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  • UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

    KETILIN KELI DA SILVA

    OS PRIMEIROS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE OS XOKLENG E OS

    IMIGRANTES ITALIANOS NA CIDADE DE URUSSANGA, SANTA CATARINA

    Tubaro

    2012

  • KETILIN KELI DA SILVA

    OS PRIMEIROS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE OS XOKLENG E OS

    IMIGRANTES ITALIANOS NA CIDADE DE URUSSANGA, SANTA CATARINA

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Curso de Graduao em Histria da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do ttulo de Licenciado em Histria.

    Orientador: Prof. Dra. Deisi Scunderlick Eloy de Farias

    Tubaro

    2012

  • KETILIN KELI DA SILVA

    OS PRIMEIROS CONTATOS ESTABELECIDOS ENTRE OS XOKLENG E OS

    IMIGRANTES ITALIANOS NA CIDADE DE URUSSANGA, SANTA CATARINA

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Curso de Graduao em Histria da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do ttulo de Licenciado em Histria. .

    Tubaro, 03 de julho de 2012.

    ______________________________________________________ Deisi Scunderlick Eloy de Farias, Prof. Dra.

    Universidade do Sul de Santa Catarina

    ______________________________________________________ Alexandre de Medeiros Motta, Prof. Msc. Universidade do Sul de Santa Catarina

    ______________________________________________________

    Elvis Diene Bardini, Prof. Msc. Universidade do Sul de Santa Catarina

  • Aos meus pais e irms, que tanto me

    incentivaram a apoiaram.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, primeiramente, aos meus pais, Jaime e Marli, e irms, Fabiana

    e Karini, e sobrinha, Lvia, que so a minha base e que me ensinaram valores muito

    importantes.

    Tambm quero externar meu agradecimento ao Pedro e a Renata,

    pessoas que amo e me ouviram e ajudaram em todos os momentos de ansiedade e

    insegurana.

    A minha professora, orientadora e coordenadora Deisi Farias, que uma

    pessoa que admiro e me espelho profissionalmente, agradeo pela excelente

    orientao, pela pacincia e oportunidade de trabalhar com voc.

    Aos professores do Curso que nos acompanham por toda a caminhada e

    nos ensinam no apenas com suas sabias palavras, mas tambm com o exemplo de

    profissionais que so.

  • A experincia a mestra das coisas. (Leonardo da Vinci)

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo principal identificar de que forma ocorreram

    os primeiros contatos entre o ndio Xokleng e o imigrante italiano em Urussanga e de

    que maneira esses conflitos gerados por diferenas culturais, levaram a muitas

    vtimas e consequente extino do grupo indgena na regio. Os italianos imigraram

    para o Brasil no sculo XIX, impulsionados por promessas de uma vida melhor,

    feitas pelo governo do Brasil e da Itlia, j que em seu pas de origem enfrentavam

    uma srie de problemas polticos, econmicos e sociais. O grupo indgena que

    habitava o territrio que compreende a antiga colnia e atual municpio de

    Urussanga o Xokleng, que eram chamados de botocudos, bugres e at selvagens,

    entraram em confronto com os imigrantes italianos, acabando sendo extintos por

    estarem em nmero menor e no poder competir com a arma de fogo do imigrante

    italiano. Passados muitas dcadas, esse contato ainda est presente na memria da

    populao de Urussanga, fato esse identificado nas entrevistas realizadas com os

    moradores antigos, os quais contribuem contando lembranas de seus

    descendentes da vinda para o Brasil e do contato com o ndio.

    Palavras-chave: ndio Xokleng. Imigrante. Conflito. Memria.

  • ABSTRACT

    The present work has as main objective, identify how occurred the first contacts

    between the Xokleng Indian and the Italian immigrant in Urussanga, and how these

    conflicts caused by cultural differences, led to many victims and the consequent

    extinction of the indigenous group at this area. The Italians immigrated to Brazil in the

    XIX century, influenced by promises of a better life, made by the governments of

    Brazil and Italy, cause in their home country they were facing a number of political,

    economic and social problems. The indigenous group who lived in the territory that

    comprises the old colony and now the present city of Urussanga is the Xokleng, they

    were called Botocudos, Bugres and even Savages, these indians clashed with Italian

    immigrants, and eventually being extinct cause they were outnumbered and not able

    to compete with the fire guns of the Italian immigrant. After many decades, such

    contact still present in the memory of the Urussanga population, this fact was

    identified in interviews with old residents which ones contribute telling the memories

    of their descendants that came to Brazil and made contact with the Indian.

    Keywords: Indian Xokleng. Immigrant. Conflict. Memory.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 01 Cartaz de propagandas martimas italianas, incentivando a imigrao

    ................................................................................... Erro! Indicador no definido.7

    Figura 02 Mapa do ncleo de Urussanga .............................................................. 19

    Figura 03 Colonos voltam da floresta com trs pequenos ndios ........................... 34

    Figura 04 Ado Bettiol ............................................................................................ 41

    Figura 05 Joo Trento ............................................................................................ 41

    Figura 06 Zelinda Pelegrin ..................................................................................... 41

    Figura 07 Emblema do centenrio de Urussanga .................................................. 44

    Figura 08 Representao do ndio caando ........................................................... 47

    Figura 09 Pequeno ndio - Acary - aprisionado na floresta dois anos depois de

    conviver com os imigrantes ....................................................................................... 49

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................. 10

    2 OS IMIGRANTES ITALIANOS E OS XOKLENG: UM COMEO DE

    ABORDAGEM ....................................................................................................................... 14

    2.1 A VINDA DOS IMIGRANTES ITALIANOS PARA O BRASIL ................................. 14

    2.2 OS XOKLENG: NDIOS QUE HABITARAM O TERRITRIO DE URUSSANGA .. 21

    3 OS PRIMEIROS CONTATOS E CONFLITOS ENTRE IMIGRANTES ITALIANOS

    E NDIOS XOKLENG EM URUSSANGA .......................................................................... 25

    3.1 OS CONTATOS E CONFLITOS .................................................................................... 25

    3.2 FATORES DOS CONFLITOS ENTRE O IMIGRANTE ITALIANO E XOKLENG EM

    URUSSANGA .......................................................................................................................... 36

    4 ORALIDADE E MENTALIDADE: A VISO DO COLONIZADOR SOBRE O

    CONTATO COM O NDIO XOKLENG ............................................................................... 40

    4.1 DISCUSSO E ANLISE DAS ENTREVISTAS ......................................................... 42

    5 CONCLUSO ................................................................................................................... 54

    REFERNCIAS ..................................................................................................................... 57

    APNDICES ........................................................................................................................... 59

    APNDICE A TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ............. 60

    APNCICE B ROTEIRO DA ENTREVISTA ................................................................. 61

  • 10

    1 INTRODUO

    O presente trabalho monogrfico tem como objeto explicar como ocorreu

    o contato entre os italianos e os ndios Xokleng na cidade de Urussanga, SC. Para

    isso, pesquisou-se o processo migratrio de italianos para o Brasil, mais

    especificamente para a cidade de Urussanga, localizada no Sul do Estado de Santa

    Catarina.

    Para a realizao deste estudo, analisamos o contexto social, poltico e

    econmico da Itlia e do Brasil do sculo XIX. A partir do ano de 1870, o Brasil

    comeou a receber os primeiros imigrantes italianos, impulsionados por problemas

    socioeconmicos que estavam ocorrendo no Continente Europeu e atingiu uma

    grande massa da populao italiana.

    No mesmo momento, a escravido no Brasil passava a ser vista como um

    mau negcio, j que com o surgimento das indstrias precisava-se de mo de obra e

    consumidores para movimentar a economia. Nesse perodo, o Brasil precisava

    alterar seu sistema produtivo, j que fora o ltimo pas da Amrica a acabar com o

    regime de escravido. Nesse momento, o governo brasileiro precisando se encaixar

    nos novos padres, e ao mesmo tempo sendo pressionado pela Inglaterra (pas

    precursor na implantao de Indstrias) e por uma srie de movimentos contra a

    escravido, acabou decretando a abolio deste regime.

    Mas o governo brasileiro, no via o trabalhador negro e ex-escravo como

    um candidato ao trabalho assalariado, j que as ideias racistas de superioridade do

    homem branco que se espalhavam por todo o mundo gerando o fortalecimento do

    nacionalismo e uma consequente necessidade de construo de uma identidade

    nacional baseada nos padres europeus, que o Brasil ainda no possua.

    Mas de que forma o Brasil iria se identificar com os padres europeus se

    grande parte da populao que estava vivendo aqui era negra? A resposta

    encontrada para este problema foi facilitar a entrada de imigrantes para o Brasil, que

    ocorreu atravs do agenciamento de imigrantes, os quais passaram a encontrar

    nesse pas a esperana de terras e de uma vida nova e digna, que no estavam

    tendo em seu pas de origem.

    Os imigrantes ento ocuparam e fundaram na regio sul, em 1877, a

    colnia de Azambuja, atual cidade de Pedras Grandes, que chegou a ser

  • 11

    considerada a principal colnia italiana da regio, recebendo em 28 de abril do

    mesmo ano, aproximadamente 90 famlias de origem italiana.

    Cerca de um ano depois, em 1878, comeou a colonizao de

    Urussanga, que inicialmente era bastante dependente da colnia vizinha de

    Azambuja, que possua um centro comercial de significativa importncia para o

    abastecimento de Urussanga e regio. Porm, logo Urussanga tornou-se uma das

    principais colnias italianas da regio.

    O colonizador italiano, quando chegou a Urussanga, iniciou um processo

    de desmatamento, plantao, colheita e construo, dando os primeiros passos para

    iniciar uma nova vida, sem, no entanto, considerar que ali viviam vrios grupos

    indgenas Cedo ou tarde o contato aconteceria e inicialmente havia uma curiosidade

    natural de ambas as partes. No entanto, logo os conflitos se iniciariam ocasionados

    pelos estranhamentos entre os dois grupos. Muitas so as histrias que justificavam

    as causas desses conflitos, atribuindo a culpa ora ao ndio, ora ao imigrante. O que

    de fato sabemos que essa guerra deflagrada gerou uma convivncia difcil entre

    esses dois povos de culturas to distintas.

    Assim, percebemos a necessidade de esclarecer a viso preconceituosa

    de evoluo de Edward B. Tylor de selvagem, brbaro e civilizado, onde o ndio

    encontra-se no estgio de selvagem, e o europeu do sculo XIX no estgio de

    civilizado. Diante dessa teoria, o ndio torna-se um no civilizado, incapaz de viver

    em sociedade e por esse motivo deve ser dominado, ensinado, para que possa

    evoluir dentro desse processo.

    No entanto, para entendermos os conflitos, optou-se por investigar

    atravs dos documentos e bibliografias especializadas a mentalidade dos dois

    referidos grupos em relao ao territrio ocupado, ou seja, o indgena obtinha a terra

    como local de moradia e como fonte de alimentao atravs da caa de animais

    nativos e da coleta de frutos; j o imigrante italiano, que tinha uma concepo da

    terra como propriedade privada, inicia a agricultura nas terras para produzir

    alimentos para a prpria subsistncia e tambm para o comrcio.

    Alm do estudo bibliogrfico, tambm utilizamos a Histria Oral como

    forma de entender os conflitos entre imigrantes e ndios. Foram realizadas

    entrevistas com moradores, descendentes de italianos que residem em Urussanga.

    Segundo Delgado (2010, p. 22), as histrias de vida so extremamente

    importantes para entendermos, os ambientes, mentalidade e costumes de

  • 12

    determinada poca. E por meio das entrevistas buscamos compreender de que

    formas as ideologias, costumes e mentalidades impulsionaram tantos conflitos.

    Assim, esse estudo importante para esclarecer os pr-conceitos

    existentes ainda nos dias atuais em relao aos ndios, e de que forma os conflitos

    ocorridos com os imigrantes italianos contriburam para a extino dos grupos de

    indgenas que habitavam a antiga colnia e atual cidade de Urussanga.

    Temos como objetivo geral Investigar como foi o contato entre os grupos

    Xokleng e o imigrante italiano, avaliando as circunstncias que levaram o grupo

    indgena extino na regio de Urussanga, contribuindo para aumentar ainda mais

    a imagem do indgena como um ser brbaro e maldoso.

    E objetivos especficos: Analisar os fatores scio-culturais que levaram os

    italianos a imigrarem para o Brasil, mais precisamente para o sul de Santa Catarina;

    Identificar qual grupo indgena ocupava o territrio compreendido pelo municpio de

    Urussanga e quais eram suas principais caractersticas sociais, culturais, polticas e

    econmicas; Identificar quando e como ocorreram os primeiros contatos entre o

    grupo indgena e os imigrantes italianos; Realizar entrevistas com moradores mais

    antigos do municpio de Urussanga que se recordam de acontecimentos referentes

    aos contatos entre os indgenas e os imigrantes e caracterizar os fatores que

    levaram a extino dos grupos indgenas que habitaram Urussanga no perodo do

    contato, cunhando o ndio como um ser brbaro e maldoso.

    Elegemos, ento, como questo central a investigao sobre os

    primeiros contatos estabelecidos entre os imigrantes italianos e os grupos

    indgenas, habitantes do municpio de Urussanga, localizado no Sul de Santa

    Catarina.

    O presente trabalho ficou dividido em seis captulos:

    O primeiro capitulo uma introduo ao assunto pesquisado. O capitulo 2

    trata da vinda dos imigrantes italianos para o Brasil, nele discute-se o contexto

    social, poltico e econmico da Itlia e do Brasil, para que possamos entender o que

    impulsionou a vinda de imigrantes.

    O terceiro captulo aborda a questo dos Xokleng e o territrio por eles

    ocupados, ali dissertado sobre as caractersticas gerais do grupo indgena.

    No quarto capitulo enfatiza-se os primeiros contatos e os conflitos entre os

    imigrantes italianos e ndios Xokleng, onde so expostas as histrias dos primeiros

    desentendimentos e vtimas.

  • 13

    No quinto captulo fazemos uma anlise dos fatores que levaram aos

    conflitos entre os dois grupos, fazendo uma comparao das vises de terra,

    trabalho, estado de ambos, a fim de compreender a motivao dos conflitos.

    No sexto e ltimo captulo, discorremos sobre a importncia e

    metodologia da histria oral para o trabalho realizando, trabalhando ainda a anlise

    e discusso das entrevistas realizadas.

  • 14

    2 OS IMIGRANTES ITALIANOS E OS XOKLENG: UM COMEO DE

    ABORDAGEM

    2.1 A VINDA DOS IMIGRANTES ITALIANOS PARA O BRASIL

    A palavra imigrao tem como definio o estabelecimento de indivduos

    em um pas estranho. Logo, entende-se que sair de seu pas de origem e ir para

    outro totalmente diferente em aspectos culturais, climticos, econmicos e polticos

    seria um grande obstculo a ser enfrentado e por esta razo no podemos ver a

    vinda de imigrantes para o Brasil como uma viagem decidida do dia para a noite, j

    que uma srie de fatores fizeram com que famlias sem lugar para morar, sem

    emprego e principalmente, sem perspectiva de melhora de vida deixassem seu pas

    e imigrassem para outros na esperana de um futuro prspero. Nesse perodo, de

    forte crise europeia, a Amrica era vista como um local de possibilidades.

    Para entender o que levou tantos europeus, principalmente, italianos,

    alemes e poloneses a migrarem para o Brasil preciso compreender que a Europa

    no sculo XIX lidava com grandes transformaes ocasionadas pela Revoluo

    Industrial, que nasceu na Inglaterra e rapidamente se espalhou por todo o mundo.

    Essa Revoluo Industrial que trouxe novas tecnologias industriais,

    aumentando a produo e, consequentemente, a oferta de emprego, acabou

    encontrando no continente europeu um cenrio diferente, j que o feudalismo ainda

    tinha suas razes na concentrao de terras em mos de grandes proprietrios,

    restando poucas opes para o trabalhador que dependia da agricultura para sua

    subsistncia. Sem ou com poucas terras para praticar a agricultura, o trabalhador

    precisou abandonar a vida rural e ir aos centros urbanos pegar filas em busca de

    vagas nas indstrias, as quais rapidamente ficaram saturadas de operrios, gerando

    filas de desempregados, levando grande parte da populao misria.

    Os pequenos proprietrios tambm sofreram com as mudanas que a

    Revoluo Industrial trouxe, levando-os a falncia por no ter capital para investir em

  • 15

    novos maquinrios, ficando para trs na produo de bens que o mercado consumia

    de forma acelerada. Precisavam produzir da mesma forma ou acabavam

    endividados pelos altos impostos.

    Caruso (2007, p. 129) faz referncia aos imigrantes como comboios de

    desesperados que comeam a partir, aos milhares, com os filhos e as parcas

    moblias s costas, com destino Amrica e liberdade.

    De acordo com Furlan (1997, p. 42), dois milhes de italianos escolheram

    o Brasil como local para restabelecer suas vidas com seus familiares entre 1871 e

    1970. Esse grande nmero de imigrantes teve o apoio do governo brasileiro, que

    tambm passava por uma srie de mudanas, reflexos das transformaes que

    vinham ocorrendo em toda a Europa.

    O Brasil, que foi o ltimo pas do continente americano a proibir o regime

    de escravido, assinado oficialmente somente em 1888, estava correndo contra o

    tempo para perder o conceito de pas atrasado e conquistar uma boa imagem no

    exterior.

    a escravido a causa principal do nosso atraso, nunca houve correntes de imigrao para pas de escravos, nunca houve indstrias em pases de escravos, nunca houve instruo em pases de escravos, nunca houve respeito liberdade alheia em pases de escravos na longa experincia da escravido africana. Esse um trecho de uma das cartas do abolicionista Joaquim Nabuco, quando se achava em Londres, enviada ao senador Saraiva, a 28 de fevereiro de 1882. (CARUSO, 2007, apud FERRARINI, 1977, p. 47).

    A Inglaterra, bero da Revoluo Industrial, pressionava o Brasil para

    regularizar a situao dos escravos, j que precisava que trabalhadores assalariados

    consumissem seus bens manufaturados produzidos em grande escala.

    Porm, o Governo brasileiro no estava interessado em contratar

    escravos como mo de obra assalariada e, segundo Selau (2010, p. 21), este fato

    deve-se a ideias racistas de superioridade do homem branco que se espalhavam por

    todo o mundo gerando o fortalecimento do nacionalismo e uma consequente

    necessidade de construo de uma identidade nacional (que o Brasil ainda no

    possua) baseada nos padres europeus, fazendo surgir o interesse em receber

    imigrantes europeus para colonizar as reas ainda no ocupadas. Logo, podemos

    dizer que o governo brasileiro tinha interesse em um branqueamento da sua

  • 16

    populao e no o contrrio, que ainda segundo o autor, acreditavam estar dando

    um passo rumo ao progresso.

    Selau (2010, p. 21), ainda, diz que de acordo com as ideias racistas, nem

    o negro nem o indgena poderia ser espelho para a sociedade brasileira, pois o

    negro era considerado sem iniciativa para o trabalho assalariado e o ndio um ser

    indolente e sem disposio. Porm, acreditavam que ao trazer o imigrante e dar a

    ele um pedao de terra para cultivar alimentos, inspiraria os demais a trabalharem

    da mesma forma.

    O Governo Brasileiro passa a por em prtica, ento, um projeto para

    receber os milhares de imigrantes que escolheriam o Brasil como destino, conforme

    consta no Contrato Caetano Pinto de 1877:

    Em virtude desse contrato, esse conhecido arrolador estava autorizado a prometer, nos seus folhetos de propaganda, que assim que desembarcassem no Brasil, os imigrantes teriam, alm da passagem gratuita do porto de desembarque sede da residncia escolhida, terra, sementes, alimentos por mais de seis meses e poderiam tornar-se proprietrios assim que tivessem dado provas de estabelecimento fixo. (CARUSO, 2007, apud ALVIM, 1986, p. 43).

    Caruso (2007, p. 135) informa que: antes da vinda dos europeus, a partir

    de 1850, Santa Catarina era habitada por aproximadamente 70 mil pessoas, entre

    elas 15 mil eram escravos.

    Na primeira metade do sculo XIX, Santa Catarina foi includa dentro das

    reas destinadas a colonizao, porm era preciso disponibilizar grande quantidade

    de terra, que seria dividida em pequenas propriedades onde as famlias de

    imigrantes italianos se estabeleceriam.

    O Governo ento iniciou um processo de sondagens de terras

    pertencentes a ele, as quais seriam colocadas a disposio dos imigrantes, as

    chamadas terras devolutas. Outras terras que foram concedidas aos imigrantes

    foram os chamados vazios demogrficos, que se trata de terras disputadas por

    fazerem parte de fronteiras e estarem sendo reclamadas por outros pases.

    Santa Catarina possua esses vazios demogrficos, mais um motivo que

    provocou a entrada de imigrantes neste Estado.

    Ento, a partir de 1876, que se inicia a campanha para trazer imigrantes

    ao Brasil, que, segundo Baldessar (2007, p. 28), era feita atravs de panfletos,

  • 17

    conferncias e anncios de jornais, levando ao colono a esperana de ser dono de

    um pedao de terra, coisa que muitos no tinham nem em seu pas de origem.

    Figura 01: Cartaz de propaganda das companhias martimas italianas, incentivando emigrao. Fonte: Caruso (2007, p. 265)

    Porm, ainda de acordo com Baldessar (2007, p. 28), as propagandas

    nem sempre eram honestas, exagerando pelo ouro e pedrarias que por toda a parte

    se recolhia em abundncia, sem esforo de trabalho e sem muito suor. At rvores

    aurferas havia e prolas preciosas nas frutas, como nas ostras orientais. Os

    imigrantes esperavam sim que aqui no Brasil teriam uma vida melhor e muito

    provavelmente foram motivados por tais anncios de grandes riquezas, acreditando

    que aqui tudo seria mais fcil de ser conquistado.

    Mas, para que o governo garantisse a execuo de suas promessas e o

    cumprimento da lei por parte dos imigrantes, foi criado o Decreto n 3784/19.01.1867

    de Regulamentao para as colnias do Estado. Nele eram garantidos os deveres e

    os direitos dos imigrantes quanto a fundao de colnias, distribuio de terras,

    condies de propriedade, administrao das colnias e recepo e estabelecimento

    dos mesmos.

  • 18

    Segundo Caruso (2007, p.136), os primeiros imigrantes europeus que

    habitaram Santa Catarina no sculo XIX foram os alemes. Esse grupo se instalou

    aqui em 1829 a uma pequena distncia da cidade de So Jos, prxima da capital

    que naquela poca se chamava Desterro.

    Ainda de acordo com o autor (2007), outros imigrantes foram assentados

    em So Pedro de Alcntara, sendo que o objetivo do governo imperial era

    estabelecer uma ligao entre o litoral e os campos de Lages, que at ento tinham

    sido pouco explorados.

    Estima-se que nove mil italianos tenham vindo para Santa Catarina.

    Desses, grande parte ficou estabelecida na regio Sul do Estado, chegando aqui

    atravs de Laguna e do Rio Tubaro e instalando-se em abril de 1877 em Azambuja,

    que foi a primeira colnia da regio sul e seria na poca segundo Selau (2010, p. 73)

    a sede das colnias.

    Azambuja era uma colnia com um vasto territrio com o objetivo de ter

    capacidade de receber um grande nmero de novos imigrantes que ainda estariam

    por vir. Por ser a sede das colnias, tudo deveria funcionar conforme estabelecido

    na lei, para que o Brasil no perdesse a credibilidade quanto a suas promessas e

    continuasse a ser o destino dos imigrantes.

    Um ano mais tarde, fundariam a colnia e atual cidade de Urussanga, a

    qual, segundo Caruso (2007, p. 138), se tornaria o principal plo de expanso da

    regio, gerando outras cidades como Cricima, Iara, Nova Veneza, Orleans, Gro

    Par, Turvo, entre outras.

    Selau (2010, p. 86) identifica a colnia de Urussanga como uma espcie

    de ligao entre o Vale do Rio Tubaro e o Rio Ararangu, com o objetivo de

    produzir alimentos para abastecer os centros baseados na atividade agrcola

    exportadora e as cidades que no produziam a quantidade de alimentos suficiente

    para seu sustento.

  • 19

    Figura 02: Mapa do ncleo de Urussanga. Fonte: SELAU (2010, p. 88)

    A chegada at o local onde hoje se situa a cidade de Urussanga foi difcil,

    j que segundo Mazurana (1989, p. 24) o caminho foi feito a p, carregando sua

    bagagem nas costas, visto que no havia estrada para carro de boi e ao chegarem

    foram alojados em barraces cobertos com palha e fechado com achas de ripas.

    Porm, ao chegarem colnia de Urussanga, os colonos no teriam

    ficado to satisfeitos com o que viram, uma vez que eles sentiam-se como

    aprofundados num abismo sem sada, j que naquele momento no havia nada na

    cidade alm de cu e matas virgens, que teriam que ser desmatadas para a

    construo do povoado que eles mesmos iniciariam (BALDESSAR, 2007, p.47).

    Logo, tudo se tornava um problema. As terras que receberam eram

    morros com muita declividade, alm de possurem muitas rochas dificultando a

    prtica da agricultura. Outro ponto que gerou descontentamento foi a presena de

    ndios, animais e insetos. Baldessar (2007, p. 61) completa que os imigrantes

    sentiam-se jogados sorte, nesses abismos desconhecidos e nunca imaginados,

    cheios de perigos e incgnitas. Restavam-lhes ento, cortar alguns troncos e

    improvisar abrigos enquanto no tinham um lugar digno para chamar de lar, sendo

    que eles no podiam sequer pensar em reclamar de suas situaes, j que h

    registros de que eles seriam ameaados a serem mandados de volta aos seus

    pases de origem se causassem tumulto. Isso, para eles seria uma pssima ideia.

  • 20

    Marzano (1985, p. 59) conta que seis meses aps a chegada dos

    imigrantes, cessaram-se qualquer tipo de auxlio por parte da Companhia de

    Imigrao, era cada famlia por si.

    As famlias ento, aos poucos construam seus barracos e derrubaram

    uma rea florestada para iniciar o cultivo de diversos alimentos como milho, arroz,

    feijo e abbora, porm, como qualquer plantao, apenas depois de alguns meses

    eles realizaram a primeira colheita. E enquanto isso? Como eles viveriam?

    Marzano (1985, p. 59) afirma que os que tinham algum dinheiro que

    haviam trazido da Itlia, conseguiam se manter comprando alimentos bsicos para

    sustentar a famlia. Os que no possuam dinheiro vendiam alguns de seus bens

    como relgios, lenis, roupa branca, entre outros para garantir o sustento,

    enquanto a terra no lhes gerava frutos.

    O territrio que foi disponibilizado aos imigrantes era ocupado pelo grupo

    indgena Xokleng, tambm conhecidos como botocudos, devido a um adorno labial,

    o tembet. A presena desse grupo em diversas partes do territrio catarinense foi

    desprezada pelas autoridades brasileiras ao longo do sculo XIX.

    fato que os imigrantes s tiveram conhecimento da existncia de

    indgenas na regio aps a sua chegada, j que essa fora omitida por parte dos

    governantes. Os ndios passaram ento a dividir o mesmo espao com os

    imigrantes, um espao grande, no entanto um no conseguiria ignorar a presena do

    outro, no demorando muito para que iniciassem os contatos e posterior conflito

    entre ambos.

    H relatos de que inicialmente os colonos s ouviam falar da presena

    dos bugres ou selvagens como lhes chamavam pejorativamente, sendo alertados a

    usarem armas ao entrar nas matas fechadas, vindo a se tornar um mito a presena

    indgena, j que alguns acreditavam e outros riam incrdulos.

    No entanto, apenas alguns anos aps a instalao efetiva dos colonos no

    territrio catarinense que se estabeleceram os primeiros contatos. Relatos dizem

    que a presena dos Xokleng foi percebida atravs de pequenos furtos nas

    plantaes de milho dos colonos.

    Aps estes fatos, os imigrantes italianos e os indgenas iriam estabelecer

    outros contatos, ora amistosos, ora violentos, levando-lhes a muitas vtimas de

    ambas as partes como veremos a seguir.

  • 21

    2.2 OS XOKLENG: NDIOS QUE HABITARAM O TERRITRIO DE URUSSANGA

    O Xokleng foi o grupo indgena que habitou o territrio que compreende o

    municpio de Urussanga e grande parte do territrio catarinense. Esse grupo

    recebeu dos imigrantes vrias denominaes diferentes. Em algumas bibliografias

    estudadas encontramos os Xokleng sendo chamados de selvagens, um termo

    pejorativo que significa no civilizado e que foi largamente utilizado pela Teoria do

    Evolucionismo Cultural para justificar a dominao de uns povos sobre os outros.

    Outro termo que encontramos o bugre que segundo Farias (2005, p. 92)

    proveniente de um grito de espanto (ou alerta) dado pelos ndios quando

    avistavam os brancos. Botocudo outro termo que identifica os Xokleng, se

    referindo ao adorno labial (tembet) usado pelos ndios desse grupo. Porm, o grupo

  • 22

    no teria um termo de auto-designao, j que, segundo Santos (1987, p. 31), a

    preocupao de nominar o grupo dos civilizados e no dos ndios.

    O Xokleng um grupo indgena pertencente ao tronco lingustico Macro-

    J e conforme Brancher (2004, p. 75) ocupavam a regio da Mata Atlntica, entre o

    litoral e o planalto, desde o Norte do Rio Grande do Sul at o Sul do Paran,

    ocupando ainda os pinheirais das bordas do Planalto Catarinense.

    J, segundo Farias (2005 p. 97), os dados arqueolgicos obtidos at

    agora, infelizmente, no elucidaram a extenso da ocupao territorial dos Xokleng.

    Sabe-se que eles estavam circulando numa rea ampla e que em determinados

    perodos alguns grupos assentavam-se em espaos diferenciados.

    Os Xokleng eram grupos nmades e viviam da caa e da coleta de frutas

    e, de acordo com Farias (2005, p. 106), [...] fariam o trajeto migratrio entre

    encosta, planalto e litoral e teriam a caa como principal fonte de subsistncia.

    Sobre seus padres de sepultamento, Farias (2005, p. 98) esclarece que

    as fontes arqueolgicas ainda esto sendo testadas, mas sabe-se que a cremao

    fazia parte do ritual de sepultamento de seus mortos.

    A respeito do padro de assentamento, Farias (2005, p. 99) escreve que

    a base das construes em assentamentos Xokleng era representada por espaos

    domsticos unitrios que formavam acampamentos residenciais - locais escolhidos

    pelas mulheres, que ali descansavam os pertences do grupo e acendiam a fogueira

    para se aquecer. Ainda para Farias (2005, p. 99), os acampamentos possuam

    estruturas diferentes umas das outras, fato que pode estar relacionado com a

    funo, pois tanto o tipo de cabana, quanto a unio delas podem ser indicadores de

    atividades especficas (ritual, moradia, observao e caa).

    Kempf numa descrio mais detalhada, possibilita-nos perceber um modelo de habitao e de organizao espacial em uma aldeia Xokleng. Ele afirma que os ndios constroem suas choas com galhos, ramos e folhagens; estas no passam de simples abrigos em forma de meia-gua assentada sobre o solo na parte inferior. Esses abrigos medem aproximadamente 20 m de comprimento. (KEMPF, 1947, p.27 apud FARIAS, 2005, p. 100)

    Permaneciam no acampamento por alguns meses, de acordo com a

    quantidade de caa disponvel no local, porm ao migrarem para outros territrios,

    eram as mulheres as encarregadas de carregar todos os utenslios do grupo.

  • 23

    Os acampamentos tambm eram feitos de forma a proteg-los dos

    inimigos: Ele relata que os Xokleng guarneciam as imediaes de seus

    acampamentos, escavando profundos fossos com at dois metros, crivados de

    madeiras com suas extremidades aguadas. (PAULA 1924, apud FARIAS, 2005 p.

    xx)

    Sobre as fogueiras tambm podemos dizer que eram feitas de formas

    diferentes de acordo com a necessidade, as fogueiras para preparar caas, por

    exemplo, eram feitas em forma de forno subterrneo, as fogueiras externas

    permaneciam sempre acesas e as internas eram feitas no centro das cabanas e

    acesas nos intervalos a cada duas filas de dormentes, conforme Boiteux (1912, p.

    72).

    De acordo com Farias (2005, p. 106), h referncias de que os Xokleng

    produziam material ltico e outros tipos de artefatos, em madeira e cermica, esses

    ltimos em pequena quantidade. Alm disso, produziam balaios de todos os

    tamanhos e formas.

    Informaes coletadas com vrios indgenas durante os anos 1973 e 1974 por Simonian (1975:14) demonstraram a presena do material ltico entre os Xokleng. Alm das pontas de projteis, confeccionadas em slex, quartzo e pedra ferro, foram descritos artefatos como mo-de-pilo, seixos para batedores, seixos para alisar cermica, machados, facas, pedras oficinas (pedra achatada encontrada prximo ao leito de rios e crregos, que eram carregadas para servirem de polidores), cortadores de cabelo (pedra achatada, sobre a qual colocavam o cabelo, e outra, lascada e bem amolada, com a qual iam picando os fios, aos poucos), moendas, etc. (FARIAS, 2005, p. 107)

    H tambm referncia sobre o uso do ferro, aps o contato estabelecido

    com o colonizador europeu.

    Sobre como se vestiam, Simonian (1975, p.33 apud FARIAS, 2005, p.

    113) afirma que peas para vestir e adornos eram poucos entre os Xokleng, no

    entanto, os homens utilizavam logo abaixo na cintura, um feixe de cordas de imbira

    ou urtiga brava como tanga, a qual era confeccionada pela mulher que a enfeitava.

    O feixe era preso com tiras de cip nos lados e a glande era presa junto a tanga,

    com uma cordinha.

    Os homens tambm usavam uma pulseira no tornozelo feita com imbira,

    ticum ou urtiga e enfeitada com penas que ficavam expostas do lado de fora da

  • 24

    perna, e nos lbios inseriam o tembet, adorno que chegou a identificar o grupo

    (botocudo).

    J entre as mulheres, Simonian (1975:34 apud FARIAS, 2005, p. 113)

    discorre que usavam uma manta de urtiga brava, enrolada da cintura para baixo.

    Para confeccionar a manta, a mulher tinha a ajuda do homem que preparava a

    matria-prima, porm era ela que tecia em um pequeno tear. Tal tarefa demorava

    at um ms.

    O autor tambm informa que usavam tambm colares feitos com

    sementes de limoeiro do mato e dentes de animais, em geral de macacos, que eram

    presos com fibra de ticum. A tinta utilizada por grupos Xokleng exogmicos para

    festas era produzida pelas mulheres e armazenada em vasos de barro ou de cano

    de taquara e durava de um ano para outro. (SIMOMNIAN, 1975, p.48 apud FARIAS,

    2005, p. 114).

  • 25

    3 OS PRIMEIROS CONTATOS E CONFLITOS ENTRE IMIGRANTES

    ITALIANOS E NDIOS XOKLENG EM URUSSANGA

    3.1 OS CONTATOS E CONFLITOS

    A presena dos ndios no territrio catarinense no algo novo, todavia,

    registros de contatos desse grupo com os chamados civilizados comearam a

    ocorrer com maior frequncia aps o incio da colonizao.

    Segundo Santos (1987, p. 61) nesse perodo que as referncias

    presena dos Xokleng comeam a se tornar constantes.

    O grupo indgena que habitava a rea que compreende o municpio de

    Urussanga era o Xokleng, que, segundo Selau (2010, p. 133), percorria a regio em

    um movimento caracterizado como nomadismo estacional, deslocando-se procura

    de caa e frutos para a coleta.

    No entanto, para Farias (2005), o grupo possua estabilidade territorial,

    percorrendo um ambiente que era amplamente aproveitado em todos os seus

    recursos.

    Se o territrio catarinense era habitado por indgenas antes da chegada

    dos imigrantes italianos de se entender que aqueles se sentissem invadidos ao

    perceberem em seu territrio, estranhos que chegaram em grande quantidade,

    derrubando a floresta e ocupando seu espao.

    De acordo com Selau (2010, p. 151) nos locais onde seriam estabelecidos

    novas colnias, era comum que fossem derrubadas grandes pores de floresta

    para afastar o perigo desconhecido de animais e tambm dos indgenas que ali

    habitavam.

    Relatos sobre os contatos entre os Xokleng e os imigrantes italianos em

    Urussanga so citados por Baldessar (2007, p.175):

  • 26

    De incio os ndios receberam bem os imigrantes e os trataram bem e a recproca tambm verdadeira. Houve uma convivncia pacfica na qual os ndios merecem nota mais alta pelo comportamento fraterno, pois eram os legtimos donos das terras que estavam sendo invadidas.

    Santos (1987, p. 62) discorre sobre os primeiros contatos que teriam

    ocorrido em Blumenau, falando sobre um senhor que ao avistar alguns ndios

    procurou, ento, falar com os bugres, por mmica, largando a espingarda no cho e

    mostrando-lhes um ramo verde como sinal de paz. Porm, tal gesto de nada teria

    adiantado, j que segundo o autor o cacique que se achava dentro da plantao e

    dali dirigia para assalto, ordenou-lhes e, aos outros bugres que se achavam

    escondidos, que atacassem a casa e os moradores.

    Ainda sobre a possvel atitude pacfica do ndio, Baldessar (2007, p. 175)

    afirma que tal comportamento fez com que o imigrante se sentisse encorajado de

    ampliar cada vez mais o seu territrio, levando os Xokleng a serem empurrados para

    o Costo da Serra, o que em algum momento lhes levaria a reagir a tal situao, j

    que escolher outro local para habitar era de seu costume, mas no era to simples

    assim, sendo que diversos grupos indgenas possuam reas reservadas que

    tambm no podiam ser invadidas.

    De acordo com Selau (2010, p. 150) comum a ideia de que no incio

    havia uma relao pacfica e que aps algum tempo, em funo das artes dos

    ndios, os colonos foram obrigados a se defender.

    O prprio grupo indgena jamais aceitaria ter seu territrio invadido por

    outra tribo, por que ento aceitaria pacificamente a invaso feita pelos imigrantes?

    H tambm, relatos duvidosos sobre o desconhecimento da presena dos

    Xokleng por parte dos imigrantes, os quais teriam vivido em terras Urussanguenses

    por aproximadamente quatro anos sem estabelecer qualquer contato com os ndios.

    Os colonos viveram cerca de quatro anos tranquilos em plena floresta virgem, sem o mnimo temor dos selvagens. E aps esse perodo de calmaria, os colonos comearam a observar pequenos furtos que estavam ocorrendo nas plantaes de milhos. De incios esses furtos seriam atribudos a animais selvagens que viveriam na floresta. (MARZANO, 1985, p. 74)

    Porm, Santos (1987, p. 63) afirma que os imigrantes localizados em

    Blumenau sabiam da existncia dos ndios nas florestas, e por esse motivo tinham

  • 27

    sempre uma arma de fogo ao seu alcance. E, em Urussanga, no poderia ser muito

    diferente.

    Em relao ao conhecimento do colono sobre a presena do indgena

    Marzano (1985, p. 74) afirma que numa nica noite teria desaparecido fileiras de

    milho e ainda teriam sido avistadas pegadas grandes no cho, induzindolhes a

    acreditar na presena dos selvagens, os quais seriam vistos mais tarde se

    aproximando das plantaes armados de longas flechas.

    Esse grupo que vivia da caa e da coleta ao ver uma grande quantidade

    de alimento, logo tomou para si da mesma forma que coletava outros alimentos da

    natureza, uma vez o alimento estando em seu territrio, considerava-o seu, no

    possuindo conhecimento de propriedade privada (criado pelos europeus).

    Ao estabelecer os primeiros contatos Baldessar (2007, p. 176) cita que

    de incio o ndio se aproximava curioso e se sentia recompensado por algum brinde

    que o imigrante lhe oferecia E ainda de acordo com o autor, sua famlia, possua

    terras e residncia da localidade de Rio Deserto, situada no interior da atual cidade

    Urussanga, local onde os botocudos, como lhes chamavam, tinham uma maloca

    (casa sagrada), afirmando que mantinham boas relaes com eles.

    A convivncia entre duas culturas to distintas poderia parecer

    impossvel, mas segundo Marzano aconteceria por um bom tempo entre os Xokleng

    e imigrantes italianos Meu pai tocava bem a gaitinha de boca e os ndios crianas

    ou jovens como ele, se divertiam ao ouvi-lo e queriam ouvi-lo sempre mais

    (BALDESSAR, 2007, p 177).

    Os ndios tambm trabalhavam para os colonos, sendo que em troca de

    sua ajuda nas plantaes recebiam vinho e outros gneros alimentcios.

    Outros relatos tambm do conta da vontade do indgena em estabelecer

    relao com os colonos:

    Mas um dia quando um grupo de homens estava derrubando mato e alguns deles estavam postados de sentinelas e Bernardo Mazzucco Bianco tinha acabado de derrubar um baguau, viu a pouca distncia um homem completamente nu que se aproximava calmamente armado de arco e flecha, fazendo gestos como para pedir que lhe desse o machado. Se Bernardo lhe tivesse dado o machado e o convidasse a experimentar a derrubar uma rvore, talvez se estabelecesse uma amizade, um entendimento entre os dois, pois o bugre no tinha inteno de fazer-lhe mal, porque se tivesse teria feito, pois estava armado com arco e flecha. Mas, Bernardo, assustado, caminhando por cima do tronco de baguau e o bugre atrs querendo tirar-lhe o machado, comeou a gritar dando alarme aos que

  • 28

    estavam de sentinela que acorreram fazendo fogo contra os selvagens com suas espingardas pica-pau. (MAZURANA, 1989, p. 37)

    Segundo Baldessar (2007, p. 177), essas relaes pacficas teriam

    perdurado at um ndio atingir um colono com uma flecha, foi o dia em que Giovanni

    Baldessar teria sido incumbido de preparar madeiras, se deslocando para perto do

    paredo onde os Xokleng viviam, sendo acompanhado por seu pai e irmos.

    Todavia, ao se deslocar para prximo do paredo para cortar madeiras com um

    machado, levantou-se ao ouvir seu nome ser chamado, momento em que foi

    atingido por uma flecha. Giovanni gritou e recebeu ajuda dos familiares, contando-

    lhes que antes de ser atingido no avistou ningum, apenas ouviu barulhos na mata.

    A flecha que lhe atingiu causou uma hemorragia interna, levando o imigrante a morte

    no dia seguinte ao incidente.

    Essa teria sido a primeira vtima dos conflitos entre colonos e ndios em

    Urussanga, o que levaria ao fim da pacificao de ambos os lados.

    Essa histria tem outra verso. H relatos de que um dia antes do ataque

    a Giovanni Baldessar, ele teria jogado uma pedra grossa para dentro da mata, vindo

    a atingir uma ndia, chamada Guaraci, jovem esposa de Caapora, a qual teria

    falecido. No dia seguinte, depois de consultar o conselho tribal, Caapora revolveu

    vingar a morte de sua esposa. (BALDESSAR, 2007, p. 186)

    Os motivos para justificar os conflitos entre os ndios e imigrantes eram

    variados, uma vez que o contato de dois grupos de costumes e interesses to

    distintos no poderia ser to amistoso como falado por alguns autores.

    Segundo Marzano (1985, p. 75), aps o ocorrido, os ndios teriam

    abandonado seu acampamento no Rio Deserto e aparecido na localidade de Rio

    Salto alguns dias depois, onde atacaram com flechas a casa de Caetano De Brida,

    que estava trabalhando e havia deixado sua esposa e trs filhos em casa. A mulher

    ento, bastante temerosa deixou a criana mais nova dormindo num ba da casa,

    pegou os outros filhos e saiu correndo atrs de ajuda enquanto os ndios saqueavam

    sua casa. Um vizinho pegou ento sua velha pistola e foi at a casa da senhora,

    espantando rapidamente os ndios com sua arma. Porm, ao chegar na casa

    encontrou o ba aberto e a criana pisoteada e morta.

    Segundo o mesmo autor (1985), outras mortes tambm ocorreram no

    mesmo perodo, a de um imigrante conhecido como Sprcigo, que cortava rvores na

    mata e foi atingido por uma flecha; outro caso de um imigrante chamado de Pilon

  • 29

    que estava serrando uma tora com o irmo e foi atingido por uma flecha e, ainda um

    ataque feito ao senhor Antnio Zanelatto que tambm foi atingido por uma flecha

    enquanto roava.

    Qual seria a viso do Xokleng sobre o imigrante? muito provvel que

    ele lhe visse como uma grande ameaa a seu territrio, da mesma maneira que

    conflitava com os Kaingang, certamente o mesmo aconteceria com os europeus.

    No entanto, Baldessar (2007, p. 191) afirma que o ndio tinha admirao

    pelo imigrante:

    Nos primeiros tempos, o Bugre Carij (Botocudo), olhava com espanto e admirao para o Imigrante. O seu modo de trabalhar de derrubar o mato, de amanhar a terra, de semear os cereais, suas ferramentas seu jeito de alimentar-se e a forma de viver em sociedade. Tudo lhe era to estranho, como se viessem indivduos de outros planetas e se instalassem na terra com seus usos e costumes. Entretanto, chegou o dia, em que ele percebeu que o colono era um intruso que perturbava seu vagar incessante pelas florestas e suas caadas de ariscos animais e de aves de plumagem colorida. Comearam as hostilidades.

    Porm, de acordo com Santos (1987, p. 64), os conflitos com os

    imigrantes eram resultado de disputas de territrio, que os Xokleng estavam

    acostumados a transitar:

    Nesse quadro, no se pode pensar que os Xokleng resolveram decretar guerra ao branco-invasor. No se pode pensar, tambm, que os indgenas se aproximaram do branco e de sua propriedade sempre com o intuito de observar, de ver o que fazia o novo habitante, pacificamente. Na realidade os Xokleng eram homens e, como tais, sujeitos a emoes e atitudes imediatistas, desconectadas de qualquer objetivo futuro. No havia assim guerra ao homem branco e sim revide a ataques ou simplesmente agresso, motivadas, s vezes, pelo encontro de ndios e brancos em territrios que ambos tinham interesse. E para um povo que vivia j em estado de guerra, a presena de brancos na floresta, com suas armas barulhentas, no poderia significar paz.

    Mazurana (1989, p. 37) diz que os bugres, de qualquer maneira, no

    foram os primeiros a atirar. Eles se aproximaram, armados sim, mas com gestos de

    paz e, simplesmente responderam com flechadas ao chumbo das garruchas e dos

    trabucos dos colonos.

    Conforme os anos iam passando, os ataques aumentavam, e os ndios

    ficavam de campanha, esperando os homens sarem de casa para entrar e roubar o

    que vissem pela frente atacando mulheres e crianas que ficavam sozinhas.

  • 30

    Quando o marido se afastava, e ficava a mulher com as crianas, ento caam-lhe em cima ferindo, matando e carregando tudo quanto lhe vinha s mos: panelas, ps, gadanhos, machadinhas, foices, enxadas, armas, vestidos, roupa branca e pratos. Nunca souberam utilizar-se das espingardas. Quebravam-nas para fazer pontas de flechas acutssimas. Servem-se de foices e machados para extrair das plantas o mel selvagem, que muito apreciam, por isto os conservam. (MARZANO, 1985, p. 77)

    Os anos de 1883 e 1885 teriam sido os piores para os imigrantes italianos

    que residiam em Urussanga, pois as mortes no cessavam e o medo tomava conta

    de todos. Alguns pensavam em migrar para outras terras, mas como fazer se a nica

    terra que lhe pertencia era a que agora habitavam?

    Os colonos italianos ento decidiram pedir ajuda ao governo: ele que os

    trouxe como Imigrantes, o governo que d a soluo conveniente (BALDESSAR,

    2007, p. 199)

    O governo, ento, mandou um grupo de soldados que, segundo relatos,

    teve sua presena ignorada, j que os ataques continuaram e, de certa forma, isso

    teria incomodado ainda mais os ndios. Os soldados permaneceram por trs anos e,

    logo aps foram embora.

    Pelo fato de a presena dos soldados no ter intimidado os ataques,

    pensou-se ento, em tentar a pacificao de contatos, atravs da religio catlica.

    Segundo Baldessar (2007, p. 200), foi para Urussanga um padre

    franciscano chamado Fr. Luiz de Semetile, o qual tinha certa experincia com o

    assunto, trazendo consigo cinco ndios com idade de trs a cinco anos, para ajudar

    a manter o contato. O padre, tambm, no obteve sucesso ao tentar manter contato

    com os Xokleng.

    Os colonos italianos estavam cada vez mais temerosos com os ataques e

    tambm impacientes com o comportamento dos ndios Xokleng, que, para eles,

    eram selvagens, que no sabiam viver civilizadamente. Com isso, foi decretado que

    os:

    [...]colonos moradores no Distrito de Urussanga, ex-colnia Azambuja, que se obrigam a entrar no mato junto a outros colonos, por fim de afugentar os indgenas, os quais vo infestando esta colnia. Aquele que no puder pagar uma quantia e quem no quiser ser multado. (BALDESSAR,2007, p. 79)

  • 31

    Aps o recrutamento, confirmaram presena 260 homens, tendo sua

    incurso na mata concedida pelo governo que ainda lhes enviou um homem que

    entendia de floresta e mais alguns soldados que os ajudariam.

    Chegando o dia do ataque, os colonos italianos estavam muito bem

    armados e prontos para enfrentar os bugres. Porm, segundo relatos, algo estranho

    teria acontecido, os ndios fugiram de seus acampamentos, por prever que algo

    aconteceria, ou por terem sido avisados do ataque.

    Os italianos moradores de Urussanga no desistiriam e logo encontrariam

    os indgenas, e, segundo Marzano (1985, p. 80) um grupo composto de oito homens

    encontrou um grande nmero de selvagens a uns vinte quilmetros ao Norte de

    Urussanga, destroou-os e trouxe consigo feixes de flechas, arcos e tambm duas

    crianas.

    Os imigrantes italianos sentiam-se vingados pelas mortes de seus

    parentes e amigos, porm no entendiam que a vida que estavam tirando daquelas

    pessoas, tinham o mesmo valor das vidas dos seus familiares. Essa conscincia de

    humanidade no existia, uma vez que o indgena era considerado, ainda no sculo

    XIX, um selvagem sem alma.

    Em 1891, inicia-se a colonizao do municpio de Nova Veneza, porm os

    incidentes que vinham acontecendo entre colonos italianos e indgenas em

    Urussanga estavam assustando os recm-chegados nas novas colnias vizinhas,

    Jordo, Rio Fiorita e Nova Treviso.

    Miguel Napoli, membro da Companhia Metropolitana que distribua lotes

    aos imigrantes italianos, que chegavam, viu que os ndios iriam atrapalhar seus

    planos: Miguel Napoli percebia que era necessrio tomar medidas urgentes para

    que a sua Companhia Metropolitana no fosse prejudicada na distribuio de terras

    (BALDESSAR, 2007, p. 207). Diante disso, entrou em contato com os responsveis

    pela colnia de imigrantes italianos de Urussanga para fazer novos grupos de

    homens bem armados e organizados para atacar os ndios Xokleng.

    Miguel Napoli, fazia todas as promessas para que os grupos assumissem a arriscada misso, inclusive, o pagamento de uma taxa por ndio morto. A oferta por ndio morto, no foi de dois mil ris, mas foi de cinquenta mil ris por cabea. Cinquenta mil ris era uma quantia respeitvel, uma vaquinha de leite ainda no chegava a esse preo, a menos que fosse de qualidade superior. (BALDESSAR, 2007, p. 208)

  • 32

    O pagamento ento s seria feito por Napoli na presena das orelhas que

    comprovaria a morte do bugre. A empreitada tambm teve o apoio das autoridades

    da colnia de Urussanga, que ajudou distribuindo munio e at armas.

    Para iniciar o ataque, esperou-se alguns dias at que os ndios

    aparecessem para roubar mais mantimentos dos colonos, o nmero de ndios e a

    quantidade de roubos vinha aumentando cada vez mais.

    Partiram no amanhecer de um dia dos primeiros meses do comeo do ano de 1894. No era difcil seguir a trilha aberta por aquele grande nmero de ndios com grandes cargas nas costas. (BALDESSAR, 2007, p. 210)

    Os colonos teriam seguido os Xokleng pelas margens do crrego do Rio

    Deserto, foram at as proximidades de Belvedere, chegaram a ultrapassar as

    montanhas de Treviso, no entendendo porque os ndios viriam de to longe para

    lhes roubar alimentos.

    Talvez por temerem ataque dos colonos italianos, os Xokleng teriam

    modificado seus acampamentos para locais mais afastados da colnia, uma vez que

    caminhar grandes distncias para os indgenas no era nenhum problema.

    A caminhada dos italianos era cautelosa para que no espantassem ou

    dessem sinais de sua chegada.

    Mais alguns dias de caminhada, e os colonos chegaram ao local onde os

    ndios Xokleng estava acampados, localizando duas malocas.

    Havia duas casas, uma fechada com paredes de palha, com trs portas e outra somente com cobertura. Esta a casa que normalmente, os ndios usavam para o seu trabalho artesanal durante o dia. A noite todos se transferem para a maloca que fechada, e que tem a fogueira central, os tabiques das diversas famlias com suas redes de dormir. (BALDESSAR, 2007, p. 210)

    Nesse dia, os ndios estariam em festa, aps terem pegado das

    plantaes dos colonos de Urussanga uma grande quantidade de alimentos. O

    grupo que atacaria os ndios dividiu-se em trs, entrariam pelas trs portas da

    maloca onde os ndios estavam. Esperaram que a noite chegasse para entrarem no

    acampamento.

    A ordem era ir p ante p at alcanar a porta, aguardar um pouco e ao ouvir o primeiro tiro, todos os trs da porta daria a sua descarga, depois retirariam-se para dar lugar ao segundo disparo em srie e, sem perda de

  • 33

    tempo, o terceiro enquanto cada qual agiria rpido para carregar sua arma novamente. (BALDESSAR, 2007, p. 212)

    Rapidamente todos os ndios foram mortos, sem terem tempo de reagir ao

    ataque, j que tudo fora muito bem planejado. A maioria dos ndios daquele

    acampamento estava morta ou gravemente ferida. A cena era aterradora, pois o

    sangue tomou conta da maloca. Ainda, de acordo com Baldessar, (2007, p. 213),

    quando o dia clareou foi possvel ver a cena macabra que tomou conta do

    acampamento indgena: muito sangue e cadveres espalhados por todos os lados.

    Aps o ataque, os colonos teriam percebido quatro crianas vivas, que

    provavelmente estariam nas redes e ficaram protegidas dos tiros. Estas foram

    levadas por eles.

    O prximo passo seria cortar as orelhas para levar como prova para

    Napoli que lhes pagaria uma boa quantia por unidade. As orelhas teriam sido

    guardadas em uma manga de palet e colocadas no sal para desacelerar o

    apodrecimento.

    A manga teria recebido um total de 62 orelhas decepadas, juntamente

    com outros materiais trazidos como feixe de flechas, arcos e lanas, objetos de uso

    indgena, dois balaios muito fortes onde carregavam seus alimentos e as quatro

    crianas, sendo uma de colo, uma menina de 4 anos, um menino de

    aproximadamente 7 anos e uma adolescente de uns 15 anos.

  • 34

    Figura 03: Colonos voltam da floresta com trs pequenos ndios. Fonte: MARZANO (1904, p. 30)

    A ndia de 15 anos deveria ser muito bela, pois logo despertou a ateno

    de um dos colonos que atacou sua tribo, mostrando sua inteno em casar com ela

    assim que fosse civilizada. Esse fato causou confuso entre os companheiros e

    principalmente, entre o irmo que no admitia de maneira alguma que se casasse

    com uma selvagem. A ndia ento foi solta mais tarde pelo irmo para impedir o

    casamento, tendo sido morta posteriormente, por outros caadores que ainda

    estavam na mata.

    O dinheiro prometido pelas orelhas dos ndios no foi pago, ficando

    apenas a promessa que nunca se cumpriu. No entanto, o grupo teria sido

    homenageado por onde passavam e todos ficavam boquiabertos com o fato de

    nenhum deles sair ferido da incurso. (BALDESSAR, 2007, p. 218)

    Aps este fato, no foi mais visto a presena de ndios na regio que

    compreendia o municpio de Urussanga e segundo Balsessar (2007, p. 220),

    cessaram-se aqueles roubos e os ataques dos ndios que saiam das matas

    assustando e roubando as casas dos colonos.

  • 35

    Teria sido esse fato o motivo para a extino dos ndios Xokleng em

    Urussanga? No podemos dizer com certeza, mas fato que pelo nmero de

    orelhas coletadas, foi grande o nmero de ndios mortos.

    H relatos, tambm, de que alguns ndios teriam sado a noite para caar

    com seus ces do mato, ao voltarem para o acampamento e verem o local coberto

    de corpos feridos e sangue por todos os lados, provavelmente fugiriam e depois de

    tal ataque violento, dificilmente se atreveriam a retornar para Urussanga.

    (BALDESSAR, 2007, p. 223).

  • 36

    3.2 FATORES DOS CONFLITOS ENTRE O IMIGRANTE ITALIANO E XOKLENG

    EM URUSSANGA

    A fim de compreendermos de que forma o contato entre o grupo indgena

    Xokleng e o imigrante italiano, levou a tantos conflitos, preciso analisar a

    sociedade, economia e poltica que se diferencia nesses grupos e que gerou todos

    os conflitos que j citamos.

    A primeira grande diferena entre os dois grupos a existncia de Estado

    e segundo Clastres (1978, p. 132) as sociedades primitivas so sociedades sem

    estado. Nesse pensamento, os ndios so uma sociedade incompleta, pois falta a

    eles um poder moderador, algum que lhes policie.

    Pelo fato das sociedades indgenas estarem formuladas nos padres

    muito diferente dos europeus elas so enxergadas como uma ausncia de cultura,

    que ainda segundo Clastres (1978, p. 133) as sociedades arcaicas so

    determinadas de maneira negativa, sob o critrio da falta: as sociedades sem

    Estado, sociedades sem escrita, sociedades sem histria.

    No entanto, os ndios Xokleng possuem uma hierarquizao de seu

    grupo, o cacicado, que regula os setores econmico, poltico e social de seu grupo,

    e que segundo Cunha (1992, p. 424):

    A chefia era uma posio de relativa importncia e no tinha carter hereditrio. A escolha recaa sobre aqueles que apresentassem caracterstica de bravura no seu comportamento. Essa bravura era explicada pela dotao de poderes sobrenaturais. Suas responsabilidades eram solucionar querelas internas, decidir o momento e o local adequado para as migraes, alm de orientar a guerra.

    O ndio de um modo geral foi por muito tempo visto como um selvagem

    desalmado, e assim sendo, no teria direito a vida. Conforme Santos (1987, p. 97) o

    que se ouvia nas colnias a respeito dos Xokleng, era que o ndio no era

    exatamente humano. No entanto, Farias (2005, p. 92), avalia que os Xokleng no

    eram de interesse dos bandeirantes da regio, que consideravam mais vivel

    submeter o ndio Guarani, o qual no era to difcil de dominar quanto o Xokleng,

    que vai ter um contato efetivo apenas com a chegada dos imigrantes europeus, na

    metade do sculo XIX.

  • 37

    Para que o ndio Xokleng se tornasse to civilizado quanto o imigrante

    italiano desejava, era preciso que ele se deixasse civilizar, no entanto segundo

    Selau (2010, p. 142) se pensava na civilizao como algo irresistvel e, na tica

    europeia (...) no haveria povo que no se dispusesse a isso. Porm, os Xokleng

    resistiram a essa dominao.

    Para Selau (2010, p. 133) a imagem construda sobre os Xokleng os

    condenaria a morte:

    A reputao que se constri sobre os botocudos da ferocidade, do indomvel, o que no aceita curvar-se a civilizao. Esta reputao serviu de base para a elaborao de um pensamento que condenava os botocudos morte, uma vez que no sendo possvel o contato amistoso com a civilizao, sua morte passa a ser vista como um fator necessrio apropriao e integrao de vastas reas ocupadas por estes grupos aos interesses econmicos do Imprio, razo pela qual se declara uma verdadeira guerra aos botocudos ao longo do sculo XIX.

    Antes da chegada dos imigrantes, os maiores e talvez nico inimigo dos

    Xokleng eram os Kaingang, que rivalizavam entre si, disputando territrios. Porm,

    com a chegada dos imigrantes, os ndios tiveram que competir com os imigrantes e

    sua propriedade privada.

    Os Xokleng tambm no tinham conhecimento acerca de propriedade

    privada, da mesma forma que desconhece o territrio como algo de sua posse, ou

    de valor comercial como defendido pelo imigrante europeu.

    Essa uma diferena que pode nos explicar muito dos conflitos que

    aconteceram na antiga colnia de Urussanga, pois o imigrante com seu olhar

    europeu via a terra como sua propriedade e no aceitava que ela fosse invadida e o

    ndio, por sua vez, no poderia compreender um conceito que no existira em sua

    cultura. Diamond (2007, p. 91) contribui afirmando que boa parte da histria

    humana constituda de conflitos desiguais entre os que tm e os que no tm (...).

    O ndio, por tirar da floresta o seu sustento, possui um vasto

    conhecimento sobre ela e, segundo Posey (1986, p. 19), os povos indgenas, mais

    do que quaisquer outros, possuem informaes acuradas sobre a diversidade

    biolgica e as potencialidades dela resultantes para a captao de recursos

    naturais. E , atravs desse conhecimento, que o ndio tira seu alimento atravs da

    caa de animais ou coleta de frutos da natureza.

  • 38

    Outra grande diferena entre o imigrante italiano e o Xokleng era o

    trabalho, no qual os ndios Xokleng, ao dominarem a agricultura, produziam para a

    sua subsistncia, passando a ser vistos como preguiosos pelos europeus, uma vez

    que s dedicavam pouco tempo quilo a que damos o nome de trabalho

    (CLASTRES, 1978, p.135).

    No entanto, o pensamento europeu do acmulo de excedentes deve-se

    as inmeras experincias que o homem teve ao longo dos sculos e que lhes fez

    acumular para se prevenir de colheitas pouco produtivas, pestes e outros infortnios,

    mas principalmente, para a movimentao do comrcio.

    De acordo com a viso europeia de que a sociedade indgena seria vista

    como atrasada pelo fato de produzir apenas para a subsistncia, Clastres (1987, p.

    133) avalia de outra maneira:

    Se entendermos por tcnica o conjunto dos processos de que se munem os homens, no para assegurarem o domnio absoluto da natureza (...) mas para garantir um domnio do meio natural adaptado e relativo s suas necessidades, ento no mais podemos falar em inferioridade tcnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual quela de que se orgulha a sociedade industrial e tcnica.

    Se os europeus acreditavam ser mais evoludos que os ndios, logo

    usariam isso para justificar seu comportamento com eles, ou seja, se os Xokleng no

    aceitavam serem ensinados a viver no modo de vida europeu, estes deveriam ser

    exterminados.

    A postura dos europeus em relao aos mesmos passou a ser de indiferena, pois a ideia de seleo natural justificava o comportamento predominante entre os brancos em relao aos indgenas, ou seja, o extermnio dos mesmos passava a ser visto de forma natural e como uma etapa evolutiva da civilizao, j que poucos eram os que reconheciam nos indgenas uma sociedade digna de respeito e, no caso dos botocudos, menos ainda era o nmero de pessoas que acreditavam que os mesmos poderiam conviver com o modelo de civilizao europeia. (SELAU, 2010, p. 141)

    No se sabe ao certo at que ponto as diferenas culturais e ideolgicas

    impulsionaram tantos conflitos, no entanto, sabe-se que fizeram muitas vtimas, em

    nmero muito maior de ndios que habitavam o municpio de Urussanga.

    muito clara a mnima presena de descendentes de ndios no local, no

    podemos precisar o nmero, uma vez que necessitaramos de uma pesquisa, mas

  • 39

    sempre houve no municpio de Urussanga, uma predominncia de descendentes de

    italianos e pouca ou nenhuma de indgenas, caracterizando que mesmo que

    historicamente esses grupos tivessem ocupado aquele territrio, em perodos

    passados, atualmente, as suas heranas tnicas parecem ter se mesclado e at

    sumido entre os descendentes europeus.

    Na busca de entender a motivao dos conflitos entre italianos e ndios,

    precisamos investigar a mentalidade, costumes, e viso de ambos. Para isso,

    realizamos entrevistas com moradores mais antigos de Urussanga, que atravs de

    um roteiro de perguntas, expuseram as histrias que ouviam seus parentes

    imigrantes italianos contarem a respeito do contato e conflitos com os ndios.

  • 40

    4 ORALIDADE E MENTALIDADE: A VISO DO COLONIZADOR SOBRE O

    CONTATO COM O NDIO XOKLENG

    As entrevistas realizadas com moradores de Urussanga tiveram como

    objetivo identificar as causas da vinda dos imigrantes italianos para o municpio e

    entender como se deram os primeiros contatos entre os imigrantes e os ndios

    Xokleng, procurando analisar de que forma esses conflitos geraram tantas vtimas e

    consequente extino do grupo indgena no municpio.

    Procuramos ento, utilizar os dados obtidos com as entrevistas e com a

    pesquisa bibliogrfica, para analisar, comparar e encontrar uma relao entre elas.

    Para que obtivssemos as informaes referente a memria dos

    entrevistados, nos utilizamos da histria oral, que segundo Delgado (2010, p. 15):

    A histria oral um procedimento metodolgico que busca, pela construo de fontes e documentos, registrar, atravs de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, verses e interpretaes sobre a Histria em suas mltiplas dimenses: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais.

    A metodologia da Histria Oral nos possibilita, ento, a construo de

    uma nova fonte de informaes, uma vez que os dados obtidos com a memria dos

    entrevistados sero registrados em um documento, que poder ser utilizado

    posteriormente para outros estudos e por outros estudiosos. a memria do

    entrevistado que nos possibilita fazer a leitura dos acontecimentos em outro

    contexto, diferente do que temos na histria oficial.

    Para Alberti (2004, p. 77), uma das principais bases da histria oral a

    narrativa da memria do entrevistado:

    O trabalho com a histria oral consiste na gravao de entrevistas de carter histrico e documental com atores e/ou testemunhas de acontecimentos, conjunturas, movimentos, instituies e modos de vida da histria contempornea. Um de seus principais alicerces a narrativa.

    Neves (2000, p. 109) tambm cita a memria como um fator importante

    para a histria oral:

  • 41

    Quando se emprega a metodologia da Histria Oral, um projeto previamente elaborado por historiadores orienta o processo de rememorar e relembrar sujeitos histricos, ou mesmo de testemunhas da histria vivida por uma coletividade. (NEVES,2000, p. 109)

    Sendo assim, para entendermos a histria oral precisamos entender a

    memria e como ela funciona.

    Alberti (2004, p. 35) se utiliza de Lutz Niethammer para distinguir dois

    nveis de memria, a ativa e a latente, a primeira aquela que utilizamos no dia-a-

    dia e precisamos ter a nossa disposio e a segunda aquela que est oculta e que

    necessitamos de associaes para recuperar. E nessa ltima memria que a

    histria oral trabalha, utilizando-se da conversa e questionamentos o entrevistado vai

    relembrando e dividindo as informaes que guarda em sua memria.

    Conforme Delgado (2010, p. 15) no , portanto, um compartilhamento

    da histria vivida, mas, sim, o registro de depoimentos sobre essa histria vivida.

    Escolhemos como entrevistados, trs pessoas idosas, descendentes de

    italianos e com grande conhecimento sobre o assunto. So eles: Ado Betiol, com

    88 anos; Zelinda Pelegrin, com 81 anos; e Joo Trento, com 99 anos. Ambos

    assinaram o termo de consentimento, aceitando que o contedo de suas entrevistas

    fossem divulgados nessa monografia.

    Figura 04: Ado Bettiol Fonte: Lente Vanguarda, 2009.

    Figura 05: Joo Trento Fonte: Lente Vanguarda, 2009.

    Figura 06: Zelinda Pelegrin Fonte: Elaborada pela autora.

  • 42

    No obtivemos informaes sobre a existncia de descendentes de

    grupos indgenas, neste caso, os Xokleng, que vivessem no municpio atualmente, o

    que acabou nos impedindo de realizar entrevistas.

    O fato que no termos localizado descendentes indgenas para entrevistar

    pode ser analisado diante de dois fatores: um seria a falta do auto reconhecimento

    como descendente indgena, que pode ser explicado pelo esteretipo negativo que o

    ndio possui perante a sociedade. Outro fator pode ser a possvel extino dos

    grupos indgenas no municpio, no havendo realmente, descendentes que possam

    contribuir com suas memrias.

    Para realizao das entrevistas estabelecemos um roteiro, para que

    atravs dele alcanssemos nossos objetivos, focando na vinda dos imigrantes, os

    primeiros contatos e os conflitos entre os grupos estudados.

    Segundo Alberti (2004, p. 77), ao contar suas experincias, o

    entrevistado transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e

    organizando os acontecimentos de acordo com determinado sentido.

    O roteiro da entrevista:

    a) Quais motivos levaram sua famlia a vir para o Brasil? Quais benefcios eram oferecidos

    pelo governo da poca?

    b) Voc conheceu algum ndio ou ouviu falar sobre eles? Quais caractersticas desse grupo

    mais lhe chama a ateno?

    c) Que lembranas voc tem sobre como foram os primeiros contatos do ndio com

    imigrante italiano?

    d) Quais lembranas voc guarda sobre os conflitos e mortes entre de italianos e ndios no

    perodo de colonizao?

    4.1 DISCUSSO E ANLISE DAS ENTREVISTAS

    Ao iniciarmos o primeiro questionamento, que trata- dos motivos da vinda

    dos imigrantes italianos para o Brasil no sculo XIX e sobre quais benefcios foram

    oferecidos pelo governo da poca. O objetivo deste questionamento como j

    falamos, cruzar os dados que obtivemos atravs dos estudos bibliogrficos, que do

  • 43

    conta da crise que a Itlia e toda a Europa viveu neste momento e de que forma o

    governo influenciou na vinda desses imigrantes para o Brasil e quais teriam sido os

    subsdios oferecidos por ele.

    O entrevistado Ado Betiol, relata sobre os membros de sua famlia que

    vieram para o Brasil e a situao na Itlia naquele perodo:

    Vieram meu av, minha av e quatro filhos. Vieram porque tinha uma crise muito grande, eles queriam vir embora. Tinha gente que vinha com 80, 90 anos que abandonaram tudo e vieram. Tinham prometido que aqui era melhor, porque na Itlia era s pedra e no tinha mais nada, para fazer um canteiro de cebolinha tinha que juntar terra na estrada e levar em cima das pedras fazer uma cama para plantar, porque no tinha mais pasto.

    Ao fazermos o mesmo questionamento Zelinda Pelegrin, ela disse ser

    neta de imigrantes italianos, Carlos Martignago e Rosa Bonn, os quais chegaram no

    Brasil uma semana antes do natal. Fui criada com os meus avs e eles contavam

    muita coisa.

    Sobre a situao na Itlia, a entrevistada relatou: As dificuldades era que

    na Itlia havia uma grande quantidade de populao, ento os governos, que era rei

    naquela poca, resolveram fazer imigraes e partiram. No tinha onde mais eles se

    ocuparem (trabalho).

    Sobre promessas feitas pelo governo, Zelinda disse:

    O governo da Itlia prometeu que aqui no Brasil eles (imigrantes) iam ganhar terra e casas e iam continuar trabalhando para progredir, mas chegaram aqui no meio do mato, no meio da floresta.

    Sobre essa ideia de progresso, exposta pela entrevistada, podemos

    observar o emblema do primeiro centenrio da colonizao de Urussanga, que tem

    como lema paisagem, gente e progresso.

  • 44

    Figura 07: Emblema do Centenrio de Urussanga: 1878 1978. Fonte: Baldessar (2007, p. 303)

    O terceiro entrevistado, Joo Trento, disse que foi seu pai quem veio para

    o Brasil com apenas 16 anos para trabalhar, e tambm confirma a crise na Itlia:

    Pedro Trento, meu pai veio para o Brasil com 16 anos, vieram porque no dava

    mais para viver l, no tinha servio no tinha nada, da foram vir pra c. Meu pai

    tinha o dinheiro s para o navio, e aqui teve que vir a p.

    A promessa de melhora de vida fica bastante clara na seguinte colocao

    tinham prometido que aqui era melhor e sobre promessa e ajuda, Ado disse que

    era escassa, pois havia muito imigrante em Urussanga: Eles ajudavam no armazm

    que tinha milho, charque, ento cada vez por ms, ou cada quinze dias no lembro

    bem, eles ganhavam tipo uma cesta bsica.

    A entrevistada Zelinda Pelegrin tambm fala sobre a ajuda do governo:

    O governo ajudou com a passagem, e quando chegaram no Rio de Janeiro ficaram apavorados, encontraram uma mesa enorme e comprida cheio de queijo ralado e eles no conheciam, era farinha de mandioca, a minha av cansou de contar. Farinha de mandioca para eles comerem, eles no

  • 45

    conheciam, na Itlia no tinha, ento achavam que era queijo ralado, olharam de longe e acharam aquela fartura de queijo ralado e no era.

    J Joo Trento, ao ser questionado sobre a ajuda do governo, afirmou

    que O governo no ajudou com nenhum vintm. Este um dado bastante

    interessante, pois diferente de todo o estudo bibliogrfico realizado nos captulos

    anteriores e tambm das entrevistas.

    De acordo com a declarao de Joo Trento, ento algumas famlias

    teriam vindo ao Brasil sem qualquer benefcio do governo. O entrevistado conta que

    seu pai veio para o Brasil ao ser motivado por um tio que j vivia aqui h algum

    tempo: Tinha um tio de meu pai que estava h 5 anos aqui no Rio Carvo Baixo

    (Urussanga), ele escrevia carta que aqui tinha de tudo, mas no tinha comrcio, no

    tinha nada, s em Pedras Grandes.As promessas alimentaram tanto a esperana

    dos imigrantes italianos que Ado disse que a viagem durou 36 dias viajando no

    mar, e que os imigrantes cantavam a msica [...] Merica, Merica, Merica, cossa

    sarlo sta Merica? Merica, Merica, Merica, un bel mazzolino di fior [...]" Traduo:

    Amrica, Amrica, Amrica, Que coisa ser esta Amrica? Amrica, Amrica,

    Amrica. um lindo ramalhete de flores. [Folclore Italiano] Merica-Merica (1875)

    Eles acharam aqui um jardim, mato, no era o que tinham prometido,

    tinha mata virgem, animais ferozes, cobras venenosas, ndios, pensando bem era de

    arrepiar os cabelos, conta Ado.

    O entrevistado, disse ainda, que ao chegar aqui, os imigrantes ficaram

    desenganados, tristes com o que viram:

    A eles diziam: o bem, o mal, tem que ir, quando eles sentavam numa pedra para conversar, e no viam ningum, muitos choravam e diziam queriam voltar, dizendo: dou minha alma para o diabo para ele me levar para la de novo porque aqui no quero ficar aqui s tem mato, bicho, mas outros no, diziam que aqui era bom a terra era boa, tem de tudo aqui.

    Ado diz , que os imigrantes passaram muita dificuldade, e a promessa do

    mao de flores no foi cumprida, na verdade eram apenas muito mato e bugres,

    como eram chamados os ndios.

    Zelinda fala sobre a revolta dos imigrantes que ao chegar no Brasil, foi

    muito grande, pois a esperana de vida melhor ficara somente na promessa:

  • 46

    Os imigrantes ficaram revoltados, eles chegaram, vieram at o Rio de Janeiro, de l vieram de navio at Florianpolis, revoltadssimos. Em Florianpolis eles no encontraram nada para eles e de l vieram at Tubaro de barco, pelo rio, e de Tubaro para c vieram a p trazendo sacolas, algumas ferramentas, e tudo que lhes pertencia. Mas foi um desgosto muito grande porque no encontraram nada do que foi prometido.

    Ao chegar aqui ento, os imigrantes teriam que derrubar a mata para

    construir suas moradias e iniciar a plantao de alimentos para subsistncia e

    comrcio que j existia na regio.

    E o entrevistado Joo Trento conta que o ofcio de seu pai ao chegar em

    Urussanga era bastante necessrio e no faltava trabalho: Quando meu pai veio,

    ele pegou servio de abrir picada, extremas de terra e tudo, em Urussanga, por tudo,

    era s mato e tinha que cortar o mato.

    Sobre a construo das casas ao chegar em Urussanga, Zelinda Pelegrin

    explica como eram feitas:

    Para construir as casas eles cortavam a madeira e levantavam os postes e a parede, um padre franciscano ensinava os imigrantes a cortar as madeiras para fazer a armao da casa e com folhas de palmeiras eles cobriam as casas deles.

    Zelinda, tambm, fala sobre a ajuda que o governo italiano deu para

    iniciar as plantaes: o rei da Itlia mandou um agrnomo italiano chamado de

    Cavalassi para ensinar os agricultores a plantar o fumo junto um espanhol tcnico

    para ajudar no preparo do fumo de corda.

    O segundo questionamento feito aos entrevistados, foi em relao aos

    seus conhecimentos sobre os ndios e o que mais chama ateno em suas

    caractersticas.

    O objetivo deste questionamento identificar a imagem que os imigrantes

    tem sobre o ndio e transmitiu atravs da oralidade seus descendentes.

    Sobre os ndios, o entrevistado Ado Betiol disse:

    Ali em Rancho dos Bugres era a casa deles, oca, toda feita de palha, s tinha uma porta, porque de noite era mais quente. Eles se vestiam com uma tanga na frente, algumas tribos era natural mesmo como Deus mandou e no tinham vergonha, no conheciam comprar, no tinha fbrica, ento eles ficavam nus, viviam da caa e da pesca. Tinha ndio por toda a cidade, cada tribo tinha seu local, no eram todos juntos.

  • 47

    Zelinda Pelegrin foi breve ao falar sobre os ndios Os ndios no usavam

    roupa, tinham uma tanga.

    E Joo Trento tambm faz meno a pouca vestimenta do ndio: O ndio

    usava um pouco de folha de caet para cobrir o corpo e que o pote deles tinha

    cera de abelha para que no passe gua fazendo referncia aos cestos de palha.

    Atravs do contedo das entrevistas, podemos perceber que a imagem

    estereotipada do ndio como um selvagem, que cobre apenas as partes ntimas do

    corpo, aquele que anda nu, como Deus mandou como disse Ado Betiol. Isso se

    deve a diferena cultural, ao espanto do italiano com seu olhar europeu ao ver

    algum nu.

    Em algumas imagens, como na Figura 08 onde vemos uma

    representao do ndio, realmente esta figura exposta pelos entrevistados que

    vemos, porm pouco provvel que o ndio andasse sempre nu, pois Urussanga

    uma cidade famosa por suas baixas temperaturas no inverno.

    Figura 08: Representao do ndio caando Fonte: MARQUES (1977, p. 233)

    O terceiro questionamento feito aos entrevistados foi em relao aos

    primeiros contatos estabelecidos entre imigrantes italianos e ndios Xokleng.

    O objetivo desta pergunta entender de que forma se deram os primeiros

    contatos e de que forma levaram a tantos conflitos.

  • 48

    Sobre o contato estabelecido entre imigrantes italianos e ndio Xokleng, o

    entrevistado Ado Betiol disse:

    Com os ndios nunca tiveram contato porque o ndio vinha e roubava as plantaes, matava os animais. Eles tinham muita raiva dos colonos italianos, porque os verdadeiros proprietrios eram os ndios. Houve muito massacre, muita morte.

    Sobre os primeiros contatos, a entrevistada Zelinda Pelegrin diz que foi

    um momento difcil e que os conflitos, logo de incio foram muitos:

    O momento com os ndios foi muito triste, os italianos achavam que tinham direito de cuidar de todas as terras de tudo que havia aqui e os ndios achavam que eles no tinham direito, porque eles que tinham nascido aqui, eram os que estavam cuidando das matas, e eles se revoltaram contra os imigrantes. Os ndios se revoltaram e usavam as flechas e mataram vrios (...) Os ndios quiseram avanar neles, querendo expuls-los, mas no conseguiram porque eles j tinham a ordem de se estabelecer aqui, e no s aqui, toda a redondeza do municpio, Siderpolis, Treviso, Urussanga e depois Cricima que foi mais tarde.

    Joo Trento fala sobre os primeiros contatos com os ndios em

    Urussanga, dizendo que a tarefa de cortar rvores para povoar as terras era difcil:

    era s dar uma machadada que vinha a flecha e quem que tirava? Porque ela

    igual um anzol, se puxa vem as tripas e naquele tempo no tinha nada de mdico,

    se fosse hoje era outra coisa.

    O entrevistado falou tambm sobre o medo que o ndio tinha da

    espingarda dos imigrantes: quando ele enxergava a espingarda o bugre fugia para

    o mato, tinha medo, porque uma vez ele viu uma espingarda ali, ele pegou a

    espingarda olhou por dentro, mexeu, mexeu e saiu um tiro e o bugre se foi, ele tinha

    medo.

    O entrevistado Ado Betiol, aproveitou para falar sobre a primeira missa

    realizada no Brasil e sobre a curiosidade dos ndios:

    A primeira missa que foi celebrada aqui no Brasil foi Frei Henrique de Coimbra e o outro foi Padre Emanuel de Nbrega, ento os bugres estavam tudo apavorados vendo os padres celebrar a missa ento, eles se penduravam nas rvores para assistir a missa, vieram bastante e era novidade para eles.

    Os entrevistados tambm falaram sobre a catequizao do ndio, que

    acabou no tendo muitos resultados positivos.

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    Ado disse: Eles tentaram catequizar os ndios mas no conseguiram.

    O entrevistado ainda contou em conversa informal, que ouviu falar sobre um padre

    italiano que veio para Urussanga e ao retornar para a Itlia, teria levado um ndio

    com ele, de nome Acary.

    No livro do Pe. Marzano, h uma foto de um ndio com este mesmo nome,

    ele est vestido no estilo europeu e aparenta semblante de estranhamento, porm

    no livro no h nenhuma meno sobre a possvel adoo.

    Figura 09: Pequeno ndio Acary aprisionado na floresta dois anos depois de conviver com os imigrantes. Fonte: MARZANO (1904, p. 43)

    J Zelinda disse que a catequizao funcionava apenas com as crianas:

    Os ndios eram catequizados, os pequenos aceitavam a catequizao, eles

    trouxeram os ndios roubados da floresta e depois adotaram e trouxeram para o

    Centro.

    Sobre os ndios que eram retirados do convvio com as tribos e levados

    para catequizao e adoo, Joo Trento lembra que o comportamento deles era de

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    estranhamento: E meu pai dizia que os ndios pequenos apontavam e cutucavam

    os italianos, ficaram um tempo e depois foram levados para Florianpolis, da no

    sei que fim que deu.

    A ltima pergunta feita aos entrevistados foi em relao as lembranas

    referentes aos conflitos ocorridos entre imigrantes italianos e ndios Xokleng em

    Urussanga.

    O objetivo deste questionamento entender de que forma os conflitos

    levaram a tantas vtimas e consequente extino do grupo indgena na cidade.

    Todos os entrevistados discorrem sobre vrios casos de mortes de

    imigrantes italianos nos conflitos com os ndios, muitos destes casos j foram citados

    nos captulos acima.

    O entrevistado Ado Betiol fala sobre o furto frequente nas plantaes

    feitas pelos imigrantes, um dos motivos dos conflitos: Os ndios gostavam de roubar

    as plantaes, milho, mandioca e eles comiam tudo verde, no cozinhavam, comiam

    cru e com a mandioca faziam uma bebida para as festas.

    Joo Trento tambm conta sobre os alimentos que os ndios levavam das

    plantaes dos imigrantes O ndio comeou a roubar, roubar milho, roubar tudo,

    imagina, numa noite era uma turma e quanta espiga de milho ele levavam? Faziam

    fogo e assavam o milho na roa de noite.

    Sobre as apropriaes praticadas pelos ndios, Joo Trento tambm conta

    que no eram somente de alimentos: os imigrantes estavam fazendo um rancho

    para morar, eles pensaram essa noite no vem ningum aqui, vamos deixar as

    ferramentas, e de manh as ferramentas no estavam mais, os bugres haviam

    roubado.

    O entrevistado Joo Trento tambm cita a lngua como um fator para

    agravar os conflitos: ningum compreende a lngua daquela gente (ndio).

    Ao questionar sobre episdios de conflitos e mortes que os entrevistados

    tinham conhecimento, Ado lembrou-se do caso de uma mulher, imigrante italiana

    que teria sido levada pelos ndios:

    Um dia uma senhora, era da famlia Coral, esposa de Natal Coral e ela tava na roa e levaram a mulher, ela tava sozinha. E ento o marido tinha chego que tinha ido viajar ou caar sei l a mulher no tava e de noite no veio e no dia seguinte tambm no veio e os ndios levaram ela viva para o mato, o cacique ento ficou como marido dela e tratou muito bem, eram muito

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    bem tratada e quando o cacique saia, deixava um guarda para ela no fugir, ela era branca, n? E ento ela escrevia nas pedras com carvo assim vocs vem mais pra frente que vocs me encontram, que eu no estou morta, estou viva e quero voltar para casa e quando teve oportunidade ela fugiu, e quando fugiu estava grvida, e teve um filho de um ndio.

    A entrevistada Zelinda Pelegrin tambm citou o mesmo caso, porm

    atribui o fato a vingana dos ndios:

    Os ndios de vingana dos imigrantes levaram a mulher deste casal, levaram a mulher para a floresta e no soltaram mais e eles fizeram o que bem entenderam e ela ficou grvida e ganhou uma criana que era filha de ndio.

    Joo Trento tambm menciona o caso:

    Os ndios roubaram uma mulher de um senhor que fazia picada por tudo, ela foi buscar um balde de gua e quando se acrocou o bugre abraou e levou. Ela ficou grvida depois do bugre. Ento o marido procurou, procurou e acabou achando o local onde os ndios estavam. Foram achar ela amarrada em Ararangu.

    O entrevistado Ado comen