava, o meu pai era militar e meu tio,
808 um dos dois tios também era militar. Meu pai foi oficial, era
809 Tenente, viajava ( ) Albânia... Todos os colegas do papai
810 morreram, todos caíram. E ele ficou... Não tinha trauma, não
811 mas ficou marcado com a guerra, só se lembrava da guerra
812 com tristeza... e, e acabou morrendo de problema no coração,
813 mas ele acha que o problema era da guerra, morreu com
814 oitenta anos, oitenta e oito. Tava mal e tudo, quando cheguei
815 já tinha morrido, eu o encontrei ainda, mas já morto.
211
312 816 Sandra Hum-hum.
313 817 Vittorio Mas ele, ele... aquela guerra tem coisas, passagens muito
818 tristes, porque faltava tudo. Como a minha família tinha
819 propriedade ali, então tinha a gordura, tinha rebanho de
820 ovelha, que eles faziam queijo, tinham cabrito, tinham galinha
821 que a propriedade era grande então a gente tinha uma certa...
822 Mas faltava tudo
314 823 Sandra É...
315 824 Vittorio Eu me lembro que eu escutava o barulho das bombas...
316 825 Helena Eu vou tomar um banho que eu tenho um compromisso agora,
826 ( ) Vou pedir a Sara
317 827 Vittorio Quer tomar um cafezinho? Pede a ela pra trazer aqui. Com
828 açúcar ou adoçante?
318 829 Sandra Não, não...
319 830 Helena È o café da máquina italiana...
320 831 Sandra ( )
321 932 Vittorio Não, é como se fosse... É, é aquela que bota o, a água embaixo e
833 o pó em cima.
322 834 Sandra Eu tomo sem açúcar.((risos)) Eu comecei a tomar café na
835 Itália, era de maquininha e sem açúcar... ((risos))
323 836 Vittorio Já ta acostumada...
324 837 Sandra A primeira vez foi uma bomba! ((risos))
325 838 Vittorio É porque ele é forte, né!
326 839 Sandra Eu nunca tomava café ( ), tomei e comecei a sentir uma dor
840 no estômago, desceu igual a uma bomba...
327 841 Vittorio ((risos)) Muito forte! Mas nós estávamos falando da luz...
328 842 Sandra Não, aí a gente falou da guerra, né.
329 843 Vittorio É, é, é. Da luz e depois da guerra, né. A gente parou na guerra.
844 Voltando ao barulho da guerra, eu ouvia lá da minha vila,
845 escutava o barulho das bombas dos Aliados chegando na praia
846 de Pestum. Pestum, você conhece bem lá, logo encostada em
847 Salerno, Pestum é ali, aquela parte ali, é ali que eles
848 desembarcaram. Eles desembarcaram em um lugar que você
849 de lá de casa escutava, entendeu, porque é um lugar
850 relativamente perto. Da minha casa até Salerno são oitenta
851 quilômetros, então se ouvia o barulho das bombas. Os
852 americanos lançavam de avião, algo que chamavam de Ratti,
853 Erre, a, te,te, i. Ratti. Não era uma bomba, tinha a queda
854 iluminada. Ele descia devagarinho e iluminava pra bombardear
855 lá embaixo. Então lá de casa, olhando, a gente via aquilo
856 descendo.
330 857 Sandra Hum-hum
331 858 Vittorio Depois vinha o bombardeio. E eu me lembro dos alemães
212
859 passando, embaixo de casa, porque a minha casa era estrada
860 embaixo assim, as forças passando, os alemães armados, mas
861 ali não houve guerra, ali. Sofreu as conseqüências da guerra,
862 tem outra história interessante pra te contar que é o seguinte:
332 863 Sandra Hum-hum.
333 864 Vittorio Falou-se da invasão, falou-se em problemas das insulinas, a
865 história ( ), que depois separou, a Itália virou casaca, virou
866 pros americanos e tal, virou, fez parte dos aliados. Mas houve
867 uma época sob a invasão. E nessa época da invasão o pessoal
868 tinha muito medo, porque a guerra estava ali perto, era como
869 ter a guerra na porta de casa. Então o quê que acontecia, o
870 pessoal da aldeia resolveu guardar coisas lá em casa, a
871 confiança que se tinha no meu avô, no meu pai era tão grande
872 que a aldeia toda resolveu guardar alguma coisa de valor lá
873 casa...
334 874 Sandra Hum-hum
335 875 Vittorio Então o quê que fizeram, a minha casa tem vinte e seis
876 cômodos umas paredes de dois metros. Pra você ter uma idéia
877 no porão da casa, que está transformada em residência, toda
878 limpa por sinal, tinha engenho pra fazer vinho e engenho pra
879 fazer azeite. O meu avô com os caminhões transportava azeite,
880 vinho. Tudo no porão da casa, aí você faz uma idéia do que é.
881 Tinha uma trave de madeira que tinha o quê, nove metros de
882 comprimento, e o meu avô descia tudo, explicar é complicado,
883 mas era ali que fazia o engenho todo...
336 884 Sandra Hum-hum.
337 885 Vittorio Na casa tinha uma escada pra baixo, e embaixo dessa escada
886 tinha um vão, então o quê que resolveram, aquilo era um
887 cômodo, uma escada grande, o cômodo era metade dessa
888 saleta aqui. Então o quê que aconteceu, todos os habitantes da
889 aldeia, cada um levou um baú, lá, com dinheiro com jóias,
890 Relógios... E a gente fez uma parede, fechou, sem nada e
891 escureceu a parede, passou carvão e tudo, envelheceu a parede
892 de modo que você chegava e não via aquilo, via a escada mas
893 não existia nada. Então se porventura houvesse invasão, depois
894 abria lá e cada um tinha como recomeçar a vida. Não houve
895 invasão na minha zona, e eu me lembro de quando foi aberto
896 aquilo, abriu e tudo mofado... não tinha jeito, a umidade e
897 tudo... mas as coisas estavam lá, guardadas lá em casa de
898 modo que cada um levou o seu baú, depois da guerra e cada
899 levou as suas coisas, lá em casa como sempre, pra uma
900 emergência.
338 901 Sandra Hum-hum
213
902 A minha casa tinha, em dois cômodos na parede umas pedras
903 almofadadas, as pedras sem pré tem um buraquinho, ( )
904 tinham umas pedras com desenho assim, a fresta e o gordinho
905 aqui, lugar pra poder botar a espingarda. Por causa das
906 invasões do banditismo que existia naquela época...
339 907 Sandra Ui!
340 908 Vittorio Opa! Então era um negócio... Cuidado pra você não queimar
909 a mão, isso quente é horrível! Obrigado.
341 910 Sandra Então a pessoa dormia com espingarda do lado?
342 911 Vittorio Oi?
343 912 Sandra Podia dormir com a espingarda do lado?
344 913 Vittorio Com a espingarda do lado. Mas lá em casa nunca houve nada
914 porque todo mundo respeitava, mas tinha, na época do
915 banditismo, nos anos trinta, vinte e oito... Chega a ter um
916 filme: Juliano, o bandido da Sicília.
345 917 Sandra Hum-hum.
346 918 Vittorio Então lá em casa tinha, o vovô contava, né, sacos de areia na
919 janela e tal, pra quando chegasse e atirasse bater na areia, mas
920 nunca houve isso, a casa sempre foi respeitada... a única que
921 foi respeitada foi a nossa. O meu avô era aquele cidadão acima
922 de qualquer suspeita então... Ta muito quente, você conseguiu
923 tomar?
347 924 Sandra Não, ainda não. To esperando um pouquinho...
348 925 Vittorio Deixa esfriar um pouquinho...
349 926 Sandra É.
350 927 Vittorio Então são coisas que ficam, né, registradas... Guardar
928 pertences pra caso houvesse invasão das forças. Não houve a
929 invasão, mas a gente ouvia ali as bombas, o barulho, o exército
930 passando...
351 931 Sandra Quando o exército passava, o máximo que pedia era comida...
932 pedia coisas?
352 933 Vittorio Às vezes pediam cigarro, paravam e pediam cigarro pra o
934 pessoal da aldeia... mas era um relacionamento assim, nunca
935 houve nenhum fato... nada que acontecesse de grave, não. Me
936 lembro uma vez que eu fui pra Anápolis, a minha tia que me
937 criou casou e foi pra lá. Então a família morava na via Átrio...
938 (toca o telefone. Vittorio atende)
939 (ao telefone) Alô, Vittorio, pai dele. Nem sei se o Bruno
940 está aqui, deixa eu ver... Ô Sara, o Bruno ta aqui? Ele ta
941 descansando, quer que acorde? Hum, hum, ah vou acordar ele
942 já. Agora, ele mesmo. Vou acordar ele já, já. Obrigado.
353 943 Sandra Você tem quantos filhos? Isso eu não sei ainda.
354 944 Vittorio Tenho três filhos.
214
355 945 Sandra Quantos anos?
356 946 Vittorio Eu tenho o Alessandro que é solteiro, que estava aí que você viu,
947 é o mais velho, nasceu em sessenta e nove, tem trinta e... trinta
948 e oito... trinta e sete, trinta e oito anos, vai fazer trinta e oito. O
949 Bruno que é o do meio, trinta e seis e a caçula que é a Marcela,
950 trinta e quatro. De dois em dois anos. São três filhos, dois
951 homens e uma mulher. E tenho três netos. Dois são do Bruno
952 que você vai conhecer, vai passar aqui. Uma neta que vai fazer
953 quatorze anos, do primeiro casamento dele, separou, casou
954 separou de novo e tem um filho que ta com ele aqui, que
955 ta com cinco anos. Renata que é a mais velha, vai fazer
956 quatorze...
357 957 Sandra Hum-hum.
358 958 Vittorio Francisco, que vai fazer cinco e a Roberta que é filha da minha
959 caçulinha e vai fazer três anos. São três filhos e três netos.
359 960 Sandra Duas netas e um neto, né?
360 961 Vittorio É, duas meninas e um menino. ( ) Geraldo é muito meu
962 amigo, educado, várias coisas, mas eu lembro do pai do
963 Geraldo, ele ta com noventa anos... O seu Di Biase, conheci o
964 pai dele, tinha um bar aqui na esquina, cumprimentava a gente.
361 965 Sandra Lá perto do cinema?
362 966 Vittorio Hum-hum.
363 967 Sandra Porque eu lembro que lá tinham uns bares...
364 968 Vittorio É exatamente ali. ( ) era ponto de encontra da turma da
969 Barra, velho Di Biase, são figuras que marcaram a cidade, o
970 meu avô marcou Speranza. Onde é que você vai? Viu? Quarenta
971 e um anos e ainda tenho ciúme de você!
365 972 Helena E eu quarenta e um e nunca tive ciúme!
366 973 Vittorio Eu sempre fui muito imaturo, esse casamento durou esse
974 tempo todo graças a ela. Se fosse outra, tinha se mandado.
975 Imaturo e grosso. Eu fazia muita grosseria com ela, um
976 machismo que eu queria me afirmar... Não tenho vergonha
977 disso não. Dos primeiros anos até os cinco, seis anos de
978 casado... depois eu fui amadurecendo, fui aprendendo, vendo
979 O que ela necessita... Mas no início a gente ficou casado por
980 causa dela, que enfrentou a barra pesada da grosseria, da
981 Estupidez... Imaturo, não estava preparado para o casamento.
982 Não se pode imaginar a idiotice que eu era...
367 983 Sandra Casou com quantos anos? Ela tinha dezessete, dezoito anos,
984 né?
368 985 Helena É.
369 986 Vittorio É mesmo? Nós casamos e já tinha, vinte...
370 987 Sandra Vinte e um.
215
371 988 Vittorio Eu também era jovem, já fui jovem, ta!
372 989 Helena Jovem todo mundo já foi!
373 990 Vittorio Eu fiz setenta, né. A falência da Del Fiore foi um choque, e eu
991 me tornei diabético... emocional, né.
374 992 Sandra É.
375 993 Vittorio E foi bom pra mim... Eu já tinha uma vida bastante regrada, de
994 alimentação... e algum exercício. Já tinha deixado de fumar em
995 Mil novecentos e...
376 996 Sandra Oi, tudo bom?
377 997 Bruno Tudo bom?
378 998 Helena Foi um prazer te conhecer, fica à vontade... Vittorio, depois
999 liga pra casa do Geraldo, que eu já falei com ele, é só ela
1000 marcar.
379 1001 Vittorio Eu não sei o telefone do Geraldo.
380 1002 Helena Dois cinco cinco dois...
381 1003 Vittorio Pra quem sabe é ótimo...
382 1004 Helena Ta aqui, Vittorio! Tem dois telefones dele aqui, Geraldo
1005 Di Biase.
383 1006 Vittorio Mas aqui não tem a letra... Muito complicado isso aí pra mim.
1007 Qual é o telefone dele, fala aí pra mim...
384 1008 Helena Dois cinco cinco dois, dois nove sete sete.
385 1009 Sandra ((risos))
386 1010 Vittorio Dois cinco cinco dois...
387 1011 Sandra Dois nove...
388 1012 Vittorio sete, sete
1013 Sandra [sete, sete]
389 1014 Vittorio Agora já ta anotado aqui.
390 1015 Helena Se quiser o outro tem aí.
391 1016 Vittorio Você falou com ele mesmo?
392 1017 Helena Falei, mas ele falou que não era italiano, então eu mandei ele
1018 contar a história da família dele. O pai dele era uma pessoa
1019 assim... era um doce. Eu morava na rua dele. Beijo, tchau!
393 1020 Sandra Tchau.
394 1021 Vittorio O quê que a gente tava falando?
395 1022 Sandra Tava falando da falência, da diabetes, que foi emocional...
396 1023 Vittorio É, o problema... eu tinha uma vida já bastante desregrada. No
1024 primeiro ano de casamento... Eu deixei de fumar em mil
1025 novecentos e sessenta e oito. Quer dizer, quarenta anos. Eu
1026 comecei a fazer exercício, mas depois que tive diabete, tive
1027 uma semana desregrada, mas não passou de uma semana...
1028 depois fiquei assim... Pra quê morrer, né? Aceitei a doença, e
1029 em vez de brigar com a doença passei a brigar com o
1030 problema pra trazer solução, se você briga pra resolver, você
216
1031 faz parte da solução. Eu dizia pro meu pessoal: “Gente, não
1032 vamos fazer parte do problema, vamos fazer parte da solução”.
1033 Aí eu passei a cuidar mais da alimentação e... eu sempre gostei
1034 muito de legumes, verduras, saladas... aqui em casa todo
1035 mundo também só come carne branca. E passei a ta fazendo
1036 exercício, né, a me exercitar. Quase todo dia eu ando três ou
1037 quatro quilômetros ( ). Então eu to levando uma qualidade
1038 De vida agora, melhor que antes de eu ter diabetes. A minha
1039 médica que diz: - Do jeito que o senhor leva a sério, o senhor
1040 ta melhor que quem não tem nada!
397 1041 Sandra Hum-hum.
398 1042 Vittorio Eu descobri isso em noventa e oito, foi em noventa e seis que a
1043 Del Fiore faliu... Dois anos depois que eu descobri a minha
1044 diabetes. Então eu faço meus exercício... ( ). ((risos))
399 1045 Sandra ((risos)) Mas também com as suas viagens no início, é
1046 complicado ter uma vida saudável...
400 1047 Vittorio Como assim?
401 1048 Sandra Quando você começou a trabalhar, você trabalhava viajando
1049 muito, né?
402 1050 Vittorio Muito, muito, muito.
403 1051 Sandra Então, assim, pra quem ta sempre na estrada ou no avião,
1052 jantar de negócios...
404 1053 Vittorio É, é complicado. Janta aqui, almoça lá... É complicado, é
1054 complicado. A vida agitada, agitadérrima. Podia levar até uma
1055 vida devassa, né... Você tem todas as facilidades. Eu fui pra
1056 Itália uma vez, em mil novecentos e setenta e três, enós
1057 tínhamos comprado uma máquina que vale um milhão de
1058 dólares... é o valor dela. E com o shopping ( ), eles ficaram
1059 quase malucos... ( ), depois peguei o avião e fui pra Milão,
1060 encontrar com os caras, lá. E fomos jantar e eles pegaram e
1061 trouxeram uma mulher pra mim! Até hoje eles riem da minha
1062 cara, mas você não tem que misturar uma coisa com a outra...
405 1063 Sandra Hum-hum.
406 1064 Vittorio Tava tratando de negócios.Podia sair muito caro, uma noite de
1065 farra. Então são essas coisas, né. Eu sempre procurei manter a
1066 vida particular dessas coisas...( ) às vezes o cara mistura as
1067 coisas e acaba estragando muito, pode acabar com o casamento.
1068 a idade tira da gente um pouco do físico, mas acho que ela
1069 acrescenta mais do que tira... A gente entende melhor as pessoas,
1070 compreendendo o ser humano, suas fraquezas..... a gente vai
1071 acrescentando conhecimentos que na balança pesam muito
1072 mais que o físico. A parte abstrata da vida, eu sempre ....
1073 eu sempre me questionei sobre... Que telefone chato!
217
1074 ( )
1075 ( Toca o telefone, Vittorio atende).
407 1076 Vittorio Alô. Já saiu, já ta chegando aí, nada, tchau.
1077 Me lembro uma vez, nessas promoções de supermercado, o
1078 pessoal me chamava... ( ) Você acha que o fato político
1079 precede O econômico, ou o fato econômico precede o fato
1080 respondeu. E eu à questão de alguns meses... vi que o fato
1081 político precede o econômico, e a economia depende do
1082 mercado e para isto a democracia.
408 1083 Sandra Hum-hum.
409 1084 Vittorio Eu me lembro do Marco Aurélio( ) que dá cursos... e eu
1085 disse: “Pô Marco Aurélio... pra mim tava tudo muito claro,
1086 você pega o relacionamento do homem e da mulher e pega o
1087 relacionamento do empregado com a fábrica”. Vou te dar dois
1088 exemplos pra isso: Numa fábrica, você tem dois tipos de
1089 relacionamento, a parte funcional e a parte material. Então
1090 vamos na parte funcional. O empregado, em relação à fábrica,
1091 ele tem que ser o quê, tem que ser pontual, tem que ser
1092 honesto, tem que ser competente, tem que ser atencioso, tem
1093 que ter talento... então olha só que fecho... Vamos na parte
1094 material. Qual é o relacionamento? O salário. É por isso que
1095 em todas as pesquisas o salário nunca aparece em primeiro
1096 lugar, sempre aparece lá embaixo. Se você puser o salário na
1097 frente, você não é funcionário. Por que você acha que tudo
1098 isso aqui é bom por causa do salário. Não. O salário é
1099 conseqüência disso. Então a parte abstrata, ela precede a parte
1100 concreta. E no relacionamento marido e mulher, você tem o
1101 relacionamento afetivo e o físico. No afetivo você tem o quê?
1102 O amor, tudo bem. Mas representado pelo quê? Pelo respeito,
1103 pela compreensão, pela renúncia, pelo parceirismo, o pessoal
1104 gosta muito de usar a expressão, pela cumplicidade...
410 1105 Sandra É.
411 1106 Vittorio Então isso tudo...
412 1107 Sandra Admiração...
413 1108 Vittorio Admiração, isso tudo, forma o afetivo. E o relacionamento
1109 físico? É sexo! E aí tem muita gente que confunde, ah porque
1110 tem uma mulher bonita... Só que da mesma forma que quando
1111 você bota o salário na frente da competência... se você bota o
1112 sexo na frente... Quanto mais intenso é o relacionamento
1113 afetivo, muito mais prazeroso é o sexo.
414 1114 Sandra Hum-hum.
415 1115 Vittorio E as pessoas fazem confusão, às vezes, né. Tem que ver o quê
1116 que é causa e o quê que é conseqüência. Então isso é uma
218
1117 conclusão que a humanidade inteira faz...
416 1118 Sandra ((risos))
417 1119 Vittorio Agora, eu cheguei a esse conhecimento agora, a esse
1120 aprendizado agora. Só depois dos setenta. Aos trinta, eu queria
1121 saber de festa, queria saber de salário... depois é que a gente
1122 chega à conclusão de que as coisas não são bem assim, né.
418 1123 Sandra Hum-hum.
419 1124 Vittorio Então é isso, minha filha. A vida da gente é assim... Vê se
1125 você quer perguntar mais alguma coisa, mas... Não tem pressa
1126 nenhuma.
420 1127 Sandra Não... eu fiquei curiosa, assim... Por que você falou que em
1128 noventa e seis foi à falência. Eu queria saber dos fatos que
1129 aconteceram... Por que a Del Fiore era uma empresa...
421 1130 Vittorio Era uma empresa viva no mercado.
422 1131 Sandra Que inovou, né. Você falou que foi a primeira em propaganda,
1132 em várias coisas, né. Tanto na parte do marketing, mas...
423 1133 Vittorio Pra você ter uma idéia, o negócio era tão sério, que eu de
1134 férias em mil novecentos e sessenta... Eu já tava trabalhando,
1135 me afastei, acabei ficando nove meses na Itália. O Cesar ouviu
1136 dizer que tinha um novo sistema de fazer macarrão, e conhecia
1137 Um homem que fazia a traquina, e as traquinas eram feitas na
1138 Itália. Fiquei amigo desse homem, até hoje é meu amigo. Teve
1139 até um fato engraçado, eu fui pra e fiquei na casa dele com a
1140 mulher dele e ele veio pra cá pra ficar na minha casa com a
1141 minha mulher, porque a gente desencontrou... A amizade foi
1142 tão grande que ele veio almoçar aqui e eu fui almoçar lá...
424 1143 Sandra Hum-hum.
425 1144 Vittorio Mas eu fui lá pra poder fazer um rigatone, sabe o quê que é
1145 rigatone...
426 1146 Sandra Sei, aquele goela de pato.
427 1147 Vittorio É goela de pato, isso.
1148 Só que lá na Itália tinha um sistema que em vez de a descarga
1149 ser neste sentido, era vertical e tinha uma haste de aço
1150 inoxidável no meio e ele ficava retinho, cortava embaixo, pra
1151 ficar o rigatone...
428 1152 Sandra Perfeito.
429 1153 Vittorio Perfeitinho. E eu trouxe de navio, pesava duzentos e tantos
1154 quilos... E fomos os primeiros a ter esse tipo de... Sai daqui,
1155 vai com Deus! Eu já dei o dinheiro pra você?
430 1156 Sara Não.
431 1157 Vittorio Não? Então toma. Acho que é trezentos reais, né?
432 1158 Sara Isso.
433 1159 Vittorio Aqui, vai com Deus. Então, a gente inovava sempre, inovava
219
1160 sempre, são detalhes que fazem... A sua pergunta é por que a
1161 Del Fiore faliu, é essa?
434 1162 Sandra É, o quê levou, né. Porque assim...
435 1163 Vittorio É, é complicado. Porque esse daí é um aspecto familiar... E eu
1164 não gostaria que fosse devassado... Vamos dizer que é uma
1165 decisão da família. Era uma área que... Nós éramos três, né.
1166 Um tio queria progresso e tal, o outro queria a parte mais
1167 prática... Aquela velha história, sabe?
436 1168 Sandra Hum-hum.
437 1169 Vittorio Não ficar do lado esquerdo ou lado direito, aí se afastou e tal
1170 levou uma parte do capital... ( ) mas evidente que houve
1171 também falhas administrativas.
438 1172 Sandra Em noventa e três ainda estavam os três? Cesar e...
439 1173 Vittorio Não, não. Já não estava mais, era eu e o Cesar só. Ele se
1174 afastou e nós compramos a parte dele. Nós compramos com
1175 dinheiro que iríamos utilizar pra fortalecer a empresa.
440 1176 Sandra Investir na empresa...
441 1177 Vittorio Isso criou um problema financeiro sério na empresa ( ), ele
1178 era excelente administrador... mas não tinha aquela química
1179 que deveria existir... Mas, aconteceu que a gente ficou
1180 descapitalizado e sem capital, o problema que houve... e a
1181 gente comprou umas máquinas, modificou... E aí a gente ficou
1182 descapitalizado e o Cesar começou a pesquisa da carne
1183 desidratada que ninguém tinha, que foi criada... que veio da
1184 Del Fiore, tecnologia nossa. Com a carne desidratada começou
1185 a merenda escolar, naquela época não tinha, já eram algumas
1186 unidades escolares que podiam usar a merenda. Então a Del
1187 Fiore era uma dos grandes fornecedores da merenda.
442 1188 Sandra Hum-hum.
443 1189 Vittorio Fazia parte de um grupo, Sociedade Brasileira das Empresas
1190 ( ). Fornecia a merenda, só que na mudança de governo do
1191 Sarney e Collor, o Sarney saiu e o Collor entrou, nós tínhamos
1192 fornecido cem milhões de dólares, aí o governo numa pegada
1193 deixou de pagar dois milhões de dólares... Pra uma empresa
1194 que já vinha com dificuldades financeiras...
444 1195 Sandra Não tem como...
445 1196 Vittorio Aí realmente foi muito complicado. Aí, a Del Fiore parou as
1197 atividades em noventa e dois, parou por completo. Não tinha
1198 capital, não tinha... E o Carlo muito triste porque o sonho dele
1199 era a Del Fiore, em noventa e três, tentava ver se achava um
1200 parceiro, em sete de julho de mil novecentos e noventa e três,
1201 o Carlo ligou e disse: “Vittorio, estou aqui com um italiano e
1202 tal...” ( ), aí eu tive que assumir, a Del Fiore já estava parada.
220
1203 Mas tinha um banco no Rio que estava interessado e nós
1204 fizemos um contrato de gestão com esse banco, me afastei da
1205 administração da empresa, tanto por uma questão de contrato
1206 como por uma questão de ética, eles que estavam investindo...
1207 Entreguei a empresa na mão deles, ( ) tinha uma dívida de
1208 quinze milhões e um valor patrimonial de quarenta e cinco
1209 milhões de dólares. Então a Del Fiore tinha uma dívida de
1210 quinze e valia quarenta e cinco...
446 1211 Sandra Hum-hum
447 1212 Vittorio Fora a marca Del Fiore que foi avaliada em cinqüenta milhões
1213 de dólares. Era o que se passava com a empresa... Quarenta e
1214 cinco de valor patrimonial...
448 1215 Sandra E mais a marca, né.
449 1216 Vittorio Mais a marca. Dois anos depois me devolveram a empresa, a
1217 dívida de quinze foi pra sessenta e quatro milhões... Aí quem
1218 faliu a Del Fiore foi o Vittorio... ((risos))
450 1219 Sandra ((risos)).
451 1220 Vittorio Tava na minha mão, né. Depois ainda fez um negócio com o
1221 Banco do Brasil... o Banco do Brasil fez vinte e duas reuniões,
1222 queria reabrir a Del Fiore, tinha interesse de botar a Del Fiore
1223 pra funcionar. Depois de vinte e duas reuniões, me chamou na
1224 sede do Banco do Brasil. Fizeram reuniões com os credores,
1225 ( ) debêntures, transforma em ações, tudo em ações da Del
1226 Fiore e a gente achou que a família iria ficar com dez por
1227 cento. Aí conversa com os familiares, leva o contrato e tem
1228 uns quinze dias pra resolver... Mas eu só disse: “Onde é que
1229 eu assino?” Eles diziam: “Não, não...” E eu: “Onde é que eu
1230 assino?” Eles acharam estranho, mas eu queria saber, queria
1231 salvar a Del Fiore... Tem até uma fotografia com o Arnaldo
1232 César Coelho, aquele comentarista da TV Globo, ele é muito
1233 meu amigo...
452 1234 Sandra Hum-hum.
453 1235 Vittorio Saiu na primeira página do Jornal do Comércio. Aí tem a
1236 fotografia e tal. Hum-hum! Aí passou a Del Fiore, mas não
1237 aconteceu nada. O Banco do Brasil estava patrocinando as
1238 Olimpíadas... ( ) Depois eu fui saber que o Banco do Brasil
1239 através da ( ) era dono da Perdigão. Só que eu queria reaver
1240 a metade, mas o Banco do Brasil não tinha interesse.
454 1241 Sandra Hum-hum.
455 1242 Vittorio São mil coisas que... Pode-se dizer que o problema foi
1243 político no sentido que o governo deixou de pagar dois
1244 milhões de dólares, né. E descapitalizou por completo. Tirando
1245 a família, administração que por mais que seja pungente ( ).
221
1246 O fato é que nada foi feito e a Del Fiore faliu no ano seguinte.
1247 Perdi tudo que eu tinha, tive que recomeçar a minha vida por
1248 que... ( ) Não me arrependo de nada, sou feliz, consegui...Fui
1249 bastante mal tratado, bastante achincalhado, bastante
1250 prejudicado, mas não vale ódio, rancor... cada vez que você ta
1251 com raiva de alguém, você ta com a pistola virada pra sua
1252 cabeça, você injeta um veneno dentro de você. A outra pessoa
1253 nem ta sabendo. Não adianta ter ódio. Mas isso dizer é fácil,
1254 sentir é muito difícil... E eu consegui, agradeço a Deus por que
1255 tirei de dentro de mim, hoje não sinto ódio de ninguém, por
1256 isso que sou feliz, né, não tenho raiva de ninguém e consigo
1257 tocar minha vida com dignidade.
456 1258 Sandra Hum-hum.
457 1259 Vittorio Depois ( ) virou pra mim e disse: “Doutor Vittorio o senhor
1260 não tem juízo”. E eu; “Por quê?” Ele: “Porque enquanto o
1261 senhor tinha Del Fiore, nem aparecia na rua, agora o senhor
1262 vive pelas esquinas, o senhor se arrisca”. E falei: “Não meu
1263 filho, quem não deve não teme”. Eu nunca tive ninguém que me
1264 xingasse na rua, pelo contrário, teve fatos que me marcaram,
1265 gente com lágrimas nos olhos: “se voltar eu trabalho de graça
1266 pro senhor no início”. Coisa bonita, né.
1267 Sandra [Bonita... Era uma família]
458 1268 Vittorio A Del Fiore era uma grande família.
459 1269 Sandra Quantos empregados...
460 1270 Vittorio Chegaram a ter mil e duzentos. As pessoas falam até hoje.
1271 Outro dia veio um rapaz que era vendedor almoçar comigo
1272 aqui, e disse: “Doutor Vittorio eu ainda tenho chaveiro da Del
1273 Fiore, com a marca da Del Fiore, a logo”. Ele tem as coisas
1274 guardadas, quer dizer, ele fez um museu lá na casa dele.
461 1275 Sandra E a marca, o nome, continua com vocês?
462 1276 Vittorio É, continua com a massa falida, a massa falida da Del Fiore ta
1277 com a marca lá. Já faz dez anos isso. Foi pra estudar os
1278 advogados , o quê pode ser feito ( ).
463 1279 Sandra ( ).
464 1280 Vittorio Se alguém tivesse dinheiro, pra botar na Del Fiore, voltar a
1281 fazer macarrão... Por que toda uma geração foi marcada, é uma
1282 música que... Ta nas minhas entranhas, por que quando foi
1283 feito isso, o Aroldo foi o mentor disso tudo, né. Ele tinha
1284 estudado outra assinatura pra Del Fiore, isso em mil
1285 novecentos e sessenta e nove. Você não era nascida ainda. A
1286 assinatura não era essa, era outra assinatura que não gostei,
1287 falei com Carlo e ele me ouviu nessa parte. Eu era metido a
1288 fazer poesia, e pega, batuca com ritmo de samba, eu tenho
222
1289 muito ritmo, então batuco com muita propriedade, deve estar
1290 no sangue. Não se...
465 1291 Sandra Hum-hum.
466 1292 Vittorio Mas a assinatura não era essa, era: “Del, Del, Del, Del Fiore...”
1293 Ainda não saiu, viu. Ta gravado aqui na minha cabeça.
467 1294 Sandra Ficou muito erudito?
468 1295 Vittorio Ficou muito erudito, eu gosto assim: “Del, Del, Del Fiore...”
469 1296 Sandra Marcou mesmo.
470 1297 Vittorio Marcou muito. Marcou toda uma geração, por que a gente
1298 inovou porque fez propaganda em filme e inovou porque fez
1299 desenho animado, que não se usava na época. E entraram...
1300 foram três filmes que marcaram, mas dois marcaram mais
1301 ainda: A fadinha e a chapeuzinho vermelho e o pé de trigo.
1302 eu tenho guardado aqui na cabeça, sei a letra e tudo, por que a
1303 letra fui eu que fiz. A da fadinha, né: “Pela estrada afora, eu
1304 vou bem sozinha levar um Del Fiore para a vovozinha ( ) eis
1305 Que numa curva, um lobo faminto disse para ela: - Eu vou te
1306 comer! ( ) Não precisa isso, vamos para vovozinha, comer...
1307 Del, Del, Del Del Fiore!”
1308 Sandra [“Del, Del, Del Del Fiore!”]
471 1309 Vittorio E o outro, tava em casa ( ), que era assim: “Era uma vez um
1310 menininho que plantou um pé de trigo, e o pé de trigo foi
1311 crescendo e nunca( ), o menininho subia... (Parecia desenho
1312 mesmo) chegando lá encontrou ( ) para saborear. A Del Fiore
1313 me deu uma energia, com a Del Fiore é gostoso todo dia.”
1314 Aproveitou até a época do sucesso, quer dizer, tinha um
1315 assobio, então, marcou a geração. Todo mundo que tinha, os
1316 jovens da época, as crianças de dez, doze anos, lembram da
1317 Musiquinha. Usaram desenho animado e tal. Então tem toda
1318 uma geração a Del Fiore.
472 1319 Sandra Hum-hum.
473 1320 Vittorio Você vê que você canta a música. Você disse que ta com
1321 quanto? Trinta e ...
474 1322 Sandra Trinta e dois.
475 1323 Vittorio Então por aí você vê, pega as pessoas todas que naquela
1324 época... De setenta e dois... setenta e um, setenta e dois, que
1325 tivessem nascido naquela época, hoje teriam trinta e poucos
1326 anos, trinta e poucos anos. Mas quem tinha mais de trinta anos
1327 Até sessenta anos, lembra da música. Quer dizer toda a
1328 geração de trinta, a cinqüenta, sessenta anos lembra. Você
1329 tava nascendo.
1330 Sandra [É, mas acho que cheguei a ver o filme...]
476 1331 Vittorio Chegou a ver por que depois passava, você como menininha
223
1332 nova, porque a propaganda havia sido feita e foram dez anos
1333 de propaganda, então massificou. Essa assinatura: “Del, Del,
1334 Del, Del Fiore...” No carnaval... E eu me lembro que quem
1335 redigia os textos fui eu, chama-se texto foguete. Era a parte
1336 escrita que entrava no meio dos anúncios da escola de samba.
1337 a feijoada da vitória, que conhecia... A feijoada era nós que
1338 patrocinava, e aparecia uns textos que o início era assim:
1339 “Brinque à vontade, mas com Del Fiore de tarde, eu lhe
1340 Aconselho”. Fazia questão de botar o nome da cidade: “Del
1341 Fiore de Barra do Piraí sugere: Brinque à vontade, mas cuide
1342 da sua alimentação!” Era um foguete que entrava, como tantos
1343 outros...
477 1344 Sandra Hum-hum.
478 1345 Vittorio Esse foi o texto que eu redigi e fiz questão de botar, o Augusto
1346 César era gerente comercial, tava botando lá e esqueceu lá.
1347 Então era o sangue da gente... A vida da gente é feita de fases,
1348 E todas elas são boas, a melhor delas ( ). Muito rica, a minha
1349 vida é muito rica, agradeço a Deus por contar todas essas
1350 Histórias. Daria pra escrever um romance, o que tem de fatos
1351 e acontecimento que você pode citar, como causos, tantas
1352 fases, tanta coisa bonita... Histórias de amor, comentários que
1353 você faz... Muita coisa, tantos fatos que daria pra escrever um
1354 romance. Muita história pra contar pros netos.
479 1355 Sandra Hum-hum.
480 1356 Vittorio Fica à vontade, pode perguntar o quê você quiser. Ta tudo
1357 gravadinho aí, né.
481 1358 Sandra Espero que sim! ((risos))
482 1359 Vittorio Tomara que sim, que aí você pode ter, né.( )
483 1360 Sandra ( )
484 1361 Vittorio ( ). Em parte sim, né. Mas em parte a história nem deve ser
1362 contada
1363 O livro é da parte de administração?
1364 É, só relata o quê aconteceu, fala das pessoas, tem meu nome
1365 lá na parte comercial, e... e depois mostra quando falhe e faz
1366 perguntas pra saber por que teria acontecido isso, não, não
1367 discute o por quê não, mas fala da empresa, que a Del Fiore é
1368 uma das empresas, foi uma das empresas entre as quatro ou
1369 cinco famosas. Geralmente são empresas que marcaram, né.
1370 Com a marca, a propaganda. A Del Fiore realmente, as
1371 gerações que tem mais de trinta anos no Rio de Janeiro canta a
1372 musiquinha.
485 1373 Sandra Hum-hum.
486 1374 Vittorio Tem gente que nem sabe que a Del Fiore faliu, é muito forte.
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1375 Muito forte a marca, o macarrão... ( ) Enfim, foi um rio que
1376
1377
Sandra
passou em minha vida...
((risos))
487 1378 Vittorio Participei de tantos eventos, tantos acontecimentos... É muita
1379 história bonita pra contar. Muitas lembranças quase todas...
1380 Todas, maravilhosas. Lembrança é sempre boa. Diz que
1381 recordar é viver, né. Então a gente recorda o passado com
1382 alegria. As pessoas dizem; “Como é que pode, você tinha tudo
1383 e agora não tem nada, como você encara isso?” Com
1384 naturalidade...
488 1385 Sandra Hum-hum
489 1386 Vittorio E os provérbios italianos, são maravilhosos. Quantos... tem um
1387 então que é fantástico! Papai sempre gostava... Um dizia
1388 assim: - se ognuno in fronte scritto portasse i propri affanni
1389 ahimé quanti, che invidia fan, farebbero pietà. É difícil até de
1390 Traduzir. Se ognuno in fronte scritto portasse i propri affanni,
1391 na própria cara, ahimé quanti, quando... Olha que bonito isso.
1392 Muita gente que nos faz inveja...
490 1393 Sandra É aquela coisa, todo mundo tem seus problemas, alguns não
1394 demonstram...
491 1395 Vittorio Tem gente que só fala dos problemas, eu pelo menos falo do
1396 meu passado, ( ) é bonito você poder ser franco, transparente,
1397 um acha que a galinha do vizinho é sempre mais gorda e o
1398 outro... Nós temos problemas, mas... cada um tem que ficar na
1399 Sua, dar a sua contribuição, o outro não importa... É o beija-
1400 flor que botava uma gotinha d`água pra apagar o incêndio.
1401 Tava fazendo a sua parte. Por que se cada um fizesse a sua
1402 parte o mundo seria diferente. Se todo mundo pudesse nascer
1403 velho e morrer jovem, o mundo seria bem melhor. Porque é a
1404 tal história ( ), o importante é você saber que faz parte desse
1405 contexto. Se pudesse levar uma vida sem inveja, é impossível,
1406 utopia, mas sem inveja... Todo mundo vivendo com inveja... A
1407 mulher do vizinho é mais bonita que a minha, sabe, essas
1408 coisas. Não é assim. Cada pessoa é uma, suas fraquezas, seus
1409 valores, mas infelizmente só a parte filosófica é fácil, o
1410 concreto é difícil.
492 1411 Sandra Hum-hum.
493 1412 Vittorio Aquele exemplo da relação do casamento e da fábrica não
1413 pode ser esquecido. O dinheiro não pode vir antes da
1414 profissão, é como a religião, tem gente que nem acredita em
1415 Deus. Mas é como árvore. Deus é o tronco e os galhos são o
1416 cristianismo, catolicismo, protestantismo... são os galhos de
1417 uma árvore frondosíssima que é a crença. Não há diferença
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1418 entre as várias tendências políticas, como não há diferença
1419 entre as várias tendências religiosas. Você conhece alguma
1420 religião que faz mal a alguém? Agora é evidente, da mesma
1421 forma que você tem o sexo na frente do relacionamento, tem
1422 gente que bota a religião na frente, que só visa o bem material.
1423 Dessa forma é o charlatão, esse é o charlatão. Em política é a
1424 mesma coisa: PTB, PC do B, PSDB, você vê algum político
1425 que não visa o bem do povo? O político que invés de botar na
1426 frente o interesse da coletividade, põe o interesse próprio.
494 1427 Sandra Hum-hum.
495 1428 Vittorio Há uma inversão de valores. O importante não é o peixe, é
1429 saber pescar. Mas se a gente nascesse velho, no final, seria
1430 bem legal. Deveria nascer velho e morrer jovem, já nascia com
1431 sabedoria.
496 1432 Sandra Ia aproveitar muito.
497 1433 Vittorio Você é casada?
498 1434 Sandra Não.
499 1435 Vittorio É tem gente que casa virgem. Tem homem que casa virgem,
1436 mas tudo bem, não tenho nada contra. Eu até tenho algo
1437 contra, que eu acho que eu tenho hoje tranqüilidade com a
1438 minha mulher, porque o quê tinha de errado eu fiz quando
1439 podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e
1440 triste porque não fez na juventude o quê tinha que fazer. Tudo
1441 que você possa imaginar de errado eu fiz. Hoje eu não sinto
1442 falta. O que tinha de ruim eu consertei... Um dia eu cheguei no
1443 médico e ele falou: “Quê que você ta fazendo aqui?” E eu:
1444 Vim pra você me operar. Ele: “O quê é isso? Operar o quê?”
1445 “Cálculo renal”. E aí mostrei os exames pra ele, pra resolver
1446 logo.
500 1447 Vittorio (Telefone toca, Vittorio atende) Oi. Foi cortar cabelo. Ta.
1448 Foram juntos cortar cabelo, fazer as barba que ta com cara de
1449 sem dormir há dez dias... Ta.
1450 Quando viu os exames falou: “É, vamos ter que tirar a vesícula.”
1451 “A essa conclusão eu já tinha chegado, mas quando?” “Amanhã!”
1452 Aí ele falou: “Você ta maluco, tem que fazer os exames de
1453 sangue e tal”. “Então eu vou fazer os exames”. Fui pro Rio com a
1454 mulher. As meninas ficaram sem jeito por que tinha que fazer
1455 tricotomia, raspar tudo e a mulher lá. Mas não me deram nem
1456 pré-anestésico.
501 1457 Sandra Hum-hum.
502 1458 Vittorio Eu nem tava preocupado com a operação, eu tava feliz que no
1459 dia seguinte não ia ter mais nada. E realmente eu tirei. Fiquei
1460 internado três meses porque tirei vesícula, hérnia de ato, tive
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1461 que fazer uma operação plástica... Fiquei quatro horas e meia
1462 na... Já tava acostumado com três meses de internação, essa
1463 em dez dias tava trabalhando.
503 1464 Sandra ( ).
504 1465 Vittorio ( ) O meu batimento é maior. Quando estou parado de noite
1466 bate cinqüenta e oito vezes o meu coração, meu colesterol um
1467 Mais alto, outro baixinho, triglicerídio bom, porque eu levo a
1468 sério...
505 1469 Sandra Hum-hum.
506 1470 Vittorio Às vezes me dá vontade eu bebo umas cervejas, hoje mesmo já
1471 bebi umas... Não pode pela diabetes, mas eu levo uma vida
1472 normalíssima. Não me privo de nada, nunca gostei muito de
1473 doce. O pessoal come doce na minha frente, não tem
1474 problema.
507 1475 Sandra O problema é massa, né.
508 1476 Vittorio Mas aí eu descobri uma coisa maravilhosa, o macarrão italiano
1477 não me faz mal. É por que ele é feito com trigo duro, o trigo
1478 mole que tem aqui a composição é diferente.
509 1479 Sandra É.
510 1480 Vittorio Um é elaborado mais depressa o outro mais devagar. Um dia
1481 fiz um pratão de macarrão e no dia seguinte de manhã meu
1482 açúcar baixou. Copiar dos outros, só o que é bom, não o que é
1483 Ruim... Afinal de contas, o quê que é a teoria? É a prática dos
1484 outros posta no papel.((risos))
511 1485 Sandra ((risos))
512 1486 Vittorio Minha filha, você ta com hora aí, sem rodeios... Não havia
1487 pressa mas eu já tomei demais o seu tempo
513 1488 Sandra Não, não.
514 1489 Vittorio Você quer que eu ligue pro Geraldo, eu posso ligar, você ainda
1490 vai lá nele?
515 1491 Sandra Não, não.