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1187 PRÁTICAS EUROPEIAS DE MEDICINA: APROPRIAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO NAS OBRAS DE PEDRO MONTENEGRO SJ. ROBERTO POLETTO Bolsista CNPq no Mestrado em História- UNISINOS [email protected] Resumo: Neste trabalho, apresento alguns aspectos do projeto de Mestrado que desenvolvo no PPGH da Unisinos. O projeto prevê a análise das obras de medicina escritas pelo jesuíta Pedro Montenegro SJ., no século XVIII. Dentre os objetivos da investigação, destaco a verificação da apropriação que Montenegro fez das concepções defendidas por alguns autores e tratados que ele menciona – confirmando ou contestando seus pressupostos- , bem como a sua ressignificação em um contexto distinto, o da América meridional. Nesta comunicação destaco aspectos da formação e atuação de Montenegro, que teria atuado no Hospital General de Madrid, e como os mesmos aparecem refletidos nos Tratados que posteriormente o mesmo escreveu, a saber, Materia Medica Misionera (1710) e Libro de Cirugía (1725). Palavras Chave: Pedro Montenegro SJ., Formação, Tratados de Medicina. Desde os anos 80 do século XX, com a emergência da História Cultural, diversos pesquisadores têm se debruçado sobre temáticas outrora relegadas ao esquecimento. Entre os temas que vem recebendo cada vez mais o interesse dos historiadores, podemos destacar a história da saúde e da doença 1 . Desde a iniciação científica 2 , e também em nossa monografia de conclusão de curso 3 , temos trabalhado com a análise de Tratados de Medicina que foram utilizados por jesuítas que exerceram atividades ligadas às artes de curar na Província Jesuítica do Paraguai 4 . Em nossa pesquisa temos nos debruçado preferencialmente sobre as temáticas relativas às práticas de cura e de escrita presentes em um universo transcultural 5 que se 1 Apesar da vanguarda de trabalhos como “Os Reis Taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra.” de Marc Bloch, o tema só foi tratado de maneira sistemática próximo ao último quarto do século XX. Destacamos, entre outros, trabalhos referenciais como o artigo “O corpo: o homem doente e sua história” de Jacques Revel e Jean Pierre Peter e a obra “As doenças têm história” organizado por Jacques Le Goff. 2 Entre fevereiro de 2010 e julho de 2011, participei como bolsista no projeto “Medicina e Missão na América Meridional: Epidemias saberes e práticas de cura (séculos XVII e XVIII)”, coordenado pela pro- fessora Doutora Eliane Cristina Deckmann Fleck e executado no Programa de Pós Graduação em História da Unisinos, contando com o apoio da FAPERGS e do CNPq. 3 Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em História em junho de 2011 sob o título: Medicina Acadêmica Espanhola: Continuidades de práticas mágico- populares e avanços científicos em Tratados de medicina do século XVIII. 4 A Província Jesuítica do Paraguai foi criada em 1607, portanto, em um momento posterior ao início do empreendimento missional (em 1549, os jesuítas desembarcaram no Brasil) e englobava um território que atualmente compreende regiões do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia. 5 Entendemos o conceito de transculturação, tal como o aplica, M. Pratt (1999), em que apesar das influ-

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PRÁTICAS EUROPEIAS DE MEDICINA: APROPRIAÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO NAS OBRAS DE PEDRO MONTENEGRO SJ.

RobeRto Poletto

Bolsista CNPq no Mestrado em História- [email protected]

Resumo: Neste trabalho, apresento alguns aspectos do projeto de Mestrado que desenvolvo no PPGH da Unisinos. O projeto prevê a análise das obras de medicina escritas pelo jesuíta Pedro Montenegro SJ., no século XVIII. Dentre os objetivos da investigação, destaco a verificação da apropriação que Montenegro fez das concepções defendidas por alguns autores e tratados que ele menciona – confirmando ou contestando seus pressupostos- , bem como a sua ressignificação em um contexto distinto, o da América meridional. Nesta comunicação destaco aspectos da formação e atuação de Montenegro, que teria atuado no Hospital General de Madrid, e como os mesmos aparecem refletidos nos Tratados que posteriormente o mesmo escreveu, a saber, Materia Medica Misionera (1710) e Libro de Cirugía (1725).

Palavras Chave: Pedro Montenegro SJ., Formação, Tratados de Medicina.

Desde os anos 80 do século XX, com a emergência da História Cultural, diversos pesquisadores têm se debruçado sobre temáticas outrora relegadas ao esquecimento. Entre os temas que vem recebendo cada vez mais o interesse dos historiadores, podemos destacar a história da saúde e da doença1. Desde a iniciação científica2, e também em nossa monografia de conclusão de curso3, temos trabalhado com a análise de Tratados de Medicina que foram utilizados por jesuítas que exerceram atividades ligadas às artes de curar na Província Jesuítica do Paraguai4.

Em nossa pesquisa temos nos debruçado preferencialmente sobre as temáticas relativas às práticas de cura e de escrita presentes em um universo transcultural5 que se

1 Apesar da vanguarda de trabalhos como “Os Reis Taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra.” de Marc Bloch, o tema só foi tratado de maneira sistemática próximo ao último quarto do século XX. Destacamos, entre outros, trabalhos referenciais como o artigo “O corpo: o homem doente e sua história” de Jacques Revel e Jean Pierre Peter e a obra “As doenças têm história” organizado por Jacques Le Goff. 2 Entre fevereiro de 2010 e julho de 2011, participei como bolsista no projeto “Medicina e Missão na América Meridional: Epidemias saberes e práticas de cura (séculos XVII e XVIII)”, coordenado pela pro-fessora Doutora Eliane Cristina Deckmann Fleck e executado no Programa de Pós Graduação em História da Unisinos, contando com o apoio da FAPERGS e do CNPq.3 Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em História em junho de 2011 sob o título: Medicina Acadêmica Espanhola: Continuidades de práticas mágico- populares e avanços científicos em Tratados de medicina do século XVIII.4 A Província Jesuítica do Paraguai foi criada em 1607, portanto, em um momento posterior ao início do empreendimento missional (em 1549, os jesuítas desembarcaram no Brasil) e englobava um território que atualmente compreende regiões do Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia.5 Entendemos o conceito de transculturação, tal como o aplica, M. Pratt (1999), em que apesar das influ-

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estendia entre a América e a Europa durante o Antigo Regime. Nosso projeto inicial para o mestrado buscava a partir dos conceitos de apropriação e ressignificação analisar a composição das obras do autor jesuíta, irmão Pedro Montenegro, que são a Materia Medica Misionera (1710) e o Libro de Cirugía (1725). Porém com o aprofundamento da pesquisa, averiguamos que a segunda obra não se encontra disponível de maneira integral6 e que nem todas as obras de referência estão disponíveis. Com essas limitações postas à pesquisa, constatamos que uma saída interessante seria traçar a trajetória de formação e profissionalização de Montenegro na Espanha e sua atuação na América Meridional, e, a partir desse pano de fundo analisar a composição das obras supracitadas.

Segundo dados de Storni (1980), o irmão Pedro Montenegro teria nascido na Galícia, Espanha no ano de 1663. Em 1691 teria vindo para a América, ainda como leigo e somente dois anos depois teria entrado para a Companhia de Jesus. Em 1703 teria passado para a missão de Concepción em Misiones na Argentina e na mesma província, porém então radicado na missão de Mártires teria falecido no dia 20 de fevereiro de 1728.

Outras informações, apresentadas pelo próprio Jesuíta em suas obras nos permitem aumentar a composição de dados sobre o mesmo. No início de sua Materia Medica o autor destaca que:

“Lo que te puedo asegurar es, que las plantas que aqui te doy pintadas son verdaderas medicinas para lo que te prometen curar, que por espacio de treinta y un años que há que comenzé á curar en el hospital general de Madrid, algunas de ellas he reconocido sus virtudes, y mayormente de 12 años [p. 5] /años acá, que por hallarme en estas tierras de la America sin Botica, ni Boticarios, me ha forzado á que con ellas hacerme autor de Botica. (Montenegro, [1710], 1945, p.4 e 5) (grifos meus)

O autor destaca nesse excerto que o início de sua atuação se deu no Hospital General de Madrid. Considerando que a obra foi escrita em 1710, isso significaria dizer que Montenegro passou a atuar no dito hospital, provavelmente como aprendiz, no ano de 1679, contando apenas 16 anos de idade.

Comparando os dados de Storni e aqueles apresentados por Montenegro, uma diferença é encontrada. Enquanto o primeiro cita a chegada do jesuíta à América no ano de 1691, o autor destacou ter conhecido as virtudes das plantas “mayormente de 12 años años acá, que por hallarme en estas tierras de la America”, o que significaria dizer que Montenegro teria chegado à América em 1698. Uma hipótese pode ser levantada para dar conta dessa diferença de sete anos7.

A sistematização de uma obra que envolve conhecimentos variados sobre plantas

ências sofridas por “uma cultura dominante ou metropolitana”, é possível observar que os povos contata-dos, neste caso específico os da América, também influenciaram o conquistador (Europa). 6 Não são conhecidos manuscritos preservados do Libro de Cirugía. Há uma publicação do prefácio da obra, feita no início do século XX por Garzón Maceda na obra La Medicina en Córdoba (1916).7 A formulação de hipóteses diversas a partir do modelo de análise é uma das proposições de F. Barth que sugere que submetamos nossos modelos a “tentativas de falsificação” (ROSENTAL, 1998, p.170)

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estrangeiras e nativas, como é a Materia Medica Misionera, não se dá de maneira rápida. Apesar do livro ser datado em 1710, ele pode ter sido escrito durante os anos anteriores. Podemos aventar que o ano de 1703 tenha sido o marco inaugural da escrita da obra. Isso igualaria os dados de ambos os autores e, também, levanta a possibilidade de que a partir da radicação do irmão nas missões é que ele teria iniciado a sistematização desses conhecimentos.

Mas, quais seriam as motivações do irmão jesuíta para iniciar a composição de uma obra escrita, a partir do momento em que passa a atuar diretamente nas missões? Para compreendermos isso, é preciso que atentemos que no espaço de tempo que vai de 1693 (entrada na Companhia) até 1703, o irmão jesuíta realizava sua formação eclesiástica e atuou no Colégio de Córdoba, tendo sido um dos responsáveis pela botica daquela instituição8.

Esse colégio foi o principal centro de formação jesuítica da Província do Paraguai. Sua biblioteca era uma das mais completas do continente com obras que versavam sobre os mais diversos temas. Sobre as artes de curar relacionamos mais de 40 obras9, sendo que diversas delas foram citadas como referenciais pelo autor jesuíta. Isso nos remete a uma outra constatação. Ao ser remanejado para o trabalho nas missões o autor perdeu contato com as obras outrora tão a mão. Sua atividade também deve ter se modificado para um contato mais direto com os doentes de lugares mais dispersos. A explicação apresentada sobre o porquê se fazer autor é apresentada no prefácio do Libro de Cirugía:

“Moviome a escribir este libro, el deseo de reunir en un Cuerpo, lo que no he podido hallar en libro alguno, cuanto es preciso, teniendo que caminar continuamente y por diversas partes; no pudiendo llevar muchos libros, me hallaba falto, muchas veces, de aquellos que trataban la materia del caso particular que se ofrecía , además que la justa esperanza que concebí del alivio que se seguiria para todos los doloridos enfermos, de estes mis apuntamientos, justo con la utilidad en el descanso propio, me ha esforzado mucho para trazar este, no sé si decir obligatorio trabajo.” (MONTENEGRO in CREMADES, 1999, p.19) (grifos meus)

As informações trazidas no excerto acima revelam que, apesar de distante das facilidades de pesquisa proporcionadas pela biblioteca do colégio, o irmão Montenegro ainda tinha contato com livros, faltando-lhe possibilidade de “llevar muchos”. O que teria motivado-o a escrever, portanto, foi a necessidade de sistematizar as obras que ele consultava em uma que tratasse “la matéria del caso particular que se ofrecía”.

8 Para o decorrer da pesquisa, está prevista a análise do inventário da botica do colégio de Córdoba, feito após a expulsão da Companhia de Jesus da América. Considerando que não existem dados que compro-vem que Montenegro tenha retornado àquele Colégio, o inventário teria sido composto mais de 60 anos após a saída do irmão da instituição. Ainda assim, acreditamos que muitos dos compostos relacionados pelo mesmo, assim como instrumentos cirúrgicos ou utilizados para o preparo das infusões, possam ter sofrido um uso contínuo no decorrer do século XVIII. Aspectos que serão revelados na continuidade do trabalho. 9 A consulta sobre as obras presentes na biblioteca do Colégio de Córdoba foi feita na obra organizada por Alfredo Fraschini: FRASCHINI, Alfredo Eduardo (diretor). Index Librorum Bibliothecae Collegii Maximi Cordubensis Societatis Iesu. Edición Crítica Filológica y Bibliográfica. Buenos Aires, 2003.

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Necessidades específicas acabavam por gerar novas obras, que, por vezes, seriam apenas versões menores ou adaptadas de outras já existentes10. Em outros casos, observava-se um esforço de caráter institucional para a composição das mesmas11.

Entre a ciência médica e a caridade cristã: Pedro Montenegro SJ., formação e trajetória.

Após esta breve explanação sobre as motivações do jesuíta, cabe que destaquemos de que maneira buscaremos desvendar o processo de formação e atuação ao qual ele esteve inserido no Hospital General de Madrid. Para tanto nossas principais fontes até o momento são as chamadas “Ordenanzas, y constituciones para el para el buen govierno, y administracion del Hospital General de la Misericordia desta villa de Madrid, y de los demas Hospitales, por autoridad Apostolica y Real , a el reduzidos12.” Considerando que Montenegro entrou no hospital no ano de 1679, as ordens originais ainda estavam em validade, sabemos que uma nova versão foi produzida em 170513.

10 Muitos pesquisadores que problematizaram a temática, tais como Arata (1898) e Furlong (1947) ressaltaram que autores anteriores (ex: Ventura Suarez) e posteriores (ex: Asperger) teriam escrito textos muito parecidos aos de Montenegro, o que nos leva a questionar a originalidade dos escritos, mas não o fato de serem de autoria desses homens, pois a noção sobre direito autoral no período era completamente diversa daquela que conhecemos: Ver mais sobre as concepções de autoria em BOUZA, Fernando. Corre Manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2001.11 É o que se depreende excerto da obra do jesuíta Martin Dobrizhoffer e que demonstra a necessidade de uma orientação àqueles missionários que trabalhariam junto aos doentes nas mais diversas partes do mundo: “[...] consultamos diligentemente libros de médicos y herbolarios. El Florilegium medicus es-crito en castellano, y reeditado; fue para todos nostros como la biblioteca médica recomendando por las alabanzas de médicos madrileños por su pública utilidad y conocido en América, que es dominio español.Nuestro hermano Juan Steinheffer, muy versado en cirujía por la lectura de volúmenes sobre medicina y la experiencia de muchos años, cuando estuvo en las colonias indias del reino de Nueva Granada como médico, compuso y pulió este libro voluminoso para uso de los misioneros; para que se capacitaran y pudieran curar los indios enfermos cuando en tan vastas extensiones no encontrarían ni la sombra de un galeno, farmacéutico o cirujano.” (p.258)12 O documento foi originalmente publicado no ano de 1589, durante o reinado de Felipe II. No mesmo ano foi criado o protomedicato o que demonstra o intento centralizador do governo espanhol desde aquele período e que culminou, já na segunda metade do século XVIII, com o governo de Carlos III, nas reformas bourbônicas: “Processo de modernização e consolidação do Estado espanhol. Influenciado pelo Iluminismo determinava medidas de centralização do poder. “Coerente com sua ênfase na clareza de raciocínio, o Iluminismo preferia a unidade e a uniformidade às distinções múltiplas. No caso gover-namental, isto significava a manutenção do ideal de estado unitário não embaraçado pela existência de corporações independentes.” (SCHWARTZ e LOCKHART, 2002, p.400)13 Segundo a bibliografia consultada, nas Constituciones de 1705 a ênfase não está mais no atendimento aos pacientes, mas em questões administrativas: “Em 1705 las nuevas Constituciones tampoco se exten-dían en los aspectos de asistencia médica, dedicando la mayor parte del texto a temas administrativos. Referente a los médicos especificaban que las plazas vacantes debían cubrirse por oposición pública como se venía haciendo desde 1693. Las visitas debían realizarse en verano a las siete de la mañana y en invierno a las ocho de la mañana; y por la tarde en verano a las cinco de la tarde, y en invierno a las cuatro de la tarde. Las Constituciones insisten mucho en la importancia de la puntualidad en las horas de la visita médica, señalando al Hermano mayor y al Enfermero Mayor para que vigilasen el cumplimien-to del horario por los médicos “… por que en esto ha avido gran descuydo (aunque aora no le ay) y es menester no le aya en adelante.” (NÚÑEZ OLARTE, 1999, p.66, 67)

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Outro documento importante para essa investigação será a “Recompilacion de las Leyes, pragmaticas reales, decretos, y acuerdos del Real Proto- Medicato”. Essa sistematização do ano de 1751 apresenta as principais leis e decretos criados sobre o protomedicato, instituição responsável pela regulamentação das profissões ligadas à área da saúde na Espanha e em seu Império Ultramarino. Considerando que a pesquisa encontra-se em andamento, daremos ênfase, neste trabalho, às “Constituciones” do Hospital de Madri, documento que já foi analisado de maneira integral14.

Na perspectiva comparada entre as “Constituciones” do Hospital, e o observado nos escritos do irmão Montenegro, perceberemos a recorrência de diversos aspectos em comum. Como Simona Cerutti destaca: “[...] é a decodificação da experiência individual que pode nos introduzir nas características das agregações sociais.” (CERUTTI, 1998, p.201) Tal constatação demonstra a influência que a formação leiga do cirurgião Montenegro continuou exercendo sobre o jesuíta.

Uma das características buscadas entre os profissionais que fossem atuar no Hospital de Madri era a experiência pessoal, especialmente para cargos de algum destaque. Ela serviria como uma comprovação de capacidade e daria ao profissional postulante ao cargo um perfil confiável. Tal aspecto não fica restrito aos profissionais envolvidos diretamente nos ofícios ligados à cura. Contadores, mordomos e mesmo cozinheiros deveriam ser experientes em seu ofício. Sobre o enfermeiro maior, o perfil buscado era o seguinte: “[...] que sea de mucha esperiencia, y charidad para con los pobres enfermos” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.15)

Na obra de Montenegro, a importância dessa noção de experiência fica muito clara. No primeiro excerto por nós citado ela já transparece quando o autor destaca que havia mais de 30 anos que trabalhava com as plantas sobre as quais escrevia, reforçando a confiabilidade daquilo que constaria em sua obra. Durante diversos pontos de sua Materia Medica essa noção foi referenciada. São 54 menções à palavra experiência, tanto reforçando-a quanto destacando que não tinha conhecimento sobre determinada terapêutica.

Mostrando que algumas das concepções clássicas vinham sendo revistas o autor discorda de Dioscórides15 sobre o modo de secar as flores e diz que: “Las flores en estas tierras tengo experiencia, que las secadas á la sombra presto se corrompen de polilla,

14 Ainda que não tenhamos o protomedicato como objeto central de análise neste trabalho, considera-mos relevante destacar algumas de suas atribuições: Las funciones del Tribunal fueron, en primer lugar, examinar y conceder licencias de ejercicio a los médicos, cirujanos y boticarios, además de a toda una serie de ocupaciones sanitarias como especieros, herbolarios, ensalmadores o matronas. La segunda función fue el control del ejercicio de las diferentes profesiones y ocupaciones sanitarias, quedando los que las desempeñaban sujetos en sus personas y bienes a la jurisdicción civil y criminal del Protomedi-cato. Por ello, también se ocupaba de perseguir y castigar el intrusismo, especialmente el ejecutado con “artes mágicas”, también el ejercicio de la medicina con procedimientos empíricos o científicos, sin el pertinente título y autorización. En esta misma línea de control de la actividad profesional, otra función del Protomedicato fue la visita a las boticas y a tiendas donde se vendieran medicamentos o especias, tarea que siempre compartió con las autoridades locales. (TERRADA, 2007, p. 96)15 Dioscórides de Anazarba (40- 90 d.C) serviu nos exércitos de Tibério e de Nero e foi autor do texto de matéria médica mais conhecido e estudado até o fim do século XVI, base imprescindível de consulta e referência durante mil e quinhentos anos. (TAVARES de SOUSA, 1996, p.91)

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ó humedad, principalmente la rosa”. E reforçava que mesmo que quisessem criticar-lhe “esta experiencia no es solamente mia, sin que primero me haya alumbrado el peritisimo Fr. Francisco Sirena, religioso de San Agustin, excelente boticario moderno en su farmacopéa [...]” (MONTENEGRO, [1710], 1945, advertencias necesarias)

Como visto acima, além da experiência buscada nos profissionais que atuassem junto ao hospital, outra noção fundamental era a da caridade e isso está ligado, em grande medida ao papel social que a instituição hospitalar deveria ocupar na sociedade de Madri. Quando fundado, o trato dos doentes não era a função primordial do hospital,16 que antes de tudo, deveria preocupar-se com os sujeitos desvalidos da sociedade de Madri17. Assim, idosos, mendigos, viúvas, crianças expostas e mães solteiras que não fossem de má vida encontrariam guarida no hospital. Tal concepção pode ser notada na apresentação da casa onde se pedia que: “[...] aya puerta aberta para la entrada de todos los pobres hombres y mugeres, que a ella vinieren: los quales han de ser recebidos com toda piedad, y a todas horas [...]” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.1)

Os escritos do irmão jesuíta também abriam espaço para a temática. Além dos aspectos já destacados que o motivaram a escrever suas obras o autor destacou a questão da caridade. O fato do tema ser referido em ambas as obras demonstra sua importância para o jesuíta. Assim, enquanto na Materia Medica ele citava motivar-lhe:“mas la caridad de haser bien á mis hermanos, que la ambicion de Autor de un libro […] (Montenegro, [1710], 1945, p.5) Na obra posterior ele reiterava tal aspecto por “la justa esperanza que concebí del alivio que se seguiria para todos los doloridos enfermos” (MONTENEGRO in ACERBI, 1999, p.19)

Caridade e religiosidade andavam juntas no Hospital de Madri. Essa proximidade nos leva a aventar mais algumas hipóteses acerca da trajetória de Pedro Montenegro. Se sua chegada à América se deu no ano de 1691, por que o cirurgião esperou dois anos até adentrar na Companhia de Jesus? Algumas questões merecem ser pontuadas.

Em primeiro lugar, Montenegro pode ter tentado se estabelecer como profissional leigo e, ao não conseguir sucesso em sua profissão teria encontrado no interior do Colégio de Córdoba um espaço adequado para desenvolver seu trabalho. Essa possível dificuldade poderia explicar o período de dois anos em que o cirurgião permaneceu leigo em terras americanas, porém nos faltam subsídios que comprovem tal argumentação.

Outra questão importante é o próprio estado de saúde de nosso personagem.

16 As Constituciones deixam clara a preocupação que se teria com los pobres mendigos, incluindo nesse grupo todos os desvalidos: “[...] pues para ellos particularmente se fundó esta casa, con intento en ella se les procurasse el remedio espiritual, y temporal.” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.1) 17 É interessante observarmos como o status do hospital se altera com o tempo, passando a ter como preocupação central o cuidado dos doentes e passando a responsabilidade sobre os desvalidos para outras “casas”. “La existencia de esta multitud de “Casas” agregadas a los Rs Hospitales no significa necesa-riamente la primacía de la función social sobre la sanitaria en los mismos. Antes al contrario la ubica-ción de los pobres, mendigos, necesitados, e impedidos en otras casas que no eran hospitales, facilitó la identificación progresiva de los Rs Hospitales, con la atención exclusiva del “paciente enfermo”.” (NÚÑEZ OLARTE, 1999, p.21)

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No Catálogo da Província do ano de 1703, consta que o irmão Montenegro “[...] había hecho los últimos votos el 25 de abril de 1703, que se allaba en las Misiones del Rio Paraná, que sus fuerzas físicas eran ‘débiles’ y su oficio era el de cirujano (Chirurgus)” (FURLONG, 1947, p.67) Um trecho da própria obra, do já então jesuíta Montenegro, ressalta os problemas de saúde por ele enfrentados e como a farmacopéia nativa lhe ajudou a curar-se da tuberculose:

“El cocimiento del Guayacán bebido por largo tiempo cura la llaga de los pulmones, mejor que otro remedio alguno, como lo tengo por esperiencia, asi en mi, como en otros muchos, qué de asistir á tisicos á visitarlos la contrajimos en el Colegio de Cordova, y viendome yá como desauciado, revolviendo libros, autores, para curarme, hallé en Riveiro, como Ascencio insigne Medico en Francia, curó á muchos con el cocimiento de Guayacán, bebido por largo tiempo.” (MONTENEGRO, [1710] 1945, p.21, 22) (grifos meus)

Dessa maneira, as próprias dificuldades físicas de Montenegro podem tê-lo feito buscar ajuda na instituição católica, que baseava sua ação junto aos católicos justamente por um princípio de caridade18. Um homem ainda solteiro, chegando a casa dos 30 anos com dificuldades físicas que ficam claras pelos dados apresentados poderia ver na Companhia de Jesus uma instituição adequada para envelhecer atuando no ofício que trouxera da Europa. Montenegro pode ter se utilizado de uma “margem de manobra”, dentro de suas possibilidades, para garantir sua sobrevivência e uma velhice tranqüila. Podemos aventar que aquele que foi considerado o principal representante jesuíta no campo medicinal talvez tenha entrado na Companhia por uma estratégia frente a incerteza cotidiana..

Outro fator recorrente nas “Constituciones” é a presença de práticas de caráter religioso. Apesar da instituição em si ser de orientação leiga a presença da Igreja e dos sacerdotes pode ser observada em diversos pontos desse conjunto de leis. Algumas das profissões, por exemplo, deveriam ser ocupadas preferencialmente por “hermanos de habito”, como no caso do porteiro: “Avra um potero procurando que sea bien entendido, y de confiança, eligiendole entre los hermanos de habito si fuere posible, y siendo lego ha de vivir dentro de la misma casa […]”(Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.19) Em um ambiente com saídas e entradas constantes de pessoas a escolha de um religioso para cumprir funções específicas teria a ver em grande medida com a sua esperada retidão moral, tanto que em caso do porteiro escolhido ser leigo, ele deveria viver dentro da casa. Normas que visavam um claro controle do comportamento moral da sociedade do período19.

18 Os jesuítas contavam com uma permissão especial do Papa Gregório XIII para a atuação junto aos doentes. Sua motivação era justamente a piedade. Para maiores informações sobre o tema ver: LEO-NHARDT, Carlos. Los jesuítas y la medicina en el Río de Plata, Estudios, 57, Buenos Aires, 1937, p. 101-118.19 Há uma ampla bibliografia que trabalha a questão do controle sobre as pessoas durante o Antigo Regime. Destacamos aqui: CARNEIRO, Henrique. Filtros, Mezinhas e Triagas: as drogas no mundo mo-derno. SP:Xamã, 1994 e THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1996.Tais preocupações, também podem ser verificadas nas próprias “Constituciones” orientando os profissionais no sentido de manterem separadas as enfermarias masculinas e femininas, como segue: “El

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Ainda sobre a questão religiosa, é interessante que observemos como todo momento e lugar podia ser usado como espaço para louvação de Deus. Missas deviam ser ditas repetidamente, os pobres do hospital deveriam acompanhar os enterramentos na comunidade e durante as refeições Deus devia ser sempre lembrado: “Y acabado de comer se daràn gracias, encomendando a los pobres rezen un Pater noster por los hienhechores, y alçadas las servilletas se barrerà la enfermeria, y dexaràn reposar a los enfermos.” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.3) (grifos meus)

Quando Montenegro escreveu suas obras ele já havia entrado para a vida religiosa, o que explicaria que suas noções de mundo estivessem centradas na figura de um Deus Onipotente, como já fica claro no prólogo de sua Materia Medica: “Tienese por cosa cierta, asi entre los Autores Griegos, como entre los Latinos, q.e el inventor de la medicina fué solo Dios Inmortal…” (Montenegro, [1710], 1945, prólogo) Porém, a análise de obras escritas por profissionais leigos, torna claro que o papel central da figura de Deus era, no século XVIII, uma concepção aceita pela maioria20.

É o caso encontrado nos livros do conhecido médico espanhol Francisco Suarez de Ribera21 que em uma de suas obras clássicas intitulada “Medicina Ilustrada Chymica Observada, o Theatros Pharmacológicos, Medicopracticos, Chymico- Galenicos” deixava claro, com uma explicação muito próxima àquela de Montenegro, que a funcionalidade de qualquer terapêutica estava ligada à graça de Deus: “[...] la doctrina, la ciencia, ni las virtudes de los medicamentos Bateanos ilustrados, no pueden producir el mas mínimo efecto salutifero, si Dios no lo governare, è ilustrare primero con el resplendor de su Divina Gracia.” (RIBERA, 17?, p.7)22

No último trecho citado das “Constituciones” do hospital foi mencionado que após a reza realizada pelos doentes uma das tarefas seria varrer a enfermaria. Ainda que o conceito de higiene passe a ser amplamente utilizado somente a partir de fins do século XVIII23, nota-se na concepção do Hospital uma valorização da ideia de limpeza dos ambientes. Diversas das profissões têm citações que referenciam esse cuidado. O

quarto de las mugeres estará muy distinto, y apartado del de los hombres, y la porteria dellas ha de estar siempre cerrada, y para pedir lo que de la botica, ó botilleria huvieren menester, ò para outro recaudo, tendràn un torno, y el su campanilla, y uno, ô dos hombres viejos que acudan aproveelles lo necesario: y en las enfermerias de las mugeres no se permitirà entre hombre ninguno, sino fuere con licencia del semanero, ò hermano mayor, y con causa justa, ni muger en las de los hõbres, sin la misma orden. Y esto se guarde inviolablemente.” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.3)20 Apesar dessa aceitação, a análise de diversas obras de autores leigos e as dedicatórias das mesmas sendo direcionadas em grande medida a membros ou entidades sagradas ligadas à Igreja Católica nos levam a aventar a possibilidade uma busca de aproximação autor/ Igreja, como estratégia frente à conti-nuidade da censura imposta pelos Tribunais do Santo Ofício. 21 Ribera era Doutor pela Universidade de Salamanca, Sócio da Real Sociedade Médico- Química de Sevilla e médico titular de diversos hospitais. 22 Apesar da capa da obra não trazer o ano exato da publicação, acreditamos que tenha sido 1724 ou 1725, pois as aprovações presentes na obra são daquele ano. 23 Sobre a utilização e propagação de uma ideia de necessidade de higiene pelas monarquias ilustradas destacamos alguns trabalhos de Jean N. Abreu: ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi (Rio de Janeiro), v. 8, p. 80-104, 2007. ABREU, Jean Luiz Neves. Higiene e conservação da saúde no pensamento médico lusobrasileiro do século XVIII. Asclepio (Madrid), v. 62, p. 225-250, 2010.

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cozinheiro deveria observar a limpeza do ambiente em que a comida seria preparada, assim como o asseio dos próprios alimentos. O irmão maior deveria cuidar para que as enfermarias estivessem limpas e que incensos fossem colocados nos quartos para evitar maus odores. Os pacientes não escapavam dessa orientação: limpeza, resignação e força divina pareciam combinar-se no ambiente hospitalar, como fica claro no tratamento que deveriam receber ao entrar na instituição:

“Antes que los desnuden, los quiten el cabello, si lo tuvieren crecido, y despues los desnuden, y limpien, y vistan una camisa de las que el hospital tiene para su limpieza, el tiempo que se curaren, y haranlos persignar, y encomendar a Dios, encomendandoles la paciencia, y conformidad con su voluntad, y la obediencia a los medicos, y enfermeros en lo que conviniere a su salud.” (Ordenanzas y Constituciones..., 1610, p.2)

Nas obras do irmão jesuíta, a noção de limpeza se faz amplamente presente. São 47 referência ao verbo limpar e suas variáveis. A concepção, porém, era abrangente e agregava desde cuidados com a limpeza após o colhimento das plantas, com os objetos usados no preparo dos medicamentos, como também com remédios utilizados para limpar chagas e feridas. A pureza da alma e a purga dos pecados, ligados ao conceito de limpeza aparecem na dedicatória da obra dirigida à Nossa Senhora: “[...] para ir al Cielo Vos sois la escala, para ver á Dios Vos sois la puerta, para ser limpios de culpas Vos sois el mar de las aguas cristalinas á donde todos debemos acudir para ser sanos.” (MONTENEGRO, [1710], 1945, dedicatória)

Por fim, destacaremos uma última inquietação surgida até o momento: a falta de correspondências enviadas por ou endereçadas ao irmão Montenegro. Pesquisadores da vida do jesuíta não fazem nenhuma referência a possíveis cartas do mesmo e a obra “Documentos Jesuíticos del siglo XVIII en el Archivo Nacional de Asunción� (2006) organizada por Ignacio Telesca também não nos trouxe novidades sobre o tema. Inquieta-nos tal fato, pela razão de jesuítas menos consagrados que o irmão Montenegro terem cartas emitidas ou recebidas.

Teria o irmão Montenegro evitado a escrita de cartas, mesmo que, como sabemos, esta ocupasse papel central no seio da Companhia?24 Ou a louvação feita a seu nome é maior do que seus méritos reais como médico jesuíta?25 A documentação consultada tem nos possibilitado aclarar algumas questões, outras perguntas, porém, permanecerão sem respostas no decorrer da pesquisa.

24 A produção sobre o tema é extensa, destacamos aqui: HANSEN, João Adolfo. O Nu e a Luz: Cartas Jesuíticas do Brasil. Nóbrega- 1549- 1558. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.38, 1995, p.87-119; PÉCORA, Alcir. Cartas à Segunda Escolástica. In: Novaes, Adauto (org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.373-41425 Apesar de não termos localizado cartas escritas por Montenegro, é interessante observarmos a grande repercussão que suas obras encontraram ainda em meados do século XVIII. Sobre isso é esclarecedora a citação de Sànchez Labrador, importante historiador da Companhia de Jesus, que destaca o papel de Mon-tenegro entre os jesuítas que trabalharam com as artes de curar: “Entre todos sobresale el hermano Pedro Montenegro, cuyo estúdio fué continuo en la Botánica Pharmacéutica , Medicina, Cirugía para bien de las gentes del Paraguay, y singularmente de los indios. En el idioma guaraní compuso algunos libros, y otros en la española.” (LABRADOR in FURLONG, 1947, p. 68)

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Conclusão

A análise de uma trajetória possibilita desvendar todo um pano de fundo que vai além do sujeito que se estuda, como ressaltou J. J. Reis do epílogo de sua obra sobre o sacerdote africano Domingos Sodré:

�Independente de serem umas mais, outras menos documentadas, essas histórias pessoais, além de relevantes em sua singularidade, servem para melhor perceber experiências coletivas e iluminar contextos e processos históricos mais amplos e complexos.� (REIS, 2008, p.316)

Guardadas as diferenças entre as perspectivas de pesquisa e o recorte cronológico, acreditamos que a compreensão da trajetória intelectual de Pedro Montenegro nos permitirá ir além de sua atuação como médico de índios, desvendando todo um universo de representações imbricadas, concebidas nos espaços de tratamento terapêutico dos séculos XVII e XVIII. Trabalhando com a correspondência

de Capistrano de Abreu, R. Gontijo destaca que tal documentação nos possibilita: “[...] à crença na possibilidade de acesso aos bastidores da construção de uma obra ou livro e da formação de um autor ou escritor. (GONTIJO, 2004, p.166)

Da mesma forma, acreditamos que a análise da trajetória de formação e atuação do irmão Pedro Montenegro poderá nos possibilitar compreender suas motivações para tornar-se um jesuíta e, mais do que isso um “autor de Botica”, assim como buscar discutir as noções de autoria no período estudado. Para além das singularidades da figura do jesuíta pode-se compreender o papel que os profissionais da cura exerciam no período estudado, tanto no universo europeu quanto no americano e quão central era o papel destinado à figuras sagradas em qualquer atividade humana do período e, especialmente no que se refere à incerteza de uma doença.

Como afirmou Agnolin (2007), se buscarmos analisar esse período através de “estruturas antinômicas entre aquelas do conhecimento cientifico e aquelas que dizem respeito às oscilações e inquietações da vida religiosa”, correremos o risco de cair num grave anacronismo e dessa forma, “não compreender uma inteira época na qual não existiu, de forma tão nítida, uma tal separação entre a concepção do homem, a visão do mundo natural e o obsequio para a lei divina.” (AGNOLIN, 2007, p. 430.) A constante comparação entre os escritos do irmão Montenegro e as “Constituciones” do Hospital General de Madrid ajudam-nos a aclarar este universo híbrido em que a divisão entre ciência e religiosidade possuía contornos tênues.

No decorrer da pesquisa pretendemos aprofundar a análise sobre a formação e atuação do jesuíta, considerando principalmente as leis que regulamentavam às profissões ligadas à medicina na Espanha, ligadas ao protomedicato e já citadas neste trabalho. Além disso, pretendemos analisar obras que serviram de base para que Montenegro compusesse seus Tratados buscando compreender, dessa forma, em que medida ele se apropriou diretamente de discursos e concepções europeias ou, as ressignificou, em contato com a realidade americana que lhe dava uma nova gama de possibilidades de flora, mas também novas concepções de cura ligadas aos conhecimentos indígenas.

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