psicologia e arte nos processos de criação
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA DE PSICOLOGIA SOCIAL II
PSICOLOGIA E ARTE
Luciano [email protected]
Porto Alegre, 19 de novembro de 2008
INTRODUÇÃO
Existe uma infinidade de definições e conceitos sobre a arte. Na perspectiva dos
filósofos, Platão considera-a "o esplendor do verdadeiro", Aristóteles descreve-a como
"a ordem e a harmonia das partes" e para Leibniz "arte é a perfeição". Dessa forma,
sabe-se que a arte tem sido uma forma de expressão do homem servindo como um jeito
deste registrar sua história.
Sendo tão importante como a arte tem se mostrado ser, a psicologia tem tentado
também usá-la para entender o funcionamento psíquico. Em Escritos Criativos e
Devaneios, Freud (1908) compreende a obra de arte como substituto do que foi o
brincar infantil, uma vez que aproxima o artista – o escritor criativo – da criança que, ao
brincar cria um mundo próprio reajustando seus elementos de uma forma que lhe
agrade, mantendo assim uma nítida separação entre seu mundo de fantasia e a realidade.
Sabe-se que alguns hospitais psiquiátricos usam a pintura, entre outras formas
de arte, para dar espaço para seus pacientes se expressarem. Pesquisas nesta área ainda
são escassas. No entanto, cada vez mais tem se dado importância para novas maneiras
se de promover a saúde e de se compreender o doente mental. O presente trabalho
busca, portanto, trazer exemplos de como a arte, em especial a pintura, pode colaborar
para que o doente mental se expresse, sabendo da dificuldade de se usar uma linguagem
verbal e convencional com os mesmos.
Para tanto, será usado três casos de pacientes de um ateliê de pintura instalado
num hospital psiquiátrico.
1. Psicologia e Arte
“Na literatura, percorro a mesma estrada sobre a qual Freud avança com uma
temeridade de surpreender na ciência. Entretanto, ambos, o poeta e o psicanalista,
olham através da janela da alma”.
Arthru Schnitzler
A palavra arte vem do latim – ars, artis – raiz que originou artefato, artesão e
artifício. Com o passar do tempo começou a se distinguir o fazer com arte do fazer
técnico, uma produção com função meramente contemplativa, percebida
sensorialmente, diferenciando-se do objetivo puramente utilitário (Read, 1978).
Langer define a obra de arte como “uma forma expressiva criada para nossa
percepção através dos sentidos ou imaginação, e o que expressa é o sentimento
humano”. Toda obra de arte expressa os ritmos de um mundo interno pouco acessível à
linguagem discursiva. Esse mundo vital trás, subjacente a si, o ritmo, uma condição
essencial da vida.
Estética é o que trata substancialmente do fenômeno artístico. Do grego – arns –
thétiké, ainsthásism – significando sensação ou percepção. Aisthetikós é o que sente,
que compreende, “sensível”. A quantidade estética não é necessariamente o prazer da
contemplação do belo, mas também do feio (Read, 1978).
Um contraponto é apresentado por Saldanha. Na expressão de pensamento belo,
isto é pensamento capaz de despertar sentimento agradável, no sentido de gozo estético,
encontra-se o conceito artístico. Arte é por tanto a produção da beleza. Ciência da arte é
a análise psicológica do belo tomado em seu sentido mais limitado.
Segundo Hauser (1998) se há uma explicação psicológica universalmente válida
para o impulso criador de obras de arte, não poderá começar a partir de outra coisa a não
ser esta tentativa de recuperar zonas perdidas ou esquecidas da vida consciente. Bolla
(1992), ao tratar a questão do trauma e sua transformação em arte, sugere que um
indivíduo pode lutar contra constelações interiores traumáticas e, por transformações do
trauma em obras de arte, alcançar certo domínio sobre seus efeitos.
Clarice Lispector declara que a arte possibilita que se compreenda melhor as
transformações pelas quais o ser humano passa. A arte “é uma espécie de espelho
mágico. Neste aspecto tem muito a ver com a psicologia, que é a arte de se investigar”.
Afirmação análoga é feita por Camile Claudel “a arte é um retorno para dentro de si
próprio”. Isso remete ao que Kon (1996) descreve como a aproximação do espaço “psi”
com o ato criativo, criam-se realidades inéditas, constroem-se as singularidades pelo
fazer artístico. Por assim dizer, novas territorialidades.
Museu de Imagens do Inconsciente
A crítica da produção de artistas profissionais costuma reforçar no público certo
modo de ver que reconhece como arte aquilo que se diz arte, que se mostra em museus e
galerias e que opera com códigos e meios de expressão consolidados. Nessa medida,
trabalhos que por ingenuidade, ignorância ou resistência obstinada, não recorrem a esses
códigos, obras singulares freqüentemente feitas em segredo para encantamento solitário
de seus próprios criadores, dispensando o aplauso de qualquer destinatário, ao ocupar
lugar de honra num espaço cultural podem, às vezes, despertar no espectador um "olhar
condescendente" que acaba por lhes conferir o estatuto de arte marginal. No entanto, as
coisas não são tão simples. Quando uma "produção desse gênero" migra de um lugar
sinistro como o hospício, onde foi gerada durante anos, para o espaço branco de um
museu de arte, onde fica exposta à visitação, o espectador poderá se surpreender com o
visível se, por acaso, vier a pensar não apenas naquilo que vê mas, sobretudo, no modo
como vê.
O Museu de Imagens do Inconsciente teve origem nos ateliês de pintura e de
modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional, organizada por Nise da Silveira em
1946, no Centro Psiquiátrico Pedro II. Aconteceu que a produção desses ateliês foi tão
abundante e revelou-se de tão grande interesse científico e utilidade no tratamento
psiquiátrico que pintura e modelagem assumiram posição peculiar.
Daí nasceu a idéia de organizar-se um Museu que reunisse as obras criadas
nesses setores de atividade, a fim de oferecer ao pesquisador condições para o estudo de
imagens e símbolos e para o acompanhamento da evolução de casos clínicos através da
produção plástica espontânea.
A experiência mostra a forma com que a arte, mais especificamente a pintura
pode ser utilizada pelo doente mental como um verdadeiro instrumento para reorganizar
a ordem interna e ao mesmo tempo reconstruir a realidade. Sendo muitas vezes difícil
usar a linguagem verbal para se comunicar com doentes psíquicos, a arte entra como
uma grande aliada servindo assim como forma de expressão. A seguir, exemplos de
pacientes que usaram a arte como intermédio para se comunicarem:
Pacientes do ateliê de pintura de Nise da Silveira:
Obra de Adelina Gomes
Moça pobre, filha de camponeses, nasceu em 1916 na cidade de Campos (RJ). Fez o
curso primário e aprendeu variados trabalhos manuais numa escola profissional. Era
tímida e sem vaidade, obediente aos pais, especialmente apegada à mãe. Aos 18 anos
apaixona-se por um homem que não é aceito por sua mãe. Tornou-se cada vez mais
retraída, sendo internada em 1937, aos 21 anos. Segundo depoimento de Almir
Mavignier "agressiva e perigosa esta foi a descrição que recebemos dela e que
aconselharia a não aceitá-la no ateliê. Interessado, porém, nas bonecas que ela fazia no
hospital, fui buscá-la num dia chuvoso, protegendo-a com um guarda-chuva. Esta
atenção, tão normal, naquelas circunstâncias deve ter contribuído para conquistar sua
confiança. Apesar de sua atitude agressiva, negativista, não houve dificuldade para que
aceitasse pintar quando começou a freqüentar o ateliê de pintura da Seção de
Terapêutica Ocupacional em 1946. Inicialmente dedica-se ao trabalho em barro,
modelando figuras que impressionam pela sua semelhança com imagens datadas do
período neolítico.
Na sua pintura ponde-se acompanhar passo a passo as incríveis metamorfoses vegetais
que ela vivenciou, originando famoso estudo da Dra. Nise da Silveira, comparando-as
com o mito de Dafne.
Dedicou-se também à pintura e à confecção de flores de papel, tornando-se uma pessoa
dócil e simpática, sempre concentrada em suas atividades, produzindo com intensa força
de expressão cerca de 17.500 obras.
Adelina faleceu em 1984. Sua produção plástica, e as importantes pesquisas daí
desenvolvidas pela Dra. Nise ao longo de muitos anos, tornaram-se objeto de
exposições, filmes documentários e publicações.
Obras de Octávio Ignácio
Octávio nasceu em 1916 no estado de Minas Gerais. Instrução Primária. Conseguiu
durante tempo bastante longo reprimir pulsões homossexuais. Casou-se, teve um filho.
Sua profissão de serralheiro, trabalho que lida com ferro e fogo, implica em afirmação
de masculinidade.
Mas no carnaval de 1950 ocorreu-lhe fantasiar-se vestindo roupas femininas. Diante do
espelho, vendo-se naquele travesti, Octávio foi tomado de súbita e frenética excitação.
Resultado: internação, quarto forte. Sua folha de observação clínica registra violenta
excitação psico-motora, idéias delirantes de perseguição; diagnóstico: esquizofrenia.
Seguem-se mais 12 reinternações, sendo a última em dezembro de 1966. Octávio vem
freqüentar, em regime de externato, o atelier de pintura do Museu. Somente uma
reinternação ocorreu, desde que ele pratica as atividades expressivas de desenho e
pintura.
O problema crucial de Octávio é o conflito entre os opostos básicos
masculino/feminino, de onde irrompem intensos desejos Muitos de seus desenhos
revelam este drama em um nível próximo à consciência, quando os opostos assumem
forma humana. Aparecem sob a forma de casais em luta ou de seu corpo masculino
adquirindo características femininas. No caso de Octávio a supremacia do feminino não
é aceita, ao contrário do que aconteceu no famoso caso Schreber, estudado por Freud.
Raramente Octávio se rende. Sente-se ameaçado, percebe dentro de si mesmo a força do
feminino, mas apesar disso, luta para que o princípio masculino não seja completamente
vencido.
Sob a pressão desse violento conflito a psique cindiu-se. Cindiu-se mas não se anulou.
O dinamismo das forças inconscientes é constante - instintivamente desenvolve-se um
processo no sentido de promover reconciliação entre esses opostos em guerra. Na
linguagem arcaica das imagens simbólicas, deu forma às tumultuosas emoções que
abalavam sua psique, despotencializando suas forças, bem como as tentativas instintivas
para saída do impasse em que se encontrava. Configura então o pássaro de duas
cabeças, símbolo do hermafrodita, de união de opostos, segundo representações
encontradas em tratados de alquimia.
O processo psíquico desenvolve seu dinamismo por intermédio da criação das imagens
simbólicas. Jung diz que "o símbolo é o mecanismo psicológico que transforma
energia." Assim, a objetivação de imagens simbólicas no desenho ou na pintura poderá
promover transferências de energia de um nível para outro nível psíquico. A imagem
não é algo estático. Ela é viva, atuante e possui mesmo eficácia curativa. Suas melhoras
clínicas comprovam essa afirmação.
Obras de Carlos Pertuis
Carlos nasceu no Rio de Janeiro, em 4 de dezembro de 1910. Seus avós eram franceses,
bem como seu pai que veio ainda menino para o Brasil. Foi o único filho homem da
família, havendo três irmãs. Era muito apegado a mãe. Era de estrutura física frágil,
psicologicamente imaturo. Uma natureza sensível e religiosa. Sua instrução era
primária, entretanto gostava de ler. Com a morte do pai, deixou de estudar e foi
trabalhar numa fábrica de sapatos.
Certa manhã, raios de sol incidiram sobre um pequeno espelho de seu quarto: brilho
extraordinário deslumbrou-o, e surgiu diante de seus olhos uma visão cósmica - "O
Planetário de Deus”, segundo suas palavras. Gritou, chamou a família, queria que todos
vissem também aquela maravilha que ele estava vendo.
Foi internado no mesmo dia no velho hospital da Praia Vermelha, em setembro de 1939.
Tinha então 29 anos.
Em 1946, veio freqüentar o ateliê da Seção de Terapêutica Ocupacional, trazido por
Almir Mavignier, que soube que ele guardava em caixas de sapatos na enfermaria,
desenhos que fazia.
Carlos amava o museu, o ateliê de pintura, a oficina de encadernação. Aí passava o dia
inteiro, aí se sentia em sua casa. No museu conserta tacos soltos, verifica no fim do
expediente se as janelas estão fechadas. Esses fatos surpreendiam e eram comentados no
hospital, dada a expressão verbal de Carlos ser praticamente ininteligível. O grande
número de neologismos tornava ainda mais difícil a compreensão da sua linguagem.
Carlos desceu vertiginosamente à esfera das imagens arquetípicas, dos deuses, dos
demônios. Produziu com intensidade cerca de 21.500 trabalhos - desenhos, pinturas,
modelagens, xilogravuras, escritos - até sua morte em 21 de março de 1977.
Participou de diversas exposições coletivas e individuais, no Brasil e no exterior. Sua
vida e obra foram registradas no filme de Leon Hirszman "A Barca do Sol".
CONCLUSÃO
Esse trabalho nos permitiu observar que a arte pode estar a serviço do doente ou
do tratamento da expressão desse sujeito com problemas mentais a fim de atingir um
estado saudável pra si mesmo. Por muito tempo essas pessoas ficaram sem voz devido a
sua condição. Com a arte, eles podem voltar a se expressar.
Para que se possa entender a essência da arte, há que se estudar com olhos
internos aquilo que não está visível e que nem sempre é reconhecido intelectualmente.
A obra de arte toca por ter vida, ela sustenta sonhos e tentações. A função do processo
de criação pode ser entendida como a possibilidade de resgatar metaforicamente a
realidade através da inscrição da pulsão no psiquismo. Quando essa força é submetida
ao trabalho de ligação e simbolização, capacita o artista a dotar de significado sua obra
ou experiência criativa. Dessa forma, pode-se compreendera doença psíquica como uma
espécie de desencadeante do imaginário e consequentemente, do ato de criar. O artista
com doença psíquica pode estar buscando a construção de si próprio nas suas
manifestações artísticas e, a partir do momento em que se expõe a admiração do
espectador, realizar uma tentativa de se constituir através do olhar do outro. Ocorre aí a
busca incessante do viver criativo e da capacidade de se gerar obras de arte, quer sejam
essas obras telas, esculturas, livros ou até mesmo músicas. No entanto, a história desses
artistas transcende para o fato de que o processo de criação está relacionado com a
satisfação da necessidade humana de expressar-se transmitindo assim suas emoções e
pensamentos mais profundos através dos símbolos intrínsecos em suas obras de arte,
transformando seus sentimentos em algo concreto e sofrimentos em grandes apreciações
com significados únicos.
Criar é mais do que expressar. É tornar possível a maior de todas as obras de
arte: a própria vida. Sendo assim, obra de arte sempre transcende a si mesma, assim
como o homem transcende infinitamente o homem.