galópolis e os italianos
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Quattro ProjetosPorto Alegre, RS, Brasil
Novembro de 2012
Ricardo Bueno
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projeto cultural Rosangela Vasquez Elmo
coordenao executiva Flavio Enninger / Quattro Projetos
coordenao editorial Ricardo Bueno / Alma da Palavra
edio e textos Ricardo Bueno / Alma da Palavra
reviso Fernanda Pacheco / Alma da Palavra
projeto grfico e editorao eletrnica Pedro Biz
fotografia Marcelo Donadussi
impresso Gr ca e Editora Pallotti
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao ( CIP )
Bibliotecria Responsvel: Denise Pazetto CRB-10/1216 51 3029.7042
B928g Bueno, RicardoGalpolis e os italianos : patrimnio histrico preservado a
servio da cultura / Ricardo Bueno. Porto Alegre: Quattro Projetos, 2012.
144 p. : il. color. ; 31 x 26 cm.
Histria de Galpolis, Caxias do Sul, RS e sua colonizao italiana.
ISBN 978-85-64393-04-2.
1. Galpolis (Caxias do Sul/RS) Histria. 2. Imigrao italiana Rio grande do Sul. I. Ttulo
CDU 981.65 (Caxias do Sul)
QUATTRO PROJETOS
www.quattroprojetos.com.br
51 3209.7568
ALMA DA PALAVRA
51 3126.2528
REALIZAO
Projeto Pronac 1111514 - Os italianos e Galpolis: histria, tradio e cultura
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9Preservar e aprender com o passado garantir o futuro de uma
nao. A recuperao e manuteno das duas residncias que per-
tenceram a Hrcules Gall a nossa contribuio para a memria
de uma localidade chamada Galpolis. Estas duas casas de ma-
deira tem aproximadamente 100 anos de histria. Receberam e
abrigaram a famlia e o fundador de uma indstria txtil, a qual
ainda hoje se encontra em frente a estas duas residncias.
Podemos imaginar o que foi a chegada dos primeiros imi-
grantes regio que hoje abriga Caxias do Sul e muitas outras
cidades ao seu redor. Foi uma longa trajetria que, no caso de
Hrcules Gall, se iniciou na longnqua Itlia, mais exatamente
na provncia de Biella, na regio do Piemonte.
Estabelecer-se numa terra distante e desconhecida foi um
enorme e heroico desao. E, certamente, a construo da primei-
ra casa teve um grande signicado para Hrcules e sua famlia:
enm, aps uma longa caminhada, havia um teto amigo para
abrig-los, lugar onde poderiam oferecer um novo lar aos que lhe
eram caros. Com o tempo, houve a oportunidade de partir para a
construo de uma segunda e maior casa de madeira.
Estas duas casas receberam e hospedaram generosamente
muitos amigos e companheiros, j que com o crescimento da te-
celagem, outros imigrantes italianos foram trazidos por Hrcules
Gall para auxili-lo no empreendimento txtil. Se as velhas
paredes de madeira pudessem contar histrias, muitos livros po-
deriam ser escritos sobre o tanto que ocorreu nessas duas casas
alguns desses episdios esto relatados nesta publicao.
Particularmente, uma parte da minha histria foi vivida ali.
Nasci na residncia maior e morei em Galpolis at os nove anos
de idade. Convivi com vrios personagens ligados a Hrcules: sua
esposa, Edwige; seus lhos, Pinot meu pai e Olga. Infeliz mente,
no tive a oportunidade de conviver com meu av. De outra
parte, perdi meu pai quando tinha dois anos de idade. Ainda
assim, foram momentos de uma infncia feliz e cheia de aconte-
cimentos marcantes que muito contriburam para formar meus
valores pessoais.
Agora, rumo ao futuro. Esta recuperao proporciona um
espao para resguardar a histria e criar oportunidade para que
muitas pessoas conheam este passado. Espero que as duas resi-
dncias abriguem eventos que engrandeam Galpolis e toda a
sua gente.
Estou muito feliz por entregar comunidade essas duas casas.
O futuro distante no me pertence. Pertencer a todos os que
nesses espaos tiverem o privilgio de viver momentos de recor-
dao e aprendizado.
Recordao e aprendizadoJos Gall
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Galpolis um daqueles raros lugares em que uma pessoa se
sente envolvida pela autenticidade do passado em meio a um pre-
sente rico em registros histricos. A vila, hoje bairro de Caxias do
Sul, nasceu e se desenvolveu ao acolher imigrantes que, com sua
vontade de fazer e vencer, deixaram um legado valioso. A estru-
tura urbana e arquitetnica de Galpolis um raro exemplo de
patrimnio preservado, construdo a partir de valores marcantes.
A arquitetura tem o poder de retratar as condies sociais,
culturais e econmicas de uma poca. Estes valores preservados
nos encantam e deixam para as futuras geraes o entendimento
do momento histrico no qual tiveram origem. No caso de Gal-
polis, eles nos falam sobre personagens que transitaram por ali no
nal do sculo XIX e durante o sculo XX.
Nesse perodo, a presena de Hrcules Gall deixou marcas
importantes, e as duas residncias onde ele e sua famlia habita-
ram so mostras deste legado. Ali encontramos detalhes constru-
tivos em madeira e pedra que demonstram tcnica e gosto por
trabalhos bem feitos. O resultado esttico revela uma surpreen-
dente qualidade na arte da edicao. Se retrocedermos no tem-
po e imaginarmos as diculdades do incio do sculo XX, compa-
radas s facilidades e tecnologias atuais, facilmente concluiremos
que estamos diante de um cenrio renado.
E tudo porque o italiano Hrcules Gall trouxe na sua baga-
gem esta cultura, e aplicou seus conhecimentos no lugar onde
escolheu viver e empreender, de forma a que dessa interao uma
Galpolis com qualidade de vida desabrochasse. Hrcules e sua
esposa, Edwige, pautaram suas existncias por muita coragem e
determinao. A distncia da terra natal e as diculdades encon-
tradas do outro lado do oceano foram superadas com trabalho
e participao na vida comunitria. Fica para ns o imaginrio de
como construram essa trajetria, tendo como referncias obje-
tos, fotos, documentos, mveis e as duas residncias.
EMOO E TCNICA
O trabalho de interveno nas duas casas foi um imenso aprendi-
zado. Nos ltimos dois anos, conheci recantos, detalhes constru-
tivos e arquitetnicos que haviam passado em branco na poca
em que residi com minha famlia naquela que convencionamos
chamar de Casa 2. O envolvimento emocional e o aspecto tcnico
se fundiram, em um trabalho que envolveu um grupo especial de
personagens, de forma a que fosse possvel restaurar o cenrio da
poca de Hrcules e Edwige.
Restaurar uma edicao, ou uma obra de arte, algo mui-
to abrangente. Com regras e muito bom senso, todo trabalho de
restauro oferece uma oportunidade de conrmar condutas que,
ao longo dos anos, so reavaliadas e documentadas nas famosas
cartas internacionais, como a de Atena e a de Veneza. Pesquisar,
trocar informaes com tcnicos e colegas, conversar com pro-
Com a energia do esprito de preservaoRenato Solio
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prietrios de imveis tombados; conhecer a legislao municipal,
estadual e federal. Este o incio da preparao de um projeto de
interveno, que deve ser sempre muito bem planejado. No caso
das duas casas, o terreno onde esto edicadas dispe de uma
rea de mais de 16.000m. Encontramos no regramento ambien-
tal e da BR-116 grandes limitaes, as quais condicionaram o de-
senvolvimento de um plano diretor com poucas reas novas edi-
cveis, as quais esto concentradas na sala multiuso, no elevador,
nas rampas, nas escadas, no estacionamento e nos sanitrios.
Os levantamentos mtricos e fotogrcos possibilitaram a
representao grca das edicaes. A partir deste momento,
quando detalhes construtivos foram gracados em 2D e 3D, pas-
samos a dispor de registros is das duas casas. Este tipo de repre-
sentao nos oferece timas condies para diagnosticar e prever
o grau de interveno a ser aplicado. Mesmo assim, com o andar
das obras, sempre surgem surpresas que exigem tomadas de deci-
ses, caso a caso, para solucionar o inesperado.
INCENTIVO PRESERVAO
No incio dos trabalhos, em duas ocasies, em dias diferentes,
motoristas que trafegavam pela BR-116 pararam seus veculos,
desceram e fotografaram as casas. At aquele momento, as edi-
caes no tinham passado por qualquer tipo de interveno, e
explicitavam sua imensa fragilidade. Conrmei, ento, o interes-
se que naturalmente ambas as construes despertavam. E logo
veio a certeza de que poderamos, de fato, transformar o local em
um exemplo de preservao.
Mais do que isso: com a criao das leis de preservao do Pa-
trimnio Histrico, muitos de ns passaram a ter a oportunidade
de trabalhar com valores histricos seculares. At porque um dia
alcanaremos o nosso primeiro milnio de histria preciso
reconhecer que somos jovens neste quesito. Mas no caso do mu-
nicpio de Caxias do Sul, onde esto situadas as casas de Hrcules
Gall, a legislao faculta ao bem tombado algumas compensa-
es. O proprietrio do imvel, ao receber ndices construtivos
proporcionais ao tamanho do terreno onde se encontra a
edicao, pode vend-los e, com a receita obtida, investir no res-
tauro e na manuteno da edicao. Esses ndices tm valores
regulados pelo mercado, e so adquiridos por pessoas fsicas e ju-
rdicas que desejam aumentar o potencial construtivo em futuras
edicaes. um mecanismo atravs do qual o municpio regula-
menta e controla tanto o tombamento quanto a comercializao
dos ndices junto iniciativa privada, sem que recursos pblicos
sejam envolvidos. Apenas uma iseno concedida ao imvel:
a do IPTU anual.
UM NOVO MOMENTO
Em sntese, posso armar que esta jornada foi marcada por uma
energia muito positiva. Imagino que Galpolis e seus habitantes
podero se contaminar com este esprito de preservao. Esta-
mos dando o exemplo para que, em breve, possamos comparti-
lhar um stio que cresce e se desenvolve a partir de seu passado,
com o patrimnio histrico atraindo o turismo; um indito ciclo
econmico, em um ambiente harmnico, despertando uma Ga-
lpolis que vive de sua histria e acorda para um novo momento.
chegada a hora de valorizar o trabalho de tantos artesos que
construram esta paisagem, para que ela possa ser apreciada pelas
futuras geraes.
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Quando convidou-me para participar de mais essa iniciativa, a
exemplo de tantas outras que temos desenvolvido com sucesso
nos ltimos anos, o diretor da Quattro Projetos, meu amigo Flavio
Enninger, jamais poderia imaginar que estaria me proporcio-
nando uma nostlgica volta ao passado e um indito contato com
minhas origens. Ele no sabia, at ento, que minha me, Ins,
havia nascido em Galpolis, em 1936. O vnculo afetivo com o
projeto, portanto, cou estabelecido de imediato. E para quem
dirige uma empresa chamada Alma da Palavra, como o meu
caso, o envolvimento emocional sempre um diferencial impor-
tante e mais do que isso, um privilgio, uma espcie de bno
das tantas e to distintas narrativas que temos produzido.
Pois foi assim, na condio de lho de uma lha de Gal-
polis a qual havia deixado a localidade muito cedo, em vista
da morte precoce de minha av, quando minha me ainda era
criana, e de meu av, antes da me completar 15 anos que ini-
ciei as leituras, pesquisas, contatos informais e, nalmente, as
entrevistas. Sempre tendo em mente que a qualquer momento
surgiria a oportunidade de descobrir algo mais sobre o passado
de minha genitora, que por razes bvias nunca fez muita ques-
to de relembrar sua sofrida infncia, fui descobrindo a histria
de Galpolis e encaixando as peas do quebra-cabeas que resul-
taria nesta publicao.
E foi somente em 22 de agosto, uma ensolarada quarta-feira,
que o momento to esperado aconteceu. Eu havia agendado para
o incio da tarde uma visita Cootegal, onde entrevistaria os atu-
ais diretores do lanifcio que nasceu do esprito cooperativo de 22
artesos vindos da Itlia em ns do sculo XIX (e que um sculo
depois voltaria a ser uma cooperativa, vejam s). No dia anterior,
comentei com Carlos Canutto, cuja famlia viveu mais de 45 anos
em uma das casas de Hrcules Gall, que minha me deveria ter
parentes vivos em Galpolis. Quando citei o sobrenome Gabrielli,
ele perguntou a dona Guilhermina, sua me: O Gacho no
Gabrielli? Vamos passar l amanh. Sei onde ele mora.
Por volta das 13h30min, entramos em uma rua estreita, na
parte alta, de onde se tem uma vista panormica que inclui o lani-
fcio. Comentei com Canutto sobre a interessante arquitetura de
uma casa que cava direita da rua, ornada de uma forma bastan-
te original, com pedras, madeiras e peas metlicas. Pois aqui
que o Gacho mora, respondeu Canutto, enquanto estacionava.
E no que meu parente uma espcie de Gaudi da Serra?, pen-
sei comigo mesmo, lembrando o originalssimo e genial arquiteto
espanhol que construiu sete monumentos em Barcelona. Isidro
Gabrielli, 62 anos, primo de minha me (ele lho de Pefanni
Gabrielli, irmo de meu av, Guilherme) s no um artista con-
sagrado porque no quer. Sua casa e vrias construes em torno
Eterno descobrirRicardo Bueno
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dela foram erguidas por ele seguindo a losoa de que esse neg-
cio de colocar uma pedra em cima da outra, todas do mesmo tama-
nho, bem alinhadinhas, no comigo. Tem que dar uma mexida,
seno ca tudo igual. Meu tio-av um talento desconhecido.
A exemplo de quase 100% da populao de Galpolis, Isidro
tambm trabalhou no lanifcio, assim como seu pai. Foi admitido
por volta de 1953, quanto tinha pouco mais de 15 anos, mesma
idade em que uma das irms, Ldia, tambm comeou a traba-
lhar na empresa ento comandada pela famlia Chaves Barcellos.
O apelido Gacho nasceu do hbito de estar sempre com um
chapu (que guarda at hoje), mesmo quando estava trabalhando.
Depois de 25 anos no setor de confeco dos os, onde havia sem-
pre muito barulho e p, relembra, aposentou-se em 1979, passan-
do a trabalhar desde ento como pintor.
possvel que minha me conhea Isidro pessoalmente,
quando voltar a Galpolis neste ms de novembro de 2012, para
o lanamento do livro e apresentao das casas. Com certeza vai
ser um momento de muita emoo. De minha parte, este traba-
lho car para sempre marcado na lembrana. Anal de contas,
foi graas a esta oportunidade que conrmei o que j sabia que
Galpolis o lugar onde minha me nasceu , mas tambm que
descobri muitas coisas. Por exemplo: Galpolis no a terra do
galo, como costumava comentar meu pai, nas inumerveis via-
gens que zemos entre Vacaria e Porto Alegre nos anos 1970, na
poca em que eu, com 8, 9 anos de idade, precisava ir at a capital
trocar o gesso, depois de alguma cirurgia corretiva da paralisia
infantil. No sabamos que o nome nas placas da BR-116 na ver-
dade tem origem no sobrenome Gall, e no na palavra galo. No
conhecamos a gura fantstica que foi Hrcules, nem tampouco
sabamos que ele era av de Jos Gall, o diretor-presidente da
Lojas Renner.
Conclu que sempre h muitas coisas para descobrirmos, no
apenas sobre Galpolis, mas tambm sobre ns mesmos. Esse
um dos objetivos do Instituto Hrcules Gall, a propsito: ao
relembrar a trajetria dos homens e mulheres que construram
o patrimnio histrico e cultural de Galpolis, preservando duas
de suas inmeras casas centenrias, o IHG ser o propulsor de
sabe-se l quantas descobertas para um sem-nmero de pessoas
as que conhecem e eventualmente moram em Galpolis, mas
principalmente para as que nunca estiveram l, e no sabem o
que esto perdendo. O instituto, assim, vai contribuir para que
a localidade desperte para uma vocao at agora pouco explo-
rada: a do turismo cultural e histrico. Sabe-se l se meu tio-av
Isidro no vai acabar sendo sensibilizado por todo esse processo
de resgate de memrias e riquezas, dando vazo de forma mais
efetiva a seu talento criativo. Com mais de 120 anos, no que
Galpolis est renascendo?
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captulo 1
Os homens, a vila 16
captulo 2
O patrimnio, a interveno 70
captulo 3
O instituto, o futuro 128
Fontes Consultadas 140
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OS HOMENS, A VILA
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O retrato da vida de Hrcules Gall demonstra a concepo que tinha de
mundo, a capacidade de organizao e liderana. Gall o testemunho de
uma caminhada de sucesso, onde os valores que o nortearam aparecem em
cada etapa de sua vida, seja como homem pblico e de negcios, seja na sua
vida familiar. (...) A bagagem trazida da experincia familiar, do outro lado do
oceano, lhe permitiu construir um patrimnio marcado pela generosidade
com aqueles que se dedicavam ao mundo do trabalho. O prestgio entre os
operrios, na sua vida como patro, revela o respeito que atribua ao trabalho
e a forma como estabelecia as relaes sociais pelo reconhecimento que
atribua aos resultados produzidos pelos operrios de seu lanifcio. (...) A vila
operria, ao preservar sua memria, atravs de seu nome, oferece queles que
construram a riqueza da regio um exemplo de homem que teve presente,
em toda sua trajetria, o amor ao trabalho, o valor liberdade e a conscincia
do pblico e do privado, valorizando a terra, superando obstculos e
resistncias, com a certeza de que era possvel construir o futuro."
Vania Beatriz Merlotti HerdiaHrcules Gall vida e obra de um empreendedor
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PRIMEIRA PARTE
A era Gall
Foi somente em 1870, ano da sua unicao, que a Itlia conse-
guiu reunir seus muitos e dispersos reinos, repblicas e ducados,
integrando-os em uma s nao. Naquela poca, o sentimento
de italianidade, tal qual o conhecemos hoje, estava na verdade
relacionado apenas regio de origem de cada cidado. As dife-
renas entre o Norte e o Sul eram gritantes, sendo que um cam-
pons do Sul no se identicava com o do Norte, e um cidado
do Piemonte (regio onde nasceu Hrcules Gall) se assemelhava
mais a um londrino ou parisiense que a um napolitano, refere a
professora Vania Beatriz Merlotti Herdia.
Naquela conturbada segunda metade do sculo XIX, milhes
de italianos que habitavam as zonas rurais passaram a no enxer-
gar outra sada para fugir das pssimas condies de vida a no ser
emigrar. As diculdades eram crescentes, em razo da crise eco-
nmica no campo, em parte causada pelo sucesso da revoluo
industrial, mas tambm como decorrncia das mudanas polti-
cas, que nem todos compreendiam. Fazer a Amrica, portanto,
equivalia ao sonho de encontrar uma espcie de paraso do outro
lado do Atlntico. Assim, no surpresa constatar que entre 1876
e 1901, emigraram nada menos que 5,7 milhes de italianos.
Anal de contas, as relaes feudais estavam se rompendo,
enquanto o desenvolvimento dos meios de transporte, pelos
investimentos nas estradas e depois nas ferrovias, levou muita
gente do campo para a cidade, provocando transformaes radi-
cais na economia rural. O trabalho artesanal passava a dar lugar
ao trabalho assalariado, e a energia a vapor pouco a pouco era
adotada como substituta da fora humana. E o primeiro ramo
da indstria a ser mecanizado foi justamente o dos tecidos. Cabe
ressaltar que neste segmento foi a partir em especial das grandes
invenes, como a da mquina de ar e do tear hidrulico, que
muitas transformaes aconteceram no processo laboral, como a
construo de prdios menos insalubres, melhores condies de
higiene, disponibilidade de pronto-socorro no caso de acidentes,
assistncia em caso de doenas e fundos da velhice, entre outras
medidas protetivas dos trabalhadores.
O fato que nem todos os emigrantes italianos sonhavam
com a possibilidade de se tornarem proprietrios de terras, mesmo
que em algum lugar distante, j que as perspectivas no meio ru-
ral da Itlia de ento no eram nada promissoras. Hrcules Gall,
por exemplo, provinha de uma classe social que possua bens. O
desao alm-mar, para ele, seria o de descobrir onde investir sua
herana e outras economias. Seu horizonte era o de um empreen-
dedor, e no o de um agricultor beira do desespero.
E tudo porque Hrcules Gall nasceu em 26 de junho de 1869
(um ano antes da Unicao Italiana) no Piemonte, provncia que
tambm vivenciou a emigrao de muitos de seus habitantes, mas
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no de forma to signicativa quanto a que ocorreu no Vneto, na
Lombardia, no Trentino-Alto-dige ou em Friulli-Vencia Jlia. A
famlia Gall era de Biella, no Vale de Crocemosso. Na regio, pre-
valecia a indstria de ls, e nas zonas prximas, a indstria de algo-
do. Muitos emigrantes originrios do Piemonte, portanto, tinham
como marcas, alm da capacidade de trabalho, tambm a posio
de algum sucesso na Itlia, combinada com a noo de indepen-
dncia econmica, o esprito de aventura e de busca da fortuna.
Hrcules, no caso, herdou do pai, proprietrio de um lani fcio,
muitas habilidades. Estudou na Scuola Professionale di Biella,
a qual formava seus alunos para o mundo das artes, mas tam-
bm, e talvez principalmente, das indstrias mecnicas, fabris,
qumicas, txteis, de construo e ornamentos. Essa formao,
combinada com a experincia da famlia, garantiu a Hrcules
a possibilidade de acompanhar a era de inovaes e se prepa-
rar para assumir os negcios dos Gall. O lanifcio da famlia,
a propsito, era do tipo ciclo completo, com 12 teares. O pro-
duto podia ser produzido todo ali, ao contrrio de muitos
outros empreendimentos, que dependiam de estrutura externa
ao seu negcio.
Foi na poca em que aprendia os segredos dos teares manuais
e mecnicos, vivenciando as atividades artesanais e industriais,
que Hrcules conheceu Edwige Virginia Strona, nascida na re-
gio da provncia de Vercelli, no muito distante de Biella, em 21
de outubro de 1870. E com ela o jovem Hrcules se casou, em 21
de abril de 1890, ele com 21 anos incompletos, ela ainda com 19.
Olga, a primognita do casal, veio ao mundo no ano seguinte, em
1891. Renato, o segundo lho, nasceria seis anos depois, em 1897.
Naquele momento histrico, a indstria de l, apesar da fora
que possua na regio de Biella, enfrentava diculdades, como a
escassez de capital, o custo da matria-prima, as diculdades de
transporte, a carga pesada dos impostos e o custo com maqui-
nrio. Foi com a morte do pai, em 1899, e a consequente divi-
so da herana com os irmos, que Hrcules tomou a deciso de
emigrar. Aos 30 anos, no alvorecer do sculo XX, com uma lha
de 10 anos e um garoto de 3, Hrcules deixou a Itlia para viver
no Brasil.
Sua inteno era morar no Rio de Janeiro, onde inicialmente
trabalhou em um cotonifcio (manufatura de tecidos de algodo
a palavra tem origem em cotton, que signica algodo, em ingls).
Depois, empregou-se na Sociedade Botafogo, como qumico tin-
tureiro. No muito tempo se passou, e ele se transferiu para Porto
Alegre, onde empregou-se na Fiao de Tecidos Portoalegrense,
tambm como qumico tintureiro. A empresa havia sido fundada
em 1891 pelo Coronel Manoel Py, um comerciante da capital ga-
cha que trabalhara na rma Chaves & Almeida (com quem Gall
se associaria anos depois), mas que decidiu abrir seu prprio ne-
gcio no ramo txtil.
Retornando alguns anos na linha do tempo: mais ou menos
na mesma poca em que Gall e Edwige se casaram, dois fatos
marcantes ocorreram, um no Brasil, outro na prpria Itlia. Na
Serra gacha, aps 15 anos de sua fundao, em 1875, como co-
lnia agrcola, nasceu o municpio de Caxias do Sul, criado em
20 de junho de 1890. Na Itlia, o nal do ano de 1890 e o incio
de 1891 foram marcados por um conito entre os operrios e o
proprietrio do grande Lanifcio Rossi, localizado em Schio.
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Indignados pela reduo de 20% em seus salrios, os traba-
lhadores resolveram entrar em greve. A resposta patronal foi ime-
diata. Em uma poca de direitos trabalhistas escassos, em que a
fora do capital imperava, os lderes do movimento grevista que
eram casados e tinham famlia foram perdoados. Aos mais jovens
e solteiros, o Conde Rossi, proprietrio do lanifcio, apontou duas
alternativas. Teria dito:
Ai bocia, o galera o Brasile.
Em traduo livre:
Aos jovens/solteiros, a priso ou o Brasil.
Foi assim que cerca de 308 teceles embarcaram no vapor
Adria, em 28 de maro de 1891, tendo como destino o Brasil, para
onde milhes de seus conterrneos estavam migrando, mais for-
temente desde 1875, atrados pela possibilidade de serem donos
de um pedao de terra e, assim, retomar a qualidade de vida que
um dia haviam alcanado. Ao desembarcarem no Brasil, muitos
desses emigrantes (agora na efetiva condio de imigrantes) op-
taram por permanecer em So Paulo, onde as lavouras de caf
demandavam mo-de-obra, em decorrncia da crescente produ-
tividade das terras roxas, em um momento de escassez de fora
braal, aps a abolio da escravatura, em 1888. O modelo de re-
lacionamento acenado era o de concesso de terras e nancia-
mento dos equipamentos necessrios para cultivo e manuteno
das lavouras, mas com o compromisso da venda da produo para
os contratantes. O modelo se revestia de um aparente equilbrio
entre as partes, mas na prtica resultou em endividamento de
muitos italianos, em uma espcie de trabalho semiescravo, alguns
dos quais, inclusive, decidiram retornar para sua ptria. Outros
tantos abandonaram as fazendas e, graas a algumas economias,
se estabeleceram como comerciantes, movimentando a econo-
mia da capital paulista.
Cafeicultura parte, um nmero signicativo de italianos
veio dar no Rio Grande do Sul. A grande maioria foi direcionada
pela Comisso de Colonizao para a regio da Serra, ento co-
nhecida popularmente como Campo dos Bugres, atual Caxias do
Sul. Ali, os recm chegados dirigiram-se para seus lotes, alguns
em So Marcos (ento chamada de regio dos polacos), outros
em Nova Trento (hoje Flores da Cunha), e outros localizados nas
imediaes da 3, 4 e 5 Lguas, redondezas da Galpolis de hoje.
Nesta poca, Galpolis era conhecida por outros nomes,
como Cascata da 4 Lgua, Desvio do Monte e, com mais fre-
quncia, La Val Del Profondo, ou simplesmente Il Profondo,
por estar localizada entre dois morros e 250 metros abaixo de Ca-
xias, tomando-se por base o nvel do mar.
De pronto os imigrantes que optaram por aquela regio
perceberam, de um lado, que seus lotes, em razo da geograa
montanhosa, eram pouco propcios para a agricultura, atividade
que, consequentemente, no lhes proporcionaria rendimento
suciente para manter as famlias. De outra parte, trs ou quatro
deles inturam o potencial que dois arroios do lugar ofereciam, no
sentido da gua movimentar grandes rodas hidrulicas, as quais,
por sua vez, acionariam outras mquinas e poderiam, quem sabe,
Edwige e Hrcules Gall, pouco depois de sua chegada ao Brasil
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at gerar energia eltrica. Imaginaram que a gua seria til tam-
bm para o servio de lavagem e tinturaria. A ideia de construir
um lanifcio comeava a brotar nas mentes daqueles artesos e
conhecedores das tcnicas de industrializar a l, homens simples,
mas dotados de um forte esprito empreendedor e movidos pelo
vis associativo.
Decidiram, assim, fundar uma sociedade nos moldes de uma
cooperativa, juntamente com outros poucos colonos que j habi-
tavam a regio. O nome do empreendimento faria uma homena-
gem ao rio que banha o Vaticano. Foi assim que surgiu, por volta
de 1894, o lanifcio batizado Sociedade (ou Societ) de Tecidos
Tevere. Ocialmente, a fbrica seria inaugurada alguns anos de-
pois, mas mesmo antes da sociedade ser formalizada, aqueles imi-
grantes comeavam a inscrever denitivamente seus nomes na
histria de Galpolis. Por volta de 1892, recm-chegados da Itlia,
eles decidiram construir uma capelinha de madeira, para em torno
dela se reunirem aos domingos, rezar o tero e cantar a ladainha.
Na capela, colocaram uma imagem de Nossa Senhora do Rosrio
de Pompeia, para que sob sua proteo pudessem, ento, criar
uma indstria, sustentar suas famlias e ter foras para encarar as
eventuais tristezas e celebrar as alegrias, tudo em meio a muito
trabalho e f. Dez anos depois, essa capelinha se transformaria em
uma construo maior, de alvenaria, a qual, por sua vez, seria subs-
tituda pela vistosa Igreja Matriz de hoje. Mas o ano de 1892 seguiu
sendo uma referncia importante para Galpolis, que em 2012,
a propsito, celebra seus 120 anos de histria.
Comerlato, Berno, Casa, Bolfe e Mincato eram scios da Societ Tevere
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At a inaugurao ocial da fbrica, em 1898, foram anos e
anos de muita dedicao. Em 1894, um dos scios da cooperativa,
Octvio Curtolo, fez um pedido ao Intendente do municpio de
Caxias do Sul para transformar uma picada privada em estrada,
permitindo a ligao de Galpolis com a sede. Naquele mesmo
ano, Giuseppe Berno foi designado para viajar Itlia, onde tinha
a misso de comprar vrios teares de uma tecelagem em Schio
que havia falido (essa prtica era muito comum na poca, j que a
economia italiana passava por fortes instabilidades). A experincia
obtida no Lanifcio Rossi foi decisiva para que os prprios imigran-
tes montassem os teares que foram trazidos da Europa por Berno.
Jos Comerlato (proprietrio do terreno), Joo Batista Min-
cato (mestre de Tecelagem), Jos Berno (mestre da Tintura-
ria), Jos Casa (mestre da seo de Cardas e gerente comercial),
Octvio Curtolo (mestre da Tinturaria), Egidio Casa (escriturrio,
ou guarda-livros), ngelo Basso, Pedro Sbabo, Jacinto Vial, Joo
Sartori, Batista Tissot e Jos Bolfe so os nomes de alguns dos
associados da cooperativa, cuja fbrica foi inaugurada em 28 de
janeiro de 1898. Para que a gua chegasse at o barraco de ma-
deira, que media 10m x 40m, os italianos abriram um valo que
partia da ferraria de Jos Comerlato, onde apanhavam a gua
do Arroio Pinhal, passando embaixo de onde futuramente seria
erguido o Colgio Chaves Irmos, entrando nas terras de Comer-
lato, sendo ento desviada para a fbrica por um canal de madeira
que se elevava a 20 metros acima do assoalho do galpo. A gua,
assim, acionava uma roda de madeira de 10 metros de dimetro.
A fbrica produzia naqueles tempos chales, palas, panos para
capotes e fatiotas. Os artigos eram vendidos na fbrica, a varejo,
ou mascateados em Caxias, Antonio Prado, Garibaldi e arredo-
res. A l era comprada em Porto Alegre, na barraca de um certo
Silveira Martins.
O empreendimento cooperativado aproveitava os bons ven-
tos da poltica positivista da ento Provncia de So Pedro, que
procurava estimular a industrializao, j que era mais conhecida
nacionalmente em razo de sua importncia no setor primrio
(agricultura e pecuria). Os negcios foram relativamente bem,
a ponto da sociedade adquirir novos lotes de terra da famlia
Comerlato no Travesso Solferino. Por volta de 1903, entre-
tanto, as vendas no atacado estavam em baixa, e os estoques,
muito altos. Assim, ao menos, registrou o jornal O Cosmopo-
lita, de Caxias do Sul, em notcia que buscava sensibilizar os
comerciantes da cidade para que fizessem mais encomendas
para o lanifcio. Foi nessa poca que Hrcules Gall conheceu
a cooperativa.
De imediato, o empreendedor percebeu o potencial do ne-
gcio. Avaliou as perspectivas de uma atividade como aquela na
regio da colnia, zona de muito frio, e portanto com grande
aceitao de produtos de l, e graas ao seu conhecimento da-
quele modelo de empreendimento, com o qual havia lidado na
Itlia, decidiu dar uma guinada em sua vida. Com as economias
de que dispunha, decidiu comprar as aes que lhe dariam o co-
mando da cooperativa em 1904, rebatizando a empresa como
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26
Companhia de Tecidos de L. Naquele mesmo ano, mandou eri-
gir aquela que seria sua primeira residncia em Galpolis, para
onde mudou-se com a mulher, Edwige, mais os lhos, Olga,
ento com 13 anos, e Renato, com 7. Iniciava-se, assim, a trajet-
ria empreendedora do homem que no s viria a emprestar seu
nome para a comunidade, mas tambm com a qual estabeleceria
vnculos inquebrantveis.
O tino empresarial de Gall e sua incrvel determinao seu
lema era Se o trabalho no vem a mim, eu me movo e vou onde
ele estiver fariam com que a empresa rapidamente se desen-
volvesse. A contribuio de Edwige foi fundamental nesta po-
ca, pois era ela quem cuidava dos negcios durante as viagens de
Gall, a cavalo pela colnia italiana, levando em mulas os produ-
tos do lanifcio. poca, ele j era conhecido por sua impressio-
nante capacidade realizadora e, em especial, pela rapidez com que
passava da tomada de deciso para a execuo.
Os negcios seguiam de vento em popa, de tal forma que
em 1908 Gall decidiu construir uma segunda residncia, maior
que a primeira, no terreno ao lado da casa onde morava desde
1904. A posio geogrca do prdio, a exemplo do que j ocorria
com a primeira moradia, era estratgica: de um de seus balces
externos, voltado para a estrada de cho batido que passava em
frente, se vislumbrava quase toda a extenso da pequena vila, ao
mesmo tempo em que o V formado pelos morros em frente
garantia o privilgio de se ver, dali, o primeiro sol da manh a
banhar Galpolis.
A ferrovia chega a Caxias Gall nos tempos de suas viagens pela colnia
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28
Bem maior que a primeira residncia, a nova casa seria lo-
cal de grande movimentao, inclusive poltica, pois viria a sediar
uma das sees eleitorais de Caxias. Da mesma forma, permitiria
a Gall receber eventuais clientes e parceiros comerciais do lani-
fcio e, futuramente, seus novos scios, quando vinham de Porto
Alegre. Naquele ano de 1908, Gall era reconhecido como dire-
tor ativo e capaz, tomando conta da parte comercial do lanifcio.
Dois anos mais tarde, a empresa que dirigia era considerada uma
das dez maiores do Estado. Do ponto de vista pessoal, a maior
alegria veio em 1910 com o nascimento do terceiro lho do casal
Hrcules e Edwige: Pinot Gall foi o primeiro e nico herdeiro a
nascer em terras brasileiras.
A propsito, a chegada da ferrovia a Caxias do Sul, no mes-
mo ano de 1910, seria de grande valia para que a regio, como
um todo, acelerasse ainda mais seu ritmo de crescimento. O se-
tor txtil era destaque na economia local, ao lado das indstrias
vincola, tritcola, metalrgica, mecnica, de alimentos e extrati-
vista-manufatureira. Com a chegada dos trilhos, vieram tambm
a energia eltrica, o telgrafo e o telefone ao menos para a sede,
em Caxias.
A atividade comercial de Gall terminou por aproxim-lo da
poderosa Casa Comercial Chaves & Almeida, uma slida empresa
fundada em 1866 e que j h algum tempo era cliente do lanifcio
de Galpolis, tendo outros negcios e clientes em diversos pontos
do Estado. Pois em novembro de 1911, Gall estava em viagem
pela Europa, quando encontrou Pedro Chaves Barcellos em Paris.
O jovem Pinot (em p) ao lado do tio, Renato, em foto dos anos 1920
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Era bastante comum naquela poca que o proprietrio de uma
fbrica viajasse pessoalmente ao estrangeiro para conhecer as
mquinas que porventura pretendia adquirir, checando seu fun-
cionamento e estabelecendo as relaes comerciais, o contrato de
compra e venda e as condies de entrega. No era de se estra-
nhar, portanto, que Gall e Chaves Barcellos se encontrassem em
meio a viagens de negcios.
Deste encontro e de um cordial dilogo entre o ento for-
necedor (Gall) e um de seus mais importantes clientes (os Cha-
ves & Almeida), surgiria a ideia de associao das duas empresas.
Ainda que sem a formalizao do negcio, Gall aproveitou a
viagem para j adquirir novos equipamentos, os quais seriam de-
cisivos para dar novo impulso indstria. Comprou uma turbina
hidroeltrica de procedncia sua e um gerador alemo, da mar-
ca Siemens, cuja capacidade, de 130 KVA, seria suciente para
acionar todo o equipamento e, ainda, fornecer energia eltrica
para a populao local, o que ocorreria a partir de 1929, incluin-
do-se, posteriormente, Caxias do Sul. Tudo isso seria possvel
graas, mais uma vez, s guas do Arroio Pinhal, mas agora a par-
tir da fora e do volume derramados pela cascata Vu de Noiva.
A incorporao de novas mquinas para a ao cardada e aca-
bamento, em uma empresa que j na poca era equipada com 45
dos mais modernos teares, representaria efetivamente um novo
impulso nos negcios.
A formalizao da nova sociedade aconteceu em 29 de junho
de 1912. Pouco mais de um ano depois, em 1 de agosto de 1913,
Capacidade produtiva foi ampliada com a aquisio de novos equipamentos, como uma turbina hidroeltrica e um gerador
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as mquinas do novo empreendimento, rebatizado ocialmente
Companhia Chaves Irmos, mas comercialmente conhecido como
Lanifcio So Pedro, comearam a funcionar, tendo Hrcules
Gall como seu scio gerente. A inaugurao do novo lanifcio,
nas dependncias onde se encontra ainda hoje, foi festejada com
um grande baile. Com a ampliao de sua capacidade instalada,
tambm as condies de trabalho na fbrica seriam melhoradas,
e o desenvolvimento local, incrementado.
VIDA PBLICA
A participao de Hrcules Gall na vida pblica de Caxias do
Sul foi bastante intensa no perodo entre 1910 e 1920. Em 1912,
ainda em meio s negociaes com a famlia Chaves Barcellos, foi
convidado a participar da Associao dos Comerciantes do mu-
nicpio, ento presidida por Adelino Sassi. Gall passou a inte-
grar os quadros da associao justamente na assembleia na qual
foi decidido considerar como scios fundadores todos os que na
associao tivessem sido admitidos at 30 de maro daquele ano.
Dois anos depois, Gall participaria da diretoria da entidade,
sendo designado para a Comisso Fiscal, ao lado de Olimpio Rosa
e Joaquim Mascarello.
Ainda em 1912, mais exatamente no dia 31 de dezembro, Hr-
cules Gall foi nomeado Vice-Intendente de Caxias do Sul, ato
assinado pelo Intendente Coronel Jos Penna de Moraes, a quem
viria a substituir por um breve perodo, entre novembro de 1914 e
janeiro de 1915, quando Penna de Moraes licenciou-se. O cargo de
intendente equivale ao de prefeito, nos dias de hoje, o que signi-
ca dizer que Gall esteve frente do Executivo do municpio du-
rante alguns meses, funo qual teve que renunciar, em funo
de seus inmeros compromissos particulares. Em 1913, pouco de-
pois da inaugurao da nova fbrica, Gall j havia sido nomeado
para o posto de Tenente Coronel do 85 Batalho de Reserva da
Guarda Nacional, honraria a que tambm haviam feito jus outros
empreendedores de reconhecidos servios prestados comuni-
dade local, como Abramo Eberle e Joaquim Pedro Lisboa (ideali-
zador da Festa da Uva), ambos nomeados para o cargo de Major.
Neste perodo, registra-se outro fato relevante na trajetria
de homem pblico de Hrcules Gall: ele foi o primeiro deputado
da regio da colnia eleito para a Assembleia dos Representantes
do Estado, funo a ser exercida na chamada 7 Legislatura (1913-
1916). O momento era de denio de muitas regras, como as que
diziam respeito exportao de gneros, taxas ou isenes de im-
postos, cobrana da dvida de colonos, construo de estradas e
canais, estradas de ferro, obras em portos, desapropriaes etc.
Hrcules teve presena destacada, defendendo os interesses da
regio de Caxias, em especial na Comisso de Exame de Despe-
sas. Para participar das reunies, viajava a cavalo at Caxias, onde
se hospedava no Hotel Paternoster, e dali seguia de trem at Por-
to Alegre, sempre namente trajado, como enfatiza o professor
Mrio Gardelin.
A presena de Hrcules na vida poltica da regio foi uma
constante. Nas eleies dos Intendentes e Conselheiros em 1916
Vista de Galpolis em 1917, com as casas de Gall ao fundo
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e, mais tarde, em 1920, Gall ofereceu sua casa como mesa do 5
Distrito, tendo sido ele prprio um dos mesrios. Em 1920, pouco
antes de sua morte, Gall foi recebido na Estao Ferroviria pelo
Intendente Penna de Moraes e por vrios amigos e admiradores,
conrmando-se seu prestgio junto comunidade.
A VILA OPERRIA
Em meio intensa participao na vida pblica da regio, Hr-
cules Gall gerenciava de forma rme e ousada o novo lanifcio.
Atento necessidade de mo-de-obra qualicada, para aprovei-
tar ao mximo a capacidade instalada da fbrica, Gall contratou
vrios mestres teceles italianos, entre eles Matteo Gianella, que
mais tarde montaria seu prprio negcio e tambm se destaca-
ria como industrial do ramo txtil. Para atrair estes prossionais
especializados, eram publicados anncios em jornais gachos e
mesmo na Itlia. Os contratos em geral tinham durao de trs
anos, incluindo passagem de retorno Itlia, caso no houvesse
a renovao. Parte deles acabou voltando para sua ptria, aps o
encerramento do prazo, mas muitos se estabeleceram denitiva-
mente em Galpolis e regio.
Gall era quem efetivamente tocava o negcio, e foi ele quem
estabeleceu um novo patamar de relacionamento com a fora de
trabalho. O incio da construo da vila operria marcaria a his-
tria de Galpolis, sendo uma referncia inovadora no modelo de
gerenciamento da mo-de-obra na regio, ainda que no tenha
sido pioneira no Estado em Rio Grande, a Companhia Unio
Fabril Rheingantz & Vater, de 1874, havia adotado o modelo de
vila operria. Gall, ao mesmo tempo, conhecia vrias experin-
cias nesse sentido, desenvolvidas na Itlia e na Inglaterra, e imple-
mentou com sucesso o modelo no lanifcio de Galpolis.
As casas, de madeira e construdas lado a lado (somente al-
guns anos depois surgiriam as casas em alvenaria e geminadas),
eram alugadas por valores simblicos, como estratgia de atra-
o e manuteno da fora de trabalho no local, tendo em vista
a distncia de Caxias, as diculdades de transporte e a precarie-
dade das estradas. A criao ocial do 5 Distrito do municpio,
em 1914, foi justicada, entre outros argumentos, justamente pela
diculdade da populao ir at a sede constantemente, para os
atos da vida civil. Da mesma forma, segundo o texto legal, o "po-
voado de Gall (ainda no Galpolis) constitua um aglomera-
do de populao proletria que tende a aumentar cada vez mais,
salientava o Ato n 14, da Intendncia Municipal de Caxias do
Sul. Gradualmente, portanto, criou-se um ambiente de relacio-
namento mais estreito da fbrica com seus funcionrios, o qual
ultrapassava as relaes trabalhistas, at porque em geral envolvia
vrios integrantes de uma mesma famlia que trabalhavam simul-
taneamente no lanifcio.
A formao da mo-de-obra, por exemplo, era feita no lani-
fcio. Muitos dos operrios aprenderam na fbrica a arte de tecer,
como relembra Valter Marchioro, tio de Fernando Marchioro, o
Funcionrios junto ao lanifcio, em imagem de 1925
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atual diretor-presidente da Cootegal, cooperativa que assumiu o
lanifcio em 1999. O av e o pai de Valter, respectivamente Joo
Marchioro, operrio do apresto, e Hugo Marchioro, contrames-
tre, tambm haviam trabalhado no lanifcio, assim como seus ir-
mos, Otvia e Vilmar, este ltimo pai de Fernando.
A utilizao da fora de trabalho de menores na produo
fabril tambm era vista com bons olhos na poca, como forma
de proporcionar aprendizado aos pequenos, alm de contribuir
para um acrscimo na renda familiar. Muitos meninos e meninas
iniciaram suas atividades no lanifcio entre 9 e 10 anos. Quando
completavam 14 ou 15, eram registrados como operrios e rece-
biam a remunerao estabelecida em lei especca para menores.
O trabalho era dividido em turnos de oito horas, o primeiro
das 5h s 14h, o segundo das 14h s 22h, e o terceiro das 22h s
5h. Cabe ressaltar que a troca de turnos era anunciada por um
apito, to forte que se ouvia em toda a comunidade e mesmo nos
arredores, servindo de referncia para todo e qualquer cidado.
Alm disso, qualquer que fosse o turno escolhido, o trabalhador
conseguia conciliar o emprego com outra atividade que aumen-
tasse a renda mensal familiar. Um aspecto interessante na rotina
de ento reside no fato de que, para o colono-operrio, a jornada
de trabalho, que chegava a atingir 16 horas dirias entre a fbrica
e a roa, no era considerada uma sobrecarga, mas sim uma al-
ternativa para se manter um padro de vida digno. O trabalho na
fbrica, inclusive, era classicado como leve, em comparao com
as atividades na terra.
Funcionrios em frente s casas da vila operria
A primeira banda do lanifcio, em imagem de 1911
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A MORTE PREMATURA
A dcada de 1910, como se viu, foi de intensa atividade poltica e
empresarial para Hrcules Gall, mas do ponto de vista pessoal
tambm no foram poucos os episdios marcantes. Pouco depois
da inaugurao da nova fbrica, resultado de sua associao com
a famlia Chaves Barcellos, Gall contratou Secondo Solio para
trabalhar no lanifcio como tcnico eltrico, a exemplo de tantos
outros mestres italianos que foram atrados para a Serra gacha.
Secondo, nascido em 1889, tinha 25 anos quando chegou ao Bra-
sil, e logo se tornaria genro de Hrcules, ao se casar com sua lha,
Olga, em 1915. No ano seguinte, nasceu a primeira neta de Gal-
l, Cllia, que infelizmente faleceu ainda beb, em 1917. Tambm
por volta de 1917, Gall teve que providenciar uma ampliao da
maior das duas casas da famlia, construindo um anexo, de forma
a que pudesse receber de forma adequada em especial seus scios,
quando vinham de Porto Alegre para inteirar-se das atividades no
lanifcio, mas tambm clientes e parceiros de negcio.
O ano de 1917, a propsito, teria outros signicados na vida
da famlia Gall, pois foi quando terminou a Primeira Guerra
Mundial, conito que estourou em 1914, na Europa, e do qual
participou ativamente seu lho, Renato, na poca com menos de
18 anos. Renato foi sempre um aventureiro, e apesar do manifesto
interesse em tocar os negcios do pai, seu envolvimento com a
atividade poltica e como combatente, defendendo sua ptria em
diversos conitos, prevaleceu. Em uma viagem que fez Europa,
no nal de 1919, Gall permaneceu vrios meses na Itlia, tentan-
Secondo e Olga retornaram para a Itlia logo aps a morte de Gall
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do localizar o lho, aps o m da guerra. Retornou com Renato
em abril de 1920.
Hrcules Gall aproveitou aquela viagem e o perodo do ps-
-guerra, em que no mundo inteiro se discutiam novas alternativas
de desenvolvimento, para tambm avaliar suas atividades econ-
micas e, quem sabe, dar novos rumos aos negcios. Concluiu que
seria um bom momento para mais uma vez empreender. Pouco a
pouco, foi amadurecendo a ideia de construir um novo lanifcio,
quem sabe em Galpolis, onde no incio de 1921 adquiriu novas
terras. Se tal ocorresse, a concorrncia com a empresa Chaves
Irmos poderia signi car algum con ito, mas certamente daria
novo impulso economia local. Gall no descartava empreen-
der em Foz do Iguau, no Paran, onde tambm havia comprado
grandes reas. En m, veio a deciso. Como na poca era costume
Orestes Manfro (no alto, esq.) assumiria a gerncia do lanifcio aps a morte de Gall
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divulgar publicamente alteraes legais feitas em associaes
comerciais e industriais, em fevereiro de 1921 foi publicado no
jornal O Brasil o seguinte anncio:
Pouco tempo depois, estranha e surpreendentemente para
um homem com sua sade e disposio, e mais uma vez entu-
siasmado com os planos de partir para novos empreendimentos,
Hrcules Gall faleceu em 9 de maio de 1921. Do nada, comeou
a sentir-se mal, muito mal, e levado s pressas para o Hospital
Benecncia Portuguesa, em Porto Alegre, em estado grave, no
resistiu. As circunstncias dessa inesperada morte nunca foram
totalmente esclarecidas. O fato que a populao de Galpolis
chorou a morte do homem que havia transformado a realidade
econmica e social do ento distrito, ao acreditar no potencial de
trabalho daquela pequena comunidade. Transportado de Porto
Alegre para Caxias em um trem especial, com honras de homem
pblico, Hrcules Gall foi enterrado no alto de uma das colinas
de Galpolis, de forma a que de l pudesse seguir zelando pelo
lugar que adotou seu nome.
Comunicamos que o nosso amigo Sr. Hrcules Gall
deixou, na melhor harmonia, de fazer parte de nossa
rma, a contar de 1 de janeiro do corrente ano.
Caxias do Sul, 1 de fevereiro de 1921Chaves Irmos & Cia
De acordo com a declarao acimaHrcules Gall
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SEGUNDA PARTE
Galpolis sem os Gall
Passaram-se quase 10 anos aps a morte de Hrcules Gall,
em 1921, at que sua esposa, Edwige, conseguisse resolver as
questes mais urgentes referentes aos negcios da famlia.
Sua preocupao maior era formalizar a venda de todas as aes
para os ex-scios do marido no Lanifcio So Pedro. Quando nal-
mente livrou-se da incmoda situao, precisou escolher quem
seriam os administradores dos muitos bens e investimentos da
famlia, no perodo em que ela pretendia permanecer na Itlia,
para onde efetivamente retornou por volta de 1930, juntamente
com os lhos, Renato e Pinot. Para procuradores da famlia, foram
escolhidos Arlindo Sassi, que havia presidido por muitos anos
a Associao dos Comerciantes de Caxias, e Miguel Muratore.
Foi Muratore, a propsito, quem negociou a troca dos investi-
mentos que Edwige possua no Banco Pelotense, liquidado em
1931, por aes em diversos estabelecimentos de Caxias, como
Cinema Central e Recreio da Juventude, e mesmo por dbitos
de pessoas fsicas.
De volta a Biella, Edwige juntou-se a Secondo, Olga e o -
lho, Ercole, que havia nascido l mesmo, em 1922. A comunicao
com seus representantes no Brasil era feita somente por cartas.
Mas entre 1931 e 1933, estranhamente ela no respondeu nenhu-
ma das correspondncias. Em outubro de 1933, por exemplo, foi
alertada de que, mesmo sendo a maior aberta de tempos em tem-
pos, os panos l guardados estavam se desgastando. Arlindo Sassi
sugeriu que ao menos as roupas de l fossem doadas s Damas de
Caridade, com quem Edwige costumeiramente colaborava. Sassi
aproveitou para recomendar que no s as casas, mas tambm os
terrenos da famlia, fossem negociados o quanto antes. Edwige
respondeu que aceitava propostas pelos terrenos, mas que no
pretendia se desfazer das casas. Na poca, a casa menor j estava
ocupada por Joo Vial II e Irma Guedin, ele motorista de cami-
nho que transportava a lenha para a caldeira do lanifcio. Duran-
te o perodo em que l viveram, a partir de 1928, Joo Vial e Irma
viram nascer os trs lhos: Jimmy, em 1930, Maria de Lourdes, em
1934, e Dill, em 1940.
A GESTO SPINATO
Com a repentina morte de Hrcules Gall, Orestes Manfro assu-
miu a gerncia da fbrica, tendo como subgerente seu cunhado,
Joo Laner Spinato, que havia sido contratado naquele mesmo
ano, 1921. Spinato seria o sucessor de Manfro alguns anos mais
tarde, depois que este foi assassinado, em 1933. A partir de ento,
seu Joanin, como caria mais conhecido, seria no apenas o to-
do-poderoso gerente do lanifcio por quase quatro dcadas, mas
tambm homem de grande inuncia na comunidade, em razo
de sua posio privilegiada anal de contas, dirigia a empresa
que empregava boa parte da populao local , mas tambm pelo
fato de ser um fervoroso e praticante catlico.
Time de futebol do Lanifcio So Pedro em 1933. De terno, esquerda, Orestes Manfro
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40
No incio dos anos 1930, a propsito, Galpolis possua uma
populao de 2.300 habitantes, dos quais 1.163 homens e 1.137
mulheres. Entre eles, nada menos que 566 eram italianos, outros
19, alemes, e cinco pessoas tinham outras naturalidades. A cida-
de possua modestos 15 estabelecimentos comerciais (contra 450
em Caxias do Sul), que empregavam apenas cinco pessoas (contra
486 empregos gerados em Caxias), o que denota que os negcios
eram tocados pelos prprios donos ou familiares. Havia quatro
armazns de secos e molhados, dois aougues, duas casas que
vendiam fazendas, ferragens, louas e secos e molhados, e apenas
uma barbearia, um botequim, uma loja de calados, malas e arte-
fatos em couro, uma farmcia, um hotel e uma penso.
O envolvimento do lanifcio com todo e qualquer tipo de ati-
vidade social em Galpolis s fez crescer na gesto de Spinato.
Em sua poca foram construdas as casas geminadas de alvenaria
da vila operria, que cavam na rea central de Galpolis, bem
como foram erigidos dois educandrios, um para meninos, diri-
gido pelos Irmos Josenos, e outro para meninas, a cargo das
Irms do Imaculado Corao de Jesus. Pouco antes, em novembro
de 1929, havia sido fundado o Crculo de Leitura, que mais tarde
se transformaria em Crculo Operrio Ismael Chaves Barcellos,
nome escolhido obviamente em homenagem ao diretor presiden-
te da empresa que controlava o lanifcio. O Crculo proporcio-
nou aos associados, alm da assistncia mdica, farmacutica e
A Escola Irmos Chaves, em imagem dos anos 1940
Armazm do Ginio, dcada de 1930
Antiga sede do Crculo Operrio, no Armazm So Pedro
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42
jurdica, tambm uma assistncia de carter trabalhista, via As-
sociao Prossional de Trabalhadores na Indstria de Fiao e
Tecelagem, que anos depois daria origem ao primeiro sindicato
distrital do Brasil.
Tambm como decorrncia da criao do Crculo Operrio
nasceu a Caixa de Socorro Mtuo, que consistia na formao de
um peclio ou fundo de caixa, para o qual os operrios contribu-
am com pequenas mensalidades, proporcionais aos seus salrios.
Em 1936, a vez da criao da Cooperativa de Consumo So Pedro
S.A. Sem inteno de lucro, eliminando o papel do intermedirio
comerciante, devido localizao da vila distante da sede urbana,
a empresa barateava os gneros de primeira necessidade e garan-
tia a alimentao bsica aos operrios a preo de custo, com a
possibilidade de pagamento a crdito.
Todas estas organizaes contavam com apoio e subveno do
lanifcio, que, se de um lado oferecia inmeros benefcios sociais
e culturais para seus empregados, de outra parte esperava contar
com a lealdade, para no dizer submisso, de seus funcionrios.
A religiosidade de Spinato chegou ao pice quando ele foi es-
colhido para coordenar as obras de construo da nova Igreja Ma-
triz, que substituiria a j pequena igreja erigida originalmente em
1902, em homenagem a Nossa Senhora do Rosrio de Pompeia.
A partir de 1938, ele dedicou-se incansavelmente para transfor-
mar em realidade o projeto dos engenheiros Sady Castro e Lus
Leseigneur de Farias, executado pelo tambm engenheiro Ferdi-
nando Guizzo. Os alicerces foram iniciados em janeiro de 1939,
e a partir de ento se realizaram um sem-nmero de festas e rifas
visando arrecadao de fundos para a obra, a qual, na prtica, foi
nanciada em grande parte com recursos do Lanifcio So Pedro,
cujos diretores doaram, tambm, o terreno para a construo do
novo templo.
Em meio s obras, um incidente obrigou o gerente a dedicar-
-se a outra causa, to nobre quanto a de carter cristo. Em 29 de
janeiro de 1945, um incndio destruiu a seo de Fiao Cardada
e danicou seriamente as mquinas do lanifcio. A direo ten-
tou importar mquinas da Europa, mas tal alternativa se mostrou
invivel, em um primeiro momento, em razo do conito blico
que ainda assolava o continente. Ento Spinato decidiu que ele
mesmo se encarregaria de reconstituir os equipamentos, contan-
do para isso com a ajuda dos operrios da ocina mecnica do
lanifcio, mas tambm de ocinas de Caxias do Sul e da Meta-
lrgica Eberle. Em 26 de julho de 1945, escreveu carta s lhas
dando conta que as mquinas da Fiao, que estavam destinadas
ao triste e inglrio m de servirem de retalhos para os fornos de
fundio, esto trabalhando e fazendo o. Pouco tempo depois,
a poltica brasileira de importao de mquinas e equipamentos
seria revista, e o lanifcio faria grandes investimentos na renova-
o de seu parque industrial.
Voltando igreja: para a confeco da esttua de Nossa Se-
nhora do Rosrio, com cinco metros de altura, foi contratado o
escultor Francisco Rademacker, em janeiro de 1946. Rademacker
esculpiu tambm a via crucis, enquanto Alexandre Bartelle, de
Antigo Parque Ismael Chaves Barcellos, atual Praa Duque de Caxias, em 1930
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45
Farroupilha, preparou as portas e todo o mobilirio. Os vitrais
belssimos foram executados pela renomada Casa Genta, e foram
obra do artista Max Dobmeyer. Finalmente, em 2 de maro de
1947, a catedral cou pronta. Joo Laner Spinato, que um ano an-
tes havia sido homenageado efusivamente por seus 25 anos de la-
nifcio, foi escolhido o festeiro, juntamente com a mulher, Luza.
Os muitos esforos da direo do lanifcio, no sentido de
oferecer uma diversidade de benefcios aos funcionrios, de for-
ma a receber destes, em troca, um comportamento, por assim
dizer, sem maiores questionamentos, no impediu que, em 1942,
surgisse o Sindicato dos Mestres, Contramestres e Trabalhadores
na Indstria de Tecelagem de Galpolis. A instituio, de carter
distrital, foi a primeira do pas com estes ns. A partir de 1945, o
sindicato assumiria o efetivo papel representativo dos interesses
da categoria nas questes salariais, cujas regras eram at ento es-
tabelecidas pela fbrica, quase que unilateralmente, e mais tarde,
tambm pelo governo. Em 1948, o sindicato conseguiu sua primei-
ra vitria: um reajuste de 30% na remunerao de seus associados.
Do ponto de vista dos gestores, o lanifcio ia de vento em
popa. Em 1937, a fbrica produziu 309 mil metros de tecidos, 58
mil quilos de os e 41 mil unidades de artefatos de tecidos. Na-
quele ano, o lanifcio contava com 77 teares, 2.770 fusos de o
cardado, 3.150 fusos de o penteado, 870 fusos de o retorcido,
uma mquina de lavagem de l, duas estufas, 26 tanques de tintu-
raria e 24 unidades de acabamento de tecidos. Tendo o Exrcito
brasileiro como um de seus grandes clientes, no fornecimento de
uniformes e cobertores, a empresa vivia tempos de grande pros-
peridade econmica.
AS CASAS COMO PROTAGONISTAS
DE SONHOS E FANTASIAS
Se a Casa 1 foi ocupada pela famlia de Joo Vial II a partir de 1928,
logo aps o retorno da famlia Gall para a Itlia, a Casa 2 caria
fechada at por volta de 1938, quando para l se mudaram Her-
bert Martin Schenk, sua segunda esposa, Albertina, e os lhos,
Marlene e Mrio. A relao dos Schenk com a Casa 2 foi bastante
intensa. Marlene, nascida em 1936, mora h muitos anos em Porto
Alegre, mas guarda lembranas vivas de sua infncia. Como adora
contar histrias e tambm de escrev-las (o que, a propsito, faz
Um dos detalhes mais signicativos da nova Igreja Matriz so seus belssimos vitrais
Festa de casamento na sede do Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias de Fiao e Tecelagem de Galpolis, na dcada de 1950
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com muito talento), vem h algum tempo registrando suas me-
mrias, as quais aos poucos vo sendo digitadas pelo lho, Marce-
lo, em um computador. Marlene, apesar de ter noes bsicas de
informtica e de operar seu prprio email, ainda no tem muita
familiaridade com os softwares. De qualquer forma, seu depoi-
mento ilumina com muita propriedade e emoo os dias vividos
junto s casas que pertenceram a Hrcules Gall, mas tambm
um retrato do dia a dia na Galpolis dos anos 1940 e 1950. Ade-
mais, a exemplo do que acontecia com boa parte das famlias da
localidade, tambm o pai dela trabalhou no Lanifcio So Pedro.
Marlene inicia seu depoimento descrevendo a vinda de Mar-
tin para o Brasil. Nascido na Alemanha em 1903, ele estudou oito
anos em sua cidade-natal, Glauchau, e depois cursou mais qua-
tro anos do ensino tcnico, em curso voltado ao aprendizado das
atividades de qumica industrial com foco na rea txtil. Aos 23
anos, concluiu que as chances de encontrar boas oportunidades
de trabalho na Alemanha do ps-guerra eram nmas. E foi a que
decidiu viajar para o Brasil, contrariando a opinio da famlia.
Conra o indito relato de Marlene Schenk Duque, naquilo
que diz respeito vida em Galpolis:
Em 1926, teve incio a grande aventura que modicou a vida de
meu pai, Martin Schenk. Em 30 de janeiro daquele ano, ele embarcou
em um navio-vapor no porto de Bremenhaven, norte da Alemanha,
rumo a Buenos Aires, na Argentina. A viagem pelo mar durou 22 dias,
passando por Lisboa, Ilha da Madeira, Fernando de Noronha, Rio
de Janeiro (onde ele desembarcou em um sbado de Carnaval, tendo
cado vivamente impressionado com o forte calor, as muitas pessoas
fantasiadas dormindo nas praas e o cheiro de urina pelas ruas), San-
tos e Montevidu.
Martin cou pouco tempo na Argentina. Voltando ao Brasil,
acabou conseguindo emprego em So Paulo, na Fbrica de Tecidos
Belm. L, cruzou com Ismael Chaves Barcellos [proprietrio do
Lanifcio So Pedro], que procurava um tcnico qumico-txtil. E
assim Martin chegou a Galpolis, no ano de 1931. Hospedou-se em
um hotel prximo da entrada do vilarejo, onde tambm vivia Alberto
Sartori, vice-prefeito de Caxias e na poca j vivo. Sartori vez por
outra levava uma das lhas para lhe fazer companhia. Uma delas se
chamava Isolina. Da surgiu o romance entre Martin e Isolina, que
se casaram em 25 de junho de 1932, em Porto Alegre, em cerimnia
realizada em casa, j que Martin era protestante. Imagino que a par-
tir de ento passaram a morar em uma das casas da fbrica, ao lado
da Igreja Matriz.
Tiveram trs lhos: Marisa, nascida em 18/10/1933, eu, Marlene
Selma, de 12/01/1936, e meu irmo, Mrio, de 25/4/1937. Infelizmente,
esses anos no foram os mais felizes para os meus pais, e para Martin,
principalmente. A nossa irm, Marisa, devido a uma forte gripe, aca-
bou hospitalizada em Caxias, no Hospital Pompeia. Tratada pelo dr.
Flix Laner Spinato, provavelmente teve um quadro de pneumonia,
no resistiu doena e veio a falecer em 19/1/1936, uma semana de-
pois de meu nascimento. Quando minha me teve seu terceiro lho,
o parto foi difcil, pois meu irmo nasceu muito grande. Por fora de
complicaes, minha me veio a falecer no mesmo dia. (...)
Grupo de is em frente nova igreja por volta de 1940, em mais um registro da reli-giosidade em Galpolis
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Martin cou desnorteado. Longe de sua famlia, vivo to cedo,
depois de perder uma lha, ainda tinha dois lhos pequenos para
criar. Na Alemanha, meu av j havia falecido, e minha av materna,
j com idade avanada, poderia falecer a qualquer momento. Ento
Martin decidiu deixar a mim e a meu irmo aos cuidados de nossa
tia Albertina, que era solteira, mas estava morando em Porto Alegre,
e viajou para a Alemanha. Embarcou no porto de Santos em junho
de 1937 e retornou da Alemanha no nal de outubro daquele mesmo
ano, desembarcando no porto de Rio Grande. Somente no retorno
Martin deu-se conta da diculdade que seria criar duas crianas to
pequenas. No incio, contratou uma empregada, o que acabou no
dando muito certo. Foi ento que seu cunhado, o padre Luis Victor
Sartori, aconselhou Martin a se casar com Albertina, irm de sua fa-
lecida mulher, que era solteira e j estava acostumada a cuidar dos
sobrinhos. Acabaram se casando, novamente em casa, em Porto Ale-
gre, em 27/6/1938.
De volta a Galpolis, mudaram-se de imediato para a casa da
famlia Gall, em frente ao Lanifcio So Pedro, que estava vazia, j
que a famlia, aps a morte de Hrcules Gall, havia voltado para a
Itlia, s podendo regressar quando a guerra acabasse. No sei a data
exata da mudana, mas temos fotograas tiradas no jardim da casa
j a partir de julho de 1938.
Os anos passados naquela casa foram muito prazerosos. Lem-
bro-me dessa casa com muita saudade. A nossa me, Albertina sem-
pre a chamamos de me, pois foi a nica que de fato conhecemos
cuidava do jardim, que estava sempre orido. Havia trs rvores
At hoje no se sabe por que o antigo templo em homenagem a Nossa Senhora do Rosriode Pompeia foi demolido. Acima, imagem de 1933
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de camlias vermelhas e dois pinheiros bem altos, de uma espcie que
nunca mais vi igual. Era comum a presena de cobras por ali. Para
que pudssemos brincar com segurana, meu pai cercou o terreno em
frente da casa com uma tela. Mais tarde, mandou construir um ba-
lano e uma barra de ginstica.
Na casa ao lado da nossa, que tambm pertencia famlia Gall,
morava a famlia do sr. Joo Vial e de dona Irma, com os trs lhos,
Jimi, Maria de Lourdes e Dill. Do outro lado da rua, mais adian-
te [a BR-116 ainda no havia sido concluda], moravam o gerente
do lanifcio, Joo Laner Spinato (ou seu Joanim, como era costume
cham-lo), dona Luza, sua esposa, e suas quatro lhas, Lori, Ruth,
Terezinha e Rosmari. Com exceo de Lori, que era a mais velha e
estudava em Porto Alegre, as demais foram minhas amigas de infn-
cia. Formvamos as duplas, conforme a idade: a Ruth e a Lourdes; a
Terezinha (Tere) e eu; a Dill e a Rose.
Quando chegou a poca de irmos para a escola, fomos estudar
no colgio das irms do Corao de Maria, construdo para a instru-
o dos lhos dos operrios. Todas as manhs, eu e meu irmo desca-
mos o primeiro lance de escadas, encontrvamos com a Lourdes e
mais tarde, tambm com a Dill e amos at a casa das Spinato. Se
elas no estivessem prontas, entrvamos na cozinha, que no inverno
era quentinha, com o fogo lenha ligado. Alm do calor, havia o
cheirinho gostoso das coisas boas que dona Luizinha fazia. Ela era
de origem alem e muito habilidosa. Tinha prateleiras cheias de con-
servas, lindas e coloridas. Fazia bolos e tortas deliciosas, como a torta
de Rabarber, uma planta que ela cultivava no terreno da casa e que
nunca mais provei no Brasil. Tnhamos aula pela manh, voltvamos
para almoar e depois retornvamos para o colgio. amos sozinhos.
Tnhamos uma liberdade que as crianas de hoje no tm mais.
Nosso pai tentava nos ensinar a falar alemo. Quando comeou
a Segunda Guerra, nossa me no mais permitiu que ele assim o zes-
se, j que os alemes eram perseguidos pelo governo brasileiro. Nosso
pai tinha a proteo da fbrica, mas no foi o suciente: em um dia
em que Martin estava trabalhando e Albertina tinha ido a Caxias,
Joo Laner Spinato, gerente do lanifcio de 1933 a 1966, e a esposa, Luza
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chegaram policiais nossa casa e casa de outro senhor alemo, que
tambm trabalhava na fbrica. Vinham fazer uma busca, pois des-
conavam dos alemes que moravam na regio. Retiraram da casa
do sr. Willi todos os livros em alemo e os gurinos de bordado e tra-
balhos manuais que a sua esposa tanto gostava de fazer. Em um ato
de barbrie, atearam fogo em tudo, por mais que a esposa do sr. Willi
(Anita) suplicasse pela preservao dos materiais.
Na nossa casa, a polcia tambm entrou. Eu era muito pequena,
mas nunca esqueci. Estvamos sozinhos com a empregada. A polcia
levou o nosso rdio, a mquina de fotograa e at um binculo. No
sto da casa, zeram uma limpa em alguns pertences da famlia
Gall que l estavam guardados. Levaram at as coroas do velrio
do sr. Hrcules, que cavam enleiradas em uma taquara. Levaram,
ainda, objetos que o lho dos Gall [Renato] havia trazido da Europa
como souvenir da Primeira Guerra Mundial (capacetes, mscaras de
gs, granadas vencidas etc). Tambm foram levados objetos de valor,
como mquina de costura, relgio de parede e outros pertences. Fica-
ram no sto algumas louas, mveis e um ba com roupas.
Eu e o meu irmo gostvamos de brincar no sto com os nossos
amigos e primos, que nos visitavam nas frias. Uma das brincadei-
ras era se vestir com as roupas do ba e brincar de casinha com as
louas que restaram. No sto no havia luz eltrica. Assim, quando
escurecia, brincvamos de casa assombrada com fantasmas. Em cima
da cozinha, havia um quarto grande, onde tambm no havia luz
eltrica. Era o nosso quarto de brinquedos. Tnhamos um conjunto
completo de mesa, quatro cadeiras, um sof e uma cadeira de ba-
lano, todos objetos que Martin havia comprado para a nossa irm,
Marisa. Martin, posteriormente, mandou fazer um pequeno armrio
para guardarmos as nossas louas de brinquedo, panelinhas e os li-
vros de histria. L no quarto cavam as bonecas com suas caminhas,
carrinho e os brinquedos do Mrio. (...)
Lembro que s vezes ele ia jogar bolo com os amigos no antigo
prdio da Cooperativa, que era de madeira. (...)
Os Natais eram sempre muito esperados. Meus tios mais moos,
que ainda eram solteiros Paulo e Vensio passavam temporadas
conosco. Nosso pai sempre encomendava um pinheiro grande, que
vinha das colnias no caminho da fbrica. Vensio era muito habili-
doso. Ajudava a enfeitar o pinheiro e a fazer o prespio com um moi-
nho que se mexia e formava um laguinho com gua de verdade, onde
nadavam patinhos de celofane. A gente adorava! Ele fez, tambm, um
avio de madeira para o meu irmo. A asa girava para os lados, e eu
entrava no avio, embaixo da asa, com as minhas bonecas, enquanto
o Mrio ngia que pilotava. Era o mximo!
Havia um cinema que era a maior distrao, com duas ou trs
sesses por semana. As cadeiras eram de palha e cavam soltas pelo
salo. O lme era a todo o momento interrompido para a troca
dos rolos. Nos nais de semana, havia uma sesso dupla. Passava
um lme e parte de um seriado de aventuras, que continuava na
semana seguinte, e no se perdia por nada. Eram lmes do Flash
Gordon, Capito Marvell, O Fantasma, Capito Amrica, entre ou-
tros. amos sempre a p, caminhando pela beira da estrada federal
[concluda em 1941], j que caladas no havia. Bem agasalhados
A BR-116 j pavimentada, em imagem da dcada de 1950
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no inverno, amos brincando pelo caminho, imaginando histrias
de aventura sobre um homem de capa preta que tentava nos agar-
rar. Gritando de medo ou rindo das brincadeiras, l amos ns para
o cinema.
Outros programas muito esperados eram as festas do padroeiro
de Galpolis, So Pedro, em ns de julho, com quermesses e muitas
brincadeiras. Uma vez por ano, faziam um almoo, tipo piqueni-
que, durante o qual reuniam todos os operrios da fbrica. Em um
grande panelo era feito o risoto de midos de frango, servido com
frango assado e po.
Em Galpolis, no tnhamos geladeira; comprava-se gelo para
ajudar a conservar os alimentos. As comidas em geral, assim como
as frutas e as verduras, eram guardadas no poro, cujo assoalho era
de terra. Ficavam em um armrio de tela, para proteger os alimentos
de possveis ataques de moscas, ratos etc. O nico a ter geladeira em
Galpolis era o sr. Spinato, um dos poucos que tambm tinha auto-
mvel. Quando comeou a importao de geladeiras da marca Frigi-
daire, havia listas de espera, mesmo em Porto Alegre. Meu pai, atravs
de um amigo, representante de produtos qumicos, conseguiu uma
geladeira para ns.
Em casa, tnhamos gua encanada na cozinha, banheiro e tan-
que de lavar roupa. Vinha de uma vertente que cava na subida do
morro, atrs da casa. No inverno, a casa era muito fria, e banho no
tomvamos todos os dias. Tnhamos uma banheira com um chuvei-
ro. Para esquentar a gua, ns tnhamos um depsito com uma ser-
pentina e aquecamos a gua com lcool, que colocvamos em uma
canaleta redonda, abaixo do depsito. Quando fazia muito frio, a
gua chegava a congelar nos canos. Eu e o Mrio colhamos ores
no jardim e botvamos numa tigela com gua. Amanhecia a gua
congelada, cobrindo a or. Houve um ano em que at nevou em Ga-
lpolis. Muito pouco, mas o Morro Pelado, como chamvamos, cou
branquinho. Nossos pais nem nos deixaram sair de casa. Ficamos
olhando pela janela. Foi a nica vez que isso aconteceu em Galpolis
(que eu saiba).
Com o m da Guerra, os pertences do Martin lhe foram devolvi-
dos. Eles tinham cado em Caxias com o delegado, dr. Clio Marques
Fernandes, que era noivo de uma sobrinha da minha tia Jlia, irm
da nossa me. Ela se chamava Maria Scalzilli, e o delegado j nos
conhecia bem.(...)
Piqueniques na rea do Lanifcio So Pedro, como este, na dcada de 1940, eram bastante frequentes
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Martin naturalizou-se brasileiro em 23 de abril de 1947, ato assi-
nado pelo ento presidente do Brasil, General Eurico Gaspar Dutra.(...)
Em 1948, Martin comprou o seu primeiro carro, o que foi uma
festa. Quando eu z 12 anos [tambm em 1948], terminando o cur-
so primrio no Colgio Chaves Irmos, fui para Porto Alegre fazer o
exame de admisso para o Ginsio e passei a estudar no Colgio Bom
Conselho das Irms Franciscanas, em regime de internato. No ano se-
guinte, foi a vez do Mrio, que passou a estudar no Colgio Anchieta
dos Jesutas, tambm em regime de internato.
Voltvamos para Galpolis nos feriados de Pscoa, Finados e nas
frias de julho e de vero. Era sempre uma alegria rever os amigos.
amos passear e depois ao cinema, em Caxias. No vero, amos aos
bailes de carnaval nos clubes Juvenil e Juventude. s vezes saamos
de um e amos para o outro. Quando tinha Festa da Uva, amos aos
bailes, festas e deslvamos em carros alegricos.
Em julho, apesar do frio, fazamos piqueniques nas colnias. Pe-
gvamos carona com os caminhes da fbrica, que saam cedo para
buscar lenha, e passvamos o dia todo fora. Era muito divertido.
Em Finados, era sagrado: amos primeiro ao cemitrio de Ga-
lpolis, onde a Marisa fora enterrada, para limpar o tmulo e levar
ores. Passvamos sempre em frente ao jazigo do Sr. Hrcules Gall,
o mais bonito do cemitrio. Depois, amos a Caxias levar ores ao ja-
zigo dos Dal Canale, famlia da minha me, por sua via materna. L
foram enterrados nossos avs, tios e a nossa me biolgica, Isolina. Ir
ao cemitrio para ns era uma coisa normal. Hoje, os jovens no que-
rem saber de ir ao cemitrio, a no ser quando h um enterro especial.
O tmulo onde Hrcules Gall foi sepultado, em 1921, foi sempre muito visitado
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Em Galpolis, quando morria algum, sempre tocava o sino da
igreja, e quando terminava a aula da tarde, ns corramos para ver o
defunto e ir ao enterro. Quando morria alguma criana, ns at nos
oferecamos para carregar o caixozinho, j que em Galpolis no
havia carro fnebre e os caixes eram carregados mo at o cemit-
rio, que cava no alto do morro, alm do colgio das irms.
Com a construo da nova igreja matriz, a velha igreja de pedra
foi destruda. Nunca soubemos o porqu, foi uma pena. Foi l que eu
e os meus irmos fomos batizados, e l eu e Mrio zemos a primeira
comunho. A nova igreja matriz foi construda no terreno que cava
em frente casa em que nascemos.
A famlia Gall regressou ao Brasil depois da Segunda Guerra, e
ento pediram que a casa fosse desocupada. Eu e o Mrio j estva-
mos estudando em Porto Alegre, de modo que, de fato, a casa cou
grande demais para os nossos pais. Alm disso, estava comeando a se
deteriorar. Algumas das sacadas ameaavam cair, e era perigoso pisar
nelas. A fbrica havia construdo um prdio novo, o Crculo Operrio
Ismael Chaves Barcellos, onde cava a nova cooperativa dos oper-
rios, a farmcia, o ambulatrio mdico e o jardim de infncia. Na
parte superior, havia trs apartamentos. Martin cou com um deles,
o da esquina, e para l se mudaram.
Moramos na casa dos Gall por 16 anos. No me lembro exa-
tamente a data da mudana denitiva. Sei que l festejei os meus 15
anos. Entre os meus convidados estava o jovem Ercole Solio, neto de
Hrcules Gall, que me deu de presente um livro com uma dedicat-
ria, o qual conservo at hoje.
Depois que os meus pais se mudaram para o novo apartamen-
to, eles iam sempre almoar no restaurante da Cooperativa, onde se
comia muito bem. Lembro-me do sr. Baiche (esse era o apelido dele),
que com a esposa tomava conta do restaurante. A comida caseira era
muito boa. Ele desossava um leito pequeno, recheava e assava no
forno lenha. Era uma delcia. Eles eram muito amigos dos nossos
pais, e ensinaram como se preparava o prato. Assim, passou a ser uma
tradio o leito recheado que se fazia nos aniversrios do Martin.
O sr. ngelo Daniel era um grande amigo nosso, motorista dos
caminhes da fbrica e do seu Joanim. Muitas vezes ele me levou, jun-
to com as lhas do sr. Spinato e mais a Lourdes Vial, para passearmos
de carro em Caxias.
A nova sede do Crculo Operrio Ismael Chaves Barcellos, em imagem dos anos 1960
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Martin trabalhou no Lanifcio So
Pedro de 1 de outubro de 1931 a 31 de ou-
tubro de 1967. Depois que se aposentou,
Vensio assumiu o seu lugar na fbrica, como mestre da tinturaria.
O depoimento de Dorvalino Min-
cato, que nasceu em 1939 e mais tarde
casou-se com Dill, uma das amigas
de Marlene Schenk, complementa o
cenrio da Galpolis de meados do s-
culo XX. Mincato neto de Giovani,
um dos primeiros habitantes de Gal-
polis e tambm fundador da coopera-
tiva Societ Tevere. lho de Candido
Fioravante, que trabalhou como clas-
sicador de l no lanifcio. Dorvalino,
a propsito, um dos poucos nascidos
em Galpolis que no trabalhou na f-
brica. Filho de agricultores, sua rotina desde criana foi semelhante
dos pais, que trabalhavam um turno no lanifcio, e outro na lavou-
ra. Como as atividades do lanifcio no eram to pesadas como as de
outras indstrias, muitas mulheres tambm trabalhavam na fbrica,
alternando o turno com os maridos.
Vivia-se da horta, dos porcos, das galinhas. O prato mais co-
mum era a polenta. No se tinha energia eltrica, mas tampouco se
precisava muito dela. Anal de contas, o que mais se fazia era tra-
balhar. Na poca, no havia televiso,
nem geladeira, relembra Dorvalino.
Ele se emociona ao lembrar da av,
que no sossegava nem mesmo nos do-
mingos, quando ia para a mquina de
costura, remendar roupas ou produzir
uma ou outra pea de vesturio: Uma
ocasio, entrei na sala e a vi dormindo,
deitada sobre a mquina. Eles tinham
vergonha de descansar, comenta,
emocionado.
Dorvalino conta que o dinheiro
ganho no lanifcio em geral era tratado
como poupana, e foi assim que muitos
moradores conseguiram acumular al-
gum patrimnio. Os gastos no dia a dia
eram poucos, e muita coisa era nego-
ciada trocando-se, por exemplo, alguns
ovos por certa quantidade de querosene para alimentar os lampies.
Na hora de construir a casa prpria, no havia pagamento de mo-de-
-obra, pois os vizinhos ajudavam uns aos outros. Sobre a inexistncia
de energia eltrica para aquecer a gua, Dorvalino lembra de uma fra-
se que denia alguns dos hbitos de ento: A gente dizia que sbado
era dia de tomar banho. Dos poucos momentos de lazer, ele recorda
dos brinquedos que eram colocados na praa, em dias de festas reli-
giosas cavalinhos de madeira, argolas, roletas.
GALPOLIS E A ENERGIA ELTRICADe acordo com o historiador Moacyr Flores, no prefcio do livro E assim eles contavam..., que narra a vida de Joo Laner Spinato, em 1929 o Lanifcio So Pedro instalou fora eltrica para mo-vimentar suas mquinas e tambm para o fornecimento de ele-tricidade ao pequeno povoado de Galpolis. Procurando aten-der a demanda, o Servio de Eletricidade local construiu, em 1937, uma linha de alta tenso de 2.000 volts, alimentando uma subestao redutora de 175 Kva, instalada em prdio prprio de alvenaria. (...) O Lanifcio So Pedro forneceu eletricidade para Caxias entre 1944 e 1947. Em 1951, comunicou prefeitura que no poderia mais fornecer energia para as 383 ligaes domici-liares de Galpolis, de quem se cobrava uma taxa mnima de 5 cruzeiros. Em 1953, com a abertura da rodovia federal e o de-senvolvimento de Galpolis, esgotou-se a capacidade dos ge-radores do lanifcio. O ento prefeito de Caxias, major Euclides Triches, solicitou a encampao pela CEEE dos servios da sede distrital da vila. Em 1959, foi nalmente desligada da rede eltri-ca da usina do lanifcio e ligada estao da CEEE, que passou ento a iluminar as residncias e ruas de Galpolis.
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A viagem de Edwige Gall e seus familiares para a Itlia, no nal
dos anos 1920, acabou se transformando em um transtorno, pois
o plano era retornarem no muito tempo depois para o Brasil.
Com a intensicao dos conitos internacionais e a ecloso da
Segunda Guerra Mundial, tudo cou mais difcil. Mesmo Pinot,
que tinha cidadania brasileira, no conseguiu obter autorizao
do governo brasileiro para retornar ao pas, por mais que se justi-
casse que aqui a famlia tinha vrios negcios e investimentos,
tanto no Rio Grande do Sul como em outros estados. Ele teve, in-
clusive, seus bens conscados. Aps a formao bsica no Brasil,
Pinot estudou em Torino e formou-se em engenharia. Era chama-
do, ento, de perito txtil. Edwige tinha a expectativa de que, uma
vez que conseguissem retornar para Galpolis, o lho mais novo
poderia seguir no comando dos negcios da famlia.
Renato, por sua vez, estava cada vez mais envolvido na de-
fesa de sua ptria e dos governos nacionalistas e fascistas que se
sucederam. Considerado o fundador da organizao dos ex-com-
batentes da Primeira Guerra Mundial em Caxias, nos anos 1920,
ele participou ativamente de conitos como a Guerra na frica,
em 1935, e da Guerra Civil Espanhola, de 1936 a 1939. Durante a
Segunda Guerra Mundial, ele permaneceu na Itlia, e a famlia
nunca conseguiu descobrir ao certo o que lhe aconteceu. Termi-
nado o conito, durante muito tempo Edwige mandou publicar
TERCEIRA PARTE
De volta ao Brasil, nalmente
Renato Gall morreu no nal da Segunda Guerra
Secondo Solio e a mulher, Olga
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ocupou provisoriamente, durante alguns meses, uma residncia
pertencente ao comerciante Dal Pr. Assim que famlia Schenk
desocupou a Casa 2, para l se mudaram Edwige, seu lho, Pi-
not, e a mulher, Antonia, alm de Secondo e Olga, mais o lho,
Ercole. J em setembro de 1951, nasceu Jos Gall, lho de Pinot
e Antonia. Em 1952, Edwige aparece em fotograa pubicada nos
jornais locais, como dona da primeira conta aberta no Banrisul
da localidade.
A dcada, entretanto, traria tambm ms notcias. Acometi-
do de uma doena pulmonar, Pinot morre em novembro de 1953,
com apenas 43 anos. Uma grande tristeza, em especial para sua
me, pois Edwige acreditava que ele pudesse estar frente dos
negcios da famlia. Apenas trs anos depois, morrem tambm
Edwige e Olga.
anncios nos jornais, pedindo que algum informasse sobre o
paradeiro de Renato. Consta que, nda a guerra, ele teria se re-
fugiado em Novara, onde seria preso e em seguida morto, ainda
em 1945, juntamente com um grupo de 70 italianos que pretendia
seguir o ditador Benito Mussolini em sua fuga para a Sua.
Em meio s tentativas de sensibilizar o governo brasileiro
para que autorizasse o retorno dos Gall e da famlia Solio para
Galpolis Secondo chegou a vir para o Brasil em 1948, na ten-
tativa de que alguns dos bens conscados da famlia fossem libe-
rados , Pinot conhece Antonia Tumelero. Nascida na regio do
Vneto, em 1920, Antonia mudou-se para o Piemonte, em busca
de trabalho, seguindo os passos da irm, Dolores, que j trabalha-
va na regio de Biella. Apaixonaram-se e se casaram em outubro
de 1946, na provncia de Vercelli, ele com 36 anos, ela com 26.
Finalmente em 1950, depois de interminveis negociaes
com o governo brasileiro, a famlia consegue embarcar no navio
Contebiancamano, que fazia o percurso Gnova-Santos em uma
viagem de aproximadamente duas semanas. Mais uma vez o Bra-
sil representava a possibilidade de construir um mundo novo, em
especial para os descendentes que poderiam vir a nascer. Na ba-
gagem, traziam no apenas o sonho de recuperar ao menos parte
dos bens da famlia, mas tambm as lembranas de uma poca em