qigong, corpo e psicologia

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Qigong, Corpo e Psicologia

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    RINALDO MIORIM

    Aprender com o corpo: estabelecendo relaes entre a psicologia analtica e as tcnicas

    corporais taostas

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Orientadora: Prof. Dra. Laura Villares de Freitas

    So Paulo 2006

  • 2

    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,

    PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Miorim, Rinaldo.

    Aprender com o corpo: estabelecendo relaes entre a psicologia analtica e as tcnicas corporais taostas / Rinaldo Miorim; orientadora Laura Villares de Freitas. --So Paulo, 2006.

    151 p. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em

    Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Individuao (psicologia) 2. Terapia corporal (psicoterapia) 3.

    Jung, Carl Gustav, 1875-1961 4. Taosmo 5. Distrbios psicossomticos I. Ttulo.

    BF175.5.I53

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    FOLHA DE APROVAO Rinaldo Miorim Aprender com o corpo: estabelecendo relaes entre a psicologia analtica e as tcnicas corporais taostas.

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora Prof. Dr.______________________________________________________________ Instituio:_______________ Assinatura:___________________________________ Prof. Dr.______________________________________________________________ Instituio:_______________ Assinatura:___________________________________ Prof. Dr.______________________________________________________________ Instituio:_______________ Assinatura:___________________________________

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    AGRADECIMENTOS

    Quero deixar registrados os meus sinceros agradecimentos:

    Universidade de So Paulo, pela possibilidade de mais uma vez usufruir deste

    ambiente de pesquisa e de conhecimento do mais alto nvel.

    Prof Dr Laura Villares de Freitas que aceitou orientar o meu trabalho com muita

    sensibilidade e que soube fazer-me expressar aquilo que para ns verdadeiro.

    Prof Dr Katia Rubio e ao Prof. Dr. Paulo Albertini pelas importantes contribuies

    feitas na ocasio do meu exame de qualificao.

    Prof Dr Maria Luisa Sandoval Schimidt, Dr Marina Pacheco Jordo e ao Prof.

    Dr. Mario Alfredo De Marco pela disponibilidade.

    A todos professores com que tive contato durante o curso de ps graduao. Cada um

    com seu estilo, exemplos de cultura e saber a serem seguidos.

    Ao grupo de orientao: Elenice, Santina, Bia, Tnia, Iara, Guilherme e Andr, um

    abrao especial a todos vocs.

    Aos colegas das salas de aula pela possibilidade da reflexo em conjunto.

    A todos funcionrios da Biblioteca do IPUSP pelo auxlio e orientao prestados em

    todas fases do trabalho.

    Aos professores e colegas com que compartilhei o universo das filosofias e prticas

    tradicionais do Oriente.

    E principalmente aos familiares e amigos que acreditaram e apoiaram este meu

    projeto.

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    Veja! No h mais necessidade de atiar mais o fogo. A chama continua queimando, no tem fim.

    Chuang Tzu

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    RESUMO

    MIORIM, R. Aprender com o corpo: estabelecendo relaes entre a psicologia analtica e as tcnicas corporais taostas. 2006. 151 f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2006. O presente trabalho consiste em um estudo terico que busca relacionar os princpios que norteiam as tcnicas corporais fundamentadas na filosofia taosta com alguns conceitos da psicologia analtica, tomando como eixo o processo de desenvolvimento da personalidade. Como mtodo de trabalho, foi feita uma reviso bibliogrfica, procurando sistematizar o assunto por meio da anlise de alguns tpicos. A pesquisa comea com a apresentao da tcnica corporal teraputica taosta chamada qigong (chi kun), situando-a em seus aspectos histricos, depois parte para as pesquisas clnicas que buscam validar seus efeitos teraputicos, principalmente, explorando alguns conceitos filosficos que fundamentam sua prtica. Em seguida, foi destacada a perspectiva psicossomtica como referencial de abordagem aos processos de sade e doena, e, apresentadas algumas tcnicas corporais da psicologia, destacando as tcnicas de relaxamento. A partir desses elementos foram identificados nos estudos de C. G. Jung sobre as prticas corporais e meditativas taostas, relaes entre elas e o processo de individuao. O corpo, tomado como um instrumento de interveno, por meio dos exerccios de relaxamento, alongamento, respirao e meditao, pode explicar as tcnicas corporais taostas no que diz respeito aos seus benefcios teraputicos, concebidos nestes mtodos como a busca da harmonizao da energia, chamada de qi, e de seus aspectos yin e yang, o que culminaria tanto na sade do corpo, quanto na harmonia psquica resultante da experincia de identificao com um aspecto superior da conscincia, nesta filosofia denominado Tao. Por outro lado a psicologia analtica d mais ateno s manifestaes corporais como expresses simblicas, j que o trabalho corporal nessa abordagem busca facilitar o dilogo entre os aspectos conscientes e inconscientes da personalidade, tendo em vista uma integrao maior entre os mesmos, o que corresponde a essncia do processo de individuao. Assim foi observado que existe a possibilidade de convergncia entre as duas propostas no que diz respeito ao cuidado com corpo e o desenvolvimento psquico, desde que respeitando a especificidade de cada abordagem. No existe somente um paralelismo, mas sobretudo uma complementaridade entre o conceito de processo de individuao descrito na psicologia analtica, e os objetivos e os mtodos de desenvolvimento propostos pelos filsofos taostas. A dissertao aponta ainda para a necessidade de futuros estudos que identifiquem com mais preciso at que ponto o trabalho terico de Jung sofreu contribuio do pensamento oriental, particularmente da filosofia taosta e, por outro lado, o quanto algumas interpretaes ocidentais da filosofia taosta, sofreram influncia do pensamento de Jung. Palavras-chave: Individuao. Taosmo. Terapia corporal. Psicossomtica.

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    ABSTRACT MIORIM, R. Learning with the body: establishing relations between analytical psychology and taoist body techniques. 2006 151 f. Dissertation (Master Degree) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2006. The present research consists of a theoretical study that intends to relate the principles which guide the body techniques based on taoist philosophy to some concepts of the analytical psychology. As a main point, it is centered on the process of the personality development. In order to systematize the subject through the analysis of some topics, a bibliographic review has been made. It begins with the taoist therapeutic body technique qigong (chi kun) being historically situated. Then, it approaches the clinical researches that intend to validate its therapeutic effects and, mainly, with the exploration of some philosophical concepts in which it is based. After that, the psychosomatic perspective is focused as a reference to the healthiness and illness processes, and some psychological body techniques, such as the relaxation, are emphasized. Beginning with those elements, relations between taoist body and meditative techniques and the individuation process have been identified in C.G. Jungs studies. The body, considered as an intervention instrument, through the exercises of relaxation, stretching, breathing and meditation can explain the taoist body techniques regarding its therapeutic benefits as a way to pursuit the energy harmony, called qi, as well as the yin and yang aspects, which would culminate not only in the body health but also in the psychic harmony gained by the identification with a major consciousness called Tao in that philosophy. On the other hand, analytical psychology gives more attention to the body manifestations as symbolic expressions, since the body work in this approach intends to facilitate the dialogue between the conscious and the unconscious aspects of personality, aiming at increasing the integration between them, what meets the essence of the individuation process. Thus, it has been observed that, regarding body and psychic development, both approaches may converge, provided that their peculiarities are respected. There is not only a parallel, but also a complementarity between the individuation process concept described in the analytical psychology and the aims and methods of development proposed by taoist philosophers. Moreover, this research indicates the need for further studies which are able to identify more precisely the contribution of Eastern thoughts, mainly of the taoist philosophy, to Jungs theorical work, as well as the influence of Jungs thoughts in the Western interpretation of taoist philosophy. Keywords: Individuation. Taoism. Body therapy. Psychosomatics.

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    OBSERVAES

    Ao longo do texto, utilizaremos como sistema de citao para as obras de C. G. Jung e

    para os textos de Richard Wilhelm, duas datas, por exemplo, Jung (1928/2002), sendo que a

    primeira corresponde a sua edio original e a segunda quela por ns consultada. Este

    sistema possui como vantagem poder situar-nos ao longo da dissertao a respeito do

    desenvolvimento terico Jung e sua relao com os textos de Wilhelm.

    Optamos por utilizar a palavra stress no seu original em ingls, conforme o adotado

    por alguns especialistas brasileiros do tema, entre eles Vasconcellos (1998) e Limongi-Frana

    e Rodrigues (2002), ao invs da forma estresse que j se encontra assim traduzida para o

    portugus e que tambm utilizada na psicologia por outros especialistas do assunto.

    Com relao transliterao por ns utilizada do idioma chins, devemos fazer

    algumas consideraes. A lngua chinesa possui diversos dialetos e quatro formas de escrita

    (LIN; CHAN, 2003): (1) os caracteres simplificados, normalmente adotados em Mandarim, j

    existem h centenas de anos, tendo sido popularizado a partir de 1950, aps a fundao da

    Repblica Popular da China. (2) o chins clssico, que a forma mais tradicional e antiga de

    escrita, adotada pelos dialetos Mandarim e Cantons, e muito utilizada na Repblica

    Popular da China, Hong Kong, Malsia, Coria, Taiwan, Japo, entre outros pases. (3) os

    caracteres informais, um modo popular de se escrever em Cantons, semelhante a uma forma

    coloquial. (4) o sistema pinyin, que consiste na forma de se escrever o chins mais acessvel

    aos ocidentais e existe desde 1892, sendo que em 1977 foi reconhecida pela Organizao das

    Naes Unidas como o modo oficial de transliterao dos caracteres chineses para forma

    romanizada.

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    Daremos preferncia a esta forma de transliterao, o pinyin, sempre que possvel,

    quando fizermos a meno de uma palavra em chins, mesmo que possa parecer estranho para

    quem j est acostumado com as antigas formas de transliterao. Alguns exemplos:

    Sistema Antigo Pinyin Significado chi ou chi qi energia, sopro

    chi kun qigong exerccios com energia tai chi taiji grande polaridade ching jing essncia shen shen esprito, psique

    Existem muitas dificuldades em fazer esta transliterao, conforme observamos nos

    textos por ns examinados por exemplo, o nome do filsofo Lao Tzu, tambm encontrado

    como Lao Tse ou as vezes Lao Tan. Utilizamos a primeira forma. A palavra Tao caminho,

    sentido, tambm vem sendo traduzida como Dao. Utilizamos a forma Tao por ser a mais

    freqente nos livros estudados. Antigamente I Ching era transcrito como Yi King, atualmente

    algumas pessoas o escrevem como Yi Jing, vamos manter a forma transcrita por Wilhelm

    (1923/1990b), ou seja I Ching. Procuramos usar do bom senso e de uma coerncia em nossa

    apresentao para estas expresses, mesmo que s vezes se perca um pouco a sua exatido em

    sua transcrio.

    As epgrafes que aparecem ao longo da dissertao so todas de autoria de Chuang

    Tzu, poeta e filsofo taosta que viveu na ltima metade do sculo IV a.C. Apresentamos a

    traduo do chins de seus escritos feita por S. Hamill e J.P. Seaton, que o consideram um dos

    mais importantes e influentes poetas desta vertente filosfica ao lado de Lao Tzu.

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    SUMRIO

    INTRODUO 12 1 AS TCNICAS CORPORAIS TERAPUTICAS TAOSTAS 23 1.1 A tcnica corporal do qigong 23 1.2 As pesquisas clnicas 28 1.3 Os aspectos yin e yang 32 1.4 O conceito de psique para o Taosmo 36 1.5 O conceito de corpo para o Taosmo 38 1.6 A importncia da respirao nas tcnicas corporais taostas 40 1.7 Sade e doena na perspectiva das terapias orientais 44 1.8 Tcnica corporal teraputica 47 2 A PSICOSSOMTICA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA ANALTICA 50 2.1 A abordagem psicossomtica 50 2.2 A psicossomtica e a psicologia analtica 53 2.3 A ciso entre imagem e emoo 56 2.4 A funo transcendente 59 2.5 A sincronicidade 63 2.6 A sombra e o corpo 64 3 AS TCNICAS CORPORAIS E O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE 68 3.1 As tcnicas de relaxamento 68 3.2 A resposta de relaxamento 74 3.3 A regulao, o equilbrio e a energia psquica 77 3.4 As tcnicas corporais e a individuao 82

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    4 A PSICOLOGIA ANALTICA E AS FILOSOFIAS E PRTICAS DO ORIENTE 87 4.1 Jung e o estudo das filosofias do Oriente 87 4.2 O orientalismo 89 4.3 A prtica da meditao taosta 94 4.4 A prtica do ioga 104 4.5 As mutaes 107 5 APRENDER COM O CORPO: ESTABELECENDO RELAES ENTRE A PSICOLOGIA ANALTICA E AS TCNICAS CORPORAIS TAOSTAS 113 5.1 Sistema conceitual de terapia tradicional 116 5.2 Terapia e aprendizagem 122 5.3 Aprender e cuidar do corpo 129 5.4 Estabelecendo relaes entre a psicologia analtica e as tcnicas corporais taostas 132 CONCLUSES 140 REFERNCIAS 146

  • 12

    INTRODUO

    O assunto abordado neste trabalho est relacionado a minha experincia junto s

    tcnicas corporais fundamentadas pela filosofia taosta, aliado a minha formao e prtica

    profissional dentro da psicologia. O tema que aqui desenvolveremos se apresentou de

    diferentes formas ao longo da construo desta dissertao, sofrendo algumas transformaes,

    o que possibilitou o seu amadurecimento at o estgio em que aqui se encontra.

    J faz algum tempo que tomei contato com a filosofia taosta e suas prticas

    teraputicas. Primeiro de um modo mais exploratrio e vivencial, s posteriormente

    aprofundando-me teoricamente no assunto. Talvez esta dissertao se constitua como uma

    etapa da elaborao terica daquilo que por muitos anos foi trabalhado a partir de outras

    funes como a sensibilidade e a imaginao.

    Quando aludo a determinadas tcnicas corporais teraputicas do taosmo, refiro-me a

    um conjunto de mtodos teraputicos que vo da massagem tui n, a acupuntura, a fitoterapia,

    as dietoterapias e tambm as sries de exerccios conhecidos por qigong, taiji quan, bagua

    quan, xingyi quan, entre outras. Elas se constituem como prticas de relaxamento,

    alongamento, respirao e meditao, realizadas atravs de diferentes coordenaes tanto

    corporais como psquicas e que possuem como grande eixo comum, a tentativa de representar

    em seus movimentos os temas e motivos presentes na filosofia taosta.

    Seus praticantes acreditam que a melhor forma de incorporao destes conceitos

    filosficos no deve provir apenas dos estudos dos livros e da transmisso verbal, mas que

    necessria a realizao de alguma atividade que permita tal incorporao. Da as principais

    expresses do taosmo estarem presentes no apenas nos livros, mas tambm nas artes, na

    arquitetura, na culinria, nas terapias tradicionais e nas tcnicas corporais.

  • 13

    Logo aps terminar a minha graduao tive duas experincias que marcaram bastante

    os fundamentos deste trabalho. O primeiro foi meu encontro com as tcnicas de Peth Sandor,

    criador da tcnica corporal calatonia. Logo aps, participei de uma especializao em

    psicologia hospitalar, mais especificamente no campo da medicina preventiva, estagiando em

    um servio de ateno primria em sade. Nesse momento, pude compreender e experimentar

    aes em sade que integram os campos da sade mental aos do atendimento comunitrio e

    perceber de perto a relao entre o corporal, o psquico e o social, como uma trade que nunca

    pode ser decomposta quando se objetiva uma ateno integral sade e ao desenvolvimento

    humano.

    Contudo, o interesse tanto pelas prticas vinculadas as filosofias do oriente quanto sua

    relao com o pensamento moderno ocidental j era anterior a estas experincias.

    Provavelmente ganharam um grande impulso a partir da leitura do livro O Tao da Fsica

    (1989) do fsico Fritjof Capra. Despertou a minha ateno a sua exposio das semelhanas

    existentes entre algumas teses da fsica moderna, como a teoria da relatividade e da mecnica

    quntica, com alguns pressupostos da filosofia oriental. Segundo o autor, tanto os cientistas

    modernos, quanto os antigos filsofos, estariam chegando s mesmas concluses, s que por

    diferentes vias: os primeiros atravs dos experimentos de laboratrio e os segundos atravs da

    meditao. Diante destas observaes, passei a ter um respeito diferente pelas grandes

    tradies, comecei a questionar a validade dos saberes acadmicos como nica via de

    compreenso do mundo e do ser humano e dar mais valor sabedoria tradicional. Mas no

    abandonei meus interesses pelo pensamento cientfico muito pelo contrrio, eles foram

    assim ainda mais estimulados.

    Na psicologia, C. G. Jung foi um pesquisador que ousou explorar os conhecimentos

    tradicionais e buscar paralelos com as grandes tradies. Primeiro com seus estudos sobre a

    alquimia da idade mdia e posteriormente tambm avanando sobre o vasto campo das

  • 14

    filosofias, religies e prticas do oriente. Jung estabeleceu parcerias com alguns dos mais

    importantes estudiosos da cultura, mitologia e filosofia tradicionais, destacando-se Richard

    Wilhelm, tradutor e conhecedor competente da cultura chinesa. Foi com Wilhelm que Jung

    teve a oportunidade de trabalhar alguns importantes textos da filosofia taosta, entre eles o I

    Ching O Livro das Mutaes para qual escreveu o prefcio em 1949, mas antes disso O

    Segredo da Flor de Ouro em 1929, para o qual fez os comentrios psicolgicos. Jung

    encontrou muitos paralelos entre suas observaes clnicas e as descries encontradas nos

    textos, o que solidificou ainda mais a sua teoria sobre os contedos do inconsciente e sua

    viso da psique. Para ns, Jung inaugurou em 1929, ao escrever o comentrio desse livro, um

    campo de estudos para psicologia analtica, que o da filosofia e das prticas taostas.

    A filosofia taosta um dos grandes pilares da cultura e civilizao chinesa. Os outros

    dois so o confucionismo e o budismo. Entre os grandes filsofos do taosmo, existe um

    destaque para Lao Tzu que teria vivido no sculo VII a.C. aproximadamente, autor do livro

    Tao-Te King traduzido em 1910 por Wilhelm como O Livro do Sentido e da Vida (1991),

    um conjunto de poemas que de forma enigmtica, paradoxal e altamente esttica descreve a

    sua concepo de mundo e homem, que muito resumidamente corresponde ao estudo das

    relaes entre o ser humano e a natureza. da concepo desta filosofia que existem na

    natureza certas regras e leis, nem sempre lineares, e que ao ser humano, como parte

    inseparvel dela, caberia estud-las e assim corresponder a sua realidade mais essencial, no a

    fim de obter alguma recompensa divina ou mstica, j que os taostas eram avessos a isto, mas

    sim porque no h escolha para o ser humano: ou ele se harmoniza com a natureza ou ser

    condenado a uma vida sem conscincia. Conforme comentado por especialistas nessas

    culturas, entre eles Wilhelm (1925/1991), o taosmo seria uma espcie de filosofia radical,

    que no busca uma adaptao s regras da sociedade, dos grupos polticos ou mesmo

    religiosos, mas prope uma grande transformao pessoal, de modo que a pessoa transcenda a

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    si mesma e encontre aquilo que mais verdadeiro dentro das leis da natureza. De certa forma,

    historicamente, uma filosofia que surgiu como um contrapeso ao Confucionismo cujo

    interesse era centrado na relao do homem com a sociedade, nas suposies sobre a justia e

    a benevolncia.

    No incio da pesquisa pensvamos na possibilidade de estudar as tcnicas corporais

    como as do qigong, verificando seus benefcios teraputicos. Como j havamos verificado na

    literatura especializada, so referidos como decorrentes destas prticas resultados positivos

    tanto para o equilbrio emocional quanto para melhoras de quadros psicossomticos

    relacionados ao stress. Nossa questo era investigar se esses benefcios se relacionariam

    apenas a uma melhora dos sintomas, ou se seriam verificados efeitos a longo prazo

    decorrentes da prtica, especificamente como mudanas na personalidade.

    Consideramos a personalidade numa perspectiva que pressupe o desenvolvimento da

    mesma ao longo do tempo, resultante do encontro das tendncias e potencialidades inatas ao

    ser humano junto s experincias particulares de cada um. As tcnicas tradicionais teriam um

    efeito sintomtico e imediato ou produziriam mudanas mais duradouras? Para responder tais

    questes seria necessrio um trabalho de campo ou uma pesquisa clnica. Mas antes de

    formular a questo chave, percebemos que haviam outras perguntas no resolvidas. Assim

    mudamos o curso do trabalho e pensamos que poderia ser melhor ponderar a respeito do que

    se considera o desenvolvimento da personalidade, numa viso tradicional das prticas

    teraputica taostas comparada ao desenvolvimento dentro da psicologia analtica.

    O nosso objetivo buscar comparar os princpios que norteiam as tcnicas corporais

    teraputicas fundamentadas na filosofia taosta com alguns conceitos da psicologia analtica,

    procurando compreender sua relao com o que concerne ao processo de desenvolvimento da

    personalidade.

  • 16

    Jung concebia em sua obra o desenvolvimento da personalidade ou processo de

    individuao como algo mais caracterstico da segunda metade da vida. Como metfora do

    ciclo vital usava a imagem do perodo de um dia: o sol que nasce na linha do horizonte parece

    estar prximo da terra, ao meio-dia parece estar na parte mais alta do cu e depois vai se

    pondo, at retornar e desaparecer no horizonte, dando a iluso de ser engolido pela terra,

    quando noite. O meio-dia seria comparvel metade da vida, a partir de ento vm o

    envelhecimento e a morte, sendo a individuao o processo que aconteceria da metade da vida

    at a morte, quando as pessoas poderiam, enfim, passar por um reencontro com suas origens

    psquicas, que a grosso modo corresponderia ao contato com os elementos do inconsciente

    coletivo. Uma outra forma de pensar a individuao pode ser definida como o processo de

    tornar-se si mesmo, ser aquilo que realmente , proporcionar a experincia do reencontro do

    centro da conscincia, o ego, com o centro da psique, o Si-mesmo. No se trata de uma

    identificao, mas sim um dilogo entre estas duas instncias. Neste trabalho, propomos a

    compreenso desse processo descrito por Jung, ao qual voltaremos a nos referir, mas com a

    diferena de no o situarmos a partir da metade da vida. Consideramos muito importantes os

    fenmenos psicolgicos que ocorrem na infncia, juventude e inicio da vida adulta, e que so

    desse modo elementos que devem ser includos dentro da perspectiva do processo de

    desenvolvimento da personalidade.

    Para Penna (2005), a pesquisa dentro do referencial da psicologia analtica segue uma

    abordagem compreensiva e interpretativa dos fenmenos. Entendendo como fenmeno, nesta

    perspectiva, a dimenso simblica da experincia. Conforme deixaremos mais claro ao longo

    do trabalho, Jung considerava como smbolo tudo aquilo que permite o dilogo entre a

    conscincia e o inconsciente. Assim, podemos pensar, que o mtodo junguiano de pesquisa

    busca explicitar como ocorre o dilogo entre estas duas dimenses psquicas. Da que a

    atitude do pesquisador frente ao seu objeto de estudo deve ser a atitude simblica, sendo

  • 17

    que sua motivao, neste caso, corresponderia ao fato de o ego precisar ou desejar captar a

    mensagem contida no smbolo. Em outras palavras, buscar transformar o desconhecido em

    conhecido. Assim, a relao do pesquisador com seu objeto corresponderia relao eu

    outro, na qual o outro seria correspondente ao inconsciente, inclusive o do prprio

    pesquisador. Propomos assim que o mtodo de pesquisa aqui exposto seja uma tentativa de

    lidar com os opostos e complementares da vida psicolgica, buscando transcender os mesmos

    atravs da sua sntese, quando se atingira o significado do tema estudado. Sendo assim, a

    nossa pesquisa ser construda a partir de um estudo terico e bibliogrfico.

    A pesquisa do material bibliogrfico inclui:

    1. Textos das Obras de C. G. Jung: a) aqueles que tratam da filosofia oriental:

    Psicologia e Religio Oriental (1936/1986a;1939/1986c;1943/1986b), O Segredo da Flor

    de Ouro (1929/1990a), o prefcio de Jung ao I Ching (1949/1990b). b) os que tratam de

    conceitos fundamentais para nosso estudo: A Funo Transcendente (1916/1983), A

    Energia Psquica (1928/2002), Fundamentos de Psicologia Analtica (1935/2003),

    Conscincia, Inconsciente e Individuao (1939/2000), Sincronicidade (1951/2004) e

    Memrias, Sonhos, Reflexes (1957/1995).

    2. Alguns textos de analistas junguianos que contriburam para a ampliao das idias de

    Jung. Por exemplo: no caso da psicossomtica na psicologia analtica, adotamos como a

    principal referncia Ramos (1994); para uma compreenso das terapias corporais nessa

    perspectiva, utilizaremos Sandor (1974); e para as relaes entre psicologia analtica e o

    estudo da filosofia e prticas orientais, foi importante a leitura dos textos e comentrios de

    Wilhelm (1926/1990a;1923/1990b;1925/1991), recorremos tambm aos trabalhos de Bloise

  • 18

    (2000;2002;2003) que fez estudos a respeito da psicologia analtica e sua articulao com o

    Taosmo.

    3. Autores ligados s cincias sociais e que fazem um crtica e reflexo quanto aos

    estudos inter-culturais, como Said (2001), Aug (1999) e Eliade (1979).

    4. Teses e dissertaes que de alguma forma contriburam para o esclarecimento dos

    tpicos estudados, como por exemplo: Hemsi (2000), Machado Filho (1994), Kosaza (2002),

    Galvo (2000), entre outras que se encontram descritas nas referncias. Tambm artigos que

    relatem resultados de pesquisas a respeito de tcnicas corporais como Jacobs (2001a ;2001b),

    Sancier (2001;2004), entre outros.

    5. Autores cujos textos no esto ligados produo acadmica, mas que de alguma

    forma so importantes para o esclarecimento das prticas corporais e meditativas da tradio

    oriental. De certa forma, correspondem a uma fonte primria de material bibliogrfico, cuja

    finalidade seria a de apresentar os fundamentos filosficos das tcnicas corporais da medicina

    oriental, como o Huang (1979), Despeux (1981), Maciocia (1996), Requena (1990), entre

    outros. Grande parte dele encontrado em cursos que frequentei e em indicaes pessoais de

    praticantes destas tcnicas.

    Esta dissertao est dividida em cinco captulos:

    No captulo 1, apresentamos alguns dos fundamentos filosficos presentes nos

    exerccios de qigong, que neste trabalho consideramos como uma tcnica corporal teraputica,

    utilizando o conceito de Mauss (1974) e o aproximamos aos nossos objetivos. Falaremos das

    pesquisas experimentais que tm sido feitas a fim de comprovar a eficcia teraputica desses

  • 19

    mtodos. Abordaremos alguns aspectos fundamentais da filosofia taosta sem os quais no

    possvel compreender tais tcnicas, entre eles: o conceito de energia ou qi, os aspectos yin e

    yang, os pares opostos complementares e o taiji, a grande polaridade que integra e transcende

    o yin e o yang.

    No captulo 2, introduzimos alguns conceitos fundamentais da psicologia analtica, e

    defenderemos nossa posio a respeito da unidade dos fenmenos somticos e psquicos.

    Constatamos que j existem propostas dentro da psicologia analtica de uma abordagem

    psicossomtica, como as de Ramos (1994) que ampliam as concepes de corpo j presentes

    ao longo da obra de Jung. Assim abordaremos sobre a funo transcendente, o smbolo, a

    imagem e o arqutipo, a sincronicidade e a sombra, sempre numa perspectiva que envolva o

    corpo e seus fenmenos.

    No captulo 3, destacamos uma perspectiva ocidental e moderna para trabalhar o corpo

    com fins teraputicos. Centraremos-nos nas tcnicas propostas por Sandor (1974), que

    unificam o corpo como um veculo de expresso simblica e tambm como um instrumento

    de interveno teraputica, atravs do desenvolvimento da sensibilidade e da conscincia

    corporal, pelos toques sutis, exerccios, posturas ou gestos. Tambm sentimos a necessidade

    de compreender o significado dessas tcnicas de relaxamento dentro de uma perspectiva

    fisiolgica; e para tal reveremos alguns conceitos, como o da resposta de relaxamento

    constituindo uma forma de restabelecer o equilbrio ou homeostase. Chegamos a estabelecer

    relaes entre a busca de equilbrio atravs do corpo, a regulao de energia psquica e o

    processo de individuao e alcanamos nesse ponto o conceito de equilibrao psquica,

    conforme descrito por Freitas (1987).

  • 20

    No captulo 4, exploramos as concepes de Jung a respeito das filosofias e prticas

    do Oriente. De antemo faremos alguns esclarecimentos a respeito dos estudos orientalistas e

    de algumas crticas feitas aos mesmos, tentando situar o pensamento de Jung como uma busca

    de ampliao do conhecimento da psique, atravs do encontro com elementos de outras

    culturas. Abordaremos alguns grandes momentos de sua obra frente ao tema: seus

    comentrios traduo de Wilhelm do livro O Segredo da Flor de Ouro (1929/1990a),

    algumas de suas observaes a respeito das prticas da ioga e da meditao (JUNG,

    1936/1986a;1943/1986b) e sua introduo ao Livro das Mutaes (1949/1990b), entre

    outros textos de apoio. Neles podemos ver como Jung percebia tais mtodos de explorao

    psquica, suas crticas e advertncias, e tambm a sua admirao por essas filosofias.

    O captulo 5 destinado a rever alguns tpicos j apresentados repensando algumas

    questes, como: a) o problema da classificao das estas tcnicas teraputicas orientais na

    forma de terapias alternativas ou complementares; b) a dificuldade em precisar se os mtodos

    por ns apresentados no captulo 1 so somente teraputicos ou se tambm possuem uma

    dimenso educacional que no deve ser subestimada; c) e finalmente, colocaremos nossa

    viso de como esses processos corporais podem ser includos dentro da perspectiva do

    desenvolvimento da personalidade, ou seja, da individuao. E para conclu-lo, observamos

    que existem muitas concepes de corpo, todas de distinta referncia em diferentes contextos;

    percebemos tambm que a localizao da psique no corpo ainda no um problema

    totalmente resolvido pelas disciplinas do pensamento humano. Dimensionar esta relao

    uma questo a ser ainda melhor compreendida e talvez as concepes da filosofia do Oriente

    nos ajudem neste processo; consideramos as prticas corporais teraputicas com um cdigo

    expressivo capaz de orientar o indivduo em direo ao crescimento pessoal, que est

    associado a um processo de cura relativo a uma concepo de sade mais ampla.

  • 21

    Tentar apresentar as prticas teraputicas vinculadas filosofia taosta pode ser

    considerado como algo bastante contraditrio. Por princpio, no se define o taosmo, no se

    busca demonstrar o Tao. J no primeiro poema de Lao Tzu, encontramos:

    O Tao que pode ser pronunciado

    no o Tao eterno.

    o nome que pode ser proferido

    no o Nome eterno.

    Ao princpio do Cu e da Terra chamo No-ser.

    me dos seres individuais chamo Ser.

    Dirigir-se para o No-ser leva

    contemplao da maravilhosa Essncia;

    dirigir-se para o Ser leva

    contemplao das limitaes espaciais.

    Pela origem, ambos so uma coisa s,

    diferindo apenas no nome.

    Em sua Unidade, esse Um mistrio.

    O mistrio dos mistrios

    o portal por onde entram as maravilhas.

    (LAO TZU, 1991, p. 37)

    Ir alm da aparncia e alcanar a essncia. O filsofo taosta buscava a experincia e

    no a demonstrao dos conceitos, pois para ele o logos era apenas uma polaridade dentre as

    muitas que existem dentro do ser humano. Procurava a percepo contemplativa dos pares de

    opostos que condicionam a experincia e o comportamento humano, sua percepo e no

    identificao com qualquer atitude unilateral e extrema. Dentro da sua filosofia, o trabalho

    intelectual seria uma atitude unilateral que conduz para fora da percepo da totalidade do ser

    humano. Mas os filsofos orientais tambm eram contraditrios. Embora criticassem toda

    tentativa de descrever o mundo e o homem, valorizando a contemplao e a experincia como

    as formas mais adequadas de participar do grande movimento da vida, Lao Tzu no poderia

    cumprir seu destino se no escrevesse algo, no registrasse de alguma forma o que tinha

  • 22

    vivido. E ainda bem que o fez! Para que at hoje possamos apreciar um pouco de seu belo e

    profundo ensinamento. Diante disso, tentaremos falar um pouco sobre esta filosofia difcil de

    se traduzir em palavras e buscaremos atravs da psicologia analtica os instrumentos

    adequados para tentar fazer esta traduo entre as idias tradicionais e o pensamento

    moderno.

    Jung considerava a individuao como um ponto central da sua teoria. Tinha grande

    admirao pela filosofia oriental, o que pode ser visto no final de suas Memrias, Sonhos,

    Reflexes, onde demonstra sua apreciao por esta tradio atravs da seguinte imagem:

    Quando Lao-Tse diz: Todos os seres so claros, s eu sou turvo, exprime o que sinto em minha idade avanada. Lao-Tse o exemplo de homem de sabedoria superior que viu e fez a experincia do valor e do no-valor, e que no fim da vida deseja voltar a seu prprio ser, no sentido eterno e incognoscvel. O arqutipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida eternamente verdadeiro; em todos os nveis de inteligncia, esse tipo aparece e idntico, quer se trate de um velho campons ou de um grande filsofo como Lao-Tse. Assim, a idade avanada ...uma limitao, um estreitamento. E no entanto acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno homem. Quanto mais se acentuou a incerteza em relao a mim mesmo. Mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, como se essa estranheza que h tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimenso desconhecida e inesperada de mim mesmo (JUNG, 1957/1995, p. 310).

    E quem sabe Lao Tzu ainda continue em algum lugar montado em seu bfalo preto,

    indo cada vez mais longe, para alm da fronteira, conhecendo novos lugares, mas guardando

    sempre em sua memria as lembranas do seu antigo lar.

  • 23

    1 AS TCNICAS CORPORAIS TERAPUTICAS TAOSTAS

    - Voc no entende o que quero dizer com sentimentos retrucou Chuang Tzu. Quero dizer que tal homem no deixa que o bem ou o mal firam o seu corpo. Ele flui com a natureza, e no busca benefcio na vida. - Se no tira benefcio da vida tornou Hui Tzu como pode ter um corpo? - O Tao lhe d a personalidade, o cu a forma. No h bem nem mal que fira seu corpo. E voc?! Deixe de lado o seu esprito e cultive a essncia vital (...)

    Chuang Tzu

    1.1 A tcnica corporal do qigong

    Wong (2003), praticante e estudioso das tcnicas corporais orientais h mais de trinta

    anos, explica que o conjunto de exerccios teraputicos da medicina tradicional chinesa

    chamado de qigong (pronuncia-se chi kung). O ideograma qi possui uma ampla gama de

    significados1, podendo significar sopro, ar, ou at mesmo energia vital. J gong significa

    exerccio, trabalho, arte, e, desse modo, qigong pode significar a arte do cultivo da energia.

    Cheng (1989), um outro estudioso da medicina chinesa e que atualmente vive no Brasil, d

    mais um passo a frente e diz que qigong pode ser entendido como: um exerccio respiratrio

    que estimula a estrutura energtica. Como tal exerccio, so desenvolvidos os centros, os

    canais e o campo energtico (Ibid., p.65).

    1 A idia de Qi fundamental para o pensamento mdico chins. Podemos dizer que qualquer coisa no universo, orgnico ou inorgnico, constitudo e definido pelo seu Qi. Mas Qi no algum material imutvel, primordial; tambm no meramente energia vital, embora a palavra seja ocasionalmente assim traduzida. Os chineses no distinguem energia da matria, mas podemos pensar no Qi como matria a ponto de se transformar em energia, ou energia a ponto de se materializar. Para o pensamento chins, no entanto, tais discusses sobre o significado de uma concepo completamente estranha. Tanto os clssicos como os textos modernos, no especulam sobre a natureza do Qi, e nem tentam conceitualiza-lo. Ao contrrio, o Qi percebido funcionalmente pelo que faz (KAPTCHUK, 2004).

  • 24

    Diante dessa perspectiva, passa-se a atribuir ao termo qigong a idia de sistema

    complexo de exerccios corporais e meditativos, utilizado para diversos fins, desde a luta, o

    desenvolvimento espiritual ou a medicina preventiva. Atualmente, seus benefcios

    teraputicos esto mais relacionados preveno de enfermidades crnicas e degenerativas,

    ao aumento da fora e da vitalidade, tranqilidade emocional e a um aumento da

    longevidade. Segundo Despeux (1981, p. 58),: O qigong est hoje muito em voga na China,

    onde se realizam pesquisas sobre as virtudes teraputicas e, ao que parece, com resultados

    positivos. Ele aumenta a resistncia dos doentes. A partir das descries de Despeux (1981),

    Wong (2003) e Cheng (1989), podemos, sucintamente descrever a prtica do qigong. De

    modo geral, corresponde a um conjunto muito amplo de tcnicas de exerccios corporais. Seus

    movimentos e posturas so realizados de modo coordenado a determinadas atitudes psquicas

    - uma tranqilizao emocional e a manuteno de um estado de ateno relaxado. Alm

    disso, outro fator importante que os exerccios so coordenados com a respirao, e, desse

    modo, ela no pode ser feita de forma forada, mas sim naturalmente junto aos movimentos.

    A trade movimento e postura corporal, atitude psquica, coordenao respiratria

    essencial e fundamental a esta classe de exerccios teraputicos sendo que na ausncia de

    qualquer um destes elementos a tcnica se perderia. A srie de exerccios pode ser feita com o

    corpo parado ou em movimento, nas posies deitada, sentada ou em p. Pode ser combinado

    com exerccios de massagem ou auto-massagem. Quando em movimento, normalmente

    realizado mais lentamente, com movimentos circulares, dando ateno ao relaxamento da

    maior parte da musculatura. Suas posturas e movimentos so carregados de nomes e motivos

    simblicos, normalmente correspondem a fenmenos da natureza carregar a lua, abraar

    a rvore, abraar o tigre e ir para a montanha. Existem muitas variaes nas instrues,

    dependendo muito do estilo a que est ligada a tcnica.

  • 25

    importante destacar que a prtica do qigong no se restringe necessariamente aos

    exerccios fsicos ou ginsticas, ainda que possa assim ser confundido. A parte dos exerccios

    e das posturas apenas uma dimenso dessa prtica que inclui tambm a massagem, o

    exerccio de respirao e o da meditao. A flexibilizao e o fortalecimento do corpo so

    considerados meios para se atingir uma harmnica circulao da energia e o uso da respirao

    fundamental, pois se trata de um elemento importante para se alcanarem os objetivos

    previstos nessas prticas. Para Hemsi (2000), existem formas variadas de execuo dos

    movimentos, que visam ao mesmo tempo a flexibilizao e o fortalecimento do corpo, dos

    msculos, das articulaes e dos ossos, obtidos, principalmente, por tcnicas de alongamento,

    respirao e concentrao.

    Os exerccios de trabalho de energia Qigong tambm so organizados de diversas formas e pretendem fortalecer e melhorar a circulao do Qi. Esses exerccios, por vezes, se fundem s tcnicas de ginsticas, respiratrias ou da alquimia interior. Visam melhorar a postura, a respirao e a concentrao. (HEMSI, 2000, p. 35)

    Dentre as diversas modalidades e estilos de qigong, um dos mais famosos no ocidente

    o taiji quan; outros menos conhecidos so os mtodos do xingyi quan e tambm o bagua

    quan. O que h dcadas foi transliterado do chins como tai-chi chuan corresponde, a um

    conjunto de vrias seqncias de movimentos que so realizados de forma lenta. Em sua

    origem, eram utilizados como tcnicas de luta, mas atualmente, e principalmente no ocidente,

    sua finalidade teraputica. O ideograma taiji significa viga mestra, eixo supremo, grande

    polaridade e o ideograma quan significa punhos, luta ou movimento.

    Despeux (1981) explica que suas origens mticas e histricas se confundem. Diz a

    lenda que o monge taosta Zhang Sanfeng da montanha de Wudang, noroeste da China, teve

    um sonho em que uma divindade lhe revelou os exerccios. Outra lenda conta que certa vez

    um monge caminhava pela floresta quando observou uma luta entre uma ave e uma serpente;

    a ave atacava a serpente, que, em desvantagem, usava movimentos circulares para defender-se

  • 26

    e no opunha sua fora contra a do adversrio. Uma terceira verso diz que o monge indiano

    Bodhidharma introduziu nos mosteiros budistas chineses da ordem monstica de Shao Lin os

    exerccios para fortalecer os monges, pois estavam debilitados devido rigorosa disciplina de

    permanecer longos perodos meditando. Isto teria acontecido por volta de 530 D.C., quando

    Bodhidharma viajou da ndia para a China. Muito tempo depois, Zhang Sanfeng, em uma de

    suas viagens, esteve em um desses mosteiros e teria aprendido a os exerccios. Porm os

    adaptou ao pensamento taosta, que evitam esforos desnecessrios e privilegia a meditao.

    Os exerccios ficaram por muitos sculos restritos nobreza, aos religiosos e tambm

    aos cls familiares. Xinnong (1999) diz que em 1911 a medicina ocidental entrou na China e

    as terapias tradicionais passaram a ser rapidamente descartadas como forma de medicina

    oficial. Com isto, criou-se um grande problema de sade pblica, pois o nmero de mdicos e

    profissionais de sade nos moldes ocidentais era muito inferior demanda da populao. A

    fundao da Repblica Popular da China ser um marco importante para a recente histria da

    medicina tradicional chinesa. Em 1950 o governo chins, percebendo a necessidade de

    recuperar as prticas tradicionais de sade como forma de atender a grande demanda da

    populao, estabelece que as prticas tradicionais, como a acupuntura por exemplo, deveriam

    ser recuperadas, porm sem a interferncia do misticismo e das influncias religiosas que lhes

    eram caractersticas, assim integrando-as ao conhecimento cientfico moderno, mas sem

    perder seu uso como prtica medica popular. Em 1956, so criadas seqncias simplificadas

    de exerccios de qigong e taiji quan de forma que essa prtica fosse popularizada em toda

    China (TAIJIQUAN..., 1986, p.14). Normalmente os exerccios so praticados ao ar livre, nas

    praas e nas ruas, de manh bem cedo, por milhares de pessoas.

    Todos esses conhecimentos formam trazidos pelos imigrantes orientais para o

    ocidente, e atualmente so amplamente divulgados e difundidos, por diversos meios desde o

    mais popular at o mais elitista, na forma de cursos, vivncias, livros, vdeos, etc. Nos anos 70

  • 27

    houve grande interesse, principalmente vindo dos adeptos do movimento de contra-cultura e

    tambm por alguns terapeutas, destacando-se os workshops e o trabalho feito por Huang

    (1979), que traduziu muito da prtica do taiji quan para os ocidentais, aproximando-o dos

    conceitos da psicologia humanista ao associar as prticas a vivncias expressivas e a trabalhos

    com grupos.

    No Brasil, Hemsi (2000) descreve como foi a introduo dessas tcnicas,

    particularmente atravs da escola desenvolvida por Liu Pai Lin. Nascido na China, Mestre

    Liu, como era conhecido pelos seus discpulos, veio como imigrante para o Brasil dcada de

    70, quando havia uma grande procura por tcnicas corporais do oriente. Teve inmeros

    discpulos, que com ele permaneceram por muitos anos, fundou uma escola com o objetivo a

    transmisso do taosmo na forma mais pura e vivencial. Nela so ensinadas as seqncias de

    exerccios do taiji quan, a meditao tao in, as massagens tui na entre outras tcnicas que

    pretendem a recuperao da sade. Hemsi (2000) conta que ao chegar em So Paulo, Liu Pai

    Lin ficou impressionado com o nvel de deteriorao do meio ambiente e a baixa qualidade de

    vida das pessoas e por isso focou seu trabalho em formas de terapia que seguissem o princpio

    do trabalho do Tao, em outras palavras: Dao Gong, que treinam a raiz energtica do corpo

    e evidenciam a integrao do homem com a natureza (Ibid., p.9).

    Quando falamos das tcnicas corporais da medicina oriental, sempre estamos nos

    referindo tambm sua filosofia. Conhecer seus princpios importante para uma

    compreenso simblica dessas prticas, mas alm disso, veremos que existe hoje um esforo

    em estudar este campo luz dos saberes cientficos das pesquisas clnicas.

  • 28

    1.2 As pesquisas clnicas

    Em uma pesquisa numa base de dados eletrnica, a Biblioteca Virtual em Sade

    (BVS), foi consultado o descritor qigong, e o resultado foram 1717 referncias.

    Combinando qigong e psychology foram encontradas 68 referncias. Em seguida, foram

    selecionados alguns destes artigos, que poderiam ser de maior interesse a este estudo.

    Sancier (2001) localizou e fez uma reviso em 1660 artigos que tratam do tema qigong

    relacionado a suas aplicaes na rea da sade, na maioria dos casos como coadjuvante no

    tratamento de doenas crnicas. Foi elaborada uma classificao conforme sua aplicao,

    aparecendo em primeiro lugar o tratamento de doenas dolorosas. Em sua lista aparecem

    estudos da aplicao do qigong em casos de ansiedade, problemas psicossomticos e tambm

    distrbios psico-neuro-imunolgicos.

    Zhang (2004), que chefia pesquisas na China Academy of Traditional Chinese

    Medicine em Beijing, faz uma crtica ao modo como os ocidentais esto se apropriando de

    muitos dos conceitos da medicina tradicional oriental, particularmente do qigong. Segundo

    ele, a prpria traduo desta palavra para o ocidente, como trabalho com energia precisaria

    ser revista, j que uma traduo mais adequada deste termo seria exercitando a mente, ou

    ainda treinamento psicolgico atravs de exerccios regulares. Defende, tambm, que os

    ocidentais esto se atendo aos aspectos folclricos e antigos da medicina oriental, quando, na

    prpria China, esses conhecimentos esto sendo revistos e atualizados para uma linguagem

    cientfica. E afirma, ainda, que exerccios como esses so capazes de promover uma regulao

    fisiolgica das diversas funes do corpo. Sua principal funo seria promover o equilbrio do

    estado psicolgico o que, por sua vez, reduziria a reao do stress patolgico e de seus efeitos

    nocivos. Por isso uma prtica adequada para o tratamento e principalmente a preveno de

    uma longa srie de problemas crnicos de sade, mas que no deve ser vista como uma

    panacia para cura de todos os males, como muitas vezes tem sido divulgada no ocidente.

  • 29

    Diante dessa perspectiva, daquelas pesquisas encontradas nas bases de dados,

    selecionamos algumas, como exemplos dos tipos de investigao que vm sendo realizadas

    sobre este tema, na seguinte tabela. So estudos controlados, nos quais, inclusive, grupos

    foram expostos a um tratamento placebo a fim de aumentar o rigor dos resultados. As

    explicaes adotadas para os resultados so baseadas principalmente nas cincias biolgicas e

    nelas defendida a tese de que tais exerccios tradicionais promovem um estado que diminui

    a resposta de stress crnico, regulando o sistema imunolgico, endcrino, entre outros.

    Portanto, defendida a hiptese de que esses exerccios e prticas meditativas regulam e

    auxiliam os mecanismos naturais de homeostase. Mesmo assim, alguns autores so cautelosos

    em advertir que ainda no existem provas consistentes a respeito dos resultados teraputicos

    e, principalmente, das explicaes correspondentes. Tambm advertem que necessrio haver

    cautela para que essas tcnicas no venham a ser vistas como uma panacia que traz

    benefcios para qualquer problema. Esses estudos, embora abordem questes relativas vida

    emocional, no tentam esclarecer o papel das mesmas no desenvolvimento da personalidade.

  • 30

    AUTOR / TTULO RESUMO TSAI, J.C. et al, The beneficial effects of tai chi chuan on blood pressure and lipide profile and anxiety status in a randomized controlled trial. (2003)

    Foi avaliada a eficcia teraputica do taiji quan em praticantes da tcnica, comparado a grupos controle, em um perodo de doze semanas. Em ambos os grupos, os sujeitos eram saudveis. Os aspectos examinados foram: o perfil lipdico do sangue, a presso arterial e, por fim, o trao e o estado de ansiedade. Foi encontrado para todos os parmetros uma diferena significativa de resultados a favor do grupo que participou das prticas, o que indica benefcios gerais sade fsica e emocional.

    CHEN, K.W.; TURNER, F.D. A case study of simultaneous recovery from multiple physical symptoms with medical qigong therapy. (2004)

    Estudo de caso de um norte-americano de 58 anos que estava passando por srios problemas crnicos de sade: hiperplasia de prstata, hipertenso, obesidade, doena cardaca, dores crnicas, alto nvel de stress. Ele foi sujeito a um tratamento intensivo da prtica qigong, por vrias semanas. Com a prtica passou a se sentir bem mais disposto, emagreceu, a presso sangnea foi normalizada, as dores diminuram significativamente e a sua alterao de prstata voltou para faixa de normalidade. A hiptese explicativa que exerccios como o qigong so muito eficientes em reduzir o nvel de stress, interferindo nos sistema nervoso, endcrino, circulatrio e imunolgico, o que pode ter causado todas melhoras observadas. Os autores fazem um alerta: nem todas as pessoas que seguem os exerccios conseguem resultados to bons como o do caso relatado, alis, este um ponto ainda a ser melhor esclarecido, pois alguns tem grande benefcio, outros no, decorrentes destas prticas.

    SANCIER, K.M.; HOLMAN, D. Multifaceted health benefits of medical qigong. (2004)

    Os autores discutem os benefcios sade pela prtica do qigong, sua aplicao em clnicas e hospitais, as teorias tradicionais que o fundamentam e as hipteses cientficas a seu respeito. Tambm defendem que essas prticas so adequadas no cuidado de problemas crnicos de sade, agindo na reduo das respostas exacerbadas de stress, estimulando uma resposta neuroendcrina mais favorvel a manuteno da sade, equilibrando o sistema nervoso autnomo, normalizando a atividade simptica e estimulado um pouco a parassimptica, sendo os exerccios, portanto, uma forma de interferir positivamente na homeostase.

    JANG, H.S.; LEE, M.S. Effects of qi therapy (external qigong) on premenstrual syndrome: a randomized placebo-controlled study.(2004)

    Foram observados dois grupos de mulheres que freqentemente tm transtorno pr-menstrual, o primeiro grupo foi tratado com os exerccios do qigong, o segundo com um tratamento simulado (placebo). No primeiro grupo foi relatada uma melhora quanto a diminuio geral dos sintomas, enquanto no grupo placebo a melhora quase no foi observada. Ao final do experimento foram observadas melhoras estatisticamente significativas em trs dos cinco parmetros avaliados: reduo das dores, diminuio da ansiedade somada a maior estabilidade do humor e diminuio na reteno de lquidos. Ao final, os autores comentam que existe uma semelhana entre esses resultados e os de outros mtodos no farmacolgicos de interveno, como as tcnicas de relaxamento, a psicoterapia e a terapia manual (massagem). Fazem vrias especulaes a respeito dos mecanismos neuro-humorais envolvidos no resultado, destacam a modulao hormonal, assim como a sua ao no sistema imunolgico. Por fim, feita a ressalva de que tais aspectos ainda no podem ser devidamente esclarecidos, sendo necessrio, para isso, estudos mais aprofundados.

  • 31

    bastante comum a associao dos exerccios de qigong ou do taiji quan a objetivos

    teraputicos, como foi possvel observar na tabela acima. Com relao a essas aplicaes em

    meios hospitalares, Despeux observa:

    Introduziram-se, alis, o taiji quan e o qigong em meios hospitalares, onde se observou aumento de resistncia fsica a doena, isto , reforo do sistema de defesa natural do corpo, notadamente entre os cancerosos, sem que se tenha feito meno de cura. Infere-se dessas experincias e de depoimentos colhidos junto a doentes cujo estado melhorou com a prtica do taiji quan (ou do qigong) que estas tcnicas teriam um efeito benfico sobre o sistema cardiovascular, o sistema pulmonar, o sistema endcrino, as doenas das articulaes, as perturbaes da vista, as ulceraes, o sistema nervoso e o equilbrio psquico, a insnia, o sistema visual-motor e a psicomotricidade (DESPEUX, 1981, p. 261).

    De certa forma, pode-se observar uma espcie de alopatizao dessas prticas,

    mesmo nos seus pases de origem. Ao traduzir suas respostas teraputicas nos termos da

    medicina moderna corre-se o risco de imaginar que ambas as tcnicas so correspondentes e o

    que pior, que as terapias orientais podem ser reduzidas a um tratamento que busca apenas a

    reduo de alguns sintomas. A fundamentao filosfica de tais prticas o taosmo e no a

    cincia ocidental. No entanto, mesmo no oriente, hoje, procura-se descrever os processos das

    tcnicas tradicionais nos moldes da cincia experimental, numa tentativa de explicar seus

    efeitos em algumas psicopatologias.

    O fato de treinar simultaneamente a mente e o corpo, estimula ativamente o crtex cerebral causando um acrscimo de atividade em certas zonas e influxos de inibio protetora e preventiva noutras. Isto permite ao crebro descansar e liberta o crtex cerebral da excitao patolgica causada pelos estados de doena, auxiliando assim a curar determinadas perturbaes nervosas e doenas mentais (TAIJIQUAN..., 1986, p. 16).

    Observa-se, assim, tentativas de aplicar tais mtodos na preveno e tratamento, assim

    como o uso da linguagem cientfica como forma de explic-los, particularmente o uso dos

    conceitos das cincias biolgicas. importante notar a fora que ganham tais estudos devido

  • 32

    ao uso desses discursos cientficos, contudo tambm se faz necessrio contemplar um estudo

    que observe esses mtodos diante da perspectiva da filosofia tradicional na qual esto

    apoiados, isto porque, como veremos a seguir, uma tcnica corporal se define tanto pela sua

    eficcia, quanto por sua transmisso tradicional. Suas concepes filosficas podem, muito

    provavelmente, enriquecer o estudo com elementos para uma compreenso mais ampla de

    seus smbolos.

    1.3 Os Aspectos yin e yang

    O tema central do taosmo, o Tao, tem sido traduzido de diversas formas. Wilhelm

    (1925/1991), utiliza a palavra sentido deixando claro que ele j havia sido traduzido por

    caminho, entre outras tentativas de aproximao ao conceito original. No fcil uma

    aproximao adequada, pois segundo os textos clssicos, entre eles os escritos de Lao Tzu e

    os de Chuang Tzu, o Tao impossvel de ser definido, explicado ou representado, o que acaba

    por distanciar, ainda mais, a possibilidade de uma traduo adequada. A respeito disso,

    comenta Jung:

    As concepes religiosas do Oriente so em geral de tal forma diferentes das ocidentais, que mesmo uma traduo puramente literal nos coloca diante das maiores dificuldades, sem falar do sentido de certos termos que, dependendo do contexto, at mesmo prefervel deixar sem traduzir. Cito apenas um exemplo, o da palavra chinesa Tao para a qual at agora no foi possvel encontrar, nem mesmo aproximadamente, uma traduo europia (JUNG, 1939/1986c, p. 61).

    Quando falamos do corpo, do movimento e das formas de terapia oriental, alguns

    conceitos so essenciais. Os antigos filsofos do oriente concebiam o homem e o universo

    como aspectos de um mesmo fenmeno. O ser humano no podia ser concebido como algo

    diferente do mundo natural, embora possa se iludir no momento em que acredita na existncia

  • 33

    de uma separao. A filosofia oriental concebe dois mundos: o da inexistncia, anterior a

    conscincia, um universo com grande potencial de energia, porm imvel, e o mundo da

    existncia, da conscincia, das tenses entre os opostos, do movimento. A dimenso da

    imobilididade era chamada de wuji (ou wu chi), o aspecto dinmico o taiji (ou tai chi), ambos

    aspectos do Tao. Wilhelm explica que:

    Essa lei o Tao de Lao-Tse, o curso das coisas, o princpio Uno no interior do mltiplo. Para que possa tornar-se manifesto necessrio uma deciso, um postulado. Esse postulado fundamental o Grande princpio primordial de tudo que existe, tai chi que no sentido original significa viga mestra. Essa idia de um princpio primordial foi tema de muitas reflexes por parte dos filsofos chineses posteriores. Wu Chi, um princpio ainda anterior a tai chi, era simbolizado por um crculo. Segundo essa concepo, tai chi era representado por um crculo dividido em luz e

    escurido, yang e yin: . (WILHELM, 1923/1990b, p. 9)

    Huang (1979) considera o taiji como algo bastante diferente do taiji quan enquanto

    este uma seqncia de movimentos, normalmente feita lentamente, com o corpo relaxado,

    pressupondo um equilbrio na postura e na respirao; aquele um princpio de tomada de

    conscincia das oposies, das tendncias contrrias que se complementam. Na realidade, o

    taiji quan seria um dos caminhos para se atingir o taiji, assim como a ioga, o zen, a terapia, a

    dana, as artes ou qualquer outra forma de expresso humana. O momento do surgimento do

    taiji o mesmo em que a pessoa toma conscincia de si mesmo e do mundo a sua volta.

    Taiji, ento, do ponto de vista psicolgico, um estado dinmico de ateno, de

    presena e de contato com o ambiente, as pessoas e seus processos internos. Pode ser

    interpretado como a integrao das emoes com o corpo, do lazer com o trabalho, do

    repouso com a atividade. Apresenta-se como um deixar acontecer sem interferir em nossos

    processos mais profundos, apenas seguindo-os com ateno e cuidado. O taiji um processo

    de meditao no movimento no qual as expresses do corpo e da emoo ocorrem juntas,

    um estado de espontaneidade que nada tem haver com isolamento ou imobilidade.

  • 34

    Huang afirma que o taiji uma meditao:

    Tai chi tambm uma meditao. A meditao no exige necessariamente o isolamento. Vocs podem meditar neste momento. Estamos meditando se realmente ouvimos uns aos outros, se ouvimos a ns mesmos, se ouvimos as ondas quebrando ao longe. Eu os ouo, eu os sinto aqui, e este processo de tomada de conscincia uma meditao. Este processo os deixa quietos e absortos. s vezes preciso tomar a iniciativa para obter uma meditao mais imediata, mais efetiva, em razo da necessidade. Se o dia de vocs realmente frentico demais, com coisas que o atordoam e desequilibram, bom retirar-se temporariamente para dentro de si mesmos de modo a retornar ao centro com mais rapidez. Vocs meditam, procuram abandonar-se e aceitar o que acontece dentro e em torno de vocs. Outras vezes, pode ser melhor gritar e se mexer (HUANG, 1979, p. 55).

    O movimento gera tranqilidade e a imobilidade pode incitar o desenvolvimento da

    imaginao. Para estimular a mente movimenta-se o corpo e para curar o corpo, primeiro

    tratam-se as emoes. Quem deseja se tornar mais consciente deve primeiro criar condies

    para expresso daquilo que inconsciente. Este raciocnio paradoxal, no qual sempre se

    respeita o par contrrio, o fundamento das tcnicas taostas e de suas teraputicas. Todo

    pensamento tradicional relativo ao taosmo e as suas prticas fundamenta-se na idia de que

    tudo est em mudana, nada permanente e no mago de todas essas mudanas, a grande

    polaridade (tai chi), a unidade que transcende a dualidade (WILHEM, 1925/1991, p. 127),

    que permite os fatos e a existncia humana serem como so, ou seja regidos por um princpio

    de polaridade conhecido por yin yang.

    Nesse sentido, comenta Maciocia (1996), que a filosofia chinesa possui como

    conceitos fundamentais a energia, ou qi, e as polaridades yin e yang, que so diferentes de

    qualquer idia do pensamento ocidental, que ao seguir a lgica aristotlica, baseia-se no

    princpio da oposio dos contrastes, que diz que dois opostos nunca podem ao mesmo tempo

    ser verdadeiros. Por exemplo, se uma mesa quadrada, ao mesmo tempo ela no pode ser

    no-quadrada (redonda). Este tipo de pensamento tem estruturado o pensamento ocidental por

    mais de dois mil anos e representa um modo de apreenso da realidade bastante eficaz, mas

  • 35

    que, mesmo assim, pode no conseguir dar conta de todos os fenmenos. Maciocia, ao tratar

    dessas diferenas entre a filosofia chinesa representada pela idia do yin-yang e a lgica

    presente no pensamento ocidental clssico, diz:

    O conceito chins de Yin-Yang radicalmente diferente deste sistema de pensamento: Yin e Yang representam qualidades opostas mas tambm complementares. Cada coisa ou fenmeno poderia existir por si mesma ou pelo seu oposto. Alm disso, Yin contm a semente do Yang e vice-versa, de maneira que contrariando a lgica aristotlica, A pode ser tambm o ANTI-A (MACIOCIA, 1996, p. 1).

    Yang pode ser traduzido por brilhante ou luminosidade, ou literalmente como o

    lado ensolarado de uma colina (Ibid., p. 3), enquanto yin significa escurido ou

    sombreado, ou literalmente como o lado sombreado de uma colina (Ibid.), ou ainda

    conforme Wilhelm:

    Em seu sentido original yin significa o nebuloso, o sombrio, e yang significa na realidade estandartes tremulando ao sol, ou seja, algo que brilha, ou luminoso. Esses dois conceitos foram transferidos e aplicados ao lado iluminado e ao sombrio de uma montanha ou rio. No caso de uma montanha a vertente sul o lado iluminado e a do norte, o lado sombrio, enquanto que no caso do rio visto do alto o lado norte o iluminado (yang), pois reflete a luz, e o lado sul o lado sombrio (yin). Assim, as duas expresses foram trazidas ao Livro das Mutaes e aplicados aos dois alternantes estados fundamentais do ser (WILHELM, 1923/1990b, p. 9).

    Os antigos filsofos afirmavam que tudo possua um aspecto yang e outro yin, sendo

    impossvel a existncia de um sem o outro. Assim, qualquer fenmeno pode ser descrito

    seguindo este princpio: sol-lua, dia-noite, luz-sombra, leve-pesado, quente-frio, dinmico-

    esttico, externo-interno, duro-macio, e todas as outras combinaes possveis. No ser

    humano tambm pode-se pensar em algumas relaes parecidas: homem-mulher, mente-

    corpo, esprito-matria, ventral-dorsal, direita-esquerda, prazer-dor, sade-doena, vida-

    morte, conscincia-inconsciente, etc. Para autores como Maciocia (1996), Xinnong (1999) e

    Auteroche e Navailh (1992), o conceito de yin e yang o mais central nas prticas

  • 36

    teraputicas orientais, sua compreenso de suma importncia para que um tratamento possa

    ser bem conduzido.

    O terapeuta taosta entende como sade um equilbrio dinmico das polaridades, e no

    a ausncia de doena, ou a simples presena do bem-estar, seja ele fsico ou mental. Tanto as

    noes de doena como de bem-estar so polares, uma no existe sem a outra. Pode,

    primeira vista, parecer muito simples dizer que o sentido teraputico propiciar o equilbrio

    entre o yin e o yang do paciente, ou que quem consegue tal equilbrio pode prevenir muitos

    problemas futuros; mas conseguir tal habilidade na prtica um grande desafio, sendo, desse

    modo, uma das metas que os filsofos taostas perseguiam durante toda a vida (WILHELM,

    1925/1991; BLOISE, 2000). Poder contemplar e vivenciar estas polaridades em seu prprio

    corpo ou em seus relacionamentos parecia ser mais uma meta, um alvo a ser seguido, um

    norte, do que um objetivo concreto.

    1.4 O conceito de psique para o taosmo

    Os taostas interpretavam a natureza e o ser humano contemplando as transformaes

    do yin e do yang. Corpo e alma seriam anlogos a estas polaridades, portanto inseparveis. O

    amlgama do corpo e da alma que caracterizaria a vida. A separao do yin e do yang, assim

    como a separao do corpo e da alma, para os filsofos taostas, caracterizaria a morte.

    A filosofia taosta, assim como sua medicina tradicional, descreve trs substncias que

    caracterizam o complexo alma-corpo: A Essncia (Jing) e o Qi tambm so considerados o

    fundamento material da Mente (Shen). Essncia (Jing), Qi e Mente so as trs substncias

    fsicas e psquicas fundamentais do ser humano. Por esta razo, so chamadas de Trs

    Tesouros (MACIOCIA, 1996, p. 56).

  • 37

    Jing: considerada a energia mais prxima a materialidade do corpo humano. O

    aspecto herdado dos nossos ancestrais, caracteriza tudo que hereditrio numa pessoa. Sua

    principal expresso a sexualidade. Sendo assim, o que possibilita a existncia do aspecto

    material do corpo, como as clulas, tecidos e rgos. Simbolicamente est relacionado a terra.

    Qi: para os taostas tudo na natureza uma expresso do qi. Representa a tenso

    existente entre yin yang. No nem material e nem imaterial, corresponde a transio entre

    os dois. Sua metfora o vapor, a transio entre a gua e o ar. Desde a antigidade

    acreditava-se que o qi circulava pelo corpo de forma semelhante a circulao sangnea,

    sendo a respirao um dos principais processos de renovao do qi. Simbolicamente

    representa o ser humano.

    Shen: J foi traduzido por esprito ou mente. Seria a representao da vida psquica. Os

    textos clssicos do taosmo caracterizavam o shen como a sede ou centro das percepes,

    emoes e dos pensamentos, mas, alm disso tambm, representava o esprito dentro de uma

    viso religiosa. Embora os antigos chineses j conhecessem o crebro (AUTEROCHE;

    NAVAILH, 1992, p. 91-97), os aspectos psquicos eram relacionados aos demais rgos e

    sistemas do corpo e centralizados pelo corao. Hamill e Seaton em sua traduo dos poemas

    de Chuang Tzu (Ibid., 2000), usam a expresso corao e mente e esclarecem que esse

    ideograma em formas primitivas o reconhecvel desenho de um corao humano (Ibid., p.

    172), sendo que para os antigos filsofos taostas a atividade mental engloba tanto a razo

    como a emoo, a lgica como a intuio (Ibid.). Maciocia (1996) enfatiza que a palavra

    shen, embora tambm possa ser traduzida como esprito, foi bastante utilizada para indicar

    as faculdades mentais atribudas ao corao (Ibid., p. 99) e mais que isso, muitas vezes a

    palavra corao utilizada nos textos clssicos como sinnima de mente.

    Simbolicamente o shen est relacionada ao cu. Tambm pode ser dividido em

    diversos aspectos psquicos, como: o hun, a alma espiritual, uma representao da

  • 38

    capacidade imaginativa e da tendncia a amplificao da conscincia e o po, a alma

    corprea, o conjunto dos processos vitais, sensoriais e afetivos que tendem a permanecer na

    inconscincia.

    Von Franz (1990) comenta que a essncia da alquimia taosta est presente na idia de

    atravs da meditao poder transformar a dualidade hun po: transformando os afetos e

    sensaes em imagens e tomando conscincia dos aspectos autonmos da psique, ocorre a

    obteno do ouro alqumico; no caso da filosofia taosta os princpios inferiores e obscuros

    da personalidade deixam de ser oposies e se integram simbolicamente, tornam-se shen, e

    assim atinge-se o Tao, o princpio criativo e harmonioso do universo.

    Despeux (1981) considera os exerccios tradicionais taostas como tcnicas de

    integrao psicofisiolgica, baseada em treinamentos respiratrios e de relaxamento,

    combinados com prticas de concentrao, visualizao e meditao. Nas prticas de alquimia

    interior, chamadas de Nei-Dan, buscava-se a transmutao dessas trs substncias: jing qi

    shen. O jing, princpio orgnico, deve ser transformado em qi, princpio energtico e

    dinmico, que deve ser transformado em shen, princpio psquico, que por sua vez, finalmente

    possa retornar ao jing, a essncia original. Simbolicamente forma-se um crculo completo

    com o retorno a origem.

    1.5 O conceito de corpo para o taosmo

    Como j dissemos, os filsofos e terapeutas taostas consideram a psique e o corpo

    tambm a partir dos pares yin yang. Para eles, o corpo pode ser traduzido como a dimenso

    yin, a psique a parte yang; a parte ventral do corpo yin, a parte dorsal yang; a pele, os

    msculos e os ossos considerada yang, o interior do corpo yin, porm haveriam rgos yin

    e vsceras yang; o sangue yin e a energia qi pode ser considerado como yang; o corpo do

  • 39

    homem yang por fora e yin por dentro; o corpo da mulher yin por fora, mas yang por

    dentro, e assim por diante, conforme vemos em Maciocia (1996).

    A noo de corpo para os taostas a do corpo energtico. Cada rgo do corpo

    possui, alm de sua estrutura material, uma equivalncia energtica e sua expresso psquica,

    como na noo de jing qi shen, da qual falamos anteriormente. O corpo ento percebido

    como que atravessado por uma srie de canais que transportavam sangue e energia (qi), da

    superfcie para o interior e vice-versa, dos rgos para o esprito, ocorrendo tambm o

    movimento contrrio. Conforme observamos em Requena (1990), esses canais de energia

    funcionam como elo de ligao entre a psique e o corpo, formando uma espcie de circuito

    psicossomtico que conecta todo corpo, desde uma clula at um grande sistema, ou mesmo

    uma emoo ou pensamento. Ao todo existem doze canais de energia principais, ao longo dos

    quais se encontram os pontos de estimulao tanto da massagem quanto da acupuntura. So

    seis canais superficiais (yang) e seis canais profundos (yin). Possuem o nome relacionado ao

    rgo ou vscera a que correspondem: os superficiais (yang); intestino grosso, bexiga,

    vescula biliar, intestino delgado, triplo aquecedor e estmago e os profundos (yin); pulmes,

    rins, fgado, corao, pericrdio e bao-pncreas (MACIOCIA, 1996; XINNONG, 1999).

    Requena (1990) relaciona esses canais de energia, alm dos rgos correspondentes,

    s reaes afetivas, como a tristeza, o medo, a raiva, a alegria, o pensamento, a preocupao,

    entre outras. Alm dos doze canais, existem mais oito chamados de canais extraordinrios, em

    que a energia se encontraria em um nvel ainda mais profundo. Como exemplo deste ltimo,

    citamos dois, o vaso governador, que estende-se posteriormente ao longo do interior da

    coluna espinhal at [..] a nuca, onde entra no crebro. Posteriormente ascende ao vrtice e

    curva-se ao longo da fronte para a coluna do nariz. (XINNONG, 1999, p. 59-60) e o vaso

    diretor, que comea no abdome inferior e emerge do perneo. Estendendo-se anteriormente

    para a regio pbica e ascende ao longo do interior do abdome [...] ao longo da linha mdia

  • 40

    dianteira para a garganta [...] atravessa a bochecha e entra na regio infra-orbital

    (XINNONG,1999 , p. 60).

    Resumindo, os taostas concebem o corpo como uma intrincada rede de canais

    energticos, de forma tal que a parte material do corpo esteja misturada aos contedos

    psquicos e amalgamada pelo campo energtico. Essas teorias no so aceitas dessa forma

    nem pela anatomia, nem pela fisiologia moderna. Atualmente, procura-se nessas disciplinas,

    uma aproximao do modelo de canais de energia com o que j se conhece, como os feixes

    nervosos que correm ao longo do corpo.

    Pressupe-se que os antigos filsofos e terapeutas do oriente estavam se referindo aos

    nervos do sistema nervoso perifrico e do sistema nervoso autnomo que conectam o crebro

    com os rgos e demais tecidos do corpo, ao tratarem da intrincada rede de canais

    energticos. Tal hiptese pode ser encontrada em Machado (2002, p. 307 - 308) ou em Ernst e

    White (2001).

    1.6 A importncia da respirao nas tcnicas corporais taostas

    No simbolismo da filosofia oriental o crculo vazio, tambm chamado de wuji, se

    assemelha ao urboro2, e corresponde ao estado anterior conscincia. O taiji uma

    evoluo deste; no se trata mais de um crculo completo e fechado em si mesmo, mas da

    representao do dinamismo das foras complementares. Para Huang (1979) a essncia do

    taiji a experincia da pulsao entre a expanso e o recolhimento, a vivncia das foras e

    tendncias contrrias, do trnsito pela oposio transformando-a em complementao. O

    2 Brando (1992) explica a palavra urboro: originria de ur = cauda e boro = comer, portanto significa o que devora a prpria cauda (Ibid., p. 488). Que possui uma srie de significados: como a unio sexual em si mesma ou a serpente que se auto-fecunda ou o reptil que injeta o veneno, phrmakon, em seu prprio corpo. Segundo Bachelard apud Brando, o urboro o melhor smbolo que expressa a dialtica material da vida e da morte, a morte que brota da vida e a vida que brota da morte (Ibid.).

  • 41

    conflito no se vence pela luta, mas sim cedendo e deixando a tenso fluir, permitindo, assim,

    o movimento natural e espontneo. Sua imagem uma mandala, onde as foras em oposio

    esto em um constante movimento de desequilbrio e reequilbrio. O movimento das tcnicas

    corporais orientais de acompanhar o yin yang um modo pelo qual a conscincia se

    apropria da pulsao do corpo, porm, recuperando um ritmo mais natural e prximo das reais

    necessidades de cada um, que s atravs da prtica ser singularmente aprendida pelo

    indivduo.

    Para Eliade (1979) o Taosmo remonta s antigas tradies dos primeiros ferreiros e

    metalrgicos tribais, onde teriam surgido os conceitos de yin yang. Provavelmente ao

    notarem as propriedades dos metais e suas combinaes, assim, foram sendo desenvolvidos os

    princpios de positivo e negativo e suas leis de interao. A unio desses aspectos primeiro era

    buscada nos metais e nas misturas qumicas e, posteriormente, passaram a se desenvolver

    tcnicas psicofsicas que realizassem esta unio dentro do homem, o que era chamado de

    alquimia interna.Dentre as tcnicas destacam-se os exerccios respiratrios como a

    respirao metdica e a respirao embrionria, exerccios que tinham por objetivo

    alcanar a perfeita espontaneidade e beatitude vital (Ibid., p. 90). A respirao como

    representante do fluxo de expanso e recolhimento pode funcionar como um terceiro

    elemento unificador das polaridades, representadas sente caso pela inspirao e a expirao.

    Essas observaes sobre a respirao podem ser observadas no texto de alquimia

    taosta, O Segredo da Flor de Ouro (1990), que trataremos em detalhes mais a frente. Um

    dos mtodos ensinados nesse texto o da contemplao na respirao (p.100 111): o

    praticante deve sentar-se com as pernas cruzadas, com as costas eretas e passar a perceber o

    ritmo respiratrio. O texto orienta prestar ateno s sensaes do nariz, no interferir no

    fluxo do ar, mas sim contempl-lo procurando sentir todos os aspectos envolvidos nesse

  • 42

    processo. Recomenda-se que os exerccios sejam feitos, diariamente por no mnimo cem dias,

    para que o praticante sinta, assim, seus efeitos.

    Durante esta pesquisa buscou-se entrar em contato com grupos de qigong. Em um

    desses treinamentos muito semelhante aos citados acima, o instrutor, um senhor de origem

    oriental, ensinava os exerccios respiratrios que poderiam ser feitos na posio de p,

    deitados ou sentados. Ento, as palmas das mos eram colocadas sobre a regio abaixo do

    umbigo, onde deveria ser sentida a respirao. Perguntado acerca do porqu das mos no

    abdmen, respondeu que embaixo do umbigo que se encontra um dos mais importantes

    centros de fora do corpo, e como nesta tcnica deve-se armazenar o qi, a energia, naquela

    regio. Em seguida explicou que as mos funcionam como polaridades, a mo esquerda

    yang e a direita yin, por isso a posio das mos no abdome deve ser diferente nos

    praticantes do sexo masculino e nas do sexo feminino, pois assim os resultados seriam mais

    eficientes.

    A respirao tambm foi explicada nos termos de yin e yang: inspirar pode ser yang e

    expirar pode ser yin, se bem que esta regra nem sempre vlida, dada a relatividade dos

    conceitos. Ensinava que se mudssemos os tempos destes processos pode-se intervir no corpo,

    no que diz respeito a essas energias. Um assistente explicou esse processo dizendo que a

    inspirao est relacionada ao controle do sistema nervoso autnomo simptico e a expirao

    ao parassimptico portanto o controle voluntrio destes tempos pode ser usado tanto para

    acalmar como para estimular o organismo. Nos primeiros treinamentos eram explicadas

    tcnicas de manipulao e de controle da entrada e sada do ar, porm em seguida a instruo

    era que a respirao devia ser natural, sendo o mais importante uma atitude relaxada do corpo

    e atenta ao processo, principalmente s sensaes abdominais. Para os nveis mais avanados

    foram ensinadas algumas formas de se utilizar a imaginao durante os exerccios, o que

    exige uma capacidade de concentrao bastante elaborada. A maiora parte dos praticantes

  • 43

    relatava uma sensao de tranqilidade muito grande ao final das prticas, um sentimento de

    estar presente, um aquecimento do corpo, principalmente da regio abdominal e palmas das

    mos. O instrutor explicava que seu estilo de qigong era teraputico, e pode ser tanto

    preventivo como objetivar a recuperao do estado de sade. E segundo ele, era uma arte

    medicinal completa, que quando bem executada poderia atingir os mais diversos objetivos

    teraputicos.

    Segundo Souchard (1987), a neurofisiologia da regulao da respirao um assunto

    bastante complexo; seu funcionamento segue um ritmo autnomo, totalmente involuntrio,

    mas que complementado por um controle voluntrio e ainda est sujeito as oscilaes

    emocionais: Funo automtica, a respirao tambm submetida a um controle voluntrio

    ou emocional dependendo do crtex somato-motor e lmbico (Ibid., p. 78). Mais adiante

    destaca a importncia das tentativas de controle da respirao nas emoes de medo ou

    ansiedade, assim como os espasmos respiratrios em alguns quadros psicopatolgicos, onde

    em todos os casos ocorre sempre um bloqueio inspiratrio. Para o autor um trabalho de

    reeducao respiratria poderia corrigir determinados modos de respirar. Tal reeducao traria

    benefcios fsicos e psquicos, sendo a essncia desta tcnica o relaxamento e o suspirar:

    Levando em conta o que acabamos de ver, o princpio fundamental da reeducao deslocar o indivduo no sentido da expirao, fazendo relaxar os msculos inspiratrios. Com relao a isso, interessante notar que o desenvolvimento da inspirao foi estimulado apenas no Ocidente. Todas as grandes tradies preocupam-se com o suspirar, sem no entanto abordar com preciso a realidade biomecnica e teraputica da respirao. (...) Isso significa que se dever obter uma expirao cada vez mais profunda graas ao relaxamento progressivo dos inspiratrios (SOUCHARD,1987, p. 99-100).

    A importncia do trabalho respiratrio nas tcnicas corporais orientais no deve ser

    subestimada. Tanto no qigong, cuja traduo da palavra como exerccios com a energia,

    tambm possui o significado de exerccios com o sopro, ou seja a respirao, como tambm as

  • 44

    tcnicas de controle respiratrio do ioga, como o pranayama, demonstram a importncia do

    trabalho com esta parte do corpo, dentro desses mtodos. As tcnicas corporais ligadas a

    psicologia, embora partindo de outros pressupostos, diferentes das filosofias tradicionais,

    tambm do importncia respirao, tanto por seus benefcios para sade, como por

    constituir caminho de explorao pessoal. Byington (1988), por exemplo, considera que a

    respirao est entre as vivncias mais importantes para o processo de estruturao da

    personalidade. Seja pela sua ntima relao com o simbolismo da vida e da morte, mas

    tambm porque tanto a angstia quanto a ansiedade se expressam junto com as sensaes

    respiratrias. Assim sendo, trabalhar conscientemente a respirao uma forma de se

    aproximar e aprofundar em qualquer conflito pessoal expresso como ansiedade.

    1.7 Sade e doena na perspectiva das terapias orientais

    No vamos aprofundar o tema referente s concepes de sade e doena dentro das

    tcnicas teraputicas do taosmo, at por ser um tema demais extenso e que talvez fuja um

    pouco ao nosso propsito. Ainda assim, alguns pontos podem ser interessantes e pertinentes a

    este trabalho.

    A origem terica das bases da medicina tradicional chinesa bastante antiga. A

    maioria dos estudiosos atribuem a Huang Di, o Imperador Amarelo as origens histricas e

    tambm mticas da teoria e prtica da medicina chinesa e asitica. atribuda a ele a autoria

    dos primeiros livros a respeito destas tcnicas, segundo Kaptchuk e Birch (2001): o Huang Di

    Nei Jing Su Wen, conhecido como o livro da questes simples e o Huang Di Nei Jing Ling

    Shu, conhecido como o livro do eixo espiritual, ambos escritos em 200 a.C.

    aproximadamente. Os livros so apresentados na forma de um dilogo entre Huang Di e seu

    assistente e ministro, sobre questes relativas as bases da filosofia e prtica das terapias, como

  • 45

    a acupuntura, a moxibusto, as dietas, a meditao, o qigong, a teoria do yin e do yang, os

    canais de energia, as causas das patologias, apresentaes de casos clnicos, etc.

    Desde ento, at os dias de hoje, a medicina oriental divide as doenas em dois tipos

    quanto s suas origens: as externas, causadas por desequilbrios adquiridos no ambiente, e as

    internas, que sempre tm como gnese um desequilbrio emocional. Assim entendem que para

    qualquer transtorno emocional ou de comportamento, esteja, sempre, um rgo, uma vscera

    ou mesmo um sistema orgnico afetado (MACIOCIA, 1996).

    No entanto, esta concepo de integrao entre corpo e emoes, embora j seja

    explorada no campo das cincias biolgicas, diferente da viso da medicina oriental em

    importantes aspectos:

    Enquanto a medicina ocidental tambm reconhece a interao entre corpo e mente, isto acontece de forma completamente diferente na medicina chinesa. Na medicina ocidental, o crebro est no topo da pirmide corpo-mente. As emoes afetam o sistema lmbico dentro do crebro, os impulsos nervosos percorrem em descendncia o hipotlamo, atravessam os centros nervosos simptico e parassimptico, e finalmente alcanam os sistemas internos. Assim o impulso nervoso, desencadeado pela indisposio emocional, transmitido ao rgo relevante. A viso da medicina chinesa inteiramente diferente. O corpo-mente no uma pirmide, mas um crculo de interao entre os sistemas internos e seus aspectos emocionais. Uma vez que