quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

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UFRJ Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense Sandra Regina Garcia Leite Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção Literatura Italiana). Orientador: Prof. Dr. Marco Americo Lucchesi Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Page 1: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

UFRJ

Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Sandra Regina Garcia Leite

Tese de Doutorado submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em Letras

Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,

opção Literatura Italiana).

Orientador: Prof. Dr. Marco Americo Lucchesi

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

Page 2: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Sandra Regina Garcia Leite

Orientador: Marco Americo Lucchesi

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas,

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,

opção Literatura Italiana).

Examinada por

______________________________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor, Marco Americo Lucchesi, Univ. Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Prof.a Doutora Silvia Inés Carcamo de Arcuri, Univ Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Luiz Barros Montez, Univ. Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Profa Dr

a Maria do Carmo Leite de Oliveira, Pontifícia Univ.Católica do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Profa Doutora Vanise Gomes Medeiros, Univ. do Estado do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________

Prof. Doutor Julio Aldinger Dalloz, Univ. Federal do Rio de Janeiro, Suplente

______________________________________________________________________

Profa Dr

a Teresa Cristina Meireles de Oliveira,Univ.Federal do Rio de Janeiro,Suplente

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

Page 3: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Leite, Sandra Regina Garcia.

Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul

fluminense/Sandra Regina Garcia Leite. Rio de Janeiro:

UFRJ/CLA, 2008.

226f.

Orientador: Marco Americo Lucchesi

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação de

Letras Neolatinas, 2008.

1. Imigração Italiana no Brasil. 2. Espaço. 3. História oral.

– Teses. I. Lucchesi, Marco Américo (Orient.). II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pós-Graduação em

Letras. III. Título.

Page 4: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

a Gustavo Luís Garcia Leite

Page 5: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

AGRADECIMENTOS

A todas as famílias que me acolheram como pesquisadora em seus lares, em especial às

famílias de “Renato” e “Vittorio”; a Marco Americo Lucchesi, intelectual notável que

durante todo o processo da tese demonstrou ser, além de um grande amigo, um

inestimável sensei - mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser

retribuído; a meus irmãos e irmã, cada um com seu jeito único de me apoiar; às minhas

cunhadas Paola Wyatt e Bruna Leite que além de apoiarem meus irmãos me

incentivam; a meus avós, suaves recordações; a meus pais, que em suas diferenças

ajudaram a me construir; a meus padrinhos, pelo entusiasmo e afeto; às famílias

Gomes, Canaverde Fernandes, D’Ávila Estigarribia, Marangon, refúgios de alegria

e tranqüilidade; a Lara Feldmann, minha adorável afilhada, que me traz serenidade e

tanta alegria; a Paolo Targioni, a Marinei Almeida, a Simone Gugliotta, a Angela

Leite e a Guilherme Reich, pelo apoio incondicional; a Bernardo Borges Forte, a

Chris Braun, a Márcio Galvão, a Allan Crean, pela lealdade; a Milene Gomes e

Carla Faria, pelas fugas necessárias; a Marcello Arruda e Olga Arruda (em

memória), por parte do material bibliográfico sobre Barra do Piraí; a Vanise Medeiros

e Roberval Silva, grandes mestres; a Thiago Carvalhaes, William Alves, Guilherme

Turon e Brunna Noznica, pelas conversas e estímulos; a Milene Ahouagi, André

Luiz Silva, Sérgio Iotte, pela seriedade com que desempenham seus múltiplos papéis;

a Margareth Santos, Vanessa Barbosa, Carol Lippi, Allan Calixto e Rosana de

Oliveira, pelo empenho; a Jussara, Telma, Monique, Regina exemplos de mulheres e

de diretoria democrática, tenho aprendido muito com vocês, muito obrigada; a Maria

Lizete dos Santos, pelas sugestões a cerca do espaço, a Liliana Cabral Bastos, a

Maria do Carmo de Oliveira, a Maria das Graças Pereira, a Érica Camargo, a

Teresa Cristina Meireles, a Julio Dalloz, a Silvia Arcuri, a Luiz Montez, pelos

conselhos, sugestões e ponderações; a Roberto Monzo Filho, Secretário de trabalho e

desenvolvimento do Município de Barra do Piraí, pelo entusiasmo e empreendedorismo

no setor público; Agradeço, enfim, a todos que fizeram parte dessa etapa, a todos os

amigos; colegas, alunos e funcionários da UFRJ, da Puc-Rio, da USP, do IIC-RJ, das

Wizard Miguel Pereira, Vassouras e Barra do Piraí, da ACIB, da FAETEC/CETEP de

Barra do Piraí, da Escola Municipal Augusto Vaz, Prefeitura de Vassouras, e da USS.

Page 6: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

RESUMO

Quando o trem passa: retrato em 3x4 de italianos no sul fluminense

Sandra Regina Garcia Leite

Orientador: Marco Americo Lucchesi

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.

A partir da coleta de histórias de vida de imigrantes italianos no sul fluminense,

sob um olhar da Sociolingüística Interacional para a Análise do Discurso ao analisar a

construção de identidade de dois imigrantes italianos, em situação de pesquisa. O estudo

analisa a organização discursiva da fala dos entrevistados focalizando diferentes

dimensões de sua construção identitária, bem como as estratégias de envolvimento

utilizadas e suas implicações para a construção da identidade dos narradores. Após

observar em que medida as histórias de vida dos entrevistados foi orientada por valores

da cultura italiana e por sua condição de imigrante no Brasil foi elaborado um texto

ficcional de apresentação das histórias dos entrevistados e do percurso da pesquisadora

levando-se em conta que as identidades constituem-se simultaneamente nos universos

da história, da interação e dos valores sócio-culturais.

Palavras-chave

Imigração italiana; história oral; identidade; narrativa; Sociolingüística Interacional

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

Page 7: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

ABSTRACT

When Train Goes By: 3”x 4” portraits of Italian Immigrants in South Fluminense

Sandra Regina Garcia Leite

Orientador: Marco Americo Lucchesi

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras.

Collecting Italian Immigrants Life Stories on south of Rio de Janeiro State,

based on Interactional Sociolinguistics approach to discourse analysis, this investigation

has a discursive approach, namely, that of analyzing the construction of identity of two

Italian immigrants in a research interview situation. At the start the analysis focuses on

different dimensions of identity construction. Involvement strategies and its

implications for the constructions of the narrators’ identities, using during the interview,

were analyzed based on the statement that narratives are co-constructed by participants

in a communicative event. After observed how the narrators’ identities constructions in

relation to their Italian culture-based attitudes and which extent the interviewed life

stories were oriented by Italian Cultural values and also his immigrant condition in

Brazil, a fictional text was made in order to present the interviewed stories and the

researcher paths. Important to remark that Identity is built simultaneously in three

different universes: story, interaction and social-cultural values.

Keywords

Italian Immigration; Oral History; Identity; Narrative; Interactional Sociolinguistic

Rio de Janeiro

Dezembro de 2008

Page 8: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Siccome questo è il vuoto c´è posto per tutto, e quel poco che c´è, è come se non ci fosse. Anche i binari sono perfettamente inerti, le lucertole immobili i vagoni dimenticati (Fabio Pusterla. Paesaggio. Poesia Sempre, ano 3, n. 6, outubro 1995,120)

Como isto é o vácuo há lugar para tudo, e o pouco que há é como se não fosse. Até os trilhos são perfeitamente inertes os lagartos imóveis, os vagões abandonados. (Fabio Pusterla. Paesaggio. Poesia Sempre, ano 3, n. 6, outubro 1995,120)

Page 9: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

O ITINERÁRIO: Sumário

1. O APITO: Introdução 11

2. A VIAGEM: história ficcional de italianos no sul fluminense

20

3. A PAISAGEM: Panorama Sócio-Histórico

66

3.1. Fluxos migratórios 66

3.1.1. os êxodos de massa entre o século XIX e XX 66

3.1.2. as migrações da segunda metade do século XX 70

3.2. O trem é vida 71

3.3. A malha ferroviária no Brasil 73

3.4. A Estrada de Ferro em Barra do Piraí

80

4. O VAGÃO: Espaço 86

4.1. A Cidade 86

4.2. O Habitar doméstico 87

4.2.1. a casa 90

4.2.2. o lar e a memória afetiva

96

5. OS PASSAGEIROS: Renato e Vittorio 101

5.1. Vidas Paralelas

5.1.1. Renato

101

103

5.1.2. Vittorio 104

5.2. Os Estilos Narrativos

5.2.1. o contar histórias

106

108

5.2.2. o uso de repetições 110

5.2.3. o uso de imagens 118

5.2.4. o uso de diálogo construído

5.2.5. o dueto conversacional

5.3. Conexões e Desvios: as trajetórias de Renato e Vittorio

121

124

126

6. A PLATAFORMA: Considerações Finais

132

7. A BAGAGEM: Referências Bibliográficas

136

8. O DIÁRIO DE VIAGEM: Anexos 152

8.1. Anexo I: Convenções de Transcrição 153

8.2. Anexo II: transcrição da segunda entrevista com Renato 155

8.3. Anexo III: transcrição da primeira entrevista com Vittorio 192

Page 10: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Velhas estórias

(quase)

em busca

de uma “moral” nova

ou

ao encontro de uma moral nossa

(MELO, 1985)

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O APITO: INTRODUÇÃO

Quando o trem passa, quando a vida passa, desde o início dessa pesquisa o trem

estava presente, a metáfora não estava clara, mas a idéia de deslocamento, mais do que

por nave ou avião subjazia no meu inconsciente.

Até pouco tempo o título era “Das FFSS a Barra do Piraí: histórias de vida de

imigrantes italianos no sul fluminense”, mas ao redigir o texto ficcional que encontra-se

no segundo capítulo, a metáfora da vida como uma viagem de trem revelou-se. Assim

como a metáfora epistemológica que se anuncia desde o sumário, sendo este

denominado itinerário por descrever os caminhos por mim traçados ao longo da

elaboração escrita desta pesquisa.

Durante a minha graduação um professor me indicou um livro intitulado

Contesti italiani, um compêndio didático com diversos tipos de textos, de material

autêntico em língua italiana, em dois dos quais, dos meus preferidos, está presente o

trem, a saber: “Anche i treni bevono”, de Giorgio Manganelli, no qual o autor trata sobre

a degradação do trem e “La bella sconosciuta”, cuja passagem “e sai chi vide affaciata

al finestrino? La bella sconosciuta”, de Achille Campanile, que sempre me desperta

emoção pelas imagens e sentimentos que suscita e cuja passagem “La vide affacciata a

um finestrino”, sempre me remeteu ao retrato, como representação.

Portanto, acredito que a literatura italiana tenha influenciado minha opção por

trabalhar com a língua italiana, ao invés, da língua inglesa, que na época estudava

paralelamente na UERJ; cujos textos de Shakespeare me eram mais caros: Romeu e

Julieta, os amantes de Verona, e A megera domada, ambientada entre a Toscana e

Veneto, tinham relação com a Itália. De qualquer forma, foram decisivos o contato com

as pinturas italianas na Pinacoteca de Brera e as aulas do Prof. Marco Lucchesi cujo

conceito de leitura não se resumia ao textual, mas também à imagética e à semiótica.

Portanto, no título desta pesquisa, o termo “retratos em 3x4”, além de referir-se

ao aspecto documental da coleta de relatos de histórias de vida de italianos, já que esse

tipo de fotografia é o mais usado no Brasil em documentos, também remete à imagem

que temos das pessoas debruçadas nas janelas dos trens como que se posassem para um

retrato, “affaciate ad um finestrino”.

Page 12: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

12

Daí, ao pesquisarmos as histórias de vida (Linde, 1993) de imigrantes italianos

residentes em Barra do Piraí que vieram ao Brasil após a segunda guerra mundial nos

questionarmos a respeito de essas narrativas se tratarem de uma literatura coletiva,

elaborada pelo sujeito da enunciação, posto em perspectiva de um “griot” da atualidade,

um sujeito que rememora eventos coletivos e privados sob a luz da atemporalidade de

provérbios e de algumas lendas tradicionais ou se as limitaríamos como registros orais

da presença de uma comunidade italiana no sul fluminense.

Se considerarmos a literatura de forma abrangente, social, literatura coletiva,

plural e flutuante, percebemos que não poderíamos circunscrevê-la somente a livros,

posto que se perpetua em várias formas de expressão do imaginário do imigrante, a

saber: em cartas, diários “científicos” ou pessoais, biografias, jornais, crônicas, folhetins

e porque não em registros orais em situação de entrevista? Como sugere Cláudio Murilo

Leal em artigo no Caderno Prosa & Verso dO Globo de 1º de novembro de 2008 ao

analisar a coletânea “Viver & escrever” de Edla Van Steen.

Evidentemente há a diferente semiose que presidem a escrita e o relato oral,

conforme constata argutamente o escritor angolano Manuel Rui:

Eu sou poeta, escritor, literato. Da oratura à minha escrita quase só me resta o

vocabular, signo a signo em busca do som, do ritmo que procuro traduzir

numa outra língua. E mesmo que registre o texto oral para estruturas

diferentes – as da escrita – a partir do momento em que o escreva e procure

difundi-lo por esse registro, quase assumo a morte do que foi oral: a oratura

sem griô, sem a árvore sob a qual a estória foi contada; sem a gastronomia

que condiciona a estória; sem a fogueira que aquece a estória, o rito, o ritual.

(RUI, 1981, 29-30)

No momento em que ocorre a consciência de construção de um novo momento

no qual o imigrante torna-se o sujeito de sua própria história, a cultura trilha novos

rumos e um deles é buscar na oralidade as formas para que os impasses sejam

transpostos. Sendo assim, a matéria híbrida da qual os textos são constituídos é exposta

e a fala se torna escrita e a escrita, a fala ritualizada no papel.

Literatura-memória, movimento contínuo, linha de união entre dois povos, duas

pátrias, do “Expresso” Brasil-Itália, não somente Barra do Piraí – Salerno ou Barra do

Piraí - Calábria. Não podendo esquecer que seus passageiros encontravam-se na

condição de imigrantes, condição na qual, segundo Alfredo Bosi:

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13

Traz em si as múltiplas formas concretas da existência interpessoal e

subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na

mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar,

de rezar, de cantar, de morrer e de ser sepultado.

(BOSI, 1992, 27)

Coletando os dados para a pesquisa em questão, as narrativas, os relatos de vida

de imigrantes italianos residentes na anteriormente citada situação de pesquisa, convivía

com a história, com a memória imigrante a ser registrada, ilustradas por documentos tais

como fotos, cartas, menções honrosas, passaportes antigos é verdade, mas formas

documentais a espera de uma narrativa que as vivifique, que as reconstruam que as

tornem presentes. Assim como os documentos, às vezes guardados em caixas, às vezes

expostos pela casa, necessitavam de uma narrativa. Os fatos históricos não, poderiam

ser desprezados como enquadre que se apresenta.

Deste modo, antes de observar a possível produção literária oral, devemos

refletir sobre os motivos que trouxeram os italianos ao Brasil, assim afloram questões,

tais como: quando os “italianos” começaram a chegar ao Brasil? Quais as principais

levas migratórias? Como era a realidade italiana no segundo pós-guerra e no Brasil?

Havia uma participação culturalmente ativa da comunidade italiana? Quando teria sido

o início de participação em atividades culturais no Estado do Rio? Algumas das tantas

questões que se apresentam quando o objeto a ser pesquisado refere-se a uma literatura

italiana que começa na Itália, mas se firma no Brasil em língua portuguesa com acento

“italiano”.

As relações entre História e Literatura, muitas vezes vistas como evidentes, se

fazem necessárias quando se pretende observar de que maneira os imigrantes “italianos”

que vieram para o Rio de Janeiro registram e expressam suas impressões e experiências

e, em que proporção tais registros se definem entre texto literário, ou seja, possuem uma

estética literária e um histórico.

Nesta pesquisa analisamos a presença italiana em Barra do Piraí, cidade do sul

fluminense, antigo entroncamento ferroviário, como produto artístico, a partir de duas

narrativas expressivas de imigrantes da Calábria e Campanha, depreendidos dentre as

entrevistas por mim realizadas desde 2004, com imigrantes que residem no Estado do

Rio de Janeiro ora residentes nos subúrbios cariocas ora em cidades do sul fluminense.

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14

Para tal, senti necessidade de não somente entrevistá-los e transcrever suas falas,

mas também de me inserir na comunidade, como eles o fizeram, por meio não só de

minhas identidades de pesquisadora e professora, mas também pela de empresária, de

modo a realizar uma pesquisa etnográfica densa.

Concomitantemente a análise das narrativas não pode deixar de lançar um olhar

às raízes histórico-sociais que alimentaram essa árvore geradora de frutos como as

referidas narrativas, pois de acordo com Sevcenko (1995,20):

Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto

artístico, destinado a agradar e a comover; mas como se pode imaginar

uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade de seus frutos não

depender das características do solo, da natureza do clima das condições

ambientais?

(Sevcenko, 1995, 20 - grifo meu).

Como podemos notar, literatura e história entrelaçam-se de tal modo que ao

pesquisarmos a presença italiana em Barra do Piraí a partir das narrativas de imigrantes,

faz-se necessário traçar um panorama da história da imigração italiana nessa cidade,

como veremos no capítulo 3, desde a primeira grande leva, no final do século XIX, em

decorrência da necessidade de mãos de obra para a colheita do café; quando chegou a

Barra do Piraí o avô de um dos entrevistados. Assim, podemos compreender que a

Estrada de Ferro foi fundamental para o crescimento da população e comércio locais por

possibilitar os deslocamentos de pessoas e mercadorias, trazendo a Barra pessoas de

diversas etnias, dentre as quais a italiana.

A investigação, o fato da pesquisa de campo ter sido a pioneira na coleta das

fontes primárias, em anexo, constitui a originalidade desta investigação. Cabe ressaltar

que o material em questão serve de contra-prova do trabalho científico, por mim

realizado.

Importante lembrar que o Rio de Janeiro foi o primeiro pólo imigratório do

Brasil e que tem sido deixado de lado no que se refere a memória da imigração italiana,

pois os pesquisadores tendem a restringir seus estudos ao Estado de São Paulo.

Ao escutarmos e registrarmos ao que Linde (1993) denomina história de vida

desses imigrantes que chegaram ao Brasil em decorrência das condições de miséria na

qual se encontrava a Itália do pós-guerra, com o sonho de fare la Merica, me veio

sensação de estar registrando a História, de trazer a baila um tesouro tão brilhante como

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15

a couraça de uma Maria fumaça, tão intenso e prazeroso como seu apito característico.

Memória dissipada como ocorria com a névoa que saia das caldeiras dessa máquina tão

querida, fumaça que aos poucos ao longo do percurso deixava seu rastro. A respeito

dessa sensação de felicidade que o encontro com o passado suscita cito uma passagem

de Walter Benjamin (1885, 223):

O passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção. Pois

não somos tocados por um sopro do ar que já foi respirado antes? Não

existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Se

assim é, existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e

a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada

geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado

dirige um apelo.

(Benjamin, 1885, 223)

Paul Thompson assinala o fato de que geralmente nas famílias há ao menos um

filho detentor da história da família, geralmente o primogênito, mais não

necessariamente este, como veremos adiante, ao entrevistarmos Vittorio e Renato esses

confirmam a tese, o primeiro dizendo que seu primogênito é o que mais respira a Itália,

ao passo que a filha do segundo é a única a inscrever-se em um curso de língua italiana

e mantêm a sala de sua casa, como a da casa paterna, inclusive com o mesmo pôster da

cidade de Luzzi.

Não é raro famílias irem ao encontro ao apelo do passado, aflancando História e

Literatura, expressas em discursos híbridos, pois que conjugam idéias de homens

divididos entre a possibilidade de abrasileirarem-se ou de permanecerem o outro, o

estrangeiro. Importante ter presente a existência desses sentimentos contraditórios,

posto que podem desencadear alguns mecanismos de autopreservação cultural ou de

formação do estereotipo do vero italiano no Brasil ou o que lhe valha.

Segundo Labov e Waletzky (1997) e Labov (1972), a narrativa é um método de

recapitular as experiências passadas e se caracteriza por sua estrutura organizada em

uma seqüência temporal, por ter um ponto e por ser contável, porém essa aboradagem

tem sido objeto de críticas, como por exemplo, a de não problematizar a relação entre o

evento passado, memória e narrativa.

Para Labov a narrativa é composta de seis elementos básicos: resumo,

orientação, ação complicadora, avaliação, resultado ou resolução e coda. O resumo se

relaciona ao tópico da narrativa; a orientação especifica os participantes; a localização

Page 16: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

16

diz respeito ao espaço, ao tempo e a natureza do evento; ao passo que a ação

complicadora se relaciona aos eventos descritos na narrativa e a avaliação se refere ao

motivo da ação estar sendo contada; o resultado ou resolução compreende o

fechamento da narrativa e; a coda é o elemento que pode aparecer para ligar a narrativa

à situação atual dos participantes da interação onde a narrativa ocorre, como veremos no

capítulo 5, no qual analiso as estratégias de envolvimento dos entrevistados ao narrarem

suas estórias de vida.

Importante ressaltar que o estudo de estórias de vida é uma boa forma de se

pesquisar como as pessoas constroem suas identidades sociais (Linde, 1993; Mishler,

1999) por meio de suas produções narrativas, já que, ao narrar estórias, as pessoas tem o

poder, segundo Mishler (1986), “não apenas de falar com sua própria voz e contar sua

própria estória, mas de aplicar o entendimento adquirido para agir de acordo com seus

interesses”. Deste modo, como aponta Santos (2007), “o narrador evidencia o desejo de

construir significados específicos de si e de seu posicionamento no mundo”, fato este

que, por meio de instrumental adequado, dá ao pesquisador a possibilidade de traçar

uma análise de como o indivíduo co-constrói a sua narrativa e a sua identidade social

por meio do discurso.

Sendo assim, é fulcral a percepção de que, ao narrar estórias, as pessoas utilizam

a narrativa não apenas para (re)construírem um evento passado, mas também para que

elas sejam interpretadas segundo suas representações, por isso, segundo Riessman

(1993:2), as

“análises em estudos da narrativa se abrem para formas de contar sobre a experiência,

não simplesmente para o conteúdo ao qual as línguas se referem.”

Além disso, assim como obras literárias sofrem adaptações para serem contadas

em diferentes espaços, uma mesma estória pode ser contada de diferentes maneiras,

dependendo do público, contexto e objetivo.

Ao longo dessa pesquisa, ao analisar as narrativas de Renato e Vittorio, percebi

que diferentemente do sujeito de pesquisa de minha dissertação de mestrado

“Amarcord: narrativa de um imigrante italiano no Rio de Janeiro”, orientada pela Prof.a

Doutora Liliana Cabral Bastos, não se tratava de narradores de alto-envolvimento como

o era Salvatore.

Page 17: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

17

Eles se utilizam de estratégias discursivas semelhantes às de Salvatore, e como

ele, lhes são importantes os tópicos família, emigração, trabalho, sendo que detectei,

durante a minha análise a importância do espaço doméstico, como desenvolvo no

capítulo 4. Porém, a estética, a plasticidade em suas narrativas, não são comparáveis a

de Salvatore.

Tal fato suscitou um dilema: continuar o trabalho com essas narrativas, e caso o

fizesse como apresentá-las, ou, simplesmente trilhar o caminho mais fácil e analisar a(s)

narrativa(s) de outro(s) informante(s). Porém, Renato e Vittorio são as referências da

colônia italiana em Barra do Piraí por serem os mais velhos, os de sua geração que estão

há mais tempo na localidade.

Optei, portanto, pela primeira e, após o exame de qualificação, tive a certeza de

que a solução seria criar um relato, uma adaptação para a apresentação das narrativas.

Ressalto que muitos historiadores como Rui Castro, por exemplo, lançam mão desse

recurso, assim como, escritores de romances, tal qual José Saramago, partem de um fato

histórico e criam romances formidáveis.

Eu, como visto anteriormente, defendo que a história oral deva ser vista como

literatura e, como no início desse capítulo, evoco a figura do Griot que poderia ser

representada aqui pelos filhos detentores das histórias de família.

O problema é que nunca havia criado um texto ficcional, nem ao menos histórias

para fazer minha irmã mais nova dormir. Ela tinha que se contentar com textos de

Umberto Eco, em italiano! Posto que, na época, ainda estava cursando minha

graduação.

Além disso, ao visitar Sandrino Santoro, o Salvatore, de minha dissertação, após

sua leitura de meu trabalho, compreendi o quanto a preservação da nossa fase negativa

(Brown & Levison) nos é cara. O quanto desejamos ser aceitos e como, segundo

Montaigne, sermos julgados por outras pessoas nos incomoda.

E como, segundo Riessman (1993:08) os “investigadores não possuem acesso

direto às experiências do outro. Nós lidamos com representações ambíguas das mesmas

e , implícito à análise há um julgamento, consciente ou inconsciente o que corrobora a

tese de não haver neutralidade em pesquisa no âmbito social, vista que são realizadas

por pessoas.

Page 18: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

18

Sendo assim, mais uma vez, realizaria um julgamento no qual os sujeitos da

pesquisa estariam em situação de desvantagem. A solução? Ao menos para minimizar

essa disparidade?

Expor-me, assim como eles, generosamente e credulamente, o fizeram ao me

receberem e ao narrarem suas estórias de vida (Bastos, 2005).

Deste modo, após coletar os dados, analisá-los no capítulo 5, fazer o

levantamento bibliográfico, conviver com a comunidade italiana em Barra do Piraí,

trabalhando como professora de italiano em uma escola pública e inserir-me na

comunidade barrense como empresária, abrindo uma escola de idiomas, após um

processo de amadurecimento, elaborei o capítulo que compõem o capítulo dois, no qual

além das vozes de Renato e Vittorio, há também a minha como personagem, ao relatar

trechos da minha história, fruto da necessidade de paridade aos meus entrevistados e, a

do narrador, como observador de essas histórias.

Como este trabalho foi construído em base a metáfora do trem e, como a

Literatura é importante em nossas vidas, cada capítulo é iniciado por trechos de poemas,

músicas ou materiais que circulam pela internet.

Boa Leitura!

Page 19: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

“É muito interessante, porque nossas vidas parecem ser realmente como uma viagem de

trem, cheia de embarques e desembarques, de pequenos acidentes pelo caminho, de surpresas agradáveis ou não.

Quando nascemos e embarcarmos nesse trem, encontramos duas pessoas que

acreditamos, farão conosco a viagem até o fim: nossos pais. Não é verdade. Infelizmente, em alguma estação, eles desembarcam, deixando-nos órfãos de seus carinhos, proteção, amor e afeto. Mas isso não impede que, durante a viagem, embarquem outras pessoas interessantes que virão ser especiais para nós: nossos irmãos, amigos e amores.

Muitas pessoas tomam esse trem a passeio. Outras fazem a viagem experimentando somente tristezas. E no trem, há, também, outras que passam de vagão em vagão, prontas para ajudar quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas. Outros tantos viajam no trem de tal forma que, quando desocupam seus assentos, ninguém sequer percebe.

Curioso é considerar que alguns passageiros que nos são tão caros acomodam-se em vagões diferentes do nosso. Isso nos obriga a fazer, essa viagem, separados deles. Mas isso não nos impede de, com grande dificuldade, atravessarmos nosso vagão e chegarmos até eles. O difícil é aceitarmos que não podemos sentar ao seu lado, pois outra pessoa estará ocupando esse lugar.

Essa viagem é assim: cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, embarques e desembarques. Sabemos que esse trem jamais volta. Façamos essa viagem da melhor maneira possível, tentando manter um bom relacionamento com todos, procurando em cada um o que tem de melhor, lembrando sempre que, em algum momento do trajeto poderão fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender isso. Nós mesmos fraquejamos algumas vezes. E, certamente, alguém nos entenderá.

O grande mistério é que não sabemos em qual parada desceremos. E fico pensando: quando eu descer desse trem sentirei saudades ? Sim. Separar-me dos amigos que nele fiz, do amor da minha vida, será para mim dolorido. Mas me agarro na esperança de que, em algum momento, estarei na estação principal e terei a emoção de vê-los chegar com sua bagagem, que não tinham quando embarcaram.

E o que me deixará feliz é saber que, de alguma forma, eu colaborei para que essa bagagem tenha crescido e se tornado valiosa. Agora, neste momento, o trem diminui sua velocidade para que embarquem e desembarquem pessoas. Minha expectativa aumenta, à medida que o trem vai diminuindo sua velocidade …

Quem entrará? Quem sairá?

Eu gostaria que você pensasse no desembarque do trem, não só como a representação da morte, mas também, como o término de uma história, de algo que duas ou mais pessoas construíram e que, por um motivo ínfimo, deixaram desmoronar. Fico feliz em perceber que certas pessoas como nós, têm a capacidade de reconstruir para recomeçar. Isso é sinal de garra e luta, é saber viver, é tirar o melhor de todos os passageiros.

Agradeço muito por você fazer parte da minha viagem e por mais que nossos assentos não estejam lado a lado, com certeza, o vagão é o mesmo.”

(Mazzei, Julinho, 2007)

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2. A VIAGEM: história ficcional de italianos no sul fluminense

I

A primeira vez que cruzei o rio me emocionei. A grande ponte metálica me

lembrava os tempos de pendolario na Itália...

Todo dia ia a Milão de trem, via Monza, partindo de Bergamo. Desse viavai similar

ao movimento de um pêndulo de um relógio de parede foram feitos meus dias. Assim como

os das pessoas que como eu, iam e vinham de uma cidade a outra para trabalhar ou, no meu

caso, estudar a língua italiana sendo assim chamadas, pendolari.

Não sei dizer se o rio estava caudaloso ou tranqüilo, bege ou verde. Tenho-o

atravessado de duas a três vezes por semana e cada dia ele se apresenta de um modo

diverso, porém sempre belo e misterioso. Vendo-o assim sedutor compreendo Ofélia e

Virgínia.

Com a distância temporal, que nos faz criar realidades, não saberia precisá-lo

naquela primeira tarde, há dois anos, quando, naquela manhã, atravessei-o cometendo um

erro, como quem confunde uma perna com um braço, atravessei o Paraíba acreditando ser o

Piraí.

Perna com braço porque visto que as terras compreendidas hoje pelo Município de

Barra do Piraí eram dominadas pelos índios Puris, Araris, Botocudos, Tamoios, todos

pertencentes ao grupo Tupinambá, e, segundo reza a lenda de formação do mundo desse

grupo indígena, Maíre – o transformador – de quem todas as tribos barrenses provieram,

andava sempre na terra acompanhado de Jacy e Guaracy, levando luz aonde chegava. As

metamoforses que operara despertaram a ira em muitas pessoas. Foi então Maíre convidado

a uma festa e obrigado, juntamente com seus dois companheiros inseparáveis, a pular por

sobre três fogueiras acesas. Após ter sido bem sucedido na primeira prova, Maíre evaporou-

se ao saltar a segunda fogueira e foi, assim, consumido pelas chamas. Sua cabeça, ao

explodir, produziu o trovão, enquanto que as labaredas do fogaréu se transformaram em

raios que incendiaram todo o Universo. Ao explodir, junto com Guaraci – o sol – e Jacy – a

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21

lua – subiu aos céus. Seus olhos viraram estrelas, seu bafejo, o vento, enquanto que seus

outros membros, ao retornarem à terra que ardia em chamas foram pedaço a pedaço

transformando-se em mares a partir do tronco, pernas e braços em rios e lagos. Uma

perna e um braço, respectivamente transformaram-se no rio Paraíba e no Piraí.

A grande conspiração contra Maíre custou à humanidade dias de grande penúria,

castigo imposto por Monan, o criador do homem que teria destruído a primeira leva

humana pela culpa adquirida e, desse grande aniquilamento teria poupado somente um

ser Irin-Magé, do qual Maíre descendia. O grande feiticeiro Maíre, introduzido nas artes

das transformações por Monan, tomado de piedade pela grande penúria na qual se

encontrava a humanidade, transforma-se em uma criança Manai e ensina a agricultura

aos Tupinambás, trazendo-lhes todos os vegetais que passaram a constituir a base da

alimentação de seus descedentes. Além disso, ensina-lhes a distinguir os vegetais úteis

dos nocivos e o uso que podiam fazer de suas virtudes medicinais.

Séculos depois a agricultura impulsionaria Barra do Pirai e a colocaria em

destaque no Império como grande produtora da região que seria denominada Vale do

Café. Além de no caso dos italianos, promoverem uma grande transformação culinária,

não somente introduzindo a massa e impulsionando esse tipo de indústria, como

veremos mais adiante, como mostrando aos brasileiros, que, por exemplo, poderiam

comer as flores de alcachofra e não somente dá-las aos porcos.

Naquela manhã atravessei a ponte metálica com grande esperança para encontrar

o secretário de trabalho e desenvolvimento de Barra do Pirai. Sabia que era um grande

entusiasta da cultura italiana por ser descendente de italianos. Imaginara-o um senhor

convencional. Deparei-me com um jovem empreendedor, o secretário empreendedor,

como se lhe refere um amigo, dono de pousada, em Ipiabas, distrito turístico do

Município.

O secretário conhecera meu irmão em uma divulgação de nosso curso e soubera

que eu era professora de italiano. Sim, professora de italiano, mais que uma formação,

um papel social, essa tem sido a minha existência. Posso realizar diversas atividades,

mas ao me definir, me defino e me compreendo como professora de italiano.

Há alguns meses ele iniciara um trabalho no sentido de trazer o ensino de

italiano para a rede pública, com o auxílio de uma associação carioca, seu único

problema: não havia professor de italiano na região. Eu, sempre quis ver a língua

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italiana nas escolas públicas, cheguei a fazer uma prova em Santa Catarina somente para

ter a sensação de prestar um concurso público para o ensino da língua italiana, nos

ensinos: fundamental e médio.

Problema resolvido, pensamos... Porém, nada é tão simples, em meio a

negociações, acertos, contratos, levou-se um ano para que víssemos a língua italiana na

Faetec de Barra do Piraí.

Durante esse ano passei a conhecer melhor a cidade e seus habitantes. Meu

projeto que consistia em recolher as histórias de vida de imigrantes italianos nos

subúrbios cariocas, transferiu-se para Barra do Pirai. Passei a conhecer a comunidade

italiana de Barra e gostaria de contar-lhes essas histórias.

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23

II

Há quem diga que Barra é feia. Eu sou feia, tímida e anacrônica, mas, como o

escritor, por força de pensar-me diferente, consegui simular exatamente o contrário.

Quem julga Barra feia atenta para alguns detalhes, tais como o viaduto que leva

de lugar algum a nenhum lugar ou à agitação do centro que lembraria Madureira. Nada

contra Madureira. Porém, tenho certeza que se a pensassem olhando o céu, o rio, os

casarios e, principalmente, os descendentes de Maíre com os filhos de África e Europa,

veriam-na gentil e hospitaleira, pois em Barra temos hausses, daomeetros, bantus,

iorubas, libaneses, italianos, alemães, portugueses, franceses, espanhóis, russos.

Nos meus 34 anos já morei em duas dezenas de casas e viajei por várias cidades

e países. Eu sou do tipo que para disfarçar a timidez puxo assunto e fico a escutar os

causos dos desavisados. No entanto, nunca conheci povo tão gentil, pessoas tão

agradáveis e olhares tão caridosos.

Dia 26 de julho fui à festa julina no “sítio dos italianos”, o sítio pertence a uma

família italiana, por isso ser conhecido como sítio dos italianos. Duas de minhas alunas,

professoras que se encontram na casa dos sessenta, são bisnetas de um friulano que

fundou o sítio e foram criadas segundo a doutrina espírita.

Barra do Piraí possui o mais antigo centro espírita do Rio de Janeiro, muitas

pessoas com as quais tenho convivido em Barra, alguns descendentes de italianos,

professam essa doutrina o que nos faz rever a associação de italianos ao catolicismo.

Devemos lembrar que além de católicos, vieram para o Brasil judeus, espíritas e até

mesmo ateus. Todos com um desejo comum, fare la Merica, melhorar de vida,

trabalharem e darem aos filhos a oportunidade de estudar

Minhas alunas do sítio dos italianos, são indubitavelmente as mais aplicadas,

uma vez me relataram como o desejo de estudar sempre prevaleceu às roupas e sapatos,

pois que tinham que optar em comprá-los ou ir à escola, na qual trabalhavam para que

pudessem estudar. Imediatamente lembrei-me das histórias de minha mãe que tinha que

usar o dinheiro do pão para pagar a passagem de ônibus ou ir a pé, até o colégio, que era

há muitos quilômetros de distância da casa de seus pais.

Talvez por ter sido embalada por histórias inventadas por meu pai e crescido

escutando os relatos de minha mãe eu goste tanto de um banco escolar e privilegie as

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24

viagens a qualquer sapato ou roupa da moda. Não me importo de pegar ônibus, van,

trem ou combi se no final chego ao destino de minha viagem e durante o percurso posso

conhecer pessoas diferentes. O único senão é andar até a rodoviária, mas daí me lembro

que o problema com as academias é o mesmo: chegar até lá, depois é só se divertir.

Tenho uma amiga que diz que eu sou a Sra. Perrengue, já seu namorado é mais

gentil na sua análise e diz que na verdade eu sou determinada. Ela diz que eu complico a

vida por não andar somente de carro. Aliás, depois de prestar o exame do Detran e ser

aprovada aos 19 anos nunca mais dirigi, isso nunca me atrapalhou, somente por ocasião

da segunda festa de casamento do Paolo, por questão de tempo, não poderia me dar ao

luxo de dispor de três dias para ir e voltar a Ilha Grande, organizei o evento com carinho

por telefone, mas fiquei profundamente triste por não poder comparecer, quisera ter um

helicóptero a disposição, às vezes um pouco de luxo faz falta, não é verdade? Minha

amiga também aponta o fato de eu ser um tanto quanto Kamicaze nos negócios, posto

que quando acredito em algo mergulho de cabeça, como no caso das duas escolas que

abri com meu irmão sem ter um tostão, me endividando absurdamente com

empréstimos que estão quase quitados a custa de acreditar que iria dar certo e viver por

três anos uma vida espartana. Sinceramente deixo a vocês o julgamento sobre merecer

ou não tal apelido.

E por falar em negócios, curiosamente tenho outros dois alunos descendentes de

friulanos, de Pordenone, um que a família pode ser considerada do Veneto ou do Friuli,

que se instalaram em Barra há pouco tempo, originalmente são de Jundiaí, vieram,

começaram com gado, depois café, mas felizmente optaram em abrir um laticínio. Eles

têm uma linha de produtos italianos que são realmente maravilhosos, atestados pelo

Paolo, meu amigo toscano que adorou os queijos e a manteiga. Conseguiram expandir

seus negócios e agora estão com um novo braço da empresa, uma fábrica de cerveja que

acredito mantenha a mesma qualidade dos produtos do laticínio. In bocca al Lupo!

Interessante notar que Barra, talvez por ser o maior entrocamento aéreo-rodo-

ferroviário da América Latina traga constantemente pessoas de outras localidades.

Tenho outra aluna, de Juiz de Fora, descendente de venetos que veio há alguns

anos habitar em Barra. Durante a faculdade se apaixonara por um barrense, passou a

freqüentar a cidade, após formada em odontologia começou a clinicar em Barra e daqui

não mais saiu.

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Assim temos a comunidade italiana constantemente renovada com descendente

dos italianos que vieram no ottocento plantar café no vale e outros que por motivos de

trabalho ou coração elegeram Barra do Piraí sua cidade.

Ontem qual não foi minha surpresa ao abrir meu email e ter um convite para

ingressar em uma comunidade de um famoso site de relacionamento, que se intitula:

“Vale do café parla italiano”, elaborada por um aluno descendente de portugueses. Não

precisa dizer que imediatamente me juntei à causa. Afinal, como dizia Raul, sonho que

se sonha só, é sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.

O curioso é que grande parte de meus alunos não são descendentes de italianos,

mas adoram a língua e a cultura italiana. Vive le Italian style de vida!

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III

Disse que minha mãe morava a quilômetros de distância de sua escola. O sonho

dela era estudar no Colégio Pedro II, e conseguiu. Nada a faria perder essas aulas e sua

paixão pelo colégio foi transmitida a mim. Agora é tradição familiar estudar no CPII.

Como não poderia deixar de ser, durante os anos no colégio nutri profunda admiração

pela figura de Dom Pedro II e quem sabe por extensão ao trem, já que a Central do

Brasil chamava-se Dom Pedro II.

Também para Barra do Piraí o trem possui papel fundamental e um dos

episódios famosos em Barra é a vinda de Sua Majestade Dom Pedro II no dia 07 de

agosto de 1864 para a inauguração da Estação Ferroviária de Barra do Piraí, hoje um

prédio abandonado no qual parte da comunidade barrense anseia para que seja

transformado em Centro Cultural.

S.S.M.M. chegou a Barra do Piraí em um trem de passageiros especial,

transportado pela “Baroneza”, locomotiva que, em terra de barões, como os anfitriões

José de Oliveira Faro e Matias Gonçalves de Oliveira Roxo, futuros barões do Rio

Bonito e de Vargem Alegre, nada mais apropriado do que chamar a “vedete” do

momento de Baroneza, locomotiva a vapor, única tombada pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, primeira a circular no Brasil e que media 7 metros e

meio de comprimento por 2 metros e meio de largura e 3 metros e 40 centímetros de

altura, uma verdadeira miss, neste caso, inglesa. Construída em 1852 por William Fair

Bairn & Sons- Manchester- Inglaterra.

Além da antiguidade e do contraste entre seus cobres polidos e os cromados

modernos das automotrizes, a “Baroneza” despertava interesse pela riqueza do

acabamento e dos ornamentos artísticos dos carros que puxava.

Após 20 anos de serviços prestados ao Imperador D. Pedro II, a então senhora

retirou-se de cena por decreto do Gabinete Imperial, regressando à cena por ocasião da

visita do Rei Alberto da Bélgica, ao Brasil. Em 1954, ao completar um centenário de

existência foi incorporada ao patrimônio nacional, por decreto e recolhida à área das

Oficinas do Engenho de Dentro.

Não só para a inauguração da Estação Ferroviária de Barra do Piraí deu-se a

visita de S.S.M.M, durante a elaboração do cerimonial, estabeleceu-se que o imperador

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também plantaria uma oreodoxa régia em uma aléia na Rua Angélica e que inauguraria

a pedra fundamental da Igreja de Nossa Senhora de Sant´Anna ao lado esquerdo do Rio

Paraíba.

Porém, para chegar à margem esquerda do Paraíba o imperador teria que passar

por terras de pessoas não-gratas. Para resolver o impasse, José Pereira Faro, numa visão

diplomática, mandou enfeitar luxuosamente uma de suas embarcações utilizadas no

transporte de carga e ancorou-a no cais de alvenaria, atualmente Avenida Rabelo. No

tombadilho colocou um trono dourado, sobre um tapete vermelho, tendo ao fundo uma

bandeira imperial brasileira. Contornando o barco foram dispostos os integrantes da

banda de música e alguns militares.

Deste modo, Sua Majestade D. Pedro II embarcou e desceu o Rio Piraí sob

aplausos populares, ao som de alegres marchas marciais, atravessou a foz do Paraíba e

desembarcou em frente a Casa do Imigrante, atual Rua Angélica, sem em nenhum

momento pisar terras de barrenses malquistos pela corte.

Com a chegada da estrada de ferro, cada vez mais desembarcavam em Barra do

Piraí levas de imigrantes, cuja maioria integrava-se facilmente, passando a contribuir

positivamente para o enriquecimento material e cultural do povoado.

Uma torrente de cargueiros vindos de Minas Gerais, Goiás e comarcas vizinhas,

passam por Barra, linha do centro e do ramal São Paulo.

Era um mar de imigrantes, mercadorias, matéria-prima, todos utilizando a

Estrada de Ferro de Barra do Piraí, atraindo filiais de importantes comissários de café na

Corte Imperial, tais como: Guerra & Ribeiro; Barbosa Júnior & Cia; José Ferreira

Cardozo; José Lourenço Torres; Bernardo Santiago & Cia; Barros Coelho & Cia;

Jacintho Lopes de Azevedo; Francisco José Corrêa Quintella; Joaquim José Ferreira e

Francisco Eugênio de Azevedo & Cia.

Além disso, a Diretoria da Estrada de Ferro Dom Pedro II centralizou em Barra

do Piraí seu depósito de material, onde funcionava também uma oficina de pequena

conserva e reparo dos trens de ferro, escritórios administrativos, e assistência aos

trabalhadores dos dois ramais em construção.

Interessante notar que o ramal ferroviário do centro seguiria quase o mesmo

traçado de uma variante do Caminho Novo de Barra do Piraí, Entre-Rios Serraria,

Simão Pereira, Matias Barbosa, Juiz de Fora, Chapeu D´Uvas, Passagem por João

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Gomes, atravessando a Mantiqueira na Garganta de João Ayres, alcançando a Borda do

Mato, ao passo que o traçado ferroviário de São Paulo seguia quase a antiga Estrada real

da Boiada, partindo de Barra do Piraí, passando por Vargem Alegre, Pinheiro, Barra

Mansa, Resende e, finalmente, chegando a São Paulo.

Nascia em 16 de julho de 1872, em Capriolle, província de Salerno, Itália, Carlo

Mandorla, fundador da S.A. Mandorla, posteriormente denominada: Del Fiore.

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IV

Dia vinte nove de julho de quarenta e nove para dois mil e sete, fiz cinqüenta e...

Nossa! Cinqüenta e oito anos de Brasil.

Vim de avião, cheguei no dia 29 de julho de 1949. E vim de avião. Trinta e seis

horas voando, em um avião de quatro motores, no qual as asas eram utilizadas para

armazenar o combustível. O avião veio enguiçando por aí afora. Descemos no Senegal,

em Dacar, depois paramos em Natal, no Rio Grande e, finalmente Rio de Janeiro.

A viagem era longa, naquela época era a Pistão, não existia Jato, nada disso. O

avião tinha só treze lugares, vinha enguiçando, era asa e tanque e, acredite ou não, não

explodia. Quando chegou ao Rio de Janeiro, ao descer quebraram-se dois motores,

pifou o terceiro e a asa virou, o piloto conseguiu acertar, se batesse com a asa

explodiria. Então a chegada foi assim. Não tive medo porque eu era garoto, tinha treze

anos. Tudo para mim naquela época era festa. Não tinha noção.

A “Itália” foi fundada em mil novecentos e quarenta e seis, na verdade a

República italiana foi constituída após a segunda guerra mundial.

Três anos depois eu vinha de avião para o Brasil, fui um dos primeiros a utilizar

o avião, como pioneiro foram meus avós.

Viagem para a Itália de navio só em mil novecentos e sessenta após me formar

em Direito, no Rio de Janeiro. Eu me formei em mil novecentos e sessenta e, em

sessenta e um, a minha avó permitiu que eu fosse para a Itália. Quatorze anos depois

daquela viagem de avião.

Eu saí garoto e voltei homem feito a Capriolle. Dessa vez fui de navio e voltei de

navio, onze dias de viagem pra ir e onze pra voltar. Se fosse hoje, levar onze pra ir onze

pra voltar se acabavam as férias!

Eu vim, não para ver o Rio de Janeiro. Vim por causa dos meus avós, porque o

meu avô tinha uma empresa, que era a “Del Fiore”. Quer dizer, nasceu Sociedade

Anônima Mandorla só depois passou a se chamar Del Fiore.

Na realidade, o meu avô se chamava Carlo Mandorla, então em mil novecentos e

dezoito ele criou a Carlo Mandorla e Cia. que em mil novecentos e trinta três passou a

Sociedade Anônima Mandorla, e veio assim até os anos setenta, quando a Del Fiore

entrou com propaganda e ao nome da empresa foi anexado o Del Fiore, Sociedade

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Anônima Mandorla Del Fiore. A marca dos produtos Del Fiore ficou tão forte que por

fim a empresa passou a ser Del Fiore S.A.

O nome fantasia era Del Fiore e tinha outras marcas, mas o mercado foi tão forte

que ele sobrepujou todos os demais, passou a ser tão forte que acabou eliminando o

nome de Mandorla e passou a ser Del Fiore S.A., Del Fiore S.A. Era Mandorla Del

Fiore e depois passou a ser Del Fiore S.A.

O Mandorla, meu avô, veio pra cá no final do século XIX, ele nasceu em mil

oitocentos e setenta e dois e veio pra cá em mil oitocentos e noventa e sete. Ele veio

então pra Barra do Piraí com vinte e cinco anos, mais ou menos com a mesma idade do

nosso amigo Renato. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras para chegar com um

trocadinho aqui. Ele era analfabeto. Você vê que coisa bonita o avô que era analfabeto

montou a Del Fiore o outro que era farmacêutico, falava latim. Então tem os dois

extremos na minha família, uma coisa bonita.

Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e noventa e sete,

desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o endereço de uma pessoa

conhecida, de uma tia dele. Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem

nada, tinha um peixeiro, italiano que passava para quem ele pediu informação.

Conheceram-se no cais do porto, e ele disse:

- Eu não posso te levar lá, mas eu tenho que trabalhar, mas no final do meu

trabalho... Então ele passou o dia todo vendendo peixe com ele...

Para no final do dia ser levado para o tal endereço, onde tinha uma pessoa

conhecida. Bom, aí fica até um pedaço obscuro porque eu não me lembro de outros

detalhes, só lembro que ele veio parar em Cruzeiro, ficou um tempo em Cruzeiro e veio

para Barra do Piraí onde começou suas atividades.

Inicialmente ele vendia fazenda nas fazendas, vendia corte de fazenda, era

mascate, chamadas de mascate naquela época, as pessoas que viajavam pelas fazendas

vendendo as coisas.

Comércio antigamente não existia. Então, ele foi vendendo cortes de casimira

pelo interior. Inicialmente, levava vários tipos, para escolha, mas as mulheres ficavam

em dúvida e acabavam não comprando.

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Acabou concluindo que tinha que levar poucos tipos para não dar margem à

dúvida. Passou a levar para as fazendas dois ou três tipos, com essa estratégia suas

vendas aumentaram consideravelmente.

Ele sempre comentava isso, sobre aquela objetividade. Depois, com sua visão

para negócios, montou uma empresa e começou a matar porco e vender suíno. Fazia

banha, carne salgada, pensava em industrialização até que os tempos de guerra

chegaram aqui também e teve problemas com controles da Cofap - Comissão Federal de

Abastecimento e Preço.

O Brasil sempre teve a mania de controlar os preços o que felizmente acabou

graças ao Sarney. Isso é uma coisa que pertence ao passado, mas foi uma fase

complicada, que a política que precede tudo tentava dominar a parte comercial.

Hoje está provado que o mercado é o que funciona, mas naquela época se

tentava direcionar o mercado, então tinha controle de preços e tudo e o controle era tão

grande nos produtos que ele resolveu diversificar. Montou uma fábrica de macarrão,

para não depender apenas de um insumo, o porco, controlado na época pela Cofap.

Comprou umas máquinas para fazer macarrão, máquinas com uns parafusos

enormes que misturavam os ingredientes, a masseira, muito rudimentar. Botava nos

parafusos que espremiam a massa contra os buracos para sair macarrão. Cortavam-na

com a mão, penduravam-na num bambu, metiam-na numa sala com ventiladores

enormes para não cainhar, cainhar é quando o macarrão fica todo rachadinho, trinca ou

mofa, o produto se chamava Macarrão Dalva. Como a estrela Dalva, a cantora Dalva de

Oliveira.

Além disso, também começou a trabalhar com fumo de rolo e cachaça. Tinha o

porco que abatia por causa da banha e da carne, depois o macarrão, tinha fumo de rolo,

aqueles rolos de fumo, tinha cachaça, engarrafava cachaça que comprava em Minas, a

cachaça Capacete de aço, que na época da guerra era uma cachaça famosa.

O vovô se casou, nasceram três filhos, o primeiro foi a minha mãe, o segundo

foi o César que foi presidente da Del Fiore até morrer, depois eu tive que assumir e o

outro, o caçula, foi o Eduardo que foi o dissidente da família.

Ele foi representante da Brahma, correspondente do Banco do Brasil, a primeira

agência passou pelas mãos dele. Era uma pessoa muito respeitada. E aí o tempo foi

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passando, chegamos até chegarmos aos anos cinqüenta. Eu tinha chegado ao Brasil em

quarenta e nove, convivi com meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e um de

abril de mil novecentos e cinqüenta e um. Ele tinha nascido em setenta e dois, então ele

estava com setenta e nove anos. Quando ele faleceu o César tinha vinte e tantos anos na

época, e teve que assumir as empresas. Era fim de ano, eu estava estudando um bocado

de coisas, fazendo o terceiro ano ginasial na escola Nilo Peçanha, fui pro Rio, fiz São

José, na Usina.

O César que era o segundo filho, a minha mãe morreu quando eu nasci, estudou

química, então era um técnico, todo perfeccionista, gostava das coisas perfeitas. Foi ele

que começou a Del Fiore e tudo. Também nasceu lá na Itália, veio para o Brasil com

oito meses. Nasceu nessa casa aqui da foto que trago no display do meu celular.

O César era perfeccionista, chegou à fábrica e começou a mexer em uma porção

de coisas. Quando chegou no setor onde fabricávamos o macarrão viu que o piso de

concreto tinha cedido, então ele resolveu fazer uma coisa bem feita. Tirou as máquinas,

botou o piso no nível, botou as máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou o

maquinário e nunca mais a fábrica de massas funcionou, nunca mais conseguiu fazer

macarrão, porque as máquinas tinham ganhado as formas do piso que foi cedendo, e

elas foram se acomodando quando botou tudo no prumo não teve jeito, e ficou pra trás a

fábrica de macarrão.

O São José era um internato, mas eu era externo, só assistia às aulas. Eu ia

almoçar em casa porque morava pertinho. Pegava o bonde e ia almoçar, depois voltava

para assistir as aulas da tarde, então eu era aluno externo.

Para eu poder estudar aqui no Brasil tive que fazer o que se chamava na época

exame de adaptação. Todo estrangeiro para poder continuar os estudos aqui tinha que

fazer exame de geografia do Brasil, história do Brasil e português, eu tinha estudado

geografia, estudava geografia mundial. Estudava história mundial, mas no exame você

tem história do país, geografia do país. Então tinha que fazer essas três matérias:

geografia, história e português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e

continuar e eu fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo para a Barra, a casa do alto

da Boa Vista estava fechada, então eu tive que ficar na casa do sogro do meu tio, fiquei

uns quinze dias na casa dele pra fazer o exame. O filho dele Humberto Ferrini, era

diretor social do Vasco da Gama. E uma coincidência, nesse ano de mil novecentos e

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cinqüenta foi inaugurada a sede náutica do Vasco da Gama na Lagoa Rodrigo de

Freitas, que até hoje é bonita. Imagina, imagina cinqüenta e sete anos atrás, aquilo era

um desbunde, era uma coisa maravilhosa. Um dia ele chegou e disse:

-Não, eu vou te levar pra jantar hoje. E me levou para jantar e botou na mesa,

você como não era nascida, o Ademir Menezes, o Queixada, que foi o maior goleador

que o Vasco teve, Antônio Campos e o Chico que era um dos expoentes da seleção

brasileira e jogava no Vasco da Gama...

Isso com um garoto de quinze anos... Eu ia fazer o que? Eu virei vascaíno na mesma

hora.

É pegar um garoto hoje e botar com Romário... esses jogadores famosos aí. Pra

um garoto de quinze anos... de trinta e seis à cinqüenta, estava com quatorze anos, então

um garoto com quatorze anos... virei vascaíno.

Depois de estudar no São José resolvi fazer Direito e tive que sair de lá porque

naquela época só havia dois cursos: o clássico e o científico. Quem fosse fazer Letras,

Filosofia, Direito tinha que fazer clássico. Agora, quem fosse fazer Engenharia,

Medicina tinha que fazer o científico.

Eu acho que uma das razões que me fizeram pensar em sair foi que ali só tinha

homem. Então, eu já estava ficando crescido, não é possível ver só marmanjo e no

Lafaiete não, no Lafaiete tinha muita mulher, muita menina bonita e tal e eu ficava de

olho comprido, por isso acabei indo para o Lafaiete fazer o Curso Prático. Em cinqüenta

e dois, eu estudei lá uns anos. Meu nome está lá na estátua do padre, porque estudei no

ano do cinqüentenário.

Cinqüenta e três, cinqüenta e quatro e cinqüenta e cinco eu estudei no Lafaiete,

que era misto, tinha o feminino e o misto, a minha turma era de oito homens para

quarenta e duas mulheres, vindo de um colégio onde só estudavam homens, era a sala

do paraíso. E foram três anos, depois fiz o cursinho para fazer vestibular, pois tinham

muitos candidatos para poucas vagas: passei direto para a faculdade em cinqüenta e seis.

Cinqüenta e seis, cinqüenta e sete, cinqüenta e oito, Cinqüenta e nove, sessenta.

Cinco anos de faculdade. No primeiro ano eu freqüentei as aulas de Direito, depois

comecei a trabalhar na Del Fiore e já não ia mais, mas quando faltavam uns vinte dias

para a prova, onde estivesse eu me trancava, pegava os livros e sempre passei. Minha

avó fazia questão que eu usasse o anel de advogado.

Page 34: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

34

E pensar que vim para cá porque na Itália, apesar do meu pai ser médico, o meu

avô farmacêutico estávamos no período do pós-guerra e na Itália faltava tudo, pois tinha

sido destruída, bombardeada.

Faltava tudo. Faltava gasolina, faltava pneu, faltava... Não tinha nada.

Durante a guerra o meu pai era militar e meu tio, um dos dois tios também era

militar. Meu pai foi oficial, era Tenente, viajou para a Albânia. Todos os colegas do

papai morreram, todos caíram. E ele ficou. Não tinha trauma, não, mas ficou marcado

com a guerra, só se lembrava da guerra com tristeza e acabou morrendo de problema no

coração, mas eu acho que o problema era da guerra, morreu com oitenta e oito anos.

Ficou doente, mas quando eu cheguei já tinha morrido. Eu o encontrei ainda, mas já

morto.

A guerra tem passagens muito tristes, porque faltava tudo. Como a minha

família tinha propriedade tinha um pouco de conforto porque a propriedade era grande.

Tinha gordura, tinha rebanho de ovelha, dava pra fabricar queijo, tinha cabrito, tinha

galinha...

Mas faltava tudo. Eu me lembro que eu escutava o barulho das bombas: era o

barulho da guerra, eu ouvia lá da minha vila, escutava o barulho das bombas dos

Aliados chegando na praia de Pestum.

Pestum fica encostada em Salerno. Os Aliados desembarcaram ali. Eles

desembarcaram em um lugar que lá de casa dava para escutar, porque é um lugar

relativamente perto.

Da minha casa até Salerno são oitenta quilômetros, então se ouvia o barulho das

bombas. Os americanos lançavam de avião, algo que chamavam de Ratti, Erre, a, te,te,

i. Ratti. Não era uma bomba, tinha a queda iluminada. Ele descia devagarzinho e

iluminava o terreno, depois bombardeavam lá embaixo. Então, lá de casa olhando a

gente via aquilo descendo. Depois vinha o bombardeio. E eu me lembro dos alemães

passando, embaixo de casa, porque a minha casa era em cima da estrada. As forças

passando, os alemães armados, mas ali não houve guerra, somente sofreu as

conseqüências da guerra. Quando o exército passava, o máximo que pedia era comida,

às vezes pediam cigarro, paravam e pediam cigarro para o pessoal da aldeia, mas era um

relacionamento assim, nunca houve nenhum fato, nada que acontecesse de grave, não.

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35

Houve a invasão, os problemas das insulinas, o fato de a Itália ficar dividida

quando parte do território virou casaca, virou pros americanos e tal. Virou, fez parte dos

aliados, mas antes disso tudo houve uma época que ficamos sob a invasão. E nessa

época da invasão o pessoal tinha muito medo, porque a guerra estava ali perto, era como

ter a guerra na porta de casa. Então, o quê que acontecia, o pessoal da aldeia resolveu

guardar as coisas lá em casa. A confiança que se tinha no meu avô, no meu pai, era tão

grande que a aldeia toda resolveu guardar alguma coisa de valor lá em casa.

A minha casa tem vinte e seis cômodos, umas paredes de dois metros, no porão

da casa, que agora foi transformada em residência, tinha engenho pra fazer vinho e

engenho pra fazer azeite. O meu avô com os caminhões transportava azeite, vinho.

Também lá tinha uma trave de madeira de nove metros de comprimento, e o meu avô

descia tudo, explicar é complicado, mas era ali que fazia o engenho todo.

Na casa tinha uma escada para baixo, e embaixo dessa escada tinha um vão,

então resolveram que dava um cômodo grande, o cômodo era metade dessa saleta aqui.

Então, todos os habitantes da aldeia, cada um levou um baú com dinheiro, com jóias,

relógios. A gente fez uma parede, fechamos, sem nada e escurecemos a parede,

passamos carvão e tudo, envelheceu a parede de modo que você chegava e não via

aquilo, via a escada, mas não existia nada. Então se porventura houvesse invasão, os

bens ficariam preservados e quando o perigo passasse abriríamos os baús e cada um

teria como recomeçar a vida.

Não houve invasão na minha zona, e eu me lembro de quando o cômodo foi

aberto. Abriram-se os baús e tudo mofado. Não tinha jeito, com a umidade tudo estava

estragado, mas as coisas estavam lá, guardadas lá em casa de modo que cada um levou o

seu baú, depois da guerra.

A única invasão que sofreram as pessoas da minha aldeia foram as dos anos

trinta, por causa do banditismo na minha casa tinha, na parede de dois cômodos umas

pedras almofadadas. Tinham umas pedras com desenho assim, a fresta e o gordinho em

cima, ou seja, um lugar para poder botar a espingarda, mas lá em casa nunca houve nada

porque todo mundo respeitava. A única que foi respeitada foi a nossa porque meu avô

era um cidadão acima de qualquer suspeita. Sobre essa época tem até um filme: Juliano,

o bandido da Sicília.

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36

Então são coisas que ficam registradas, ainda me lembro como se fosse hoje. A

guerra se foi em agosto de quarenta e cinco, eu nasci em trinta e seis, portanto tinha

nove anos quando acabou a guerra. Saí na rua cantando: “acabou a guerra, acabou a

guerra”! Eu tinha nove anos, então está bem vivo na minha memória. A guerra acabou

em quarenta e cinco, eu vim em quarenta e nove. Quatro anos após a guerra ainda estava

tudo destruído.

Só me lembro de tamanha alegria quando a luz chegou à aldeia. Minha tia, a

sogra do meu pai, tinha uma casa na praia, a cidade em que nasci era em um terreno

muito montanhoso, a uns doze, quinze quilômetros ela tinha essa casa. Era eu acabar de

prestar os exames e fugir para a casa dela. Passava os três meses de verão lá, na praia.

Era uma coisa maravilhosa. A tia então era uma coisa muito ligada. Então quando veio a

luz eu estava em Pietro, isso foi antes do armistício. Eu devia ter uns cinco, seis anos.

Quarenta e dois, quarenta e três, quando a vi sob a luz pela primeira vez, exclamei:

- Tia “peppina”, come sei bella!

Porque veio a luz, então via como ela era bonita, antes era só a luz da vela, você

não via direito à noite. Foi um acontecimento que me marcou.

Como já disse, meu pai era médico, e na época do Mussolini médico era

chamado de “doutor”. Ele atendia o município, era médico, oftalmologista, pediatra,

ortopedista. Fazia de tudo um pouquinho. Fazia de tudo porque era só ele.

Toda a população do município na minha faixa etária nasceu pelas mãos do meu

pai. Consertava braço e perna quebrada da turma que trabalhava na zona rural, a colher

azeitona, buscar fruta...

Então ele recebia azeitona, porquinho, essas coisas. Ele não recebia, nem

cobrava porque não tinham dinheiro para pagar, um dava uma galinha outro mandava

uma cesta de figo. Engraçado mesmo, a época na qual meu pai era médico. Fase boa da

vida!

O meu avô materno estava aqui. Tenho dois ramos da minha família italianos. O

do meu pai que é família Mango, que está todo na Itália, o da minha mãe Mandorla que

está todo no Brasil.

Todos eles eram italianos, o meu avô estava no Brasil, mas ele foi pra Itália, a

minha mãe tinha sete, oito anos quando conheceu meu pai lá na Itália. Conheceram-se,

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37

foram colegas de infância depois ela veio pra cá. Passado alguns anos o papai veio para

o Brasil, começou a namorar minha mãe, noivou e casou e foram-se embora pra Itália.

Eu tenho alma de brasileiro porque eu fui de contrabando daqui pra lá,quando a

minha mãe foi pra lá já estava grávida, foram-se embora e eu nasci na Itália. Minha mãe

morreu poucos meses depois do meu nascimento. Tenho um retrato seu em algum

lugar... Olha ela aqui, essa é a minha mãe. Veja como ela é linda!

Page 38: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

38

V

“Venham a mim as massas

exaustas, pobres e confusas ansiando por

respirar liberdade. Venham a mim os

desabrigados, os que estão sob a

tempestade. Eu os guio com minha tocha.”

(inscrição na Estátua da Liberdade)

Você conhece aquilo?

Luzzi?

No, não é. É o Rio. O Cristo Redentor e o Pão de Açúcar!

Aquilo me deixou a maior lembrança do mundo! Embarquei dia vinte e nove de

julho! Desembarquei no dia vinte e um, del mille novecentos e quarenta e nove. Na

madrugada, vou falar português, torto, como meu italiano.

- O Cristo Redentor com os braços abertos, porque o Marconi, tinha dato a luce!

Em 12 de outubro de 1931, exatamente às 19 horas e 15 minutos, Guglielmo

Marconi, cientista italiano, inventor do rádio, foi convidado, por iniciativa de Assis

Chateaubriand, em cerimônia presidida por Dom Sebastião Leme e Getúlio Vargas, para

proceder a iluminação do monumento ao Cristo por intermédio de um sinal elétrico

enviado de algum ponto da Itália, o que permitiu aos cariocas verem até mesmo em

noite de lua nova, o que atualmente é considerado, uma das sete maravilhas do mundo

moderno.

Que emoção! Como no livro La leggenda del pianista sull´oceano, de

Alessandro Baricco, a cena da chegada de imigrantes a Nova York, o momento no qual

sempre há um passageiro que primeiro vê a Estátua da Liberdade ao aproximar-se da

ilha da liberdade serve também para ele. Cenários diferentes, mas semelhantes emoções.

Ao aproximar-se do Rio de Janeiro e vislumbrar a estátua do Cristo Redentor, ou de

Nova York e deparar-se com a Estátua da Liberdade.

O Cristo, A Estátua da Liberdade, ícones da esperança por melhores dias...

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Recentemente em uma revista li que uma senhora, ao ver a estátua da liberdade

disse que ainda descobriria o nome daquela santa. Se fosse uma santa, sob o olhar do

imigrante, teria de ser a Santa Esperança.

Mille Novecento e Quarenta e nove... o pai tinha rientrato, então veio com o pai

para cá. Era um rapazinho novo da Itália. Foi para Genova, nascera em Luzzi, província

de Cosenza, Calábria. Em Genova foi para o porto, chegaram lá de madrugada. Dia

vinte e um, de julho! Dias e mais dias no mar, até que um patrício gritou:

- Nós tamo no Rio de Janeiro! Ó, tem o Cristo Redentor!

Ele levantou-se, tirou o pijama. Dormiam em cima, no tombadilho do navio. Ah,

o Cristo Redentor de braços abertos sobre a pedra! Ficou realmente encantado com

aquilo, mas, mesmo já tendo se passado cinqüenta e poucos anos... Sua primeira

lembrança continua sendo aquilo, daquela cena ao chegar ao Rio de Janeiro, disso não

se esquece.

Não, não é propaganda de sutiã. Quando Washington Olivetto elaborou o tão

premiado comercial, em cima de uma frase de música popular nos anos 40, “o primeiro

amor a gente nunca esquece”. Imortalizou para toda uma geração que viveu os anos 80 a

idéia das primeiras experiências, que tanto nos marcam por seu caráter único e

impossível de reprodução e que ao mesmo tempo era um replay de um momento

universal, de uma experiência já vivida, de uma experiência que algumas pessoas

querem viver e de uma experiência que outras estão vivendo.

Assim como a menina Patrícia diante do espelho, nosso amigo ficou

hipnotizado, completamente encantado com a visão do Cristo encrustado no Morro do

Corcovado, Assim como a visão do Cristo à primeira vez, ele conheceu seu pai aos

quatro anos e, diferente emoção lhe assolou:

- Chegou lá o mille novecentos e vinte e nove, io ero uma criança, no jardim de

infância. Dei um chute na cara dele porque não o conhecia!

O pai partira quando a mãe estava grávida dele, o calabrês ia para Itália fazia um

filho e voltava, ia lá fazia outro e voltava ao Brasil, era um sofrimento, toda vez que

voltava dava era mais trabalho pra mulher.

Page 40: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

40

Os filhos nasciam com a diferença de quatro a seis anos, o tempo de trabalhar,

juntar algum dinheiro para o que viria a ser o dote das filhas, naquele tempo só casavam

as moças com dotes.

Deste modo, o pai regressou a Itália em mil novecentos e vinte e cinco, e o

tiveram, depois voltou em mil novecentos e vinte e nove, virada para mil novecentos e

trinta, e nasceu sua irmã mais velha, depois voltou em trinta e seis, e, finalmente a

caçula nasceu, em trinta e sete.

Por causa da guerra o pai passou um longo período sem ir para a Itália,

regressando somente em quarenta e oito. Não conviveu com os filhos, as crianças

tinham um pai vivo e morto.

- Pesce, olha o pesce, la sardina!

No Brasil, o pai era peixeiro, com freguesia de mil novecentos e vinte e cinco a

mil novecentos e sessenta e cinco. Sempre trabalhando com peixe, perambulava o Rio,

pelos arredores do Campo de Sant´Anna.

O filho conheceu verdadeiramente o pai somente aqui no Brasil, já homem feito,

ao conviverem pela primeira vez por um período razoável de tempo, já que as idas e

vindas do pai a Itália eram muito rápidas.

O pai, analfabeto, não sabia muito não, mas, a seu modo, fez a Merica. No

início, comprou duas latas, amarrou-as a um pedaço de pau, apoiava-o nos ombros e

saia a vender peixe. Depois de um tempo, comprou uma carrocinha e com o peixe ele

trabalhava, e com o peixe ganhava seu sustento.

Ia e voltava a Luzzi. Cumpria com a sua obrigação... Mandava um dinheirinho.

Ia e voltava.

O imigrante sonhava com a América! Vou fazer a América! Diziam e

acreditavam, como os eleitos dos deuses, em duas coisas na Sorte e no Destino em nada

mais. Tem a vida amarga e a vida boa.

Com o dinheiro que o pai mandava para a mãe, a mãe comprou uma carroça com

dois burros.

Naquela época na Itália era comum o transporte com burros, ele tinha uma tia

que vinha até sua casa com o tio puxando o burro e, para não machucar botavam um

capim e seguiam a puxar o burro.

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Não sendo burro, nem de intelecto nem de carga o pai chegou aqui em mil

novecentos e vinte e cinco. Poderia ter desembarcado um ano antes, mas acreditava que

o destino o tinha mandado para a Argentina e para lá seguiu em vinte quatro.

Lá chegando, começou a trabalhar em uma firma que fazia água doce, mas era

muito sacrificado, não gostou de trabalhar naquelas bombas que ficavam a puxar água.

Então quando o pai veio aqui, o irmão dele emprestou um dinheiro, mas deixava

a mãe muito jovem sozinha. E deixava o trigo pra moer, e alguns bichos pra criar, e os

filhos pra cuidar, e tudo pra fazer.

A mãe era o homem e a mulher. A mãe foi uma sofredora, pois devia fazer a

parte do uomo e da mulher. Deixou uma moça que era a sua mãe e ele até hoje não sabe

como ela não botou chifre no pai! Já que somos de carne e osso...

- Veja como minha mãe era bonita, olhe essa foto, essa outra tem meu pai e

minha mãe, nessa ela está mais bonita porque parece menos sisuda. Sozinha está muito

séria.

Page 42: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

42

VI

Dizem que ela era muito bonita, muito bonita! Não a conheci, tinha vinte anos,

vinte e um anos quando morreu, era novinha. Era nova ainda... Veja só o destino, a

minha mãe foi pra lá, estava grávida, eu nasci lá, acabei vindo pro Brasil. Muitos anos

depois, após me casar, viajei com a minha mulher pra Itália, tínhamos um problema, ela

não engravidava. Fomos para a Itália e ela voltou de lá grávida. Então meu filho mais

velho foi feito também de contrabando, ou seja, minha mãe engravidou aqui e eu nasci

lá, já minha mulher engravidou lá e o Alessandro nasceu aqui. De todos os meus três

filhos ele é o que mais respira a Itália.

Eu conheci minha esposa no campo de futebol, eu gosto muito de futebol e eu

freqüentei muito o Moirão, que é o meu time em Barra e é tricolor também. Freqüentava

muito lá, tinha uns amigos meus, tudo homem casado, eu andava com gente mais velha.

Eu só andava com gente casada, meus amigos eram todos na faixa do meu tio que a

diferença era de dez anos, tem uma fase da vida que essa diferença é grande, depois a

diferença desaparece e na velhice torna a aparecer, mas some depois dos vinte anos. Ela

também freqüentava muito lá e acabei a conhecendo.

No Moirão tem a parte social, a arquibancada social e dentro da arquibancada

social tinha um telhadinho que a gente chamava de tribuna. Ela ia acompanhada por uns

quatro ou cinco conhecidos da mãe dela porque as amigas não gostavam de futebol e ela

sim. Um dia eu cheguei e estava muito cheio, então eu sentei na social, mas não na

tribuna. O pessoal começou a mexer com a gente perguntando pra mim:

- Por que você não sentou lá?

Nós éramos os mais novos, solteiros. Ela tinha dezessete anos. Então, eles

começaram a fazer sarro com a gente. Depois a gente namorou por três anos, ela já tinha

se formado, já tava dando aula, isso foi em sessenta, em sessenta e seis a gente casou.

O namoro foi interrompido em sessenta e um porque eu fui pra Itália. Disseram

pra ela que eu já era casado lá. Tinha uma senhora, que dizia que eu tinha namorado a

neta dela, mas namorada eu só tive ela. Essa senhora dizia pra ela:

- Não fica triste não, o Vittorio não casou com a minha neta, não casou com

você porque ele é noivo na Itália.

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Imaginem só!

É uma riqueza grande na vida da gente ter duas pátrias, duas famílias, muito

carinho com a gente é um negócio fantástico, eu tenho um amor pelo Brasil. Eu sei o

hino brasileiro inteiro e não sei o italiano, quase não ouço, então é natural. A maior

parte dos italianos não sabe cantá-lo também! Ele é complicado. É impressionante. Não,

não sei porque o hino nacional italiano tem uma letra que não dá para entender. Tem

umas partes que tem que interpretar o hino.

Meu pai com três anos de viúvo, casou-se de novo, em segunda núpcias lá na

Itália e eu tenho um irmão que morreu novinho e tenho duas irmãs, a Alessandra que

tem seis anos a menos do que eu e a Cássia que nasceu cinco anos depois da

Alessandra. Além disso, tenho a minha madrasta que de madrasta, ela só tem o nome. É

a sogra que minha mulher conhece. Ela é mais a meu favor do que das filhas, até hoje.

Chora, diz que eu não tenho que ir. Esse ano não fui, ano passado não fui, fomos em

dois mil e quatro. Ela é uma criatura maravilhosa, está com oitenta e cinco anos, já

quebrou fêmur, quebrou bacia, quebrou tudo, mas sobe e desce escada, cozinha, varre.

Ela gosta quando minha esposa está lá porque quando se levanta ela já fez café, quando

voltamos ela chora:

- Quem é que vai me fazer o café? Eu falo: - Sua filha tá aí, bota ela pra fazer.

Ficou uma ligação muito grande, muito forte com elas porque o italiano é muito

sentimental. Eu, por exemplo, vendo um filme choro à toa, não tenho vergonha,

realmente a emoção fica a flor da pele, muito sentimental. Eu fui criado, não tive mãe,

mas tive uma porção de mães, o que me atrapalhou porque eu achava que o mundo tinha

que girar em volta de mim.

Era o príncipe da aldeia. Até hoje quando chego lá me chamam de Dom. Filho

do médico e afilhado do padre que era muito amigo do papai, então eles eram o poder,

sendo assim, eu era o Dom Vittorio, Dom, tinham essas coisas do passado. Uma vez

minha mulher tomou um susto danado e falou:

- Meu Deus, caí na máfia! ((risos))

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Felizmente isso não subia à minha cabeça, pelo contrário, eu achava ruim porque

eu queria andar descalço igual aos outros, que não tinham possibilidade, mas eu tinha

que usar o sapato e quando o pessoal bobeava, eu tirava o sapato e saía descalço.

Chegava em casa, e vinha logo alguém dizendo:

- Mas tem que botar o sapato!

E eu argumentava:

- Mas eu quero ficar igual aos meninos!

Minha mulher também adora andar descalça, quando chegou a primeira vez na

Itália, que viu as pessoas descalças, resolveu também andar descalça, a tia tomou um

susto, falou:

- Você vai machucar o pé!

Ela argumentou: - Por quê?

Então expliquei-lhe que na Itália para o pessoal antigo, quem anda descalço é

pobre.

Outro símbolo importante era o anel de formatura, eu o usava, ele caía, então

fiquei sem usar por um tempo. Quando me casei colocava-o para segurar a aliança. Até

que um dia caiu tudo da minha mão e eu não usei mais, nem aliança, nem nada, mas ela

ficou brava, então voltei a usar aliança.

Vamos fazer quarenta e um, fizemos quarenta anos de casados, desde mil

novecentos e sessenta e seis. No início estudava e trabalhava ao mesmo tempo, depois

começou a minha vida de cigano. Eu vivia na estrada, trabalhando para a Del Fiore, até

a Del Fiore falir, em mil novecentos e noventa e seis. Perdi tantas coisas, devo ter feito

muita besteira, mas aprendi muita coisa e foi um aprendizado extraordinário de vida, de

tudo.

A Del Fiore vendia direto e eu cuidava do marketing, toda a parte comercial ficava

comigo. César na presidência, tio Eduardo na parte de produção industrial, e eu na parte

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45

comercial. Contatos com a televisão, propaganda na TV Globo, aqueles patrocínios do

carnaval

Tivemos três filhos. O Alessandro que é solteiro, é o mais velho, nasceu em

sessenta e nove, tem trinta e oito anos. O Bruno que é o do meio, trinta e seis e a caçula

que é a Marcela, trinta e quatro. De dois em dois anos. São três filhos, dois homens e

uma mulher. E tenho três netos. Dois são do Bruno e uma neta que vai fazer quatorze

anos, do primeiro casamento dele, separou, casou, separou de novo e tem um filho que

está com ele aqui, com cinco anos. Renata que é a mais velha, vai fazer quatorze. O

Francisco, que vai fazer cinco e a Roberta que é filha da minha caçulinha e vai fazer três

anos. São três filhos e três netos.

Eu sempre fui muito imaturo, esse casamento durou esse tempo todo graças a

ela. Se fosse outra, tinha se mandado. Imaturo e grosso. Eu fazia muita grosseria com

ela, um machismo porque eu queria me afirmar. Não tenho vergonha disso não. Dos

primeiros anos até os cinco, seis anos de casado, depois eu fui amadurecendo, fui

aprendendo, vendo o que ela necessita, mas no início ficamos casados por causa dela,

que enfrentou a barra pesada da grosseria, da estupidez. Imaturo, não estava preparado

para o casamento. Não se pode imaginar a idiotice que eu era.

Agora estou com setenta anos, a falência da Del Fiore foi um choque, e eu me

tornei diabético emocional. De certa forma isso foi bom pra mim. Eu já tinha uma vida

bastante regrada, de alimentação e algum exercício. Já tinha deixado de fumar no

primeiro ano de casamento, comecei a fazer exercício, mas depois que tive diabetes, tive

uma semana desregrada, mas não passou de uma semana porque pensei:

- para que morrer?

Aceitei a doença, ao invés de brigar com a doença passei a brigar com o

problema pra trazer solução, se você briga pra resolver, você faz parte da solução. Eu

dizia pro meu pessoal:

- Gente, não vamos fazer parte do problema, vamos fazer parte da solução.

Então passei a cuidar mais da alimentação, eu sempre gostei muito de

legumes, verduras, saladas... aqui em casa todo mundo também só come carne branca. E

passei a fazer exercício, a me exercitar. Quase todo dia eu ando três ou quatro

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quilômetros. Tenho qualidade de vida agora, melhor que antes de eu ter diabetes. A

minha médica que diz:

- Do jeito que o senhor leva a sério, o senhor está melhor do que quem não tem

nada!

Eu descobri isso em noventa e oito, foi em noventa e seis que a Del Fiore faliu.

Dois anos depois que eu descobri a minha diabetes. Então eu faço meus exercícios, mas

também com as minhas viagens no início, era complicado ter uma vida saudável.

Quando comecei a trabalhar, viajava muito, muito, muito. Então, para quem está sempre

na estrada ou no avião, em jantar de negócios, é complicado. Janta aqui, almoça lá. É

complicado. A vida agitada, agitadérrima. Podia levar até uma vida devassa porque tem-

se todas as facilidades.

Certa vez eu fui pra Itália, em mil novecentos e setenta e três, e nós tínhamos

comprado uma máquina que vale um milhão de dólares era o valor dela, depois peguei o

avião e fui para Milão encontrar com os caras, lá. E fomos jantar e eles pegaram e

trouxeram uma mulher pra mim! Até hoje eles riem da minha cara, mas não temos que

misturar uma coisa com a outra. Eu estava tratando de negócios. Podia sair muito caro,

uma noite de farra.

Eu sempre procurei manter a vida particular , às vezes o cara mistura as coisas e

acaba estragando muito, pode acabar com o casamento. A idade tira da gente um pouco

do físico, mas acho que ela acrescenta mais do que tira. A gente entende melhor as

pessoas, compreendendo o ser humano, suas fraquezas. A gente vai acrescentando

conhecimentos que na balança pesam muito mais que o físico.

Eu acho que tenho hoje tranqüilidade com a minha mulher, porque o que tinha

de errado, eu fiz quando podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e triste

porque não fez na juventude o que tinha que fazer. Tudo que você possa imaginar de

errado eu fiz. Hoje, eu não sinto falta. O que tinha de ruim eu consertei. Um dia eu

cheguei no médico e ele falou:

- Quê que você tá fazendo aqui?

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47

E eu disse: - Vim pra você me operar.

Ele: - O quê é isso? Operar o quê?

Repliquei: - Cálculo renal.

E aí mostrei os exames para ele, para resolver logo. Quando viu os exames

falou:

- É, vamos ter que tirar a vesícula.

A essa conclusão eu já tinha chegado, mas ao me perguntar quando eu queria

operar. Respondi:

- Amanhã!

Aí ele falou: - Você ta maluco, tem que fazer os exames de sangue.

Então eu fui fazer os exames. Fui para o Rio com a mulher. As meninas ficaram

sem jeito porque tinha que fazer tricotomia, raspar tudo e a mulher lá, mas não me

deram nem pré-anestésico. Eu nem estava preocupado com a operação, eu tava feliz que

no dia seguinte não ia ter mais nada. E realmente eu tirei. Fiquei internado três meses

porque tirei vesícula, hérnia de hiato, tive que fazer uma operação plástica. Fiquei

quatro horas e meia na cirurgia.

O meu batimento é maior. Quando estou parado de noite bate cinqüenta e oito

vezes o meu coração, meu colesterol um mais alto, outro baixinho, triglicerídio bom,

porque eu levo a sério... quer dizer, às vezes me dá vontade eu bebo umas cervejas, hoje

mesmo já bebi umas... Não pode pela diabetes, mas eu levo uma vida normalíssima.

Não me privo de nada, nunca gostei muito de doce. O pessoal come doce na minha

frente, não tem problema.

O problema é massa, mas aí descobri uma coisa maravilhosa, o macarrão

italiano não me faz mal. É porque ele é feito com trigo duro, o trigo mole que tem aqui a

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composição é diferente. um é elaborado mais depressa o outro mais devagar. Um dia fiz

um pratão de macarrão e no dia seguinte de manhã meu açúcar baixou.

Copiar dos outros, só o que é bom, não o que é ruim, afinal de contas, o que é a

teoria senão a prática dos outros posta no papel?

Eu já voltei umas trinta, quarenta vezes a Itália. Minha mulher foi umas quinze

ou vinte vezes comigo, férias pouco a gente tirava, mas era obrigado a ir por causa das

muitas máquinas, o macarrão por exemplo, os melhores equipamentos de macarrão são

italianos, de Milão, então pela facilidade da língua eu preferia viajar.

Depois tem a Alemanha com as salsicharias, a Espanha por causa do presunto,

os Estado Unidos, então, eu fazia estes circuitos pra participar das feiras, pra conhecer

as máquinas. Eu já viajei muito, inclusive junto com eles, comigo eles foram duas

vezes.

Sempre que possível eu procurava levá-los, mas muitas vezes eu viajava

sozinho, às vezes com colega de trabalho, mas às vezes até sozinho mesmo. Teve uma

vez que saí daqui numa terça-feira, pouco movimento, peguei quatro poltronas, deitei,

dormi aqui, acordei em Roma. Foi a melhor viagem que eu tive, dormi a viagem

inteira! Mas geralmente ia acompanhado, quando não da família, dos colegas de

trabalho, fui várias vezes.

Então eu cuidava da parte comercial da empresa, isso me obrigava a estar fora,

tinha na época, em sessenta e nove, a Del Fiore começou com propaganda, e foi

pioneira porque ninguém do ramo alimentício fazia propaganda na televisão. A Del

Fiore foi a primeira.

Em dezembro de sessenta e nove, fiz um Outdoor do Tender, presunto tender,

porque estava próximo ao natal e depois começou com aquela musiquinha: Del, Del,

Del, Del Fiore...

A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV Globo muito meu

amigo... Gerente comercial. É gerente comercial, ia lá para passar o final de semana,

então quando ia acertar o carnaval ele disse:

- Não Vittorio, aqui não, tem que ser lá na sua casa em Angra.

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49

A gente pegava a lanchinha que tava lá, saía de lancha, passeava... Ele era uma

jóia, na hora da gente ir embora ele dizia:

- Ih ainda não falamos sobre o preço dos comerciais, então papapapapa, resolvia

tudo!

A Del Fiore patrocinava o carnaval. Era assim que a coisa funcionava e com

propaganda, foi crescendo. Cheguei a ter cento e vinte vendedores no Rio de Janeiro.

Depois a gente foi pra Brasília, Belo Horizonte, Bahia, Salvador, São Paulo, Espírito

Santo, fui abrindo e viajava muito porque participava das convenções. Essa parte eu

gostava. Ela me ajudava muito porque ia e fazia camaradagem com as mulheres dos

donos de supermercados, então ficava uma coisa, uma linha assim de amizade intensa

com todo mundo, ela passou a conhecer, passou a conviver dentro da casa, um

relacionamento maravilhoso, mas isso me obrigava a pegar o avião e estar sempre lá. E

a gente unia o útil ao agradável, porque era uma coisa que era minha obrigação e era

gostoso e tal.

Nas festas, o pessoal começava a cantoria e eu gostava de cantar. Cantava, trazia

o microfone e cantava aquelas coisas bonitas, eu era bastante encabulado no início e

depois passei pra outro esquema, depois pegava o microfone e quanto mais gente tinha

do lado melhor pra mim. Gostava de público.Tinha um dos donos das Casas da Banha,

olha como eu me dava bem com ele, ele falava:

- Você vai parar de vender lá nas Casas da Banha, olha o que sua mulher tá

falando com o Júlio!

O cunhado dele, que era flamenguista doente e eu caíamos no riso. Porque eu

estava torcendo pro fluminense!

- Você não vai mais vender nas Casas da Banha.

Aliás, o Valdemar, que era um dos donos da Casa da Banha um dia ligou aqui

pra casa e disse:

- Vittorio, estou precisando de uma bolsa alimentícia.

Page 50: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

50

Ele era presidente da bolsa aqui no Rio, uma bolsa que mandava pro Mercado

Brasil, então fui ser diretor da bolsa durante três ou quatro gestões.

Engraçado, era pra eu ser fluminense, porque a bandeira italiana... Mas você

sabe porque que eu num... Eu gosto do fluminense, torço e tudo, mas em primeiro tá o

Vasco, em segundo fluminense.

Você acha que o fato político precede o econômico, ou o fato econômico

precede o fato político? À questão de alguns meses... vi que o fato político precede o

econômico, e a economia depende do mercado e para isto a democracia. Eu me lembro

do Marco Aurélio que dá cursos e eu lhe disse:

- Pô Marco Aurélio para mim estava tudo muito claro.

Por exemplo, você pega o relacionamento do homem e da mulher e pega o

relacionamento do empregado com a fábrica. Vou te dar dois exemplos pra isso: Numa

fábrica, você tem dois tipos de relacionamento, a parte funcional e a parte material.

Então, vamos na parte funcional. O empregado, em relação à fábrica, ele tem que ser

pontual, tem que ser honesto, tem que ser competente, tem que ser atencioso, tem que

ter talento. Na parte material. Qual é o relacionamento? O salário. É por isso que em

todas as pesquisas o salário nunca aparece em primeiro lugar, sempre aparece lá

embaixo. Se você puser o salário na frente, você não é funcionário. Porque você acha

que tudo isso aqui é bom por causa do salário. Não. O salário é conseqüência disso.

Então a parte abstrata, ela precede a parte concreta. E no relacionamento marido e

mulher, você tem o relacionamento afetivo e o físico. No afetivo você tem o quê? O

amor, tudo bem. Mas representado pelo quê? Pelo respeito, pela compreensão, pela

renúncia, pelo parceirismo, o pessoal gosta muito de usar a expressão cumplicidade,

isso tudo e a admiração formam o afetivo.

E o relacionamento físico? É sexo! E aí tem muita gente que confunde, porque

tem uma mulher bonita... Só que da mesma forma que quando você bota o salário na

frente da competência... se você bota o sexo na frente do afetivo... Quanto mais intenso

é o relacionamento afetivo, muito mais prazeroso é o sexo.

E as pessoas fazem confusão, às vezes. Tem que ver o que é causa e o que é

conseqüência. Então, isso é uma conclusão que a humanidade inteira faz, eu cheguei a

esse conhecimento agora, a esse aprendizado agora. Só depois dos setenta. Aos trinta,

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51

eu queria saber de festa, queria saber de salário... depois é que a gente chega à

conclusão de que as coisas não são bem assim.

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52

VII

Tem gente que é cabeleireira, tem gente que é sartina, que faz roupa, tem gente

que é doméstica. Naquela época não se usava muito a mulher trabalhar fora e estudar

bem, quem estudava lá eram os filhos de gente com alta categoria, que estudavam os

filhos para serem padres, engenheiros, médicos. Hoje, lá é o contrário, o filho do

lavrador é professor.

O pai voltou para a Itália em maio de sessenta e cinco. Não, eles não queriam

que ele voltasse, mas ele insistiu porque ficava feio, era homem com caráter. Tinha

vindo pra cá para poder melhorar a situação da família. Fazia dinheiro para fazer o dote

para as filhas, sem dote nada de casamento. Dieci mila lire, ou dieci mila lire ou nada de

casamento.

É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo, está tudo ao contrário.

Em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a mãe, com as duas filhas que com

o dote assegurado tinham se casado e tiveram filhos. Ele tinha netos lá que nem

conhecia. Ele era mais apegado com os netos daqui porque os vira nascer. Um tinha o

nome dele, o outro o da esposa dele. Aqui tem um costume, se vem donna tem que botar

o nome da mãe, com o pai a mesma coisa, por isso, o segundo nome de sua filha é o da

avó.

Então a vida se passa assim, num estalar de dedos, a gente sofre. Isso é o

Passaporte, a inveja no Paraíso. Já pensou em deixar uma moça bonita de vinte e quatro

anos e voltar depois de passados mais de trinta anos?

AHHHHH o que é isso!

Ele sempre comprava o cartão, que na sua terra se chama cartolina. Ele sempre

comprava a Cartolina do Cristo Redentor e mandava para os amigos, as irmãs, um dia

mandou até mesmo para o padre de Luzzi. Ainda nutre esse hábito. Sua adoração por

essa lembrança é tão grande que aproveitou a ida de um amigo ao Rio e encomendou-

lhe um pôster com esse tema. Tinha visto o tal pôster em uma banca de jornal, no Rio,

mas o jornaleiro no momento não dispunha de outro exemplar e aquele não estava à

venda.

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53

O velho amigo lhe trouxe o pôster e ele logo tratou de afixá-lo na parede da sala

ao lado do pôster de sua cidade. Proclamando que iria ficar eternamente ali, afinal ele

era um sujeito guardador de coisas.

Tinha só o quarto ano primário, mas gostava de guardar fatos, documentos.

Outro dia um amigo lhe mostrou no computador uma notícia, um artigo de jornal no

qual havia uma notícia sobre uma jovem e preparada mulher, graduada cum laude que

teria colaborado em um trabalho com o então ministro Giuliano Amato. A jovem da

reportagem, depois me explica, é sua sobrinha, por parte de pai.

Imaginem o orgulho de um imigrante que tendo apenas o quarto ano primário, lê

no jornal uma notícia sobre um parente que permaneceu na Itália. Aliás, cabe ressaltar

que muitos filhos de imigrantes, no Brasil, tornaram-se “doutores”, ou seja, obtiveram

uma graduação e uma ascensão social por meio do estudo.

Ele queria mandar-lhe duas palavras, um telegrama. Sem saber onde ela mora,

quando partiu da Itália a cidadezinha onde morava era uma contrata de dez mil

habitantes. Mas já virou ao contrário, após a guerra, durante o milagre econômico dos

anos 50, todos foram para Alemanha, Roma, Genova, Milão. A mulher da notícia de

jornal, sua sobrinha permaneceu e casou-se com um rapaz que por ter tido o avô morto

na guerra recebeu uma gratificação e pôde estudar na melhor universidade de Roma,

regressando posteriormente a sua cidade natal, casando-se e incentivando sua esposa a

estudar.

- Queria mandar duas palavras para ela, ma non sei onde é que mora, mas sei

que é na comune de Luzzi, ficava lá, se chama Contratta.

Assim como se orgulha da sobrinha na Itália e de sua filha Bióloga, fez questão

que se formassem suas três netas - não teve netos - cada qual em uma especialidade:

Geógrafa, Advogada e Nutricionista. Atribui o feito ao fato de ter-se casado com uma

professora, a mais inteligente de todas, segundo suas próprias palavras, que lecionou

português durante muitos anos na Escola Barão do Rio Bonito, lembram-se desse

nome? Sim, ao falar da vinda de S.S.M.M. tocamos nesse nome, um dos anfitriões de

Sua Majestade anos após a famosa recepção veio a receber esse título.

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Tal qual Barra do Piraí, formada de gente de todo tipo, sua família é constituída

de gente camponese, gente médico, ingegnere, tutto isso por aí, compreendeu? É uma

família muito grande, muito. Seu avô, já tinha conseguido uma propriedade, mas a

guerra levou tudo, não fosse o pai imigrar e mandar aquele dinheirinho para sua mãe

que com zelo e grande capacidade administrativa, comprou terra, cabras, porcos

constituindo assim belos dotes para suas filhas, essas talvez, por ser hábito da época,

talvez não se casassem.

Atualmente, Barra do Piraí tem até um gemelaggio com Paola, cidade da

Calábria, visando à integração das duas cidades. Foi uma grande recepção organizada

pela colônia italiana ao cônsul da Itália no Brasil e ao chefe da associação dos

Carabinieri, na qual, além do gemelaggio, ele e outros membros da comunidade foram

homenageados. Comovido, mandou uma cartolina para o prefeito de Paola

agradecendo-lhe o reconhecimento.

Ele veio para o Brasile com vinte e quatro anos, sua esposa não conhece bem o

temperamento dos italianos, conviveu pouco com eles na Itália, mas intui que ele é

diferente, talvez porque já se acostumou mais com ele, não sabe ao certo.

Ele sabe que os costumes são diferentes, para ele a maior dificuldade no Brasil,

foi a diferença de costumes. O Brasil é um país maravilhoso, mas pode ser um

verdadeiro inferno se nos perdemos nos costumes. Com anos de Brasil alle spalle, pode

enumerar diversas diferenças.

Na Itália primeiro vem o sobrenome, depois o nome. Quando registrou seus

filhos fez questão de dar-lhes o sobrenome de sua mulher. Tem gente que não faz

questão: “meu sogro não é nada pra mim, dizem” Ele fez questão, afinal casara-se com

a filha dele!

Há também semelhanças, tais como as recomendações. Eu conheço você, você

me conhece, nos ajudamos. Se tiver ao seu alcance faça com que o curriculum de meu

parente seja ao menos lido, considerado pela direção de sua empresa. Networking, rede

de relacionamento, Q.I. (quem indica), não importa o lugar no mundo no qual nos

encontramos, somos seres humanos, sociais e, ao menos nessa história, a família é nosso

bem maior, e nela incluem-se os amigos, a família eleita por nós.

Não só a família próxima importa, cada vez mais nos preocupamos com nossos

ancestrais, e com a Comunidade Européia, no afã de sentir-se incluído o brasileiro

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55

preocupa-se cada vez mais com sua árvore genealógica, indagam parentes mais velhos,

procuram documentos e baús esquecidos em sótãos e porões, passam parte das férias

percorrendo cidadezinhas por onde avós, bisavós, tataravós teriam residido, contraído

núpcias ou falecido.

Quem tem possibilidade vai a Itália, até as paróquias procurar registros de

nascimento, casamento de seus ancestrais, tudo na esperança de conquistar mais uma

cidadania. Quem não possui tantos meios, consola-se em escrever às paróquias, procurar

em arquivos na internet ou contar com a ajuda de alguém que more na Itália, ou mesmo

a passeio, inclua essa incumbência.

No caso dele, da sua família a cidadania é mais fácil de obter-se, pois que ele é

italiano. No entanto, talvez por estar há muito tempo longe da cidade de sua infância,

talvez por querer preservar a italianidade em sua família, preocupa-se com sua árvore

genealógica e quer identificar cada ramo para que seus descendentes reconheçam-se

como provindo de Carmela, Angiolina, Francesco, Michele, Concetta, Racchella,

Aurelia, Gerardo, Adellino, Pietro, Angelo.

Para que esses não sejam meros nomes evocados do passado a desfilarem em

páginas amareladas pelo tempo, com datas e cruzes, indicativas de nascimento e morte,

mas sim, nomes que lhes digam algo, já que para ele tanto significam, tanto lhe são

familiares, posto que fazem parte de sua história.

Para que seus herdeiros saibam mais do que somente as datas, que Mariano, não

seja apenas o pai ou sogro que nasceu em vinte de dezembro e faleceu em setenta e

quatro não no Brasil, onde residiu de mil novecentos e vinte a sessenta e cinco, mas na

Itália. Faleceu lá! Porque suas filhas ficaram lá, sua esposa ficou lá. Ele veio só e depois

trouxe o filho, mas depois de tantos anos, indo e vindo, não ficava bem para a mãe, ou

seja, para sua esposa, se ele não voltasse depois de ter campado os filhos.

As histórias de vida são únicas e deveriam ser preservada para que daqui há

vários anos alguém possa contar:

Oh! meu pai, meu avô, meu tataravô – não importa - emigrou em mil

novecentos e vinte e quatro. Foi para a Argentina. Ele tinha um irmão que se chama

Michele que foi no cais do porto para esperá-lo. Naquela época tinha a carta, era

necessária uma carta de responsabilidade. Passavam-se quarenta dias, cinqüenta dias,

sem notícias, mas hoje eu telefono, acesso a internet e falo com qualquer pessoa que eu

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queira. Não era assim naquela época. Então meu tio-avô falou: - Mariano, pois meu pai

se chamava Mario Ângelo no documento, porém todos os chamavam de Mariano.

Meu pai não tinha nem nascido. Minha avó tava esperando ele. Quando meu avô

chegou no cais do porto no navio, falou:

- Mariano, desce aqui!

Porque naquela época podia descer onde bem entendesse, pagava-se o bilhete e

imigrava-se igual a um cachorro de pobre, um vira-lata... Então, falou:

- desce aqui que você tem família em São Cristóvão.

Ele falou: - Não, o destino me mandou ir pra Argentina, eu tenho que ir pra lá...

E ficou por seis meses na Argentina, depois voltou pro Brasil. O irmão dele tava

aqui, chegou em vinte cinco. Sua avó mandou uma carta para o seu tio-avô dizendo que

seu pai tinha nascido. Somente em mil novecentos e vinte e nove seu pai (avô, bisavô e

assim por gerações e gerações) voltou pela primeira vez para a Itália. E vejam só o que é

necessidade ou miséria, não sei. Não sei o que acontecia. Como meu avô pôde deixar

uma moça bonita como minha avó lá. Vou te mostrar um retrato, tão bonita, muito bela.

- Escuta!

Ele voltou aqui de novo. Bom, ele mandou dinheiro, tinha lavoro, em mille

novecentos e trinta e seis voltou pra Itália. Em trinta e sete voltou de novo pra cá. O

quarenta e oito voltou pra lá, o quarenta e nove voltou para cá e ele trouxe o filho mais

velho, seu avô para o Brasil. Disse que tinha mulher bonita. Lá uma aldeia de dez mil

habitantes, doze mil habitantes. Ele o trouxe, trouxe por causa de sua profissão de

alfaiate.

Aqui, o avô chegou quase ao ponto de chorar, queria ir embora pra Itália de

novo, tinha deixado uma namorada, quando via o retrato dela queria voltar, queria

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voltar. A sua felicidade foi a avó, professora que lhe deu uma menina e um menino. E

não voltou mais. Por toda a vida deles. Compreendeu?

O primeiro encontro que o pai fez aqui, morando com os primos não se adaptou

muito no Rio de janeiro. Já tinha seus primos, sua tia, eram muito bons, mas era muito

diferente ele deles. Ele tinha os seus costumes. Eles aqui. Ele não os adotava, dizia para

uma parente sua com ar de indignação:

- Io vou casar com uma brasiliana?!

Ela depois teve vários anos para lhe dizer:

- Cuspa no prato e come, eh!

Toda sua vida foi sempre trabalhando, sempre trabalhando, sempre trabalhando,

sem ter o domínio da língua.

Outro dia ele se aborreceu porque veio um português se gabando. Dizendo que

tinha feito isso, aquilo. Ele imediatamente lhe respondeu:

- Olha! Tu não é nem mais inteligente, nem mais esperto. Tu fala a língua daqui.

Porque o outro tinha vindo de Portugal já com Língua do outro país, o tio dele

tinha uma barraca, era um vendedor como ele. Com ele foi um pouco mais difícil

porque falava A, tinha que esperar o freguês falar, ficava quieto tinha que escutar um e

outro pra vender. Ele teve sorte, o outro mais sorte, mas o sujeito não era mais

inteligente do que ele. Chegou no Brasil, chegou em Barra do Piraí, eles se encontraram,

dois fósforos apagados. Além disso, no Brasil seu nome era nome de fruta.

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VIII

“Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

trouxeste a chave?”

(Drummond)

Veja, o fato de eu ter sotaque, eu tenho, eu tenho sotaque carioca. Você não vai

achar outro Italiano que tenha passado tantos anos na Itália, nascido lá, passado a

adolescência lá, como é que chama aquele nosso amigo que tem nome de fruta? Bom,

ele chegou em Barra do Piraí oito dias antes de mim. Eu cheguei no dia vinte e nove de

julho, ele chegou dia vinte e um. E com a minha idade, ele tem mais ou menos a minha

idade. Você conversa com ele e vê o sotaque dele é um negócio assim... Italiano puro.

Quando cheguei no Brasil, fiquei mudo durante muito tempo porque era muito

encabulado, ficava com medo de errar, com vergonha, eu era todo cheio de frescura,

garoto inseguro, insegurança todos nós temos mas naquela época era mais ainda porque

saí de um mundo que falava italiano, não falava português, não entendia nada, não

conhecia meus avós direito, mas eu comecei devagarzinho estudando, me apaixonei

pela língua portuguesa e gostava, estudei um ano no São José, fui desenvolvendo e

acabei sendo o melhor aluno de português da turma lá no São José, porque me dedicava,

tinha que aprender. Então, fui bom aluno de português, de vez em quando errava,

ortograficamente é difícil, mas eu sempre gostei de português.

Sempre fui bom em português, e perdi o sotaque, falo com sotaque carioca, mas

mantenho o sotaque italiano, quando vou lá também, me escondo no meio e ninguém

percebe.

Com os meus avós aqui, no início falava só italiano. Não tinha como. Só falava

italiano, e dialeto, era o dialeto da minha região, porque a Itália tem vários dialetos. Na

rua tentava falar português no início, depois não, depois eu comecei a pensar em

português, sonhar em português, mas no início era só italiano. Esperei um ano pra

aprender a falar português, cheguei em quarenta e nove e só em mil novecentos e

cinqüenta, depois meus tios colocaram-me no professor particular, estudei com o

Barbosa Leite.

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Ele foi meu primeiro professor, na rua ali, meu primeiro professor de português.

E comecei aqui, refiz o terceiro ano ginasial no Colégio Municipal Nilo Peçanha, que

naquela época era ali na esquina, onde hoje é Barão de Rio Branco.

Na Itália fiz até o terceiro ginasial, aí eu vi que tinha aqui. Em Campagna. Eu

nasci na Campagna. a cidade, o município chama-se Capriolli , é uma aldeiazinha.

Nasci aqui, nessa casa aqui que tenho no display do celular, a aldeia se chama

Garrazzano, que em italiano é com dois erres e dois zes, uma fração do município de

Capriolli que pertence a província, que aqui é como se fosse o estado, aqui tem estado

lá tem província. Então era a minha província que é a província de Salerno.

A Itália tem pequenas frações. Fração é o município que tem três, quatro frações,

uma a duzentos metros da outra, em cima do monte assim...

Já meu avô aqui era analfabeto, já lhe disse, não?

Mas o meu avô, agora me lembrei, meu avô era analfabeto, ele foi para o Rio e o

camarada exigiu o recibo, então teve que botar impressão digital, e o cara disse assim:

- Mas senhor Mandorla, o senhor um empresário assim não sabe escrever?

Passou uma humilhação o meu avô e saiu de lá chorando, soprando ar e, já tinha

cinqüenta e quatro anos, disse:

- Eu vou aprender a ler e escrever.

Botou professora e aprendeu a ler e escrever, ganhou a vida dele quando passou

a ler jornal, cadernos de notícia. Você vê o que é a força de vontade, cinqüenta e quatro

anos... Aprendeu a escrever, a fazer recibo direitinho.

O outro meu avô, ele era farmacêutico, ele era uma pessoa muito instruída,

estudava latim e quando eu fiz o vestibular, tinha latim no vestibular...

O professor que conhecia e tal e caiu num trecho lá que eu conhecia e pediu pra

eu dissertar eu dissertei, a turma toda parou, todo mundo começou a bater palmas, mas

o senhor, como o senhor conhece isso e tal, aí eu expliquei pra ele e disse:

- Olha eu nasci na Itália.

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Ele disse: - Não, eu sei, o senhor falando a gente sente um sotaquesinho...

Completei: - Mas o meu avô era farmacêutico e falava latim com o padre, que

era o meu tio. Resultado eu fui obrigado a estudar latim mesmo.

E foi aquela coisa, tirei dez. Natural, porque...o meu avô falava latim...

Meu avô falava latim, era juiz de paz, nos conflitos de limites de terra, ele era

farmacêutico e juiz. Além disso, ele era o conselheiro, ele era o Dom Elíseo, todos

falavam:

- Não, o Dom Elíseo falou, tá falado!

Ele era muito justo, como meu avô Mandorla aqui tinha uma noção de honradez

que todo mundo fala que meu avô era homem honrado.

Porque ali tinham as regras básicas de moral e de ética, hoje a moral é elástica.

Foi assim que nos dois ramos da minha família só tem exemplo de correção.

Certa vez, um dia de madrugada, o vovô ouviu alguém batendo na porta, ele foi

abrir, tinha um cara com um capote, barbudo, eu estou com um probleminha, precisava

de um remédio. Ele disse:

- Pois não, que problema é o teu?

Ele morava na aldeia, tinha que subir uma escada e tava na praça, na praça

pública, tinha a farmácia. Então foram de madrugada, tudo escuro, tudo deserto, a luz

veio depois. Era da minha época a luz. E foram lá e ele preparou lá a emulsão, botou

num copo e o camarada virou pra ele e disse:

– Prima Lei, ou seja, primeiro o senhor

Meu avô pegou o copo, quando chegou na boca o camarada disse:

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- Dom Elíseo!

Ajoelhou no chão e, papai me contando isso:

- Dom Eliseo, o senhor me perdoa, eu conheço a honra do senhor, não devia ter

feito isso, mas a vida que a gente leva... A polícia me procura, eu fui obrigado a matar

fulano de tal, minha família não sabe onde eu estou, mas eu estou escondido na caverna

tal, o senhor é o único a saber, agora, onde me escondo.

Sabia seu nome, filho de quem era, quem tinha matado, porque tinha matado.

Continuou: - Eu fui obrigado a matar, mas a polícia desconhece isso, agora, eu

só posso lhe agradecer, pedir desculpas e dizer para o senhor que se algum dia alguém

incomodar o senhor, atravessar o seu caminho, cometer uma injustiça, o senhor me

procura.

O papai me contou, mas o vovô não contou pra ele o nome da pessoa e onde

estava, nem ele me contou, até porque não sabia. Conhece a história, mas não sabe o

santo, porque o vovô morreu com esse segredo, não disse, ele contava a história,

contava o milagre, mas nunca contou o santo nem o milagre que tinha feito...É uma

coisa assim que fica. Umas coisas do passado. Então tem os dois ramos. Meu pai casou

e minhas irmãs estão lá. Agora aqui no Brasil, Mandorla ficou aqui.

A minha irmã mais nova aposentou-se agora, foi professora, a vida inteira,

aposentou-se junto com o marido que era do exército, coronel no exército italiano,

comandante lá no batalhão, mas se aposentaram os dois. A irmã mais velha também

professora, deu aula e aposentou-se como professora, mas tem consultório, ela fez

psicologia, então ela tem um consultório, onde ela atende, está sempre atendendo, tem

sempre gente procurando por ela porque ela é boa no que faz, ela continua atuante.

Agora está na política. Ela é muito procurada, tem expressão e tudo e o homem

que se elegeu prefeito lá em Salerno, pediu a ela para ajudar, fazer discurso de posse,

então ela de pano de fundo.

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O prefeito que se elegeu era muito amigo do dono da clínica onde ela trabalha há

vinte, trinta anos, e o dono da clínica pediu pra ela ajudar, então ela está ajudando.

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Trem das sete

Ó, olha o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis,olha o trem Ó, olha o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho neon Ó, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem Ó, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem Quem vai chorar, quem vai sorrir ? Quem vai ficar, quem vai partir ? Pois o trem está chegando, tá chegando na estação É o trem das sete horas, é o último do sertão, do sertão Ó, olha o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões Ó, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons Ó, ó o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral

(Raul Seixas. 1974)

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3. A PAISAGEM: PANORAMA SÓCIO-HISTÓRICO

3.1. Fluxos migratórios

As sociedades, no interior ou acima de suas fronteiras visíveis, são dotadas de uma

fixidez relativa. Segundo Fernando Azevedo, “as sociedades se misturam de todas as

maneiras, penetram entre suas vizinhas ou são penetradas por elas, dilatam com

imigrantes ou os enviam, mantendo-se em perpétua transformação” (pág. 13).

3.1.1. Os êxodos de massa entre o século XIX e XX

Imaginem o seguinte cenário para o Brasil na virada do século XX: fim da

escravatura; renovação urbanística na cidade.

O Rio de Janeiro inspirava-se no modo de viver francês até mesmo no que dizia

respeito à reorganização urbana, por outro lado o crescimento da classe burguesa fez

com que surgisse tanto em Paris como no Rio de Janeiro a vinculação de classes

laboriosas a classes perigosas, trabalhadores identificados como possíveis criminosos.

Paralelamente a Itália vivia um momento conturbado, com a expulsão dos

anarquistas contrários ao projeto burguês de unificação, além dos excluídos da nova

ordem social, trabalhadores e desempregados que simpatizavam com as teorias

socialistas e anarquistas viram-se expulsos pelo governo italiano ou forçados a sair por

serem perseguidos politicamente, muitas vezes sendo presos ou tendo seus

companheiros mortos por terem se envolvido em manifestações ou protesto político,

como presencia Severina, a última personagem, inacabada, de Ignazio Silone.

Deste modo, os imigrantes italianos que chegavam ao Rio de Janeiro na virada

do século XIX para o XX encontravam-se mergulhados entre doutrinas anarco-

socialistas, importantes para a conscientização e organização da nova classe, a classe

trabalhadora, e a necessidade de sobreviver, ou melhor, a necessidade de concretizar o

desejo que os fizeram transpor um inteiro oceano, o desejo de fare la merica.

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67

Infelizmente, para a maioria dos italianos que aqui chegaram, o eldorado

prometido revela-se uma imensa pedreira e não uma generosa mina de ouro. Poucos

foram os Matarazzo e muitos os italianos simples, anônimos que fizeram a história

nessa nova pátria. Nesse cenário chegam o avô de Vittorio que por seu percurso de vida

em Barra poderia ser considerado um representante do primeiro gênero, ou seja um

Matarazzo, e já no início do século XX o pai de Renato, representante do segundo

gênero.

Os imigrantes que acabavam de chegar, sem ter como voltar, perceberam que se

na Itália não se sentiam integrados, aqui não seria diferente. Parte que não está feliz

segue em busca da felicidade, de um lugar melhor, onde possamos chamar de lar.

A sociedade do Rio de Janeiro na virada do século era uma sociedade em

transformação, mas capitalista, com os mesmos valores burgueses dos países europeus

e, portanto, com as mesmas conseqüências. Não é à toa que muitos italianos que não

encontraram trabalho ou que eram considerados ideologicamente perigosos também

foram expulsos do Brasil, por exemplo o primeiro anarquista a chegar no Brasil, em

1880, de nome José Saul que foi expulso de Pelotas pelas autoridades locais que temiam

suas idéias sobre a doutrinação e organização de “Grupos Libertários”, Galileu Botti,

diretor do jornal “Gli Schiavi Bianchi”, este foi expulso de São Paulo e do Brasil, V.

Cordasco, alfaite de 52 anos, expulso em 1908; J. Caiazo, sapateiro, 35 anos, expulso

em 1919, estes denominavam-se anarquistas e por encontrarem-se desempregados

foram enquadrados como “vadios”, o que lhes valia expulsão do Brasil (Menezes, 1996,

106 e 108 apud Santos, 1999, 26).

Cabe ressaltar que o desenvolvimento da ideologia libertária no Brasil é fruto

não somente do processo migratório, mas principalmente das contribuições sociais,

políticas, econômicas vigentes no país, no início do século passado, e que o contingente

de imigrantes italianos não se restringia aos grupos anarquiastas e socialistas, mas que

em sua maioria era formado de pessoas comuns que por passarem dificuldades sociais

nel suo paese vieram ao Brasil a procura de trabalho honesto, comida e casa. Porém,

aqui chegando por vezes encontraram exploração e desemprego. Nesse cenário, não

muito diferente na prática da Itália, nasce em 1854, da reunião de 34 italianos residentes

no Rio de Janeiro, a Società Italiana di Beneficenza e Mutuo Soccorso que tinha como

objetivo ajudar “os italianos de quaisquer dos vários Estados da Itália” (“gli italiani di

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68

qualunque dei vari Stati dell’Italia”; In Cenni, 1975:239 apud Santos 1999:29). A

história da fundação da Società Italiana di Mutuo Soccorso, confunde-se com a própria

história da imigração italiana na capital e serve como indício de que o Rio de Janeiro

não foi apenas uma estação de transição para outros lugares do Brasil.

De diversas regiões da Itália vieram não somente pessoas comuns como

também, religiosos, médicos e enfermeiros voluntários, mas com a chegada da princesa

D. Teresa Cristina de Maria Borbone, ao casar-se com D. Pedro II em 1843, é que o

processo imigratório toma propulsão. Com ela, além do irmão Príncipe d´Aquila vieram

amigos da corte e empregados de confiança e abre-se o caminho da migração italiana

para a capital do Brasil, ou seja para o Rio de Janeiro e posteriormente para as zonas

cafeeiras do sul fluminense e São Paulo.

Segundo Rodrigues, começam a chegar os pequenos comerciantes e

profissionais ou

especialistas em algum ofício “que conseguiam trabalho nas fábricas de tecidos, nas

indústrias de vidros, nas fundições, na construção civil, nas pedreiras” (Rodrigues,

1984: 12) atrás, de esses, os aventureiros que vinham tentar a sorte na nova terra e os

que por circunstâncias políticas ou econômicas adversas viram-se obrigados a

abandonar sua terra natal.

Porém, muitos desses italianos não se fixaram na capital, foram para o interior

do estado do Rio de Janeiro trabalhar como mascates, como no caso do avô de Vitório,

ou em fazendas e praticar agricultura de subsistência em cidades como Resende, Porto

Real, Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, Valença. Como Santos teve a oportunidade de

confirmar essa presença dos imigrantes italianos no sul do estado ao encontrar folhetim

“I drammi delle colonie italiane del Brasile”, enredo ambientado em Porto Real

(Santos, 1999, 30).

Em meados do século XIX, quando ao formarem-se dois povoados: São

Benedito e Sant‟Anna inicia-se a história de Barra do Piraí, cidade na qual encontra-se a

colônia de italianos cujas histórias de vida são narradas nessa pesquisa, que seria

elevada a município em 1890, que começara a se tornar importante em 1864 com a

chegada da estrada de ferro de Dom Pedro II, mais tarde denominada Central do Brasil,

cresceu tanto de modo a se tornar centro comercial da região cafeeira e em 1871, com a

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69

construção de novos ramais na estrada, ligando São Paulo a Minas Gerais, tornou-se o

maior entroncamento da América do Sul.

Atesta Menezes que em 1880 c.a. há um aumento da imigração e os italianos

mais humildes que optam por permanecer na capital dedicam-se ao comércio

ambulante, como o caso do pai de Renato que trabalhou como peixeiro por vários anos

na capital, e exercem várias atividades consideradas menores como “engraxates,

jornaleiros, amoladores, sapateiros, varredores de rua, pedreiros, alfaiates, barbeiros,

marceneiros e jardineiros” (Menezes, 1996, 77).

Em meio a esse vai e vem de novos personagens, com música diversa em suas

falas uma capital modernizada à força como cenário. Um Rio de Janeiro com ares

parisienses que tentava se não arrancar, camuflar tudo o que lembrasse as raízes

africanas e portuguesas, pois que lembravam o passado de colonização e escravidão. A

partir de 1890, tendo sido a República nova forma de governo proclamada em 1889,

novos traçados para um novo estilo de governo: planificação de morros, construções

modernas seguidas do “Bota-abaixo” das moradias antigas, o que engendraria as

primeiras favelas; vielas escuras e fétidas davam lugar a largas e arejadas avenidas

numa higienização diferente da pregada por Oswaldo Cruz, pois que essa era de fato

não uma metáfora de engenharia sob o comando de Pereira Passos.

A uma mudança de ambiente segue-se uma mudança de estilo de vida, portanto.

Naquele momento o chic era voltar as costas para o passado, ordem do dia que

infelizmente enraizou-se na alma brasileira. O comportamento da população passou a

ser orientado pelo modelo francês. Segundo Menezes: “comportar-se à parisiense

tornou-se a representação da nova era. Dos costumes às construções, dos lazeres ao

vestuário, o chique era voltar as costas ao passado” (Menezes, 1996,31). A partir dessa

época data o “quadrilátero” francês do centro da cidade, os belíssimos prédios em estilo

eclético do Clube Naval, Museu de Belas Artes, antiga Faculdade de Belas Artes, a

Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal. Primoroso conjunto arquitetônico com ares

europeus, mais precisamente, em meio ao novo passeio público a larga e ampla: Rio

Branco, parisiense.

Infelizmente nem tudo são flores, a bela reforma não incluía o cidadão comum

em seu planejamento. A população pobre que habitava o centro da cidade, com a

diminuição das ofertas de casas o preço dos aluguéis subiram e os trabalhadores que

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70

moravam no centro e foram despejados para que a construção da atual Presidente

Vargas e Rio Branco fossem possíveis viram-se muitas vezes obrigados a dormirem em

casas abandonadas na periferia ou mesmo ao relento.

A higienização incluía afastar todos os que pudessem atrapalhar a renovação dos

hábitos da capital, principalmente, vadios, prostitutas e mendigos. Tudo em prol da

construção de uma imagem “saudável”, afinal, por que se preocupar com que já vivia à

margem da sociedade, com excluídos? O mínimo estudo histórico e preocupação social

teriam evitado muitos dos atuais problemas do Rio de Janeiro atual.

Ao afastarem-se os trabalhadores do seu local de trabalho gerou-se a

dependência desses pelos transportes coletivos e, desde aquela época o sistema de

transportes mostrou-se precário. A alternativa a morar nas periferias era a de habitar os

morros mais próximos. O que propiciou o encontro de pessoas provenientes de diversas

áreas do Brasil e do mundo com os quilombolas, do maxixe, da polca e do choro com o

jongo, um verdadeiro celeiro cultural, mas que ao longo das décadas foi inchando, sem

infra-estrutura.

Nesse cenário de renovação e efervescência cultural, a Società ajudava aos

italianos pobres que, obedecendo-se a nova ordem de exclusão, foram expulsos do

centro da cidade para áreas periféricas.

Assim como os italianos foram se dirigindo para diversas áreas, as associações

que tinham como base num sentimento de italianidade desenvolvido, multiplicam-se por

todo Brasil, mesmo antes da unificação da Itália. Além do fato de tornarem-se italianos

fora da Itália e antes mesmo que essa fosse unificada esses imigrantes por se

comoverem e sentir-se culpados com as notícias que recebiam por cartas da Itália sobre

a situação na qual seus entes queridos se encontravam, passaram a enviar as tão bem-

vindas remessas de dinheiro. Não é estranho que décadas mais tardes, nos anos „50 uma

das fórmulas do governo italiano para gerar o milagre econômico tenha sido a de

estimular a emigração criando diversas peças publicitárias para que essa fosse

estimulada.

3.1.2. as migrações da segunda metade do século XX

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71

No filme Cari F.....amici (caros F.... amigos) o narrador começa descrevendo

suas memórias na cidade de Florença durante a libertação da seguinte forma:

“Piazza Del Duomo”, Carmine - agosto 1944. Meu nome é Gino Martini e eu

tinha 20 anos na época. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Florença

fora libertada pelos americanos que eram, em sua maioria ingleses (...) que

sempre foram egoístas e arrogantes com os povos conquistados. De fato, em

Florença não deram uma bolacha sequer, nem uma ervilha seca, por isso

estávamos todos famintos. Fechados em casa por mais de quinze dias, sem

luz, sem água e sem gás, comendo a palha das cadeiras”.

Pesquisar sobre a imigração italiana no Brasil por meio de depoimentos, de

relatos pessoais é uma forma de conhecer um pouco a história de dois povos: o italiano

e o brasileiro e descobrir particularidades de universos micros ao invés de somente se

basear em fatos que se referem ao macro. Ao investigarmos o micro nos deparamos com

pontos de vistas como o da personagem do filme relatado, posições que nem sempre

seguem o politicamente correto por expressar sentimentos de seus declarantes.

3.2. O TREM É VIDA

Segundo Paola Corti a migração não seria um evento extraordinário, mas uma

constante ao longo da história humana, ou seja, poderíamos pensar em migração em

termos de um fenômeno da circulação, constante e de extraordinária importância

inerente à vida humana.

Já Ratzel, ao formular sua teoria sobre as migrações – conjunto dos movimentos

em virtude dos quais as coletividades chegaram a grupar-se ou a distribuir-se sobre o

solo em cada momento da história -, insistiu sobre os incessantes movimentos dos

povos “que nunca se detêm e não apresentam diferenças senão na natureza e na

intensidade”1

1 Friedrich Ratzel – Antropogeographie. Erster Teil: Grundzüge der Anwendung der Erkunde auf died

Geschichte. (Antropogeografia. Primeira parte. Princípios da aplicação da geografia a história) 2a ed.

Stuttgart, I. Engelhorn, 1899, apud: F. Azevedo.

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72

Nesses termos não nos concentraríamos nos Vapori, os navios nos quais vieram

os imigrantes italianos desde as primeiras levas de imigrantes no século XIX até o final

da II Guerra mundial, período de chegada dos imigrantes estudados nesta pesquisa, mas

nos trens, meio de deslocamento desses italianos quer seja na Itália para chegarem aos

portos, quer no Brasil para dirigirem-se aos subúrbios cariocas ou ao interior do estado

do Rio de Janeiro, onde fixariam residência e dariam continuidade às suas vidas.

Alguns de nossos entrevistados trabalhavam ou tinham parentes que trabalhavam

nas ferrovias italianas e se fixaram ao longo da malha ferroviária fluminense. Na

memória de outros, aparece o trem quer seja na Itália quer seja no Brasil, como meio de

transporte, ligação e saudosismo.

Além disso, nas primeiras ondas migratórias italianas, no Brasil, muitos italianos

vieram e trabalharam na construção da rede ferroviária paulista. A construção das

ferrovias não só traziam empregos imediatos como também o desenvolvimento

exponencial de regiões, que no momento anterior de sua construção eram apenas

pequenas vilas, como ocorreu com Barra do Piraí.

Não é à toa que as vias de comunicação possuam uma extraordinária

importância comercial e cultural nas sociedades humanas, talvez por residir à base de

todo processo de civilização. Durkheim distinguia entre “densidade estática”, número

de habitantes por quilômetro quadrado, e “densidade dinâmica”, grau de intensidade das

trocas econômicas e culturais entre grupos humanos.

As ferrovias, importantes canais de desenvolvimento e comunicação, por causa

da política de desperdício e dilapidação que paradoxalmente já ocorriam desde a sua

formação; do número excessivo e o salário de empregados e funcionários, fizeram com

que grande parte dessas estradas acabassem por manterem durante longo tempo um

regime deficitário. Segundo Pandiá Calógeras:

“o mal está no sistema que faz de um serviço industrial uma repartição

pública, sem elasticidade de movimentos; sem noção de deveres, mas apenas

de direitos; em que o trabalho remunerado conforme seu valor é substituído

pela gratificação fixa, haja ou não serviço feito; e em que se paga a quem

nada faz, nos domingos e feriados, constituído nova aristocracia dos

operários do Estado, na massa geral do proletariado brasileiro; em que a

noção de responsabilidade desapareceu, porque a autoridade foi solapada, por

não haver meio prático de sanção às faltas, prontamente como a indústria

requer e como ela efetua em mãos particulares; em que o zelo pelo

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73

funcionário eleitor faz passar para o segundo plano o dever de servir ao

público.” 2 (págs. 42-43 apud Azevedo, F.)

Apesar das vicissitudes pelas quais passaram as estradas de ferro brasileiras

desde sua formação, devemos reconhecer as conquistas no domínio dos transportes

ferroviários, principalmente no que se refere ao importante papel da iniciativa

particular.

3.3. A malha ferroviária no Brasil

As linhas da Estrada de Ferro Central, originada da antiga Companhia de E. F.

D. Pedro II, inaugurada no dia 30 de março de 1858, com o primeiro trem partindo do

Campo de Sant‟Ana ou Aclamação. Esta Estrada, que chegou a se estender de São

Paulo ao Rio e bacia do São Francisco, ramificando-se por quatro Estados, com 3.354

Km, surgiu a partir de iniciativa privada e teve seu nome mudado com o advento da

república. Cristiano Otoni, um dos pioneiros da indústria ferroviária nacional, é que

esteve a frente desta que foi a segunda ferrovia brasileira a se desenvolver. A primeira e

terceira, a Estrada de Grão Pará e Santos-Jundiaí respectivamente, foram de iniciativa

do Barão de Mauá que em 1854 abriu a “era das ferrovias” no Brasil com o

financiamento de firmas inglesas.

Cristiano Otoni e, posteriormente, Mariano Procópio, na direção da Estrada F.

D. Pedro II, foram, cada um a seu tempo, realizando o plano, já previsto por lei de

Diogo Feijó, de ligar à capital do império ao norte e sul do país. Por essa estrada

passaram homens do vulto de Paulo de Frontin, Pereira Passos, Alfredo Maia, Osório de

Almeida, Aarão Reis e Arrojado Lisboa, que com ações empreendedoras resolveram

problemas técnicos e administrativos de ordem a fazer da estrada, segundo a Lei de

1835, um “monumento de previsão dos homens da Regência” (apud Azevedo, F- pág.

44).

2 Pandiá Calógeras – Problemas de administração. Relatório confidencial apresentado em 1918 ao

Conselheiro Rodrigues Alves, sobre a situação orçamentária e administrativa do Brasil. Brasiliana, vol.

XXIV. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1933

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74

Foi Cristino Otoni que com o intuito de passar a estrada por São Paulo e Minas,

que iniciou a escalada da Serra do Mar, galgando em linha de simples aderência em 25

Km, a partir de Belém, e perfurou ao todo através da serra, 15 túneis, inclusive o “túnel

grande”, de 2.236 m) para chegar a Barra do Piraí, em 1864

Em 1881, o plano Bicalho, que propõe a ligação norte-sul e as comunicações

internas de todas as províncias, mediante a coordenação dos transportes fluviais e

ferroviários, distingue-se não só pelo seu traçado mais também pelo emprego de

transportes mistos, o qual, apesar das inúmeras baldeações, teria a vantagem da

otimização das vias naturais de comunicação.

Já o plano Bulhões, apresentado em 1882 ao primeiro Congresso Ferroviário

Brasileiro, desdobra-se em quatro troncos principais, sendo o primeiro, o grande leste-

oeste, ligando o Rio de Janeiro a Mato Grosso.

De todos os planos para junções dos caminhos de ferro, o mais “continental”

sem dúvida é o de André Rebouças, que, em linhas transversais, de leste a oeste, ou nos

seus dez paralelos, denominados segundo as bacias hidrográficas que deveriam

atravessar, projetava unir os portos brasileiros à costa do Pacífico, do lado do Peru, do

Chile e da Bolívia. Infelizmente, dos dez sistemas transcontinentais elaborados por

Rebouças, apenas um teve prosseguimento a variante da transversal São Paulo, que

partindo de Santos e atravessando o norte do Paraná, deveria dirigir-se a Chaco, passar

pela província Argentina de Salto e chegar ao porto de Água Bueno. Faz parte desse

projeto o trecho de prolongamento da Noroeste até Corumbá pela construção da Brasil-

Bolívia, com que se estabeleceria a ligação ferroviária direta entre Arica e Santos.

Apesar do confronto entre Brasil e Argentina, sendo uma das razões a diferença

entre os 17.242 Km brasileiros de linha férrea contra os 20.814 Km argentinos,

Euclides da Cunha pondera em 1909 “o progresso atual (dos argentinos) advém-lhes

antes de tudo, de suas estradas de ferro; as nossas estradas de ferro resultam, antes de

tudo, de nosso progresso”. Enquanto,

“atentos aos empecilhos naturais que a dois passos da costa nos repeliam, nos

era impossível o avançar pelos sertões em fora, levando a civilização nos

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75

limpa-trilhos, e, para vencermos a terra, houvemos de formar até o homem

capaz de a combater”3

Enquanto que na Argentina, sempre segundo Euclides da Cunha, a civilização

pôde ser “um desdobramento apenas: a cultura européia, estirando-se pelo nível dos

mares e prosseguindo, sem tropeços num cerro, pelos pampas”.

Porém, essas não foram as únicas barreiras que nos impediram de ter um

aparelhamento mais rico e vias de comunicação mais rápidas. A natureza não foi menos

adversa no Canadá e Estados Unidos, por exemplo. Afinal, segundo ditado popular

americano, onde passa um burro, passa também a estrada de ferro”. No confronto entre

Brasil e Argentina ficamos para trás porque a economia rudimentar, de baixa densidade

demográfica até meados do século passado, de um país que demorou a ultrapassar o

estágio agrário, o lento processo de industrialização, a falta de “espírito de

continuidade” na administração que somente na década passada tentou-se remediar

instaurando lei na qual o administrador público que se segue, deve levar a cabo as obras

e projetos iniciados na gestão anterior e a lei de responsabilidade fiscal, e, a pressão dos

interesses regionais e das competições partidárias reuniram-se aos fatores geográficos

desfavoráveis.

Uma explicação para o fato de que, depois de um começo tão promissor, com

estradas erigidas aceleradamente, terminarmos, segundo julgamento de Mário

Travassos, “com um parque ferroviário deficitário, técnica e financeiramente, até o

desmantelo” (apud Azevedo, 63) consiste em empregarmos, segundo dados relativos a

1945, máquinas de tração a vapor, ou seja, com alto custo de combustível, sendo um

terço dos mais de um milhão em hulha, utilizados, carvão estrangeiro.

Levando-se em conta os grandes potenciais hidráulicos brasileiros, a

eletrificação da E. F. Central, que se iniciou, em 1937, no primeiro trecho, ligando os

subúrbios à capital do país e se estendendo, depois, do Rio de Janeiro a Barra do Piraí,

apontava uma solução e soprava um novo vento de esperança para a tão sonhada

expansão ferroviária no Brasil. Porém, não só de alto custo de combustível padeciam

3 Euclides da Cunha – A margem da história. 3

a Ed. Viação Sul-Americana. Livraria Chardon, Porto,

1922 págs. 140/141. apud Azevedo, F. Pág.61

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nossas estradas, acrescentam-se a isso a escassez de material rodante (locomotivas,

carros, vagões) e péssimas condições técnicas a que chegaram as linhas.

Se durante os séculos XVII e XVIII os sertanistas tiveram importante papel na

expansão geográfica, principalmente no estado de São Paulo, coube ao café na segunda

metade do século XIX esse papel. Os paulistas que de sertanistas passaram a lavradores

começaram a se preocupar com o transporte de sua produção. As plantações se

espalharam por todo Vale do Paraíba - graças a esse fato atualmente foi-se

implementada uma nova rota turística denominada Vale do café, cujo grande atrativo é a

visitação às fazendas de café da região -, ou seja, foi o café que lançou as primeiras

estradas de ferro, não só as que ligavam o Rio de Janeiro às mais antigas fazendas de

café e, o porto de Santos e São Paulo, para escoamento da produção, mas também as

linhas de penetração que foram instrumentos de valorização econômica e, pioneiras de

povoamento tendo em vista que o ferro-carril é um importante fator de desenvolvimento

econômico das regiões a que serve, pelas facilidades de escoamento em massa.

O tempo que um indivíduo podia fundar uma cidade, os townmakers, como

Bento de Abreu Sampaio Vidal, fundador de Marília, Moura Andrade, criador de

Andradina, ou o personagem de “Era uma vez no Oeste”, de Sérgio Leoni, já não existe.

É certo, que essas pessoas míticas se inspiraram com a via férrea que também os animou

o poder de organização. Porém, até meados do século passado foi o caminho de ferro

que fundou cidades e promoveu, com a indústria, as grandes aglomerações urbanas.

Somente a internet teria um impacto tão grande como via de comunicação no

interior como foram as linhas do ferro carril. Como notou então Lucien Fébvre, nada

influiria tanto nos destinos das cidades como os destinos dos caminhos. Em torno de

gares não somente há um grupamento maior da população, como é para as cidades

servidas de estação que passa a convergir as rodovias e nelas os campos de pouso,

aeroportos.

O apito primeiro, que se ouviu nas selvas, da “máquina devoradora de espaços”,

foi como uma convocação para o trabalho. A enorme procura de braços, para as obras

da estrada de ferro; as perspectivas que se abriam à agropecuária; as facilidades em se

obter terras com loteamento e latifúndios, atraíram para essas regiões milhares de

operários, lavradores de outras terras então cansadas; famílias inteiras, legiões de

imigrantes estrangeiros, sobretudo sírios e italianos e pessoas economicamente ativas

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que se lançavam ao trabalho rude com espírito de aventura para abrir caminho à fortuna

por meio de dificuldades, riscos e decepções.

Nesses sertões em que quase todos eram imigrantes e vinham de terras

longínquas, encontravam-se raças e culturas diversas, para implantarem a prosperidade

onde reinava a solidão. Tinha razão, pois o poeta Rodrigues de Abreu quando na

década de 30 diz:

Nenhum homem feito, ó Noroeste,

Poderá dizer-te: “minha terra natal”.

Referindo-se ao fato de que apenas vinte anos depois de lançados os trilhos da

estrada Noroeste, em qualquer vila ou cidade, entre tantas fundadas ao longo da linha;

nenhum homem poderia chamar-lhe “minha terra natal”.

No afã de dominar a técnica e de transformar o meio natural, para atender às

necessidades agrícolas e indústrias a Noroeste e o povo a que ela serve se lançaram às

culturas intensivas, aos cafezais em zonas novas e à criação de hortos-florestais em

1944, seguindo o exemplo da pioneira E. F. Paulista. Pondo em execução a plantação ao

longo dos trilhos, entre Bauru e Porto Esperança, de 1.500.000 pés de eucaliptos,

necessários à produção de linha, postes e dormentes, indispensáveis aos seus trabalhos4.

O que sob a denominação de horto-florestal nos remete a algo positivo e

benéfico ao meio ambiente, décadas mais tarde com a desativação de alguns trechos, faz

nascer entre os ambientalistas, ojeriza a esse tipo de plantação, pois sendo originária da

Austrália, característica de pântanos e mangues, possuem essas árvores que chegam a

grande altitude, raízes não muito profundas o que as tornam perigosas, pelo fato de

reterem os nutrientes e tombarem com relativa facilidade. Levantando essa bandeira é

que alguns ambientalistas promovem o corte de esses espécimes que foram introduzidos

na Mata Atlântica.

Segundo Azevedo, pág. 98:

4 Cf. Relatório referente ao ano de 1945 apresentado ao Cel. Edmundo de Macedo Soares e Silva,

Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Cel. José de Lima Figueiredo, Diretor da E. F. Noroeste do

Brasil. Tip. E Livraria Brasil S. ª, Bauru, 1946. (apud Azevedo, F. Pág. 97)

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78

“A eficiência da Estrada Noroeste, na sua função política, de ligação

da capital do país com a região meridional e ocidental de Mato Grosso, e

estratégica ou militar, de defesa das fronteiras, aumenta na razão direta de

povoamento e da expansão agrícola e industrial das zonas a que serve, e da

reestruturação interna dessa indústria de transportes em bases modernas. Se o

desenvolvimento dos Estados (Staatenwachstum) se faz, na observação de

Ratzel, por dois processos, a saber, por extensão (Ausbreitung) e por

consolidação (Befestigung) ou enraizamento (Einwurzelung), e se o primeiro

tem por agente essencial o próprio Estado, e o segundo, a massa da

sociedade, compreende-se o papel que tem, na radicação dos Estados, a

pressão demográfica e a intensidade dos fenômenos de produção”.

No entanto, como uma estrada de ferro com notório desgaste do material

rodante; que utilizava mais lenha do que carvão e cuja eletrificação ainda não tinha sido

nem sequer implementada na linha-tronco poderia atender de maneira eficaz à sua

função comercial e política?

Rui Barbosa chama atenção para o fato da ineficiência das estradas de ferro em

um discurso parlamentar datado de 1892, segundo o grande político:

“encarecem víveres, porque a pequena lavoura,a cultura parcelar não se

desenvolve, e porque os nossos caminhos de ferro, já pela usura de suas

tarifas, já pelas insuficiências de sua extensão, já pelos defeitos do seu

serviço, não nos permitem irmo-nos sortir largamente nos vastos

abastecedouros que o interior do país nos depararia, se um amplo sistema de

viação, pronta e barata no seu tráfego, animasse a agricultura na opulenta

imensidade de nossos sertões” 5.

Palavras que continuam atuais. Triste perceber que mesmo com a cessão de

direitos de alguns trechos para empresas privadas em nada mudou o quadro. Como no

caso da Supervia, empresa que passou a operar os trechos que partem da Central do

Brasil em direção aos subúrbios cariocas.Trens que servem a população, mas que não

possuem banheiro, nem mesmo nas estações, somente duas estações dentre elas, a

Central do Brasil, possuem banheiro para o público que se vê obrigado a suportar

viagens calorosas, tendo em vista que somente um dos cinco ramais possui alguns trens

com ar condicionado, isto em uma região que durante grande parte do ano tem uma

media de 30o graus Centígrados, podendo chegar a 42

o graus. Quanto ao transporte de

5 RUI BARBOSA – Discursos parlamentares, vol. XIX, 1892. Tomo I, pág. 141. in Obras completas de

Rui Barbosa. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1947.

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carga, como os de pequena lavoura parece que o governo nunca considerou essa

possibilidade e trechos do interior que eram cobertos pelos trens a vapor nunca foram

cobertos por trens elétricos. Como é o caso do trecho denominado Serra Azul, que partia

de Japeri e passava pelas estações de Conrado, Portela, Miguel Pereira, Paty de Alferes.

Este último, grande produtor de batata e tomate. Município que, sem outra opção, tem

que utilizar as rodovias como vias de escoamento para sua produção e que deixa nas

mãos de intermediários a negociação de produtos. Quem sai perdendo são os

produtores.

O ideal para a constituição de qualquer plano viatório seria a coordenação de

transportes ferroviários, rodoviários, fluviais, marítmos e aéreos e, a expressão prática e

realista de uma sábia política de comunicações criada pela variedade e pelos progressos

dos meios mecânicos de tração de um país que apresenta, “pela extrema complexidade

topológica dos territórios uma aptidão para os transportes mistos”6.

Para fomentar a produção a estrada deveria fornecer transportes baratos, mas não

manter fretes baixos, como os de algodão em rama, toras e outras que enchem o vagão

em volume, sem o lotarem em peso, não há como não ter prejuízo para a economia de

transportes. É o que ocorreu com a Noroeste que, entre os produtos principais de

exportação, só lucrava com o café, razão pela qual havia disparidade entre a receita do

trecho paulista em confronto com o matogrossense nos idos dos anos quarenta.

Por que o sistema férreo funciona na Europa e é deficiente no Brasil?

Ninguém atacou esse problema melhor que Pandiá Calógeras que o explica da

seguinte maneira, em breve: enquanto na Europa, inventada a locomotiva e associada

aos trilhos, um vasto sistema de comunicações, por estradas de rodagem e por via

fluvial, constituída a fase preparatória, com que se tornou fácil promover-se uma

verdadeira adaptação dos tipos antigos às experiência moderna, no Brasil, como em

quase toda América, essa fase preparatória não existiu.

6 Mário Travassos – Nossa política de comunicações. O plano de viação nacional de 1934, in “Cultura

Política”. Ano I, no 5. Julho de 1941. Rio de Janeiro, págs. 50/59.

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80

No Brasil, até meados do século XIX não possuíamos nenhuma estrada e só

havia circulação pelos atalhos mais ou menos alargados pelo uso, que datavam do

período colonial. Não havia reservas para cuidar simultaneamente dos caminhos

carroçáveis e das vias férreas. Daí, empregarmos recursos para construirmos os trechos

do caminho mais perfeito, dos caminhos para o ferro-carril.

Enquanto na Europa centros de produção e de trocas preexistiam e se mantinham

pelas redes viárias, no Brasil, o isolamento de tais centros era a regra, como ainda hoje

para o interior do país: a via férrea tinha que buscar as regiões produtoras e, por sua

presença criar o tráfego.

3.4. A Estrada de Ferro em Barra do Piraí

A primeira indústria barrense originou-se do franco progresso da Fazenda de N.

S. de Sant´Anna, com vista ao beneficiamento do café, o comendador José Pereira de

Faro, em 1855, fundava o Engenho Central, hoje a torre da Chaminé do Matadouro.

Naquele mesmo ano, José de Alencar, amigo dos Faro, hospedou-se na fazenda

N. S. de Sant´Anna e, deslumbrado com a paisagem do rio Paraíba, com o vai e vem

dos canoeiros dominando suas águas caudalosas, os índios, mamelucos e colonos,

inspirou-se para escrever O Guarani.

Onze anos depois, no dia 7 de agosto de 1864 era inaugurada a Estação

Ferroviária de Barra do Piraí por Sua majestade o Imperador Dom Pedro II. S.S.M.M.

que chegou a Barra do Piraí em um trem de passageiros especial, transportado pela

locomotiva “Baroneza”, em companhia de Esperidião Eloy de Barros Pinto, Presidente

da província do Rio de Janeiro; os comendadores anfitriões José de Oliveira Pereira de

Faro e Matias Gonçalves de Oliveira Roxo, respectivamente futuros barões do Rio

Bonito e de Vargem Alegre; Engenheiro Christiano Otoni, 1º Diretor da Estrada de

Ferro Dom Pedro II; Capitão reformado do Exército João José de Brito, comandante da

Polícia do Estado do Rio de Janeiro; Paulo de Frontin, Pereira Passos, Mariano

Procópio, Bento José Ribeiro Sobragi, Carlos Conrado Niemeyer, Jorge Rademaker

Grumewald, Honório Bicalho, João Teixeira Soares, Joaquim Silveiro de Castro

Barbosa, Henrique Sheid, José Carvalho de Souza, e vários engenheiros, em sua maioria

construtores da ferrovia.

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81

Com seus silvos do progresso a Baroneza representava o ideário automista

barrense. Ao aproximarem-se de Sant´Anna os trilhos faziam sentir seus benefícios. A

população local progrediu ao longo do que se tornou o maior entroncamento ferroviário

latino-americano. O operário como produto de energia, além do boi, do cavalo, fez uso

das únicas ferramentas que conhecia, ou seja, a enxada, a foice, o machado, o facão, a

marreta para moldar um município com características próprias.

Barra do Piraí passou a sustentar, a partir da chegada do trem, o epicentro

apoteótico do Centro Sul Fluminense. Naquele ano já tinha seu centro urbano

configurado, era uma estrada que margeava o lado direito do Piraí, começando como

ramal da Estrada Real da Boiada, ia de Vargem Alegre, passando pela Muqueca até

atingir o “Hotel Pirahy”, onde podia-se atravessar a ponte de Sete Vinténs do

Comendador Antônio de Gonçalves de Moraes7, prosseguindo pela Rua da Estação até

o largo do mesmo nome, atual praça Heitor Vale, onde havia um grande rancho, no qual

os tropeiros dormiam em redes e se abasteciam de toucinho salgado, farinha, bananas e

peixe, aguardente e café.

Ao lado da propriedade de Chico Fernandes iniciava-se uma rua transversal que

avançava até o Largo da Independência, atual praça Nilo Peçanha, revigorada na última

gestão do prefeito reeleito José Anchite que a revitalizou, restituindo-lhe ao povo

barrense, e a Rua Dom Pedro II, atual governador Portela, passando pelo Largo Amador

Bruno, atual praça Júlio Braga, até alcançar o Largo José Bonifácio, ao lado do

entreposto da família Breves.

Naquele ponto situava-se a então recém-construída ponte de madeira Senador

Vergueiro que possibilitava aos habitantes atravessar o Rio Paraíba para chegar ao

povoado de Sant´Anna. Havia, também a rua Angélica, homenagem à mãe do 3º Barão

do Rio Bonito, Angélica de Oliveira Faro, que começava numa plantação de cana de

açúcar em Campo Belo, passando pelo rancho ao lado da ponte Senador Vergueiro,

situada perto do início do cais e pelo Engenho Central até a Fazenda do Sant´Anna.

Uma segunda rua, a do Córrego, hoje, rua Barão do Rio Bonito.

No povoado de São Benedito, onde imigrantes portugueses haviam erguido uma

capela em homenagem ao Padroeiro de Lisboa, havia outras vias públicas que

7 Frente à Estrada União Industrial, em 1853, Antônio Gonçalves de Moraes, “O Capitão mata gente”,

instituía no Brasil a cobrança de pedágio de sete vinténs por veículo, animal ou pessoa que utilizassem a

ponte que construíra sobre o rio Piraí e investia a quantia arrecadada na conservação da mesma.

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completavam o então centro barrense. Uma partia do Beco do Camarão, atravessando o

Largo Amador Bueno, o Beco do Chico Fernandes, atual rua Padre Alfredo, ligando-o

ao Largo da Independência. A rua que partia do Largo Amador Bueno seguia pela Rua

do Entreposto, atual Paulo de Frontin, até alcançar a Rua da Palha, hoje, Rua Assis

Ribeiro, para completar a sua ligação com uma estrada que atingia a Estrada Real da

Boiada, em Vargem Alegre.

Com a construção de casas comerciais e de residências para os trabalhadores e

empreiteiros da ferrovia, aquele perímetro urbano expandiu-se fazendo com que Barra

do Piraí desfrutasse de crescente fama em toda região, atraindo pessoas, empresários de

várias procedências, antes de depois dos seis anos de trabalhos para a construção da

ferrovia, com quatorze túneis, incluindo o Túnel Grande de 233 metros de

comprimento, esculpido em rocha granítica.

Simultaneamente, levas e mais levas de imigrantes aqui desembarcavam e

integravam-se à comunidade, o que contribuiu para o enriquecimento material e moral

do ainda povoado. Muitos vinham sedentos de fortuna, em pouco tempo a paisagem

local modificou-se, a outrora tranqüilidade das mansões coloniais cedeu lugar à

efervescência das empresas.

O movimento das mercadorias que vinham de Minas Gerais e passavam na linha

do centro e no ramal de São Paulo era tamanho. O café continuava como grande

mercadoria, era uma chusma de imigrantes, mercadorias, matéria-prima, todos

utilizavam a estrada de Ferro que aquinhoava Barra do Piraí no contexto das

comunidades brasileiras, na aspiração crescente da sua nova realidade, atraindo filiais

de importantes comissários de café na Corte Imperial: Guerra & Ribeiro; Barbosa

Júnior & Cia; José Ferreira Cardozo; José Lourenço Torres; Bernardo Santiago & Cia;

Barros Coelho & Cia; Jacintho Lopes de Azevedo; Francisco José Corrêa Quintella;

Joaquim José Ferreira e Francisco Eugênio de Azevedo & Cia. Uma conjuntura de

forças favorecia novos empreendimentos, o comércio, Barra do Piraí lançava mão das

comunicações mais rápidas com o restante do Brasil, além de situar-se no maior

entroncamento da América Latina, por meio do telégrafo, estava em linha direta com

Londres, naquele tempo, o centro financeiro do mundo.

Em 21 de julho de 1873 foi aprovada a planta da primeira seção da Estrada de

Ferro entre Barra do Piraí e Ipiabas, atual distrito turístico de Barra do Piraí, numa

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83

extensão de 22 quilômetros, menos de um mês depois, no dia 13 de agosto, o Imperador

Dom Pedro II conferiu a José de Oliveira Faro o título de 3º Barão do Rio Bonito. Uma

década depois, no dia 18 de julho de 1883 foi inaugurada a igreja de Sant´Anna, obra de

extraordinárias linhas arquitetônicas, construída em terreno cedido pelo barão do Rio

Bonito e executada por mãos de artistas provenientes de várias partes do mundo, que

vieram se refugiar em Barra do Piraí, em 1875, da epidemia de febre amarela que

assolava o Rio de Janeiro.

No seguinte ano, dia nove de dezembro, nasceu em Pisciotta, província de

Salerno, José Speranza, cujo filho tive a oportunidade de entrevistar durante essa

pesquisa no intuito de compreender melhor o cenário barrense do início e medade do

século passado. O nome Speranza ficou imortalizado em Barra do Piraí pela construção

do cine Speranza, seguido do cine Brasilia, ambos empreendimentos do Sr. José que

constituíram símbolo da evolução social e cultural barrense.

Impulsionando o movimento autonomista barrense, em 20 de outubro de 1881

foi inaugurada a Estrada de Ferro que ligava Barra do Piraí à Santa Isabel do Rio Preto.

Sete anos mais tarde, grande euforia tomou conta da população negra de Barra

do Piraí, em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel, apreciadora das camélias, sancionou

a Lei de Libertação dos Escravos no Brasil. Alguns escravos apoderaram-se das antigas

propriedades, outros partiram para represálias contra antigos capatazes e outros tantos

concentraram-se diante da Igreja de São Benedito, na praça da Independência, atual

Praça Nilo Peçanha, e festejaram noite adentro, cantando, dançando o banzo, jongo,

caxambu, candomblé, louvando deuses das religiões africanas e São Benedito,

agradecendo-lhes pela liberdade conquistada.

No dia seguinte, o trem chegava por uma paisagem modificada. Muita “Casa

Grande” de engenho em ruínas, solares saqueados, cafezais convertidos em cinzas. Era

a decadência da opulência do café. Sem braços para colher a safra de 1888, uma das

maiores da época muitos senhores de engenho ficaram prostrados, sentiram-se

arruinados, outros tentaram novas alternativas para prosseguir as culturas de café. Foi

assim que as firmas Carvalho & Faro, em meados de 1888, conseguiram junto ao

Governo Imperial, por intermédio do Ministério da Agricultura, que fossem enviadas ao

povoado 50 famílias italianas, para trabalharem como assalariadas na Fazenda Ibitira.

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84

Ao chegar à estação, os festejadores começaram a embarcar nos vagões da E. F.

Dom Pedro II, rumo aos grandes centros, em busca de vida nova, afastando-se dos

trabalhos forçados, das humilhações no tronco comandadas pelos feitores, do cativeiro.

Respirando o ar da liberdade enquanto o trem rasgava o território barrense levando

alguns até mesmo às lágrimas. Para uma nova vida, novos nomes, adotados de santos ou

das propriedades nas quais trabalharam.

O último remanescente da escravidão de Barra do Piraí, João Antônio

Guaraciaba, neto ilegítimo do Barão Guaraciaba, dirigiu-se para Parati e em 1974 vivia

o seus 124 anos! Durante seus anos de cativeiro foi, segundo suas palavras, um negro

reprodutor de raça. Solicitado por várias fazendas fluminenses teve 330 filhos. Com o

fim da escravidão passou a praticar a “religião dos exus”, como a denominava, mas

enfatizava não fazer mal a ninguém, seu novo trabalho consistia em tirar as “coisas” que

botam na vida dos cristãos, especializando-se em rezar crianças doentes.8

Um dia antes do início da primavera de 1889 a Estrada de Ferro Barrense era

vendida à Companhia Viação Férrea Sapucay, com todos os seus bens imóveis,

utensílios e materiais. A venda compreendia ainda toda faixa de terreno em que

assentava-se a Estrada de Ferro, desde Barra do Piraí até a Freguesia de Santa Isabel do

Rio Preto, incluindo-se todos os edifícios de estações, armazéns, oficinas, pontes, casas,

bem como os direitos resultantes de contratos estabelecidos no dia 23 de dezembro de

1876 entre a Província do Rio de Janeiro e o Comendador João Pereira Darrigue de

Faro.

Dia 15 de novembro de 1889 o Brasil dormiu Império e amanheceu República.

Alguns meses depois, mais precisamente no dia 19 de fevereiro de 1890, Barra do Piraí

amanheceu Município, o primeiro Município constituído no recém-instaurado Regime

Republicano.

O novo Município que viria a ser conhecido como Pérola do Vale finalmente

conquistara sua independência dos Municípios de Valença, Vassouras e Mendes e, às

freguesias que outrora eram compreendidas a esses municípios acrescentou-se as do

Turvo e Dores do Piraí.

8 Relato registrado por Gilson Baumgratz.

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XXXVIII

Tu casa suena como un tren a mediodía, zumban avispas, cantan las cacerolas,

la cascada enumera los hechos del rocío, tu risa desarrolla su trino de palmera.

La luz azul del muro conversa con la piedra, llega como un pastor silbando un telegrama

y entre las dos higueras de voz verde, Homero sube con zapatos sigilosos.

Sólo aquí la ciudad no tiene voz ni llanto, ni sin fin, ni sonatas, ni labios, ni bocina, sino un discurso de cascada y de leones,

y tú que subes, cantas, corres, caminas, bajas, plantas, coses, cocinas, clavas, escribes, vuelves o te has ido y se sabe que comenzó el invierno.

(Neruda, 1999: 52)

XXXVIII

Tua casa ressoa como um trem ao meio-dia, zumbem as vespas, cantam as caçarolas,

a cascata enumera os feitos do orvalho teu riso desenvolve seu trinar de palmeira. A luz azul do muro conversa com a pedra,

chega como um pastor silvando um telegrama e, entre as duas figueiras de voz verde,

Homero sobe com sapatos sigilosos. Somente aqui a cidade não tem voz nem pranto,

nem sem-fim, nem sonatas, nem lábios, nem buzina mas um discurso de cascata e de leões,

e tu sobes, cantas, corres, caminhas, desces, plantas, coses, cozinhas, pregas, escreves, voltas

ou te foste e se sabe que começou o inverno.

(Neruda, 1999: 52)

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4. O VAGÃO: ESPAÇO

4.1. A Cidade

“Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias [felizes ou infelizes],

mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a

dar forma aos desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.”

(Italo Calvino – As cidades invisíveis)

Hoje a cidade de Barra do Piraí suscita opiniões contraditórias, há quem a ame e a

veja como um centro efervescente de comércio, há quem enxergue nessa característica um

aspecto caótico, uma superposição de letreiros que geram uma poluição visual. Muitos

lamentam a má conservação dos casarios antigos, outros tantos os ignoram, assim como

muitos não percebem a grandiosa beleza dos rios Paraíba e Piraí.

Segundo o censo do IBGE de 2000, Barra do Piraí contava com 88.503 habitantes,

distribuídos em sua área territorial de 578,47 Km2, a 363 metros de altitude, distante da

capital em 79.553 km.

Durante muitos anos a praça central da cidade, outrora Praça da Independência,

atual, Praça Nilo Peçanha, era um verdadeiro matagal. Abandonada pelo poder público

passou a ser ponto de prostituição e passagem perigosa para os transeuntes e viajantes que

desembarcavam na Rodoviária localizada imediatamente em frente à praça.

Na gestão antiga o recém reeleito prefeito José Anchite a revitalizou a devolvendo à

população. Atualmente, feiras, filmes, apresentações teatrais são realizadas nesse espaço e,

durante a semana, o movimento de pedestres é intenso.

Quando cheguei pela primeira vez a Barra, a praça ainda estava em obras,

circundada por tapumes, já havia me emocionado com o rio, notei os casarios belos, mas

necessitados de revitalização e fiquei curiosa quanto à praça. Feliz a minha surpresa ao

retornar e vê-la pronta.

Page 87: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

87

O barrense refere-se a esse centro da cidade como “lá fora”. Dirigir-se ao centro

da cidade é como ir lá fora de casa. Esse posicionar-se quanto ao centro em relação ao

local onde nos encontramos no momento da fala, isto faz com que o centro cidade torne-

se uma extensão do nosso habitat doméstico, do nosso refúgio, da cabine de nossa

viagem.

4.2. O Habitar doméstico

“Para participar do mundo em que estamos inseridos, temos que deixar

nossas casas físicas e, no mundo, escolher um caminho. Uma vez cumprida

nossa tarefa social, nós nos recolhemos de volta em nossas casas para

recuperarmos nossa identidade pessoal. A identidade pessoal é, portanto, um

componente do habitar doméstico.” (Norberg-Schulz, 1985:89).

Já Christian Norberg-Schulz nos diz que estamos acostumados a definir o habitar

como sendo “ter um teto sobre nossas cabeças e um certo número de metros quadrados

à nossa disposição”; ou seja, entendemos o conceito de habitar “em termos materiais e

quantitativos” (Norberg-Schulz, 1985; p. 12). Para ampliar a visão deste conceito,

Camargo (2007,21) recorre, inicialmente, ao pensamento de Martin Heidegger, e sua

análise da essencialidade do conceito de habitar, identificado pelo autor como a

“maneira como os homens fazem seu caminho desde o nascimento até a morte, sobre a

Terra, sob o céu”. Este caminhar seria “o aspecto fundamental da habitação, enquanto

permanência humana entre o céu e a terra, entre o nascimento e a morte, entre a alegria

e a dor, entre a obra e a palavra”. Considerando este “Entre multiforme” – rico em

transformações, em aspectos diferentes – como sendo o mundo, esse mundo pode ser

visto como a própria “casa que habitam os mortais” (Heidegger, 1982).

Deste modo, a autora (2007, 23) delimita “o sentido do habitar que nos servirá

de meio para nos aproximarmos do tema habitar doméstico” sintetizando-o “como a

experiência cotidiana de se estar em um lugar, rodeado de proteção, resguardado, em

paz; livre, em sua essência, de qualquer ameaça contra essa paz.”

Referindo-se ao Espaço, mas precisamente ao anteriormente denominado habitat

doméstico, o filósofo Otto F. Bollnow coloca-nos como sujeitos de nossa experiência no

espaço e propõe que, como seres viventes de forma concreta que somos - tal como nos

são dados, em função do nosso corpo, os conceitos, igualmente concretos, de acima e

abaixo, à frente e atrás, à direita e à esquerda -, tomamos esse ponto específico em que

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88

habitamos como “ponto zero”, ou seja, como nossa referência em relação ao espaço

mais amplo em que habitamos em termos universais (Bollnow, 1969; p. 58)

Segundo Norberg-Schulz (1985, 13) há quatro modos de habitar, inter-relacionados

em seus aspectos essenciais, a saber:

i) o habitar natural seria aquele que implica a “domesticação” do meio

natural onde se dá esse habitat. O autor argumenta que mesmo um espaço

previamente construído também deve ser entendido em termos de

“desbravamento” do meio no qual nos instalamos e que, superada essa fase,

viriam outras formas básicas de relacionamento humano;

ii) o habitar coletivo, quando o meio do qual nos instalamos passa a funcionar

como uma espécie de local de intercâmbio, tanto de produtos, quanto de

idéias ou sentimentos, o espaço urbano seria “essencialmente um lugar de

descobertas”. Nele, o homem „habita” no sentido de experimentar a riqueza

do mundo”.

iii) o habitar público refere-se a algo partilhado pela comunidade. Esse modo

de habitar se caracterizaria porque o nosso “estar sempre a caminho”

implica a condição, dentro da imensa variedade de possibilidades que temos

no meio coletivo, de fazermos certas escolhas. E, quando essas escolhas são

feitas de forma a atender determinados padrões de acordos estabelecidos,

experimentamos uma forma mais estruturada de se estar junto a alguém do

que um mero encontro. Neste caso, estaríamos falando, de fato, de

“acordos”, os quais implicariam interesses ou valores em comum. E para

que um acordo possa acontecer há que haver um lugar – um lugar no qual

os valores comuns possam ser acolhidos e expressados. Tal lugar pode ser,

geralmente, reconhecido em uma instituição ou um edifício público;

iv) o habitar privado refere-se àquelas ações que ocorrem em nosso

“pequeno mundo”, afastadas do convívio social e da intrusão de estranhos, e

o cenário desse habitar seria a casa, ou lar, onde experimentamos a chamada

“paz doméstica”, e onde reunimos e expressamos as memórias que

constituem nosso “mundo pessoal”, considerando que escolhas também são

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89

de natureza pessoal, e que a vida de cada pessoa tem seu curso particular,

nada mais natural do que o habitar também compreender a escolha de um

“pequeno mundo” para nós mesmos.

Ao longo dessa pesquisa tive a possibilidade de me encontrar com Vittorio e

Renato em mais de um habitar, o primeiro contato, as entrevistas que se encontram em

anexo, ocorreu no habitar privado. Porém, houve momentos como por ocasião da

inauguração do curso de italiano de encontrá-los em um habitar público, o edifício no

qual administro as aulas, passando a outro habitar público, um restaurante no qual

seguiu-se a cerimônia e em um habitar coletivo, a mesa de esse restaurante na qual me

encontrava com eles e outros representantes da colônia italiana em Barra do Piraí que,

pela troca de idéias em comum, de memórias do grupo passou a ser um habitar coletivo

inserido em um habitar público. Outro momento como esse ocorreu no casamento de

Alessandro, filho mais velho de Vittorio, ao encontrar-me na mesa dos padrinhos do

noivo, ao lado de uma amiga da noiva que por coincidência havia trabalhado com meu

irmão no Rio de Janeiro.

E como quem casa quer casa, diz o antigo dito popular, pude atestar a

importância do habitar privado, o esmero com o qual meus entrevistados escolhem os

objetos e convivem com os membros de suas famílias. O povo italiano é reconhecido

pelo zelo com suas casas e é sempre apontado como um povo que se preocupa com a

família.

De acordo com Amos Rapoport (1969) quase todas as “necessidades básica”, ou

a maior parte delas, envolvem julgamentos de valores e, portanto, escolhas – sendo,

assim, de natureza cultural. Deste modo decisões/escolhas – sejam elas formais ou

funcionais – com relação à moradia estariam submetidas ao contexto cultural de quem

as define e sujeitas à definição do que essas culturas consideram como principal

componente de uma visão de mundo. Se, por um lado, cada contexto cultural específico

poderá destacar um determinado aspecto – como, por exemplo, o conforto, ou utilidade,

ou religião, etc. – como principal componente de sua visão de mundo, e as

decisões/escolhas, então realizadas, estarão submetidas a essas visões, por outro lado,

cabe ressaltar que até mesmo a definição de conceitos que consideramos corriqueiros e

familiares, como, por exemplo, o de utilidade ou de conforto, será menos óbvia do que

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90

se supõe – não apenas na idéia que se faz do que é confortável (ou útil), mas mesmo na

busca expressa por essas sensações (Rapoport, ibidem; p. 60-62).

O fator cultural como vimos torna-se importante e, para ampliar o conceito de

cultura, lanço mão de Chaney. Conforme o autor o conceito de cultura refere-se ao fato

de haver maneiras distintas de se fazerem determinadas coisas – como se realiza um

determinado trabalho manual, como se cozinha, como se come, o que se espera do

comportamento das crianças, maneiras estas que, normalmente imbuídas de força moral

mantidas por meio de tradições e reproduzidas ao longo de gerações caracterizam um

determinado grupo social e constituem o elemento central da identidade desse grupo.

Representando um grau de vida em grupo que precede, e é mais fundamental, que a

própria experiência individual (Chaney, ibidem; p. 8).

Interessante notar que tanto Vittorio como Renato casaram-se com brasileiras.

No Caso de Renato, a esposa ao casar-se não sabia cozinhar e Renato a ensinou a

culinária calabresa, em almoço na casa deles e depois em contato com a filha mais velha

do casal pude atestar que a elaboração dos pratos seguem essa cultura. Na casa de

Vittorio o café é feito na moca, com exceção dele, os membros da família tendem a uma

alimentação que exclui a carne vermelha e a culinária não é somente italiana.

4.2.1 A Casa

“resultado da distinção, no mundo público, de um determinado lugar para a

prática do habitar no nível do privado e do pessoal. E o cenário onde essa

prática acontece, afastada do habitar público e da intrusão de estranhos, é a

casa, ou o lar”. (Camargo 2007, 17).

Como bem observa Yi-Fu Tuan, mais útil do que entendermos a casa como local

natural ou físico, ou mesmo como um ambiente físico pura e simplesmente construído,

devemos começar pelo conceito de que “[casa] é uma unidade de espaço organizada

mentalmente e materialmente para satisfazer as – tanto reais quanto percebidas –

necessidades básicas biosociais das pessoas e, além disso, suas mais altas aspirações

político-estéticas” (Tuan, 1991; p. 102. Apud Cresswell, 2004; p. 109). E, ainda, para

David Morley, a função e o significado da casa variarão em função do contexto em que

esse habitar estiver inserido (Morley, 2000).

É importante ressaltar que é possível verificar o fato de que espaços domésticos,

ainda que inseridos em contextos socioeconômicos bem semelhantes, poderão

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91

expressar, através de seu habitar doméstico, inúmeros modos de viver,

surpreendentemente particulares e distintos. Isto pode ser observado em um edifício

habitacional multifamiliar, onde, na maioria das vezes, as unidades habitacionais são

projetadas com intenções arquitetônicas semelhantes, se não idênticas (Camargo, 2003;

p. 78-95). Ainda que se trate de grupos usuários inseridos em faixas de renda

relativamente equivalentes, e que esses grupos partilhem não só o mesmo bairro, mas a

mesma tipologia de habitação, suas particulares escolhas e julgamentos, resultados de

valores e significados específicos de cada grupo usuário, especificam a linguagem

estandartizada de seus apartamentos, convertendo o que era padrão em um mundo

particular, diferenciado e único. Talvez isso ocorra pelo hibridismo contido na

identidade de todo indivíduo e no nosso estudo, ainda mais pungente no caso de

imigrantes.

No caso dos imigrantes entrevistados verificamos a importância da casa não só

como proteção para aquele núcleo familiar específico, mas também como um dos

maiores bens, herança-base para seus descendentes. A propriedade da casa de nos

acolher física e psicologicamente nos leva a considerar duas formas de observar essa

inserção da casa no mundo: a casa como proteção frente ao mundo e a casa como meio

de identificação com esse mundo.

Cabe ressaltar que Vittorio e Renato moram em bairros diferentes, um no centro

o outro no Belvedere, e escolheram tipos diferentes de habitar. Enquanto Vittorio, desde

seu casamento habita um apartamento no último andar de um prédio residencial e, ao

invés de se mudar, foi incorporando ao longo dos anos o apartamento ao lado e os

superiores criando um duplex com vista para o rio e com um terraço que dá a idéia de

casa, segundo suas palavras. Renato, após casar-se morou em cidades e imóveis

diferentes até mudar-se para a atual casa de dois andares, cujo terraço além do espaço

para festividades possui um quarto com chuveiro de água fria para, segundo suas

palavras, “colocar os bêbados” ocasionais.

Em comum tem o terraço como espaço recreativo para a família e familiares e

prosperidade conquistada ao longo dos anos simbolizada pela casa em que habitam e

pelas casas compradas para cada filho. Ambos tiveram essa preocupação, a de garantir

aos filhos um teto, no qual eles, se desejassem, pudessem transformar em lar, não

correndo o risco de não terem esse espaço, um refúgio garantido.

Buscando uma contextualização histórica para a concepção, trazida por

Heidegger – e desenvolvida por Bollnow –, de ser o espaço interior da moradia um

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92

refúgio frente a um mundo exterior de ameaças –, o arquiteto Iñaki Abalos propõe que

um dos seus fundamentos seria o fato de o tema casa ter surgido nos primeiros escritos

de Heidegger no período pós-guerra. O autor estaria fortemente envolvido com as

implicações da violência do mundo público sobre o privado; com o efeito das

manifestações da exterioridade e da realidade artificial do cosmopolitismo, as quais,

chegando através das tecnologias industrializadas e dos meios de comunicação,

assumiam, pelo autor, o caráter de algo nocivo, uma ameaça à autenticidade do habitar

doméstico. Além disto, Heidegger estaria imbuído da “própria intenção de auto-

exculpação de sua participação do nazismo” (Ábalos 2000; p. 51, 52).

Esta contextualização histórica é importante, uma vez que serve de motivo para

questionar até que ponto para Vittorio e Renato o fato de terem vivenciado a guerra

durante a infância teria feito com que formassem uma concepção de casa, assim como

Heidegger, como proteção frente às ameaças do mundo exterior influenciando-os a

adquirir imóveis para si e para seus filhos, garantindo-lhes mais que um bem material,

um refúgio.

Também podemos considerar, como referência para o conceito de casa como

entidade concreta, protetora do corpo físico e também da vida interior, a visão

fenomenológica de Gaston Bachelard, segundo a qual, por mais variados que sejam os

tipos de habitação humana, em termos geográficos e etnográficos, há que considerá-la

como a “concha inicial em toda a moradia”; “o germe da felicidade central, segura,

imediata” (Bachelard, 2003; p. 24).

Em sua poesia da casa, Bachelard nos faz reconhecer tanto uma casa universal

quanto a nossa própria casa como a “cabana”, o “ninho”, com os cantos onde

gostaríamos de nos encolher, “como um animal em sua toca” (Bachelard, ibidem).

Não é de se admirar, portanto que a medida na qual habitamos o espaço público,

reunimos em nossa casa física lembranças, em forma de coisas, que elegemos como

representantes de nossas experiências no mundo lá de fora, e as quais trazemos para o

nosso habitar doméstico.

Helena, esposa de Vittorio, define uma parte da casa como “cantinho da

saudade”, é naquele espaço em que se encontram: o piano que pertenceu à mãe de

Vitório, a cadeira que pertenceu ao pai de Helena, uma parede repleta de quadros,

pratos. Lembranças, memória evocada, presença de tantas ausências. Ao passo que

Renato se define como “um sujeito guardador de coisas” que expõe pelas paredes da

casa suas lembranças: fotos dos pais e das netas; pôsteres que o faz lembrar a primeira

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93

visão da nova terra e sua cidade natal, dispostos lado a lado, fazendo com que passado e

futuro permaneçam lado a lado.

Importante frisar que para designarmos um objeto como lembrança não precisa

ser um objeto antigo, como no caso do pôster do Rio de Janeiro para Renato, ou

recordações, como a lembrança do Cristo evocada como sua primeira recordação de

chegada. Simplesmente ao manipularmos objetos adquiridos, convivermos diariamente

com eles – ao comer, dormir, conversar e nos entreter –, essas coisas passam a fazer

parte de nossa vida privada e nós passamos a perceber seus significados como

experiências já interiorizadas. Assim, ao entrarmos em casa e encontrarmos aquelas

coisas que trouxemos do mundo lá de fora, com as quais já estamos tão familiarizados,

sentimo-nos, enfim, em casa. É neste sentido que Norberg-Schulz afirma que por meio

da casa física, experimentamos ser parte do mundo (Norberg-Schulz, ibidem; p. 89, 91).

A sensação que tenho no meu novo lar, ano passado meu quarto pegou fogo,

após seis meses de reforma de toda a rede elétrica e pintura decidi que seria mais

prático, para mim, morar em outra cidade Como trabalhava no eixo Miguel Pereira –

Vassouras – Barra do Piraí, seria mais fácil habitar em Vassouras. No início, definia

como sendo meu lar a casa de Miguel Pereira e estúdio – um retângulo de 27 m2 no qual

estão dispostos: o quarto que é também sala, a cozinha e o banheiro – o imóvel que

aluguei em Vassouras. Porém, com o passar do tempo, com o habitar de esse novo

espaço privado, comecei a vê-lo como meu lar, onde manuseio e guardo as “coisas”

essenciais para viver, nessas “coisas” incluem-se além de móveis e utensílios, livros,

fotos de amigos e CDs que me colocam em conexão com o mundo.

Curioso, que foi nesse meu pequeno espaço que encontrei a tranqüilidade para

escrever, que elaborei a idéia de capítulos como partes que compõem uma viagem de

trem e que de repente dei-me conta que a metáfora do trem podia se aplicar a esse

espaço. O outrora retângulo passou a ser visto por mim como um vagão, no qual por

uma porta externa entramos na sala-quarto, ou cabine, passando por uma interna

chegamos ao vagão restaurante propriamente dito que também possui outro acesso por

outra porta externa e ao fundo uma outra porta interna na qual temos acesso ao banheiro

da composição. Privado e Público, mundos interior e exterior em contato por meio do

indivíduo que os habita e identifica.

Ecléa Bosi chama a atenção para o modo como estabelecemos com nossa casa e

com a paisagem que a rodeia uma “comunicação silenciosa que marca nossas relações

mais profundas”, a autora nos lembra que “mais que um sentimento estético ou de

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94

utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa

identidade” (Bosi, 2003; p. 441, 442): “Sons familiares da água da torneira, dos

talheres nos pratos, dos passos no chão, do relógio, do martelo, da vassoura, compõem

o ambiente acústico familiar que se integra no da rua” (Bosi, ibidem; p. 445)

Na contra-mão das aquisições e vínculos que formamos com os objetos que nos

cercam e nossa casa o sociólogo Ervin Goffman formula o conceito de “deformação

pessoal” decorrente do fato de o indivíduo ser destituído das coisas que possui, às quais

atribui o “sentimento do eu”; e da “grande mutilação” desse “eu” que decorre da

impossibilidade de se estabelecer quaisquer vínculos pessoais com o espaço e os objetos

onde e com os quais se habita (Goffman, 1974; p. 27, 29), como podemos ver a seguir

em citação sobre um estudo do autor em ambiente religioso, no qual é prática liberar-se

de todo e qualquer vínculo material, que os remetam ao mundo exterior:

“Para dormir, devem ter apenas um colchão, um cobertor, uma colcha e um

travesseiro. Essas camas devem ser freqüentemente examinadas pelo abade,

por causa da propriedade particular que aí pode estar guardada. Se alguém

for descoberto com algo que não recebeu do abade, deve ser severamente

castigado. E para que esse vício de propriedade particular possa ser

completamente eliminado, todas as coisas necessárias devem ser dadas pelo

abade: capuz, túnica, meias, sapatos, cinto, faca, caneta, agulha, lenço e

tabuletas para a escrita. Assim, é possível eliminar todas as queixas de

necessidades. [...].” (“The Holy Rule of Saint Benedict”, cap. 55. Apud

Goffman, ibidem; p. 28)

Pessoas que sofrem furtos nos quais suas casas são esvaziadas ou tem suas

moradas devastadas por incêndio ou inundação sofrem uma “deformação pessoal”

involuntária, nesse ponto diferem dos neófitos religiosos, pergunto-me se no caso dos

imigrantes, que ao embarcarem podiam trazer consigo somente poucos pertences, se

nesse caso teriam a experiência próxima de “deformação pessoal” que os noviços

anteriormente citados e eu, ao já ter passado na infância e adolescência pela experiência

de furto e recentemente pela do incêndio, experimentaram.

Fato é que se afastar de sua casa, seu lar, muitas vezes com a perspectiva de

nunca mais voltar, com apenas um baú, quando não somente uma trouxa de roupa e uma

fotografia desbotada de um ente querido, pode ser considerado, no mínimo, uma

violação. Apesar da esperança de ir ao encontro de uma vida melhor, o desafio e

dificuldades de se construir, re-construir um novo espaço, um novo lar são particulares e

inimagináveis, assim como múltiplas são as escolhas a serem feitas.

Como coloca Clare C. Marcus, os motivos que nos levam a alugar ou comprar

uma determinada casa para morar, além de serem determinados por nossas

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95

possibilidades econômicas, por suas características físicas, localização e nível de

conservação do imóvel, também o são pelo papel simbólico desse imóvel como uma

expressão da identidade social que queremos comunicar a esse meio. Assim, dirá a

autora, nossa casa passa a funcionar como um veículo de comunicação, um display para

informar aos nossos vizinhos, convidados – e até a nós mesmos – quem e como somos,

que posição ocupamos na sociedade, nossos valores, etc. (Marcus, 1997; p. 9). Afinal,

segundo King:

“Nossa casas falam por nós, sobre como somos, e sobre nós para os outros;

se formos honestos, elas também nos dirão quem e o quê nós queremos ser.

As casas, portanto, também podem ser vistas como um espelho que erguemos

para nós mesmos” (King, ibidem; p.78).

Quanto a nos vermos refletidos no nosso espaço habitado, Marcus ainda

acrescenta que, como nossa auto-imagem se transforma com o tempo, nós também

transformamos o espaço que habitamos, podendo, por exemplo, nos desfazer de coisas

que não mais refletem quem somos, e adquirir outras que correspondam a nossa atual

realidade interna. Portanto, nosso espaço doméstico torna-se uma espécie de cenário no

qual nossa auto-imagem é projetada através de objetos móveis que controlamos.

Conforme afirma Marcus, “tal como a exploração do self, a organização interna da casa

está freqüentemente em um processo de tornar-se” (Marcus, ibidem; p. 57).

Além disso, segundo Santos o lugar habitado seria o “teatro insubstituível das

paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas

manifestações da espontaneidade e da criatividade” (Santos, ibidem; p. 322)

Cenário, palco, coxia é em nossa casa que somos, representamos e exercitamos

nossas identidades, onde organizamos nossos papéis e delimitamos o público do

privado.

Para Hannah Arendt somos seres condicionados – ou seja, temos a propriedade

de tornar imediatamente condição da nossa existência tudo aquilo com que entramos em

contato, seja por meios espontâneos ou intencionais. Segundo a autora, além das

condições naturais nas quais recebemos a nossa vida sobre a Terra – “e, até certo ponto,

a partir delas” –, é de nossa natureza criar novas condições que, por mais variadas e de

diversas origens que possam ser, terão a mesma força condicionante de nossa existência

que têm as “coisas naturais”. Assim, a própria realidade do mundo, sua objetividade, ou

seja, seu caráter de coisa ou objeto, também passam a impor sobre a existência dos

homens, seus próprios autores, essa força condicionante (Arendt, 1997; p. 17).

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96

Provavelmente minha resistência em apresentar meu novo imóvel como sendo

meu lar deveu-se ao status, é muito mais glamoroso viver em um sítio arborizado, com

uma casa de 150 m2 do que em um estúdio, assim como denominar de estúdio o que

poderia ser designado como uma quitinete. Porém, como aponta Bosi, são os objetos

que nos dão assentimento “à nossa posição no mundo, à nossa identidade”, por isso

com a vivência do novo espaço, com ter a minha volta os objetos que elegi para me

significarem, com o habitar real desse novo espaço passei a senti-lo como lar e a

possibilidade de ter que me mudar novamente me assombra.

Ao percorrem suas casas, meus entrevistados mais que um imóvel me

mostraram, me abriram seus lares, fato perceptível pelo modo como se referiam não só

aos cômodos, mas a quem ocupavam esses cômodos e ao demonstrar carinho com

objetos que tanto significavam para eles. A dimensão social que Marcus aponta sobre os

motivos que nos levam a alugar ou comprar um imóvel também apresentou-se no modo

como enalteciam as qualidades de morar no bairro escolhido, em falar-me sobre a

vizinhança.

4.2.2 o Lar e a memória afetiva

Segundo Camargo o habitar doméstico é uma atividade que evolve mais do que

o simples ato de nos inserirmos em um invólucro físico segundo as condições que,

objetivamente, permitem e definem o modo como permanecemos lá. (Camargo, ibidem,

65) A autora investiga em que aspectos a condição concreta do habitar físico propicia

aos habitantes relações tais, que vão além das materialmente evidentes; que envolvem

os aspectos não palpáveis do habitar doméstico, como os da alma, do espírito, do sonho,

da memória, das emoções do indivíduo – aspectos que fazem com que a casa, em sua

objetividade concreta, passe a incorporar um significado subjetivo para quem a habita.

De acordo com o “Dicionário da Arquitetura Brasileira” (Corona e Lemos, 1972;

p. 462): Habitação Lugar no qual se habita. Constitui em arquitetura o abrigo ou

invólucro que protege o homem, favorecendo sua vida no aspecto material e espiritual.

Já Peter King (2004) percebe uma “simbiose” entre as estruturas objetivas que

encerram a casa física e as atividades que desempenhamos – privadamente – dentro

dela, ou seja, de um lado, temos a casa como objeto físico: reconhecível e passível de

avaliação objetiva, segundo critérios concretamente verificáveis, tais como, por

exemplo, o projeto arquitetônico, suas relações de espaço e uso, os materiais utilizados,

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97

os padrões de construção, e de outro lado – porém apoiado nessas condições objetivas –,

está, o habitar doméstico, com todas as ações e interações de caráter, particular e

individual, que envolvem tal atividade, as quais, como observa King, pelo seu caráter

íntimo, ficam praticamente fora de monitoramento (King, ibidem; p. 60, 176).

Uma prova de que a memória afetiva age também no espaço doméstico é a de

que muitas vezes, podemos passar longo período da vida buscando-se reencontrar, em

novas casas, as boas impressões, que um habitar doméstico da infância deixou,

marcadas no íntimo de uma pessoa, como no caso de Vittorio ao dizer que o terraço de

seu apartamento dava a idéia de estar em uma casa, na sua infância ele morou em uma

casa – ou, tentando-se evitar reviver alguma experiência doméstica especialmente

dolorosa.

Peter King, dá um exemplo desse último caso, ao relatar o momento no qual,

tendo em vista o falecimento de sua mãe, se viu, juntamente com seus irmãos, diante da

tarefa de esvaziar a casa onde ela morara, pois à medida que os objetos que pertenceram

à mãe eram retirados, como um processo de “des-animação”, tornava-lhes cada vez

mais difícil a localização das memórias que sempre estiveram ali. Segundo o autor,

aquele espaço, inicialmente “cheio das suas coisas, tal como fora até a última vez em

que a vira”, tornava-se, aos poucos, um lugar “frio e antisséptico”. Como afirma King,

se, por um lado, nesse processo, o espaço crescia em possibilidades de uso – “a casa de

nossos pais tornava-se, agora, mais uma casa [..., que] poderia ser habitada por qualquer

um” – para ele e os irmãos, aquele espaço “encolhia-se”, pois deixava de ser um lugar

significante para ser uma simples concha com capacidade de abrigar mais um habitar –

“... qualquer habitar” (King, ibidem; p. 154-155).

Outro a sentir o vazio deixado pela casa por ter seus objetos

“despersonalizados” é o autor português José Saramago ao recordar-se da

partida de seu tio: “[...] desapareceu num montão de escombros [...] aquela

[casa] que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e

profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo

se chamavam, esse mágico casulo onde sei que se geraram as metamorfoses

decisivas da criança e do adolescente. Essa perda, porém, há muito tempo

que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da

memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar

a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a

cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas

pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro de

esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele

Verão. (Saramago, 2006; p. 15-16)

[...]

A construção era do mais tosco que então se fazia, térrea, de um único piso,

mas levantada do chão cerca de um metro por causa das cheias, sem

nenhuma janela na frontaria cega, nada mais que uma porta em que se abria

o tradicional postigo. Tinha dois compartimentos espaçosos, a casa-de-fora,

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98

assim chamada por dar para a rua, onde havia duas camas e umas quantas

arcas [...]. À noite, apagando o candeeiro de petróleo, sempre se podia

distinguir pelas frinchas do telhado o cintilar de uma estrela vagabunda.

[...]. Além das camas e das arcas, havia na casa-de-fora uma mesa de

madeira em branco, isto é, sem pintura, de pernas altas, com um espelho

velho, embaciado e com falhas na película de estanho, um relógio de capela

e outras bugigangas sem valor. (Muito mais tarde, já tinham passado há

muito os meus quarenta anos, comprei num antiquário de Lisboa um relógio

semelhante que ainda hoje conservo, como algo que tivesse ido pedir

emprestado à infância). [...]. Por cima da mesa, na parede branca, como

uma galáxia de rostos, era onde se reuniam os retratos da família: [...]

Estavam ali como santos no altar, como peças de um relicário colectivo,

fixos imutáveis. A cozinha era o mundo. Havia duas camas, uma mesa que

bamboleava no chão irregular e que de cada vez era preciso calçar para que

não bandeasse, duas cadeiras pintadas de azul, a lareira com a „boneca do

lar‟ ao fundo, uma figura vagamente antropomórfica, de contorno sumário,

que desapareceu, como todo o resto, quando o tio Manuel, o mais novo dos

tios maternos [...], ficou com a casa depois de morrer a avó, para levantar

no seu lugar uma construção hedionda para qualquer pessoa de mediano

gosto [...].” (Saramago, ibidem; p. 83-85)

A partir dessas considerações, podemos entender o papel da estrutura física da

casa além do seu aspecto inicial, o de abrigar o nosso habitar doméstico e compreender

que essa estrutura também abriga todas as coisas e objetos de grande importância e

significado para nós que nela inserimos, ou seja, que a casa possui uma memória afetiva

advinda de esse reunir de coisas e objetos vindos das mais variadas origens, portando

com os mais distintos significados, e que até então estavam dispersos no mundo, em um

só contexto resultaria em uma “colagem” – como diria King (ibidem; p. 60) – de

significado pessoal, específico e particular para nós, o qual não só apóia o nosso habitar

doméstico, mas é, mesmo, confundido com ele e com o sujeito que o habita.

Afinal, segundo Ecléa Bosi, durante o curso PST5720 – Cultura e Memória

Social, ministrado no segundo semestre de 2005, no Instituto de Psicologia da USP:

“Ainda que a sociedade queira, de todos os modos, mostrar que os objetos

têm valor em si mesmos, é o sujeito, o causador histórico do valor dos

objetos: somos nós que damos alma aos objetos, transformando sua

neutralidade em apoio à nossa identidade.” (ao que a autora acrescenta) “O

espaço que encerrou os membros de uma família durante anos comuns, há de

contar-nos algo do que foram essas pessoas. Porque as coisas que

modelamos durante anos resistiram a nós com sua alteridade e tomaram

algo do que fomos.” (Bosi, ibidem; p. 443)

A autora aponta um fato importante do habitar, o de que muitas vezes o habitar

doméstico é compartilhado, portanto, tão importante quanto as coisas e objetos que

possuímos guardados em nossa casa é com quem nela os partilhamos. É neste sentido

que King afirma que muito do que temos em casa como querido não são apenas posses,

Page 99: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

99

mas relações afetivas. Para o autor, uma função chave da casa seria “abrigar aquelas

coisas e aqueles seres que amamos e queremos ver protegidos” (King, ibidem, p. 60).

De forma semelhante, Chaney afirma que o que conta como casa, para qualquer pessoa,

é definido por conexões emocionais – “a casa é onde está o coração” (Chaney, ibidem;

p. 59).

Assim, ao me mostrar as fotos de suas irmãs na parede de seu quarto, as de seus

pais e netas nas paredes da sala, Renato me dizia o quanto aquelas pessoas eram

importantes para ele, elas vivem com ele em seu coração e por isso compõe a decoração

de sua casa, assim como a bandeja de prata que ganhou de um amigo por ocasião de

suas Bodas de ouro com sua esposa, mostra o quanto aquele casamento é importante

para ele.

O cantinho da lembrança, como define Helena na casa de ela de Vittorio também

indica o quanto os ancestrais são importantes para aquela família, o quanto deixam

saudades.

Também os filhos que os visitam ou moram com eles fazem parte dessa relação

de lar como espaço de afeto. Afinal, nada como a casa dos avós, pena que cada vez

mais, pela decisão tardia de termos filhos, esses tem cada vez menos a possibilidade de

desfrutar a convivência com os avós.

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As Time Goes By

You must remember this,

a kiss is just a kiss,

A sigh is just a sigh,

The fundamental things apply,

as time goes by.

And when two lovers woo,

They still say "I love you,"

On that you can rely,

No matter what the future brings,

as time goes by.

Moonlight and love songs,

never out of date,

Hearts full of passion,

jealousy and hate,

Woman need man, and man must have his maid,

that no one can deny.

It's still the same old story,

a fight for love and glory,

A case of do or die,

The world will always welcome lovers,

as time goes by.

(música tema do filme Casablanca,de 1942, composta por Herman Hupfeld)

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5. OS PASSAGEIROS: Renato e Vittorio,

5.1 Vidas Paralelas

“A única verdadeira viagem, o único banho de juventude, seria não ir ao encontro

de novas paisagens, mas ter novos olhos, ver o universo com os olhos de outro,

de cem outros, ver os cem universos que cada um vê, que cada um é.”

(Marcel Proust. In.: Sono Piccolo ma crescerò. Tradução minha)

Como dito anteriormente, as histórias de vida coletadas em situação de entrevista,

são narrativas de imigrantes, portanto, neste capítulo analiso a construção de narrativas de

dois imigrantes italianos, Renato e Vittorio, que se integraram na comunidade barrense.

Ao analisar as narrativas dos sujeitos de pesquisa constatei que esses preservam

traços da cultura italiana, principalmente no que concerne aos hábitos alimentares, ao

mesmo tempo em que cunharam uma nova identidade, uma identidade ítalo-brasileira. Tais

narrativas são testemunho da passagem de uma existência peninsular para uma continental,

nos quais o contraste entre o presente e o passado é fortemente marcado.

Segundo Paola Corti, o homem é naturalmente nômade, portanto os fenômenos

migratórios são naturais e não o contrário. Apesar disso, a mudança de cenário, de hábitos,

pode implicar em alterações senão identitárias, de percepção, ao nos defrontarmos com o

outro.

Dentre encontros e desencontros pode haver desde a assimilação do discurso do

outro, podendo ocorrer uma nova formação identitária, até uma total intolerância, muitas

vezes representada por movimentos nacionalistas.

Neste cenário, o estudo sobre imigração tem ganhado importância em diversos

campos da Literatura, História, Antropologia, Sociologia, Sociolingüística Interacional, que

tem contribuído imensamente para o entendimento da imigração; sem desprezar as

importantes contribuições dessas e de outras áreas de pesquisa, algumas das quais citadas

neste trabalho, uma vez que lido com uma perspectiva interdisciplinar de pesquisa. Tenho a

certeza de que a Análise do Discurso e o aparato desenvolvido pela Área dos Estudos da

Linguagem contribuem para o estudo da migração.

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Aqui, neste capítulo focalizarei apenas uma porção desta contribuição que é a

investigação da contribuição de narrativas pessoais de experiências de imigração que

resultam em transformações identitárias.

Nesta pesquisa concebo identidade como co-construção, que são estabelecidas em

um processo contínuo de relações sociais, afinal, como bem coloca John Caputo: “somos

seres históricos e sociais concretamente situados em uma outra tradição histórica, cultural e

lingüística” (2001:34)

Neste capítulo, portanto, me proponho a analisar como são construídas narrativas de

imigração, tendo como base a análise de entrevistas não-estruturadas em que sujeitos

relatam suas estórias de vida. Seguindo Bastos (2005) utilizo o termo “estória de vida”,

neste capítulo, de acordo com a proposta de Linde (1993), para diferenciá-lo do conceito

“historia de vida” termo esse mais ligado aos estudos da Antropologia, História e

Psicologia, de modo a focalizar a construção discursiva de narrativas, que não deixam de

ser autobiográficas.

A análise de como as narrativas de imigração são construídas leva em consideração,

principalmente, de que a(s) construções identitárias dos sujeitos de pesquisa são construídas

discursivamente nos relatos dos entrevistados; como constroem discursivamente a

importância do aprendizado da língua portuguesa e do casamento com brasileiras e como

essa influência se estendem para outros aspectos de suas vidas sociais. Objetivo, portanto, a

busca de uma maior compreensão de como os relatos de imigração são estruturados e, de

como os narradores constroem a si e aos outros em suas estórias de vida. Dessa forma,

nesse capítulo objetivo:

1. Analisar como os entrevistados estruturam suas narrativas para contar suas

trajetórias de imigração, ou seja, como os diferentes aspectos da experiência de imigração

presentes nos relatos são organizados tendo-se em vista o trabalho de (re)construção das

identidades sociais;

2. Analisar como os narradores constroem suas experiências passadas tendo em

vista a sua perspectiva de presente, ou seja, estando já integrados e sendo atuais membros

da sociedade barrense e não simplesmente representantes da “colônia italiana” em Barra do

Piraí.

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103

Proponho que as identidades construídas ao longo das narrativas de estórias de vida

dos sujeitos aqui pesquisados sejam entendidas, a partir de um conjunto de transformações

sofridas por esses indivíduos que os levam, na sua forma de pensar e em suas ações

cotidianas, a se alinhar a um sistema de coerência (cf. Linde, 1993). Processo esse, descrito

como assimilado de forma gradual e que possui como principais características o próprio

alinhamento dos sujeitos ao novo sistema de idéias, alinhamento este que os levou a um

status social privilegiado. Essa crença é pautada, geralmente, pela sorte, boa ventura, boa

fortuna, o que remete à proximidade com a divindade, tendo em vista que os tocados pela

sorte são, de certa forma, os agraciados por Deus. Talvez, mais do que fazer fortuna, o

significado de “fare la merica” esteja vinculado a integrar-se para viver de forma melhor do

que no passado, dando melhor condição de vida a seus herdeiros.

Cabe ressaltar que, ao pesquisar o uso da perspectiva do presente levo em

consideração que a narrativa é mais do que uma seqüência ordenada de eventos. Filio-me,

deste modo, a estudos que problematizam a visão estritamente cronológica da narrativa,

mais especificamente àqueles estudos que consideram ser a “perspectiva do presente” ou o

“sentido do final” que orientam a construção narrativa (Ricouer, 1980, 1984; Brockmeier,

200; Mishler, 2002; Jarvinen, 2004, Santos, 2007).

5.1.1. Renato

Renato, italiano residente no Brasil, mais especificamente no bairro Belvedere, em

Barra do Piraí, cidade situada no sul fluminense, tem 83 anos, é casado, tem dois filhos.

Na Itália, estuda somente até o quarto ano do ensino fundamental. Era o homem da

casa, ajudava a mãe, pois o pai já havia migrado alguns meses antes de seu nascimento e

retornava somente de tempos em tempos para a Itália, onde permanecia por poucos meses.

Sendo assim, ele vem a conhecer o pai somente aos quatro anos de idade. Com a guerra o

pai passa um longo período sem retornar ao Brasil. Deste período Renato guarda na

lembrança os sacrifícios que sua mãe fazia a fim de suprir as necessidades da família.

Quando seu pai retorna em mil novecentos e quarenta e nove, decide trazer o Renato

com ele para o Brasil por causa de sua profissão de alfaiate, profissão essa que Renato

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desempenha por pouco tempo por aqui.

Ao chegarem ao Brasil, Renato aloja-se junto com o pai na casa de uma tia em São

Cristóvão, mesmo estando entre familiares começa a estranhar os costumes da terra. Sua tia

e primo esforçam-se para dar-lhe conforto. O primo cede a cama e passa a dormir em uma

esteira, mas Renato não se adapta e procura um outro local, vai morar em um quarto na

Paula Matos, rua do bairro de Santa Teresa. Passa por vários tipos de habitações, divide

quarto com estranhos no Grajaú, e com amigos novamente na Paula Matos até que em mil

novecentos e cinqüenta e sete casa-se com Maria e vão morar em Nilópolis. Como as

condições de higiene do bairro eram péssimas e as crianças adoeciam constantemente

decidem mudar-se para Barra do Piraí, onde Renato estabelece-se como comerciante e

Maria continua a dar aulas de português em escolas da rede pública.

Já diz o ditado “santo de casa não faz milagre”, por isso, apesar da esposa ser

professora de português, Renato fala um português, segundo suas próprias palavras, “torto

como seu italiano” A comparação é interessante porque no período no qual Renato veio ao

Brasil o italiano era aprendido na escola e por meio da televisão, entre familiares falava-se

em dialeto, no caso de Renato, o calabrês, por ter tido pouco estudo o português e o italiano

para ele eram claudicantes.

O casal teve um filho e uma filha e esses duas filhas e uma filha, respectivamente,

ou seja, o casal atualmente tem três netas, duas formadas e uma completando os estudos

universitários.

A filha de Renato seguiu os passos da mãe, tornou-se professora, assim como sua

filha, ao passo que o filho assumiu o bar que foi do pai. Renato fez questão de comprar um

imóvel para cada filho e de ajudar com os custos com a instrução das netas. Encontra na

família sua grande realização.

5.1.2. Vittorio

Vittorio, italiano residente no Brasil, mais especificamente no centro de Barra do

Piraí, cidade situada no sul fluminense, tem 72 anos, é casado, tem dois filhos e uma filha,

um neto e três netas, na época da entrevista tinha somente duas netas, mas no ínterim seu

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105

filho solteiro casou-se e teve uma filha.

Vittorio atribui o fato de estar casado até hoje por mérito da esposa que soube

contornar suas ações imaturas dos primeiros anos de casamento.

Após entrevista do filho mais velho de Vittorio com suas tias na Itália, descobrimos

que ao invés da versão que se encontra nessa entrevista de que a mãe de Vittorio teria

falecido no parto, essa veio a falecer três meses após dar a luz, tendo tempo de amamentá-

lo.

Três anos após o falecimento da esposa, o pai de Vittorio casa-se novamente e desse

matrimonio resultam duas filhas. Vittorio convive muito bem com a madrasta, a ponto de

essa tomar partido dele em relação às filhas. Vive, segundo ele, uma infância de príncipe,

na Itália é chamado de Dom Vittorio, pelo prestígio de seu avô farmacêutico, seu pai

médico e seu tio padre.

As lembranças da guerra estão vivas em sua memória, assim como a precariedade

na qual a Itália se encontrava no pós-guerra. Levando-se em consideração esse cenário e o

fato do avô materno ter uma boa situação no Brasil, como industrial, e prometer a parte que

caberia a filha falecida ao único neto que deixara, caso Vittorio fosse morar com eles em

Barra do Piraí, a família italiana concede a ida do primogênito ao Brasil para garantir-lhe

um melhor futuro.

Aos treze anos, Vittorio vem para o Brasil de avião, é um dos pioneiros como

passageiro de linhas aéreas.

Ao chegar ao Brasil comunica-se somente em italiano e em dialeto com os avôs,

fica mudo durante um tempo, freqüenta aulas de português com um prestigiado professor

de Barra do Piraí e somente quando se sente confiante passa a falar a língua portuguesa,

apaixonando-se por ela.

Presta os exames necessários para continuar seus estudos e vai morar no Rio de

Janeiro, no Alto da Boa Vista, para concluir o atual Ensino Médio e iniciar seus estudos na

Faculdade de Direito. Após o primeiro ano de faculdade, começa a trabalhar na fábrica de

macarrão do avô e presta somente os exames na faculdade, a fim de obter a graduação em

Direito. Orgulho para a família que lhe dá o anel de advogado. Anel esse que usa durante

muitos anos até mesmo depois de casado, para segurar a aliança, o que não funciona por

Page 106: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

106

muito tempo e ele o perde.

Na indústria, é responsável pelo marketing, patrocinam o carnaval do Rio durante

muitos anos, na sua função viaja muito a trabalho pelo Brasil e Europa, sempre que

possível levando a mulher e as crianças. Por vários motivos, porém, a empresa vai à

falência. Vittorio se aposenta e, em decorrência do stress, torna-se diabético, enfrenta a

doença de frente e passa a ter uma vida mais saudável do que antes da doença.

Há dez anos vem desenvolvendo um novo produto com uma nova marca. Colocou o

produto, um novo tipo de leite de soja com diversos sabores, no mercado duas semanas

após nossa entrevista.

5.2. Os Estilos narrativos

Neste subitem, segundo proposta de Tannen (1989), analiso estratégias de

envolvimento utilizadas por Renato e Vittorio. Meus entrevistados, apesar de não tão hábeis

como Salvatore, o entrevistado cuja narrativa e trajetória de vida analisei em minha

dissertação de mestrado, narrador esse de alto-envolvimento, segundo Tannen (1989),

produziram em seus relatos algumas estratégias, dentre elas narrativas que se enquadram no

modelo laboviano . Além de narrativa, focalizei também as estratégias de repetição,

imagem/detalhe e diálogo construído.

Tannen (1989), ao examinar a criação de significado como resultado de uma co-

produção discursiva, analisa estratégias que criam envolvimento, conexões emocionais

entre falantes, e sentido.

Falantes e ouvintes, em uma situação conversacional, necessitam sinalizar seu

envolvimento quer seja diretamente por palavras, quer indiretamente por meio de gestos e

sinais não-verbais. Como estratégia de envolvimento, a autora cita o uso de recursos

lingüístico-discursivos, tais como contar histórias, repetição, imagens/detalhes e dialogo

construído. Os recursos citados serão expostos analisados a seguir.

O contar histórias. Segundo Tannen (1989), um falante de alto-envolvimento conta

muitas histórias a fim de estabelecer um maior vínculo com seus interlocutores. Isso

porque, entre muitas outras coisas, as narrativas provocam emoções.

Page 107: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

107

A repetição, dentre as estratégias de envolvimento, é considerada por Tannen

(1989) uma das mais importantes não apenas por ser especialmente abundante na fala, mas

também por possuir diversas formas e funções, dentre as quais: funcionamento na produção

e compreensão de significados em uma conversa; gerenciamento da conversação; criação

de humor. Bastos (1992), ao analisar a repetição no discurso, nos chama a atenção para dois

aspectos da repetição. O primeiro é como a repetição opera na construção da coerência.

Segundo a autora:

“a repetição funciona na inserção de informações no discurso, através de

processos de encaixe, substituição e adição. Simultaneamente, as repetições

funcionam na expressão de emoções e avaliações, atuando como estratégia de

valorização do que é dito.”

O segundo aspecto é o poético. Embora culturalmente a repetição esteja conectada à

idéia de monotonia, na poesia, este recurso é amplamente utilizado, por meio da métrica, da

rima, das aliterações.

Já o uso de imagens/detalhes, sempre segundo Tannen (1989), constitui uma

estratégia de envolvimento porque as imagens possuem poder de comunicar significados e

emoções por meio da evocação de cenas, especialmente no que diz respeito ao papel do

detalhe na construção de imagens, ou seja, ao fornecer detalhes, o falante faz com que o

ouvinte imagine cenas e situações, objetos, idéias e emoções, criando um maior

envolvimento e imprimindo dramaticidade ao relato.

A autora também se refere às figuras de linguagem. Neste caso a imagem formada

não é um cenário, mas um campo de associação que também estabelece envolvimento entre

falante e ouvinte.

Tannen (1989) questiona o conceito tradicional de fala relatada por não se tratar de

uma simples reprodução da fala de uma determinada pessoa, num determinado contexto.

Na verdade, trata-se de uma criação daquele que relata, dado que os enunciados são

produzidos em contextos diferentes. A autora propõe a denominação de diálogo construído

ao processo no qual uma pessoa se apropria das palavras de outrem ao repeti-las, pois estas

passam a pertencê-la. Deste modo, cito:

Page 108: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

108

“o diálogo construído é a transposição da fala de uma terceira pessoa enunciada

em um outro contexto discursivo para a interação em curso, com finalidade de

criar envolvimento entre falantes e ouvintes (Dantas:2000)”.

Ritmo, imagens, detalhes, figuras de linguagem, diálogo construído, todos estes

elementos estão em maior ou menor grau presentes na Poesia. Para Tannen, a linguagem

cotidiana é também poética. Assim como há poetas maravilhosos, há excelentes narradores,

os chamados narradores de alto-envolvimento.

No decorrer do evento de fala em análise, Renato e Vittorio se valem de algumas

estratégias para criar significados e envolvimento, na co-construção das interações desta

entrevista, como veremos a seguir.

5.2.1. O contar histórias

No exemplo abaixo, Renato nos narra a história sobre a invasão de um moinho que tinha

sido fechado pelo governo, por ele e por sua mãe, a fim de moer o trigo para alimentar a

família durante o período de guerra.

Fragmento 1:

768 Renato Ma, naquela época?

no caso passou por guerra também, enfim

passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto era um garoto

novo. O governo fechou tutto que moinho

ahã

duas horas da madrugada eu puxando o burrinho minha mãe carregou o

bolo de saco de trigo pra botar ele lá, compreendeu? nós andamos daqui até

o batalhão a pé, carregando o burrinho, uma senhora e meu pai ficando

aqui.

769 Sandra

770 Renato

771 Sandra

772 Renato

É importante ressaltar que a história aqui relatada se constitui numa micro-narrativa, mas

que possui os elementos estruturais fundamentais de narrativa, de acordo com a perspectiva

laboviana.

Orientação: “naquela época?”; “eu era um garoto um garoto novo”; “duas horas da

madrugada”

Ações complicadoras: “o governo fechou tutto que moinho”, “eu puxando o

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109

burrinho minha mãe carregou o saco de trigo pra botar ele lá”, “carregando o burrinho”

Avaliação: “passou por guerra”, “nós andamos daqui até o batalhão a pé”, “uma

senhora e meu pai ficando aqui”.

Durante a entrevista Renato produz outros relatos sobre o fato de seu pai ter deixado

sua mãe, uma mulher jovem e bonita, sozinha para cuidar dos filhos.

Renato constrói essa micro-narrativa cujo ponto (vide turno 772), pode ser o de

mostrar que sua mãe era “uma senhora e meu pai ficando aqui” (no Brasil) de modo que

pode ser interpretado de duas formas: a) o inconformismo de Renato com essa situação,

como vemos em outros momentos da entrevista e b) em uma instância mais ampla, o

sacrifício que os pais são capazes de fazer por seus filhos.

Afinal, a mãe fazia um enorme trajeto carregando um saco para conseguir alimentar

seus filhos, porque os amava e queria assegurar-lhes a subsistência, além do pai ter

emigrado para o Brasil para assegurar uma vida mais digna e o dote das filhas.

O conflito experimentado por Renato, no que diz respeito ao pai é gerado por sua

ausência e abandono de sua mãe como mulher, mas ele, assim como sua esposa, em alguns

momentos da entrevista, afirma seu bom caráter, sua vida de labuta e assinala o fato de seu

pai “cumprir com suas obrigações” ao enviar periodicamente dinheiro e sempre que

possível passar alguns meses na Itália, bem como o fato de retornar no fim da vida para

Itália para viver ao lado da esposa já que sua missão de criar os filhos tinha sido cumprida.

Vittorio também utiliza o contar história durante seu relato. Na sua narrativa

podemos perceber uma forte ligação entre ele, seu avô, fundador da fábrica que se tornaria

conhecida como Del Fiore, mas que originalmente carregava o nome da família Mandorla,

seu tio e a empresa na qual trabalhou por quase toda a vida.

O trecho a seguir esclarece que seu avô emigrou para o Brasil logo nas primeiras

levas de imigrantes, no final do século XIX, mesmo período no qual chegou a ferrovia a

Barra do Piraí e, em contraste com a agitação que o comércio vivenciava em razão do

entroncamento ferroviário, havia as readaptações pelas quais passavam as fazendas de café

da região por causa da abolição da escravatura.

Fragmento 2

Page 110: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

110

113 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?

114 Vittorio O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos e

setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e noventa

e sete.

115 Alessandro Ele veio então pra Barra do Piraí?

116 Vittorio É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo com vinte

e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras do navio pra

chegar com um trocadinho aqui.

Ele era analfabeto... você vê que coisa bonita o avô que era analfabeto

que montou a Del Fiore o outro que era que falava latim, então tem os

dois extremos,uma coisa bonita, né.

E que ano, que ano que ele veio?

Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e noventa

e sete

117

118

Alessandro

Vittorio

119 Alessandro Desceu aonde?

120 Vittorio Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o

endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.

121 Sandra Hum-hum.

122 Vittorio Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem nada,

tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se conheceram

no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te levar lá, mas eu tenho

que trabalhar, mas no final do meu trabalho”... Então ele passou o dia

todo entregando pão junto com ele...

Notem que é Alessandro, o filho primogênito que introduz a questão de quando o

avô teria vindo para cá, durante o breve tempo em que participa da entrevista, Alessandro

dá sinais de conhecer essa histórias, as histórias de família, como apontado na introdução,

muitas vezes o primogênito age como um griot, um mantenedor das histórias de família,

assim como Alessandro, Vittorio, o pai, também é primogênito e além disso, foi durante

muito tempo o diretor de marketing da empresa, que era “uma grande família”. Portanto, a

história acima relatada não é apenas a história da família Mandorla, nome fictício como

todos nessa pesquisa, a exceção do meu, mas da empresa Mandorla S.A. que se torna Del

Fiore e cujo nome, é referência na cidade de Barra do Piraí, onde os habitantes pronunciam

o nome Mandorla com certa intimidade, como se fizessem parte dessa família que projetou

o nome da cidade pelo Brasil por meio de seus produtos e da propaganda em torno desses.

Outra estratégia utilizada mais por Renato do que por Vittorio é a repetição, sendo

assim, a seguir, analiso possíveis funções para o uso de repetição.

5.2.2. – O Uso de repetições

Page 111: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

111

Tannen (1989) também nos mostra que a fala oral possui muitos elementos da

poesia. Renato e Vittorio, em suas falas confirmam a tese da autora, pois, em vários

momentos de seu relato, podemos notar uma organização, por meio de estratégias de

envolvimento, que evocam uma estética poética. Além, de em um olhar sutil, na fala, a

repetição pode se fazer presente, de um modo mais amplo, na memória, por pessoas que

utilizam o ritmo, como no caso dos músicos ou o raciocínio matemático, como no de

comerciantes.

Tannen (1989), por sua vez, ao focalizar o caráter criativo da repetição, a considera

uma das estratégias mais importantes para criar envolvimento por possuir diversas formas e

funções, dentre as quais:

a) intensificação do significado - ao repetir um padrão rítmico o ouvinte poderá, além de

ecoar o padrão proferido pelo falante, transformar o significado deste padrão, pois ao

repetir, ele estará utilizando este recurso segundo sua própria criatividade;

b) esclarecimento de significado - quando o falante usa a repetição como recurso para

diminuir o ritmo da interação, a fim de ganhar tempo para formular melhor um enunciado

ou resolver uma questão;

c) manutenção da interlocução - a interlocução pode ser mantida pelos interlocutores

quanto estes constroem uma interlocução longa com poucas palavras ou idéias conectadas

por meio da repetição;

d) ratificação do ouvinte - o ouvinte confirma a argumentação do falante repetindo uma

palavra ou um enunciado proferido anteriormente pelo falante;

e) Humor - a repetição com uma pequena variação torna-se um grande recurso para obter-

se humor em uma interação.

Renato ao contar-nos sobre sua trajetória de vida utiliza algumas estratégias de

envolvimento porém, no momento, me aterei à análise das repetições, dos seguintes

fragmentos, destacadas em negrito.

a) Intensificação do significado

Fragmento 3:

Page 112: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

112

642 Renato Do Paula Mattos ai arranjei um amigo meu que se chama A. Naquela época

trabalhava de alfaiate, o A., tinha o A.o. um cozinhava, um lavava os

pratos, um apanhava a água na bica de noite

No fragmento 3, o narrador faz uso da repetição do artigo indefinido um, que

reforça a idéia de divisão de tarefas entre os amigos que dividiam o quarto onde moravam

na rua Paula Matos, segundo palavras do entrevistado e de sua esposa, o local era

reconhecido como reduto dos italianos na década de ´50.

Além de trabalhadores os italianos, no Brasil, são conhecidos por pela ligação com a

cultura, teatro, literatura e bel canto. No fragmento abaixo, o seu gosto por cantar é

enfatizado por Vittorio por meio da repetição do verbo cantar no imperfeito.

Fragmento 4

195 Vittorio E o pessoal começava, cantoria e eu gostava de cantar, cantava Trazia o

microfone e cantava aquelas coisas bonitas...

O uso do verbo no imperfeito serve para criar uma imagem relacional, com os

personagens do tempo passado, cria uma atmosfera para o ouvinte, fazendo com que ele

monte uma imagem, um cenário na cabeça. A repetição enfatiza o gosto com o qual

Vittorio executa a ação. O fato de se referir à ação no passado não significa que ele não

mais a execute. Ele continua cantando em eventos, como pude presenciar no casamento de

seu filho, que seguiu os passos de seu pai também nesse aspecto, só não canta mais com

aquelas pessoas que pertenciam à esfera de sua vida empresarial.

b) Esclarecimento de significado

Fragmento 5

461 Renato cabeça no lugar. o amor existe. engano existe também, tristeza existe

também, então olha aqui

Fragmento 6

487 Renato mesma coisa. Existe O amor, existe a sinceridade, existe ( ) hoje não

podemos comprar isso aqui, hoje não podemos esse

Page 113: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

113

chapéu,compreendeu? não é a briga a discussão. Nunca briguei Nunca

discuti, nem um Nem outro. Nunca bati no meu filho

A repetição na fala de Renato geralmente ocorre grupos de três, como podemos

observar acima, tanto nas construções com o verbo existir na terceira pessoa do presente do

indicativo como nas com o advérbio nunca.

A fim de facilitar a análise dispus um após o outro os fragmentos 5 e 6, que se

referem respectivamente aos turnos 461 e 487.

Se adotarmos a diagramação baseada em Tannen (1989) e Bastos (1992 e 1993)

para a apresentação da transcrição poderemos visualizar melhor a repetições e a

aproximação de um padrão rítmico que se apresenta na fala de Renato.

(5.1)

461 o amor existe

engano existe também

tristeza existe também

(6.1)

487 O amor existe,

existe a sinceridade,

existe ( )

hoje não podemos comprar isso aqui,

hoje não podemos esse chapéu, compreendeu?

Segundo Labov, a avaliação marca ponto importante na fala, dá força, valoriza a

colocação (apud: Cabral:1992). Os enunciados “hoje não podemos comprar isso aqui” e

“hoje não podemos comprar esse chapéu, compreendeu” integra uma avaliação e funciona

como explicação para o vocábulo intelegível que compõe a repetição estruturada com o

verbo existir que, a partir desses enunciados e do contexto que se refere ao casamento

podemos preencher esse espaço com vocábulos tais como: compreensão, acordo, diálogo.

Assim como, seguida da asserção “não é briga, a discussão”, e intercalada pela conjunção

nem, surge a repetição do advérbio nunca que, por meio de repetição de formas de negação

ou exclusão, reforça e esclarece o fato de Renato não brigar com a mulher nem bater nos

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114

filhos.

(6.2)

487 não é a briga

a discussão

nunca briguei

nunca discuti,

nem um nem outro

nunca bati no meu filho

Talvez um exemplo mais claro do uso da repetição como explicação esteja no

próximo fragmento da fala de Vittorio, no qual ele esclarece o ano de falecimento de seu

avô e sua idade, ao elaborar uma conta. Vejamos:

Fragmento 7

156 Vittorio Foi representante da Brahma e era correspondente do Banco do Brasil, ele era

uma pessoa muito respeitada e tal, e era correspondente do Banco do Brasil,

até a primeira agência passou pelas mãos dele. E aí o tem pó foi passando,

chegamos aí aos anos cinqüenta. Eu já cheguei em quarenta e nove, convivi com

meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e um de abril de mil

novecentos e cinqüenta e um, ele tinha nascido em setenta e dois, então ele

estava com setenta e nove Anos. Vinte e oito com cinqüenta e um, é setenta e

nove anos, faleceu em cinqüenta e um. Ele faleceu o Cesar tinha vinte e tantos

anos na época, assumindo as empresas ( )era fim de ano, eu estava

estudando um bocado de coisas, fazendo o terceiro ano ginasial na escola Nilo

Peçanha, fui pro Rio fiz ( ) São José, na Usina...

Nesse fragmento, em um primeiro momento Vittorio usa a repetição para enfatizar a

importância do avô para a comunidade e para ele, afinal ele teve a oportunidade de

conviver por alguns anos com esse homem mítico.

Em um segundo momento a repetição da data e da idade do avô como é feita sugere

uma explicação baseada no cálculo elaborado por meu entrevistado.

Além das funções já vistas, a repetição também serve para a manutenção da

interlocução como veremos a seguir.

c) Manutenção da interlocução

Page 115: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

115

Fragmento 8

157 Renato O filho de patrício, eles lá não tem muita Não tem muita ( ) Muita

ligação com as coisas

No trecho acima, Renato para não perder o turno acrescenta o advérbio de ligação

não à primeira proposição e retoma o advérbio de intensidade muita, utilizado na segunda

proposição para manter a conversação e ganhar tempo para estruturar a frase que lhe fugia

“muita ligação com as coisas”.

Este recurso é muito utilizado quando queremos falar algo que não nos vem a mente

e queremos manter a conexão com nosso interlocutor, pois uma pausa poderia fazer com

que nosso interlocutor tomasse o turno e mudasse o argumento.

Interessante notar o vocábulo patrício, empregado por Renato, posto que esse

vocábulo é característico do falar lusitano, o que indica o contato de Renato e seu

aprendizado da língua portuguesa em contato com imigrantes portugueses. Como apontado

pelo próprio entrevistado, ele teve poucos anos de instrução formal na Itália e não

continuou seus estudos no Brasil, diferentemente de Vitorio, como podemos ver no

próximo trecho.

Fragmento 9:

207 Vittorio Pra eu poder estudar aqui no Brasil, temos que voltar aos anos cinqüenta, eu

tive que fazer o que chamava na época exame de adaptação. Todo

estrangeiro pra poder continuar os estudos aqui tinha que fazer exame de

geografia do Brasil, história do Brasil e português, é... eu tinha estudado

geografia, estudava geografia mundial, tudo bem. Estudava história

mundial, mas você tem história do país, geografia do país...

Hum-hum.

Então tinha que fazer essas três matérias: geografia, história e

português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e continuar e eu

fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo pra Barra, o alto da Boa Vista

estava fechado ali, então eu tinha que ficar na casa do sogro do meu tio,

fiquei uns quinze dias na casa dele pra fazer o exame.

208 Sandra

209 Vittorio

Notem que após minha manifestação de estar-lhe seguindo, Vittorio retoma o

assunto ressumindo o tópico tratado no turno 203, exames necessários para continuação de

seus estudos no Brasil, ao repetir os vocábulos geografia e história, garantindo a

Page 116: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

116

manutenção de seu turno, além de enfatizar as matérias necessárias para o exame de

adaptação.

d) Ratificação do ouvinte

Ao retomarmos o Fragmento 1, podemos também notar que eu e Renato co-

construímos, por meio de uma repetição, a coda, tendo esta, segundo uma perspectiva

laboviana, função avaliativa. Vejamos em negrito:

(1.1)

769 Sandra no caso passou por guerra também, enfim

770 Renato passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto

Notem que nesta co-construção, ao retomar minha fala, Renato ratifica a minha

asserção estabelecendo deste modo uma outra função para esta repetição, a saber: a função

de ratificação do ouvinte (Tannen:1989). Note-se ainda que a concordância em relação à

avaliação é condição para a continuação da interação (Linde, 1997).

Fragmento 10

181 Vittorio A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV Globo muito meu

amigo...

182 Helena Gerente comercial.

183 Vittorio É gerente comercial, ia lá pra passar o final de semana,

Nesse fragmento, Helena por meio da repetição do vocábulo gerente, seguida da

extensão comercial, explica e ratifica Vittorio, que por sua vez ratifica a fala da esposa

repetindo, após interjeição é, toda a denominação gerente comercial.

Talvez uma das funções mais criativas do uso da repetição, seja a de imprimir

humor, muitas vezes estabelecendo a ironia.

e) Imprimindo Humor

Fragmento 11

413 Renato O que chama vira-lata, u, u. O cachorro que (imitação de Latido) (risos)

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117

então falou: - desce aqui que tem família em São Cristóvão. Ele falou nãaao

o destino me mandou ir pra Argentina eu tenho que ir pra Argentina e

ficou seis meses na Argentina e voltou pro Brasil.

414 Sandra Que o irmão dele já tava no Rio ( risos)

415 Renato Já tava aqui.

Por sabermos que seu pai “fez a América” no Brasil, primeiro o relato de ele ter ido

a Argentina, nos causa espanto. Para reforçar a insistência do pai em seguir seu destino, ou

seja, ir para o país que inicialmente lhe foi designado, Renato repete por três vezes,

somente no turno 413, o vocábulo Argentina.

O humor estabelece-se por meio da resistência do pai de Renato em seguir os

conselhos do irmão e descer no Brasil e o fato de após tanto insistir no destino Argentina, lá

permanecer por apenas seis meses, retornando ao Brasil, onde se estabelece e consegue

prover o sustento da família.

A seguir, mais uma vez Renato estabelece a função de humor para Repetição, dessa

vez com o vocábulo América.

Fragmento 12

583 Renato Então a mulher esperava três ou quatro anos ele chegar da América,

América América! Alguns botavam dente de ouro

A grandiosidade do feito de emigrar, alimentada pela ilusão de “fare la Merica”, é

desmontada por Renato por meio da repetição do vocábulo América por três vezes, como

se desse vivas, estabelecendo a ironia ao inseri-la logo após a proposição iniciada pelo

advérbio então e na qual aponta a longa espera das esposas pelo retorno de seus maridos e

o longo período pelo qual elas deveriam desempenhar os papéis de homem e mulher da

casa.

Interessante notar que além de estabelecer o humor, imprimir ritmo a narrativa, a

repetição também evoca uma imagem formada pelo ideal de fare la Merica, imagem essa

construída e desconstruída pelo narrador ao longo de sua entrevista, pois que apresenta não

só as maravilhas do Brasil, mas também o sofrimento do imigrante ao se deparar com

novos costumes e afastar-se da família.

Page 118: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

118

Já Vittorio, utiliza-se da repetição para estabelecer o humor com seu próprio tio

que, segundo ele, por ser químico, tratava-se de uma pessoa muito metódica e no afã de

organizar o espaço de trabalho acaba por inutilizar todo o maquinário para a fabricação de

macarrão, carro-chefe da fábrica.

Fragmento 13

146 Vittorio O Cesar era perfeccionista, aí ele chegou e começou a mexer uma porção de

coisas, chegou ao macarrão ( ) o piso tinha cedido, o concreto, então ele

resolveu fazer uma coisa bem Feita. Tirou as máquinas, botou o piso no

nível, botou as máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou e

nunca mais a fábrica de massas funcionou nunca mais conseguiu fazer

macarrão, porque as máquinas tinham ganho as formas do piso que foi

cedendo, e elas foram se acomodando quando botou tudo no prumo não

teve jeito, e ficou pra trás a fábrica de macarrão.

Além de imprimir ritmo, no fragmento acima a repetição estabelece humor,

quando após várias ações descritas no pretérito perfeito referindo-se a algo positivo, ligar,

arrumar seguem-se as duas frases:

(13)

e nunca mais a fábrica de massas funcionou

nunca mais conseguiu fazer macarrão

Imaginem uma fábrica de massas que não consegue mais fabricar macarrão, na

repetição e hipérbole jaz a ironia dessa asserção.

5.2.3. O uso de imagens

Bosi (1979), ao comentar sobre a teoria psicossocial de Halbwachs nos mostra que:

“Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,

repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória

não é um sonho é trabalho. [...] Halbwachs amarra a memória da pessoa à

memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memória

coletiva da sociedade. (Bosi,1979:55)”

Já para Tannen (1989), o uso de imagens descritas ou sugeridas podem criar

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119

envolvimento em uma interação, assim como detalhes específicos podem desencadear

memórias que despertam emoções.

Tannen (ibidem) nos mostra como as imagens possuem poder em comunicar

significados e emoções por meio da evocação de cenas, especialmente no que diz respeito

ao papel do detalhe, ou seja, ao fornecer detalhes o falante faz com que o ouvinte imagine

cenas e situações, objetos, idéias e emoções, criando um maior envolvimento e imprimindo

dramaticidade ao relato.

Sendo assim, vejamos como Renato no fragmento abaixo relata a chegada de seu

navio ao Rio de Janeiro.

Fragmento 14

62 Renato Aquilo, aquilo, foi. Me deixou a maior lembrança do mundo! embarquei

vinte, trinta, vinte e nove de julho! Desembarquei julho, vinte e um

63 Sandra Hã, hã

64 Renato Na madrugaDA, vou falar português, ( ) torto, como meu italiano. ( ) o

Cristo redentor com o braço aberto, porque o Marconi. Tinha dato a luce

65 Sandra ahã

66 Renato Quando cheguei lá

67 Sandra Quando chegou. Dia viiinte e nove..?

68 Renato Cheguei dia, vinte e um

69 Sandra Vinte um de julho

70 Renato De julho

71 Sandra De que ano?

72 Renato Mille novecentos e quarenta e nove

73 Sandra Quarenta e nove

74 Renato Quarenta e nove. A primeira lembrança é aquilo que não me) esqueço.

Um outro patrício, que que ( ) (.) meu pai era rientrato. Que vim com o

meu pai pra cá era um rapazi novo. (da Itália. Fui pra Genova, de

Genova pro Rio de Janeiro. Fui pro porto. ma quando chegamos lá de

madrugaDA! Dia vinte e um, de de julho! (..) gritou. Nós tamo no Rio de

Janeiro! Chegou um patrício e gritou. Ó tem o Cristo Redento!

Levantei (.) levantei, tirei o pijama. Dormíamos em cima, no navio. A, o

Cristo redentor de braços abertos sobre a pedra. Fiquei encantado com

aquilo (..) mas passaram cinqüenta e Poucos anos. Sempre comprava o

cartão, cartão. Que lá na minha terra se chama cartolina. Cartolina. Do

cristo redentor

Retomo a Tannen ao reinterar que “detalhes específicos desencadeiam memórias

que desencadeiam emoções”. Chamo a atenção para o fato de Renato se comover ao

mostrar o poster em sua sala e narrar a primeira vez que viu a estátua do Cristo Redentor

ainda no navio, ao aproximar-se da cidade do Rio de Janeiro, onde daria início a uma nova

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120

vida.

Neste fragmento, o narrador utiliza-se de detalhes para construir seu relato. Renato,

para explicar a existência do pôster do Cristo Redentor em sua sala ao lado do pôster de sua

cidade natal, nos fala sobre o retorno de seu pai, no qual decide levar seu filho, Renato,

para o Brasil, da sua ida até o porto de Gênova, da data de partida e de chegada. Também

nos fala que durante a madrugada um conterrâneo grita do tombadilho do navio “Ó tem o

Cristo Redentor”. Imediatamente esse relato me transporta para diversas imagens de

imigrantes retratados em filmes ao se aproximarem à terra, mais especificamente à

passagem do romance de Barrico, que teve uma versão cinematográfica, na qual a

personagem principal, Millenovecento diz que sempre há um que primeiro avista a estátua

da liberdade, nesse caso, o Cristo Redentor.

Outro detalhe que contribui para a montagem do cenário é o fato de Renato levantar,

tirar o pijama e declarar que dormiam em cima do navio, detalhe importante para

compormos a cena de sua chegada e o fato de posteriormente, em outro momento da

narrativa, Renato declarar que “viajavam como animais”, tecendo bem as condições de

viagem e o modo como emigrou.

Ao dizer: “a primeira lembraça é aquilo que não me esqueço”, Renato chama a

atenção de seus interlocutores para o que irá relatar, pois isto faz parte de suas lembranças,

suas memórias. Ele cria uma espécie de moldura para o que irá relatar.

O que Renato dirá a seguir serão fatos referentes ao seu passado que estavam sendo

ativados naquele momento. Este exercício de “ativação” da memória não cria somente

envolvimento da parte do falante, mas dá também uma impressão de verossimilhança ao

ouvinte (cf. Tannen, 1989:141).

Além do uso da imagem, para imprimir dramaticidade a sua fala, Renato utiliza-se

do diálogo construído, exemplo a seguir em negrito:

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121

(14.1)

Chegou um patrício e gritou. “Ó tem o Cristo Redento!”

Esse tipo de recurso dá a fala do narrador um tom de veracidade, além de imprimir

dinamicidade.

5.2.4. O uso de diálogo construído

Renato imprime dramaticidade no seu discurso utilizando o recurso denominado

diálogo construído, termo proposto por Tannen (1989) para marcar a criatividade do falante

ao utilizar-se da fala de uma outra pessoas ou de sua própria fala em um outro momento,

como no caso anteriormente apresentado. Para a autora a conceituação tradicional de fala

relatada, discurso direto/indireto ou citação não demonstram esta importante característica.

No exemplo a seguir Renato nos conta como eram as habitações por onde morou no

início de sua vida no Brasil

Fragmento 15

632 Renato Lá sabia da vida dos outros, sabia de tudo. tinha o banheiro coletivo. tinha

que fazer fila, espera que vou io. O primeiro saia espera mais um mocadinho

633 Maria Ele comeu o pão que o diabo amassou nessa época

634 Renato Bom, isso passou porque eu não vou fazer isso não “eu vou arranjar outro,

outro negócio”. Um dia um sujeito ordinário trouxe uma mundana, uma

vagabunda que todo mundo ali escutou ahhh. O patrício, o outro compadre

falou “ela quer fazer xixi leva ela porta afora”, eles brigaram com o outro

Patrício então aconteceu uma coisa, lá no Catumbi em frente a S. tinha uma

igreja bonita ( ) Nazaré então disse a S.o. minha mãe tinha batizado uma filha

dele. Casou por correspondência Sem conhecer o marido, por retrato, ho

detto “compadre tu pode dormir aqui que te arranjo uma casa, uma

vaga” nos primeiros anos do lado da minha cama tinha um português “e o

banheiro compadre?” “O banheiro é um sacrifício” ha detto. “tem só, um

só banheiro se você quiser ir e outra pessoa também”. Saí de um inferno e

caí em outro inferno (risos) mas não falou isso. Falou Assim: “tem que

apanhar acqua, no balde, na caçamba”. Falou Assim o português: “lá

embaixo tem uma escada, tem que jogar água quando fizer a

necessidade, senão outro reclama”. Se estiver falando mentira que Deus me

cegue. Tinha que ficar assim ó, era só um duto de cimento. chegava lá e bla

bla bla.

um bonito dia de noite escutei um sujeito que tossia: “cof cof.” do meu lado

tinha um rapaz que dormia quando de manhã. Esse camarada com uma folha

de jornal toda cheia de sangue

Page 122: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

122

635 Sandra Tuberculose?

636 Renato Tuberculose. Quando cheguei um compadre disse “tem um trinta e três”,

não sabia o que era esse trinta e três ha ha ha

637 Sandra Trinta e três era tuberculoso?

638 Renato “Un po’ di tísica” ha detto. Eu disse: “compadre amanhã vou sair daqui”.

“Não”, disse “que te arranjo um lugar perto da janela”, mas eu saí e fui

morar no grajaú, na rua Dona A. ( )

Quartos sem privacidade, pois na verdade alugava-se uma vaga em um quarto cujas

camas eram dispostas lado a lado; um único banheiro para todos os ocupantes da pensão,

sem descarga, um companheiro com tuberculose. Diante dessas condições Renato decide

mudar-se para o Grajaú outro bairro no qual durante a década de cinqüenta os italianos se

instalaram.

No fragmento quinze podemos notar que Renato utiliza amplamente o recurso

denominado por Tannen de diálogo construído, assinalados em negrito e dispostos entre

aspas, ora para citar uma frase sua como, por exemplo, em:

(15.1)

Eu disse: “compadre amanhã vou sair daqui”

Ora referindo-se a fala do amigo que arrumara-lhe a vaga:

(15.2)

“Não”, disse “que te arranjo um lugar perto da janela”

Também Vittorio se vale do diálogo construído ao relatar sua história de vida

e, talvez por ter tido uma das maiores empresas de Barra do Piraí e ter o nome de sua

família ligado a essa empresa, em grande parte de seu relato nos conta fatos relativos

a seu trabalho. Trabalho e família se fundem a ponto de ele concordar comigo na

metáfora de que a Del Fiore era uma grande família, como veremos a seguir.

Fragmento 16

457 Vittorio Depois ( ) virou pra mim e disse: “Doutor Vittorio o senhor não tem

juízo”. E eu; “Por quê?” Ele: “Porque enquanto o senhor tinha Del

Fiore, nem aparecia na rua, agora o senhor vive pelas esquinas, o

senhor se arrisca”. E falei: “Não meu filho, quem não deve não teme”.

Eu nunca tive ninguém que me xingasse na rua, pelo contrário, teve fatos

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123

que me marcaram gente com lágrimas nos olhos: “se voltar eu trabalho de

graça pro senhor no início”. Coisa bonita, né.

Sandra [Bonita... Era uma família]

458 Vittorio A Del Fiore era uma grande família.

Interessante notar, que em um dos diálogos construídos, Vittorio cita o

provérbio “quem não deve não teme”. Tanto ele como Renato, ao utilizarem o

diálogo construído citam provérbios, que são expressões de visão cultural de uma

sociedade, alguns dos provérbios citados são em língua portuguesa, outros em

italiano e há também a tradução, por parte de Renato, de um provérbio italiano para o

português.

Fragmento 17

489 Vittorio E os provérbios italianos, são maravilhosos. Quantos... tem um então que é

fantástico! Papai sempre gostava... Um dizia assim: “se ognuno in fronte

scritto portasse i propri affanni ahimé quanti, che invidia fan, farebbero

pietà”. É difícil até de Traduzir. Se ognuno in fronte scritto portasse i propri

affanni,na própria cara, ahimé quanti, quando... Olha que bonito isso.

Muita gente que nos faz inveja...

490 Sandra É aquela coisa, todo mundo tem seus problemas, alguns não demonstram...

Vitório diz ser um apaixonado pela língua portuguesa, mas nem por isso deixa

de admirar a língua italiana, como nos relata, transita muito bem pelos dois mundos,

na Itália, mimetiza-se aos outros italianos, no Brasil, não teria nem sotaque ao falar

português, ou melhor, revendica para si um sotaque carioca.

Enquanto Vittorio declara seu amor à língua portuguesa e às suas duas

pátrias, Renato nos fala de um ditado sobre o amor que lhe dizia sua avó,

provavelmente em calabrês e por ele traduzido.

Fragmento 18

465 Renato Não ( ) mas pra me casar tem que ser com uma pessoa que eu gosto. Meu

avô dizia, a mãe de minha mãe de noventa e poucos anos “ama quem te

ama. Responda a quem te chama”

Vimos que o diálogo construído serve para referir-se a fala de si mesmo ou de

outrem, no caso dos provérbios se refeririam à fala de uma comunidade, pois, como dito

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124

anteriormente, espelham a identidade sócio-cultural de uma comunidade. Afinal, assim

como as identidades nos discursos são construídas, a partir de recursos como os vistos

nesse capítulo os provérbios servem como exemplos de visão de mundo dos integrantes de

determinada comunidade.

Além dos recursos até o momento exemplificados, temos no fragmento dois

exemplo do recurso denominado por Falk (1979) dueto conversacional, como veremos a

seguir.

5.2.5. O dueto conversacional

Notem o contar cooperativo de Alessandro e Vittorio, duas gerações do que Paul

Thompson denomina detentores das histórias de família.

(2.1)

113 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?

O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos e

setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e noventa e

sete.

Ele veio então pra Barra do Piraí?

É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo com

vinte e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas caldeiras do navio

pra chegar com um trocadinho aqui. Ele era analfabeto... você vê que

coisa bonita o avô que era analfabeto que montou a Del Fiore o outro

que era que falava latim, então tem os dois extremos,uma coisa

bonita, né.

E que ano, que ano que ele veio?

Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos e

noventa e sete

Desceu aonde?

Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o

endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.

Hum-hum.

Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem nada,

tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se conheceram

no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te levar lá, mas eu tenho

que trabalhar, mas no final do meu trabalho”... Então ele passou o dia

todo entregando pão junto com ele...

114 Vittorio

115 Alessandro

116 Vittorio

117 Alessandro

118 Vittorio

119 Alessandro

120 Vittorio

121 Sandra

122 Vittorio

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125

Dantas (2000), cita Falk (1979:17) para conceituar dueto como “uma produção

conjunta de falantes, na qual estes se associam em um jogo conversacional através de um

mesmo objetivo comunicativo.”, ou seja, o dueto caracteriza-se pela participação de duas

pessoas ao introduzir novas informações a uma terceira pessoa.

Exatamente como durante um verdadeiro “bate-bola”, para usar uma metáfora

baseada em uma manifestação cultural tão querida de Vittorio e de grande parte de

brasileiros e italianos, o futebol, Alessandro propõe tópicos como que se guiando o pai na

explicação sobre a vinda de seu avô, história essa que faz parte da história familiar.

Interessante notar que durante essa co-construção entre pai e filho para me relatarem

a história da vinda do primeiro Mandorla ao Brasil e de sua fixação em Barra do Piraí,

Alessandro risca passar ao posto do entrevistador, em decorrência da quantidade de

perguntas direcionadas ao pai, enquanto eu me atenho somente a sinais paralingüísticos e

não verbais para demonstrar meu interesse pelo relato.

Para me explicarem os motivos da vinda do pai de Renato para o Brasil, ele Maria

também formam um dueto, como veremos a seguir:

Fragmento 19

538 Renato Aquele homem. Aquele homem com caráter já ( )

539 Maria Ele achava que ele veio pra cá pra poder melhorar a situação da

família lá e tudo que lá era guerra, né?

540 Renato Fazia dinheiro pra fazer a dote pras filhas

541 Sandra ahã

542 Maria é porque lá tinha que ter dote

543 Renato Dieci mila lire. ou me dá dieci mila lire ou não me caso. então não quer a

ela. como o meu caso

544 Sandra (risos)

545 Maria É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo

546 Renato Agora virou tutto. é tudo o contrário

547 Sandra ai em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a sua mãe. ficou

548 Maria ai voltou

549 Renato com as minhas duas irmãs, minhas irmãs casadas lá

550 Maria tinha netos lá que ele nem conhecia. Ele era mais apegado, viu nascer os

netos aqui, né? um tinha o nome dele o outro o da esposa dele

551 Renato aqui tem um costume, ( ) se vem donna tem que botar o nome da sua

mãe, tem que botar o nome dela. Do pai a mesma coisa

Então.

552 Maria Do nonno entendeu?

Sandra [ahã]

553 Renato É do nonno. Tudo

554 Maria

Renato Por isso minha filha chama R. C. de O. Dattero

[C.]

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126

Diferente do dueto criado por Alessandro e Vittorio, Maria e Renato me explicam as

razões pelas quais o pai de Renato depois de ganhar a vida no Brasil, regressa para Itália.

No fragmento 19 atestamos um “vero e proprio Valser”, entre o casal. A harmonia

empregada pelos dois me deixam à vontade para fazer meus questionamentos o que não

quebra o ritmo de co-construção dos participantes.

A seguir traço algumas considerações sobre pontos em comum e diferenças das

identidades construídas por Renato e Vittorio.

5.3. Conexões e Desvios: As trajetórias de Renato e Vittorio

Neste subitem, analiso como os entrevistados estruturam suas narrativas para contar

suas trajetórias de vida, ou seja, como os diferentes aspectos da experiência da emigração

presentes nos relatos são organizados tendo-se em vista o trabalho de (re)construção das

identidades sociais. Além de como os narradores constroem suas experiências passadas

tendo em vista a sua perspectiva de presente, ou seja, estando já integrados e sendo atuais

membros da sociedade barrense e não simplesmente representantes da “colônia italiana” em

Barra do Piraí. Soma-se a isso o fato de ambos terem se casado com brasileiras, barrenses

de boa família.

O tópico família é muito importante para ambos, pois podemos perceber que a tem

como um bem, uma grande conquista. Porém, a experiência de casar-se com uma

professora, brasileira, de boa família, e com ela constituído família é vivenciada de modo

diverso.

Renato aponta para o preconceito que a colônia italiana, que pregava o casamento

entre membros da mesma, tinha para com os casamentos entre italianos e brasileiras

(turnos: 487, 463) e esclarece que seu casamento deu certo porque, como sua avó dizia,

escutou seu coração (turno 465). O curioso é que ao mesmo tempo, que diz ser tão

estrangeiro como ela (turno 487), Renato a enaltece dizendo nunca ter se decepcionado com

a esposa que sempre se comportou como verdadeira Luzzitana (turno 752,754), ou seja,

casou-se com uma brasileira, mas que se comporta tão bem como as italianas, seja por seu

Page 127: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

127

comportamento ao receber pessoas em casa, seja pela perfeita execução dos pratos italianos

que aprendeu a fazer com Renato, pois que por ocasião de seu casamento não sabia

cozinhar (turno 807).

Já Vittorio não parece ter vivenciado esse preconceito, talvez por seu pai ter-se

casado com sua mãe que era filha de italianos, mas havia nascido no Brasil, ou seja, era

brasileira.

Vittorio, mostra orgulho de ter duas pátrias (turno 239) e atribui a esposa o caráter e

maturidade necessários para a manutenção de seu casamento nos primeiros anos (turno

366), período no qual comportava-se mal com a esposa, pois ao invés de atentar para suas

necessidades, agia em seu confronto com grosserias e estupidez (turno 366), marcando a si

próprio com o esteriótipo do machão.

Porém, cabe ressaltar que ambos vêem suas esposas como companheiras

importantes para os negócios da família. Maria, com sua profissão de professora garantia

estabilidade financeira (turno 479), na medida em que seu salário era algo certo, com o qual

o casal poderia contar, o que não ocorre com a profissão de comerciante do marido (turno

477), que depende das vendas. Além de receber bem as visitas, fazendo com que elas

sentissem-se em casa, como também o fazia Helena que ajudava o marido executivo

relacionando-se bem com seus clientes e suas esposas.

O traquejo social e a conduta de ambas são enfatizadas por Renato e Vittorio que,

cada um a seu modo, sinalizam a apreciação pelo sexo feminino e relativo sucesso com esse

público, além de trazerem à baila o tabu da virgindade.

Renato diz ser Maria, apesar de suas pernas bonitas e morenice (turno 688), a mais

feia dentre todas as suas namoradas, mas a da qual mais gosta e a mais recatada,

enfatizando ter levado meses para dar-lhe um simples beijo e que o fazia dormir em um

hotel, ao passo que outras o convidavam para dormir em suas casas. Como podemos ver a

seguir:

730 Renato ( ) namorada ( ) sabe por que? Meu pai era uma pessoa muito esquisito (.)

era muito sério, se namoravo uma filha de patrício “Vê lá o que que você

vai fazer, hã.” Como essa minha senhora era conhecida do meu tio que ( )

“Vê lá não deixa teu tio comcara grande não, hein?” compreendeu? As

mulheres me queriam

731 Sandra o senhor era bonito, me mostrou a foto

732 Renato hã?

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128

733 Sandra o senhor já me mostrou a foto, de quando o senhor era novo

734 Renato hã?

735 Sandra o senhor me mostrou a foto, o senhor era bonito, né?

736 Renato é é e: aquela quantos anos eu tinha. Cheguei aqui com vinte e quatro, vinte

sete eu tinha, era novo, era novo, compreendeu? e ela é ciumenta

[cochichando, em tom de confidência] de todas as namoradas que namorei

ela era a mais feia, mas é a que eu mais gosto.

737 Sandra (risos)

738 Renato palavra de honra, te juro. palavra de honra, tu sabe o por quê? Eu não vou

dizer a sua pessoa porque ia ser um pouco pesado, mas quando você

gostava e a pessoa te convidava pra ir a casa naquela época, que falava de

verginità, que não era mais Virgem era babaca o homem

739 Sandra hum hum

740 Renato Eu só fui beijar ela depois de três, quatro, cinco, seis MESes demorada

741 Sandra (risos)

742 Renato e com posição social e tudo, namorei é que é uma delícia todo dia pegava o

bondinho, no largo das neves. Agora não sei mais, sabe o bondinho?

743 Sandra hum, hum, tem tem o bondinho ainda

744 Renato compreendeu? ( ) palavra de deus te juro que estou sendo sincero

745 Sandra ela fazia jogo duro (risos)

746 Renato ma no, ela era sincera

747 Sandra ahã

748 Renato está se passando isso, isso e isso comigo. Na minha casa tem isso isso e

isso. Você não pode dormir na minha casa, tem que dormir no hotel. Se

fosse outra “não pode dormir aqui” e tal Ahh pára com isso!

749 Sandra (risos)

750 Renato compreendeu? pra mim de todas as namoradas que tive eu amo essa. por

mim se ela morresse eu ia junto. nós somos assim ó assim ó (fazendo sinal

com as mãos de unha e carne). Não deixa morrer não amor. Não é por

interesse é pelo caráter (som de ônibus) tem um caráter permanente um

caráter de ( ) mas a mais feia é ela.

751 Sandra (risos) fica irritada, né? mas tem que ficar (risos)

752 Renato e nunca me deixou decepcionado quando vinha um patrício, ela sempre

pronta, uma vez veio um patrício, filho, sobrinho do meu irmão, meu primo

que mora em Itatiaia chama B. A., a mãe se chama E. é de Milão um

engenheiro telefonaram, mas como é que você engenheiro me telefona de

Milão? e o B. como é que você está se arranjando por ai? Aqui tem uma

Luzzitana! A Luzzitana era a mulher do Renato (com orgulho) porque ela já

teve em Itália, apanhou o costume, a minha prima lá: “é uma boa moça pros

filhos então minha mulher diz, vamos fazer aquilo”.

Após me perguntar se eu era casada, Vittorio inicia o tópico sobre virgindade, para

logo em seguida, talvez com o intuito de evitar uma gafe, apontar para o fato de alguns

homens optem por se casar virgem.

Inicialmente, diz não ser contrário para logo após reforçar a idéia de aproveitar a

juventude, deixando subentendido que ele não foi partidário de Cacá, o jogador de futebol

que, segundo divulgado pela mídia, que se casou virgem.

Page 129: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

129

499 Vittorio É tem gente que casa virgem. Tem homem que casa virgem, mas tudo bem,

não tenho nada contra. Eu até tenho algo contra, que eu acho que eu tenho hoje

tranqüilidade com a minha mulher, porque o quê tinha de errado eu fiz quando

podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e triste porque não fez

na juventude o quê tinha que fazer. Tudo que você possa imaginar de errado eu

fiz. Hoje eu não sinto falta. O que tinha de ruim eu consertei... Um dia eu

cheguei no médico e ele falou: “Quê que você ta fazendo aqui?” E eu: Vim

pra você me operar. Ele: “O quê é isso? Operar o quê?” “Cálculo renal”. E aí

mostrei os exames pra ele, pra resolver logo.

Por sua vez, quando o assunto é a emigração Renato e Vittorio se aproximam no

que se refere às histórias de seu pai e avô, respectivamente, pois ambos eram analfabetos e

no Brasil conseguiram o sustento de seus filhos, sendo que o avô de Vittorio construiu um

verdadeiro império no ramo alimentício em Barra do Piraí, daí a diferença da vinda de

Vittorio para de Renato.

Vittorio, veio como o “príncipe-herdeiro”, sua mãe havia falecido poucos meses

após seu nascimento e após a guerra seu avô prometeu dar-lhe a parte da herança que cabia

a filha ao neto, caso esse viesse para o Brasil, morar com ele. Deste modo, aos 13 anos o

menino Vittorio embarca em um avião, uma verdadeira aventura, pois a aviação civil havia

começado há pouco tempo e a aeronave comportava apenas poucos passageiros, além de

enguiçar constantemente, o que contribuía para o caráter de aventura. Ao chegar em Barra

do Piraí, Vittorio teve professor particular de português e deu seguimento a seus estudos,

preparando se para assumir a gestão da empresa de se avô, coube-lhe os setores de vendas e

marketing, chegou a ter 120 vendedores e esteve à frente desses setores até a falência da

Del Fiore.

Deste modo, temos duas imagens da emigração. Enquanto Vittorio sozinho cruzava

os céus, pioneiro como faz questão de nos contar sobre seu avô, Renato com seu pai

singrava os mares, como animais, pois as condições dos navios eram péssimas e a viagem

longa.

Ao chegar ao Rio, aos 24 anos, Renato, cujo pai decidira trazê-lo consigo por causa

de sua profissão de alfaiate, estranha os costumes locais, se depara com a realidade das

pobres instalações para imigrantes e trabalha, trabalha, trabalha, não dando continuidade

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130

aos estudos e aprendendo a língua portuguesa no convívio com imigrantes portugueses e

brasileiros.

Por pouco tempo desempenha o trabalho de alfaiate, pois percebe que não ganharia

muito dinheiro e passa a vender coisas, até, já morando em Barra do Piraí, montar um bar e

posteriormente cantinas em colégios da cidade.

Mais uma vez, o “fare la merica” toma o significado de constituir família e, por

meio de muito trabalho, garantir-lhe um teto, dar estudos aos filhos para que eles se

sustentem, enfim, mantê-la saudável. Sob esse aspecto ambos foram bem sucedidos.

A seguir teço as últimas considerações a respeito do estudo desenvolvido nessa

pesquisa.

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TREM DAS ONZE

Não posso ficar nem mais um minuto com você

Sinto muito amor, mas não pode ser

Moro em Jaçanã

Se eu perder esse trem

Que sai agora às onze horas

Só amanhã de manhã

Não posso ficar nem mais um minuto com você

Sinto muito amor, mas não pode ser

Moro em Jaçanã

Se eu perder esse trem

Que sai agora às onze horas

Só amanhã de manhã

Além disso mulher, tem outra coisa

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar

Sou filho único, tenho minha casa prá olhar

Não posso ficar, não posso ficar...

Não posso ficar nem mais um minuto com você

Sinto muito amor, mas não pode ser

Moro em Jaçanã

Se eu perder esse trem

Que sai agora às onze horas

Só amanhã de manhã

Além disso mulher, tem outra coisa

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar

Sou filho único, tenho minha casa prá olhar

Não posso ficar, não posso ficar...

(Samba: Letra e Música de Adoniran Barbosa, 1965)

Page 132: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

A PLATAFORMA: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa, abordo questões que acredito nos interessam porque lidam com

discursos com os quais nos deparamos em nosso quotidiano. Lido com o mundo dos

seres humanos histórico e socialmente construídos com a linguagem como sistema

simbólico compartilhado e como uma prática social; com a construção narrativa e; com

a percepção de a forma como os seres humanos estão agindo no mundo pode decorrer

de ideologias presentes em seus discursos.

Ressalto que trabalho com narrativas contadas por membros-representantes de

uma comunidade italiana no sul fluminense que emigraram após a segunda guerra

mundial e cujos ancestrais vieram ao Brasil no final do século XIX ou início do século

XX, de acordo com as grandes levas de imigração, como visto no capítulo 3 e cujas

estórias de vida encontram-se nos anexos e foram por mim recontadas no capítulo 2, em

breve avô e pai, apesar de analfabetos, por meio do comércio, se estabeleceram, uns

acumulando maior riqueza do que os outros, mas todos bem sucedidos no que diz

respeito a fare la merica.

E, assim como seus ancestrais, também Renato e Vittorio fanno la merica , se a

lermos como constituir família e dar aos membros destas possibilidade de uma vida

melhor, fazendo com que seus filhos estudem, que tenham um lar e trabalho, bem como

o fazem Renato e Vittorio.

Os narradores descrevem o período do pós-guerra como de miséria para o país,

mas encontram na família o esteio e sentem a falta desse berço ao afastarem-se, até

constituir a sua própria família e assegurar-lhes um lar como refúgio, reflexo de si e

conexão com o mundo exterior, como vimos no capítulo 4.

O processo de emigração, como visto foi diferente para ambos, posto que um

vinha de avião, um luxo para a época e o outro como um animal em um navio. De certa

forma o caráter de aventura os une nessa experiência.

A análise das narrativas mostra que o processo de reconstrução das identidades

foi complexo, já que passaram por vários estágios antes de se tornarem membros da

comunidade barrense.

Certas experiências vividas pelos narradores, segundo suas narrativas, os

levaram, de forma gradativa, a mudanças de paradigmas na condução de suas

identidades sociais.

Page 133: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

133

Nesta pesquisa os entrevistados constroem suas narrativas de modo a mostrar

que a reconstrução de suas identidades sociais se deu por meio do contato com os

costumes brasileiros e com a língua portuguesa, contato esse ampliado ao se casarem

com brasileiras e terem filhos brasileiros. Para que pudessem trabalhar, e no caso de

Vittorio também estudar, precisaram aprender a língua portuguesa, ao menos tanto

quanto os conhecimentos de língua italiana, que no caso de eles era uma segunda língua,

dado que a língua materna era em um caso o dialeto da Calábria e no outro da

Campagna.

Na análise, também procurei demonstrar como os narradores fazem uso de

algumas estratégias de envolvimento para construírem as suas narrativas de história de

vida e ratificarem suas identidades. Dentre essas estratégias se destacam o uso de

diálogo construído, o de repetições e imagens e, o próprio discurso narrativo, o contar

histórias, como uma tática que implica a co-construção e, confere ao ouvinte um papel

de colaborador ativo na construção de sua estória de vida. Nessas interações discursivas,

formaram-se “duetos conversacionais” (Falk: 1979), caracterizados pelo contar

conjunto, cooperativo entre a entrevistadora, o entrevistado e seus familiares.

Deste modo, por meio dos temas escolhidos pelo entrevistado para narrar suas

histórias de vida e pelas estratégias de envolvimento por eles utilizadas, pudemos atestar

as diferentes dimensões da identidade dos entrevistados.

Evidencio que para se adequarem ao global e o local, Renato e Vittorio,

construíram diversas identidades, ao se definirem implícita ou explicitamente como

calabrês, salernitano, italiano, presença italiana no Brasil.

Assim como as identidades, a compreensão do espaço, para o indivíduo que

vivenciam as tensões do mundo atual, posto que os fenômenos da globalização os

coloca cada vez mais em contato com outras realidades, com outros indivíduos fazendo

com que eles se construam e re-construam cada vez mais, fato esse que também se

reflete no seu modo de habitar, como visto no capítulo 4.

O habitar doméstico segundo a forma como ele é percebido e vivenciado pelos

habitantes, esse habitar é tão amplo quanto a própria vida de seus indivíduos. Não

ocorre isoladamente, ou independentemente das interferências externas, as quais não

apenas permeiam a vida doméstica, mas a enriquecem, tornando-se privadas e

interferindo nos sentidos que damos a ela. Talvez por isso, possamos compreender a

Page 134: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

134

razão pela qual as pessoas ao falarem de suas casas, tragam à tona não apenas suas

relações formais com o espaço doméstico, mas a própria maneira de encarar a vida.

Minha língua minha pátria, ao analisarmos o discurso, podemos não só

compreender a identidade, mas suas ideologias, seu modo de viver, que são retratados

quer a partir da linguagem quer a partir da materialização de seus desejos e formas de se

relacionar com o espaço privado, o espaço eleito para ser seu para retratar seu eu, para

servir de refúgio e local de reflexão. Extensão visível do seu íntimo e de suas relações

com o mundo exterior.

Acredito que essa pesquisa contribua para que o barrense lance um novo olhar

para si e para sua cidade e espero que outras pesquisas sejam realizadas no intuito de

preservar a memória das diversas comunidades que se encontram no Município de Barra

do Piraí e municípios vizinhos que formam o roteiro denominado Vale do Café,

situados no sul fluminense.

Page 135: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

Com Licença Poética

Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir. Não tão feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos (dor não é amargura).

Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado In: http://www.releituras.com/aprado_bio.asp)

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Page 152: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

ANEXOS

Page 153: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO

… pausa não medida

(2.3) pausa medida

. entonação descendente ou final de elocução

? entonação ascendente

, entonação de continuidade

- parada súbita

= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas

sublinhado ênfase

MAIÚSCULA fala em voz alta ou muita ênfase

°palavra° fala em voz baixa

>palavra< fala mais rápida

<palavra> fala mais lenta

: ou :: alongamentos

[ início de sobreposição de falas

] final de sobreposição de falas

( ) fala não compreendida

(palavra) fala duvidosa

(( )) comentário do analista, descrição de atividade não verbal

“palavra” fala relatada

↑ subida de entonação

↓ descida de entonação

hh aspiração ou riso

.hh inspiração

Convenções baseadas nos estudos de Análise da Conversação (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974; Atkinson e

Heritage, 1984), incorporando símbolos sugeridos Schiffrin (1987), Tannen (1989), Castilho e Petri (1987),

Gago (2002).

Page 154: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

ENTREVISTA RENATO

Page 155: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

155

Entrevista realizada em 15 de março de 2007 01 01 Renato

Maria

( )

02 02 Sandra É eu saltei no Barão do rio Bonito, na escola

03 03 Renato ( ) minha filha

04 04 Sandra tranquilo

05 05 Maria Então quando quiser

06 06 Renato ( )

07 07 Maria Ah o menino da I.

08 08 Sandra É, ele falou

09 09 Maria Ele falou ?

10 10 Renato Você apanhou o ônibus? O grande ou pequeno?

11 11 Sandra pequeno

12 12 Renato Saltou na padaria? Na padaria, lá?

13 13 Sandra bem

14 14 Renato ( ) de lá pra cá?

15 15 Sandra Eu subi, né? (barulho de xícaras sendo colocadas)

16 16 Renato Subiu?

17 17 Maria Nãaaaaaaao. Ela subi/ ela parou. Foi... no Barão do Rio

18 bonito?

18 19 Sandra Isso. Na escola. Ai vim subindo

19 20 Maria Veio subindo a pÉ.

20 21 Sandra

Renato

Maria

Isso

[ a pé? Aaaaaaaaaaaaaaaaaah

[ah!

21 22 Renato Danada!

22 23 Sandra Em menos de dez minutos, eu

23 24 Maria

Sandra

Aqui não é longe . Aqui é considerado centro. Entendeu?

[ahã, ahã]

24 25 Renato Ela saltou na light

25 26 Maria ( )

26 27 Sandra

Maria

A ladeirinha

[( )]

27 28 Sandra Barão do Rio Bonito, né? A escola

28 29 Renato ( )

29 30 Sandra Passei pelo Carioca, pela igreeeja

30 31 Maria Pelo beco do Carioca

31 32 Renato Ela saltou em frente ao açougue. No Pinheiro

32 33 Maria É é certeza

33 34 Renato

Maria

( )

É, é

34 35 Renato No açougue parou

35 36 Maria Justamente, ai na própria calçada ela veio. Isso mesmo

Page 156: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

156

Renato [é, é]

36 37 Sandra

Maria

( ) porque até a rodoviária pra voltar...

[é, é]

37 38 Sandra Você leva mais tempo do que subindo

38 39 Maria Justamente, mas ai eu pensei. Meu deus do céu ela vai parar lá

40

Renato

no Belvedere. Isso na minha cabeça

[( )]

39 41 Maria

Renato

Você falou, peguei o ônibus

[( )]

40 42 Renato Aliás você vai na rodoviária, depois passa aqui quando vai na

43 ( ) na na na na subida do Vitório. O Três Rios que vai pra

44 Resende não passa por cima, passa por baixo. Ai você apanha

41 45

Maria

ele lá na rodoviária.

[ahhhhhhh]

42 46 Renato Tem um ônibus que de Três Rios vai a Resende. Pega na

47 Rodoviária e sobe por aqui.

[e...]

43 48 Maria Vou até ali passar um cafezinho fresquinho

44 49 Sandra Ta, obrigada

45 50 Maria

Renato

É você quer cafezinho só ou acompanhado. ou

[ o almoço]

51 espera o almoço?

46 52 Renato O almoço.

47 53 Sandra Não gente.. que isso (sem graça)

48 54 Renato

Maria

Dez horas, quando ... onze e meia

[ ( ) ] (voz afastando-se em direção à cozinha)

49 55 Renato Oi, o banheiro ta aqui. Tem outro em cima e tem lá

50 56 Sandra ok

51 57 Renato ( )

52 58 Sandra Ha ha

53 59 Sandra brigada

54 60 Renato Nada, nada nada

61 Ai eu voltei hoje pra conversar com o senhor de nooovo, ainda

[( )] aquela história

55 62 Sandra

Maria

(risos) contar de novo

[( )] (retornando da cozinha)

56 63 Renato ( ) você conhece aquilo? (referindo-se a um cartaz turístico

do Rio de Janeiro com o Cristo redentor)

57 64 Sandra De Luzzi

58 65 Renato no

59 66 Sandra

Renato

Não é é uuu, aqui é o RIO!

[uuu, uuu]

Page 157: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

157

60 67 Renato U Cristo Redentor e o pão de açúcar

61 68 Sandra Foi agora? (risos)

62 69 Renato Aquilo, aquilo, foi. Me deixou a maior lembrança do mundo!

70 embarquei vinte, trinta, vinte e nove de julho! desembarquei

71 julho, vinte e um

63 72 Sandra Hã, hã

64 73 Renato Na madrugaDA, vou falar português, ( ) torto, como meu

74 italiano. ( ) o Cristo redentor com o braço aberto, porque o

75 marconi. Tinha dato a luce

65 76 Sandra ahã

66 77 Renato Quando cheguei lá

67 78 Sandra Quando chegou. Dia viiinte e nove..?

68 79 Renato Cheguei dia, vinte e um

69 80 Sandra Vinte um de julho

70 81 Renato De julho

71 82 Sandra De que ano?

72 83 Renato Mille novecentos e quarenta e nove

73 84 Sandra Quarenta e nove

74 85 Renato Quarenta e nove. A primeira lembrança é aquilo que não me)

86 esqueço. Um outro patrício, que que ( ) (.) meu pai era

87 rientrato. Que vim com o meu pai pra cá era um rapazi novo. (

88 da Itália. Fui pra Genova, de Genova pro Rio de Janeiro. Fui

89 pro porto. ma quando chegamos lá de madrugaDA! Dia vinte e

90 um, de de julho! (..) gritou. Nós tamo no Rio de Janeiro!

91 Chegou um patrício e gritou. Ó tem o Cristo Redento!

92 Levantei (.) levantei, tirei o pijama. Dormíamos em cima, no

93 navio. A, o Cristo redentor de braços abertos sobre a pedra.

94 Fiquei encantado com aquilo (..) mas passaram cinqüenta e

95 Poucos anos. Sempre comprava o cartão, cartão. Que lá na mi

96 nha terra se chama cartolina. Cartolina. Do cristo redentor.tem

97 O M., que tem, o M., que tem uma casa no Rio de Janeiro

98 Eu disse: “M. quando tu vai no Rio de Janeiro” ( ) disse que

99 você vinha aqui. Eu disse: “o M. faz um favor pra mim?” (..)

100 ( ) “um favor”, eu disse “você me apanha? um cartão postal

101 do grande na banca de jornale? (.) em Ipanema ou no Leblon

102 porque eu vi. E o rapaz falou que aquilo não era pra vender.

103 Mas que se eu quisesse ele manda, reproduzia e depois ( )

104 aquilo foi a primeira lembraça do Rio de Janeiro.”

75 105 Sandra Ai o senhor ( )

76 106 Renato Não, é. Tem um inquilino nosso que tem uma casa no Rio de

107 Janeiro que ta. ( ) aquilo foi a primeira recordação(.) cinquenta

108 e sete anos. Durante todo esse tempo sempre comprava

109 cartolina postal, mandava pra minha irmã. Um dia mandei até

Page 158: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

158

110 Pro padre da igreja. ( ) aquilo foi a primeira lembraça do do

111 Rio de Janeiro.(.)

77 112 Renato É muito bonito, né?

78 113 Sandra é

79 114 Renato Emociona. (.)

80 115 Renato Emociona. Quando ele trouxe perguntei. Quanto é? Ele disse:

116 “Não é nada não. Comprei pra você” Eu disse, “dez, quinze.”

117 ele: “não, não quero. Te dou de presente pra você.” ( ) que tem

118 uma banca lá no Leblon. Na na Ataulfo de Paiva, tem um pat

119 ricio. Que me falou que não podia vender aquilo, porque naq

120 uele dia (.) ele arranjaria outro. E compra aquilo pra mim. Me

121 deu de presente. Em casa tem muitas coisas. Tem também o o

122 pão de açúcar.

81 123 Sandra Isso aqui foi quando?

82 124 Renato Foi feito agora. Três meses, quatro meses atrás.

83 125 Sandra Ah! Ai o senhor colocou lá.

84 126 Renato É. Coloquei lá. Aquilo vai ficar eternamente lá.

85 127 Sandra Aquele ao lado é lembrança, lembrança da cidade, né?

86 128 Renato Aquele é ( ) vai até. Eu sou, sou um sujeito guardador das coi

129 sas

87 130 Sandra Sujeito guardador das coisas (risos)

88 131 Renato ( ) eu tenho o quarto ano primário ( ) outro dia um amico

89 132 Sandra ( ) (lendo um documento em italiano que me foi mostrado)

133 Outro dia tem uma amigo mio que tem computador, o filho ( )

134 então ( ) eu conheço, da família eu conheço. conheço de algu

135 m lugar. Mas não sabia. Sabia que era casado com um parente

136 meu. Mas vai lendo isso aqui que o ( )

90 137 Sandra ( ) nella città di ( ) il segretario comunale ( ) uma giovane pre

138 parata donna inter, invertendo ( ) si può definire uma

139 preparata giovane donna ( ) laureata com 110 lode. Ha

140 discusso la tese con il ministro dell´interno Giuliano Amato in

141 Cui ha intrapreso uma colaborazione sensibile e ( ) (..)

142 Si sente ( ) a coprire ( ) suo nonno ( )

91 143 Renato È mio zio, mio mio ( ) parte di mio padre

144 ( )

145 Agora io queria mandar um ( )

92 146 Sandra Podia scannear e mandar por email, né?

93 147 Renato Ahã?

94 148 Sandra Mandar um email?

95 149 Renato No. Queria mandar duas palavras sobre

96 150 Sandra um telegrama?

97 151 Renato não um telegrama, um telegrama. Não sei nem onde que mora

152 porque. Onde morava porque é uma contrata de dez mil habita

Page 159: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

159

153 ntes. Ma já virou ao contrário. Tutti foram pra alemanha, foi

154 pra Roma, Genova, Milano. ( ) a tia ( ) niente mia sorella

155 porque aqui. O nonno foi morto na guerra é o, o esposo dessa

156 menina aQUi recebeu gratificação pra estudar na melhor

98

157

Sandra

universidade de Roma, junto com essa, é o nonno dessa

[hum hum]

158 donna qui il comunale, il comunale ( ) etc e tal. Ma non sei

159 onde é que mora, mas sei que é na comune de Luzzi, ficava lá,

160 ma minha cunhada, ma ( ) que lá se chama contratta.

99 161 Sandra Hum hum, ah, é

100 162 Renato Se chama

101 163 Maria Ó eu trouxe até o .. se você quiser (indicando o adoçante)

102 164 Sandra brigada

103 165 Renato ( )

104 166 Maria (dirigindo para o Renato) o seu ta com açúcar

105 167 Renato ( )

106 168 Maria Se quiser.. ah! Ta falando da história da E.?

107 169 Renato É uma parente

108 170 Maria Hum hum. hisTOria não falta pra ele não você vai ficar ( )

109 171 Sandra Agora eu to vendo assim, é, é assim lá na Itália ela se formou,

172 né? E tal e você também fez questão que seus filhos e netos se

173 Formassem.

110 174 Renato é, eu casei com uma professora. ( ) a mais inteligente de todas

111 175 Maria trabalhei aqui no Rio Branco

112 176 Sandra pertinho, né?

113 177 Maria é

178 Renato Meus parentes(barulho de xícara. pausa para gole de café) tem

179 gente camponese, tem gente médico, ingegnere, ( ) tutto isso

180 por ai, compreendeu? uma família muito grande, muito ( )

181 uma família de ( ) cada UM ( ).Meu avô, já tinha propriedade

182 já tinha propriedade, o meu ( )

183 ( ) guerra

184 Depois empresário, né. A Banca di Napole, banca. Lá se

185 chama Banca. A Banca di Napole.

114 186 Renato Meus parentes(barulho de xícara. pausa para gole de café) tem

187 gente camponese, tem gente médico, ingegnere, ( ) tutto isso

188 por ai, compreendeu? uma família muito grande, muito ( )

189 Uma família de ( ) Cada UM ( ). Meu avô, já tinha proprieda

190 de, já tinha propriedade, o meu ( )

191 É empresário, no. Depois a Banca di Napole, banca, lá se

192 chama Banca. Banca di napole ( ) é uma pessoa. Então esse

193 Aqui mandou. Não que não me conhece é só que tem um

194 parente aqui no Brasil. Que ele não me conhece. Me conhece

Page 160: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

160

195 Uma irmã que ( ) outro dia me telefonou me conhado, meu

196 Aniversário. Ele me telefonou e me disse que ( )

197 Lá não tenho o endereço, lá do ( )

115 198 Sandra Hum hum. E o senhor queria mandar duas palavrinhas pra ela

116 199 Renato É eu queria mandar os parabéns. Ela não me conhece. O

200 marido O avô dela morreu. A família dela eu não conheço.

201 Conheço o ( )que casou com uma prima minha com a tal

202 de ( ) Aqui tem correspondência. Porque eu sou muito ( )

203 tem muita gente..Sou muito curioso. Tem o gemelaggio, ma

204 gente de alta categoria de alta capacidade. Eu fiz um

205 ringraziamento ao Prefeito. O Prefeito, o prefeito que deu ( )

206 que palavras bonitas que ele, que ele me mandou.

117 207 Sandra O prefeito de Paola, né?

118 208 Renato De Paola, é. Pode ler isso.

119 209 Sandra A mio caríssimo Renato Dattero, vinte e quatro de julho de

210 2007, agora!

120 211 Renato sì

121 212 Sandra Vorrei pogerti un sentito ringraziamento di

213 Un saluto augurale che ( ) rivolgersi alla mia persona ( )

214 Ti rinovo il sentimento di profunda stima ( )

215 Alla tua splendida famiglila e in attesa di rivederci ti ínvio

216 mille care cose. R. P. ele veio aqui ouuu ?

122 217 Renato Já esteve aqui quando nós fizemos o gemelaggio

123 218 Sandra Ah! Com esse gemellaggio

124 219 Renato Ele veio aqui, mas ninguém lhe mandou carta, cartolina, nem

220 Ringraziamenti, mas quando eu soube que ele foi candidato e

221 Tinha perdido na primeira, primeira. Agora ganhou. Passou

222 um mês e ai, mas como ganhou? Primeiro falou que não

125 223 Sandra Tinha ganhado?

126 224 Maria Dá primeira vez não, mas da segunda?

127 225 Renato Ninguém sabia que ele tinha perdido se ( ) eu tenho um

226 retrato, tenho um vídeo com ele. Uma porção de coisas Eu

[( )]

227 mandei uma carta pra ele

128 228 Maria Parabenizando, né?

129 229 Renato Mandei um cartão pra ele

130 230 Maria O da daqui da Barra, não foi?

131 231 Renato Será que foi da Barra?

132 232 Maria Foi foi. O cartão é (..) ( som de xícara)

133 233 Renato Será que mandei da Barra?

134 234 Maria foi

135 235 Renato Isso aqui (.) isso é minha cidade (mostrando postais) tem

236 Uma igreja aqui.

Page 161: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

161

136 237 Maria Eu fui nesse igreja ai.

137 238 Sandra Basílica Citernese della Santa ( ) Luzzipress (risos)

138 239 Renato Essa é a minha cidade. A minha cidade

139 240 Sandra Beeeella!

140 241 Sandra Só na Itália. as cidadezinhas pequenininhas todas muito bonitas

141 242 Renato O aqui tem todas as igrejas do ( )Esse é o sacristão.Sabe o que

243 É sacristão. Que trabalha na igreja

142 244 Sandra ahã

143 245 Renato Um muito amico mio. Ele mandou ( ) e aqui mandaram um

246 convite pra io voltar

144 247 Maria Ah ele sempre recebe(referindo-se a carta enviada)

145 248 Renato Eu sempre recebo (com ar de satisfação)

146 249 Maria De lá e do Rio, aqui do consulado.

147 250 Sandra Isso ai é o que?

148 251 Maria Isso ai é do Pavarotti, daquele

149 252 Sandra Ah! Pra você votar, né? (.)(barulho de papeis sendo

253 manuseados) Você pode votar aqui, no no

150 254 Maria É ele vota. Ele vem, tem a cédula que vem tudo da Itália

151 255 Renato Isso quando recebi o convite do gemelaggio, do Carabiniere

256 que nós pegamos

152 257 Sandra É eu lembro do (.) Rocca, né? O carabiniere

152 258 Renato É.isso

153 259 Sandra Vou tirar a foto disso tudo, ok? Pra ficar tudo registrado (risos)

154 260 Renato ( ) isso aqui, vou te mostrar uma coisa. Eu mandei buscar. Um

261 Patrício mio. Isso aqui, mandou um selo de San Francesco di

262 Paola.

155 263 Sandra Ah que lindo! Muito bonito, né?

156 264 Sandra

Renato

do santo de Paola

[( )]

157 265 Renato O filho de patrício, eles lá não tem muita

266 Não tem muita ( )

267 Muita ligação com as coisas

158 268 Maria Tem com (interrompe a fala sedendo turno pra Renato)

159 269 Renato Eles são são. Mas quando eles tem, eles vem com as coisas

160 270 Maria Esse aqui é diferente dele, né? Não sei se é porque conviveu

271 aqui com a gente que a maior parte da vida dele foi com.

272 Ele veio co , com vinte quatro anos não é, filho?

161 273 Renato é

162 274 Maria Você veio com vinte e quatro anos

163 275 Renato Isso tem que devolver a ele

164 276 Sandra Então você acha que ele é diferente ( )

165 277 Maria Ah! Eu não sei como é o temperamento deles. Eu convivi lá

278 com os parentes dele tudo. Eu eu achei assim eles são ótimos.

Page 162: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

162

279 trata a gente muito bem tudo e tal, mas assim, sabe não é de

280 assim de conversar muito. Sabe? É diferente dele. Eu acho que

281 é diferente. Sabe? Não sei se é porque eu já me acostumei

282 mais com ele

166 283 Sandra (risos)

167 284 Maria Vou botar a fita aqui, ta? No armário, viu? (..) O que que você

285 Vai fazer?

168 286 Renato

Maria

Nada. Eu mandei buscar o negócio lá se lembra? Com M. ( )

[( )]

169 287 Renato De de Valença (.)

170 288 Sandra M. da S. C. (..) hum hum (.) ex-combatente do Brasil

171 289 Renato É. Aqui é o meu attestato di nascita

172 290 Sandra Ahhhhh! Renato P.!

173 291 Renato É.

174 292 Sandra O seu P., primeiro tem Dattero (D.)

175 293 Renato D., porque lá primeiro se chama D., Renato P. e aqui ficou o

294 o contrário Renato. P. D. e lá tem D. Renato. P.

176 295 Sandra É primeiro o sobrenome depois o nome. O senhor ficou com

[nome é]

296 Renato P., mas na verdade seu sobrenome é Dattero.

177 297 Renato É. Dattero.

178 298 Sandra E ai quando foi pra registrar seu filho botou Dattero.

179 299 Renato Dattero, lógico

300 Â. Dattero, Â. de O. Dattero, porque aqui se usa o nome

180 301 Sandra Nome da esposa

181 302 Renato É. Nome da esposa. Do pai dele ai eu botei. Minha filha

303 se chama R. C. de O. Dattero. Tem gente que não faz questão

304 “meu sogro não é nada pra mim eu não. Afinal to com a

305 Filha dele (risos)

182 306 Sandra (risos) é verdade. Então o senhor tem um filho e uma filha

183 307 Renato É. Tenho uma filha que é professora de Biologia. ALIASE

308 Você tem que fazer também antes de fazer a entrevista, da

309 Escola (dirigindo-se a Maria) me dá o ( ) da família.

310 ( dirigindo-se a mim): aspetta um pouquinho, que nós vamos

311 conversar direitinho, ta?

184 312 Sandra Ah! (risos) ta bom. Bem na verdade teria que estar uma

313 hora em Vassouras.

185 314 Renato (risos)

186 315 Maria Meio-dia o almoço (risos)

187 316 Maria

Renato

Sabe o que é esse é o curriculum da minha neta.

[da minha neta]

188 317 Maria Da filha da, você conheceu ela teve aqui.

189 318 Sandra Da neta, né

Page 163: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

163

190 319 Maria É da neta dele

191 320 Renato Se tiver

192

193

321 Sandra

Renato

Que fez Geografia, né

[é, compreendeu?]

194 322 Maria Ai ela falou

195 323 Renato Ela conheceu

196 324 Renato A escola

197 325 Sandra Ah ta!

198 326 Renato Dar na sua mão e ver se tem ( ) como é que chama um

327 Conhecimento. Miguel Pereira (vozes sobrepostas ao fundo)

328 Doida pra ganhar dinheiro e doida pra trabalhar.

199 329 Sandra Ahã.

200 330 Renato Dá aula particular, mas ela gosta de ter o dinheirinho dela

201 331 Maria Sabe como é que é, né?

202 332 Sandra Ela se formou com uma ex-professora nossa

203 333 Renato é

204 334 Sandra Com a E., né?

205 335 Maria éeeeeeeeee

206 336 Renato Compreendeu? é que tu faz recordar aquela moça tão bonita

337 que tu pode dar uma ajuda em alguma coisa, né?

207 338 Maria Se tiver ao seu alcance...

208 339 Renato Não é que você seja obrigada, não

209 340 Sandra Nãao

341 Um favore que tu pode. Eu sei que não depende de você

[(voz de Maria ao fundo)]

342 depende dos outros

210 343 Maria Ah, o a ficha que você deixou aqui

211 344 Sandra Ahhhh. obrigada

212 345 Maria Isso aqui. Você ficou de voltar aqui..

213 346 Sandra VOLtei (risos)

214 347 Renato (risos)

215 348 Maria A data que eu não coloquei. Acho que foi em julho

216 349 Sandra Eu tenho. Tenho tudo direitinho

217 350 Maria Ai, alguma coisa que faltar. Que já coloquei tudo direitinho

218 351 Sandra M. Â. Dattero. Ele teve um filho

219 352 Maria Um filho e uma filha. É, é

220 353 Renato Quer caneta?

221 354 Maria Quer caneta? M. Â. O. (voz afastando-se)

222 355 Renato Você que conhece muita caligrafia. Olha o que meu patrício

356 me escreveu. Eu mandei buscar. Queria fazer uma árvore (.)

223 357 Sandra Ahã? Pode falar

224 358 Maria Mas ai não

359 Sandra Aqui você não botaram o de O., viu? (risos) Ai os nomes das

Page 164: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

164

360 netas. Tem uma. Qual o nome da neta, da da filha do M.?

225 361 Renato E.

224 362 Maria E. com dois eles!

226 363 Renato E. Dattero.

227 364 Maria Aqui

228 365 Sandra É euuuu

229 366 Maria Não repara que isso ai

230 367 Sandra E o menino dele?

232 368 Renato Menino não. Ele tem duas meninas

233 369 Sandra Duas meninas

234 370 Renato A outra se chama

235 371 Maria A. Também com dois enes

236 372 Renato A minha neta se chama, a minha neta se chama

237 373 Sandra Essa é Dattero.

238 374 Renato B. (referindo-se ao sobrenome)

239 375 Maria E a da R. (referindo-se à filha)

240 376 Sandra Tem uma filha só? A R.

241 377 Maria Só uma filha (..)Éeee F. (.) Dattero. B.

242 378 Renato Dattero. B.

243 379 Sandra B. (soletrando o nome). Essa que é a de geografia?

244 380 Maria É essa que é formada. Ah! Essa aqui é nutricionista

245 381 Sandra É eu lembrava que tinha uma nutricionista

246 382 Maria É, e a outra. A outra ta, ta estudando advocacia porque se

383 encaminhou

247 384 Sandra É o interesse, né?

248 385 Maria Direito

249 386 Sandra Olha tem de tudo já

250 387 Maria É se Deus quizer, né?

251 388 Sandra (risos) Advogada! (risos)

252 389 Maria É. Eu acho que ta tudo ai, né?

253 390 Renato Bom você pode me disser o que tem aqui? Ta em uma

391 caligrafia desgraçada

254 392 Sandra Â., Di G.

255 393 Renato G. Dattero., il mio nonno

256 394 Sandra Z., S.

257 395 Renato ( )

258 396 Sandra Dattero., C. dois do três (?)

259 397 Maria Vinte e quatro

260 398 Sandra Vinte e quatro ou vinte e nove, né? Dovrebbe essere lo figlio

399 Piccolissimo. Agora esse maggio aqui eu não sei

261 400 Maria ( )

262 401 Sandra PicoLLIssimo. O filho morto piccolissimo

263 402 Maria Hum hum. é morreu quando pequenininho. Não sei. Filho,

Page 165: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

165

403 filho. De quem?

264 404 Sandra C.

265 405 Maria C. ?

266 406 Sandra C. Dattero.

267 407 Maria C. Dattero.

268 408 Sandra A senhora

269 409 Maria O filho? É morreu pequenininho?

270 410 Sandra Aqui ta. É dois do três de vinte e quatro ou de vinte e nove

271 411 Maria Ah tá

272 412 Sandra porque

273 413 Renato É minha irmã que morreu a primeira filha ( )

274 414 Sandra Então é isso o filho morto piccolissimo

275 415 Renato ( ) aqui ó. Aqui tem tutto esse nome aqui. Tutto ( ) isso aqui

276 416 Sandra A., F., aqui deve ser M., né?

277 417 Renato é

278 418 Sandra M., C.

279 419 Maria R.

280 420 Sandra R., R.

281 421 Renato R. é

282 422 Maria U. esse aqui deve ser U.

283 423 Sandra É, é parece. Â., P.

284 424 Renato P.

285 425 Maria P.

286 426 Sandra P., G. e C. deve ser

287 427 Renato e A., não tem não?

288 428 Maria Deve ser A. C., não é não?

289 429 Sandra Aqui é A. Concetta

290 430 Renato A. não tem não?

291 431 Sandra Não A.

292 432 Renato A., A. não tem não? ( )

293 433 Maria Será que é Aurélia?

294 434 Sandra É A.

295 435 Maria Aqui tem um A. e C.

296 436 Sandra é

297 437 Maria Eu falei. A. e C.

298 438 Renato ( ) A.

299 439 Maria A.o., então essa aqui, será que essa é A. C.? Não

440 Pode ser ... se ela tinha dois nomes? Que ela tinha dois nomes

300 441 Renato Não. A.

301 442 Sandra Porque aqui tem uma C. uma C.

302 443 Maria É tem uma concetta aqui, ó

303 444 Sandra C. e o filho morto, né? É a data de de morte

304 445 Renato Si. Uma data de morte, sim

Page 166: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

166

305 446 Sandra Então aqui tem uma C. que morreu dia dez de fevereiro de

447 Mil oitocentos e trinta e um. e tem uma A. C. que acho que

448 foi trinta e um de março de oitenta e quatro

306 449 Renato Que morreu?

307 450 Maria NÃO! Será que morreu?

308 451 Sandra morreu

309 452 Renato Também acho que morreu

310 453 Sandra A data parece nascida em trinta e sete, falecida em oitenta e

454 Cinco. Vinte e dois falecida em ( ) não é aqui não? data

311

455

Renato

De nascimento aqui data de morte?

[( )]

312 456 Sandra ( )

313 457 Maria Agora eu não entendi não. Pensei que aqui fosse de

458 nascimento não é não? Ah Ah

314 459 Sandra Porque aqui tem uma data menor, né? Não é? Aqui tem trinta

460 E sete, trinta e dois, trinta e sete. Do lado oitenta e cinco.

461 então não sei se nascimento é aqui..

315 462 Renato ehee ( )

316 463 Sandra Isso veio de onde?

317 464 Renato Il comune, veio di Luzzi

318 465 Maria Â.! Â.!

319 466 Renato Â. é meu pai, sì

320 467 Maria Vinte do oito

321 468 Renato Do oito. Mil ( ) e noventa e oito

322 469 Sandra Mas do lado ta dezesette. Ele não faleceu em dezessete, né?

323 470 Maria Ele eee mio mio sogro

324 471 Renato A da prefeitura

325 472 Maria Noventa e oito?

326 473 Renato Meu pai nasceu em noventa e oito? Meu pai nasceu em

474 noventa e oito

327 475 Maria Mil oitocentos e noventa e oito, não é? Não tem a data. Tem a

476 Data. Aqui você não viu a data?

328 477 Sandra Que aqui ta vinte de dezembro de noventa e oito

329 478 Maria Então. Vinte de dezembro é a data de nascimento dele

330 479 Sandra Vinte de dezembro. Nascimento e morte. Mas aqui não tem a

480 ver porque ele não morreu em dezessete

331 481 Renato Deixa eu ver isso aqui

332 482 Sandra Só se ele partiu em dezessete e parou o registro (riso irônico)

333 483 Maria Isso aqui é a data de nascimento dele

334 484 Sandra Porque em quarenta e nove ele voltou com o senhor, né? Se

485 lembra?

335 486 Renato E se soubesse

336 487 Maria Ele morreu em setenta

Page 167: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

167

337 488 Renato Setenta...

338 489 Maria Setenta e poucos não foi

339 490 Renato Setenta e

340 491 Maria Setenta e poucos

341 492 Renato Setenta e dois, setenta e quatro

342 493 Maria É foi mil

343 494 Sandra ( )

344 495 Renato Vamo fazer uma coisa

345 496 Maria Não é não filha, isso é data de nascimento

346 497 Sandra Aqui é nascimento

347 498 Maria nascimento

348 499 Sandra Agora isso ai eu não sei o que que é não

349 500 Renato ( )

350 501 Sandra É verdade eu não tinha percebido o ( .) nonno, padre

351 502 Maria Ó ai ó. Mil ( ) noventa e oito e o vinte de de é a data de

503 nascimento dele (.) ( )

352 504 Sandra Uma árvore genealógica, né?

353 505 Maria Hum hum

354 506 Renato aqui tem tutto il nome delle, a C. o que eu quero saber como

507 como é que chama aqui a C., como é que chama a fulana?

355 508 Maria Mas se você escreve ou telefona pra eles eles não sabem

356 509 Renato Num num ( )

357 510 Maria Ah não conheço, não sei. Outro dia ele ligou pra irmã dele pra

511 Saber de umas umas pessoas lá

358 512 Renato Da da parente da da

359 513 Maria paRENte. A irmã dele não soube explicar!

360 514 Renato (murmúrio)

361

515 Sandra

Maria

Ó aqui ó confere a mesma data (.) ( ) noventa e oito

[meu sogro]

362 516 Sandra Porque lê eles só vão ter mesmo a data de nascimento, né?

363 517 Maria Não é..

364 518 Sandra ( )

365 519 Maria Se bem que ele faleceu LÀ

366 520 Sandra Faleceu lá?

367 521 Maria Mas foi em mil novecentos e setenta e poucos, né?

368 522 Renato (murmúrio)

369 523 Maria Antes de setenta e cinco

370 524 Renato Mas tava conversando com Salvador, agora ( ) pra apanhar

525 Tutto i nome dos meu parentes (.) não precisa nada. Quando

526 Nasceu, quando morreu e ta acabado. O M. fez uma confusão

527 ( ) ginásio ( ) meu lado

371 528 Maria É é

372 529 Renato Essa coisa vai e volta, é conversa fiada. Patrício que morava

Page 168: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

168

530 naquela esquina lá. Era um rapaz que ( )

373 531 Maria O sogro da minha sogra

374 532 Sandra Pai da Rosaria, né?

375 533 Maria É. C. C. é.. é

376 534 Sandra que teve os filhos Dattero, Renato P., Dattero, A. e Dattero. L.

377 535 Maria Ai é a família dele

378 536 Sandra ai é L., né?

379 537 Maria É L.

380 538 Sandra Então A. e L. ficaram na Itália

381 539 Maria é

382 540 Sandra Só veio o Renato

383 541 Maria Ahã. Entendeu? Mas ai isso ai é data de nascimento deles.

542 Agora é lógico, evidente que aqui eu sei que a tia R., tia A.

543 Aqui onde morreu

384 544 Renato Certo, certo

385 545 Maria Tia A.

386 546 Renato Tia A. morreu ( )

387 547 Maria pois é (.)Ele, ele É. mas é porque ele tava sempre assim. Sabe?

388 548 Renato (Murmúrio) tem um da família, C. – il nonno di mia madre,

549 Minha mãe. Foi in Argentina. Chama N., Tia A. ( )

389 550 Maria Mas, assim pra como é que se diz? Pra ver esse negócio dos

551 familiares. Até pela internet pode conseguir, né?

390 552 Sandra Ahã, ah consegue sim

391 553 Maria

Renato

Não é? Eu acho que

(olha)

392 554 Renato Que deixou pra mim

393 555 Sandra Oh! Que bonito!

394 556 Maria Ih! Que ele tem certificado de uma porção de coisa. Fala

bastante coisa.

395 557 Sandra

Maria

Per riconoscenza

[vou deixar A VONtade]

396 558 Maria Ta? Conversando ai com ele. Ele vai fazer a sala

397 559 Sandra ahã

398 560 Maria Qualquer coisa. Eu vou cuidar lá, ta?

399 561 Sandra brigada

400 562 Maria Ta bom?

401 563 Renato Compreendeu ou não?

402 564 Sandra Então assim, com riconoscenza e gratitudine per l´imenso

565 impegno profondo nel piano umano, sociale, profissionale

566 Per la fedeltà alle radici e all´ideale di libertá e democracia

567 contribuendo in modo rilevante alla crescità dell´immagine

568 dell´Italia e della Calabria nella magnífica terra brasiliana.

569 Paola, ventuno giugno millenovecento( ) Bello

Page 169: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

169

403 570 Renato ( ) Quero ( ) io que estou aqui que lembro

404 571 Sandra Eles que estão lá não lembram, né?

405 572 Renato Nãaao!No no no parece que não sei, que não são interessados

573 ( )

406 574 Sandra Ahã

407 575 Renato (incompreensível)

408 576 Sandra Voltando assim, pra quando o senhor chegou aqui. Seu pai já

577 tinha vindo pra cá. Ele veio quando?

409 578 Renato Oh! ( ) meu pai emigrou millenovencentoventiquatro. Foi pra

579 Argentina

410 580 Sandra hum

411 581 Renato Ele tinha um irmão ( ) que se chama M.e. Dattero foi no cais

582 do porto a esperar ele. Naquela época tinha a carta. Quarenta

583 dias cinqüenta dias, mas hoje eu telefono e falo com minha

584 Irmã, é. Então meu tio falou: “M.o, se chama M. Â. Dattero

585 conhecido M. como M.o, mas se chama Â. (..)” eu não tinha

586 nem nascido. Minha mãe tava esperando io. Quando chegou

587 chegou no cais do porto no navio. Falou: Mariano, desce aqui

588 porque naquela época você descia onde você queria, você

589 pagava imigrava igual a um cachorro de pobre. Conhece o

590 Cachorro de pobre?

412 591 Sandra não

413 592 Renato O que chama vira-lata, u, u. O cachorro que (imitação de

593 Latido) (risos) então falou: “desce aqui que tem família em

594 São Cristóvão”. Ele falou “nãaao o destino me mandou ir pra

595 Argentina eu tenho que ir pra Argentina” e ficou seis meses na

596 Argentina e voltou pro Brasil.

414 597 Sandra Que o irmão dele já tava no Rio ( risos)

415 598 Renato Já tava aqui. e na Argentina, quer dizer no vinte quatro chegou

599 vinte e cinco. minha mãe mandou uma carta que eu tinha

600 nascido. No mille novencentos e vinte e nove, meu pai voltou

601 pra Itália. Escuta ou o ( ) ou a necessidade ou a miséria, não

602 sei não sei que tocava. deixar uma moça bonita que era a

603 minha mãe lá. vou tem mostrar o retrato tão bonita, muito

604 bela. chegou lá o mille novencentos e vinte nove, io ero uma

605 uma criança no jardim de infância. Dei um chute na cara dele

606 Porque não conhecia.

416 607 Sandra Rá

608 Bom, o mille novencentos e trinta voltou pro Brasil de novo

417 609 Sandra Rá

418 610 Renato Escuta. Deixou uma moça que era minha mãe. Eu não sei

611 como não botou chifre! Olha somos de carne e osso. ele voltou

612 aqui de novo. Bom ele mandou dinheiro, tinha lavoro, tava ai.

Page 170: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

170

613 Bom, no mille novecentos e trinta e seis voltou pra Itália.

614 trinta e sete voltou de novo pra cá.O quarenta e oito voltou pra

615 lá o quarenta e nove voltou pra cá ele me trouxe pro Brasil.

616 disse que tinha mulher bonita. Lá uma aldeia de dez dez mil

617 habitantes dez doze mil habitantes. Ele me trouxe, trouxe por

618 causa da minha profissão de alfaiate. cheguei aqui ao ponto

619 que eu chorava,queria embora pra Itália de novo,tinha deixado

620 uma namorada, quando via o retrato dela queria voltar, queria

621 voltar a minha felicidade foi essa mulher. E não voltei mais.

622 por toda a nossa vida. Compreendeu? o encontro que fiz aqui.

623 tinha primo, parente, não me adaptei muito no Rio de janeiro

419 624 Sandra É porque já tava aqui com a família, né? Já, já tinha o seu tio o

420 625 Renato não

421 626 Sandra priimo

422 627 Renato Meus primos, minha tia, mas eram muito bons, eram muito

628 diferentes io deles. Eu tinha os meus costumes. Eles aqui. Eu

629 não adotava

423 630 Sandra ahã

424 631 Renato Io dizia pra uma parente minha. Io vou casar com uma

632 brasiliana! Ela agora diz pra mim. Cuspa no prato e come, eh!

425 633 Sandra (risos)

426 634 Renato (risos)de São cristóvão pr´aqui. compreendeu? mas namorar

635 ( ) toda minha vida foi isso. Compreendeu?

427 636 Sandra Ah!

428 637 Renato Sempre trabalhando, sempre trabalhando, sempre trabalhando

429 638 Sandra E como é que o senhor conheceu a sua esposa?

430 639 Renato Essa aqui?

431 640 Sandra é

432 641 Renato Aqui tinha duas parente minha. prima de meu pai

433 642 Sandra Aqui em Barra

434 643 Renato Com uma oficina mecanica

435 644 Sandra Hum hum

436 645 Renato oficina mecânica. ele e a irmã dele me convidaram pra pra

646 imigrou pra cá. O D.o. em Barra do Piraí disse uma cidade tem

647 um trem pequeninho que sobe aquela serra, aquela serra lá vinha

648 de Paulo de Frontin aquela serra boniita. Olhava tudo aqueles

649 currais! ficava encantado. Quando cheguei aqui. ( ) vi minha e

650 tutto ( )na Barra.vim três vezes só o quarenta e nove o cinquenta

651 e o cinqüenta e um. até ainda tinha o trilho do trem no meio

652

Sandra

da cidade de Barra do Piraí. Vim aqui com o meu tio:

[hum hum]

437 653 “Vamos na Barra do Piraí?” O sete de setembro. Essa aqui

654 Embarcou no ônibus. Dava aula lá, onde aqui chamam de

Page 171: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

171

655 Vargem Grande. Me olhou eu olhei: “opa! Ta no papo”. Falei

656

Sandra

Assim. Eu vou voltar, no lugar onde encontrei ela, mas não

[risos]

657 Sabia que era professora não sabia nada. Eu quase já ia

658

Sandra

embora pra Itália. hein

[hum hum]

438 659 Sandra Isso em que ano?

439 660 Renato Mille novecento e cinqüenta e três

440 661 Sandra Ahã. Quarenta e nove, não

441 662 Renato (tosse) Fui e voltei e encontrei, na praça Julio, na casa da N.

663 na praça Júlio( ) encontrei ela lá.Encontrei olhei, ela me olhou

664

Sandra

eu fiquei.Bom, começamos a namorar, namorar.uma boa noite

(risos)

665 cheguei aqui ela morava na Cunha Lima, numa subida. ( ) ela

666 E a irmã dela. uma chuva desgraçada pegava o trem pra Barra

667 Do Pirai. mandei chamar ela, ela não quis descer fiquei de

668 inimigo dela, fiquei de inimigo de cinqüenta e três até o

669 cinqüenta e quatro. Escrevi uma carta malcriada e falei. Quem

670 escreveu foi o capitão da polícia se chama, se chama, C. era

671 um patrício. C. C., me manda uma carta. Ma quando meu tio

672 em cinqüenta e quatro voltou pra Itália pra passear também.

673 eu voltei também pra saber notícia da Itália da minha mãe,

674 minha irmã. meu pai tava aqui também, voltei naquela loja

675

Sandra

e começamos a : “ta no papo falei agora” (risos)

(risos)

676 Comecei a namorar o cinqüenta e quatro, cinqüenta e cinco

677 fiquei noivo, cinqüenta e sete me casei. Daqui fui morar em

678 Nilópolis assim que me casei

442 679 Sandra Hum hum

443 680 Renato essa é a minha vida. cinqüenta anos de casado.

444 681 Sandra fez uma festa? (referindo-me as bodas de ouro)

445 682 Renato Ãha?

446 683 Sandra comemOROU?

447 684 Renato comecei a namorar, fiquei noivo, cinqüenta e cinco. cinqüenta

685 oito me casei. fui a Aparecida do Norte pra me casar. agora

686 vou te mostrar uma coisa tão bonita. Um amigo meu, um

687 amigo, o M.! Olha aqui

448 688 Sandra Do do do M.ro?

449 689 Renato Do M. V., M. V., conhece?

450 690 Sandra Ah! O V.!

451 691 Renato M. V.

452 692 Sandra Bodas de Ouro. Renato e Maria. Ai que linda essa bandeja!

693 vinte e sete de janeiro de dois mil e sete ( ) abençoa senhor ( )

Page 172: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

172

453 694 Renato Que ela (a esposa do M. V.) é muito religiosa ela me deu de

695 Presente ( )

454 696 Sandra ãha

455 697 Renato Me deu de cinqüenta anos de casado (...)

456 698 Sandra Então o senhor foi até Aparecida do Norte pra casar

457 699 Renato Hein?

458 700 Sandra Foi até Aparecida pra casar!

459 701 Renato Eu tinha que ir até Aparecida do Norte pra me casar. a maré

702 era tão brava que eu e ela juntamos dois trapos velhos ()(risos)

460 703 Sandra (risos)

461 704 Renato Todo mundo perguntava como é que um italiano casa com uma

705 brasileira. tinham medo, meus patrícios tinham medo.() vulgar

706 ( ) corna, come que você convive, como é que essa brasileira

707 convive com nada? È só ter a cabeça no lugar e manter a

708 cabeça no lugar. o amor existe. engano existe também, tristeza

709 existe também, então olha aqui Pra que ela não escuta. ( )

710 não tinha condição de fazer festa. Eu falei: “você concorda

711 em casar em Aparecida do Norte?” Ela falou: “perfeitamente.

712 é você mesmo”. então fomos pra Aparecida do Norte. Eu

713 morava no Rio de Janeiro e ela morava em Barra do Piraí. na

714 Eu aluguei uma casa na baixada, em Nilópolis

462 715 Sandra Hum hum

463 716 Renato Compreendeu? E só tinha a tranqüilidade de ( )e não fiz a festa

717 Quando fiz o noivado fiz uma festa maior do que o casamento

718 É de poucas palavras, não gosta muito de galanteria e o povo

719 ficava apavorado. como é que casa com uma brasileira vai ter

720 um filho brasileiro. E depois de um ano fui ver minha mãe.

721 depois levei ela pra Itália, três meses Roma, Milão. A vida é

722 doce ( ) e casar com uma brasileira, porque os patricios te

723 convidavam pra ir casa deles pra namorar com uma filha deles

464 724 Sandra (risos) ah! Pra ficar tudo na colônia, né?

465 725 Renato Não ( ) mas pra me casar tem que ser com uma pessoa que

726 eu gosto. Meu avô dizia, a mãe de minha mãe de noventa e

727 poucos anos “ama quem te ama. Responda a quem te chama”

728 quem tem cachorro do vizinho não dar pedrada no cachorro do

729 vizinho não. dá uma água uma comida, tudo. eu fui criado pra

730 criado pra( )e os outros ficavam apavorados porque até guaio e

731 te a morde Língua, mas a Itália agora ficou piena de sacrifício

732

733

( ) o pessoal dizia vou vou na França, vou na Alemanha, vou

734 vou tutti tutti ( ) lá A vida a vida tudo ( ), minha filha. (risos)

466 735 Sandra O senhor falou que alugou uma casa em Nilópolis, né?

467 736 Renato Em Nilópolis, é

Page 173: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

173

468 737 Sandra Então depois que o senhor casou foi pra Nilópolis não ficou

aqui em Barra.

469 738 Renato Não. em trinta e sete vim morar aqui no sessenta e cinco.

739 minha filha nasceu lá o meu filho nasceu lá, nessa área em

740 Madureira e Cascadura um no ( ) Rio de janeiro o

741 outro Guanabara

470 742 Sandra ahã

471 743 Renato Em julho na Guanabara, mas o produto saiu de Nilópolis ( )

744 era Sócio do Brasil-Portugal que era um hospital que

745 tinha em Madureira

472 746 Sandra ahã

473 747 Renato Tinha uma vizinha lá eu sou italiano não sou português então

748 eu dou uma ajuda pra vocês. Lá ela fez o pré-natal, em uma

749 maternidade em cascadura. Madureira, cascadura, tutto isso ali

750 depois os filhos ficaram, lá era uma cidade, nilópolis, do turco

751 havia Prefeito muito relaxado também, não havia estrada,

752 Não havia nada, vala em cima de vala. As crianças sempre

753 doentes. vamos, falei pra minha senhora: “vamos ou na minha

754 terra ou na tua terra qual a que prefere?” “Bom, como a situação

755 periclitante, vamos na tua terra que é melhor. Pra eu ir lá

756 tenho que me acostumar a outros costumes a outras coisas

757 você não vai deixar eu sai mesmo porque ( )”

474 758 Sandra O senhor sempre trabalhou como alfaiate?

475 759 Renato não

476 760 Sandra Não?

477 761 Renato Trabalhei lá pela rua. Vendedor de bebida e bar, mas nunca

762 nunca tive carteira profissional

478 763 Sandra Hum hum e a Maria já tinha o emprego dela

479 764 Renato a Maria já tinha o emprego dela era funcionária pública, do

765 Estado. Nossa vida nós começamos assim. Nós casamos ( )

480 766 Sandra ai o senhor voltou pra cá com as crianças..?

481 767 Renato é, as quitandas sempre aqui nos colégios, sempre, o colégio

768 das irmãs, depois parece que foi para o Rio Bonito, e o

769 Candido Mendes. É filha que casou, não teve sorte separou e

770 tá levando a vida dele.Ajudando a filha e o filho, propriedade

771 aqui, propriedade aqui. Uma propriedade pra cada um

482 772 Sandra A primeira coisa que o senhor montou aqui foi a mercearia,

773 padaria? Foi o que?

483 774 Renato Não. Comprei foi o bar ao lado da estação

484 775 Sandra ahã

485 776 Renato o bar ao lado da estação,depois fui no Nilo Peçanha,no ginásio

777 depois fui no Coimbra quando você passa por lá onde tem

778 uma mercearia grande? tinha botado bar do Renato, depois

Page 174: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

174

779 vim pra cá. minha vida é assim, minha filha ( . ) o Programa

780 (..) o sujeito (.) não pode se deixar (.) de perdição (.) nem por

781 outras mulheres (.) nem pela bebida nem pelo governo nada.

782 Tem que ter honra pela família, pelos filhos tem que ser bem

783 tratado. pode dizer aquele sujeito lá não presta, mas tem

784 que ver se não presta é a família. Ele fala que meus parentes

785 é meio maluco, mas a verdade pra mim é a conveniência

789 deixar de ( ) e lá a guerra (risos) eu sempre vivi assim, na paz

790 de Deus. agora vamos fazer Cinqüenta e um anos em janeiro

486 791 Sandra Hum hum

487 792 Renato De vida. De vida, de compreensão. Quando um estrangeiro

793 casa com uma estrangeira. straniero dizem straniero,não é

794 estrangeiro É straniero.Casado com uma straniera. Como é

795 que tem o dialogo com ela. Eu digo é a mesma coisa, pensa a

796 mesma coisa. Existe O amor, existe a sinceridade, existe ( )

797 hoje não podemos comprar isso aqui, hoje não podemos esse

798 chapéu,compreendeu? não é a briga a discussão.Nunca briguei

799 Nunca discuti, nem um Nem outro. Nunca bati no meu filho

800 (relata um caso da filha ou filho querer bater em uma das netas)

801 “o queee?! Eu já bati em você?!” ( ). Mas fala qualquer coisa!

488 802 Sandra (riso) eu queria saber, assim. Eu me lembro que o senhor disse

803 Que seu pai trabalhava como peixeiro

489 804 Renato peixeiro

490 805 Sandra Ele sempre foi

491 806 Renato Pesce, olha o pesce, la sardina! Meu pai tinha uma frequesia

807 de mil novecentos e vinte e cinco até (..) o mille novecentos e

808 Sessenta e cinco, mas ele sempre com o peixe

492 809 Sandra No Rio, né?

493 810 Renato No Rio, Campo de Santanna e tudo ( ) igual aquele português.

811 Minha mãe comprou uma carroça com dois burros, o meu

812 filho com três? Era ele que puxava no meio (risos)

494 813 Sandra Tinha uma foto ali, né? Tinha uma foto ali com os burricos

495 814 Renato Eh eh? Mas aquela das fotos ali com aquele burricovocê vai

815 achar ruim é (risos)

816 Aquele burro era era pederasta

496 817 Sandra (risos)

497 818 Renato (risos) era appena outro burro. Isso eu nunca me esqueço

819 porque tinha uma tia minha que vinha meu tio puxando o

820 burro correndo

498 821 Sandra hum

499 822 Renato botava um botava um capim pra não machucar e puxava o burro

500 823 Sandra ahã

501 824 Renato Então quando meu pai chegou aqui no mil novecentos e vinte

Page 175: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

175

825 e quatro, no vinte cinco. vinte e quatro tava na Argentina

826 trabalhava na firma, na empresa de no mar que faz água doce,

827 Mas era muito sacrificado. Naquelas bombas que ficavam

828 puxando água. O imigrante achava América! Vou fazer a

829 América! Acredita em duas coisas você? A sorte e o destino?

502 830 Sandra Ahã? Acredito

503 831 Renato Eu acredito. A sorte e o destino e mais nada. Então quando

832 veio aqui ele. O irmão dele emprestou um dinheiro. Quanto

833 vale o peixe com um patrício. Nicola um vizinho da rua.

834 Analfabeto! não sabia muito não. Comprou duas latas com um

835 pau nas costas, aqui. vendendo o peixe, depois de um tempo

836 comprou uma carrocinha

504 837 Sandra Ahh!

505 838 Renato E com o peixe ele trabalhava, mas ganhava dinheiro. ( ) assim

839 me falaram, me falaram

506 840 Sandra (risos)

507 841 Renato Mas ia e voltava, cumpria com a sua obrigação. Mandava um

842 dinheirinho, ia e voltava, mas deixava um jovem, minha mãe

843 com idade muito

508 844 Sandra Coitada, sozinha, né?

509 845 Renato E deixava e o trigo pra moer, tudo. Minha mãe era o homem e

846 a mulher

510 847 Sandra Como é que era a vida lá na Itália?

511 848 Renato Minha vida?

512 849 Sandra é

513 850 Renato Lá?

514 851 Sandra é

515 852 Renato A vida mais que mais que mais que seja. Tem a vita amarga e

853 a vita boa. Você veja, minha mãe foi uma sofredora

516 854 Sandra Hum hum

517 855 Renato Devia fazer a parte do uomo e da mulher (dirijindo-se à Maria)

856 pega lá o retrato da minha mãe pra eu mostrar pra ela. Tem

857 gente que é cabeleireira, tem gente que e sartina, que faz roupa,

858 tem gente que é doméstica. Naquela época não se usava muito.

859 muito quem estudava lá eram filhos de gente com alta categoria

860 que estudavam os filhos para serem padres, engenheiros,

861 médicos. Hoje lá é o contrário o filho do lavrador é professor

518 862 Sandra Hum hum

519 863 Renato Outro dia vi uma ( ) de Paola, ( ) Professor Palermo ele disse

864 é meu primo. de onde? aquele nasceu na Campagna, nasceu lá

865 é professor. Tem um irmão que hoje está na ilha do governador

520 866 Maria (voz ao fundo) dá licença

521 867 Renato Essa é mais bonita

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176

522 868 Sandra Ah! É bonita! De fibra, né?

523 869 Maria Bonitona, né?

524 870 Renato E lá tem meu pai e minha mãe lá (indicando foto na parede)

871 mas melhor essa aqui

525 872 Sandra essa

526 873 Maria ( ) tem um pouquinho de sorriso também, né?

527 874 Renato é

528 875 Sandra A outra ta muito séria

529 876 Maria Hum hum. Ela eu não conheci pessoalmente, mas ele morou

877 Um pouco com a gente aqui

530 878 Sandra Enquanto vocês estavam em niLÓPolis?

531 879 Maria

Renato

É enquanto nós estávamos em Nilópolis e um tempo. Foi né?

[( )]

532 880 Renato Em sessenta é cinco

533 881 Maria Ele veio em sessenta e cinco, em fevereiro quando foi em

882 maio, ele foi embora. Maio de sessenta e cinco

534 883 Sandra Ai ele voltou pra Itália?

535 884 Maria Ele voltou

536 885 Renato Eu disse: “não volta não”

537 886 Maria Ele não queria que ele voltasse, mas ele não porque não

887 porque fica feio ( )

538 888 Renato Aquele homem. Aquele homem com caráter já ( )

539 889 Maria Ele achava que ele veio pra cá pra poder melhorar a situação

890 da família lá e tudo que lá era guerra, né?

540 891 Renato Fazia dinheiro pra fazer a dote pras filhas

541 892 Sandra ahã

542 893 Maria é porque lá tinha que ter dote

543 894 Renato Dieci mila lire. ou me dá dieci mila lire ou não me caso.

895 então não quer a ela. como o meu caso

544 896 Sandra (risos)

545 897 Maria É, antigamente era assim, agora não. Agora virou tudo

546 898 Renato Agora virou tutto. é tudo o contrário

547 899 Sandra ai em sessenta e cinco ele voltou pra ficar com a sua mãe. ficou

548 900 Maria ai voltou

549 901 Renato com as minhas duas irmãs, minhas irmãs casadas lá

550 902 Maria tinha netos lá que ele nem conhecia. Ele era mais apegado, viu

903 nascer os netos aqui, né? um tinha o nome dele o outro o da

904 esposa dele

551 905 Renato aqui tem um costume, ( ) se vem donna tem que botar o nome

906 da sua mãe, tem que botar o nome dela. Do pai a mesma coisa

907 Então.

552 908 Maria Do nonno entendeu?

909 ahã

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177

553 910 Renato É do nonno. Tudo

554 911 Maria

Renato

Por isso minha filha chama R. C. de O. Dattero

[C.]

555 912 Sandra É a a mãe do

556 913 Maria É a mãe dele

557 914 Renato mas lá não se bota o nome, eh

558 915 Sandra Eh R., né?

559 916 Renato compreendeu, então a vida se passa assim, você sofrer. Isso é

917 o passaporto, inveja no Paraíso. você já pensou deixar uma

918 moça bonita de vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis anos

919 depois voltar de novo com trinta e poucos.AHHHHH que isso!

560 920 Maria Ele ia lá fazia um filho e voltava, ia lá fazia outro (risos)

561 921 Renato (risos) é sofrimento. voltava

562 922 Sandra (rindo) dava era mais trabalho pra sua mãe

563 923 Renato Nem era. É os filhos depois que nasceram

564 924 Maria Com qual diferença? Com quantos anos que você você

925 conheceu ele?...

565 926 Renato A diferença era de quatro anos. Ele foi no mille e vinte e cinco

927 Depois voltou no mille vinte nove, no trinta. Ai nasceu minha

928

Maria

Irmã A. voltou no trinta e seis, a L. nasceu no trinta e sete

[certo]

929 teve a guerra, no quarenta e oito ele voltou pra Itália

566 930 Maria

Renato

Ele não teve convivência com os filhos

[convivência]

567 931 Renato tinha um pai vivo e morto, vim a conhecer mais o meu pai aqui

568 932 Sandra ahã

569 933 Renato ( ) conheci mais ele aqui do que lá, compreendeu?

570 934 Maria Quer dizer, ele não teve assim um contato

571 935 Renato Uma pessoa antigamente ( ) quando a pessoa migrava ( ) ah

936 VOcê pode dizer que estou falando isso ou aquilo da Itália,

937 Mas estou falando a sinceridade. Quando vinha um imigrante

938 lá, era um imigrante que não tinha condição, era ( )

939 Trabalhava em fazenda. Não havia industria lá, hoje não é

940 comparável a Luzzi. com 10 mil habitantes tem mais de dois

941 mil automóveis, cada camarada tem dois carros.

572 942 Sandra hum

573 943 Renato Não sou maluco, ( ) inteligente ( )

574 944 Maria Os camponeses ficaram ricos, entendeu?

575 945 Renato Os camponeses casaram com as filhas, com as netas dos

946 proprietários

576 947 Sandra Hum hum

577 948 Renato ( ) aquela gente de alta sociedade. Quando vinham aqui

949 Ajudavam ( ) com pouco minha mãe comprou um burrico

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178

578 950 Sandra Hum hum

579 951 Renato Um carro de boi e um pedaço de terra

580 952 Sandra Hum hum

581 953 Renato ( ) botava duas cabras, duas ovelhas, criava um porco, criava

954 Galinha e vivia só, vivia daquela maneira

582 955 Sandra Ah!

583 956 Renato Então a mulher esperava três ou quatro anos ele chegar da

957 América, América América! Alguns botavam dente de ouro na

958 boCA haha, outros vinham com relógio de pataca no bolso.

959 Itália sofreu! Itália sofreu, depois veio o regime Mussolini,

960 depois do vinte e dois até o quarenta e seis, um mar de

961 sofrimento. Mussolini fazia uma coisa. Você não sabia ler e

962 escreVER, tu não imigrava pra América do Norte, vinha

963 pro brasile. Naquela época não precisava de passaporte, se

964 chamava responsabilidade, você tava lá, te mandava chamar e

965 Pegava responsabilidade pra te dar comida, onde dormir,

966 Mandar de novo pra Itália isso e aquilo ( ) a napole, lá tem o

967 Vapor que te espera Buuu, Bu Bu ( imitando apito do vapor)

584 968 Maria Agora é tudo o contrário

585 969 Renato Tudo o contrário

586 970 Maria

Renato

Pra ir, pra ir pra lá eles tem né? Que saber se a pessoa tem

Eh eh

971 Maria

Renato

condição de ficar lá, se tem alguém reponsável virou, né

Eh eh

587 972 Renato Antigamente se viajava como animale, quatro, cinco, seis

973 pessoa quando chegou o quarenta e nove, falei com meu pai,

974 falei: ( ) tocava o sino dirilo diro dim era hora do almoço

975 Chegava na porta da cozinha o Napolitano: “a ( ) isso era

976 A hora pra comida”

588 977 Sandra ahã

589 978 Renato Lá na entrada, dentro do vapor (risos)

590 979 Sandra Dentro do vapor (risos)

591 980 Renato É, mas chegávamos como animale

592 981 Sandra Hum (com pesar)

593 982 Renato Hoje não. E lá, nunca tinha visto mulher de short lá

594 983 Sandra Hum hum

595 984 Renato na vida. uma alemoa que embarcava no navio em Napole.

985 Aquilo era um paraíso. Normal agora, mas não naquela época

596 986 Hum hum

597 987 Nunca me esqueço (.) então a vida era isso. Comprar uma

988 propriedade, fazer a dote pros filhos, pras filhas ou comprar um

989 negócio pros filhos porque Itália tava quebrada era uma Italia

990 que tinha tido guerra o quatorze a o dezoito, depois é a guerra

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179

991 da África, depois vem o Franco na França, na na EspaNHA

598 992 Sandra Espanha

599 993 Renato na Espanha (.) depois vem o Mussolini com aquela coisa.

994 quando chegava ( ) dizia assim: “você tem sorte, vai no

995 Brasil, mas que sorte que você tem hein?” Mas não sabia o

996 inferno que encontrava aqui, mas não inferno encontrou (.) os

997 costumes, não é inferno, essa terra é terra abençoada por deus!

600 998 Sandra Hum hum

601 999 Renato Um brasileiro que fala mal do Brasil ele não tem cultura, ele

1000 Quer ( ) infelizmente.. você tem algum parente português

1001 não? Sua família é portuguesa? não?

602 1002 Sandra Hum não. É muito longe

1003 Maria É Leite

603 1004 Sandra É Leite, mas é muito longe

604 1005 Renato sim sim, mas o problema do Brasil ter ficado assim sabe qual é?

605 1006 Sandra Ahã, ahã?

606 1007 Renato Que foi colonizado por português

607 1008 Sandra (risos)

1009 Ele apanhou o ouro, levou pra Portugal os ingleses apanhou

1010 Deles. Então eles ficaram só com o ouro, porque essa é uma

1011

Maria

Terra abençoada por Deus. Não trabalha quem não quer. Um

[( )]

1012 camarada vem trabalhar aqui dá pra sustentar o filho. trabalha

1013 como cabeleireira, como manicure, como doméstica e tudo. eu

1014 tiro o chapéu. A menina chega aqui sábado venho, mas não

1015 volta. Que é preguiçosa, eu odeio isso. A terra é abençoada

1016 por deus ( ) sabe como é que é? chama desempregado. o

1017 desemprego eu não aceito. Tem muitas coisas. Eu não aceito

1018 tem tanta coisa pra fazer! Compreendeu? tem gente que diz

1019 que não tem sorte!

608 1020 Sandra agora eu lembro, que um dia o senhor disse que assim que

1021 quando o senhor chegou aqui! Na Itália, o senhor tinha cama

609

1022

Renato

bem feitinha, que quando veio aqui tinha uma esteira, né

[não não é]

610 1023 Renato Não, não não não, mas isso aqui sabe o que é? Te digo a

1024 verdade eu fui sempre, não o filho mimado, mas ( ) era filho

1025 único como homem , e duas filhas mulher

611 1026 Sandra Hum?

612 1027 Renato Mãe o que que gosta? Gosta mais do filho homem, do filho

1028 homem, então eu tinha certa regalia em casa, compreendeu?

1029 queria um ovo, minha mãe fritava, queria isso, ok. Então,

1030 quando cheguei aqui meu pai era um homem severo. Podia ter

1031 o que quisesse, era um homem honesto. Chegamos em São

Page 180: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

180

1032 Cristóvão, a minha tia era viúva

613 1033 Sandra hum

614 1034 Renato Lavava roupa (.) pra sustentar os filhos que era irmã do meu

1035 pai, o quarto tinha oito filhos, os filhos. Não dava pra estudar

1036 nem nada. Trabalhava pra marinha fazia aquelas calças da

1037 marinha, ela lavava roupa pra fora, mas a minha tia ofereceu

1038 a casa, falou com o filho dela: “O. dá a cama pro Renato, dá,

1039 dá. dá a cama pro Renato”. Ele dormia no chão, meu pai já

1040 tava aqui: “Oh! M.! compra uma cama pro Renato e bota

1041 Aqui”, “onde compro?” “A na rua Bela que tem uma boa”. ele

1042 me trouxe uma esteira ao invés da melhor

615 1043 Sandra ahã

616 1044 Renato Quando eu olhei aquilo “puta que pariu (.) mas isso é a cama?”

1045 “É, provisória! Pra não gastar o dinheiro”. Então meu primo

1046 me deixou dormir na caminha dele e ele dormia em cima de

1047 esteira

617 1048 Sandra Ah! coitado

618 1049 Renato Era assim ou uma esteira ou uma cama turca, cama turca sabe o

619 1050 Renato que É?

620 1051 Sandra O que? Aquela que dobra?

621 1052 Renato nÃO! É quatro tábua com quatro pés

622 1053 Sandra ahã

623 1054 Renato Aquilo se chama cama turca depois o filho foi pra Amaca e

1055 disse vem comigo na Gomes Freire, te dou comida, encontro

1056 uma cama que caiba, assim patente. Aquela cama que dava,

1057 como é que se chama o bicho que fica embaixo da cama?

624 1058 Sandra O percevejo?

625 1059 Renato Percevejo. A cama, coloquei querozene embaixo da cama

626 1060 Maria Mas ele não tinha

627 1061 Renato Não tinha ( ) aquela casa. ( ) vc aceita as minhas palavras

1062 coisa vergonhosa, mas era uma cabeça de porco. Quando

1067 cheguei da itália, fui morar numa casa. Aqui tinha uma cama

1068 aqui tinha outra cama, aqui tinha. Tutti em volta era um curral

1069 um curral de Dona C., uma patrícia

628 1070 Maria No Brasil, né?

629 1071 Renato É ali na Paula Mattos

630 1072 Maria Lá era o reduto dos italianos

631 1073 Sandra Igual ( )

632 1074 Renato Lá sabia da vida dos outros, sabia de tudo. tinha o banheiro

1075 coletivo. tinha que fazer fila, espera que vou io. O primeiro

1076 saia espera mais um mocadinho

633 1077 Maria Ele comeu o pão que o diabo amassou nessa época

634 1078 Renato Bom, isso passou porque eu não vou fazer isso não “eu vou

Page 181: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

181

1079 arranjar outro, outro negócio”. Um dia um sujeito ordinário

1080 trouxe uma mundana, uma vagabunda que todo mundo ali

1081 escutou ahhh. O patrício, o outro compadre falou “ela quer

1082 fazer xixi leva ela porta afora”, eles brigaram com o outro

1083 Patrício então aconteceu uma coisa, lá no Catumbi em frente

1084 a S. tinha uma igreja bonita ( ) Nazaré então disse a S.o. minha

1085 mãe tinha batizado uma filha dele. Casou por correspondência

1086 Sem conhecer o marido, por retrato, ho detto “compadre tu pode

1087 dormir aqui que te arranjo uma casa, uma vaga” nos primeiros

1088 anos do lado da minha cama tinha um português “e o banheiro

1089 compadre?” “O banheiro é um sacrifício” ha detto. “tem só, um

1090 só banheiro se você quiser ir e outra pessoa também”. Saí de um

1091 inferno e caí em outro inferno (risos) mas não falou isso. Falou

1092 Assim: “tem que apanhar acqua, no balde, na caçamba”. Falou

1093 Assim o português: “lá embaixo tem uma escada, tem que jogar

1094 água quando fizer a necessidade, senão outro reclama”. Se

1095 estiver falando mentira que Deus me cegue. Tinha que ficar

1096 assim ó, era só um duto de cimento. chegava lá e bla bla bla.

1097 um bonito dia de noite escutei um sujeito que tossia: “cof cof.”

1098 do meu lado tinha um rapaz que dormia quando de manhã.

1099 Esse camarada com uma folha de jornal toda cheia de sangue

635 1100 Sandra Tuberculose?

636 1101 Renato Tuberculose. Quando cheguei um compadre disse “tem um

1102 trinta e três”, não sabia o que era esse trinta e três ha ha ha

637 1103 Sandra Trinta e três era tuberculoso?

638 1104 Renato “Un po’ di tísica” ha detto. Eu disse: “compadre amanhã vou

1105 sair daqui”. “Não” disse “que te arranjo um lugar perto da

1106 janela”, mas eu saí e fui morar no grajaú, na rua Dona A. ( )

639 1107 Sandra E ai do Grajaú você foi pra onde?

640 1108 Renato Do Grajaú, fui de novo pro Paula Mattos

641 1109 Sandra Ãhn?

642 1110 Renato Do Paula Mattos ai arranjei um amigo meu que se chama A.

1111 Naquela época trabalhava de alfaiate, o A., tinha o A.o. um

1112 cozinhava, um lavava os pratos, um apanhava a água na bica

1113 de noite

643 1114 Sandra Ai, você foi pro Paula Mattos e ficou com mais duas pessoas

644 1115 Renato Éramos três pessoas, compramos fogão a querosene que a

1116 comida pros três cheirava mais a querosene do que

645 1117 Sandra Do que cheiro de comida (risos)

646 1118 Maria Você pode, florear um bocado a história dele

647 1119 Renato ( )

648 1120 Maria ( ) você ta contan . então se você lembrar, ela floreia mais

649 1121 Renato Tem imigrante, tem imigrante. Outro dia me veio um

Page 182: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

182

1122 português. Ah porque eu fiz isso, aquilo. Ho detto: “olha!

1123 Tudo não é nem mais inteligente, nem mais esperto tu é mais

1124 rico, mas o seu dinheiro não me serve não”. Tutto um homem de

1125 onore, mas sabe porque? Ele veio de Portugal já com LínGUA

1126 do outro país, mesmo o tio dele tinha uma barraca, um

1127 venditore. Olha o que você tem ai. Agente falava A o sujeito

1128 falava O, a gente ficava quieto tinha que escutar um e outro

1129 pra vender. Tive sorte, ele mais sorte, mas o sujeito não era

1130 mais inteligente do que eu.

650 1131 Maria Chegou no Brasil, chegou em barra do piraí, me encontrou né?

1132 nos encontramos, dois fósforos apagados

651 1133 Renato Ta falando a verdade

652 1134 Maria

Renato

A nossa vida minha filha

[( ) ]

653 1135 Renato Io me chamo Renato lá não é nada aqui é fruta, né mulher?

1136 Outra coisa quando Deus, ouve as preces e te dá uma esposa

1137 Produtiva igual uma árvore que faz frutos, os filhos que nascem

1138 o primeiro que nasce é esse nome. Então disse vamos casar

654 1139 Sandra Tinha que ter uma Rosária e um Mário

1140 Maria Rezei tanto pra que os dois primeiros viesse uma menina e um

1141 menino e pronto!Ah pelo amor de Deus

655 1142 Renato Outra coisa, vem que te explico, desculpa falar meu gosto,

1143 palavra assim meu primo falou assim, ele era mais inteligente

1144 eu tinha feito o quarto primário ele tinha feito oito, ela a escola

1145 de professora. “o dia que você vai casar, faz um filho ou dois,

1146 não faz mais filho não. Sua mulher te trata”. Até nisso o patrício

1147 disse a realidade , porque se você vai se encher de filho, veja

1148 Sua tia tem que lavar as roupas com cheiro, roupa fedorenta

1149 Porque, porque tem muito filho. Porque eu fui um rapaz que se

1150 tinha quinze anos andava com os rapazes de dezoito, se tinha

1151 dezoito eles tinham que ter vinte e dois

656 1152 Sandra ahã

657 1153 Renato Compreendeu então eu vi a vida, o sujeito não acredita, não

1154 acredita na vida. Fiquei sabendo ( )

658 1155 Sandra Então o senhor disse que tava no Grajaú, do Grajaú o senhor

1156 voltou pra paula mattos e de Paula Mattos, depois de paula

1157 Mattos o senhor já veio, já veio pra Nilópollis ou pra Barra?

659 1158 Renato da paula Mattos começamos a namorar

660 1159 Sandra ahã

661 1160 Renato Aquela época, o cinqüenta e cinco o cinqüenta e seis

662 1161 Sandra ahã

663 1162 Renato Telefonava, marcava na casa da prima dela que morava perto:

1163 “te chamo depois”, depois de uma hora ou duas telefonava,

Page 183: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

183

1164 Compreendeu?

664 1165 Sandra Ahã

1166 Renato “te chamarei depois, amanhã venho de dia”

1167 Maria Aqui vocês não querem sentar pra irem comendo

1168 Renato O que já deu a hora?

1169 Sandra Depois eu quero fotografar isso, ok

1170 Maria Ah! Então ta. ( ) (barulho das pessoas se afastando em direção

1171 a mesa de jantar) porque eu vou servir o almoço mais cedo

1172 hoje porque ela tem que ir

665 1173 Renato Não sim, claro

666 1174 Sandra Cortei um pãozinho italiano

667 1175 Renato O que?

668 1176 Sandra Cortei um pãozinho italiano

669 1177 Maria Entendeu? Vai beliscando ai porque ... (.) Ta bom? A gente

1178 tem que resolver

670 1179 Renato Me dá um copo de vinho pra moça

671 1180 Maria ( )

672 1181 Renato O me dá um copo de vinho

673 1182 Sandra (risos)

674 1183 Maria Vinho? Não sei se pode beber...

675 1184 Renato Traz o ragú

676 1185 Maria Esse aqui né? (Referindo-se ao vinho)

677 1186 Renato ( ) ela é professora formada, eu sou mais velho nove anos que

1187 ela e essa é nossa vida, de felicidade

678 1188 Sandra Eu lembro que da outra vez os senhores me falaram que: “você

1189 Sabe que ela é professora”, alguém te falou isso?

679 1190 Renato Ah não é tinha um senhor comerciante que era parente do meu

1200 tio tinha uma conhecida que era a irmã dela

680 1201 Maria O vinho

681 1202 Sandra obrigada

682 1203 Renato Ducato d´oro

683 1204 Sandra Ducato d´oro dell´Emilia

684 1205 Renato Passou, passou. Foi no sete de setembro, que uma data que eu

1206 nunca me esqueço. Quando outubro, novembro voltei. O C.

1207 falei quero namorar essa menina aqui, mas ela é professora!

1208 mas ela não me falou naDA. Ai veio outro patrício meu, você

1209 vai casar mesmo com professora, você? Um retirante!

1210 Não acredito

685 1211 Sandra E naquela época o professor tinha prestígio, né?Porque agora..

686 1212 Renato Pó que sorte desgraçada que tem (risos)

687 1213 Sandra (risos) ( barulho de louça)

688 1214 Renato então (risos) e foi verdade, não sabia, te juro que não sabia era

1215 uma morena bonita, com umas pernas bonitas, cheia de recato

Page 184: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

184

1216 posso falar?

689 1217 Maria O que?

690 1218 Renato Das namoradas?

691 1219 Maria A mais feia (risos) tão feia e dei uns filhos bonitos pra ele viu

1220 As netas bonitas também

670 1221 Sandra São bonitas mesmo

671 1222 Maria Isso é um pãozinho italiano

672 1223 Sandra Ciabata, né

673 1224 Maria é

674 1225 Renato Na minha terra se diz, árvore que não faz fruto, cortam-na,

1226 tagliano

675 1227 Sandra (risos) essa rolha ai,

676 1228 Renato Onde ta?

677 1229 Sandra O abridor?

678 1230 Renato O abridor

679 1231 Maria É, não precisa esse ai é só girar a rolha

680 1232 Sandra (barulho de rolha estourando) opa!

681 1233 Renato (risos) Saúde!

682 1234 Sandra Saúde, obrigada (risos)

SEGUNDO SEGMENTO

683 1235 Maria ( ) acho que vou colocar ( )

684 1236 Renato você tem que estar lá uma hora?

685 1237 Sandra eu tenho que estar lá uma hora. eu posso voltar outro dia (risos)

686 1238 Renato Que horas são?

687 1239 Sandra São onze horas

688 1240 Renato ( ) vamos puxando

689 1241 Sandra tá, tá

690 1242 Maria Preparei o molho pro macarrão, a água ta fervendo é rapidinho

1243 Ai almoça direitinho, depois você vai.

691 1244 Sandra Ta bom, obrigada

692 1245 Maria Ta bom?

693 1246 Sandra Ai, voltando. Do Paula Mattos você ficou namorando a Maria

1247 aqui

694 1248 Renato nos casamos aqui. Eu trabalhava em feira, tinha uma barraca

1249 di ( ) tinha que ir pro Leblon, Copacabana, conheço a zona sul

1250 todinha. Quando eu cheguei aqui comecei a trabalhar como

1251 alfaiate, mas ai teve meu vizinho que perguntou: “o rapaz,

1252 você não quer trabalhar como vendedor de bebida, não? Ali

1253 em Duque de Caxias.” Eu disse: “perfeitamente”. Andava pra

1254 cima e pra baixo, depois, outro patrício ( ) porque alfaiate não

1255 dava muito dinheiro não. Se continuava a trabalhar como

1256 Alfaiate não tinha o pouco que tenho. Comecei a vender

Page 185: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

185

1257 Sandália e chinelo lá, depois vim pra cá. Comprei uma casa

1258 em Nilópolis. Não era uma casa, mas pra pagar um aluguel

1259 caro era uma tristeza.

695 1260 Sandra hum hum

696 1261 Renato o camarada me vendeu a casa, não era um casa era dois quartos

697 1262 Sandra hum hum

698 1263 Renato agora um momento. num quarto se cozinhava e se dormia, o

1264 outro quarto tinha um banheiro dentro de casa, mas não era

1265 um banheiro. ( ) mas eu como tive sorte fiz mais dois quartos

1266 na frente.

699 1267 Sandra hum hum

1268 Renato Mas fui morar lá de ônibus, apanhava o trem e ia pra lá. Aí

1269 Começaram a ficar doentes as crianças por causa da fossa

670 1270 Sandra E o senhor quando morava em Nilópolis trabalhava onde?

1271 ali, em Nilópolis mesmo?

671 1272 Renato por minha conta mesmo

672 1273 Sandra mas, ali?

673 1274 Renato dentro de casa

674 1275 Sandra hum hum

675 1276 Renato a alfaiataria era dentro de casa

676 1277 Sandra Ah, ta! em Nilópolis era a alfaiataria

677 1278 Renato A alfaiataria e depois comecei a vender chinelos

678 1279 Sandra hum hum

1280 Renato quando chegou um certo ponto que as crianças começaram a

1281 ficar doente, ai. Viviam no hospital tinha que ir pra uma lado

1282 e pro outro. Falei assim: “o Maria, ou vamos embora pra Itália

1283 ou vamos pra Barra do Piraí”. Sem dinheiro porque não tinha

1284 dinheiro.

679 1285 Sandra ahã

680 1286 Renato vamos pra Barra do Piraí ( ) vendi minha casa lá, comprei a

1287 que dei pro meu filho aqui.

690 1288 Sandra hum ta aqui perto

1289 Renato ele virou comerciante, logo aqui. dei pra ele. ai vamos estudar

1290 as filhas. Estudar a filha, estudou lá na estrada de Ipiabas, se

1291 formou, se casou. Ta trabalhando. Agora ta em pensione.

691 1292 Sandra Ah, ta agora que se aposentou

692 1293 Renato tem que estudar uma filha ou tem que ser arquiteta ou

1294 engenheira, foi ser professora ela. Ela trabalha em três local.

693 1295 Sandra hum

694 1296 Renato trabalha na prefeitura, no José Costa que é um colégio

695 1297 Sandra ahã

696 1298 Renato Não tem colégio, não tem nada, que tem outro na prefeitura

1299 Trabalha também, trabalha em três local. Então com as minhas

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186

1300 Forças, eu e minha senhora educamos os filhos. Pagamos três

1301 Faculdades (referindo-se às netas)

697 1302 Sandra hum hum

698 1303 Renato ( ) não tive neto, fecharam a porta não sai mais nada, só filha

1304 mulher

699 1305 Sandra (risos)

700 1306 Maria que que é?

701 1307 Renato tua neta, tua filha não deu homem

702 1308 Maria Ah, sim

703 1309 Sandra quem sabe não vem um bisnetinho, né?

704 1310 Maria to falando quem sabe? Mas graças a Deus tudo com saúde,

1311 sabe? Negócio de de

705 1312 Renato [( )] mudando de assunto ( ) o M. ( ) seu J. também ta no Rio

706 1313 Sandra hum hum

707 1314 Maria você já fez entrevista com eles, né?

708 1315 Sandra Já, já

709 1316 Maria ( )

710 1317 Sandra quando o senhor falou, a gente tava conversando e o senhor

1318 falou que conheceu o pai da G. A., da da que é barítono, da

1319 atriz. Quando foi?

711 1320 Renato Ah, morava lá perto,

712 1321 Sandra mas foi da primeira vez ou da segunda vez que o senhor morou

1322 Na Paula Mattos?

713 1323 Renato no no era novo, era novo. A família toda morava lá em Santa

1324 Teresa

714 1325 Sandra ahã

715 1326 Maria Lá era o reduto

716 1327 Renato um reduto, você queria não podia. Deixava uma namorada ai

1328 pedia pra fulano escreve pra ela, mas vinha no vapor, vinha

1329 dez cada vez (referindo-se ao hábito de usar os que emigravam

1330 como mensageiros que traziam notícias)

717 1331 Sandra nossa!

718 1332 Renato e vinha uma também que se casavam por retrato

719 1333 Sandra procuração!

720 1334 Renato procuração (risos)

721 1335 Sandra (risos) (..)

722 1336 Renato a família, S. A. o senhor A. A., mas ela deve ser neta ou

1337 bisneta dele. com a família tutti ( )

723 1338 Sandra eles são calabreses também?

724 1339 Renato eles são da Toscana, são da da como se chama? CAMPAGNA

1340 são tutti da campagna, igual aqui tem o M., o M.o. é da

1341 Campagna, o avô paterno do coisa é da Campagna. São da sul

725 1342 Sandra é

Page 187: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

187

726 1343 Renato de Roma pra baixo somos do sul.

727 1344 Sandra (risos)

728 1345 Renato Dona D., tanta gente conheci eu lá (..)

729 1346 Sandra pra entender o movimento, você morou com a tua tia, perto do

1347 seu pai no início, mas depois

730 1348 Renato ( ) namorada ( ) sabe por que? Meu pai era uma pessoa muito

1349 esquisito (.) era muito sério, se namoravo uma filha de patrício

1350 “Vê lá o que que você vai fazer, hã.” Como essa minha senhora

1351 era conhecida do meu tio que ( ) “Vê lá não deixa teu tio com

1352 cara grande não, hein?” compreendeu? As mulheres me queriam

731 1353 Sandra o senhor era bonito, me mostrou a foto

732 1354 Renato hã?

733 1355 Sandra o senhor já me mostrou a foto, de quando o senhor era novo

734 1356 Renato hã?

735 1357 Sandra o senhor me mostrou a foto, o senhor era bonito, né?

736 1358 Renato é é e: aquela quantos anos eu tinha. Cheguei aqui com vinte

1359 e quatro, vinte sete eu tinha, era novo, era novo, compreendeu?

1360 e ela é ciumenta [cochichando, em tom de confidência] de

1361 todas as namoradas que namorei ela era a mais feia, mas é a

1362 que eu mais gosto.

737 1363 Sandra (risos)

738 1364 Renato palavra de honra, te juro. palavra de honra, tu sabe o por quê?

1365 Eu não vou dizer a sua pessoa porque ia ser um pouco pesado,

1366 mas quando você gostava e a pessoa te convidava pra ir a casa

1367 naquela época, que falava de verginità, que não era mais

1368 Virgem era babaca o homem

739 1369 Sandra hum hum

740 1370 Renato Eu só fui beijar ela depois de três, quatro, cinco, seis MESes

1371 demorada

741 1372 Sandra (risos)

742 1373 Renato e com posição social e tudo, namorei é que é uma delícia todo

1374 dia pegava o bondinho, no largo das neves. Agora não sei mais,

1375 sabe o bondinho?

743 1376 Sandra hum, hum, tem tem o bondinho ainda

744 1377 Renato compreendeu? ( ) palavra de deus te juro que estou sendo

1378 sincero

745 1379 Sandra ela fazia jogo duro (risos)

746 1380 Renato ma no, ela era sincera

747 1381 Sandra ahã

748 1382 Renato está se passando isso, isso e isso comigo. Na minha casa tem

1383 isso isso e isso. Você não pode dormir na minha casa, tem que

1384 dormir no hotel. Se fosse outra “não pode dormir aqui” e tal

1385 Ahh pára com isso!

Page 188: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

188

749 1386 Sandra (risos)

750 1387 Renato compreendeu? pra mim de todas as namoradas que tive eu amo

1388 essa. por mim se ela morresse eu ia junto. nós somos assim ó

1389 assim ó (fazendo sinal com as mãos de unha e carne). Não

1390 deixa morrer não amor. Não é por interesse é pelo caráter (som

1391 de ônibus) tem um caráter permanente um caráter de ( ) mas

1392 a mais feia é ela.

751 1393 Sandra (risos) fica irritada, né? mas tem que ficar (risos)

752 1394 Renato e nunca me deixou decepcionado quando vinha um patrício,

1395 ela sempre pronta, uma vez veio um patrício, filho, sobrinho do

1396 meu irmão, meu primo que mora em Itatiaia chama B. A., a

1397 mãe se chama E. é de Milão um engenheiro telefonaram, mas

1398 como é que você engenheiro me telefona de Milão? e o B.

1399 como é que você está se arranjando por ai? Aqui tem uma

1400 Luzzitana! A Luzzitana era a mulher do Renato (com orgulho)

1401 porque ela já teve em Itália, apanhou o costume, a minha prima

1402 lá: “é uma boa moça pros filhos então minha mulher diz,

1403 vamos fazer aquilo”.

753 1405 Sandra ah você diz que a Maria ela já teeem

754 1406 Renato é Luzzitana, é di Luzzi

755 1407 Sandra ah ela já pegou os modos da (risos)

756 1408 Renato qualquer patrício que vier aqui é incapaz de dizer de que não

1409 gostou dela. Dizem até que eu sou meio grosso, mas nada dela

1410 pegam ela e colocam numa torre, eu falo com sinceridade

1411 quando vê que uma pessoa me procura a mim ela se alegra

1412 fica contente, vem prefeito, gente da alta sociedade que tem

1413 contato com, como se chama? Eu me esqueço, ora to me

1414 esquecendo agora o do consulado?

757 1415 Sandra o cônsul

758 1416 Renato o cônsul. ela é maravilhosa, mas tem outras brasileiras que não

1417 desculpa não cuspo no prato que como, mas tem outras

1418 brasileiras que são assim (levantando o nariz)

759 1419 Sandra esnobes!

760 1420 Renato tem outras que são assim (repetindo o gesto) Deus que me

1421 perdoe que se sente dona do paraíso. Ela não, o café dela!

1422 eu fico contento, faz tudo e a vida é isso. Eu acredito a sorte

1423 e o destino se não tiver esses dois fatores não vince, não vence

1424 então, dentro da minha família tem médico, engenheiro,

1425 lavrador

761 1426 Sandra hum hum

762 1427 Renato de todo tipo, cada um tem uma profissão porque na minha

1428 família um tinha que ser advogado, outra freira. pra não se

1429 casar

Page 189: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

189

763 1430 Sandra hum hum. Pra sustentar, pra cuidar, cuidar dos pais

764 1431 Renato mas agora passou. agora já passou. não tem mais essa coisa

1432 antiga, muito radical. graças a Deus, acabou tudo

765 1433 Sandra como é que foi isso? tua mãe ficou sozinha, né? Ai vocês

1434 disseram que tinha um moinho e tudo, tinha a propriedade

1435 ela tinha que cuidar da propriedade e dos fiiilhos.

766 1436 Renato depois vendeu!

767 1437 Sandra mas assim durante a sua infância até você vir pra cá?

768 1438 Renato ma naquela época?

769 1439 Sandra no caso passou por guerra também, enfim

770 1440 Renato passou por guerra, mas vou falar pra você eu era um garoto

1441 era um garoto novo. O governo fechou tutto que moinho

771 1442 Sandra ahã

772 1443 Renato duas horas da madrugada eu puxando o burrinho minha mãe

1444 carregou o bolo de saco de trigo pra botar ele lá, compreendeu?

1445 nós andamos daqui até o batalhão a pé, carregando o burrinho,

1446 uma senhora e meu pai ficando aqui.

773 1447 Sandra isso foi o que? duranteeeee

774 1448 Renato durante a guerra, no quarenta e quatro, quarenta e cinco,

775 1449 Sandra ahã

776 1450 Renato depois ( ) o quarenta e cinco

777 1451 Sandra então o senhor participou, né?

778 1452 Renato participei no último tempo, eu recebo uma pequena pensão da

1453 guerra. Porque eu pago o INPS aqui e recebo isso de lá.

1454 compreendeu? isso eu vivo isso dessa maneira. Minha mãe era

1455 corajosa, camponesa. Puxando o burrinho mesmo minha mãe

1456 com um pedaço de vara puxava, óo.

779 1457 Sandra Então mesmo durante a guerra vocês não passaram?

780 1458 Renato hã?

781 1459 Sandra Vocês chegaram a passar fome?

782 1460 Renato não

783 1461 Maria Olha o molho eu deixei separado

784 1462 Sandra obrigada

785 1463 Maria (dirigindo-se a Renato) coloquei pouquissimo molho porque

1464 não pode por causa do... ai você se serve, ta à vontade

786 1465 Sandra obrigada

787 1466 Maria não fique esperando por mim não. Eu vou lá dentro

788 1467 Sandra ta (risos) brigada. Bella pasta!

789 1468 Renato Tinha um bocado de ( ), um bocado de anemia então médico

1469 Me proibiu de muito molho, muita carne. Eu tinha a calça, o

1470 Pantaloni era cinqüenta e dois agora é quarenta e seis

790 1471 Sandra Emagreceu bem, hein?

791 1472 Renato é

Page 190: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

190

792 1473 Sandra (risos)

793 1474 Renato Bom, tem, macarrão, né

794 1475 Sandra (risos) buon appetito

795 1476 Renato Coma um po´. Ó não fica acanhada não

796 1477 Sandra Não, muito bom

797 1478 Renato Ó Maria! Coloca um po´da queijo parmesão pra ela, desse

1479 Queijo. Sabe?

798 1480 Maria ta ta aqui. Se você quiser o queijo aqui tem, tem a carne tem

1481 o molho, ta?

799 1482 Sandra Aqui a mesa é à moda italiana, assim, sempre? (risos)

800 1483 Maria ahh

801 1484 Renato éee

802 1485 Sandra Ou tem também as interferências brasileiras

803 1486 Maria Ih, não aqui tem só a comida italiana

804 1487 Renato Aqui é comida italiana

805 1488 Maria é

806 1489 Renato aqui sabe como faz, bota ( ) bota no pão com azeite e come

1490 no pão com azeite

807 1491 Maria me casei, não sabia cozinhar aprendi assim

808 1492 Sandra é bem, bem estilo italiano, né?

809 1493 Renato não fica acanhada não, viu

810 1494 Sandra não pode deixar

1495 (..)

811 1496 Renato sabe essa moça aqui?

812 1497 Maria ó aqui ta a salada, não ta temperada, viu

813 1498 Renato nunca botou um prato. Veio a aprender comigo e com os meus

1499 parentes

814 1500 Sandra Ah! Então por isso que é luzzitana (risos)

815 1501 Renato Um dia, mas isso foi há vinte e quatro anos.

Page 191: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

ENTREVISTA VITTORIO

Page 192: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

192

Entrevista realizada dia 03 de fevereiro de 2007

01 01 Sandra ( )

02 02 Vittorio Ta fazendo dia dois, “fiz” de quarenta e nove para dois mil e

03 sete, cinqüenta e...Nossa Senhora!

03 04 Sandra Cinqüenta e oito anos, então?

04 05 Vittorio ( )

05 06 Sandra Desculpe, qual é a data?

06 07 Vittorio 29 de julho de 1949.

07 08 Sandra E veio de avião? ((risos))

08 09 Vittorio E vim de avião. Quer dizer, levou trinta e seis horas voando, veio

10 enguiçando por aí afora.

09 11 Sandra Ah que horror.

10 12 Vittorio Descemos no Senegal, em Dacar, depois paramos em Natal no

13 Rio Grande e depois no Rio de Janeiro, quando chegava no Rio

14 Rio de Janeiro vinha quatro motores, eram quatro motor a as

15 asas eram utilizadas como tanque de combustível.

11 16 Sandra Hum-hum.

12 17 Vittorio É que a viagem era longa, naquela época era Pistão não

18 existia Jato nada, disso nem tudo é ( )

13 19 Sandra E parando, né?

14 20 Vittorio Não, uma coisa a gente vinha enguiçando, porque como ele

21 tinha treze lugares só, ele só tinha asa e tanque e não

22 explodia, né? E quando chegou no Rio de Janeiro pra descer

23 quebrou dois motores, pifou o terceiro e a asa virou, o piloto

24 conseguiu acertar, se bate com a asa explodia. Então a

25 chegada foi assim. ( ) não porque eu era garoto, tinha

26 treze anos.

15 27 Sandra Tudo era festa, né? Não tinha noção. (risos)

16 28 Vittorio É, não tinha noção das coisas, mas depois que ( )

29 passagens anteriores.

17 30 Sandra Hum-hum.

18 31 Vittorio (....) e a “Itália” foi fundada em mil novecentos e quarenta e

32 e seis. Tinha três anos, três anos. Quando viajava pra Itália,

33 às vezes que eu viajava bastante, ia comissário com comandante

34 na cabine e tudo, pessoal ia, mas pessoal pioneiro porque a

35 Itália foi fundada em quarenta e seis, eu vim viajando em

36 em quarenta e nove, realmente era um negócio... Um dos

37 primeiros a utilizar o ( ).

19 38 Sandra Quando falou, eu achei que fosse navio, aí falou de avião...

20 39 Vittorio Não, não. Eu, eu fiz uma viagem de navio sim, mas foi em

40 mil novecentos e sessenta... eu me formei, fiz direito, me

41 formei em mil novecentos e sessenta no Rio né, e em

Page 193: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

193

42 sessenta e um, a minha avó tinha permitido depois que eu me

43 formasse, quatorze anos depois, eu saí garoto voltei homem

44 feito, aí eu fui de navio e voltei de navio, onze dias de

45 viagem pra ir e onze pra voltar, hoje onze pra ir onze pra

46 voltar acabaram as férias. ((risos))

21 47 Sandra É, muito tempo, né? Mas você falou que vocês vieram pra

48 ficar no Rio de Janeiro?

22 49 Vittorio Não eu vim, eu vim não pra ver o Rio de Janeiro eu vim por

50 causa dos meus avós, né. Porque o meu avô tinha uma empresa,

51 que era “Del Fiore” né, passou a ser Sociedade Anônima

52 Mandorla. E, lá na Itália, apesar do meu pai ser mádico, o meu

53 avô farmacêutico, e tudo, nós “era” triste com a guerra ( )

54 no período do pós guerra na Itália faltava tudo, a Itália tinha

55 sido destruída, bombardeada, quer dizer, a Itália, ela é um

56 desembocador, tudo que chega na Europa passa na Itália

57 ( ).

23 58 Sandra É.

24 59 Vittorio Então, não existia nada, não tinha, faltava tudo: faltava

60 gasolina, faltava pneu, faltava... não tinha nada. A guerra ( )

61 foi em agosto de quarenta e cinco, eu nasci em trinta e seis...

25 62 Sandra Hum-hum.

26 63 Vittorio Eu tinha nove anos. (......) saí pra rua cantando: “acabou a

64 guerra, acabou a guerra”! Eu tinha nove anos, então ta bem

65 vivo na minha memória, então acabou em quarenta e cinco, eu

66 vim em quarenta e nove, de quatro anos após a guerra estava

67 estava tudo destruído, a Itália foi...

27 68 Sandra Seu pai trabalhou...

28 69 Vittorio Meu pai era médico, que na época do Mussoline chamava

70 Médico “com douto”, era o médico que atendia o município,

71 era médico, oftalmologista, pediatra, ortopedista.

29 72 Sandra Fazia de tudo um pouquinho.

30 73 Vittorio Fazia de tudo porque porque era só ele. Toda a população do

74 município na faixa etária minha, nasceu pelas mãos do meu

75 pai.

31 76 Sandra Hum-hum.

32 77 Vittorio Consertava braço e perna quebrada da turma que trabalhava na

78 zona rural, à colher azeitona, buscar fruta...

33 79 Sandra Então ele recebia azeitona, porquinho, essas coisas todas. Isso

80 é o que o pessoal conta, que os médicos cuidavam de alguém e

81 recebiam...

34 82 Vittorio Ele não recebia, nem cobrava porque não tinham dinheiro pra

83 pagar, uma dava uma galinha outra mandava uma cesta de figo

84 (risos), é engraçado mesmo era uma época que o meu pai ( ),

Page 194: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

194

85 fase boa da vida, né?

35 86 Sandra O seu pai era médico morava na Itália e o seu avô já tava no

87 Rio?

36 88 Vittorio Isso, o meu avô já tava aqui. O meu avô...

37 89 Helena [Materno, né.]

38 90 Vittorio É que eu tenho dois ramos da minha família. O do meu pai que

91 é família Mango, ta todo na Itália, da minha mãe Mandorla

92 todo no Brasil. Então...

39 93 Sandra Seu pai conheceu sua mãe...

40 94 Vittorio É, acontece o seguinte: Todos eles eram italianos, o meu tava

95 no Brasil, mas ele foi pra Itália, a minha mãe tinha sete, oito

96 anos quando conheceu meu pai, foram pra lá, se conheceram,

97 foram colegas de infância depois ela veio pra cá, aí o papai

98 veio pro Brasil, começou a namorar minha mãe, noivou e

99 casou e foi embora pra Itália. E eu tenho alma de brasileiro

100 porque eu fui de contrabando daqui pra lá,quando a minha mãe

101 foi pra lá já estava grávida, foi embora e eu nasci na Itália,

102 minha mãe morreu, ( )

41 103 Sandra Mas foi de parto?

42 104 Vittorio Olha ela aqui ó. (risos) Essa é a minha mãe.

43 105 Sandra Linda!

44 106 Vittorio Dizem que ela era muito bonita, né?

45 107 Sandra Muito bonita!

46 108 Vittorio Não a conheci, tinha vinte anos, vinte e um anos, era novinha.

109 Você tem que idade?

47 110 Alessandro Foi no parto.

48 111 Sandra Trinta e dois. (risos)

49 112 Vittorio Trinta e dois? Eu pensei que você tinha vinte e quatro, vinte e

113 cinco, engraçado, ela não parece ter trinta anos , não. Parece

114 ser bem menor. Mas ela tinha vinte e um anos...

50 115 Sandra Era nova ainda...

51 116 Vittorio Então, você vê o quê que é o destino, a minha mãe foi pra lá,

117 estava grávida, eu nasci lá, acabei vindo pro Brasil. Eu viajei

118 com a minha mulher pra Itália e tinha um problema e tal,

119 voltou de lá grávida também, então ele foi também de

120 contrabando.[referindo-se ao filho mais velho que estava na sala]

52 121 Sandra ( )

53 122 Alessandro Foi realmente uma coisa interessante né, por que minha avó

123 engravidou aqui e ele nasceu lá, já a minha mãe engravidou

124 lá e eu nasci aqui.

54 125 Sandra Então não tem desculpa, né. É meio a meio.

55 126 Vittorio Você vê, o fato de eu ter sotaque, eu tenho, eu tenho sotaque

127 carioca. Você não vai achar outro Italiano que tenha passado

Page 195: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

195

128 tantos anos...

56 129 Sandra Na Itália, né?

57 130 Vittorio Nascido lá, passado a adolescência lá, como é que chama, o

131 Renato né? Ele tava lá também, o Renato?

58 132 Sandra Não, não, não.( )

59 133 Vittorio Ele chegou em Barra do Piraí oito dias antes de mim. Eu

134 cheguei no dia vinte e nove de julho ele chegou dia vinte e um.

135 E com a minha idade, ele tem mais ou menos a minha idade.

136 Você conversa com ele e vê o sotaque dele é um negócio

137 assim...

60 138 Sandra Italiano puro.

61 139 Vittorio Italiano puro e eu já... Eu cheguei, fiquei mudo durante muito

140 tempo porque era muito encabulado, ficava com medo de errar,

141 com vergonha eu era todo cheio de frescura, garoto inseguro,

142 insegurança todos nós temos mas naquela época era mais ainda

143 porque saí de um mundo que falava italiano, não falava

144 português, não entendia nada, não conhecia meus avós direito,

145 não conhecia, pra mim era tudo...

62 146 Sandra Hum-hum.

63 147 Vittorio Mas eu comecei devagarzinho estudando, me apaixonei pela

148 língua portuguesa e gostava, estudei um ano no São José ( )

149 fui desenvolvendo e acabei que era o melhor aluno de

150 português da turma lá no São José, porque me dedicava, tinha

151 que aprender, né. Então, fui bom aluno de português, de vez

152 em quando errava, ortograficamente ( ) é difícil, mas eu

153 sempre gostei de português.

64 154 Sandra Hum-hum.

65 155 Vittorio Sempre fui bom em português, e perdi o sotaque, falo com

156 sotaque carioca, mas mantenho o sotaque italiano, quando

157 vou lá também, me escondo no meio e ninguém percebe.

158 ((Risos))

66 159 Sandra ((Risos))

160 Com os seus avós aqui, você falava italiano?

67 161 Vittorio No início sim, só italiano,né.Não tinha como.Só falava italiano.

68 162 Sandra Português só na rua?

69 163 Vittorio E dialeto, hein. Era o dialeto da minha região, por que a Itália

164 tem vários dialetos. Na rua tentava falar português no início,

165 depois não, depois eu comecei a pensar em português, sonhar

166 em português...

70 167 Sandra Hum-hum.

71 168 Vittorio Pensava em português, sonhar em português, aí ta bom, mas

169 no início era só italiano. Esperei um ano pra aprender a falar

170 português, cheguei em quarenta e nove e só em mil novecentos

Page 196: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

196

171 e cinqüenta, depois meus tios colocaram no professor

172 particular ( )... Como é que era o nome dele Helena?

173 Barbosa Leite, né?

72 174 Helena É, Barbosa Leite.

73 175 Vittorio E ele foi meu primeiro professor...

74 176 Sandra É, na rua ali, na entrada do... ( )

75 177 Vittorio Meu primeiro professor de português. E comecei a ( ) aqui

178 e refiz o terceiro ano ginasial no Colégio Municipal Nilo

179 Peçanha, que naquela época era ali na esquina, onde hoje é

180 Barão de ( ).

76 181 Sandra Na Itália você fez até o terceiro ano?

77 182 Vittorio Até o terceiro ginasial, aí eu vi que tinha aqui.

78 183 Helena O colégio era estadual, não era municipal não.

79 184 Sandra ( ) era calabrês, falava italiano ( ).

80 185 Vittorio Calabrês não, eu, eu nasci acima da Calábria.

81 186 Helena Em Campagna.

82 187 Vittorio Em campagna, eu nasci na campagna. A Calábria é pra baixo,

188 a cidade, o município chama-se ( ) , é a cidade da

189 cidade, é uma aldeiazinha.

83 190 Sandra ((risos))

84 191 Vittorio Nasci aqui, nessa casa aqui ó, essa casa a gente morava na

192 aldeia. ((risos)), que chama garrazzano, garrazzano que em

193 italiano é com dois erres e dois zes, que é uma fração do

194 município de ( ) que pertence a província, que aqui é

195 como se fosse o estado, aqui tem estado lá tem província

85 196 Sandra Hum-hum.

86 197 Vittorio Então era a minha província que é a província de ( ),

198 cinqüenta e quatro quilômetros de ( ).

87 199 Alessandro Aqui, ela é professora de italiano,

88 200 Vittorio Ela conhece da Itália, ta fazendo doutorado, já passou pelo

201 mestrado e tudo.

89 202 Alessandro Entre outras coisas, né.

90 203 Sandra Não, a Itália ( ) pequenas frações.

91 204 Vittorio Fração né. Fração é o município ( ) tem três, quatro frações

205 uma a duzentos metros da outra, em cima do monte assim...

92 206 Sandra E depois de sessenta você foi outras vezes também...

93 207 Vittorio É eu voltei umas trinta, quarenta vezes. Voltei umas duas

208 vezes, minha mulher foi umas quinze ou vinte vezes comigo,

209 férias pouco a gente tirava mas era obrigado a ir por causa das

210 muitas máquinas, o macarrão por exemplo, os melhores

211 equipamentos de macarrão são italianos de Milão, então pela

212 facilidade da língua eu preferia viajar.

94 213 Sandra Hum-hum.

Page 197: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

197

95 214 Vittorio Depois tem a Alemanha com as salsicharias, a Espanha por

215 causa do presunto, dos Estado Unidos então eu fazia estes

216 circuitos pra participar das feiras, pra conhecer as máquinas.

217 Eu já viajei muito, inclusive junto com eles, comigo eles foram

218 duas vezes, umas dez eu fui sozinho e a minha mulher foi

219 comigo umas quinze vezes

96 220 Sandra Hum-hum.

97 221 Vittorio A gente viajou muito, viajamos bastante. Sempre que possível

222 eu procurava levar, mas muitas vezes eu viajava sozinho. Às

223 vezes com colega de trabalho mas vezes até sozinho mesmo.

224 Teve uma vez que saí daqui numa terça-feira, pouco

225 movimento, peguei quatro poltronas, deitei, dormi aqui

226 acordei em Roma. ((risos))

98 227 Sandra ((risos))

99 228 Vittorio Foi a melhor viagem que eu tive, dormi a viagem inteira! Mas

229 geralmente ia acompanhado, quando não da família, dos

230 colegas de trabalho, ( ) fui várias vezes.

100 231 Sandra E a fábrica foi fundada quando? Foi pelo seu avô mesmo?

232 Vittorio É foi pelo meu avô. Na realidade o seu início foi em mil

233 novecentos e dezoito o meu avô se chamava Carlo Mandorla,

234 então em mil novecentos e dezoito ele criou Carlo Mandorla

235 e Cia.

101 236 Sandra Hum-hum.

102 237 Vittorio Em mil novecentos e trinta três ele transformou Carlo

238 Mandorla e Cia em Sociedade Anônima Mandorla, e veio

239 assim até os anos setenta, e no final de sessenta, sessenta e

240 nove, setenta, quando a Del Fiore entrou em propaganda

241 anexou o nome Bel Prato e ficou Sociedade Anônima

242 Mandorla Del Fiore e depois passou a ser Del Fiore S.A.

243 A marca ficou tão forte que acabou tirando ( )

103 244 Sandra Del Fiore era só um seguimento da empresa?

104 245 Vittorio Não, Del Fiore era a empresa.

105 246 Alessandro Era inicialmente a marca dos produtos.

106 247 Vittorio É a marca dos produtos.

107 248 Sandra Como um nome fantasia?

108 249 Vittorio Isso nome fantasia.

109 250 Sandra O nome fantasia era Del Fiore e...

110 251 Vittorio Tinha outras marcas, mas o mercado foi tão forte que ele

252 sobrepujou todos os demais, passou a ser tão forte que acabou

253 eliminando o nome de Mandorla e passou a ser Del Fiore

254 S.A., Del Fiore S.A. Era Mandorla Del Fiore e depois passou

255 a ser Del Fiore S.A.

111 256 Sandra Hum-hum

Page 198: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

198

112 257 Vittorio Na época que abriu o capital, as bolsas...

113 258 Alessandro O Mandorla veio pra cá quando?

114 259 Vittorio O ( ) dele no final do século XIX, ele nasce em mil oitocentos

260 e setenta e dois , me parece e veio pra cá em mil oitocentos e

261 noventa e sete.

115 262 Alessandro Ele veio então pra Barra do Piraí?

116 263 Vittorio É ele veio... não veio bem pra Barra do Piraí, acabou vindo

264 com vinte e cinco anos. Viajou no navio e trabalhou nas

265 caldeiras do navio pra chegar com um trocadinho aqui.

266 Ele era analfabeto... você vê que coisa bonita o avô que era

267 analfabeto que montou a Del Fiore o outro que era que falava

268 latim, então tem os dois extremos,uma coisa bonita, né.

117 269 Alessandro E que ano, que ano que ele veio?

118 270 Vittorio Ele veio em mil oitocentos e noventa e sete, mil oitocentos

271 e noventa e sete

119 272 Alessandro Desceu aonde?

120 273 Vittorio Ele desceu no Rio de Janeiro e trazia no bolso um papel com o

274 endereço de uma pessoa conhecida, de uma tia dele.

121 275 Sandra Hum-hum.

122 276 Vittorio Aí ele desembarcou no cais, não sabia falar português nem

277 nada, tinha um padeiro, italiano que ele pediu informação, se

278 conheceram no cais do porto, e ele disse: “Eu não posso te

279 levar lá, mas eu tenho que trabalhar, mas no final do meu

280 trabalho”... Então ele passou o dia todo entregando pão junto

281 com ele...

123 282 Sandra Hum-hum

124 283 Vittorio Pra no final do dia ser levado para o tal endereço, onde ele

284 tinha uma pessoa conhecida. Bom aí fica até um pedaço

285 obscuro porque eu não lembro de outros detalhes, só lembro

286 que ele veio parar em cruzeiro, ficou um tempo em cruzeiro

287 E veio para Barra do Piraí onde ele começou as atividades

288 com... ele começou, inicialmente ele vendia fazenda nas

289 fazendas, vendia corte de fazenda, era mascate, chamado de

290 mascate naquela época, as pessoas que viajavam pelas

291 fazendas vendendo as coisas, né.

125 292 Sandra Hum-hum.

126 293 Vittorio Comércio antigamente não existia. Então ele foi vendendo

294 cortes de casimira ( ) Ele levava vários tipos, pra escolha,né,

295 Mas ficavam em dúvida. Aí ele chegou a conclusão que tinha

296 que levar poucos tipos pra não haver dúvida, então só levava

297 dois ou três, porque eram muitas opções.. ((risos))

127 298 Sandra ((Risos))

128 299 Vittorio Passou a levar só duas ou três estampas... ele sempre

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199

300 comentava isso, sobre aquela objetividade. Aí depois montou

301 uma empresa e começou, começou a matar porco e vender

302 suíno aí fazia banha e a carne salgada, a industrialização... e

303 depois veio a época da guerra aqui também, com os problemas

304 controles... chamava-se Cofap ( ) Comissão Federal de

305 Abastecimento e Preço.

129 306 Sandra Hum-hum.

130 307 Vittorio O Brasil sempre teve a mania de controlar os preços o que

308 felizmente acabou graças ao Sarney, isso é uma coisa que

309 pertence ao passado, mas foi uma fase complicada, que a

310 política que precede tudo tentava dominar a parte comercial.

131 311 Sandra Hum.

132 312 Vittorio Hoje está provado que o mercado é o que funciona. Mas

313 naquela época se tentava direcionar o mercado, então tinha

314 controle de preços e tudo e o controle é tão grande nos

315 produtos que ele resolveu diversificar, então botou uma fábrica

316 de macarrão, pra não depender apenas de um insumo que era o

317 porco.

133 318 Sandra Ah.

134 319 Vittorio Que era controlado assim. Então ( ) comprou umas máquinas

320 para fazer macarrão, e era umas máquinas com uns parafusos

321 enormes que misturava, a masseira muito rudimentar, botava

322 nos parafusos que espremiam nos buracos para sair macarrão,

323 cortava com a mão, pendurava num bambu, metia numa sala

324 com ventiladores enormes, lá ele ficava cainhava...

135 325 Sandra Hum-hum.

136 326 Vittorio Tem até uma história engraçada por que...

137 327 Alessandro Cainhava é ótimo, né?

138 328 Vittorio Cainhar é quando fica todo rachadinho, trincar, trincar é, ou

329 Mofava, né. ((risos))( ) Macarrão Cruzeiro.

139 330 Sandra ((risos))

140 331 Vittorio Tem até um fato interessante por que o vovô foi... ele casou,

332 depois separou etc, se juntou a outra mulher, a minha avó foi

333 pessoa maravilhosa e nasceram três filhos, o primeiro foi a

334 minha mãe, o segundo foi o Cesar que foi presidente da Del

335 Fiore até morrer, depois eu tive que assumir e o outro foi o

336 Eduardo que foi o dissidente da família, caçula da família.

141 337 Sandra Hum-hum

142 338 Vittorio Mas, o Cesar que era o segundo filho, né, a minha mãe.

339 morreu quando eu nasci, estudou química, então era um

340 técnico, todo perfeccionista, gostava das coisas... Foi ele que

341 começou a Del Fiore e tudo. Também nasceu lá, veio com oito

342 meses, nasceu, nasceu...

Page 200: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

200

143 343 Sandra Uma viagem, né?

144 344 Vittorio Nasceu nessa casa aqui...((risos))

145 345 Sandra Ah, ta...((risos))

146 346 Vittorio O Cesar era perfeccionista, aí ele chegou e começou a mexer

347 uma porção de coisas, chegou ao macarrão ( ) o piso tinha

348 cedido, o concreto, então ele resolveu fazer uma coisa bem

349 Feita. Tirou as máquinas, botou o piso no nível, botou as

350 máquinas no prumo, arrumou tudo direitinho, ligou e nunca

351 mais a fábrica de massas funcionou nunca mais conseguiu

352 fazer macarrão, porque as máquinas tinham ganho as formas

353 do piso que foi cedendo, e elas foram se acomodando quando

354 botou tudo no prumo não teve jeito, e ficou pra trás a fábrica

355 de macarrão.

147 356 Helena ( )

148 357 Sandra Pois é, né ((risos))

149 358 Alessandro Não pula a ordem cronológica, não.

150 359 Vittorio Mas vamos botar ordem... porque senão depois ela se

360 confunde, eu não... quando você achar que eu to devagar

361 você me acorda.

151 362 Sandra Ah ta! ((risos))

152 363 Vittorio Então nós estávamos na vinda do meu vô Mandorla, que no

364 início veio como mascate nas fazendas, depois ( ) suínos,

365 Fabricação ( ), macarrão...

153 366 Alessandro Fumo de rolo...

154 367 Vittorio Fumo de Rolo e cachaça, tinha o porco que abatia que fazia

368 banha, depois o macarrão, tinha fumo de rolo, aqueles rolos de

369 fumo ( ), tinha cachaça, engarrafava cachaça, comprava e

370 Minas e tinha cachaça capacete de aço que na época da guerra

371 tinha então que parecia capacete de aço, era cachaça famosa.

155 372 Sandra Hum-hum.

156 373 Vittorio Foi representante da Brahma e era correspondente do Banco

374 do Brasil, ele era uma pessoa muito respeitada e tal, e era

375 correspondente do Banco do Brasil, até a primeira agência

376 passou pelas mãos dele. E aí o tem pó foi passando, chegamos

377 aí aos anos cinqüenta. Eu já cheguei em quarenta e nove,

378 convivi com meu avô por dois anos, ele faleceu no dia vinte e

379 um de abril de mil novecentos e cinqüenta e um, ele tinha

380 nascido em setenta e dois, então ele estava com setenta e nove

381 Anos. Vinte e oito com cinqüenta e um, é setenta e nove anos,

382 faleceu em cinqüenta e um. Ele faleceu o Cesar tinha vinte e

383 tantos anos na época, assumindo as empresas ( )era fim de

384 ano, eu estava estudando um bocado de coisas, fazendo o

385 terceiro ano ginasial na escola Nilo Peçanha, fui pro Rio fiz ( )

Page 201: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

201

386 São José, na Usina...

157 387 Sandra Hum-hum.

158 388 Vittorio Um internato mas eu era externo, só assistia as aulas, eu ia

389 almoçar porque morava ( ) que era pertinho, pegava o

390 bonde ia almoçar, voltava e almoçava e ainda assistia as aulas

391 ( ) então eu era externo. Aí eu resolvi fazer Direito, e tive

392 que sair do São José porque naquela época só havia dois

393 cursos: clássico e o científico. Quem fosse fazer Letras,

394 Filosofia, etc... ou Direito tinha que fazer clássico, que tinha

395 letras, filosofia. Agora quem fosse fazer Engenharia Medicina

396 etc, tinha que fazer o científico.

159 397 Sandra Hum-hum.

160 398 Vittorio Eu acho que uma das razões que me fizeram pensar em sair foi

399 que ali só tinha homem, né.

161 400 Sandra Hum-hum

162 401 Vittorio Então eu já estava ficando crescido não é possível ver só

402 marmanjo e o Lafaiete não, Lafaiete tinha muita mulher, muita

403 menina bonita e tal e eu ficava de olho comprido, e aí acabei

404 indo pro Lafaiete fazer o curso prático ( ). Em cinqüenta e

405 dois, eu estudei lá uns anos, né, ( ) porque meu nome ta lá na

406 estátua do padre, estudei no ano do cinqüentenário ( ).

407 Cinqüenta e três, cinqüenta e quatro e cinqüenta e cinco eu

408 estudei no Lafaiete, que era misto, tinha o feminino e o misto,

409 a minha turma era de oito homens para quarenta e duas

410 mulheres, era a sala do paraíso.

163 411 Sandra Depois de vir de um colégio só com homens...

164 412 Vittorio E foram três anos, aí eu fiz o cursinho pra fazer vestibular, que

413 tinham muitos candidatos pra poucas vagas, mas eu passei

414 junto com o terceiro ano e passei direto pra entrar na

415 faculdade... cinqüenta e cinco, cinqüenta e seis... Comecei em

416 cinqüenta e seis o primeiro ano, cinqüenta e sete, cinqüenta e

417 oito, Cinqüenta e nove, sessenta: cinco anos de ... No primeiro

418 ano eu freqüentei as aulas direito, depois comecei a trabalhar e

419 já não ia... mas... Comecei a trabalhar na Del Fiore... Mas

420 quando faltava uns vinte dias pra prova, onde estivesse eu me

421 trancava, pegava os livros e sempre passei ( ) Fazia questão

422 que eu usasse o anel, que se usava anel de advogado, e ele caía

423 e depois que eu casei botava isso aqui pra segurar. Até que um

424 dia caiu tudo da minha mão e eu não usei mais nem aliança

425 nem nada. Mas ela ficou brava aí, então voltei a usar aliança

426 ( ) ((risos)).

165 427 Helena ( ) ((risos)).

166 428 Sandra ((risos)).

Page 202: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

202

167 429 Vittorio Vamos fazer quarenta e um, fizemos quarenta anos de casados,

430 desde mil novecentos e sessenta e seis. E aí comecei, estudava

431 e trabalhava ao mesmo tempo e aí começou a minha vida de

432 cigano, né.

168 433 Sandra Hum-hum.

169 434 Vittorio Eu vivia na estrada, trabalhando na Del Fiore, até a Del Fiore

435 falir, em mil novecentos e noventa e seis. Foi uma vida muito

436 ( ) , perdi tantas coisas, devo ter feito muita besteira, mas

437 aprendi muita coisa e foi um aprendizado extraordinário de

438 vida, de tudo, né. Então esse é um grande resumo, né, agora

439 vê lá que você quer saber mais alguma coisa, algum detalhe...

170 440 Sandra Você tava falando que você estudou, e na época você estudava

441 e trabalhava e tava Rio – Barra ( )

171 442 Vittorio É. Não, não, a Del Fiore vendeu direto, e eu cuidava no

443 marketing, toda a parte comercial ficava comigo.

172 444 Sandra Hum-hum.

173 445 Vittorio Cesar na presidência, tio Eduardo, meu tio, na parte de

446 produção industrial, e eu na parte comercial... televisão,

447 propaganda na TV Globo, aqueles patrocínios do carnaval,

448 então tinha...

174 449 Alessandro Desculpa, eu tenho uma reunião agora, vou te deixar aí, fica

450 à vontade com o meu pai. Depois minha mãe vai ligar pra o

451 Dr. Geraldo Di Biase pra ver se já marca de uma vez. Ta bom?

452 Tchau.

175 453 Sandra Ta, obrigada.

176 454 Vittorio Tchau meu filho, vai com Deus.

177 455 Sandra Tchau.

178 456 Vittorio Então eu cuidava da parte comercial da empresa, isso me

457 obrigava a estar ( ) tinha na época de... em sessenta e nove a

458 Del Fiore começou com propaganda, e foi pioneira porque

459 ninguém do ramo alimentício fazia propaganda na televisão. A

460 Del Fiore foi a primeira...

179 461 Sandra Hum-hum.

180 462 Vittorio Em dezembro de sessenta e nove, fiz um Outdoor do Tender,

463 presunto tender, que tava próximo o natal e depois começou

464 com aquela musiquinha: Del, Del, Del, Del Fiore...

465 Sandra [Del, Del Fiore...]

181 466 Vittorio A gente tinha casa em Angra dos Reis e o gerente da TV

467 Globo muito meu amigo...

182 468 Helena Gerente comercial.

183 469 Vittorio É gerente comercial, ia lá pra passar o final de semana,

470 então quando ia acertar o carnaval ele disse: Não Vittorio,

471 aqui não, tem que ser lá na sua casa em Angra. A gente pegava

Page 203: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

203

472 a lanchinha que tava lá, saía de lancha, passeava...

184 473 Helena Ele era uma jóia.

185 474 Sandra Hum-hum

186 475 Vittorio Na hora da gente, de ir embora ele dizia: Ih ainda não ( ) e

476 papapapapa, resolvia tudo! ((risos)). A Del Fiore que fazia lá o

477 patrocínio do carnaval, etc. Era assim que a coisa funcionava

478 e com propaganda, foi crescendo... Cheguei a ter cento e vinte

479 vendedores no Rio de Janeiro

187 480 Sandra ( ) Rio Branco, né?

188 481 Vittorio Depois a gente foi pra Brasília, Belo Horizonte...

189 482 Helena Bahia.

190 483 Vittorio Bahia, Salvador, São Paulo, Espírito Santo, fui abrindo... e

484 viajava muito por que participava das convenções

191 485 Helena Essa parte eu gostava.((risos))

192 486 Sandra Gostava...((risos))

193 487 Vittorio Ela me ajudava muito porque ia e fazia camaradagem com as

488 mulheres dos donos de supermercados, então ficava uma coisa,

489 uma linha assim de amizade intensa com todo mundo, ela

490 passou a conhecer ( ), passamos a conviver dentro da casa,

491 um relacionamento maravilhoso, mas isso me obrigava a pegar

492 o avião e estar sempre lá. E a gente unia o útil ao agradável,

493 Porque era uma coisa que era minha obrigação e era gostoso e

494 tal...

194 495 Sandra É. ((risos)).

195 496 Vittorio E o pessoal começava, cantoria e eu gostava de cantar,cantava

497 trazia o microfone e cantava aquelas coisas bonitas...

196 498 Sandra Hum-hum.

197 499 Vittorio E eu era bastante encabulado no início e depois passei pra

500 outro esquema, depois pegava o microfone e quanto mais

501 gente tinha do lado melhor pra mim... ((risos))

198 502 Sandra ((risos)) Gostava de público...

199 503 Vittorio É, é.

200 504 Helena Tinha um dos donos das Casas da Banha, olha como eu me

505 dava bem com ele, e eu falava: ó ce vai parar de vender lá nas

506 Casas da Banha, olha o quê que sua mulher ta falando com o

507 Júlio! Que era o cunha dele, flamenguista doente e eu caía no

508 riso. Por que eu sou fluminense, né!

201 509 Sandra ((risos)).

202 510 Helena Ce não vai mais vender nas Casas da Banha. ((risos)).

203 511 Vittorio Inclusive o Valdemar, que era um dos donos da Casa da Banha

512 Um dia ligou aqui pra casa e disse: Vittorio estou precisando

513 de uma bolsa alimentícia, que era presidente da bolsa aqui no

514 Rio, uma bolsa que mandava pro Mercado Brasil, aí tudo bem,

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204

515 aí eu fui ser diretor da bolsa durante três ou quatro gestões ( ).

204 516 Sandra ((risos))

205 517 Vittorio Engraçado, né, era pra eu ser fluminense, porque a bandeira

518 Italiana... Mas você sabe porque que eu num... Eu gosto do

519 fluminense, torço e tudo, mas em primeiro ta o Vasco, em

520 segundo fluminense.

206 521 Sandra Hum-hum.

207 522 Vittorio Pra eu poder estudar aqui no Brasil, temos que voltar aos anos

523 cinqüenta, eu tive que fazer o que chamava na época exame de

524 adaptação. Todo estrangeiro pra poder continuar os estudos

525 aqui tinha que fazer exame de geografia do Brasil, história do

526 Brasil e português, é... eu tinha estudado geografia, estudava

527 geografia mundial, tudo bem. Estudava história mundial, mas

528 você tem história do país, geografia do país...

208 529 Sandra Hum-hum.

209 530 Vittorio Então tinha que fazer essas três matérias: geografia, história e

531 português. Tinha que fazer exame de adaptação pra passar e

532 continuar e eu fui pro Rio fazer, mas minha avó tinha vindo

533 pra Barra, o alto da Boa Vista estava fechado ali, então eu

534 tinha que ficar na casa do sogro do meu tio, fiquei uns quinze

535 dias na casa dele pra fazer o exame.

210 536 Sandra Hum-hum.

211 537 Vittorio E o filho dele Humberto Ferrini, era diretor social do Vasco da

538 Gama. E uma coincidência, nesse ano de mil novecentos e

539 cinqüenta foi inaugurada a sede náutica do Vasco da Gama na

540 Lagoa Rodrigo de Freitas, que até hoje é bonito, imagina,

541 imagina cinqüenta e sete anos atrás... aquilo era um disbunde,

542 era uma coisa maravilhosa. Aí ele pegou e disse: “Não, eu vou

543 te levar pra jantar hoje”. E me levou pra jantar e botou na mesa,

544 você como não era nascida, o Ademir Menezes – o Queixada

545 que foi o maior goleador que o Vasco teve, Antônio Campos e

546 o Chico que era um dos expoentes da seleção brasileira e

547 jogava no Vasco da Gama...

212 548 Sandra Hum-hum.

213 549 Vittorio Isso com um garoto de quinze anos... eu ia fazer o que, eu virei

550 vascaíno na mesma... ((risos))

214 551 Sandra ((risos))

215 552 Vittorio É pegar um garoto hoje e botar com, com Romário... esses

553 jogadores famosos aí. Pra um garoto de quinze anos... de trinta

554 e seis à cinqüenta, estava com quatorze anos, então um garoto

555 com quatorze anos... virei vascaíno.

216 556 Sandra Hum-hum.

217 557 Vittorio Mas o meu avô, agora me lembrei, meu avô era analfabeto, ele

Page 205: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

205

558 Foi ( ) no Rio e o camarada exigiu o recibo, então teve que

559 botar impressão digital, e o cara disse assim: “Mas senhor

560 Mandorla, o senhor um empresário assim não sabe escrever?”

561 Passou uma humilhação o meu avô e saiu de lá chorando,

562 soprando ar e, já tinha cinqüenta e quatro anos, disse: “Eu vou

563 aprender a ler e escrever”. Botou professora e aprendeu a ler e

564 escrever, ganhou a vida dele lendo jornal, cadernos de notícia.

565 Você vê o que é a força de vontade, cinqüenta e quatro anos...

218 566 Sandra Hum-hum.

219 567 Vittorio Aprendeu a escrever, a fazer recibo direitinho. Tava falando

568 da minha vida, né... Faculdade, trabalho... Bom, não sei...

220 569 Sandra Tava no colégio ((risos)) levou dez anos pra conhecer...

570 ((risos)).

221 571 Vittorio Não eu conheci no campo de futebol

222 572 Helena Ah não, eu gosto muito de futebol e eu freqüentei muito o

573 Moirão, que é o meu time que é tricolor também. E ele e o

574 pessoal dele freqüentava muito lá, aí a gente, tinha uns amigos

575 meus, tudo homem casado mas sempre ligado ( )

223 576 Vittorio Eu andava com gente mais velha, eu só andava com gente

577 casada, meus amigos eram todos na faixa do meu tio que a

578 diferença era de dez anos, tem uma fase da vida que essa

579 diferença é grande, depois a diferença desaparece e na velhice

580 torna a aparecer, Mas ela some depois dos vinte anos.

224 581 Sandra Hum-hum.

225 582 Vittorio Todos casados, e ela freqüentava muito lá e acabei conhecendo

583 ela lá.

226 584 Helena Não, lá no Moirão tem a parte social, a arquibancada social e

585 Dentro da arquibancada social tinha telhadinho que a gente

586 chamava de tribuna. Então quando eu conheci aquele campo

587 todo e tinham quatro ou cinco que moravam na minha rua...

227 588 Vittorio ( )

228 589 Helena Uns quatro ou cinco que moravam na minha rua, eram

590 conhecidos da minha mãe... então eles me adotaram, eu ficava

591 Muito sozinha, porque as outras colegas não gostavam... então

592 eu ia, não queria nem saber, queria companhia. Então eles me

593 adotaram e diziam: “Você vai sentar aqui com a gente”. E um

594 dia eu cheguei e estava muito cheio, então eu sentei na social

595 mas não na tribuna, aí conversava e o pessoal falando: “Por

596 que você não sentou lá?” E aí o pessoal começou a mexer

597 comigo, mexer com ele.

229 598 Sandra Então os mais novos eram vocês?

230 599 Helena É, eu então... ( ) E tinha dezessete, dezoito anos. Então eles

600 começaram a fazer sarro com a gente. Depois a gente namorou

Page 206: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

206

601 por três anos, quando, quando eu namorei mais firme, assim,

602 eu já tinha me formado e já tava dando aula ( )

231 603 Sandra Hum-hum.

232 604 Vittorio Muito bem. Vamos voltar, senão...

233 605 Helena Isso foi em sessenta... em sessenta e seis a gente casou.

234 606 Sandra Então foi em sessenta e três?

235 607 Helena Não a gente começou antes, né. Mas ele foi pra Itália. Em

608 sessenta e um ele foi pra Itália, eu estava me formando.

236 609 Vittorio Disseram pra ela que eu já era casado lá...

237 610 Helena Não, é que tinha uma senhora, que ele foi namorado da neta

611 dela...

238 612 Vittorio Namorada eu só tive você.

613 Helena Aí ele foi namorado da neta dela e depois terminaram. Mas ela

614 falava: “Não fica triste não, o Vittorio não casou com a minha.

615 neta, não casou com você porque ele é noivo na Itália”.

616 E eu com isso?

239 617 Vittorio É uma riqueza grande na vida da gente ter duas pátrias, duas

618 famílias, muito carinho com a gente é um negócio fantástico,

619 né. Eu tenho um amor pelo Brasil... Eu sei o hino brasileiro

620 inteiro e não sei o italiano, quase não ouço, né, então é natural.

240 621 Sandra A maior parte dos italianos não sabe também! ((risos))

241 622 Vittorio Ele é complicado.

242 623 Sandra É impressionante.

243 624 Helena ( ).

244 625 Sandra Não, não sei. Porque o hino nacional italiano tem uma letra

626 que não dá pra entender. ((risos)).

245 627 Vittorio Tem umas partes ( ) que tem que interpretar o hino. O

628 brasileiro não, o brasileiro é...

246 629 Helena ( ) O pai dele com três anos de viúvo,casou de novo...

247 630 Sandra Você disse que depois teve muitos filhos...

248 631 Vittorio Ele casou a segunda núpcias lá na Itália, né, e eu tenho um

632 irmão que morreu novinho e tenho duas irmãs e a minha

633 Madrasta que de madrasta só tem o nome, né...

249 634 Helena É a sogra que eu conheço.

250 635 Vittorio Ela é mais ao meu favor do que das filhas, até hoje. Chora, diz

636 que eu tenho que ir. Esse ano não fui, ano passado não fui,

637 fomos em dois mil e quatro. Então ela é uma criatura

638 maravilhosa, está com oitenta e cinco anos, já quebrou fêmur,

639 quebrou bacia, quebrou tudo, mas sobe e desce escada,

640 cozinha, varre.

251 641 Helena Ela gosta quando eu to lá que quando ela levanta eu já fiz café,

642 Quando eu venho embora ela chora: “Quem é que vai fazer

643 me café?” Eu falo: “Sua filha ta aí, bota ela pra fazer.”

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207

252 644 Sandra ((risos)) E tem duas irmãs que estão com quantos anos?

253 645 Vittorio Uma é de quarenta e dois outra de quarenta e quatro, você é de

646 quarenta e três. De quarenta e dois que é a Alessandra que tem

647 seis a menos do que eu. Porque o papai casou sendo três anos

648 viúvo e três anos depois já tinha a Alessandra e a Cassia cinco

649 anos depois. São as duas irmãs.

254 650 Sandra Hum-hum.

255 651 Vittorio Duas irmãs, né. A primeira não tem filhos e a mais nova

652 também casada, as duas são casadas, duas irmãs casadas com

653 dois irmãos e tem dois filhos...

256 654 Helena Tiveram aqui, agora.

257 655 Vittorio É foram embora em janeiro

258 656 Helena ( )

259 657 Vittorio E vimos nascer, né. Ela trocou fralda ( ) então ficou uma

658 ligação muito grande, muito forte, porque o italiano é muito

659 Sentimental, né.

260 660 Sandra É.

261 661 Vittorio Eu, por exemplo, vendo um filme choro à toa, não tenho

662 vergonha, realmente a emoção fica a flor da pele, muito

663 sentimental. Eu fui criado, não tive mãe mas tive uma porção

664 de mãe, então... o que me atrapalhou por que eu achava que o

665 mundo tinha que girar em volta de mim.

262 666 Sandra Hum-hum.

263 667 Helena È o príncipe da aldeia.

264 668 Sandra ((risos))

265 669 Helena Até hoje ele vai ( )

266 670 Vittorio É, e eu era filho do médico que era ( ) e o padre que me

671 batizou que era muito amigo do papai, então eles era o poder,

672 então eu era o Dom Vittorio, Dom, tinham essas coisas do

673 passado.

267 674 Helena Uma vez eu tomei um susto danado e falei: “Meu Deus, caí na

675 máfia!” ((risos))

268 676 Sandra ((risos))

269 677 Vittorio ( ) Felizmente isso não subia à minha cabeça, pelo contrário

678 eu achava ruim porque eu queria andar descalço igual aos

679 outros, que não tinham possibilidade, mas eu tinha que usar o

680 sapato e quando o pessoal bobeava eu tirava o sapato e saía

681 descalço. Chegava em casa: “Mas tem que botar o sapato!”

682 “Mas eu quero ficar igual aos meninos!” Na minha infância,

683 adolescência...

270 684 Helena Quando eu cheguei a primeira vez na Itália, que eu vi pessoas

685 descalças, eu adoro andar descalça, né, a tia dele tomou um

686 susto, falou: “Você vai machucar o pé!” Eu falei: “Por que?”

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208

271 687 Sandra ((risos))

272 688 Helena E eu adoro andar descalça e aí que ele falou, que na Itália pra

689 aquele pessoal antigo, quem anda descalço é pobre.

273 690 Vittorio O meu avô que faleceu... Nós já éramos casados, não é?

274 691 Helena Não, sessenta e sete. Tínhamos um ano de casados.

275 692 Vittorio É um ano de casados...

276 693 Vittorio Eu quando voltei lá...( )

277 694 Helena Não ele morreu em sessenta e oito, no ano que a gente... ( )

695 ele morreu em março...

278 696 Vittorio É em março de sessenta e oito. Mas quando eu estive, em

697 sessenta e um eu tive lá, então eu revi o meu avô, minha avó já

698 tinha falecido. E o meu avô, ele era farmacêutico, ele era uma

699 pessoa muito instruída, estudava latim e quando eu fiz o

700 vestibular, tinha latim no vestibular...

279 701 Sandra Hum-hum.

280 702 Vittorio O professor era ( ) que conhecia e tal e caiu num trecho lá

703 que eu conhecia e pediu pra eu dissertar eu dissertei, a turma

704 toda parou, todo mundo começou a bater palmas, mas o

705 senhor, como o senhor conhece isso e tal, aí eu expliquei pra

706 ele e disse: “Olha eu nasci na Itália”. Ele disse: “Não, eu sei, o

707 senhor falando a gente sente um sotaquesinho”... “Mas o meu

708 avô era farmacêutico e falava latim com o padre, que era o meu

709 tio. Resultado eu fui obrigado a estudar latim mesmo”.

710 E foi aquela coisa, tirei dez. Natural, porque...

281 711 Helena O avô dele falava latim...

282 712 Vittorio O avô falava latim.

283 713 Vittorio O meu avô era juiz de paz, nos conflitos de limites de terra, ele

714 era...

284 715 Helena Era farmacêutico e juiz.

285 716 Vittorio É, é. Era farmacêutico e juiz de paz.

286 717 Vittorio E além disso ele era o conselheiro, ele era o Dom Eliseo,

718 então ele falavam: “Não, o Dom Eliseo falou, ta falado!”Ele

719 era muito justo. Ele tinha aquela noção de... Como meu avô

720 Mandorla aqui tinha uma noção de honradez que todo mundo

721 fala que meu avô era homem, né. Então realmente...

287 722 Sandra Interessante, que aqui também você conta ( ).

288 723 Helena ( )

724 Vittorio ( )

725 Sandra ( )

289 726 Vittorio Porque ali tinham as regras básicas de moral e de ética, hoje a

727 moral é elástica. Foi assim que nos dois ramos da minha

728 família só tem exemplo de correção, né.

290 729 Sandra Hum-hum.

Page 209: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

209

291 730 Vittorio Mas o vovô um dia de madrugada, batendo na porta, ele foi

731 abrir, tinha um cara com um capote, barbudo, eu estou com um

732 probleminha, precisava de um remédio... ele disse: “Pois não,

733 que problema é o teu?” Que a farmácia, ele morava na aldeia,

734 tinha que subir uma escada e tava na praça, na praça pública

735 tinha farmácia.

292 736 Sandra Hum-hum.

293 737 Vittorio Aí eles foram de madrugada, tudo escuro, tudo deserto, a luz

738 veio depois, né. Era da minha época a luz. E foram lá e ele

739 preparou lá a emulsão, botou num copo e o camarada virou pra

740 ele e... : “prima Lei”, você fala italiano e sabe o que é isso você

741 É professora de italiano, dá aula : “Prima Lei”. Aí meu avô

742 pegou o copo, quando chegou na boca o camarada disse:

743 “Dom Eliseo!” Ajoelhou no chão e, papai me contando isso,

744 “Dom Eliseo, o senhor me perdoa, eu conheço a honra do

745 senhor, não devia ter feito isso, mas a vida que a gente leva”...

294 746 Sandra Hum-hum.

295 747 Vittorio “A polícia me procura, eu fui obrigado a matar fulano de tal,

748 minha família não sabe onde eu estou, mas eu estou escondido

749 na caverna tal, o senhor é o único a saber, agora, onde me

750 Escondo”. Sabia seu nome, filho de quem era, quem tinha

751 matado, por que tinha matado. Falou: “Eu fui obrigado a

752 matar, mas a polícia desconhece isso, agora, eu só posso lhe

753 agradecer, pedir desculpas e dizer pro senhor que se algum dia

754 alguém incomodar o senhor, atravessar o seu caminho,

755 Cometer uma injustiça, o senhor me procura”. ((risos)). Como

756 É seu nome?

296 757 Sandra Sandra.

297 758 Vittorio E o papai me contou, mas o vovô não contou pra ele o nome

759 da pessoa e onde estava, nem ele me contou, até porque não

760 Sabia. Conhece a história, mas não sabe, porque o vovô

761 morreu com esse segredo, não disse, ele contava a história,

762 contava o milagre, mas nunca contou o santo nem o milagre

763 que tinha feito...É uma coisa assim que fica, né!

298 764 Sandra É.

299 765 Vittorio Umas coisas do passado... Então tem os dois ramos... Meu pai

766 casou e minhas irmãs estão lá. Agora aqui no Brasil,

767 Mandorla ficou aqui.

300 768 Sandra Suas irmãs, elas trabalham?

301 769 Vittorio Trabalham... A minha irmã mais nova aposentou-se agora, foi

770 professora, a vida inteira, aposentou-se junto com o marido

771 que era do exército, coronel no exército italiano, comandante

772 lá no batalhão, mas se aposentaram os dois. A irmã mais velha

Page 210: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

210

773 também professora, deu aula e aposentou-se como professora,

774 mas tem consultório, que ela fez psicologia, então ela tem um

775 consultório, onde ela atende, ta sempre atendendo gente

776 Procurando, porque ela é boa no que faz, ela continua atuante.

302 777 Maria Agora ta na política.

303 778 Vittorio É, ela é muito procurada, tem expressão e tudo e o homem que

779 se elegeu prefeito lá em Salerno, pediu a ela pra ajudar, fazer

780 discurso de posse e não mais o quê, então ela ta... Não é

781 atuante, mas é que chamaram ela...

304 782 Sandra De pano de fundo...

305 783 Vittorio O prefeito que se elegeu era muito amigo do dono da clínica

784 ( ), onde ela trabalha há vinte, trinta anos, e o dono da

785 clínica pediu pra ela ajudar, então ela ta fazendo... ajudando,

786 pra o homem se eleger, ta lá agora.

306 787 Sandra O senhor disse que a luz chegou na sua época, como é que foi

788 isso, a chegada da luz na cidade?

307 789 Vittorio A luz chegou, eu me lembro que a tia ( ) que é sogra do meu

790 pai, né, ela tinha uma casa na praia, que ali era muito

791 montanhoso, ( ) são doze, quinze quilômetros. Ela tinha

792 casa ali e eu acabava de prestar exame, passei, fugia pra casa

793 dela e passava os três meses de verão lá, na praia. Era uma

794 coisa maravilhosa.A tia ( ) então era uma coisa muito

795 ligada... Então quando veio a luz eu estava em Pietro, deve ter

796 sido, deve ter sido em... trinta e seis, quarenta e... foi antes,

797 antes do armistício, eu devia ter uns cinco, seis anos. Quarenta e

798 dois, quarenta e três, e eu dizia: “Tia “pepita”, come sei bella!”

799 por que veio a luz então via como ela era bonita, antes era só a

800 luz da vela, você não via... Foi uma acontecimento que me

801 marcou, porque o pessoal falava... ( )

308 802 Sandra Hum-hum.

309 803 Vittorio Eu tinha cinco, seis anos, quando veio a luz na aldeia. Em

804 quarenta e cinco, três ou quatro anos antes de eu vir pro Brasil.

805 Bom o quê que a gente podia comentar mais

310 806 Sandra Durante a guerra assim...

311 807 Vittorio É durante a guerra eu estava, o meu pai era militar e meu tio,

808 um dos dois tios também era militar. Meu pai foi oficial, era

809 Tenente, viajava ( ) Albânia... Todos os colegas do papai

810 morreram, todos caíram. E ele ficou... Não tinha trauma, não

811 mas ficou marcado com a guerra, só se lembrava da guerra

812 com tristeza... e, e acabou morrendo de problema no coração,

813 mas ele acha que o problema era da guerra, morreu com

814 oitenta anos, oitenta e oito. Tava mal e tudo, quando cheguei

815 já tinha morrido, eu o encontrei ainda, mas já morto.

Page 211: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

211

312 816 Sandra Hum-hum.

313 817 Vittorio Mas ele, ele... aquela guerra tem coisas, passagens muito

818 tristes, porque faltava tudo. Como a minha família tinha

819 propriedade ali, então tinha a gordura, tinha rebanho de

820 ovelha, que eles faziam queijo, tinham cabrito, tinham galinha

821 que a propriedade era grande então a gente tinha uma certa...

822 Mas faltava tudo

314 823 Sandra É...

315 824 Vittorio Eu me lembro que eu escutava o barulho das bombas...

316 825 Helena Eu vou tomar um banho que eu tenho um compromisso agora,

826 ( ) Vou pedir a Sara

317 827 Vittorio Quer tomar um cafezinho? Pede a ela pra trazer aqui. Com

828 açúcar ou adoçante?

318 829 Sandra Não, não...

319 830 Helena È o café da máquina italiana...

320 831 Sandra ( )

321 932 Vittorio Não, é como se fosse... É, é aquela que bota o, a água embaixo e

833 o pó em cima.

322 834 Sandra Eu tomo sem açúcar.((risos)) Eu comecei a tomar café na

835 Itália, era de maquininha e sem açúcar... ((risos))

323 836 Vittorio Já ta acostumada...

324 837 Sandra A primeira vez foi uma bomba! ((risos))

325 838 Vittorio É porque ele é forte, né!

326 839 Sandra Eu nunca tomava café ( ), tomei e comecei a sentir uma dor

840 no estômago, desceu igual a uma bomba...

327 841 Vittorio ((risos)) Muito forte! Mas nós estávamos falando da luz...

328 842 Sandra Não, aí a gente falou da guerra, né.

329 843 Vittorio É, é, é. Da luz e depois da guerra, né. A gente parou na guerra.

844 Voltando ao barulho da guerra, eu ouvia lá da minha vila,

845 escutava o barulho das bombas dos Aliados chegando na praia

846 de Pestum. Pestum, você conhece bem lá, logo encostada em

847 Salerno, Pestum é ali, aquela parte ali, é ali que eles

848 desembarcaram. Eles desembarcaram em um lugar que você

849 de lá de casa escutava, entendeu, porque é um lugar

850 relativamente perto. Da minha casa até Salerno são oitenta

851 quilômetros, então se ouvia o barulho das bombas. Os

852 americanos lançavam de avião, algo que chamavam de Ratti,

853 Erre, a, te,te, i. Ratti. Não era uma bomba, tinha a queda

854 iluminada. Ele descia devagarinho e iluminava pra bombardear

855 lá embaixo. Então lá de casa, olhando, a gente via aquilo

856 descendo.

330 857 Sandra Hum-hum

331 858 Vittorio Depois vinha o bombardeio. E eu me lembro dos alemães

Page 212: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

212

859 passando, embaixo de casa, porque a minha casa era estrada

860 embaixo assim, as forças passando, os alemães armados, mas

861 ali não houve guerra, ali. Sofreu as conseqüências da guerra,

862 tem outra história interessante pra te contar que é o seguinte:

332 863 Sandra Hum-hum.

333 864 Vittorio Falou-se da invasão, falou-se em problemas das insulinas, a

865 história ( ), que depois separou, a Itália virou casaca, virou

866 pros americanos e tal, virou, fez parte dos aliados. Mas houve

867 uma época sob a invasão. E nessa época da invasão o pessoal

868 tinha muito medo, porque a guerra estava ali perto, era como

869 ter a guerra na porta de casa. Então o quê que acontecia, o

870 pessoal da aldeia resolveu guardar coisas lá em casa, a

871 confiança que se tinha no meu avô, no meu pai era tão grande

872 que a aldeia toda resolveu guardar alguma coisa de valor lá

873 casa...

334 874 Sandra Hum-hum

335 875 Vittorio Então o quê que fizeram, a minha casa tem vinte e seis

876 cômodos umas paredes de dois metros. Pra você ter uma idéia

877 no porão da casa, que está transformada em residência, toda

878 limpa por sinal, tinha engenho pra fazer vinho e engenho pra

879 fazer azeite. O meu avô com os caminhões transportava azeite,

880 vinho. Tudo no porão da casa, aí você faz uma idéia do que é.

881 Tinha uma trave de madeira que tinha o quê, nove metros de

882 comprimento, e o meu avô descia tudo, explicar é complicado,

883 mas era ali que fazia o engenho todo...

336 884 Sandra Hum-hum.

337 885 Vittorio Na casa tinha uma escada pra baixo, e embaixo dessa escada

886 tinha um vão, então o quê que resolveram, aquilo era um

887 cômodo, uma escada grande, o cômodo era metade dessa

888 saleta aqui. Então o quê que aconteceu, todos os habitantes da

889 aldeia, cada um levou um baú, lá, com dinheiro com jóias,

890 Relógios... E a gente fez uma parede, fechou, sem nada e

891 escureceu a parede, passou carvão e tudo, envelheceu a parede

892 de modo que você chegava e não via aquilo, via a escada mas

893 não existia nada. Então se porventura houvesse invasão, depois

894 abria lá e cada um tinha como recomeçar a vida. Não houve

895 invasão na minha zona, e eu me lembro de quando foi aberto

896 aquilo, abriu e tudo mofado... não tinha jeito, a umidade e

897 tudo... mas as coisas estavam lá, guardadas lá em casa de

898 modo que cada um levou o seu baú, depois da guerra e cada

899 levou as suas coisas, lá em casa como sempre, pra uma

900 emergência.

338 901 Sandra Hum-hum

Page 213: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

213

902 A minha casa tinha, em dois cômodos na parede umas pedras

903 almofadadas, as pedras sem pré tem um buraquinho, ( )

904 tinham umas pedras com desenho assim, a fresta e o gordinho

905 aqui, lugar pra poder botar a espingarda. Por causa das

906 invasões do banditismo que existia naquela época...

339 907 Sandra Ui!

340 908 Vittorio Opa! Então era um negócio... Cuidado pra você não queimar

909 a mão, isso quente é horrível! Obrigado.

341 910 Sandra Então a pessoa dormia com espingarda do lado?

342 911 Vittorio Oi?

343 912 Sandra Podia dormir com a espingarda do lado?

344 913 Vittorio Com a espingarda do lado. Mas lá em casa nunca houve nada

914 porque todo mundo respeitava, mas tinha, na época do

915 banditismo, nos anos trinta, vinte e oito... Chega a ter um

916 filme: Juliano, o bandido da Sicília.

345 917 Sandra Hum-hum.

346 918 Vittorio Então lá em casa tinha, o vovô contava, né, sacos de areia na

919 janela e tal, pra quando chegasse e atirasse bater na areia, mas

920 nunca houve isso, a casa sempre foi respeitada... a única que

921 foi respeitada foi a nossa. O meu avô era aquele cidadão acima

922 de qualquer suspeita então... Ta muito quente, você conseguiu

923 tomar?

347 924 Sandra Não, ainda não. To esperando um pouquinho...

348 925 Vittorio Deixa esfriar um pouquinho...

349 926 Sandra É.

350 927 Vittorio Então são coisas que ficam, né, registradas... Guardar

928 pertences pra caso houvesse invasão das forças. Não houve a

929 invasão, mas a gente ouvia ali as bombas, o barulho, o exército

930 passando...

351 931 Sandra Quando o exército passava, o máximo que pedia era comida...

932 pedia coisas?

352 933 Vittorio Às vezes pediam cigarro, paravam e pediam cigarro pra o

934 pessoal da aldeia... mas era um relacionamento assim, nunca

935 houve nenhum fato... nada que acontecesse de grave, não. Me

936 lembro uma vez que eu fui pra Anápolis, a minha tia que me

937 criou casou e foi pra lá. Então a família morava na via Átrio...

938 (toca o telefone. Vittorio atende)

939 (ao telefone) Alô, Vittorio, pai dele. Nem sei se o Bruno

940 está aqui, deixa eu ver... Ô Sara, o Bruno ta aqui? Ele ta

941 descansando, quer que acorde? Hum, hum, ah vou acordar ele

942 já. Agora, ele mesmo. Vou acordar ele já, já. Obrigado.

353 943 Sandra Você tem quantos filhos? Isso eu não sei ainda.

354 944 Vittorio Tenho três filhos.

Page 214: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

214

355 945 Sandra Quantos anos?

356 946 Vittorio Eu tenho o Alessandro que é solteiro, que estava aí que você viu,

947 é o mais velho, nasceu em sessenta e nove, tem trinta e... trinta

948 e oito... trinta e sete, trinta e oito anos, vai fazer trinta e oito. O

949 Bruno que é o do meio, trinta e seis e a caçula que é a Marcela,

950 trinta e quatro. De dois em dois anos. São três filhos, dois

951 homens e uma mulher. E tenho três netos. Dois são do Bruno

952 que você vai conhecer, vai passar aqui. Uma neta que vai fazer

953 quatorze anos, do primeiro casamento dele, separou, casou

954 separou de novo e tem um filho que ta com ele aqui, que

955 ta com cinco anos. Renata que é a mais velha, vai fazer

956 quatorze...

357 957 Sandra Hum-hum.

358 958 Vittorio Francisco, que vai fazer cinco e a Roberta que é filha da minha

959 caçulinha e vai fazer três anos. São três filhos e três netos.

359 960 Sandra Duas netas e um neto, né?

360 961 Vittorio É, duas meninas e um menino. ( ) Geraldo é muito meu

962 amigo, educado, várias coisas, mas eu lembro do pai do

963 Geraldo, ele ta com noventa anos... O seu Di Biase, conheci o

964 pai dele, tinha um bar aqui na esquina, cumprimentava a gente.

361 965 Sandra Lá perto do cinema?

362 966 Vittorio Hum-hum.

363 967 Sandra Porque eu lembro que lá tinham uns bares...

364 968 Vittorio É exatamente ali. ( ) era ponto de encontra da turma da

969 Barra, velho Di Biase, são figuras que marcaram a cidade, o

970 meu avô marcou Speranza. Onde é que você vai? Viu? Quarenta

971 e um anos e ainda tenho ciúme de você!

365 972 Helena E eu quarenta e um e nunca tive ciúme!

366 973 Vittorio Eu sempre fui muito imaturo, esse casamento durou esse

974 tempo todo graças a ela. Se fosse outra, tinha se mandado.

975 Imaturo e grosso. Eu fazia muita grosseria com ela, um

976 machismo que eu queria me afirmar... Não tenho vergonha

977 disso não. Dos primeiros anos até os cinco, seis anos de

978 casado... depois eu fui amadurecendo, fui aprendendo, vendo

979 O que ela necessita... Mas no início a gente ficou casado por

980 causa dela, que enfrentou a barra pesada da grosseria, da

981 Estupidez... Imaturo, não estava preparado para o casamento.

982 Não se pode imaginar a idiotice que eu era...

367 983 Sandra Casou com quantos anos? Ela tinha dezessete, dezoito anos,

984 né?

368 985 Helena É.

369 986 Vittorio É mesmo? Nós casamos e já tinha, vinte...

370 987 Sandra Vinte e um.

Page 215: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

215

371 988 Vittorio Eu também era jovem, já fui jovem, ta!

372 989 Helena Jovem todo mundo já foi!

373 990 Vittorio Eu fiz setenta, né. A falência da Del Fiore foi um choque, e eu

991 me tornei diabético... emocional, né.

374 992 Sandra É.

375 993 Vittorio E foi bom pra mim... Eu já tinha uma vida bastante regrada, de

994 alimentação... e algum exercício. Já tinha deixado de fumar em

995 Mil novecentos e...

376 996 Sandra Oi, tudo bom?

377 997 Bruno Tudo bom?

378 998 Helena Foi um prazer te conhecer, fica à vontade... Vittorio, depois

999 liga pra casa do Geraldo, que eu já falei com ele, é só ela

1000 marcar.

379 1001 Vittorio Eu não sei o telefone do Geraldo.

380 1002 Helena Dois cinco cinco dois...

381 1003 Vittorio Pra quem sabe é ótimo...

382 1004 Helena Ta aqui, Vittorio! Tem dois telefones dele aqui, Geraldo

1005 Di Biase.

383 1006 Vittorio Mas aqui não tem a letra... Muito complicado isso aí pra mim.

1007 Qual é o telefone dele, fala aí pra mim...

384 1008 Helena Dois cinco cinco dois, dois nove sete sete.

385 1009 Sandra ((risos))

386 1010 Vittorio Dois cinco cinco dois...

387 1011 Sandra Dois nove...

388 1012 Vittorio sete, sete

1013 Sandra [sete, sete]

389 1014 Vittorio Agora já ta anotado aqui.

390 1015 Helena Se quiser o outro tem aí.

391 1016 Vittorio Você falou com ele mesmo?

392 1017 Helena Falei, mas ele falou que não era italiano, então eu mandei ele

1018 contar a história da família dele. O pai dele era uma pessoa

1019 assim... era um doce. Eu morava na rua dele. Beijo, tchau!

393 1020 Sandra Tchau.

394 1021 Vittorio O quê que a gente tava falando?

395 1022 Sandra Tava falando da falência, da diabetes, que foi emocional...

396 1023 Vittorio É, o problema... eu tinha uma vida já bastante desregrada. No

1024 primeiro ano de casamento... Eu deixei de fumar em mil

1025 novecentos e sessenta e oito. Quer dizer, quarenta anos. Eu

1026 comecei a fazer exercício, mas depois que tive diabete, tive

1027 uma semana desregrada, mas não passou de uma semana...

1028 depois fiquei assim... Pra quê morrer, né? Aceitei a doença, e

1029 em vez de brigar com a doença passei a brigar com o

1030 problema pra trazer solução, se você briga pra resolver, você

Page 216: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

216

1031 faz parte da solução. Eu dizia pro meu pessoal: “Gente, não

1032 vamos fazer parte do problema, vamos fazer parte da solução”.

1033 Aí eu passei a cuidar mais da alimentação e... eu sempre gostei

1034 muito de legumes, verduras, saladas... aqui em casa todo

1035 mundo também só come carne branca. E passei a ta fazendo

1036 exercício, né, a me exercitar. Quase todo dia eu ando três ou

1037 quatro quilômetros ( ). Então eu to levando uma qualidade

1038 De vida agora, melhor que antes de eu ter diabetes. A minha

1039 médica que diz: - Do jeito que o senhor leva a sério, o senhor

1040 ta melhor que quem não tem nada!

397 1041 Sandra Hum-hum.

398 1042 Vittorio Eu descobri isso em noventa e oito, foi em noventa e seis que a

1043 Del Fiore faliu... Dois anos depois que eu descobri a minha

1044 diabetes. Então eu faço meus exercício... ( ). ((risos))

399 1045 Sandra ((risos)) Mas também com as suas viagens no início, é

1046 complicado ter uma vida saudável...

400 1047 Vittorio Como assim?

401 1048 Sandra Quando você começou a trabalhar, você trabalhava viajando

1049 muito, né?

402 1050 Vittorio Muito, muito, muito.

403 1051 Sandra Então, assim, pra quem ta sempre na estrada ou no avião,

1052 jantar de negócios...

404 1053 Vittorio É, é complicado. Janta aqui, almoça lá... É complicado, é

1054 complicado. A vida agitada, agitadérrima. Podia levar até uma

1055 vida devassa, né... Você tem todas as facilidades. Eu fui pra

1056 Itália uma vez, em mil novecentos e setenta e três, enós

1057 tínhamos comprado uma máquina que vale um milhão de

1058 dólares... é o valor dela. E com o shopping ( ), eles ficaram

1059 quase malucos... ( ), depois peguei o avião e fui pra Milão,

1060 encontrar com os caras, lá. E fomos jantar e eles pegaram e

1061 trouxeram uma mulher pra mim! Até hoje eles riem da minha

1062 cara, mas você não tem que misturar uma coisa com a outra...

405 1063 Sandra Hum-hum.

406 1064 Vittorio Tava tratando de negócios.Podia sair muito caro, uma noite de

1065 farra. Então são essas coisas, né. Eu sempre procurei manter a

1066 vida particular dessas coisas...( ) às vezes o cara mistura as

1067 coisas e acaba estragando muito, pode acabar com o casamento.

1068 a idade tira da gente um pouco do físico, mas acho que ela

1069 acrescenta mais do que tira... A gente entende melhor as pessoas,

1070 compreendendo o ser humano, suas fraquezas..... a gente vai

1071 acrescentando conhecimentos que na balança pesam muito

1072 mais que o físico. A parte abstrata da vida, eu sempre ....

1073 eu sempre me questionei sobre... Que telefone chato!

Page 217: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

217

1074 ( )

1075 ( Toca o telefone, Vittorio atende).

407 1076 Vittorio Alô. Já saiu, já ta chegando aí, nada, tchau.

1077 Me lembro uma vez, nessas promoções de supermercado, o

1078 pessoal me chamava... ( ) Você acha que o fato político

1079 precede O econômico, ou o fato econômico precede o fato

1080 respondeu. E eu à questão de alguns meses... vi que o fato

1081 político precede o econômico, e a economia depende do

1082 mercado e para isto a democracia.

408 1083 Sandra Hum-hum.

409 1084 Vittorio Eu me lembro do Marco Aurélio( ) que dá cursos... e eu

1085 disse: “Pô Marco Aurélio... pra mim tava tudo muito claro,

1086 você pega o relacionamento do homem e da mulher e pega o

1087 relacionamento do empregado com a fábrica”. Vou te dar dois

1088 exemplos pra isso: Numa fábrica, você tem dois tipos de

1089 relacionamento, a parte funcional e a parte material. Então

1090 vamos na parte funcional. O empregado, em relação à fábrica,

1091 ele tem que ser o quê, tem que ser pontual, tem que ser

1092 honesto, tem que ser competente, tem que ser atencioso, tem

1093 que ter talento... então olha só que fecho... Vamos na parte

1094 material. Qual é o relacionamento? O salário. É por isso que

1095 em todas as pesquisas o salário nunca aparece em primeiro

1096 lugar, sempre aparece lá embaixo. Se você puser o salário na

1097 frente, você não é funcionário. Por que você acha que tudo

1098 isso aqui é bom por causa do salário. Não. O salário é

1099 conseqüência disso. Então a parte abstrata, ela precede a parte

1100 concreta. E no relacionamento marido e mulher, você tem o

1101 relacionamento afetivo e o físico. No afetivo você tem o quê?

1102 O amor, tudo bem. Mas representado pelo quê? Pelo respeito,

1103 pela compreensão, pela renúncia, pelo parceirismo, o pessoal

1104 gosta muito de usar a expressão, pela cumplicidade...

410 1105 Sandra É.

411 1106 Vittorio Então isso tudo...

412 1107 Sandra Admiração...

413 1108 Vittorio Admiração, isso tudo, forma o afetivo. E o relacionamento

1109 físico? É sexo! E aí tem muita gente que confunde, ah porque

1110 tem uma mulher bonita... Só que da mesma forma que quando

1111 você bota o salário na frente da competência... se você bota o

1112 sexo na frente... Quanto mais intenso é o relacionamento

1113 afetivo, muito mais prazeroso é o sexo.

414 1114 Sandra Hum-hum.

415 1115 Vittorio E as pessoas fazem confusão, às vezes, né. Tem que ver o quê

1116 que é causa e o quê que é conseqüência. Então isso é uma

Page 218: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

218

1117 conclusão que a humanidade inteira faz...

416 1118 Sandra ((risos))

417 1119 Vittorio Agora, eu cheguei a esse conhecimento agora, a esse

1120 aprendizado agora. Só depois dos setenta. Aos trinta, eu queria

1121 saber de festa, queria saber de salário... depois é que a gente

1122 chega à conclusão de que as coisas não são bem assim, né.

418 1123 Sandra Hum-hum.

419 1124 Vittorio Então é isso, minha filha. A vida da gente é assim... Vê se

1125 você quer perguntar mais alguma coisa, mas... Não tem pressa

1126 nenhuma.

420 1127 Sandra Não... eu fiquei curiosa, assim... Por que você falou que em

1128 noventa e seis foi à falência. Eu queria saber dos fatos que

1129 aconteceram... Por que a Del Fiore era uma empresa...

421 1130 Vittorio Era uma empresa viva no mercado.

422 1131 Sandra Que inovou, né. Você falou que foi a primeira em propaganda,

1132 em várias coisas, né. Tanto na parte do marketing, mas...

423 1133 Vittorio Pra você ter uma idéia, o negócio era tão sério, que eu de

1134 férias em mil novecentos e sessenta... Eu já tava trabalhando,

1135 me afastei, acabei ficando nove meses na Itália. O Cesar ouviu

1136 dizer que tinha um novo sistema de fazer macarrão, e conhecia

1137 Um homem que fazia a traquina, e as traquinas eram feitas na

1138 Itália. Fiquei amigo desse homem, até hoje é meu amigo. Teve

1139 até um fato engraçado, eu fui pra e fiquei na casa dele com a

1140 mulher dele e ele veio pra cá pra ficar na minha casa com a

1141 minha mulher, porque a gente desencontrou... A amizade foi

1142 tão grande que ele veio almoçar aqui e eu fui almoçar lá...

424 1143 Sandra Hum-hum.

425 1144 Vittorio Mas eu fui lá pra poder fazer um rigatone, sabe o quê que é

1145 rigatone...

426 1146 Sandra Sei, aquele goela de pato.

427 1147 Vittorio É goela de pato, isso.

1148 Só que lá na Itália tinha um sistema que em vez de a descarga

1149 ser neste sentido, era vertical e tinha uma haste de aço

1150 inoxidável no meio e ele ficava retinho, cortava embaixo, pra

1151 ficar o rigatone...

428 1152 Sandra Perfeito.

429 1153 Vittorio Perfeitinho. E eu trouxe de navio, pesava duzentos e tantos

1154 quilos... E fomos os primeiros a ter esse tipo de... Sai daqui,

1155 vai com Deus! Eu já dei o dinheiro pra você?

430 1156 Sara Não.

431 1157 Vittorio Não? Então toma. Acho que é trezentos reais, né?

432 1158 Sara Isso.

433 1159 Vittorio Aqui, vai com Deus. Então, a gente inovava sempre, inovava

Page 219: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

219

1160 sempre, são detalhes que fazem... A sua pergunta é por que a

1161 Del Fiore faliu, é essa?

434 1162 Sandra É, o quê levou, né. Porque assim...

435 1163 Vittorio É, é complicado. Porque esse daí é um aspecto familiar... E eu

1164 não gostaria que fosse devassado... Vamos dizer que é uma

1165 decisão da família. Era uma área que... Nós éramos três, né.

1166 Um tio queria progresso e tal, o outro queria a parte mais

1167 prática... Aquela velha história, sabe?

436 1168 Sandra Hum-hum.

437 1169 Vittorio Não ficar do lado esquerdo ou lado direito, aí se afastou e tal

1170 levou uma parte do capital... ( ) mas evidente que houve

1171 também falhas administrativas.

438 1172 Sandra Em noventa e três ainda estavam os três? Cesar e...

439 1173 Vittorio Não, não. Já não estava mais, era eu e o Cesar só. Ele se

1174 afastou e nós compramos a parte dele. Nós compramos com

1175 dinheiro que iríamos utilizar pra fortalecer a empresa.

440 1176 Sandra Investir na empresa...

441 1177 Vittorio Isso criou um problema financeiro sério na empresa ( ), ele

1178 era excelente administrador... mas não tinha aquela química

1179 que deveria existir... Mas, aconteceu que a gente ficou

1180 descapitalizado e sem capital, o problema que houve... e a

1181 gente comprou umas máquinas, modificou... E aí a gente ficou

1182 descapitalizado e o Cesar começou a pesquisa da carne

1183 desidratada que ninguém tinha, que foi criada... que veio da

1184 Del Fiore, tecnologia nossa. Com a carne desidratada começou

1185 a merenda escolar, naquela época não tinha, já eram algumas

1186 unidades escolares que podiam usar a merenda. Então a Del

1187 Fiore era uma dos grandes fornecedores da merenda.

442 1188 Sandra Hum-hum.

443 1189 Vittorio Fazia parte de um grupo, Sociedade Brasileira das Empresas

1190 ( ). Fornecia a merenda, só que na mudança de governo do

1191 Sarney e Collor, o Sarney saiu e o Collor entrou, nós tínhamos

1192 fornecido cem milhões de dólares, aí o governo numa pegada

1193 deixou de pagar dois milhões de dólares... Pra uma empresa

1194 que já vinha com dificuldades financeiras...

444 1195 Sandra Não tem como...

445 1196 Vittorio Aí realmente foi muito complicado. Aí, a Del Fiore parou as

1197 atividades em noventa e dois, parou por completo. Não tinha

1198 capital, não tinha... E o Carlo muito triste porque o sonho dele

1199 era a Del Fiore, em noventa e três, tentava ver se achava um

1200 parceiro, em sete de julho de mil novecentos e noventa e três,

1201 o Carlo ligou e disse: “Vittorio, estou aqui com um italiano e

1202 tal...” ( ), aí eu tive que assumir, a Del Fiore já estava parada.

Page 220: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

220

1203 Mas tinha um banco no Rio que estava interessado e nós

1204 fizemos um contrato de gestão com esse banco, me afastei da

1205 administração da empresa, tanto por uma questão de contrato

1206 como por uma questão de ética, eles que estavam investindo...

1207 Entreguei a empresa na mão deles, ( ) tinha uma dívida de

1208 quinze milhões e um valor patrimonial de quarenta e cinco

1209 milhões de dólares. Então a Del Fiore tinha uma dívida de

1210 quinze e valia quarenta e cinco...

446 1211 Sandra Hum-hum

447 1212 Vittorio Fora a marca Del Fiore que foi avaliada em cinqüenta milhões

1213 de dólares. Era o que se passava com a empresa... Quarenta e

1214 cinco de valor patrimonial...

448 1215 Sandra E mais a marca, né.

449 1216 Vittorio Mais a marca. Dois anos depois me devolveram a empresa, a

1217 dívida de quinze foi pra sessenta e quatro milhões... Aí quem

1218 faliu a Del Fiore foi o Vittorio... ((risos))

450 1219 Sandra ((risos)).

451 1220 Vittorio Tava na minha mão, né. Depois ainda fez um negócio com o

1221 Banco do Brasil... o Banco do Brasil fez vinte e duas reuniões,

1222 queria reabrir a Del Fiore, tinha interesse de botar a Del Fiore

1223 pra funcionar. Depois de vinte e duas reuniões, me chamou na

1224 sede do Banco do Brasil. Fizeram reuniões com os credores,

1225 ( ) debêntures, transforma em ações, tudo em ações da Del

1226 Fiore e a gente achou que a família iria ficar com dez por

1227 cento. Aí conversa com os familiares, leva o contrato e tem

1228 uns quinze dias pra resolver... Mas eu só disse: “Onde é que

1229 eu assino?” Eles diziam: “Não, não...” E eu: “Onde é que eu

1230 assino?” Eles acharam estranho, mas eu queria saber, queria

1231 salvar a Del Fiore... Tem até uma fotografia com o Arnaldo

1232 César Coelho, aquele comentarista da TV Globo, ele é muito

1233 meu amigo...

452 1234 Sandra Hum-hum.

453 1235 Vittorio Saiu na primeira página do Jornal do Comércio. Aí tem a

1236 fotografia e tal. Hum-hum! Aí passou a Del Fiore, mas não

1237 aconteceu nada. O Banco do Brasil estava patrocinando as

1238 Olimpíadas... ( ) Depois eu fui saber que o Banco do Brasil

1239 através da ( ) era dono da Perdigão. Só que eu queria reaver

1240 a metade, mas o Banco do Brasil não tinha interesse.

454 1241 Sandra Hum-hum.

455 1242 Vittorio São mil coisas que... Pode-se dizer que o problema foi

1243 político no sentido que o governo deixou de pagar dois

1244 milhões de dólares, né. E descapitalizou por completo. Tirando

1245 a família, administração que por mais que seja pungente ( ).

Page 221: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

221

1246 O fato é que nada foi feito e a Del Fiore faliu no ano seguinte.

1247 Perdi tudo que eu tinha, tive que recomeçar a minha vida por

1248 que... ( ) Não me arrependo de nada, sou feliz, consegui...Fui

1249 bastante mal tratado, bastante achincalhado, bastante

1250 prejudicado, mas não vale ódio, rancor... cada vez que você ta

1251 com raiva de alguém, você ta com a pistola virada pra sua

1252 cabeça, você injeta um veneno dentro de você. A outra pessoa

1253 nem ta sabendo. Não adianta ter ódio. Mas isso dizer é fácil,

1254 sentir é muito difícil... E eu consegui, agradeço a Deus por que

1255 tirei de dentro de mim, hoje não sinto ódio de ninguém, por

1256 isso que sou feliz, né, não tenho raiva de ninguém e consigo

1257 tocar minha vida com dignidade.

456 1258 Sandra Hum-hum.

457 1259 Vittorio Depois ( ) virou pra mim e disse: “Doutor Vittorio o senhor

1260 não tem juízo”. E eu; “Por quê?” Ele: “Porque enquanto o

1261 senhor tinha Del Fiore, nem aparecia na rua, agora o senhor

1262 vive pelas esquinas, o senhor se arrisca”. E falei: “Não meu

1263 filho, quem não deve não teme”. Eu nunca tive ninguém que me

1264 xingasse na rua, pelo contrário, teve fatos que me marcaram,

1265 gente com lágrimas nos olhos: “se voltar eu trabalho de graça

1266 pro senhor no início”. Coisa bonita, né.

1267 Sandra [Bonita... Era uma família]

458 1268 Vittorio A Del Fiore era uma grande família.

459 1269 Sandra Quantos empregados...

460 1270 Vittorio Chegaram a ter mil e duzentos. As pessoas falam até hoje.

1271 Outro dia veio um rapaz que era vendedor almoçar comigo

1272 aqui, e disse: “Doutor Vittorio eu ainda tenho chaveiro da Del

1273 Fiore, com a marca da Del Fiore, a logo”. Ele tem as coisas

1274 guardadas, quer dizer, ele fez um museu lá na casa dele.

461 1275 Sandra E a marca, o nome, continua com vocês?

462 1276 Vittorio É, continua com a massa falida, a massa falida da Del Fiore ta

1277 com a marca lá. Já faz dez anos isso. Foi pra estudar os

1278 advogados , o quê pode ser feito ( ).

463 1279 Sandra ( ).

464 1280 Vittorio Se alguém tivesse dinheiro, pra botar na Del Fiore, voltar a

1281 fazer macarrão... Por que toda uma geração foi marcada, é uma

1282 música que... Ta nas minhas entranhas, por que quando foi

1283 feito isso, o Aroldo foi o mentor disso tudo, né. Ele tinha

1284 estudado outra assinatura pra Del Fiore, isso em mil

1285 novecentos e sessenta e nove. Você não era nascida ainda. A

1286 assinatura não era essa, era outra assinatura que não gostei,

1287 falei com Carlo e ele me ouviu nessa parte. Eu era metido a

1288 fazer poesia, e pega, batuca com ritmo de samba, eu tenho

Page 222: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

222

1289 muito ritmo, então batuco com muita propriedade, deve estar

1290 no sangue. Não se...

465 1291 Sandra Hum-hum.

466 1292 Vittorio Mas a assinatura não era essa, era: “Del, Del, Del, Del Fiore...”

1293 Ainda não saiu, viu. Ta gravado aqui na minha cabeça.

467 1294 Sandra Ficou muito erudito?

468 1295 Vittorio Ficou muito erudito, eu gosto assim: “Del, Del, Del Fiore...”

469 1296 Sandra Marcou mesmo.

470 1297 Vittorio Marcou muito. Marcou toda uma geração, por que a gente

1298 inovou porque fez propaganda em filme e inovou porque fez

1299 desenho animado, que não se usava na época. E entraram...

1300 foram três filmes que marcaram, mas dois marcaram mais

1301 ainda: A fadinha e a chapeuzinho vermelho e o pé de trigo.

1302 eu tenho guardado aqui na cabeça, sei a letra e tudo, por que a

1303 letra fui eu que fiz. A da fadinha, né: “Pela estrada afora, eu

1304 vou bem sozinha levar um Del Fiore para a vovozinha ( ) eis

1305 Que numa curva, um lobo faminto disse para ela: - Eu vou te

1306 comer! ( ) Não precisa isso, vamos para vovozinha, comer...

1307 Del, Del, Del Del Fiore!”

1308 Sandra [“Del, Del, Del Del Fiore!”]

471 1309 Vittorio E o outro, tava em casa ( ), que era assim: “Era uma vez um

1310 menininho que plantou um pé de trigo, e o pé de trigo foi

1311 crescendo e nunca( ), o menininho subia... (Parecia desenho

1312 mesmo) chegando lá encontrou ( ) para saborear. A Del Fiore

1313 me deu uma energia, com a Del Fiore é gostoso todo dia.”

1314 Aproveitou até a época do sucesso, quer dizer, tinha um

1315 assobio, então, marcou a geração. Todo mundo que tinha, os

1316 jovens da época, as crianças de dez, doze anos, lembram da

1317 Musiquinha. Usaram desenho animado e tal. Então tem toda

1318 uma geração a Del Fiore.

472 1319 Sandra Hum-hum.

473 1320 Vittorio Você vê que você canta a música. Você disse que ta com

1321 quanto? Trinta e ...

474 1322 Sandra Trinta e dois.

475 1323 Vittorio Então por aí você vê, pega as pessoas todas que naquela

1324 época... De setenta e dois... setenta e um, setenta e dois, que

1325 tivessem nascido naquela época, hoje teriam trinta e poucos

1326 anos, trinta e poucos anos. Mas quem tinha mais de trinta anos

1327 Até sessenta anos, lembra da música. Quer dizer toda a

1328 geração de trinta, a cinqüenta, sessenta anos lembra. Você

1329 tava nascendo.

1330 Sandra [É, mas acho que cheguei a ver o filme...]

476 1331 Vittorio Chegou a ver por que depois passava, você como menininha

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223

1332 nova, porque a propaganda havia sido feita e foram dez anos

1333 de propaganda, então massificou. Essa assinatura: “Del, Del,

1334 Del, Del Fiore...” No carnaval... E eu me lembro que quem

1335 redigia os textos fui eu, chama-se texto foguete. Era a parte

1336 escrita que entrava no meio dos anúncios da escola de samba.

1337 a feijoada da vitória, que conhecia... A feijoada era nós que

1338 patrocinava, e aparecia uns textos que o início era assim:

1339 “Brinque à vontade, mas com Del Fiore de tarde, eu lhe

1340 Aconselho”. Fazia questão de botar o nome da cidade: “Del

1341 Fiore de Barra do Piraí sugere: Brinque à vontade, mas cuide

1342 da sua alimentação!” Era um foguete que entrava, como tantos

1343 outros...

477 1344 Sandra Hum-hum.

478 1345 Vittorio Esse foi o texto que eu redigi e fiz questão de botar, o Augusto

1346 César era gerente comercial, tava botando lá e esqueceu lá.

1347 Então era o sangue da gente... A vida da gente é feita de fases,

1348 E todas elas são boas, a melhor delas ( ). Muito rica, a minha

1349 vida é muito rica, agradeço a Deus por contar todas essas

1350 Histórias. Daria pra escrever um romance, o que tem de fatos

1351 e acontecimento que você pode citar, como causos, tantas

1352 fases, tanta coisa bonita... Histórias de amor, comentários que

1353 você faz... Muita coisa, tantos fatos que daria pra escrever um

1354 romance. Muita história pra contar pros netos.

479 1355 Sandra Hum-hum.

480 1356 Vittorio Fica à vontade, pode perguntar o quê você quiser. Ta tudo

1357 gravadinho aí, né.

481 1358 Sandra Espero que sim! ((risos))

482 1359 Vittorio Tomara que sim, que aí você pode ter, né.( )

483 1360 Sandra ( )

484 1361 Vittorio ( ). Em parte sim, né. Mas em parte a história nem deve ser

1362 contada

1363 O livro é da parte de administração?

1364 É, só relata o quê aconteceu, fala das pessoas, tem meu nome

1365 lá na parte comercial, e... e depois mostra quando falhe e faz

1366 perguntas pra saber por que teria acontecido isso, não, não

1367 discute o por quê não, mas fala da empresa, que a Del Fiore é

1368 uma das empresas, foi uma das empresas entre as quatro ou

1369 cinco famosas. Geralmente são empresas que marcaram, né.

1370 Com a marca, a propaganda. A Del Fiore realmente, as

1371 gerações que tem mais de trinta anos no Rio de Janeiro canta a

1372 musiquinha.

485 1373 Sandra Hum-hum.

486 1374 Vittorio Tem gente que nem sabe que a Del Fiore faliu, é muito forte.

Page 224: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

224

1375 Muito forte a marca, o macarrão... ( ) Enfim, foi um rio que

1376

1377

Sandra

passou em minha vida...

((risos))

487 1378 Vittorio Participei de tantos eventos, tantos acontecimentos... É muita

1379 história bonita pra contar. Muitas lembranças quase todas...

1380 Todas, maravilhosas. Lembrança é sempre boa. Diz que

1381 recordar é viver, né. Então a gente recorda o passado com

1382 alegria. As pessoas dizem; “Como é que pode, você tinha tudo

1383 e agora não tem nada, como você encara isso?” Com

1384 naturalidade...

488 1385 Sandra Hum-hum

489 1386 Vittorio E os provérbios italianos, são maravilhosos. Quantos... tem um

1387 então que é fantástico! Papai sempre gostava... Um dizia

1388 assim: - se ognuno in fronte scritto portasse i propri affanni

1389 ahimé quanti, che invidia fan, farebbero pietà. É difícil até de

1390 Traduzir. Se ognuno in fronte scritto portasse i propri affanni,

1391 na própria cara, ahimé quanti, quando... Olha que bonito isso.

1392 Muita gente que nos faz inveja...

490 1393 Sandra É aquela coisa, todo mundo tem seus problemas, alguns não

1394 demonstram...

491 1395 Vittorio Tem gente que só fala dos problemas, eu pelo menos falo do

1396 meu passado, ( ) é bonito você poder ser franco, transparente,

1397 um acha que a galinha do vizinho é sempre mais gorda e o

1398 outro... Nós temos problemas, mas... cada um tem que ficar na

1399 Sua, dar a sua contribuição, o outro não importa... É o beija-

1400 flor que botava uma gotinha d`água pra apagar o incêndio.

1401 Tava fazendo a sua parte. Por que se cada um fizesse a sua

1402 parte o mundo seria diferente. Se todo mundo pudesse nascer

1403 velho e morrer jovem, o mundo seria bem melhor. Porque é a

1404 tal história ( ), o importante é você saber que faz parte desse

1405 contexto. Se pudesse levar uma vida sem inveja, é impossível,

1406 utopia, mas sem inveja... Todo mundo vivendo com inveja... A

1407 mulher do vizinho é mais bonita que a minha, sabe, essas

1408 coisas. Não é assim. Cada pessoa é uma, suas fraquezas, seus

1409 valores, mas infelizmente só a parte filosófica é fácil, o

1410 concreto é difícil.

492 1411 Sandra Hum-hum.

493 1412 Vittorio Aquele exemplo da relação do casamento e da fábrica não

1413 pode ser esquecido. O dinheiro não pode vir antes da

1414 profissão, é como a religião, tem gente que nem acredita em

1415 Deus. Mas é como árvore. Deus é o tronco e os galhos são o

1416 cristianismo, catolicismo, protestantismo... são os galhos de

1417 uma árvore frondosíssima que é a crença. Não há diferença

Page 225: Quando o trem passa: retratos em 3x4 de italianos no sul fluminense

225

1418 entre as várias tendências políticas, como não há diferença

1419 entre as várias tendências religiosas. Você conhece alguma

1420 religião que faz mal a alguém? Agora é evidente, da mesma

1421 forma que você tem o sexo na frente do relacionamento, tem

1422 gente que bota a religião na frente, que só visa o bem material.

1423 Dessa forma é o charlatão, esse é o charlatão. Em política é a

1424 mesma coisa: PTB, PC do B, PSDB, você vê algum político

1425 que não visa o bem do povo? O político que invés de botar na

1426 frente o interesse da coletividade, põe o interesse próprio.

494 1427 Sandra Hum-hum.

495 1428 Vittorio Há uma inversão de valores. O importante não é o peixe, é

1429 saber pescar. Mas se a gente nascesse velho, no final, seria

1430 bem legal. Deveria nascer velho e morrer jovem, já nascia com

1431 sabedoria.

496 1432 Sandra Ia aproveitar muito.

497 1433 Vittorio Você é casada?

498 1434 Sandra Não.

499 1435 Vittorio É tem gente que casa virgem. Tem homem que casa virgem,

1436 mas tudo bem, não tenho nada contra. Eu até tenho algo

1437 contra, que eu acho que eu tenho hoje tranqüilidade com a

1438 minha mulher, porque o quê tinha de errado eu fiz quando

1439 podia fazer. A pior coisa que tem é o homem ficar velho e

1440 triste porque não fez na juventude o quê tinha que fazer. Tudo

1441 que você possa imaginar de errado eu fiz. Hoje eu não sinto

1442 falta. O que tinha de ruim eu consertei... Um dia eu cheguei no

1443 médico e ele falou: “Quê que você ta fazendo aqui?” E eu:

1444 Vim pra você me operar. Ele: “O quê é isso? Operar o quê?”

1445 “Cálculo renal”. E aí mostrei os exames pra ele, pra resolver

1446 logo.

500 1447 Vittorio (Telefone toca, Vittorio atende) Oi. Foi cortar cabelo. Ta.

1448 Foram juntos cortar cabelo, fazer as barba que ta com cara de

1449 sem dormir há dez dias... Ta.

1450 Quando viu os exames falou: “É, vamos ter que tirar a vesícula.”

1451 “A essa conclusão eu já tinha chegado, mas quando?” “Amanhã!”

1452 Aí ele falou: “Você ta maluco, tem que fazer os exames de

1453 sangue e tal”. “Então eu vou fazer os exames”. Fui pro Rio com a

1454 mulher. As meninas ficaram sem jeito por que tinha que fazer

1455 tricotomia, raspar tudo e a mulher lá. Mas não me deram nem

1456 pré-anestésico.

501 1457 Sandra Hum-hum.

502 1458 Vittorio Eu nem tava preocupado com a operação, eu tava feliz que no

1459 dia seguinte não ia ter mais nada. E realmente eu tirei. Fiquei

1460 internado três meses porque tirei vesícula, hérnia de ato, tive

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226

1461 que fazer uma operação plástica... Fiquei quatro horas e meia

1462 na... Já tava acostumado com três meses de internação, essa

1463 em dez dias tava trabalhando.

503 1464 Sandra ( ).

504 1465 Vittorio ( ) O meu batimento é maior. Quando estou parado de noite

1466 bate cinqüenta e oito vezes o meu coração, meu colesterol um

1467 Mais alto, outro baixinho, triglicerídio bom, porque eu levo a

1468 sério...

505 1469 Sandra Hum-hum.

506 1470 Vittorio Às vezes me dá vontade eu bebo umas cervejas, hoje mesmo já

1471 bebi umas... Não pode pela diabetes, mas eu levo uma vida

1472 normalíssima. Não me privo de nada, nunca gostei muito de

1473 doce. O pessoal come doce na minha frente, não tem

1474 problema.

507 1475 Sandra O problema é massa, né.

508 1476 Vittorio Mas aí eu descobri uma coisa maravilhosa, o macarrão italiano

1477 não me faz mal. É por que ele é feito com trigo duro, o trigo

1478 mole que tem aqui a composição é diferente.

509 1479 Sandra É.

510 1480 Vittorio Um é elaborado mais depressa o outro mais devagar. Um dia

1481 fiz um pratão de macarrão e no dia seguinte de manhã meu

1482 açúcar baixou. Copiar dos outros, só o que é bom, não o que é

1483 Ruim... Afinal de contas, o quê que é a teoria? É a prática dos

1484 outros posta no papel.((risos))

511 1485 Sandra ((risos))

512 1486 Vittorio Minha filha, você ta com hora aí, sem rodeios... Não havia

1487 pressa mas eu já tomei demais o seu tempo

513 1488 Sandra Não, não.

514 1489 Vittorio Você quer que eu ligue pro Geraldo, eu posso ligar, você ainda

1490 vai lá nele?

515 1491 Sandra Não, não.