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QUAL O LUGAR DA DIDÁTICA NO TRABALHO DO PROFESSOR? Maria Socorro Lucena Lima Universidade Estadual do Ceará (UECE) [email protected] Resumo O texto se propõe a debater sobre docência e profissão, com base na fundamentação teórica sobre o trabalho na crise do capital e sobre a possibilidade da práxis docente e, nesse contexto, a Didática como eixo de reflexão. O trabalho próprio da sociedade capitalista, conforme esclareceu Marx (1983), leva o homem à alienação. Nesse contexto, o professor desenvolve sua profissão nas diferentes formas de dominação que perfazem o contexto da atual da crise do capital. Esse processo gradativo (entre outros) vai fazendo, com que o professor abra mão dos instrumentos indispensáveis à sua práxis (PIMENTA, 1994), perdendo a disposição para a luta organizada de sua categoria, a capacidade de ver saídas, e de ter esperança. Complementando o debate o texto cita os estudos de Veiga (2006), Rios (2010), Frigotto (2010) e Franco e Pimenta (2010). Procura ver o trabalho do professor em sua totalidade, considerando as condições de vida, a formação, juntamente com as dimensões individuais e as especificidades da profissão e dos seus profissionais no desenvolvimento das práticas do seu fazer docente e da práxis. Considera tais fenômenos um campo de conhecimentos da Didática, enquanto área da Pedagogia, que se preocupa com os fenômenos do ensinar e do aprender em seus processos de transformação. Palavras- chave: Didática; Profissão; Trabalho Docente

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  • QUAL O LUGAR DA DIDTICA NO TRABALHO DO PROFESSOR?

    Maria Socorro Lucena Lima

    Universidade Estadual do Cear (UECE)

    [email protected]

    Resumo

    O texto se prope a debater sobre docncia e profisso, com base na fundamentao terica sobre o trabalho na crise do capital e sobre a possibilidade da prxis docente e, nesse contexto, a Didtica como eixo de reflexo. O trabalho prprio da sociedade capitalista, conforme esclareceu Marx (1983), leva o homem alienao. Nesse contexto, o professor desenvolve sua profisso nas diferentes formas de dominao que perfazem o contexto da atual da crise do capital. Esse processo gradativo (entre outros) vai fazendo, com que o professor abra mo dos instrumentos indispensveis sua prxis (PIMENTA, 1994), perdendo a disposio para a luta organizada de sua categoria, a capacidade de ver sadas, e de ter esperana. Complementando o debate o texto cita os estudos de Veiga (2006), Rios (2010), Frigotto (2010) e Franco e Pimenta (2010). Procura ver o trabalho do professor em sua totalidade, considerando as condies de vida, a formao, juntamente com as dimenses individuais e as especificidades da profisso e dos seus profissionais no desenvolvimento das prticas do seu fazer docente e da prxis. Considera tais fenmenos um campo de conhecimentos da Didtica, enquanto rea da Pedagogia, que se preocupa com os fenmenos do ensinar e do aprender em seus processos de transformao.

    Palavras- chave: Didtica; Profisso; Trabalho Docente

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    Revista Eletrnica Pesquiseduca - v.3, n.5, jan.- jun. 2011 89

    What is the place of Didactics in the

    teachers work?

    Abstract

    The study proposes to debate about teaching and profession based on the theoretical basis about work during the crisis of capital and about the possibility of teaching praxis, and in this context, didactics as an axis of reflection. Work in a capitalistic society, as clarified by Marx (1983), leads man to alienation. In this context, the teacher develops his/her profession in the different forms of domination that amount to the context of the current crisis of capital. This gradual process (among others) makes the teacher relinquish the instruments that are indispensable for his/her praxis (PIMENTA, 1994), losing his/her disposition for the organized grievances of his/her category, his/her capacity to see the way out, and of having hope. Supplementing the debate, the text mentions the studies of Veiga (2006), Rios (2010), Frigotto (2010) and Franco and Pimenta (2010). It observes the work of the teacher as a whole and considers his/her life, training, along with individual dimensions and the specificities of the profession and its professionals in the development of the practices of teaching and praxis. It considers such phenomena as a field of Didactical knowledge, while Pedagogy is concerned with the phenomena of teaching and learning in its transformation processes.

    Keywords: Didactics; Profession; Teaching.

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    Introduo

    Qual a parte da tua estrada No meu caminho

    Ser um atalho Ou um desvio, um rio raso

    Um passo em falso Um prato fundo pra toda fome

    Que h no mundo?

    (Zeca Baleiro e Alice Ruiz)

    Vamos comear essa reflexo indagando: que olhares nos informam sobre a docncia e a profisso docente, hoje? Como est o ato de ensinar no interior das diferentes escolas? Quais so os determinantes e os principais desafios do trabalho docente? O que sabemos sobre a profisso docente?

    Partimos do pressuposto de que, atualmente, as informaes sobre esta e outras questes nos chegam de tantos e diferentes lugares e fontes que estamos sempre distanciados do fenmeno como um todo. Sabemos popularmente, pelos meios de comunicao e de informao, de retalhos mal costurados da profisso, como os que apontamos abaixo:

    temos recebido, com maior frequncia, mensagens da internet, tentando ressaltar a insanidade de professoras que precocemente atingem a demncia por conta do desgaste do seu trabalho. Muito mais do nas outras profisses, vem se repetindo certo desprezo pela docncia, em forma de humor e deboche.

    Ocupando programas de horrios nobres, so mostrados como personagens de novelas ou em quadros de humor, figuras de professores, ressaltando desvios de conduta. So geralmente personagens bizarras, que no se revelam positivamente, e no demonstram o necessrio equilbrio no trato das situaes apresentadas.

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    Os professores, geralmente, polarizam seus conhecimentos em oposio aos interesses, saberes e preferncias dos alunos.

    A utilizao de estatsticas e de recursos da avaliao institucional para explicar, por meio de resultados, e da linguagem do mercado, a face de uma profisso, que seria a nica responsvel por todas as crises da sociedade atual. A linguagem da avaliao institucional.

    A literatura pedaggica nos mostra a ideia da necessidade de um professor intelectual crtico, pesquisador que faz a mediao entre o conhecimento sistematizado e o aluno.

    Para ns, profissionais do magistrio, concentrados no mundo do trabalho, acumulados de tarefas e funes inerentes s exigncias dessa profisso e aos reclames de qualificao exigida, pouco o tempo restante para o acompanhamento das mudanas, diante da rapidez que estas acontecem no mundo. Muitas vezes o aluno tem mais acesso internet e a leituras que o professor, deixando-o sempre devedor, diante da multiplicidade de informaes sobre esta e outras questes que nos chegam de tantos e diferentes lugares e fontes que estamos sempre distanciados do fenmeno como um todo.

    Na esteira da precarizao do trabalho na sociedade atual, os professores da rede pblica esto submetidos a relaes de trabalho em regimes terceirizados e em substituies temporrias que se arrastam pela falta de concursos pblicos para suprir a demanda de vagas. Refletir sobre essa questo lembra uma composio musical intitulada: Quase Nada, de Zeca Baleiro e Alice Ruiz, que inicia perguntando: qual a parte da minha estrada no seu caminho? E repete: de voc... sei quase nada!.

    na tentativa de debater sobre Didtica, docncia e profisso que vamos caminhar. Em primeiro lugar com uma fundamentao terica, quando trazemos nossa compreenso sobre o trabalho na crise do capital e a possibilidade da prxis docente e depois trazendo reflexes sobre o lugar da Didtica no trabalho do professor, enquanto possibilidade de reflexo e de prxis.

    Esperamos trazer elementos para o debate, de forma a nos ajudar a compreender melhor a profisso e o trabalho docente em seus fundamentos e prticas.

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    O trabalho do professor: questes conceituais

    Para discutir o trabalho docente, importante situ-lo no referencial terico que orienta melhor a nossa compreenso sobre esse tema. De acordo com Marx e Engels (1984), a forma como o homem produz seus meios de vida determina sua vida material, seu ser, a produo de si, ou seja:

    [...] tal como os indivduos manifestam sua vida, assim so eles. O que eles so coincide, portanto, com sua produo, tanto com o que produzem como com o modo "como" produzem. O que os indivduos so, portanto, depende das condies materiais de sua produo. (MARX e ENGELS, 1984, p. 8)

    Tal posio nos remete discusso sobre a concepo do trabalho como categoria fundante do homem como ser que pertence a uma espcie, isto , na qualidade de ser social. Aqui, o trabalho entendido em sua discusso mais geral, independente de qualquer formao social. Nesse sentido, concordamos com a viso marxiana, que considera o trabalho como categoria fundante da sociabilidade humana. atravs dele, como atividade transformadora, que o homem se torna um ser social. Assim que o homem supera, radical e irreversivelmente, sua condio de ser natural sem deixar essa condio como base do seu ser.

    Tornando-se um ser social, o homem se desprende de sua condio natural, pela ao consciente, transformadora e criadora. da que vem a natureza emancipadora do trabalho, o que liberta o homem de um determinismo ou de uma dependncia de outro ser. Por meio do trabalho, o homem cria algo que ainda no existe na natureza, ou seja, cria o novo, o futuro, o devir. Dessa forma, o conhecimento uma exigncia inerente prpria necessidade de transformao do real. Ao mesmo tempo, quanto melhor o homem conhece o objeto real (seus atributos, sua forma de vir a ser), maior ser sua capacidade de transform-lo.

    O trabalho tomado nessa perspectiva significa, ento, a contraordem da lgica capitalista, no como produtor de mercadoria, mas como elemento de humanizao, promoo e realizao humana. Sobre essa questo, Jimenez (1998) fala em apreend-lo como pressuposto do devir humano, criador da realidade propriamente humana. Significa defender uma formao coerente com as possibilidades do desenvolvimento humano, contrapondo-se a uma formao dentro

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    dos interesses unidimensionais do capital. Portanto, para compreender como essa produo acontece na atualidade, preciso entend-la situada na contradio do modo de produo capitalista, em que o trabalho humano passa por uma reverso, pois no lugar de constituir fator de emancipao, se transforma em mercadoria. O trabalho prprio da sociedade capitalista conforme esclareceu Marx (1983), leva o homem a uma alienao em quatro dimenses: aliena o produto do seu produtor uma vez que no lhe pertence e sim ao capitalista; aliena a prpria atividade vital do homem; aliena sua vida genrica uma vez que o trabalhador no se sente satisfeito em seu trabalho; e aliena os homens entre si.

    Nesse contexto, o professor, diante das diferentes formas de dominao e opresso que perfazem o contexto da atual sociedade da crise do capital, v o seu emprego ameaado e as conquistas adquiridas no decorrer dos tempos por sua classe, cada vez mais suprimidas. Esse processo gradativo (entre outros) vai fazendo, muitas vezes, com que ele abra mo dos instrumentos indispensveis sua prxis (PIMENTA, 1994), perdendo a disposio para a luta organizada de sua categoria, a capacidade de ver sadas, e de ter esperana.

    O procedimento repressivo na sociedade chamada ps-moderna vem acontecendo tambm pela manipulao sutil da dimenso subjetiva do ser humano, dos seus desejos e aspiraes. Conceitos que significavam bandeiras de luta dos trabalhadores so hoje apropriados pelas foras dominantes, cuja prioridade no o homem, mas sim o capital, e confundem os educadores, que perdem a referncia conceitual de temas como qualidade, competncia, democratizao, entre outros.

    Mesmo na contradio do capitalismo, situa-se a possibilidade de se exercer uma prxis educativa, valendo destacar que, como diz Marx (1984, p. 126), [...] na prxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto , a realidade e o poder, o carter terreno de seu pensamento. O trabalho docente insere-se nesse mbito como forma de levar aos professores a realizar a prxis no desenvolvimento das suas atividades concretas.

    A ao docente tem de carter intencional e pressupe uma finalidade na perspectiva de transformar e emancipar por meio do trabalho. Assume um carter interventivo, no podendo ser afirmada somente como uma modalidade tcnica, mas tambm poltica, portanto, o agir intencional do ponto de vista da reflexo (SEVERINO, 2007). Dessa forma, ao realizar seu trabalho, o professor, alm de contribuir para a formao de novos trabalhadores, realiza uma ao educativa e de construo do conhecimento, adotando como componentes fundamentais a valorao da sensibilidade e da tica. O autor em estudo lembra que a

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    atividade educativa em si mesma, uma forma de trabalho, ela uma forma de preparao para o trabalho, como tambm uma forma de inserir os indivduos das novas geraes no universo das relaes produtivas (SEVERINO, 1994).

    por meio de sua docncia como profisso, que o trabalho do professor possibilita a produo dele prprio, como pessoa e como profissional pertencente a uma organizao, a um coletivo, a uma categoria profissional, a uma classe social e a uma sociedade.

    Ser um atalho, ou um desvio, um rio raso, um passo em falso, um prato fundo pra toda fome que h no mundo?

    Usando a parte da cano de Zeca Baleiro e Alice Ruiz como metfora para as diferentes imagens da docncia, situamos o fato de pensar a escola como atalho ou desvio para justificar toda fome que h no mundo e o professor como responsvel por todo esse contexto no movimento de reformas que se estruturou rapidamente nos pases da Amrica Latina, a partir dos anos de 1990, que implementou uma nova regulao das polticas educacionais, que vem repercutindo diretamente na organizao e na gesto escolares, resultando em novos direcionamentos para o trabalho docente, implicando na mudana da sua natureza e definio.

    Situada em relaes de trabalho, regida por critrios baseados em resultados de avaliaes, a profisso magistrio vive os desafios do enfrentamento de um desempenho para alm da sala de aula, como registra a reflexo feita por Oliveira (2004, p. 1127):

    O trabalho docente no definido mais apenas como atividade em sala de aula, ele agora compreende a gesto da escola no que se refere dedicao dos professores ao planejamento, elaborao de projetos, discusso coletiva do currculo e da avaliao. O trabalho docente amplia o seu mbito de compreenso e, consequentemente, as anlises a seu respeito tendem a se complexificar. Mudam tambm os enfoques terico-metodolgicos e, neste sentido, muitos estudos, na atualidade, tm como objeto a profisso docente.

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    Nessa mesma direo, Heargraves (1996), ao conduzir uma reflexo sobre a profisso do professor, seus desgastes, dilemas e problemas, frente ps-modernidade afirma que preciso compreender as consequncias e os reflexos das polticas chamadas de globalizao, na vida do professor. Chama a ateno para a concepo de consumo e acumulao flexvel da economia que agravam as desigualdades e a relao de poder dentro e fora da escola. A complexidade do conhecimento e o emprego de tecnologias esto contribuindo para o aliciamento do professor e ativismo do trabalho docente em sala de aula. Dessa forma, a vida profissional do professor afetada em trs aspectos: o trabalho com a modificao do prprio papel social da escola, o que vem a se constituir uma fonte de insatisfao docente; o tempo o controle do tempo do professor em benefcio da burocracia. A exiguidade do tempo, tanto para as atividades de prtica como para as de reflexo em grupo, tem promovido o professor tarefeiro e a praticidade; o desenvolvimento de posturas de individualismo e competio, propiciando um tipo coletivo de forma artificial.

    A concretude da situao dos profissionais do magistrio no Brasil parece estar na contramo desse iderio pedaggico. A sociedade intitulada do conhecimento exige um novo ensino e um novo profissional do magistrio. A profisso docente tem se tornado um foco, por excelncia, para as normas, decretos e leis para a efetivao da reforma educacional, entre outras, ditadas pelos organismos internacionais (Fundo Monetrio Internacional FMI, e Banco Mundial).

    Dos professores so cobradas respostas para questes que extrapolam sua esfera de atuao, tais como as lacunas de formao e domnio de leitura e escrita acumuladas ao longo dos anos escolares dos alunos, entre outras questes sociais como a violncia, a droga o desinteresse dos alunos pela escola, etc. Sobre a necessidade de perceber as questes inerentes a esse campo de tenses, Cunha, (2010, p. 131) faz a seguinte reflexo:

    Perceber a ao docente como inserida num campo de tenses representa um avano para as teorias e as prticas da formao de professores. Incorpora a condio flexvel necessria ao exerccio de uma ao humana que no pode ser regulada e normatizada como queria a racionalidade tcnica.

    Nessa direo, as melhores intenes, os melhores projetos so transformados em procedimentos mecnicos e o tempo extra-aula, que poderia servir para a reflexo, acaba anulando-se pela

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    burocratizao. H colapso dos antigos paradigmas, enquanto os professores permanecem margem das discusses quanto s novas exigncias.

    Frigotto (2010) faz uma reflexo sobre a mercantilizao do ensino e comenta sobre as atuais exigncias postas no professor e na escola, que recebem a incumbncia de responder pela questo cultural dos alunos, pelos problemas sociais, preparem os alunos para o mercado de trabalho, ou para o desemprego. Diante da nova face mercado, que deseja um novo perfil de trabalhador, h uma tendncia de reestruturao nas propostas de educao, a fim de atender s novas demandas da economia. De acordo com Rios (2010, p. 667):

    Incertos so os caminhos da formao e do trabalho docente, se levarmos em conta os inmeros desafios que a se enfrentam. Mas podemos esperanar se empreendermos um esforo para que a caminhada seja iluminada pelo pensar criativo e reflexivo, que pode contribuir para a criao de um mundo novo, realmente comum, de todos e para todos.

    Para Veiga (2006), o trabalho docente, consistindo em realizar o processo de ensinar, requer do professor a necessidade de promover a interao, que deve existir entre ambas as partes e, dessa forma, criar formas inovadoras do pensar, sentir e no agir em relao sala de aula. Sendo o ensino um ato intencional, os professores devem ter objetivos claros sobre a formao do individuo como ser social e a preparao para o trabalho. Para a autora, ensinar pressupe, ainda, a construo de conhecimento e do rigor metodolgico, com a finalidade de ajudar o desenvolvimento de potencialidades em uma relao de vivncias entre professor e aluno para crescimento de ambos. Acrescentamos ainda ao exposto, aspectos ligados profisso (como a profissionalizao) apresentados como necessrios, e que diante do debatido no decorrer desse trabalho, apenas podero ser compreendidos dentro da contradio da sociedade capitalista e no horizonte da utopia, entendida como um vir-a-ser e da esperana.

    Qual o lugar da didtica no trabalho docente?

    Tomamos como ponto de partida o estudo de Pimenta (2010), que aborda o ensino como prtica social, um fenmeno complexo, histrico, situado nas sociedades humanas nas quais se realiza,

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    entendemos que o trabalho realizado pelo professor se situa no campo da Didtica. Dessa forma, os aspectos ligados s condies em que este trabalho se realiza, complementam esse campo de investigao e de prticas. Dessa forma, o objetivo da ao pedaggica se concretiza na relao entre os elementos da prtica educativa: o sujeito que educa o educador, o saber e os contextos onde estes movimentos ocorrem. O objetivo da Didtica promover a reflexo sobre a docncia, tendo a prtica como ponto de chegada e de partida, na constante busca do desenvolvimento de um trabalho que alie o conhecimento cientfico e o conhecimento pedaggico, em uma determinada rea de conhecimento.

    A Didtica comeou a ganhar especificidade no sculo VII, com Jos Ams Comnio (1562-1670) com a arte de ensinar tudo a todos. Com a didtica magna, Comnio fundamenta a necessidade de uma organizao escolar, de forma que respeite a vida dos alunos ao tempo que os alunos passam na escola. Para ele seria preciso que o ensino tivesse condies adequadas para haver um bom resultado (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002).

    Trazendo essa discusso para a atualidade temos ainda como fundamento os estudos de Franco (2001, 2002, 2005) segundo os quais a Didtica conceituada como subrea da Pedagogia, que tem como objeto de estudo a reflexo crtica, capaz de realizar transformaes nos sujeitos que exercem a docncia e nas suas prticas. Dessa forma, a trajetria entre a arte de ensinar de ensinar e a reflexo sobre a prtica nos convida a pensar sobre a vida e o trabalho de um profissional chamado professor, que desenvolve seu trabalho em uma profisso chamada magistrio. A reflexo sobre esse trabalho em sua especificidade e totalidade, nas suas significaes e ressignificaes que se traduzem em transformaes individuais e sociais, produzidas na prxis docente, o lugar da Didtica no trabalho do professor. Para tanto, faz-se necessrio que sejam considerados: a cultura organizacional, os saberes dos professores, o campo em que se desenvolvem as questes do coletivo docente, que impregnam as prticas e constituem um conjunto de representaes mentais e de aes que se configuram como a cultura escolar, com seu complexo definido de saberes.

    possvel verificar uma maior preocupao com a formao do professor no sentido de superao da dicotomia teoria-prtica, visando alcanar a concretizao da prxis. Apesar de esses polos terem identidade prpria, eles esto ou devem estar em articulao. A teoria e a prtica so elementos que constituem o saber docente. Estes estudos partem do pressuposto de que existem trs grandes

    fontes de origem do saber docente: o saber de formao proveniente das instituies responsveis pela formao profissional, no caso especfico do magistrio, as universidades e as escolas

    normais ; os saberes curriculares veiculados nestas escolas ; e os

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    saberes de experincia aqui compreendidos como os saberes gerados e adquiridos pela experincia da prtica docente. Esta diviso, entretanto, tem uma funo metodolgica, servindo essencialmente para que determinado aspecto do saber social referente prtica docente seja aprofundado (PIMENTA, 1999).

    O conceito do bom professor, trabalhado por Tardif (2002) oferece uma viso abrangente no sentido de reconhecer a necessidade de o professor dominar contedos no s das disciplinas, mas das cincias da educao e da Pedagogia. Portanto, no descarta o saber fazer, mas acrescenta a este a importncia do saber prtico, cotidiano, fundamentado na experincia.

    Consideraes finais

    No fcil falar docncia como trabalho, como profisso. Essa uma atividade complexa que envolve o contexto social e poltico onde estamos inseridos. Nesse espao, tambm se situam a vida, a formao e a profisso do professor com suas relaes de trabalho e as conexes que se fazem nas contradies e possibilidades dessas interaes.

    O texto mostra a necessidade da compreenso da Didtica como mobilizadora da reflexo e da prxis no trabalho docente; no entanto, a reflexo guarda estreita vinculao com pensamento e a ao, nas situaes reais e histricas em que os professores se encontram. No uma atividade individual, pois pressupe relaes sociais que servem a interesses humanos, sociais, culturais e polticos e, dessa forma, no neutra. Para Contreras (2002), reflexo no um processo puramente criativo para a elaborao de ideias; uma prtica que expressa o poder de reconstruir a vida social, e sendo vista a partir dos condicionantes que determinam os contextos sociais dos docentes, exige uma opo. No se trata apenas de desenvolver a prtica reflexiva, mas compreender a base das relaes sociais e de trabalho em que ela se realiza e a que interesses ela poder servir. preciso que a reflexo esteja a servio da emancipao e da autonomia profissional do professorado. Diferente do individualismo competitivo pode ser um processo de democratizao da educao, com o objetivo de construir a autonomia profissional junto com a autonomia social. Compreendo a reflexo como elemento de emancipao, desde que seja um processo situado e datado, dentro de uma intencionalidade definida. Trata-se de dar um sentido social prpria prtica, mediando-a com o conhecimento, a realidade vivida e analisando-a criticamente. uma

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    postura de constante investigao, anlise crtica e questionamento, assumida como atitude de vida trabalho e profisso.

    O professor como sujeito que no reproduz apenas o conhecimento pode fazer do seu prprio trabalho de sala de aula um espao de prxis docente e de transformao humana. na ao refletida e na redimenso da sua prtica que o professor pode ser agente de mudanas na escola e na sociedade. Da ser o trabalho docente entendido como prxis, o ponto central dessa proposta que ora apresentamos.

    Em suma, a docncia, a profisso, a formao e o desenvolvimento profissional no se fazem separadamente, fazem parte da vida e do trabalho, que compem a natureza do trabalho docente, requerendo que ele esteja em constante reviso das suas prticas. A Didtica abriga tais processos para que o professor seja um sujeito que constri conhecimentos e seja capaz de fazer a anlise da sua prtica, fundamentado em um referencial terico que lhe permita como resultado, a incessante busca de uma educao de qualidade. no trabalho do professor enquanto prxis que est o germe da transformao e que pode encontrar na formao contnua um espao de desenvolvimento humano e profissional.

    um equvoco pensar a profisso docente como um prato fundo pra toda fome que h no mundo, ou seja, que os seus profissionais magistrio possam sozinhos assumir a responsabilidade de uma Pedagogia de resultados, que carrega todas as mazelas sociais.

    Um rio raso, um prato fundo pr toda fome que h no mundo! Mais uma vez trazemos a cano popular para dizer que essa reflexo continua no cotidiano dos professores em seus espaos de trabalho, nas pesquisas e atividades de formao e de aprendizagem da profisso docente.

    preciso melhor competncia terica para compreender a docncia em seu contexto, seus determinantes, possibilidades e desafios. preciso pensar a prtica como ponto de partida e de chegada. preciso que o caminho do professor comporte as estradas da sua formao, como um direto a ser defendido e conquistado e que a dignidade salarial e de tempo para reflexo sejam respeitados. Que a Didtica nos ensine esse caminho!

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